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de Textos

Museu
do Índio
Fundação Nacional do Índio - FUNAI
Presidente
Romero Jucâ Filho

Museu do indlo
Diretora
Cláudia Menezes

Caderno de Textos - ANTROPOLOGIA VISUAL


Setembro de 1987
Comissão Editorial
Cláudia Menezes,
Patrícia Monte~Mór e Milton Guran

Tradução
Sieni Maria Campos (espanhol) e
Júlia Egrejas Uma (inglês)

Projeto Gráfico
CASA 6 Comunicação Visual Ltda.
Tel.: 205.1858

Foto da capa
Milton Guran J Museu do lndio
Ritual Pankararu "Menino do Rancho" - Pernambuco 87

Museu do Índio
Rua das Palmeiras 55
Botafogo - Rio de Janeiro - RJ - 22270
Telefones: (021)286.8799- 266.2659 - 266.0296
Telex: (021)34180
C E O l - P. 1. B.
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Caderno de Textos

ANTROPOlOGIA VISUAl

Museu do Índio ii•"


SUMÁRIO

Apresentação: Do diário de campo à câmara. • • • • • • • 3 A representação icónica na cotidianidade do operário


sapateiro da cidade de Franca - SP)
Antropologia Visual, mito e tabu Fernando de Tacca.. • • • • • • • • • • • • • • • • • • • . • • 547
Etienne Samain e Hélio Sôlha • • • • • • • • • • • • • • • • • 5
Fotoyrafia e pesquisa antropológica
Conceitos étnicos e estéticos no cinema etnográfico Milton Guran • • • • • • . . • • • • • • . • • • • • • • • • • • • • 66
Jorge Prclorán • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 8
Algumas questões da documentação audiovisual
O filme de pesquisa, algumas considerações
para Antropologia
metodológicas
Marcius Soares Freire • • • • . • • • . • • • • • • • • • • . • • 21 Klm-Ir-Sen P. Leal. • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 70

'-1egistro visual e método antropol6gico Nossa voz da terra, memória e futuro


Cláudia Menezes . • • • • • • • • . • • • . • • • • • • • • • • • 26 - Jorge Silva e Martha Rodrigues. • • • • • . • • • • • . . • . 72

O cinema antropológico e a autogestáo indígena Causachum Cuzco: em busca da consciência perdida


lzabel Hernandez • • • • • • • • • • • • • . . • • • • • • • • • • 29 Alberto Giódice • • • • • • • • • • • • • • • • . • • • • • • • • • • 77

O saber e o sabor se cruzam no casamento entre Mekáron Opoíioie


cinema e antropologia Luis H. Rios, Renato Pereira e Mônica Frota. • • • • • . • 81
Selda Vale da Costa • • • • • • • • • • • . • • • • • • . • • • . 38
Antropologia e Cinema: um documentário na ilha de
Vídeo e reafirmação ética Taquile
Vincent Carelli . • • • • • • . • • • . • • • . . . • • • • • • • • • 42 Patrícia Monte-Mór • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 83

Mito e Fotografia - as aventuras eróticas de Kamukua O cinema independente colombiano


Etienne Samain • • • • • • • • • • • • • . • • • • • • • • • • • • 46 Martha Rodriguez • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 88

Urna relação de amor em dois tempos O índio brasileiro e o cinema


Maria Andréa Loyola, • • • • • • • • • • • • • • • . • • • • • • 51 João Carlos Rodrigues • • • • • • • • • • . • • . • • • . • • . • 91
' \ /\

DO DIARIO DE CAMPO A CAMERA


A organização deste Caderno de Textos tem como proposta reunir artigos, ensaios e relatos que analisem, sob diferentes óticas e
experiências intelectuais, as relações entre a Antropologia e os meios audiovisuais: a fotografia e o cinema.

Ao cotejar a produção relativa à Antropologia Visual, enquanto disciplina do campo antropológico, taf como é entendida e praticada
por cientistas, pesquisadores, fotógrafos e realizadores cinematográficos latino-americanos, concretiza um projeto acalentado há
muito e que se tornou viável por ocasião do I Seminário de Antropologia Visual, realizado durante o li Festival Latino-Americano de
Cinema dos Povos fndfgenas.

Este evento dá continuidade no Brasil à iniciativa de organismos cientfficos mexicanos e internacionais 1 de djscussão da
probfemática ind{gena nos pafses da América Central e do Sul, abordando-a em seus múltiplos aspectos, oornetooo com relação:

1 - ao direito dos povos indfgenas frente ao domfnio exercido pelos Estados Nacionais, notadamente a conquista oe cidadania -
enquanto processo sociológico harmônico ao da preservação dos seus patrimônios culturais - e ao controle jurídico e de fato
sobre os seus antigos territórios;
2 - ao papel reservado à produção e divulgação de conhecimentos através de documentos etnográficos visuais e sua utilização
enquanto instrumento de reafirmação da identidade étnica diferencial destas populações, face a ameaça sofrida por suas
culturas e estilos de vida ante o processo de modernização.
A avaliação dos resultados do I Festival demonstrou, em primeiro lugar, que o cinema dos povos indígenas, ou seja, a produção
r;inematográfica que privilegia esta problemática, é hoje uma realidade na America Latina. A etapa subseqüente consiste em
fomentar o intercâmbio do material de registro audiovisual entre os países do continente; resguardar, paio uso ético, a imagem
indígena devolvendo-a ao meio nativo e promover a produção realizada pelos próprios índios.
Acrescentaríamos a estas proposições a necessidade de refinar o instrumental metodológico disponível, de modo a assegurar
estatuto cienuüco para este tipo de documentação na medida mesmo em que resulta de procedimentos consagrados pela
investigação e análise antropológica.
Os textos ora apresentados revelam preocupações recorrentes e desenvolvem idéias relacionadas aos tópicos anteriormente
mencionados.
Nesta linha de reflexão Hélio Sôlha e Etienne Samain desenvolvem crftica ao etnocentrismo que atinge as linguagens oral e visual,
exclufdas do discurso cientifico em função da sacralização sofrida pela palavra escrita.

A interdisciplinaridade da ciência antropológica e dos meios audiovisuais - no que tange â especificidade da linguagem de imagem
e da parceria estabelecida entre especialistas com treinamentos distintos - é tembém enfocada pelos autores e pelos artigos de
Milton Guran e de Kim-lr-Sen. Estes expressam a preocupação usual dos fotógrafos em legitimar a linguagem que dominam,
especialmente quando se vincula â prática antropológica. Os trabalhos de Maria Andréa t.oyote e de Patrfcia Monte-Mór discutem
esta mesma questão do ponto de vista do antropólogo, possibilitando uma feitura complementar do relacionamento especial
estabelecido por este tipo de equipe (fotógrafo e/ou cineasta/antropólogo) a partir de experiências concretas vividas, no primeiro
caso, durante a investigação de terapias populares e, no segundo, de filmagem em uma comunidade Ouechua no Peru.

Um outro conjunto de contribuições avalia as possibilidades de adequação da linguagem fotográfica e cinematográfica aos
métodos e instrumentos da pesquisa social. Enquanto Etienne Samain compara mito e fotografia como formas equivalentes de
interpretação da reafidade, Marcius Soares Freire refere-se ao novo aparato conceituai que possibilitou o surgimento da
Antropologia Visual e enfatiza o potencial da observação videográfíca e fílmica. Se/da Vale Costa revê postulados da investigação
antropológica e trata criticamente o filme etnográfico, explicitando os condicionantes ideológicos que marcaram o início deste
gênero cinematográfico.

Claudia Menezes, por sua vez, apresenta suscinta cronologia da memória visual indfgena no Brasil e tece considerações, de
caráter geral, sobre as perspectivas abertas por esta disciplina.

OI Festival realizou-se no período de 05 a 08 de setembro de 1985, na cidade do México e foi organizado pelo Instituto lndigenista lnteramericano,
Instituto Nacional lndigenista,Filmotecada Universidade Autônoma do México e pefo Instituto Nacional de Antropologia e História.

3
Podemos incluir no ~mbito das preocupações metodológicas o trabalho de Fernando de Teces, que oferece ao leitor instrumental
de decodificação da imagem fotográfica retirado da semiótica e aplicado à análise do registro produzido por um grupo de operários
do interior de São Paulo, bem como o extenso ensaio de Jorge Prelorán, aqui reproduzido, intitulado "Conceitos Étnicos e
Estéticos no Cinema Etnográfico".

Este experiente documentarista argentino desenvolve idéias a respeito do filme etnográfico, que considera uma vertente do cinema
naturalista, amadurecidas em anos de convívio com a população do interior do pafs, e concebe a atuação do cineasta como sendo
a do pone-voz dos protagonistas da narrativa cinematográfica, no caso camponeses e índios. Identifica, assim, a trajetória do
cinema documental à sua própria obra, voltada para o entendimento da condição humana e impulsionada pelo compromisso com
um processo de aprendizagem que adquire sentido no ato da devolução de conhecimento.

Um terceiro tema pode ser utilizado como critério para agrupar o material apresentado: o cinema e a fotografia associados à
pesquisa sociológica tornam-se instrumentos de capital imponênci« tanto na educação popular, quanto para a recuperação do
passado histórico das populações ind(genas.

O resgate da memória latino-americana é o objeto de reflexão do artigo e do filme "Csusecnum cuzco", de Alberto Giúdice, que
propõe como recurso de narrativa o "documentário de montagem", capaz, segundo ele, de lidar como distintas temporalidades,
integrando-as num mesmo continuum histórico (o passado ind{gena peruano, a colônia, a república e os dias atuais).

O texto de Martha Rodrigues e de Jorge Silva é norteado por interesse semelhante. Nele os autores explicitam as intenç6es do
documentário que realizaram sobre a organização e atuação do Conselho Indígena do Cauca (CRIC) e querevela a existência de
um novo discurso potnico, em cujo conteúdo podem ser reconhecidos efementos do universo mftico e mágico dos Coconuto.

Esta expetiêncie concreta atualiza o modelo de ação proposta por lzabel Hernandez de incentivo ao processo de autogestão
cultural ind{gena, no qual as técnicas do vfdeo e do cinema antropológicos são propostos como recursos de comunicação
insubstitufveis.
Podemos apresentar a respeito relatos de experiências realizadas recentemente no Brasil, de produção e utilização da imagem em
movimento pelos próprios indígenas. Acompanhamos, através dos depoimentos da equipe da Veneta Vfdeos (Renato Pereira,
Mónica Frota e Henrique Aios) a popularização do uso de equipamento de vfdeo pelos Txucarramãe e de Vincent Caretli sobre o
projeto "vkieo nas Aldeias", implantado nas areas Nambiquara (RO) e Gavião (PA). Saudável apropriação pelos fndios de um
recurso propicfado pela sofisticada mfdia efetrônica. Este é, sem dúvida, um dado novo no complexo jogo das relações
tnterétnicss, tal como se estruturam no pais. O registro de imagem, o documento visuaf passa a servir ao processo polftico interno
dos grupos, ao movimento índ/gena, reforçando alianças, estimulando a circulação de informações e possibilitando nêo só a
retomada, mas a reinvenção da tradição.

Esta realidade renovada serve de contraponto à análise de conteúdo desenvolvida por João Carlos Rodrigues sobre a produção
cinematográfica da temática índfgena: "ao contrário de outros petses da América o Brasil, diz ele, jamais possuiu cineastas de raça
fndia, e se existiram nunca foram divulgadas oosstveie tentativas de fazer com que populações tribais experimentassem, por si
mesmas, a experiência cinematográfica".

A partir desta afirmativa o autor reconhece o idealismo, o preconceito e o humanismo como caracterfsticas marcantes dos filmes
brasileiros, tanto no género ficção quanto o documental, identificando-as à ideologia expressa peta sociedade brasileira em relação
às populações indfgenas.
Adotando perspectiva igualmente historiográfica Martha Rodrigues, num segundo artigo, procura contribuir para o entendimento da
cinematografia colombiana. Examina as condições potfticas, econômicas e ideológicas que possibilítaram, na década de 60, o
nascimento do cinema independente no seu pafs, movimento que ocorreu simultaneamente em outras partes da América do Sul, a
exemplo do Cinema Novo no Brasil.

O volume de trabalhos de imagem realizados na América Latina reflete a diversidade, a riqueza e a complexidade de que se
reveste a problemática das etnias indígenas do Continente, o que, por si só, justifica a sistematização das idéias relativas a este
campo especffico de conhecimento.

A coteténee ora apresentada pretende colaborar não só para o avanço da reflexão metodológica e técnica da Antropologia Visual,
mas também contril:vuir para legitimar esta nova disciplina. Contém expressiva amostragem do pensamento de produtores
audiovisuais brasileiros e latino-americanos, que vêm desenvolvendo sua experiência no campo da etnologia indfgenà e/ou do
indigenismo - enquanto ideologia associada à prática de atuação do Estado junto às sociedades ind(genas.
Está, igualmente, associada ao esforço pioneiro por implantar no Museu do Índio, através de sua Divisão de Antropologia Visual,
uma estrutura capaz de levar adiante a inesgotável tarefa de documentar e interpretar de modo sistemático a realidade indfgena do
pafs.
CLAUDIA MENEZES

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ANTROPOLOGIA VISUAL! MITO E TABU
ETIENNE SAMAlN e HÉLIO SÔLHA

Por que tantas reservas e até uma verdadeíra resistência, por a cientilicidade, sejam também os últimos a se aproveitar de
parte da Antropologia Social e dos antropólogos que a fazem, uma instrumentação que podia oferecer à Antropologia o que
em encarar mais positivamente a Antropologia Visual, outor- esta já houvera trazido a outras ciências"? (4) Responder a
gando um status científico à pretensão que ela tem de poder, esse conjunto de indagações não é simples. Propomos-nos
também, observar e investigar, descrever e compreender vi· aqui todavia abrir alguns caminhos críticos a nossa reflexão.
sualmente os fatos humanos que registra?
Como Margaret Mead (5), cremos que não se pode minimizar
Sem dúvida, se reconhece aos multimeios modernos {som, o fato de que fotografar ou realizar um filme exige uma com-
fotografia, vídeo, cinema) uülizados nas Ciências Sociais um petência, uma habilidade, um treinamento maior que o sim-
valor ilustrativo claro. Oir-se-á que os documentos audiovi- ples fato de gravar com o magnetofone ou de tomar aponta·
suais representam "suportes", "co-aojuvantes", "comple- mentas num caderno de campo. Mas que os antropólogos
mentos" não somente necessários mas imprescíndfveis para não se aproveitam logo deste argumento para tentar justificar
a Etnografia. Admitir-se-á até que o audiovisual é um instru- sua ausência num campo onde se espera deles não direta-
mento ou um meio indispensável para a pesquisa etnológica. mente a qualidade técnica e artística, e sim o registro singular
Reconhecido isto, o que vem a significar este "muito bem" e sempre privilegiado de acontecímenos humanos que pre-
que precede sempre um "porém", o qual parece ser a palavra senciam. Acrescentamos aliás que os consideráveis avan-
final quando se trata de (re)pensar o status não meramente ços técnicos recentes (automatização das máquinas, sensi-
ilustrativo mas também cientifico de uma Antropologia Visual bilidade ampliada das películas, miniaturização das filmado·
que, reconhecemos, tem ainda que conquistar suas creden- ras de vídeo em particular) aumentaram e muito as chances
ciais? dos que poderiam se julgar menos dotados.

T ai problemática toma contornos mais claros quando se per- Margaret Mead levanta ainda uma outra desculpa ao que ela
gunta sobre as razões de tão parcimcniosa utilização, até no- chama de "nossa criminal negligência" no tocante à utilização
je, dos filmes etnográficos na formação do futuro antropólogo. dos recursos visuais: o alto custo, em termos de tempo e de
O que pensar ainda desta discrição - para não dizer desta dinheiro, de tais produções e realizações, torná-las-ia impra-
timidez - com que os maís sensíveis antropólogos ilustram ticáveis (6). Complementando esta constatação, vale a pena
ou complementam visualmente as centenas de páginas mo- lembrar que a autora americana, juntando com outros pes-
nográficas que escrevem? Paradoxalmente, no entanto, to· quisadores os fundos que lhes alocavam diversas institui-
dos saberão reconhecer que ficarão interpelados pelo em- ções, tinha conseguido, 40 anos antes, realizar com Bateson,
preendimento pioneiro que Gregory Bateson e Margaret em Bali, uns 25.000 instantâneos t.eica e alguns 22.000 pés
Mead realizaram na década de 40, quando procuravam, di· de filmes-16mm! {7) Resta que tem razão de nos alertar ve-
retamente através de recursos fotográficos, entender o ethos ementemente e nesses termos: "Os astrônomos não renun-
e o caráter balinense (1). Quantos trabalhos desta natureza, ciaram à astronomia com a aparição dos melhores telescó-
porém, foram publicados no decorrer desses últimos cín- pios, os físicos à física quando precisaram de um cíclotrom,
qüenta outros anos? E por quê? os genetistas à genética por causa de um microscópio ele-
trônico. Cada uma dessas disciplinas, para se tomar eficaz,
Reformulamos assim a questão íniclal nesses termos: quan- deu resposta a suas crescentes necessidades, enquanto
co, como e em função de que vamos reavaliar e considerar que a Antropologia negligenciou enriquecer seu capital ins-
que os meios audiovisuais, os rnultimeios. podem ser meios trumental" (8).
autônomos de pesquisa antropológica e não apenas co-adju-
vantes técnicos ilustrativos? (2) Colocando a questão a nível As duas "explicações" que acabamos de apresentar. por im-
acadêmico, poder-se-ia parafrasear a admiração ou a visão portantes que sejam, não o são, todavia, a ponto de poder
profética de A. Leroi-Gouhran quando, já em 1948 (3), escre- justificar uma tomada de posição que, a nosso ver, esconde
via algo parecido com o que digamos a seguir: quando será algo de culturalmente grave e por que não dizê-lo, de etno-
que aquilo que um antropólogo escreve com a película sobre centricamente insustentável; "o esmagante 'parti-pris' verbal
um assunto dado será aceito como dissertação ou tese final da Antropologia" (9) e sua fixação fetichista para com a "es-
de doutorado? crita". Fetichismo esse que não é particular à ciência antro-
pológica mas típica de uma tradção cultural européia que,
Como explicar assim o fato de que "os que mais apelam para desde a aparição da "Galáxia de Gutenberg" (10), s6 conse-

5
guiu se cristalizar. Não iremos evidentemente contestar nem tropologia Visual lhe proporciona. Pois, ao fazer tal reavalia-
minimizar a importãncía dessa conquista humana. Mas como ção, descobrir-se-á que não é mais e apenas o olho humano
escrevemos num outro contexto, será que aquilo que, segura- que capta e tenta reproduzir, numa língua escrita, o que viu;
mente, a humanidade soube alcançar com a escrita, não descobrir-se-á também que o olho mecânico, ao termo de um
nos levou a esquecer paulatinamente e, em certos casos ir- registro direto, possibilita rever - com os filmados ou à luz de
remediavelente, o que podíamos também criar e entender novas teorias - de modo critico e quase que infinitamente os
com originalidade quando não sabíamos ainda ler e escrever? dados e documentos recolhidos. Dsscrobrlr-se-á ainda que
( 11) Nesse contexto, a oralídade e a visualidade perderam o esse olho permite descrever ordens de fatos dificilmente ex-
seu direito à "Ciência". Os que não sabiam escrever só po- pressíveis peta palavra ou pôr em relevo outros tantos fatos
diam ser analfabetos. Os outros, com suas máquinas de til· que uma observação direta nunca poderia abranger. Serão
mar, não passavam de "artistas" e de "visionários", já que o ainda os produtos deste "olho novo" que, por ter conseguido
monopólio da Ciência pertencia aos letrados: esses escre- preservar para a posteridade aspectos de nossas culturas
viam e tinham seus livros! em constante mutação, não somente tornarão possíveis uma
leitura da dinâmica sócio-cultural dos povos, mas servirão de
Nesta mesma ordem de reflexão sobre a existência de um meios e de canais para um intercâmbio cultural mais amplo
etnocentrismo nunca confessado, pergunta-se também atê entre os próprios grupos envolvidos.
onde o campo das produções materiais e utilitárias, artísticas
e estéticas - as quais se definem geralmente pelo enorme Entretanto, não seria de nosso propósito confinar a Antropo-
potencial visual que oferecem - foi verdadeiramentecontem- logia Visual ao registro de atividades corporais (tais como
plado e pensado pelas Ciências Sociais, enquanto canal ex- posturas e movimentações espaciais de participantes du-
pressivo das culturas humanas. Descrever com efeito um rante um ritual) ou materiais (como trabalhos artesanais e ati-
cocar indígena, os motivos de uma pintura corporal, as fa- vidades estéticas), e sim chamar a atenção para o fato de
chadas de uma rua comercial de São Paulo ou o vestuário de que a Antropologia Visual pode contribuir a um redimensiona-
um dak-neo-punk metaleiro não significa necessariamente mento de campos aparentemente mais abstratos da Antro-
que se tenha esgotado o poder significante de realidades pologia em geral, tais como o parentesco, a política, a eco-
antes de mais nada "mostradas",capazes de "serem vistas" e nomia, a organização social e até o campo das ideologias.
pertencendo a um universo sócio-visual. Deste ponto de
vista, há de se reconhecer que, fora algumas brilhantes ex- Mas como pretender realizar tais incursões novas a não ser
cepções (12), parece-nos que os historiadores, os psicólo- apostando numa versão da Antropologia que abra espaço a
gos, os semiólogos e os filósofos tenham-nosclaramente pre- uma vertente experimental, consciente de seu projeto como
cedido e superado no terreno de um reconhecimentoque seria dos percalços e dos acasos de sua procura. Tal perspectiva
dos mais profícuos para as Ciências Sociais. Dito isto, é de experimental não tem sido muito usual na Antropologia a não
se esperar, no entanto, que a Antropologiapossa também re- ser acidentalmente. Entretanto seria de grande valia na medi-
visitar essas fontes seculares da criação e da comunicação da em que poderia gerar novas posturas metodológicas.
humana, precisamente no momento em que nosso mundo
entrou resolutamente numa nova galáxia: a dos multimeios. Por falar de questões metodológicas, há de se reconhecer
Resta para fazer, sim, toda uma Antropologia do "Homo Vi- que a Antropologia Visual tem se ressentido até hoje da falta
sualis", tanto a nível das sociedades ágrafas como a nível de discussões mais aprofundadas. guisa de conclusão, pa-
das nossas sociedades que, seja dito de passagem, já deve. rece-nos que aguns pontos são relevantes para refletir a
riam ser qualificadas de "pós-letradas". questão em pauta. Seriam eles:

Gostaríamos de ir mais adiante nesse percurso reflexivo, 1. Repensar o conjunto metodológicoque a Antropologia nos
apontando desta vez para o fato de que, tanto a Antropologia ofereceu até o momento, face às especificidades que a An-
tropologia Visual pode também nos proporcionar.
verbal como a Antropologia visual não foram, até hoje, capa-
zes de relativizar suas pretensões comuns em observar,
2. Procurar criar um espaço no trabalho antropológico que
compreender e interpretar os fatos de cultura. Essa rigidez
permita a experimentaçãode um "novo fazer'' gerando sub-
para não falar de crispação, batizada de "cientrtica" vem do
sídios necessários à elaboraçãode metodologiasespecíficas
fato de ambas não terem procurado entender o que, cientifi-
camente, as tomava complementares. Pensar com efeito que do uso dos multimeios nesse campo.
bastaria rodar um filme para fazer antropologia ou uma "ou-
3. Tal elaboração não poderá ser desvinculada, pensamos,
tra" antropologia, seria uma ilusão na qual nenhum antropólo-
go sério incorreria. Bateson e Mead, antes de publicarem Bali· de uma profunda reflexão sobre a lógica do visual, a qual não
nese cnsrecter tinham observado diretamente,meses a fio e pode ser equiparada de antemão à logica da escrita e da ora-
na perspectiva de uma Antropologia tradicional, as maneiras lidade.
de ser do povo balinese. Tinham füdavia entendido que suas
descrições verbais nunca poderiam alcançar aquilo que uma
apreensão visual do ethos balinense chegaria a desvendar e
a dizer.
ETIENNE SAMAIN E HÉLIO SÔLHA
A questão que se coloca desta maneira não é a de suspeitar antropólogo(Brasil) fotógrafo (Brasil)
do projeto de "cientificidade" da Antropologiaverbal, e sim de Departamentode Mu!timeiosdo
alertá-la sobre as novas perspectivas de trabalho que a An- Instituto de Artes da UNICAMP

6
"Where, how and why shall we revaluate and consíder that "Cuando, como y con relación a que vamos a reeva/uar
audiovisual media - the muftimedia - can be an autonomous nuestros juicios y considerar que los medios audiovisuates -
media of anthropologica/ reseerch and not onfy an iflustrative los mu/timedios - puedeu ser medios autónomos de investi-
technical eia?" gación antropológica y no meros coadyuvantes técnicos
ilustrativos?" Cem una reflexión en esta unee, fos autores ne-
ln this renecüve fine, the authors do a criticai appreciation on cen una critica ai etnocentrismo de la antropotogfa, por su fi-
the ethnocentrism of Anthropology in its fetichistic tixetion to· jación "fetichista en lo "escrito", subrayando las nuevas pers-
werds tne "writlng'~ calling attention to new work perspecti- pectivas de trabajo que proporciona una antropo/ogfa visual.
ves given by Visual Anthoropofogy.

(1) BATESON, Sr. e MEAD, M.BalineseCharacter:A PhotographicAnalysís, New York (New York Academyo!Sciences. Special Publication), 1942.

(2) COPANS , J., Critiques e Politiques de l'Anthropologie, Paris (Maspero) 197 4, p. 69, apresentando o trabalho de J. COLLIER Jr. Visual Anthropology:
Photography as a Research Method. traduzido em língua portuguêsa: Antropolog;a Visual: a fotografia como método de Pesquisa, São Paulo (EPU!E -
DUSP), 1973 (or. inglês: 1967).

(3) LEROI-GOURHAN, A., "Cinéma et Sciences Humaines. Le Film ethnologique existe+il?" in Revue de Géographie Humaine et d'Ethnotogie, Paris, 3
(1948} 42-50. Veja p, 47 e 50.

(4} MEAD, M., "Visual Anthropology in a Discipline oi Words", in Principies of Visual Anthropotogy (Paul Hockings, Ed., ). Den haag- Paris (Mouton), 1975,
p. 3· 10, aqui p, 10.

{5) MEAD, M., "Visual Anthropology in a Discipline of Words", p, 5.

(6) ID., lbid., p. 6

(7) BATESON, Gr., e MEAD, M., Batinese cneaaet, p. 49. Veja também MEAD, M., Ecrits sur te vil. Letues 1925-1975, Paris (Oenoél - Gonthier), 1980, p.
117·185.

(8) MEAD, M., "Visual Anthropotogy in a Discipline oi Words", p. 6.

(9} DE BR!GARD, E., "The History of Ethnographíc Filrn", in Principies of Visual Anthropology, p. 21-22. Veja também MEAD. M .. "Visual Anthropology... ",
in lbld., p. 15.

(1 O) Me LUHAN, M., A Galáxia de Gutenberg, São Paulo (Ed. Nacional), 1972, e também Os meios da comunicsçéo como eaensôes do homem, São Paulo
(Cwltrix}, 1974.

( 11) SAMAIN, Et, "Reflexões críticas sobre o tratamento dos mitos", ín Revista de Antropologia, vol. XXVIIIXXVIII, São Paulo ( 1984-85), p. 241.

(12} Sem falar aqui dos trabalhos de Fr. Boas, CI. Léví-Strauss, Meyer Schapiro••• sobre a arte, remetemos a algumas contribuições brasileiras que ficam
muito sensíveis à tais problemáticas: RIBEIRO, B.G., "Arte lnd/gena, linguagem visual", in Ensaios de Opinião, vol, 7, 1978, p, 101·110; MÜLLER,
R.P., A pintura do cotpo e os ornamentos Xavante: arte visual e comunicação social, Campinas, Unicamp, 1976 (manusc.): VIDAL, Lux., "A Estética dos
Índios", in Ciência Hoje, vol. 4, n9 21 (NovJDez. de 1985) 58·65. Consuttar-se-á as significativas bibliografias oferecidas por essas autoras assim co-
mo o importante trabalho recém-publicado, organizado por B.G. RIBEIRO, Suma Etnológica Brasileira, em particular o vof. til: Arte fndia, Petrópolis
(Vozes/Finep), 1986.

7
CONCEITOS ÉTNICOS E
ESTÉTICOS NO CINEMA ETNOGRÁFICO
,,wm JORGE PRELORÁN

Nós nos consideramos o centro de nosso mundo. Sem nós o e ele conduz a um comportamento muito diferente do docu-
mundo não existiria, pois não seria "reconhecido". Os ani- mentarista clássico, que exerce total controle sobre o tema
mais não têm consciência de suas próprias vidas nem do tratado.
mundo que os rodeia, pois não o "vêm", não "raciocinam".
Assim, o mundo é sempre uma realidade subjetiva para o Assim, é quase impossível chegar a um cinema etnográfico
homem. Através de nossos egos sentimos como o mundo "puro", e isto se evidencia nas diferentes atitudes que o cien-
nos afeta pessoalmente. Se formos passivos em nossa rela- tista social e o artista adotam em ralação ao material. Para o
ção com o mundo, viveremos vidas rotineiras, sem tentar antropólogo, o importante é uma abordagem "objetiva", da
mudar nada. Se atuarmos no mundo, este se tornará mágico qual o cientista elimina qualquer participação emocional, con-
e conquistável. Ficamos surpresos e conscientes de que ar centrando-se antes em dados concretos e na análise que
está para que com ele tenhamos prazer, e nos desafia não configuram uma boa Etnografia. O cineasta acha mais inte-
apenas a tentar entendê-lo, mas também a transformá-lo. ressante uma abordagem "subjetiva", na qua possa utilizar o
cinema como arte, com linguagemcinematográficae estrutura
dramática, para apresentar os conflitos derivados de intera·
O CINEMA ETNOGRÁFICO
ções humanas, ou com a natureza. Sendo um cineasta, me
inclino muito a adotar o ponto de vista artístico ou subjetivo,
Chamamos de cinema etnográfico a documentação fílmica
ao invés de uma perspectiva mais científica ou objetiva.
dos comportamentos humanos, de modo que as atitudes das
pessoas e a natureza de suas culturas ali estejam represen-
A ABORDAGEM OBJETIVA
tados e interpretados. Este gênero é um ramo do cinema na-
turalista, embora tal denominação enfatize o científico, já que
Os antropólogos que aderem estritamente às premissas do
a Etnografiaé o ramo da Antropologiaque descreve culturas.
documento científico definem o cinema etnográfico como a
forma de obter uma descrição fílmica detalhada e uma análise
Por meio do cinema e da televisão deveríamoscompartilharo
do comportamento humano baseados em extensas pesqui-
conhecimento e a experiência de pessoas do mundo inteiro,
com a esperança de que os mais bem sucedidos na adapta- sas na re~ião onde este ocorre. No cinema etnográfico as
ção possam indicar pistas aos menos afortunados. Outra fi- pessoas aqern como se o cineasta não estivesse presente.
nalidade do cinema etnográfico deveria ser o estudo da hu-
Assim, a disciplina obriga a obedecer a várias normas meto-
manidade, para que cada um de nós pudesse entender me-
dológicas, tais como se basear em estudos de observação a
lhor o próprio comportamento. Para tanto é preciso utilizar o
longo prazo, relacionar o comportamentoespecífico a normas
cinema como meio de comunlcaçao, e observar uma série de
culturais, retratar totalidades (corpos e grupos inteiros, atos
considerações estéticas fundamentais.
completos, eventos em sua totalidade), ser específico e ve-
A Etnografia pesquisa a grande diversidade de maneiras co- rídicos. Estas diretrizes visam a obter uma visão panorâmica
mo o homem se organizou para conviver harmoniosamente objetiva do que está sendo documentado, e delas decorre
em sociedade, de visões cosrnolóqicas para entender a ra- que nada deve ser dramatizado ou ficcionalizado, represen-
zão de sua existência neste planeta, e como se adaptou para lado ou recriado.
nele sobreviver. O problema fundamentalda relação entre Antropologia Cultu-
ral e documentação fílmica de expressões culturais é que é
Uma das metas da Antropologiadeveria ser encontrar formas mais fácil descrever generalidades culturais por escrito que
para melhorar as condições de vida no planeta, para que os no cinema. O cinema tende à especificidade. Uma vez do·
seres humanos pudessem se adaptar melhor às dramáticas cumentada em filme, a cena fica congelada, escolhida e sin-
mudanças ocasionadas pelo avanço tecnológico, pelas tetizada no tempo e no espaço, e será a única parte do
transculturações abruptas e perdas de identidade. evento real vista pelo espectador: resta o espaço da fantasia
nas mentes que não "viram" os eventos. Isto obriga o bom
Idealmente falando, o cineasta etnográfico documenta as- cineasta a ser muito específico ao filmar, a concentrar-se em
pectos de uma cutura não afetados por sua presença. É um imagens e temas muito sintéticos.
objetivo ambicioso, praticamente inatingível, pois a interven-
ção do cineasta implica sempre em seleção e exclusão, tam- Para documentar corpos inteiros e ações completas, a câma-
bém exercidas na montagem do filme. Mas fica claro o ideal, ra fica estacionária a uma certa distância, num lugar de onde

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possa ser observada a· totalidade do evento, e aponta em dire- rados valiosos em termos antropolóyícos, pois carecem de
ção a seu centro. Tal procedimento elimina na prática a pos- imparcialidade ou seriedade, e do aval de um estudo antro-
sibilidade de realçar detalhes sutis, ou expressões em reação pológico sério. Entretanto, os poucos filmes etnográficos que
à ação prineipal. Entretanto, a própria natureza do cinema atualmente circulam como "clássicos" e são sempre projeta·
encerra capacidade de síntese e de se aproximar e captar dos em salas de aula são os feitos por cineastas que adota·
eventos através de uma câmera "envolvida", "particlpativa", ram uma abordagem mais subjetiva do tema, documentando
Para poder documentar um evento em toda sua complexida- seres humanos de forma mais intuitiva que metódica. Assim,
de, o cineasta solitário deve filmar o que está acontecendo a prática pode vir a contradizer as normas •..
como "ação", documentando ao mesmo tempo as reações
e interações dos que o observam. Assim, terá que confiar em A ABORDAGEM SUBJETIVA
sua intuição e num bom conhecimento do evento para poder
prever lugares e momentos exatos onde deve estar presente Em princípio, o documentário é o tipo de filme cuja matéria
para captar os acontecimentos mais importantes. prima é a realidade. Pesquisa o que nos rodeia: a natureza, o
homem e suas obras. Os motivos que levam à utilização
Tradicionalmente, a Antropologia obteve seus conhecimentos desta forma de cinema são os mais variados, mas têm em
através de dados coletados in situ. Entrevistando um grande comum a busca da "verdade" como meta principal. A Caixa
número de pessoas de uma cultura é possível discernir ele· de Pandora se abre diante de tal premissa, pois é quase irn-
mentos comuns, e descartar o que for considerado idiossin- possível definir o conceito de verdade. A Verdade talvez só
crasias pessoais. Procedendo assim é possível ressaltar a seja aplicável a Deus. pois temos apenas nossa própria in-
estrutura social, a economia coletiva, o sistema de crenças, terpretação da verdade, "nossa" verdade. Também é possí-
etc, para poder nomeá-los com conceitos como endógamos vel encarar a verdade numa perspectiva etnocêntrica - para
ou poligâmicos, patrilocais ou uxorilocais, de descendência o bem da comunidade - ao invés de egocêntrica. Do ponto
coqnitiva, etc. Com esta metodologia, o comportamento fnti· de vista filosófico, a verdade pode ser sutil e sublime, mas no
mo de um indivíduo ou tamília dentro do grupo é considerado fim das contas efêmera e inatingível. Assim, utilizaremos este
um fato subjetivo, parcial e não científico, não necessaría- termo em sentido subjetivo.
mente representativo dos padrões culturais compartilhados
pela maioria dos membros da comunidade. O processo do Corno seres humanos, não podemos ser objetivos. pois cada
conhecimento de seres humanos se torna assim um desu- um de nós possuí uma verdade fundamental, uma ideolo~ia,
manizado exercício de coleta de dados científicos. Contudo, uma visão e uma forma de encarar o mundo que nos cerca.
é preciso assinalar que a Antropologia se baseia na "inter- É a bagagem com a qual funcionamos dentro da sociedade, o
pretação" de dados, e portanto nunca poderá vir a se uma fruto de experiências que vivemos, entre elas nossa educa-
ciência bons lide. ção, a história de nossas antepassados, o meio social em
que crescemos, nossa situação econômica, nossas atitudes
Alguns antropólogos baseiam seus estudos de uma cultura raciais, etc. Tudo que observamos à nossa volta é visto atra-
em alguns poucos indivíduos escolhidos, informantes que ge- vés de urna ótica formada e moldada por meio de experiên-
ralmente possuem um conhecimento global de sua cultura. cias acumuladas em nossas vidas. Isto nos leva - cons-
São considerados pessoas sábias que, por suas vidas e ex- ciente ou inconscientemente - a concentrar nossa atenção
periências. assimilaram os elementos importantes de seu em determinados eventos, desprezando outros ou não nos
grupo humano. Estes indivíduos são sua cultura. O segredo demorando muito neles. No caso do cineasta selecionando -
é encontrar tais arquétipos, e não iridivíduos atípicos cuja vi- "focalizando" - o que o público verá, deixando de lado o que
são da própria cultura seja deformada. decidir ignorar.

No cinema é muito mais interessante centrar a atenção em Assim, como qualquer atividade, o filme etnográfico tem ten-
indivíduos que possam ser identificados e seguidos ao longo dência a expressar os preconceitos de seus criadores, por
de todo o filme. Do axioma "o homem gosta de observar o mais que estes tentem ser objetivos. O problema deriva da
homem" decorre que um documentário ficará gravado na idiossincrasia dos autores, da percepções dos diversos tipos
memória com muito mais força e clareza se for baseado em de público e da grande variedade de preconceitos e atitudes
indivíduos com nome e sobrenome, opinões e problemas culturais.
pessoais com os quais possamos nos identificar, e não em
generalizações como "pessoas", "comunidades" ou "socie- Num filme de ficção, um grupo de pessoas trabalha para vi-
dades". sualizar um conceito que primeiro foi colocado no papel. No
cinema etnoyráfico só há um observador dos eventos. Este
O paradoxo desta abordagem é que os que seguem as nor- espectador solitário terá que transmitir os eventos docurnen-
mas metodológicas e teóricas puristas raramente atingem o lados a milhares de outros espectadores, através de uma
públíco, pois seus filmes são tediosos, sem estrutura dramá- arte denominada cinema. Se o públlco é capturado µela ma-
tica e servem apenas para estudos específicos dos sujeitos gia, então a experiêncía ccrnparulhada entre o cineasta como
documentados. O material filmado em geral é utilizado como espectador e o µúblico como testemunha confluem numa ai·
as anotações de campo a serem consultadas como ponto de quimía complexa de µa1->éis que se alternam, talvez o efeito
partida de elaborações intelectuais mais complexas. mais interessante desta disciplina, com o público como co-
autor do trabalho.
Existem antropólogos que. desprezam os documentários fel-
tos para o ~rande púbfíco, pois os consideram sem valor Há quem di1:1a que não se pode descrever um tipo de filme
científico. Muitos filmes etnoqráíicos podem não ser consíds- como "etnoyráfico" em si e por si mesmo, mas só em função

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de como é utilizado. Portanto, qualquer filme se toma etno- rentes de nós. Observar as pessoas dessa maneira não
gráfico devido a sua finalidade ou uso. Deste ponto.de vista, passa de um exercício de voyeurismo, uma falta de respeito
todo filme comercial feito no mundo nos diz algo a respeito da em relação a outros seres humanos e suas crenças. Esta
cultura que o gerou, assim como os filmes antigos nos mos- atitude reforça inevitavelmente o racismo e a xenofobia, tão
tram a transformação dos costumes, modas e atitudes com o generaliados no mundo.
passar dos anos, e são documentos históricos e etnográficos
de valor inestimável. Eu prefiro utilizar minha disciplina para sublinhar as seme-
lhanças entre os seres humanos, ao invés de focalizar suas
Entretanto, é interessante ver corno os filmes etnográficos ·. po-
diferenças. Se acreditássemos no conceito de relatividade
dem ser percebidos por diversos públicos. Quando filmes cultural estaríamos em vias de melhorar as relações huma-
feitos no Terceiro Mundo são apresentados em países desen-
nas. As diferenças entre os povos devem ser reconhecidas
volvidos costumam ser encarados como documentos didáti-
- e seus valores culturais ressaltados - mas o resultado finar
cos, analisados e intelectualizados sem ter um ponto de refe-
deveria ser admiração diante de sua riqueza e variedade, e
rência em suas próprias sociedades. São "frios" , e observa-
não uma desculpa para o elnocídio.
dos como realidades alheias à própria. Mas quando os mes-
mos filmes são projetados em países do Terceiro Mundo se
Nossa disciplina pode ajudar a reduzir o etnocentrismo, ou
tornam políticos: são "quentes", observados a partir de pon-
a fortalecê-lo. No afã de eliminar a xenofobia, deveríamos nos
tos de referência ideológicos, e o público ''.vê" neles denún-
aproximar de nossos sujeitos com muito respeito e carinho.
cias sociais filtradas através de ideologias pessoais. Os fil-
Parar de vez em quando para pensar sobre nosso trabalho,
mes se tornam polêmicos e controvertidos, porque o público
para analisar se nossa abordagem dos protagonistas se ba-
é politizado. Em alguns casos, conduzem à ação visando a
seia numa relação de igualdade, seria fonte de renovação.
corrigir as condições percebidas como inaceitáveis por nos-
so conceito moderno de civilização.
MANIFESTOS IDEOLÓGICOS
Após uma primeira tendência a documentar o mundo estra-
nho a nós, al\Juns cineastas etnográficos de hoje viraram as Muitas vezes, embora sem dar-nos conta, podemos estar
câmeras em direção a sua próprias sociedades, para poder adotando uma atitude racista ao tratar de impor nossa própria
entender melhor a si mesmos. É o que se chama de aborda- ideolo!,Jia aos personagens de nossos filmes. Para mim, até a
~em êrnica ("de dentro"), que me parece muito complexo, melhor das intenções de fazer firmes panãetáríos de denúncia
pois são necessários conhecimentos sociológicos e antro- com a finalidade de melhorar as condições humanas dos
pológicos para poder entender os problemas intrincados protagonistas pode ser - e em geral é - uma imposição de
desta civilização, e os fios sutis que a movimentam. Mas a nossos "ismos", e uma falta de respeito para com eles. Eu só
tendência é saudável. Um conhecimento pessoal dos senti- justificaria a realização de filmes panüstárlos de denúncia se
mentos e motivações compartilhadas pelo cineasta e aqueles os protagonistas conhecerem os conceitos de nossa ideolo-
que ele documenta pode resultar em documentários que pe- gia, e concordarem em expor tal ideologia. Mas, na maioria
netrem profundamente em nossa psiquê. das vezes, sinto que ideologias externas podem contaminar
o resultado, ao colocar os sujeitos em escaninhos rígidos ou
Houve também algumas poucas experiências que tentaram categorias estranhas a eles. Portanto, fazer filmes de "is-
formar pessoas de outras culturas nas sutilezas do cinema, mos" é mais perigoso que benéfico para os protagonistas.
para que pudessem documentar suas próprias sociedades. O ideal seria trabalhar sem nenhum paternalismo, sexisrno
Mas o resultado foi antes exótico, sem constituir uma oportu- ou racismo. Nenhum "ismo", em suma.
nidade para cue pessoas possam se expressar através
desta arte complexa. PATERNALISMO

ft.TITUOES EM FILMAGENS ETNOGRÁFIC.4.S Fede-se discernir com clareza a postura paternalista do ci-
neasta em seus filmes. É fruto da forma como agiu durante a
Embora nem lodos reconheçam estamos cheios de precon- filmagem, da relação que teve com seus sujeitos e da forma
ceitos, pelo próprio fato de sermos seres humanos. Assim, como apresentou o material. Também podemos sentir esta
é essencial que o cineasta etnográfico identifique suas carên- atitude observando as reações do público: se sair admirando
cias para poder combater seus preconceitos, já que podem os protagonistas, podemos ter certeza de que a experiência
afetar a vida de outros seres humanos. Algumas das atitudes de filmagem foi igualitária. Ao contrário, se o espectador sair
mais perigosas e preponderantes são: com a sensação de que "nós" temos que ajudar os pobres
protagonistas, começo a duvidar ...
XENOFOBIA SUBLIMINAR
Esta postura me parece difícil de erradicar, pois na maioria
No cinema etnográfico, predominou a tendência 'a documen- das vezes a motivação do cineasta é tentar melhorar as con-
tar o que nas outras culturas é mais estranho a nós, de modo dh;óes de vida de seus sujeitos. E, é claro, tentamos melho-
que vemos constantemente costumes, ritos ou cerimônias rá-las conforme nossos padrões.
que nos parecem estranhos ou exóticos. T ai tendência a
apresentar acontecimentos "bizarros" nos teva a pensar que O TECNOCRATA ONISClENTE
as pessoas neles envolvidas se encontram num nível inferior
de desenvolvimento, a vê-los como "primitivos" - segundo É compreensível a ori~em do paternalismo nesta época de
nossa escala ocidental de valores - e portanto muito dife- admiração pela tecnoloqia, Geralmente somos "nós" que

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vamos observar "outras" culturas, do alto de nosso etnocen- promover seu contato com pessoas de outras sociedades
trismo sustentado na autoridade e na supremacia tecnotõçí- desde o início. Assim, a experiência se transforma num jogo
ca. O cineasta; mesmo do Terceiro Mundo, se forma num intelectual, mais que num esforço humano, centrando todo o
ambiente urbano, com todas suas amenidades, e raciocina processo na Antropologia e no antropólogo, mais que nos
logicamente que "sua civilizaçao" é a forma mais alta alcan- sujeitos.
çada pelo homem. Outras organizações sociais, sobretudo
as do Terceiro Mundo, ou culturas que permaneceram con- Imaginemos, por exemplo, um antropólogo que conseguiu
geladas no tempo, podem assim serem consideradas interio- verbas importantes para estudar os diferentes tipos de ca-
res com muita facilidade, o que acarreta um desdém natural chimbo no continente africano. Tal estudo deve ser conside-
em relação aos indivíduos dessas culturas. rado escandaloso, e não apenas estúpido, quando pessoas
morrem de forr.e devido a secas terríveis, de doenças que
Tais culturas "inferiores", "diferentes", despertaram, infeliz· podem ser curadas com remédios simples, iynorància e falta
mente, a curiosidade de cineastas, de modo que os filmes em de higiene. A meta suprema de um antropólogodeveria ser a
geral considerados etnográficos são aqueles sobre povos obtenção dos conhecimentos necessários para melhorar a
exóticos não-ocidentats, utilizam convenções visuais e audi- humanidade,e não exercícios acadêmicos estéreis.
tivas do documentário, baseadas numa descrição narrativa
para posterior interpretação antropológica. Com vozes sua· Em vista disto, o cineasta etnoyráfico talvez devesse estar
ves, profundas e perfeitas lendo textos bem acabados sem aµrendendo a fazer filmes no terreno desde o início. Sua íns-
vacilar, diz-se que este tipo de filme é narrado pela "voz de piração e método deveriam surgir da prática constante, e não
Deus", e dá a impressão de possuir "o" conhecimento uni- de regras intelectuais que lhe são impostas e o tornam esté-
versal, quando na verdade pode estar fornecendo dados in- ril.
corretos ou apresentando informações preconceituosas.
O EGOCENTRISMO DO ARTISTA
É bem melhor deixar que os personagens diretamente ao
público, por si próprios, para nos explicar seus pensamentos, Acho que muitos artistas exigerr uma confiança desmedida
motivaçõs, convicções, gostos, carências e desgostos, em seus talentos e visão para poder criar algo que resista
sem necessidade de mediadores que se achem na obrigação aos embates da crítica. Assim é construído em torno de nós
de explicar os fatos por aquelas pessoas "que não podem se um egocentrismo que tem pouca relação com a rotina diária
expressar por si próprias". da vida, e geralmente separa o artista de sua sociedade,
transformando-onum pária.
O COMPLEXO DE SUPERIORIDADE
Mas devemos combater esta "falha artística" quando saímos
Todos nós somos atores no mundo em cue vivemos, embora pelo mundo à procura "da verdade", pois esta não deve ser
alguns encenem mais que outros suas ficções. Uma vez fruto de uma visão egocêntrica ou eqornanlaca.Ao contrário,
aculturados e "educados", temos tendência a nos apossar a virtude da humildadetalvez tenha caracterizado os melho-
das fantasias de nossa profissão: nos vestimos de certo mo- res cineastas etnográficos, que se tornam invisíveis para po-
do, compartilhamos um jargão e nos identificamos com os der filmar com grande respeito as pessoas que lhe permitiram
mesmos símbolos. Colocamos uma máscara que nos fará entrar err. suas vidas.
sentir à vontade com nossos pares.
"ESTOU GANHANDO MEU SUSTENTO"
Um cineasta etnográfico que usa máscara não pode faze um
bom trabalho. Nossas relações com os outros devem ser Os estudantesque escolhem a Antropologia,em geral chegam
sinceras, e temos que nos mostrar como somos. Se nossa à universidade com uma postura idealista, desejando melho-
postura tiver a marca da honestidade e da transparência, rar o mundo onde vivem. Mas após quatro a oito anos de
sem disfarces, as pessoas com quem nos comunicarmos estudos, e quando se aproxima a formatura, o desespero de
responderão de forma análoga. conseguir um emprego e ganhar o sustento se torna o princi-
pal, e o prestígio oferecido por um doutorado subrepuja a
São raros os cineastas que se aproximam de seus sujeitos preocupação quanto a como deverá ser utilizado. Assim, to-
como iguais, que têm pelo menos a paciência de escutá-los! do esse conhecimento e potencial são loyo postos a serviço
Assim, torno a afirmar que quem quiser dedicar a vida a esta de al~uma instituição, e pouco sobra diante de tanto indivi-
disciplina não deve usar máscaras, e não pode agir com ar· dualismo para "consertar" o mundo.
rogãncia cultural: ambas as partes devem ser abertas e fran-
cas, revelar suas almas. Tal postura também é comum entre os que querem ser do·
cumentaristas pois, ao se verem obrigados a ganhar seu
sustento expressam no cinema o que o produtor - que entra
A ANTROPOLOGIA PELA ANTROPOLOGIA com o dinheiro - deseja. O cineasta se torna então uma ma-
rionete das idéias e preocupações de outro. Fica estéril
A formação que nos é dada nos torna elitistas, e pode por- quando dá importância ao dinheiro como meta de seus esfor·
tanto nos impedir de nos tornarmos humanistas, embora am- ços, e não como meio para atinQirum obietívo mais elevado,
plie nossos horizontes e a compreensão do mundo que nos com finalidade social.
rodeia. Na Antropologia,o processo de formação costuma ser
literário, e não experimental: obriga os estudantes a absorver A idéia de que a pessoa se torna elitista simplesmente por ter
conhecimentos livrescos durante vários anos, em lugar de melhor formaçao é contrária ao conceito de sociedade demo-

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crática. É antes a tendência de egocêntricos que, ao se tor- Segundo tais regras, cada cena dramática deve conter ele-
narem profissionais liberais, acreditam que podem utilizar mentos que façam a ação avançar em direção a sua culmi-
seus conhecimentos e talentos apenas para ficarem ricos, nação. Cada seqüência é importante. Não deve haver se-
sem levar em conta suas responsabilidades para com aso- qüências desnecessárias, mas também não deve faltar ne-
ciedade onde vivem. nhuma, e o e4uilf0rio entre as seqüências é importante para
dar ao conjunto um ritmo sequro. Assim, cada seqüência de-
O FORMATO CINEMATOGRÁFICO ve ter uma certa duração, uma cadência que dê um determi-
naco ritmo à obra. Não se pooe suspender a ação para fazer
No trabalho conjunto da produção de um filme, o conflito mais uma descrição detalhada que não seja importante para o te-
irritante entre o cineasta e o antropólogo é pela hegemonia, ma, porque no conjunto da obra este trecho terá um peso que
pois :ambos querem impor suas prioridades ao documento. O não merece, interrompendo o fluxo dramático. Cada cena de-
antropólogo sente que os dados documentados devem ser ve conter apenas a informação necessária para passar de
completos, explicados e analisados, enquanto o cineasta imediato à seguinte, bem como os fatos dramáticos que mo-
está mais interessado nos elementos dramáticos para poder vimentem inevitavelmente a ação em direção ao clímax, em
abordar sentimentos, conflitos, tensões, reações, aímosíe- geral em progressão acelerada.
ras ... Está ar procura do drama próprio à vida cotidiana e aos
eventos que vai documentar.
A apresentação dos personagens e situações deve ser re-
O cinema se presta naturalmente a documentar o comporta- solvida no início, mas sempre dentro de cenas com conteúdo
mento humano ao abordar os acontecimentos e ritos da vida. dramático. À medida que a ação avança e o público conhece
O µaµel do cineasta é portanto explorar as relações que re· melhor os personagens, aumenta a importância dos fatos no
velem os siyniticados desses atos e rituais. O cinema tam- desenrolar progressivo da ação, cada vez mais sintética,
evitando o que o espectador já sabe. Da mesma maneira a
bém pode ressaltar conflitos, observando com fascínio o
informação básica é sempre apresentada no começo, e à
drama da vida se desenrolar diante de nossos olhos. Ao la·
medida que a ação avança são feitas colocações novas e
zer um filme sobre pessoas, é preciso estar mais perto do
cada vez mais complexas, construindo em base ao que já se
coração, para captar a vida como ela é, ao invés de dissecar
sabe,
mecanicamente sua cultura material na tela.

O cineasta etnográfico ocidental tem que considerar uma sé- A base de todo drama é conflito, geralmente entre dois ou
rie de regras estéticas básicas, comuns à cultura ocidental. mais pepersonagens que têm objetivos diferentes e devem
Eis aqui alguns dos problemas a serem levados em conta: agir de modo antagônico para atingí-los. A base da luta é
quase sempre um confronto entre o bem e o mal, e o público
A FORtvA ARTÍSTICA se identifica com os personagens bons, encorajando-os qua-
do combatem os maus. Assim, em geral a dramaturgia tem
Quando o produto final for um filme destinado ao grande pú- sido moralista, uma forma de ensinar aos membros de uma
blico, deverão ser enfatizados os elementos cinematográfi- cultura as leis básicas da convivência.
cos, yuiados mais por regras dramáticas que científicas. O
cineasta deve utilizar todos os meios a seu dispor para gerar No cinema etnojráüco, entretanto, é raro o cineasta poder
no espectador uma relação emocional e intelectual com os filmar conflitos entre os personagens documentados. Talvez
personagens da tela. O material documentado deverá se or- possa documentar as tensões das comunidades quando vão
8anizado de forma artística, num "filme". Para tanto, é preciso à guerra, enfrentam governos ditatoriais, lutam por seus di-
que o cineasta etnográfico siga uma série de normas dramá- reitos coletivos. Mais difícil é captar as tensões sutis no seio
ticas yravadas em nossa memória devido à constante utiliza- de uma famma, pois é óbvio, seus membros se comportarão
ção em nossa cultura, de forma mais exemplar quando observados por estranhos.
As formulações estéticas através das quais a informação é O conflito dramático no cinema etnográfico em geral é cen-
apresentada estão profundamente enraizadas em nossa tra- trado nas tensões entre os seres humanos e a natureza, nas
ma social e cultural, e quando não são respeitadas ficamos lutas cotidianas pela subsistência, e em como o homem tem
impacientes, pouco à vontade e, o que é pior, entediados. O que se adaptar às duras condições da terra em que vive.
cineasta experimentado sabe corno apresentar fatos e dados
para chegar ao cerne do assunto com clareza e precisão, de A estrutura dramática dada ao filme deve derivar de um en-
forma a nos deixar constantemente na expectativa, querendo volvimento intenso com o projeto. Em meu caso, chego a tal
saber mais. Sua maior preocupação é captar os instantes resultado gravando durante todo o processo longos rnonólo-
dramáticos que mobilizam o público. gos com os protagonistas, que me inspiram e guiam na filma-
gem de determinadas cenas específicas. Daí tiro o tema glo-
O MODELO DRAMÁTICO OCIDENTAL bal, sua estrutura e acentuação. Por exemplo, se for filmar
um personagem de uma região que está sofrendo seca
No Ocidente estamos acostumados a uma forma dramática prolongada, será natural que o protagonista fale sobre a seca
conhecida desde muito antes que os gregos a transformas- de modo obsessivo, o que faria aflorar suas crenças religio-
sem em arte, e sistematizada por Aristóteles há mais de 2000 sas, seu destino, sua filosofia individual, etc. Assim, embo-
anos. As regras dramáticas aristotélicas são poucas e estri- ra tivesse começado documentando uma pessoa ou família,
tas, e permaneceram imutáveis através dos tempos, inclusi- acabaria documentando a região, seus problemas, e a forma
ve nas fórmulas melodramáticas dos filmes de Hollywood. como conseguiram sobreviver em tal meio ambiente.

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O ESTILO PESSOAL Terra, para tentar entender o motivo de sua vida e as formas
que encontrou para sobreviver. Assím, como os cineastas
Em cada obra o artista repete uma fórmula, um estilo que deu etnográficos, tento captar a rica variedade das sociedades
certo para suas finalidades no passado, e que se torna a humanas.
matriz de cada nova obra, com a esperança de aperfeiçoá-la
e aprofundá-la cada vez mais. É o invólucro, digamos, dos Minhas etnobiografias seguem algumas das normas dos pu-
materiais documentados. No cinema etnográfico, o melhor rístas do cinema etnográfico, mas não todas. Por um lado,
estilo é aquele onde o cineasta é mais invisível, onde são filmo no lugar onde os fatos ocorrem, e em meus filmes as
comunicados com mais veracidade os fatos documentados. posturas das pessoas e a natureza de sua cultura são per-
cebidas e interpretadas pelo cineasta. Tenho utilizado o ci-
Um filme etnográfico deve ter um ritmo e uma cadência ade· nema para obter uma descrição detalhada do comportamento
quados ao ambiente em que foi filmado, guiados pelas ativi· humano, e considero um desafio realizar uma documentação
dades documentadas. Assim, seu estilo deve emergir nato- verídica ao abrir câmera e microfone a pessoas que fazem o
ratrnente do próprio material, e não ser imposto por idéias que estariam fazendo se eu não estivesse presente.
estéticas pré-concebidas, ou pelo desejo eqocêntrlco de dar
uma apresentação nova ou "pessoal" ao material. No entan- No trabalho d€· documentação etnográfica está implícita a
to, cada cineasta impõe ao material um estilo pessoal especí- premissa de que nada deve ser dramatizado ou ficcionaliza-
fico, que é sua contribuição autoral à obra. Embora deva fa- do, representado ou reconstruído, e é devido a estes pressu-
zer um grande esforço para não manipular o material filmado postos que me sinto excluído da disciplina. Tenho que reco-
em função de seus próprios preconceitos, nem impor sig- nhecer que em determinadas ocasiões manipulei alguns dos
nificados alheios a ele, o autor sempre imprime a seu filme eventos documentados em meus filmes, embora acredite
uma marca pessoal. O cineasta escolhe o tema e a aborda- que, dadas as circunstâncias, os fins justificavam os meios.
gem, a ênfase que dará aos grandes temas, quanto tempo
dedicará a cada cena, o ponto de vista ou o ritmo do conjunto Para ilustrar como e por que algumas vezes não observei as
da obra. normas da filmagem etnogréfica purista, exporei o caso de
uma de minhas etnobiografias, "Cochenqo Miranda". O título
A experiência pessoal do cineasta durante os meses de lil· é o nome do protagonista do filme, que vive com a família
rnajern também terá um papel, pois ele comprimirá em pou- numa região desértica do oeste dos pampas argentinos. Du-
cos minutos de tempo real na tela uma experiência vivida. O rante meu trabalho de campo, fiquei sabendo que Don Co-
cinema é, portanto, uma síntese de elementos díspares, bem chenuo ia receber o título de propriedade de suas terras do
como de tempo e espaço. ~overno da orovíncia, por ter ai vivido durante 30 anos. Como
havia urna expectativa entre os familiares, considerei impor-
O estilo que se manifestou em minhas etnobioçraüas surgiu tante documentar esse evento dramático. Além disto, pensei
naturalmente ao tentar 4uestionar certas verdades dos preta- que seria importante mostrar a paciência ilimitada de que os
!:!Onistas. Basicamente, minha linha estilística consiste em camponeses pobres da Aryentina devem dispor quando se
deixar que as pessoas documentadas talem por si próprias. relacionam com a burocracia para defender seus direitos.
Assim, não hâ narradores de fora que metabolizem o material Também queria mostrar as peripécias da tonCJa via9em que
transformando-o em "verdades" geralmente escritas por es- os habitantes oa re~ião oeste dos pampas têm que empreen-
pecialistas que estudaram a cultura documentada e chega- der quando precisam fazer tratar de assuntos em Santa Ro-
ram a conclusões intelectuais, muitas vezes contaminadas sa, capital da Província de La Pampa.
por seus próprios antecedentes e preconceitos culturais.
Quando se fazem documentários sobre culturas, pouquíssi-
mas vezes nos é dada a oportunidade de ouvir diretamente Nesta situação específica, as alternativas eram: esperar que
as pessoas. Mas o advento de câmeras leves com gravação o título de propriedade fosse entregue (o que um bom ci-
de som direto, na década de 60, possibilitou essa aborda· neasta etnográfico teria feito) ou provocar a situação para
gem, pois antes o narrador era o dono da verdade. poder documentá-la em situação de certo controle. Fiz am-
bas as coisas. Depois de esperar dois meses, e dado que a
AS ETNOBIOGRAFIAS 00 AUTOR entrega do titulo demorava, decidi tentar ativar o processo
para poder filmá-la. Fui às repartições do governo em Santa
Em 1968 fui convidado a participar do Primeiro Colóquio ln· Rosa - a cerca de 400 quilômetros do sítio de Don Cochengo
ternacional de Cinema Etnográfico, realizado na Universidade - e tentei marcar o dia em que o título seria entreçue. De
da Califórnia, Los Angeles, para projetar meus últimos traba- posse desta informação, lui à estação de rádio local onde,
lhos de documentário. Cheguei com a insegurança de um ex- num programa especial ao meio-dia, costumam enviar men-
aluno que ia ser avaliado por seus ex-professores. Ali fiquei sagens à região do oeste dos pampas. Pedi que dois dias
sabendo que existia uma disciplina conhecida como "cinema depois mandassem uma rnensauerr; a Don Cochengo, dizen-
etnográfico", e que algumas pessoas do Colóquio considera- do que seu título de propriedade estava pronto, e que fosse
vam meu trabalho como tal. Anos depois, alguém me disse até a sede do IJOVerno para recebê-lo. No dia seguinte voltei
que alguns de meus filmes poderiam ser denominados "etno- ao sítio dos Miranda, contei à esposa de Don Oochen.,o o
biografias", e me sinto à vontade com essa classificação. que ia acontecer, e ela me prometeu estar com e almoço
pronto na hora em que a notícia fosse transmitida. Assim, pu-
Minhas etnobiooraüas descrevem elementos das culturas de documentar o momento em que Don Cochango a ouvia, e
que documento, tentando interrogar em profundidade a yran- sua reação. Depois documentei a viaçem de cinco dias até
ae diversidade de maneiras como o homem se or!:lanizou na Santa Rosa, e a assinatura da escritura de posse de suas

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terras. Acho que violei uma das normas de pureza etnográli· mentei a frustração da falta de comunicação, e foi ao fazer
ca, mas não no intuito de apresentar uma imagem deformada um filme sobre a cultura Guarauna na Venezuela. O resulta·
da realidade, e sim, ao contrário, para chegar mais perto da do é urna visão panorâmica superficial da cultura, e nenhuma
verdade da situação. pessoa específica é identificada na tela. Está cheio de \Jene-
ralidades difíceis de gravar na mente, pois não hã um perso-
Em 25 anos fiz uma quantidade considerável de filmes, a nagem sobre as quais se encerem. Este foi o resultado do
maioria deles documentários sobre realidades de meu país, a fracasso de minha comunicação interativa com indivíduos
Argentina. Em 1969 exibi um filme de uma hora intitulado específicos, uma experiência que serviu de lição para meus
"Hermógenes Cayo", no qual havia experimentado um novo futuros projetos.
estilo que parecia solucionar muitos dos problemas estéticos
que há tempos me incomodavam. Era o retrato de um snta-
lhador de imagens religiosas que vivia no desolado planalto
ESCOLHER UMA PESSOA OU UMA FAMÍLIA
do noroeste argentino.
Conheci Hermógenes em 1965, e visitei-o várias vezes du- Os títulos de minhas últimas etnobiografias têm o nome de
rante os seis, meses que precederam a gravação de um par seus protagonistas. Isto quer dizer que estoi. cocumentando
de horas de conversa com ele. Uma parte desses mcr:ólogos indivíduos específicos, merrtros ativos de uma cultura ou
foi utilizada mais tarde corr.o única narração do filme. O que comunidade, e este último fato é desenvolvido ro filrre, ao in-
gravei naquele dia serviu de inspiração para outros temas e vés de constituir o ponto de partida da produção. Esta aoor-
evento que filmaria quando de outras visitas, ao longo de urr. dagern me fez concentrar o trabalho sobre a vida de pessoas
ano e meio, até que quando voltei um dia soube que havia específicas e suas lutas, que poderr chegar a encarnar uma
falecido de pneumonia. O filme foi cuidadosamente montado cultura e sua história. Muitos elementos culturais estão smal-
nos anos seguintes, e o resultado foi um caloroso documen- 8amados aos problemas, \;iOStos e desgostos, pontos de
tário sobre as experiências compartilhadas por nós. Também vista e idiossincrasias de uma pessoa. Por extensao, pode·
pode ser considerado um testemunho de nossa amizade. mos che::,ar a entender come· pensam outros indivíduos de
sua comunidade, suas visões de rrundo e ccrr.o se adapta·
Daí em diante utilizei esta abordaçern estilística em outros
rama suas condíçôes. Nc decorrer do trabalho, essa pessoa
documentários lon!:JOS sobre pessoas que a<imírei e visitei
transcende o nível irdividual para se tornar um sujeito coleti-
durante vários meses, até sentir que dipunha de material su-
vo, através do qual pcderros entender de dentre ma cultura.
ficiente para transmitir uma compreensão profunda de suas
vidas e filosofias. Embora os filmes sejam feitos do ponto de
E::;sterr:, é claro, muitos outros rnétocos, mas este carece
vista de um observador, na terceira pessoa - com câmera
coadunar com minha própria forma ce documentar a condi-
"invisível'', e a ação diante dela espontânea e desinibida -
ção humana e chegar à verosde, mesmo sendo apenas urna
não tenho certeza se os filmes podem ser considerados et-
visão parcial desta verdade. Representa um estilo de cinema
nobíoçraüas puras, ou se são subjetivos demais: testemunho
gerador de vontade de saber mais.
de amizade, documentários calorosos sobre pessoas que
chegue: a respeitar e acmrar.
A origem da escolha dos personagens de meus filmes foi di-
Eu adoto urna abordagem tipo "serr idéias pré-concebidas" versificada. Por vezes proveio de um encontro casual e um
ao filmar, tentando obter uma certa pureza na captação do desejo de me aprofundar na vida de uma pessoa que achei
que ocorre diante da câmera. Tal abordagem cria um método: interessante. Outras vezes me propuseram temas, como do-
é como se cineasta e expectador fossem aprencendo pouco cumentar as vicissitudes dos lenhadores dos bosques de cal·
a pouco algo sobre as pessoas filmadas, e a experiência de dén de La Parrpa ("Dos Hijos de Zerda"): uma vez decidido,
aprendizagem se tornasse tão interessante como o próprio saí à procura de um membro dessa comunidade que con-
filme. Propicia também o ritmo e a cadência corretos, pois a viesse ao projeto. A esclha do protagonistas sempre toi urra
motivação do cineasta deriva de seu envolvimento cem os prerrogativa minha, e apenas minha, pois preciso sentir muita
acontecimentos que estão sendo filmados. Creio que esta afinidade com os personagens com quem conviverei durante
abordagem me interessa também por ser a mais humilde, a meses de trabalho.
menos ego e etnocêntrica, pois exige um compromisso total
com os protagonistas, e não com a visão e o desejo do ci- FILMAR COM EQUIPE MÍNIMA
neasta.
Se: o cineasta tentar fazer um filme sobre uma família de cin-
METODOLOGIA co membros trabalhando com uma equie de filmagem de seis
pessoas, o mal-estar será tamanho que fica difícil imaginar
Err tora seja necessérío um certo grau de intuição para fazer o filme como algo atém de uma documentação de tensões
este tipo de lílme, há rr.étodc e disciplina em meu atos, práti- por estar sendo observados/estudados/espiados.
cas concretas que obsevo ao fazer minhas etnobiografias.
Nos últimos 20 anos desenvolvi uma série de etapas que se- Talvez meu estilo seja bem sucedido em parte porque faço
gui de modo mais ou menos consistente: meus filmes sozinho, ou com mais uma pessoa - embora
seja eu quem filma e grava a maioria dos monôloços para
CONHECER O IDIOMA DOS PROTAGONISTAS que haja unidade de objetivos e abordagem. E sempre esco-
lho uma pessoa que gosta desse tipo de trabalho, pois ai·
Trata-se de um etemento essencial para chegar a uma com- guém entediado ou infeliz por estar vivendo em condições
preensão profunda de um povo. Apenas uma vez experí- precárias criará tensões que acabarão aparecendo na tela.

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Se o interesse e o fascínio forem mantidos durante todo o nistas na trilha sonora - seu "espírito" - resultado de monó-
decorrer da experiência, o resultado será um documento se- logos gravados durante meses, uma vez que os protaqonis-
reno e profundo, contendo valores duradouros, que falará a tas conquistaram minha confiança.
diferentes públicos por muito tempo.
A ünlca forma como eu poso conhecer uma pessoa é que
Se o companheiro for antropólogo poderá ajudar a incluir a esta fale para mim durante horas. À medida que vai talando,
entender melhor os fatos e elementos mais importantes no me reveta sua alma e me comunica sua visão de mundo,
filme. A situaçao ideal é aquela em que o cineasta filma a suas crenças religiosas e seus pontos de vista filosóficos.
parte visual enquanto o antropólogo grava o som direto. As- Com o passar dos meses, esses monólogos se tornam calo-
sim é possível construir uma relação sutil entre ambos, to- rosos e íntimos, e tal intimidade é diretamente transmitida ao
mando ao mesmo tempo decisões pertinentes e criativas. espectador pela trilha sonora do filme. São revelações feitas
a um amigo atento, e têm uma densidade, uma magia e uma
A associação entre cônjuges é uma forma ainda melhor de veracidade impossíveis de conseguir de outra maneira.
fazer este tipo de cinema. Um casal tem mais possibilidades
de produzir um documento sereno e profundo, pois neutraliza A idéia de ir a uma região sem idéias preconcebidas me sa-
qualquer tensão, seja ela sexual ou competitiva, que venha a tisfaz, e à medida que avançam as gravações, estas me
surgir entre o cineasta e seus protagonistas. No momento de guiam em direção àquilo em que deverei me concentrar du·
fazer as entrevistas para os monólogos, cada um pode se rante as filmagens. Deixo isto acontecer espontaneamente,
concentrar nos indivíduos de seu próprio sexo, para obter vi· escutando assuntos e problemas que os sensibilizam pro-
sões mais profundas das posturas e experiências das pes- fundamente. As entrevistas são abertas e sem perguntas es-
soas documentadas. pecfücas, salvo quando os temas começam a emergir e te-
nho que tentar entendê-tosmelhor.
CONQUISTAR A CONFIANÇA DOS PROTAGONISTAS
O segredo da empatia do público com os protagonistas é
É difícil explicar como a consigo, mas em geral ocorre de que os relatos destes últimos foram gravados como diálogos
modo natural e rápido: as pessoas sabem instintivamente comigo, de onde eliminei minta voz e toda alusão a minha ·
quando alquérn é ou não um intruso. Mas quando faço um pessoa. O personagem na tela se dirige diretamente ao es-
filme, tenho certeza absoluta de que poderá ajudar a melhorar pectador, como se fosse um velho amigo a quem está fazen-
a situação dos documentados. Ofereço-lhes uma tribuna pa- do confidências, e esta intimidade só pode ser conseguida
ra falar e representar o que eles quiserem comunicar, e nun- por meio de uma relação de amizade desenvolvida com os
ca poria na teta algo prejudicial a eles. Os protagonistas pa- personagens ao longo de vários meses.
recem entender desde o começo que vou trabalharpara eles.
Quando os antropólogos fazem perguntas, seus informantes
CRIAR UMA RELAÇÃO COM OS PROTAGONISTAS costumam dar as respostas que os cientistas querem ouvir.
Em meu trabalho ocorre uma interação diferente, porque não
Creio que eu nunca poderia fazer um filme sobre pessoas estou procurando uma informação específica, e os sujeitos
que não respeitasse. Se fossem trapaceiro, jogadores ou ir- estão me abrindo sua alma. Falamos de qualquer coisa que
responsáveis em seu contexto cultural, não poderia ocupar eles desejem me contar, do que for mais importante para
meu tempo com eles, pois eu ficaria sempre na defensiva. eles. É por amor - não por ciência - que ajo assim, e eles
em geral entendem isto e são verdadeiros.
A cadência da realização de uma etnobiografia é lenta e me- Meus fifmes são como um canal que vai buscar os conheci-
tódica, pois retorno periodicamente para visitar os protaqo- mentos na fonte, permitindo que determinados indivíduos ex-
nistas, e a relação se torna uma amizade e um fato familiar pressem suas próprias verdades. Meu papel é por à sua dis-
importante. Consigo isto graças à ausência de paternalismo, posição um meio de comunicação inacessível à grande maio-
ou por não querer julgá-tos: os sujeitos não se sentem obser- ria deles. Entretanto, meus protagonistas descrevem os te-
vados por alguém superior a eles. Críamos laços de confian- mas que lhes importam de uma perspectiva sólida: falam por
ça, com grande respeito mútuo, e me fascina tentar penetrar si mesmos sem ter outros pontos de vista para equilibrá-los.
em seus seres, mais que descrever o meio ambientematerial. Mas quantas vezes temos a oportunidades de ir até a fonte e
Poucas vezes entro em seus dormitórios ou em áreas priva- ouvir os próprios protagonistas, ao invés de ter que escutá·
tivas da casa, por exemplo, porque não é importante para tos através de pessoas que falam por eles como antropólo-
meus objetivos. A antropologia material enfatiza tanto o gos, sociólogos, polfticos ou jornaüstas?
"quê", que o "por quê" pode ficar perdido sob um acúmulo de
dados. É a atitude de espião intruso que viola a privacidade NÃO INTERROMPER AS ATIVIDADES NORMAIS
das pessoas.
Quando estou em filmagem, costumo ir à região uma vez por
PROCURAR A INTIMIDADE GRAVANDO MONÓLOGOS mês e ficar poucos dias, ou mesmo horas para não interrom-
per as atividades normais da vida cotidiana documentada. Se
Na tela, as ações e acontecimentos documentados repre- ficasse mais tempo minha presença se tornaria um estorvo, e
sentam os aspectos materiais de uma pessoa - seu "corpo" eu teria que ser tratado como hóspede, não como parte do
- e como conseguiu sobreviver em sua situação específica. grupo familiar. Como faço visitas regulares, as ocasiões se
No entanto, isto conta apenas uma parte da história, talvez a tornam festivas, alegres e espontâneas, há sempre coisas
menos importante. Por isto acrescento a voz dos protago- novas a contar e novas experiências a compartilhar.

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SER UM"OBSERVADOR-PARTICJPANTE" tempo com os protagonistas, para entrar em suas armas e
condições de vida. Mas é um luxo, pois é muito caro produzir
O filme etnográfico difere do cinema narrativo ou de ficção, filmes, mas o orçamento pode ser reduzido, como meu tra-
pois o primeiro se concentra na interpretação dos aconteci- balho demonstrou.
mentos, enquanto o segundo enfoca o desenvolvimento de
uma visão específica. Mas as percepções do observador- Minha abordagem estilística ao filmar etnobiografias não é trpi-
participante têm um papel importante, e é por isto que os ci- ca, devido à quantidade de tempo que exige. Os filmes que
neastas e antropólogos da área devem estar atentos aos considero os melhores são aqueles que comecei sem saber
problemas da percepção especffica de cada um, para tentar quando ia completar. Tempo é de fato a última de minhas
minimizar as interferências e documentar elementos culturais preocupações. A produção se desenvolve naturalmente du-
de modo verdadeiro. Para tanto, o cineasta deve ter uma rante um certo tempo. O evento real, o fazer do filme, é então
compreensão global do comportamento social e da cultura minha vida: compartilhar a experiência com os protagonistas.
que documenta. O produto final é portanto tão parte de suas vidas como da
minha, tanto um processo como um fim em si mesmo.

TENTAR SER INVISÍVEL Para poder registrar mudança, a própria produção deveria
durar um ano, garantindo assim a documentação de eventos
Outra diferença entre os filmes de ficção e os etnográficos é importantes, durante um ciclo completo das estações e seus
que a relação do diretor com o material é diametralmente efeitos sobre pessoas que vivem em contato estreito com seu
oposta, e parece não haver nenhum ponto de contato entre meio ambiente. A cada visita se filma, e o resultado é adicio-
ambos. Na ficção, o roteiro é escrito a prior], e a maioria dos nado ao já documentado e reestruturado constantemente até
elementos dramáticos é criada de antemão. Quando o roteiro o final da experiência. Trata-se, portanto, de um processo or-
é transformado em ação visual, os elementos de produção gânico, pois nunca se sabe com certeza para onde vai. Mas
devem ser "dirigidos" por alguém, que é o centro de todas as a cada viagem são acrescentados elementos novos, e o pró-
atividades, o centro de toda "tensão". Esta pessoa orienta os
prio material começa a ditar a estrutura e os ritmos.
atores e técnicos. O diretor - o "superego" - é a única pes-
soa que confere à obra uma atmosfera, uma identidade, um É muito mais fácil fazer um filme que consome entre duas
ritmo. semanas e um mês de filmagem para nos dar uma visão pa-
norâmica de uma cultura. O cineasta filma à toda velocidade
O cinema etnográfíco trabalha de modo totalmente inverso,
os acontecimentos comuns a todos os indivíduos - em parti-
pois o cineasta deve "desaparecer", tornar-se invisível para o
cular atividades comunitárias coloridas e divertidas, como
que está acontecendo diante das câmeras, ser espontâneo e
festivais ou ritos - e depois vai embora. O resultado pode ser
sereno. Assim, toda experiência é um exercício de "anti-ego",
interessante, mas a imagem permanecerá por pouco tempo
de humildade. Deve existir compromisso com a realidade,
na mente do espectador. Antes de mais nada, é superficial. O
antes que imposição dos desejos e temperamento do reaü-
sentimento que fica é o de ter apenas arranhado a superffcie
zador, Aqueles que o cercam não devem ter consciência de
de uma cultura.
si, pois agem livremente e sem empecilhos.

Esta técnica implica a captação do momento como está DAR AO DOCUMENTADO UM FORMATO ARTÍSTICO
acontecendo, localizando a câmera na melhor posição possí-
vel - no ângulo exato, com a lente correta, no momento justo Quando volto com os rolos filmados, sento-me diante da me-
- bem como captar a complexidade e a totalidade do evento, sa de montagem e dou início à segunda etapa, só que desta
além das reações que desperta. Portanto, o cineasta é quase vez minha sensibilidade estética começa a aflorar. Agora a
obrigado a ser o câmera, pois decisões cruciais devem ser questão principal é como transformar o que documentei num
tomadas no decorrer a ação, e a única pessoa que pode to- fato artístico. Este exercício intelectual costuma ser muito
má-las é o "olho" que está filmando o acontecimento. Atém mais extenuante, e consume muito mais tempo que as filma-
disto, o cineasta tem que ir editando em sua cabeça à medida gens. O processo consiste em condensar o material para uti-
que os fatos vão se desenrolando, pois eventualmente pode lizar apenas o essencial: a síntese é minha meta principal.
ser necessário filmar outros elementos para uma montagem
melhor. Assim, na mesa de montagem desfilarão uma infinidade de
vezes apenas aquelas imagens específicas que escolhi fil-
Embora as filmagens em si façam parte da tradição do reali- mar. Geralmente trabalho sozinho com o material, organizan-
zador de noticiários, a obra em sua totalidade deve ser con- do-o de diversas maneiras durante semanas. Monto com ex-
siderada e estruturada como um filme didático. Para tanto, é tremo cuidado e precisão, para que a imagem e o som se
preciso apresentar os dados informativos de forma lógica, combinem a criar uma obra de arte complexa e sofistica·
para desenvolver idéias e conceitos mais complexos. da. A sensação global é a de controle total do material, é co-
mo há envolvimento com uma preocupação estética o prazer
DISPOR DE TEMPO SUFICIENTE reside em criar algo com significado e carregado de impacto
emocional.
Os filmes etnográficos sérios em geral se baseiam em am-
plas pesquisas de campo, mas o tempo dedicado às fürna- Nesta etapa, um amador acha impossível distanciar-se do
gens em si costuma ser muito limitado. Entretanto, só é material para ser objetivo, e tem tendência a reter as cenas
possfvel mergulhar profundamente nos temas gastando muito de valor para ele. O profissional, ao contrário, deve abordar o

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material para faze um filme capaz de se comunicar com o de suas obrigações de sobrevivência. Afinal tive uma exalta-
público. Após tantos anos e tantos filmes, acho fácil eliminar da discussão com meu amigo, na qual ele garantia que o filme
material até ter uma síntese, utilizando apenas os ingredien- ajudaria a transformar toda a região, mas ele não se sentia
tes básicos de um bom filme, sem lamentar o que foi des- pessoalmente responsável pela ajuda àqueles indivíduos, os
cartado. mesmos eventualmente beneficiados devido ao efeito do fil.
me. A meu modo de ver, entretanto, uma vez que nosso ca-
A primeira projeção de um filme terminado é uma experiência minho se cruza com o de outro ser humano estamos inexo-
tensa e solitária, até ver a reação do público. Mas se o ci- ravelmente ligados, e não sou capaz de ignorar seus proble-
neasta fez um bom trabalho e o filme é compacto, bem pro- mas. Sinto-me responsável pelo bem estar dessa pessoa.
duzido e sutil, cada um dos expectadores sentirá um deter-
minado prazer ao vê-lo. Nesses momentos a relação do ci- Durante a produção de um filme estou em constante intera-
neasta com seu filme se toma secundária. Até então havia ção com os protagonistas, a maior parte do tempo tratando
exercido total controle sobre a obra, mas esta agora é de de sua saúde, levando-os a lugares onde precisam ir ou ten-
domínio público, e aquele que a fez fica esquecido. Por outro tando resolver seus problemas. O filme é produto de uma ín-
lado, o filme - separado de seu autor para sempre - é seu tensa experiência de vida compartilhadapelo cineasta e seus
alter ego, e talvez sobreviva a ele durante décadas. Há, por- protagonistas. Hã troca freqüente de presentes, mas nunca
tanto, um prazer espiritual em tudo isto, mas também há urna de dinheiro. Assim que o dinheiro se mistura ao filme, este
perda repentina e irrevogável. Sempre me senti muito depri- perde algo da espontaneidade e do írescor, pois passa a se
mido no final de uma primeira projeção, sensação superável basear mais num trato comercial que na amizade.
apenas pelo trabalho em outro filme.
PROTEGER OS PROTAGONISTAS
PREOCUPAÇÕES ÉTICAS NO CINEMA ETNOGRÁFICO
Enquanto filmava "Los Híjos de Zerda", no centro geográfico
Durante a estréia de meu filme "Hermógenes Cayo" em Bue- da Argentina, um desses filhos foi preso como suspeito do
nos Aires, a pessoa que estava sentada a meu fado se entu- roubo de uma bicicleta. As autoridades policiais me deram
siasmou muito, e tá pela metade do filme me perguntou onde permissão de entrevistar e filmar o rapaz na prisão, mas de·
Hermógenes morava, pois queria ir visitá-lo. De repente me cidi não fazê-lo porque não era importante para meu filme.
dei conta de como um filme poderia ter afetado a vida dele, Foi apenas um pequeno acontecimento na vida do rapaz,
para melhor ou para pior. mas se tivesse ficado documentado no filme ele teria ficado
marcado pelo resto da vida como ladrão. Visto deste ângulo,
Um filme pode mudar a vida de seus protagonistas devido o poder do cinema é devastador.
à influência que exerce sobre cada expectador, ou através
O princípio fundamental de uma experiência etnobiográfica é
de ações institucionais. O cineasta que não compreender a
que a relação de amizade e respeito mútuo cresce entre os
repercussão possível de seu filme é um irresponsável, pois
protagonistas e o cineasta. Eis porque eu nunca.poderia fil-
está lidando com seres humanos. Assim, ao caminhar por
mar algo prejudicial para eles, embora seja muito fácil fazê-lo,
sendas tão delicadás seria necessário observar uma série de
pois durante as entrevistas gravadas muitas vezes me reve-
diretrizes éticas.
lam segredos que nunca mencionariam em público. Um ci-
neasta inescrupuloso poderia utilizar esse material, arruinan-
RESPONSABILIDADE SOCIAL DO CINEASTA
do assim a vida e a reputação de pessoas que nele deposita-
ram sua confiança. Como a maioria das pessoas não enten-
Considero-me um educador. Creio que as grandes mudanças
de as implicações de suas revelações, o cineasta deve pro-
da história foram feitas por meios pacíficos, e que a educa-
tegê-los de sua própria ingenuidade.
ção conseguiu implantar progressos mais importantes e du-
radouros que as revoluções.
CONSIDERAR OS CONOICIONAtvlENTOS
O cineasta deveria se sentir humilde por ter acesso a este CULTURAIS DO PÚBLICO
meio de comunicação tão sofisticado, e considerá-lo um pre-
sente a ser utilizado para atingir um objetivo social. O ci- Ao longo das muitas e complexas etapas da produção de um
neasta etnográfico tem a responsabilidadede formar a socie- filme é possível transformar, variar ou deformar a realidade
dade em que vive a respeito de outras alternativas de vida, documentada. Todos nós estamos culturalmente condiciona-
sempre em direção à liberdade universal. dos, mas este condicionamentocostuma estar tão impregna-
do e profundo que talvez não tenhamos consciência dele. É
RECIPROCIDADE portanto indispensável que o cineasta etnográfico faça uma
auto-crítica constante, para ter a certeza de que seu filme se-
Há muitos anos atrás, quando co-diriqla um filme com um rá visto pelos diversos tipos de público da forma que ele con-
amigo, passamos dez dias na casa de uma família num vale siderar verídica. Para tanto é preciso entender como será
remoto da Argentina. No final da experiência as tensões au- percebido o filme peras pessoas de sua própria cultura, de
mentaram, porque meu amigo tratava os protagonistas fria- outras culturas e, o mais importante, da cultura que foi docu-
mente, absorto que estava na realização do filme. Mas mentada.
aquelas pessoas eram tão pobres que lhes faltavam os ele-
mentos básicos, e não podíamos ignorar que estavam dedi- Um filme mal feito pode provocar risos. O cineasta deve faze
cando a nós uma boa parte de seu tempo, ao invés de tratar com que os risos inesperados nunca cheguem a humilhar os

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protagonistas. para· tanto é· preciso que. o filme seja projetado pessoas oocumentadas. E não deve. ser apenas uma cifra
para vãnos tipos de público antes de ser terminado, avaíian- simbólica para tranqülizar nossas consciências, mas 25 por
do assim suas reações. É essencial que percebam as sutile- cento da renda bruta, sendo entregue à medida que vai en-
zas culturais apresentadas, que haja empatia com os perso- trando, ao invés de esperar pela recuperação do investi·
nagens para sentir que, se fossem da mesma cultura. eles mento do filme antes de dividir os lucros. Os protagonistas
também agiriam daquela maneira. Assim será possível ter a devem ser considerados os sócios chave da produção, e
certeza de que embora o público ria com os personagens, suas necessidades são imediatas.
não rirá dos personagens.
Em alguns casos, minha esposa e eu enviamos a nossos
VERACIDADE protagonistas uma quantia por mês durante até 17 anos, para
assegurar a educação de um filho ou a sobrevivência de uma
Para garantir a veracidade da documentação, todo filme de· viúva. Foi motivo de grande satisfação para nós saber, anos
veria ser projetado para os protagonistas antes de sua tlnaíl- mais tarde, que um jovem havia conseguido um diploma uni-
zação. Se eles concordarem em que o documento é correto versitário que sem nossa ajuda seria impossível.
e os mostra de modo favorável, então me sentirei livre para
terminar o projeto. Limitações a nível de equipamento podem Mas não penso que lodo o lucro deva ser entregue aos pró-
impossibilitar esta sessão, mas hoje em dia é mais viável, prios protagonistas, mas que uma boa parte deve financiar
pois há o recurso do vídeo, para o qual o filme pode ser pas- projetos comunitários para beneficiar toda a comunidade ou
sado e mostrado na telinha. Projetar o filme neste estágio é a região.
única forma ética e moral de tratar aqueles que nos permiti·
ram entrar em suas vidas. UMA AMIZADE DURADOURA
CUIDADOS COM O CONTEÚDO E A APRESENTAÇÃO Minha esposa e eu tentamos manter o contato com os preta-
gonistas de meus filmes, e de vez em quando viajamos até
O primeiro impulso de espectadores preocupados é tentar suas regiões quando nos foi possível, para reavivar as ami-
ajudar os documentados vistos na tela em suas necessida- zades e saber das novidades. Assim, conhecemos os efeitos
des imediatas, como roupa e dinheiro. Entretanto, uma mu- de cada filme sobre os protagonistas. Em alguns casos, foram
dança permanente e progresso só podem ser obtidos através positivos, com melhorias materiais como estradas, sanea-
de ações institucionais e leis mais justas. O cineasta tem que mento, água encanada, etc. Em outros, os efeitos foram mf·
abordar as preocupações humanitárias em seus documen- nimos, em geral porque os governos militares que a Argenti·
tos, ressaltar os problemas e suas soluções lógicas, para na sofreu não estavam interessados em absoluto na melhoria
convencer as autoridades governantes a introduzir mudan- das condições de vidas das pessoas da zona rural.
ças duradouras.
Mas muitos de meus protagonistas ficaram orgulhosos de
VOLTAR PARA MOSTRAR O FILME participar dos filmes, pois mostraram o lado positivo de suas
Os protagonistas estão ansiosos para ver os resultados de regiões. No caso de "Cochenqo Miranda", os acontecimen-
uma experiência longa e intensa, sendo portanto ímprescíndl- tos retratados serviram para reafirmar alguns costumes fol·
vet não medir esforços para projetar o filme na região onde foi dóricos que estavam desaparecendo. O filme foi projetado
feito, para compartilhar o entusiasmo das pessoas ao se ve- inúmeras vezes nos pequenos povoados da região, refor-
rem retratadas na tera. Isto também demonstra às pessoas o çando as crenças e tradições daquelas pessoas.
agradecimento do cineasta.
Meus filmes tratam de pessoas que logo se tornam meus
O ideal foi o que aconteceu quando da estréia de "Cochengo amigos, e em cujas vidas entro assumindo muitos deveres e
Miranda": o governo da província de La Pampa organizou responsabilidades. Os filmes resultantes não são objetivos,
uma grande festa popular em EI Boitano, local situado a mais
são antes subjetivos: são minha visão pessoal daquelas
de 1000 quilômetros de Buenos Aires. Para lá foi levado um
pessoas. Se por este motivo não são considerados etnográ·
gerador, luzes foram colocadas em torno de uma pista de
ficas, pois bem assim seja.
dança improvisada, cervejas postas no gelo e o projetor ins-
talado. O filme foi projetado três vezes naquela noite, e o
baile durou mais três dias, com projeções de vez em quan- CONCLUSÃO
do •.•
Os filmes que faço são, em princípio, para os protagonistas.
Em outra ocasião, Damacio Caitruz - um índio mapuche da Não são para mim nem para o público que vai assistir, mas
província de Neuquén - me dizia, enquanto observada sua para aqueles que documentei. Filmo para servt-los. Não vou
imagem com admiração, o que ele estava dizendo na tela "estudar", "analisar" ou "julgar'' essas pessoas. Também não
era de fato verdadeiro. As pessoas que nunca viram um filme vou como um cientista que estuda sociedades como se fos-
ficam tão envolvidas pela magia da projeção que até conver- sem colônias de formigas: friamente, "objetivamente". Vou para
sam com as imagens dos que identificam na tela. entender, e para aprender com eles.

REPARTIR OS LUCROS Ajo como um tecnocrata que conseguiu dominar uma arte
sofisticada e um meio de comunicação, e que o tem à sua
Se o filme for vendido para distribuição em circuito comercial, disposição. Mas não utilizo esse meio para apresentar meus
é lógico e ético que uma parte do lucro seja destinado às próprios pontos de vista. Ao contrário, prefiro que outras pes-

18
soas - cujas .experiências de vida vale a pena conhecer, o uti- cem suscitar no público um sentimento de empatia para com
lizem por meu intermédio. Sou um ampliador sofisticado atra- os personagens da tela, pois ao nos aprofundarmos na con-
vés do qual a visão de outras pessoas pode ser transmitida dição humana nos encontramos a nós mesmos.
com a menor interferência possível. Estou à disposição de-
les, "a serviço". Muitas vezes me perguntam o que devem fazer os que qui-
serem realizar esse tipo de cinema. A meu modo de ver, o
Quando exerço minha profissão não estou apenas à procura principal ingrediente é o compromisso. Mas deve ser um
da felicidade. Se fosse caso, não teria levado quase cinco compromisso pessoal, e não proveniente de uma ideologia
anos para fazer um filme sobre etnocídio - "Los Ona, Vida y estranha à pessoa. O compromisso provém de experimentar
Muerte en Tierra dei Fuego". Eu a fiz pelo desafio de realizar a vida com a intenção de entender cada coisa o melhor pos-
algo meritório. Mas também tive grandes satisfações fazendo sível, e com uma sensibilidadeà mudança positiva. Devemos
filmes etnográficos: os sacrifícios que exigem e as pequenas fazer coisas por nosso país, por nossa sociedade, por nos-
gratificações são mais que compensados por outros ele- sos irmãos seres humanos, sem esperar recompensa em
mentos mais sutis. Sei, por exemplo, que é importante dedi- termos de dinheiro, glória ou prestígio. Fazer porque deve
car meu tempo às pessoas das zonas rurais - os esqueci- ser feito, como uma contribuição importante para com a hu-
dos, ignorados, a "minoria" de 75% da população mundial manidade. Não pode ser simplesmente um trabalho pago,
pois os filmes não teriam essa energia e essa intencionalida-
que se esforça para sobreviver.
de especiais. As prioridades do cineasta deverão ser o filme
Se vou gastar meu tempo e minha energia num filme durante e sua mensagem.
meses, e até anos, esse investimento deve ter um resultado
excepcional, dentro das Hmitaçõesde meu talento: uma obra Talvez seja por isto que há tão poucos cineastas etnográfi-
complexa e profunda. Um filme complexo para mim não sig- cos de qualidade, pois quem está disposto a renunciar às
nifica que seja formalmente "artístico" ou enigmático, mas amenidades da vida urbana em troca de uma de nômade so-
que toque assuntos comuns a todos os seres humanos. litário, enfrentando climas adversos e condições pouco higiê-
Profundo quer dizer que sonde, a psiquê humana. nicas, e ocupando seu tempo com pessoas que não perten-
cem a nossa classe média "segura"?
Uma obra de arte é "terminada" por seu receptor, e o artista
sempre nutre a esperança de conseguir uma diálogo especial As culturas tradicionais que demonstraram sua sabedoria
entre a obra e seus .espectadores. Embora aprecie este re- evoluindo e sobrevivendo através dos séculos merecem ser
sultado final, minha satisfação profunda reside no tazer dos documentadas, e deveriam servir de inspiração à humanida-
filmes, que enriqueceu minha vida e minha visão da humani- de moderna. Não sou contra o progresso: sem a tecnologia
dade. Diminuiu minha tendência a julgar as pessoas pelo que eu não poderia ser um cineasta. Mas as sociedades tradicio-
eu gostaria que fossem, por não aceitá-las como são. Tor- nais têm muito a nos ensinar: sabem preservar seu meio am-
nou-me mais consciente de minhas próprias fraquezas, que biente, estão unidos por um forte vínculo de solidariedade e
não são outras se não as da maioria dos seres humanos. sabem compartilhar. Entretanto, a maioria delas está sendo
eliminada sistemática e rapidamente por nações preocupa-
das apenas com questões urbanas, como também a fauna e
O conhecimento e a sabedoria das pessoas deriva da diver- a flora de nosso planeta estão sendo sistematicamente des-
sidade de suas vivências, e talvez eu faça tudo isto em nome truídas.
dessa procura de nossa humanidade, da essência humana
em cada um de nós. Tentar encontrar o traço comum que Estamos cometendo suicídio social. Talvez nossa! geração
nos une, ao invés de "pertencer" intelectualmentea alguma não veja o fim, mas ele virá com certeza nos próximos cem
moda, postura, ideologia dogmática ou filosofia alienada e fa- anos. A explosão demográfica implacável neste século não
tores motivados por tais, e não por nossa intuição própria e pode ser contida. O centro do conflito é uma competitividade
básica. exagerada, e talvez esse seja o preço a pagar por vive na
comodidade de um "Paraíso industrial".
Nesses anos em que documentei a condição humana adquiri
um certo conhecimento da natureza humana, pois meu su- JORGE PRELORÁN
jeito sou eu, num sentido real, eu mesmo. Meus filmes pare- documentaristae produtor de cinema (Argentina)

19
Tne eomor discusses, in this article, the conoept of etnnoçte- EI autor discute en este articulo e/ concepto de cine etnográ·
phic cinema, defining its singufarities. fico, definiendo sus especificidades.

He thinks ovei tne subjective and obfective character of the Reflexiona sobre subgetividad y objetividad en la película et-
ethno graphic fifm criticizing the iafse anthrópological objecti· nográfica, y critica la presunta objetividad antropológica de
veness foundin mariy documentary fi/ms. muchas documentafes.

Pre/orán approaches the · relation film directorlanthropologist, Prelorán discute te re/ación cineasta/antropólogo ai enfocar
considering the attitudes of the ethnographic fifm maker in fa- tas actitudes dei realizador de pelfculas etnográficas ante su
universo de trabajo y sus protagonistas. Define su obra como
ce of his working universe and its characters.
cine etnobíográfico, explicando su metodologia propia de ue-
He defines his work as an ethnobiographica/ cinema, explai- bajo en los 20 últimos anos de cine.
ning his own methodology in the lat twenty years.
Por fin, enfoca cuestiones éticas y la responsabilidad social
Concluding, he discusses ethical questions and the social dei cineasta comprometido con este tipo de producción.
responsíbilities oi the film maker engaged with this kind of
produclion.

{ 1) O presente artigo foi publicado na revísta Third World Affairs (Londres), 1987 e será editado como I ivro por lvanjo Rossí em setembro deste ano.
(nota do autor)

20
O FILME DE PESQUISA.
,,, I

ALGUMAS CONSIDERAÇOES METODOLOGICAS


MÁRCJUS SOARES FREIRE

Nascido no berço da revolução industrial, o aparelho de re- O FILME COMO OBJETO DE PESQUISA
gistrar o movimento teve sua concepção encaminhada por
alguns homens de ciência. Entre eles E.J. Marey, T.A. Edi-
son e E. Muybridge são os mais representativos. Quanto aos
seus primeiros passos, eles foram guiados pelos industriais O objetivo aqui é a análise meticulosa de filmes - documen-
Lumiere que, além de "ensinar" a nova máquina a se apre- tários ou não - cujas temáticas sejam suscetíveis de forne-
sentar em público(1), deram-lhe o nome pelo qual se tornaria cer subsídios para o estudo de um grupo humano qualquer
mundialmenteconhecido: cinematógrafo. ou de aspectos específicos da vida deste grupo. O interesse
de tal estudo repousa sobre elementos que se constituem na
Embalado nos braços de uma burguesia reinante, no ritmo
própria especificidade do cinema: a sua possibilidade de pe-
das profundas mutações que as inovações tecnológicas im-
renizar a fugacidade de um sem número de manifestações
punham às artes em geral e, apadrinhado pela plenitude do
humanas, contrariando assim a temporalidade sempre eva-
capitalismo de uma sociedade industrial que vía nas poten-
nescente da realidadeobjetiva.
cialidades do recém-nascido uma inesgotável fonte de lucro,
o cinematógrafo transformou-se rapidamente em mais uma
Máquinas de registrar o sensível, o kinetoscópio de Edison e
máquina produtiva. Sua missão estava assim determinada:
o cinematógrafo dos irmãos Lumiere deixaram traços indelé-
criar novos produtos de entretenimentode fácil consumo.
veis, testemunhos insubstituíveis da vida no final do século
No entanto,não podemos esquecer que a invenção co cinema XIX. Em nossos dias, filmes realizados ao longo dos 90 anos
estava intimamente ligada aos avanços da ciência e ao pro- que nos separam da célebre projeção do "Grand Café", res-
gresso tecnológico do final do século XIX. Não foi o desejo suscitam o passado nas salas escuras de museus, cinema-
de contar histórias com imagens e divertir platéias que levou tecas, bibliotecas, cins-ctubes, etc., permitindo ao homem
o fisiologista Marey a assentar sólidas bases para a criação contemporâneo presenciar e estudar o mundo de seus ante-
do novo instrumento de registro visual. Suas pesquisas - passados. Mesmo filmes de propaganda colonialista e docu-
mentários vendedores de exotismo, por guardarem em si
que foram apresentadas à Academia de Ciências - tinham
imagens e sons de uma realidade irrecuperável, sempre po-
como objetivo o estudo do vôo dos pássaros e a locomoção
derão servir a estudos antropológicos e históricos.
dos animais. Para isto ele desenvolveu dois aparelhos que
constituem os verdadeiros precursores das modernas câme-
Neste sentido, A. Leroi-Gourhan fazia, em 1948, uma peque·
ras cinematográficas: o fusil fotográfico e a câmera cronoto-
na classificação do filme etnográfico. Segundo ele, "três tipos
tográfica.
de filmes podem ser considerados como etnológicos: o filme
Assim, apesar da primazia que o filme de ficção passou a ter de pesquisa, que não é nada mais que um meio de registro
desde cedo sobre o filme de pesquisa, a preocupação de cu- científico entre outros. O filme documentário público ou 'filme
nho cientffico com relação ao potencial cognitivo das imagens de exotismo', que é uma forma de filme de viagem. E o filme
animadas permaneceu viva. No domínio das ciências huma- de ambiente, rodado sem intenção científica,mas que adquire
nas, a relevância dessas imagens tornou-se clara desde valor etnológico através de sua exportação, como uma intriga
seus primórdios e já em 1895 elas eram colocadas a serviço sentimental em ambiente chinês ou ainda um bom filme de
do estudo do homem. Como nos lembra Emilie De Brigard, "A gangsters nova-iorquinos se tornam, ambos, pinturas de
primeira pessoa a fazer um filme etnográfico foi Félix-Louis costumes curiosos quando muda de continente"(3).
Regnault, um médico especialista em anatomia patológica
que veio à antropologia por volta de 1888. ( •.• ) Na primavera Mas não é apenas a etnologia que vê no cinema um fecundo
de 1895, Regnault, com a ajuda do assistente de Marey, manancial de informações sobre as sociedades que o produ-
Charles conu, filmou uma mulher woloí fabricando objetos de zem ou nele são representadas. O historiador Marc Ferro,
cerâmica na Exposição Etnográfica da África Ocidental".(2) acrescentando ao valor etnológico preconizado por Leroi·
Não tardou a que outros estudiosos, em particular aqueles Gourhan, a importância historiográfica das imagens em mo-
cujas preocupações eram as de investigar o homem, seu vimento, desenvolve um trabalho onde tanto filmes de ficção
ambiente, seus costumes e suas crenças, sentissem no ci- como documentários e atualidades são objetos de estudos
nema um utensílio insubstituível na consecução de suas sistemáticos. Trabalhando isoladamente cada elemento
pesquisas. constitutivo da linguagem cinematográfica (planos, seqüên-
Desde então, a participação da cinematografiaem processos cias, cenários, trilha sonora, diálogos, etc.) e analisando suas
heurísticos pode ser efetivada de duas maneiras: utilizandoo relações internas e externas (a saber, tanto as relações entre
filme como objeto e/ou instrumento de pesquisa. esses elementos como entre eles e aqueles que não perten-

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cem diretamente ao filme: o público, a crítica, o regime ••. ), sidade francesa de Nanterre. Sob a direção da professora
Ferro procura extrair do documento tnmico uma maior com- C!audine de France, este grupo desenvolve pesquisas onde
preensão "não só da obra mas também da realidade que ela os mecanismos da linguagem cinematográfica é reavaliado
retrata»( 4). com vistas à construção de uma antropologia liberada das
contigências próprias à escrita e fundamentadanas potencia-
Entende-se assim como o cinema, por ser um veículo de ini- lidades cognitivas da cinematografia.
gualável eficácia para se penetrar no passado de uma socie-
dade, despertou há algum tempo nos Estados Unidos, um Tal estudo tem como ponto de partida a constatação de que,
surto de interesse com relação a filmes americanos série B e nas ciências humanas, o encontro de um pesquisador, arma-
C. É que esses filmes, malgrado a preocupação evidente em do de uma câmera cinematográfica ou videográfíca, com o
contar uma história fictícia foram, por medida de economia, sujeito de sua pesquisa (um comportamento humano qual·
rodados em exteriores. Precisamente ar está a razão de sua quer), se dá · através de uma interação onde o jogo de influên-
importância: sem querer, conseguiram preservar aspectos cias recíprocas vai determinar o resultado do trabalho. As
desaparecidos das cidades que outrora lhes serviram de ce- pessoas filmadas têm sua própria maneira de se apresentar
nário, tornando-se assim os testemunhos privilegiados para aos olhos do observador e suas atividades combinam sem-
se reconstituir e pensar a história dessas cidades. pre, como veremos mais tarde, componentes de ordem cor·
peral, material e ritual. O observador-cineasta não pode, as-
O FILME COMO INSTRUMENTO DE PESQUISA sim, ignorar a natureza desses comportamentos que, até
certo ponto, são prescritivos ao mesmo título que os seus.
Apesar de existir há quase um século e de estar cada vez Dito isto, sabemos que ele, cineasta, deverá, na maioria dos
mais difundida, a utilização das imagens animadas, enquanto casos, conjugar sua maneira de atuar à das pessoas filma-
instrumento de pesquisa, raramente se faz acompanhar de das. Neste processo de interação, pode acontecer que ele
uma verdadeira reflexão sobre os mecanismos metodológi- modifique o comportamento observado, quer inibindo-o com
cos que lhe são subjacentes. No mais das vezes essas ima- sua presença ou querendo, voluntariamente desta vez,
gens servem apenas de suporte complementar na captação transformá-lo para maior comodidade das filmagens. Por ou-
e transmissão de conhecimentos, sendo consideradas tão tro lado, esse mesmo comportamentopode impor, em virtude
somente como coadjuvantes em operações onde a lingua- da eventual impossibilidade de qualquer tipo de mudança no
gem escrita continua desempenhando o papel principal. Em seu desenrolar, um estratégia de apreensão fílmica singular
outras palavras a função heurística das imagens animadas por parte do cineasta. Qualquer que seja a circunstância, o
ainda carece de estudos mais aprofundados. resultado desta interação consubstanciar-se-á num docu-
mento cinematográfico definido que a investigação futura
Tal carência se torna cada vez menos compreensfvel sele· nunca poderá dispensar, já que dela dependerá seus resulta-
varmos em conta a vertiginosa vulgarização dessa nova má- dos.
quina de registrar imagens e sons que é o vídeo. Hoje em dia,
praticamente qualquer pesquisador pode dispensar o lápis e Nos procedimentos tradicionais de pesquisa o sistema de
o papel em favor de um instrumento cujas potencialidades coleta de informações apoia-se fundamentalmentena obser-
são ainda maiores que as do cinema. Com efeito, em razão vação direta, quer dizer, o pesquisador convive um deter-
de sua capacidade de proporcionar, imediatamente após as minado tempo com a realidade abordada e reúne os aspectos
filmagens, uma leitura quase que infinitamente repetida dos que julga mais relevantes para os objetivos de seu trabalho.
assuntos filmados, a videografíaintroduziu um novo elemento O resultado dessa observação é, então, traduzido em lingua·
no processo de pesquisa, modificando sobremaneira a rela- gem escrita. A introdução das imagens animadas nesse me-
ção pesquisador/pessoas filmadas. Estas últimas podem canismo exige, como vimos, uma nova postura metodológica
agora participar mais efetivamente do desenrolar da investi- por parte do observador, postura esta que deverá conduzf-lo
gação, contribuindo, através da observação critica de suas a procurar respostas a questões tais como: de que maneira
próprias imagens, para o enriquecimentodos resultados. se procede a substituição do bloco de notas do observador
"tradicional" pela câmera daquele que chamamos de "pes-
quisador-cineasta? Quais são as diferenças metodológicas
Ora, a adoção de um suporte, distinto da escrita, no que diz do trabalho de um e de outro? Em que o potencial cognitivo
respeito à maneira de captar e de transmitir conhecimentos, das imagens animadas difere do potencial cognitivo do bloco
exige daqueles que dele se utilizam uma indispensável de notas?
adaptação às especificidades do novo meio. Se isto não
ocorrer nos depararemos com documentários nos quais há-
bitos da cultura escrita permanecem evidentes. Uma das OBSERVAÇÃO DIRETA/OBSERVAÇÃO FiLMICA
mais freqüentes manifestações desses hábitos é a redun-
dância do comentário em relação às imagens,'abundante so- Na observação direta, traduzida ulteriormente numa lingua-
bretudo em trabalhos destinados à televisão. gem escrita, o observador ê levado a apreender os momen-
tos mais explícitos do desenrolar da ação, muitas vezes em
Somente, pensamos, um questionamento rigoroso das impli- detrimento de aspectos subjacentes ou menos evidentes,
cações metodológicas que devem acompanhar a utilização mas que, freqüentemente, desempenham um papel impor-
das imagens animadas para fins de pesquisa poderá levar a tante para o conhecimento completo da atividade observada.
um aproveitamento completo de suas potencialidades. É Essa injunção resulta, entre outras coisas, das limitações
justamente nesse sentido que se situam os trabalhos da inerentes ao instrumental utilizado para levar a cabo a inves-
"Formation de Recherches Cinématographiques" da Univer- tigação. Com efeito, o pesquisador que, diante de um com-

22
portamento humano qualquer, só dispõe de papel e lápis para teria! recolhido, é preciso que este tenha sido apreendido de
registrar o que presencia, vê-se na necessidade de captar rio forma correta e que seu potencial cognitivo seja o mais amplo
hic et nunc as dimensões marcantes do processo observa- possível. Para tanto, o conhecimento dos diversos aspectos
do, pois, posteriormente, apenas poderá contar com sua resultantes da interação técnica-cinematográfica/atividade -
memória e suas notas escritas para interpretá-lo e descre- observada devem estar presentes no espírito do pesquisa-
vê-lo. Tudo isto se explica pelo fato de que a fase final do tra- dor-cineasta.
balho - momento em que as informações colhidas são defini·
tivamente tratadas - não se efetua mais no campo, e sim O primeiro desses aspectos, aquele do qual todos os outros
num contexto no qual a observação direta do assunto já não se depreendem, concerne a delimttação espaço-temporal
é mais possível. operada pela cinematografia no mundo material. Sabe-se,
com efeito que, através dos enquadramentos, da escolha dos
A apreensão fílmica não obriga o pesquisador a obedecer a ângulos e da duração de cada plano, o cineasta isola arbitra-
esses imperativos para que aspectos da atividade humana riamente fragmentos da realidade sócio-cultural obsevada. E
possam ser conhecidos e desvendados com profundidade. se dizemos "arbitrariamente" é porque, de fato, o cineasta
Perenizando os momentos mais fugazes ou marginais da pode propositadamente manipular os mecanismos da lingua-
manifestação estudada, permitindo assim sua análise rnlnu- gem cinematográfica para criar um produto que contraria a
ciosa e repetida, as imagens animadas oferecem ao pesqui- realidade objetiva na qual ele é calcado. É o que acontece no
sador a liberdade de diversificar sua observação sem que is- filme de ficção e em certos documentários. No entanto,
so aconteça em detrimento da inteligência de elementos quando se trata de utilizar as imagens animadas como ins-
constitutivos do processo pesquisado. É assim que certas trumentos de pesquisa, essa transformação da realidade de·
particularidades, às quais nenhuma significação especial foi ve obedecer a certos princípios para que o resultado obtido
atribuída, e cuja importância passou despercebida ou até foi seja fiel ao assunto estudado e permita uma melhor compre-
ignorada no momento das filmagens, revelam-se, quando da ensão de sua estrutura.
análise posterior das imagens, indispensáveis e decisivas
para um completo conhecimento do processo. Com razão, Este problema da delimitação espaço-temporal vai, todavia,
Jean Rouch observa que "Quando um ritual comporta um além do que foi dito até agora e convida-nos a expor algumas
grande número de ações simultâneas, um certo número de considerações complementares: a questão das "dominantes"
gestos podem parecer sem interesse, enquanto que outros e a da escolha do "fio condutor".
parecem mais importantes; ora, na análise das imagens per·
cebe-se que entre esses gestos, é o mais inaparente, o mais DOMINANTES
discreto, que é o mais importante"(5).
Contrariamente à descrição verbal e escrita, que permitem ao
Temos assim uma primeira grande diferença entre a pesqui- pesquisador oferecer ao seu interlocutor apenas os elemen-
sa tradicional e a pesquisa fílmica. Na primeira, a observação tos que privilegiou no decorrer da observação, as imagens
direta é o momento mais importante, enquanto que, na se- animadas captam uma amálgrama de elementos íncíssociá-
gunda, a observação diferida- quer dizer, a análise posterior veis. Diante dessa imposição própria a cinematografia, a dis-
das imagens e dos sons recolhidos - se impõe. tinção tradicional entre técnicas e ritos, proposta por Marcel
Mauss, foi revisitada à luz dos condicionantes da linguagem
Uma outra vantagem que o uso das imagens animadas ofe- fílmica. Concluiu-se que todas as atividades humanas, deli·
rece aos pesquisadores diz respeito a possibilidade que eles mítadas pela imagem, dividem-se em três tipos de técnicas:
têm de aprofundar seus conhecimentos - ou de elucidar ai· rituais, corporais e materiais(6), Nas primeiras, encontramos
guma dúvida - mediante a apresentação do material recolhi- as práticas religiosas, etiquetas sociais, cerimônias cívicas,
do junto às pessoas filmadas. Colocadas diante de seu pró- etc; das segundas constam todas as atividades onde o corpo
prio comportamento, elas podem descobrir detalhes que o é, ao mesmo tempo, agente e objeto da ação: ginástica, dan-
automatismo e a rotina não lhes deixam perceber quando tra- ça, certos esportes •.. ; finalmente, as técnicas materiais que
balham. remetem às múltiplas relações nas quais o indivíduo se en-
volve com os elementos materiais de seu meio ambiente.
A utilização das imagens videográficas é aqui de grande va-
lia, pois permite que esse "feed-back" ocorra imediatamente Não é inútil ressaltar que as fronteiras entre cada uma des-
após as filmagens. Alimentado pelo material recém-colhido, o sas técnicas são extremamente tênues e que, em muitos ca-
diálogo que se instaura entre o cineasta e as pessoas filma- sos, elas se recortam. Encontramos, por exemplo, nas técni-
das torna-se de inestimável valor para o estudo do compor· cas materiais, grandes doses de ritualidade, assim como nas
tamento humano. Fazem ainda parte dessa estratégia meto- técnicas rituais estão sempre presentes parcelas de técnicas
dológica os recursos próprios à projeção cinematográfica ou do corpo e materiais. Assim, tal classificação resulta apenas
videográfica, tais como: parar sobre uma imagem para anali· da maneira com que se dosam, no interior de um determinado
sar um detalhe; mostrar em câmera lenta uma passagem pou- comportamento humano, os elementos pertencentes à espe-
co clara; voltar atrás para rever um aspecto menos assimila- cificidade de cada uma dessas técnicas. Se numa manifes-
do, etc ••• tação se desenvolvem simultâneamente os três aspectos
Dizer que a etapa mais importante da pesquisa fílmica é a ( corporal, ritual e material) sempre um deles tenderá a pre-
análise posterior das imagens não significa, evidentemente, dominar, sendo assim considerado como "dominante". A ce-
que as filmagens sejam, em si mesmas, sem importância. Ao râmica é uma técnica a dominante material e a capoeira uma
contrário, para que se faça uma análise conseqüente do ma- · técnica a dominante corporal. Reconhecido isto, é óbvio que

23
o o
ceramista, para utilizar torno, terá que adotar uma série ci_dirá com a domina_nte da técnica estudada. O que não sig-
de gestos e posturas (técnicas do corpo). Da mesma manei- nifica que, ao proceder dessa marieira, deve-se deixar de la-
ra, a roda de capoeira faz uso de instrumentos musicais do os outros aspectos presentes na atividade. Esses apenas
(técnica material), além de ser uma manifestação portadora aparecerão de maneira menos insistente do que a dominante
de uma alta dose de ritualização. Não obstante, o que pre- que comanda o desenrolar da ação.
domina da cerâmica é a transformação da argila em objeto
decorativo ou utilitário (técnica material) e, na capoeira, a Levado constantemente a decidir o "onde" e o "quando" co-
evolução do corpo dos. lutadores no espaço (técnica corpo- meçar e terminar uma tomada, bem como os momentos a se-
ral). Resumindo, poderíamos dizer que o aspecto dominante rem privilegiados no continuum da ação, o cineasta deve
da atividade "é aquele que exprime sua finalidade principal e conhecer as características do desenvolvimento espaço-
cujo programa comanda seu desenrolar total"(7). temporal das diferentes técnicas. Cada uma delas oferece
uma diversidade de imposções e de opções de filmagem
Jâ que a imagem dissocia dificilmente essa imbricação de que irão condicionar sua estratégia fílmica. Em função do fio
aspectos, como fazer então para ressaltar o aspecto deseja- condutor escolhido, o cineasta irá enfatizar e atenuar ele·
do? A resposta encontra-se na estratégia de filmagem, ou mentes espedlicos daquilo que filma. Isso significa que ele
seja, no conjunto de artifícios cinematográficos através dos terá que fazer uso dos enquadramentos, dos ângulos, dos
quais o cineasta conduzirá seu trabalho. movimentos de câmera, da duração dos planos para atrair a
atenção do espectador, priorizando este ou aquele elemento.
A ESCOLHA DO FIO CONDUTOR Se, na apreensão de uma técnica material, o fio condutor
adotado for sua dominante material, o objeto sobre o qual se
Diante da multiplicidade de aspectos que reveste todo com- exerce a ação é erigido à condição de "protagonista da
portamento humano, o cineasta deve eleger aquele que irá ação", fazendo convergir sobre ele a maior parte da atenção
guiar sua observação ao longo das filmagens. Esse aspecto, do cineasta e, conseqüentemente, condicionando a escolha
chamado de "fio condutor", permite que o desmembramento, de suas delimitações espaço-temporais.
imposto ao continuum espaço-temporal, se realize de ma-
neira coerente e inteligível. Calcada na evidência de que "não Muita coisa resta a dizer sobre a metodologia do filme docu-
se pode mostrar uma coisa sem ocultar ou encobrir parcial- mentário e de sua aplicação na pesquisa antropológica. As
mente ou totalmente uma outra"(8), a escolha de tal fio con- considerações, acima expostas, constituem apenas uma rá-
dutor evitará os deslizes tão comuns aos neófitos da câmera pida mtrcdução a um assunto, cuja complexidade nunca po-
que, tentante mostrar tudo, acabam expondo uma ptetora de derá se esgotar no quadro de um artigo. Àqueles que dese- ·
manifestações dificilmente assimiláveis pelo espectador. jam aprofundar seus conhecimentos sobre os trabalhos da
"Formation de Recherches Cinematographiques", aconse-
A escolha do fio condutor deve levar primeiramente em conta lhamos vivamente a leitura do já citado livro de Claudine de
que a apreensão cinematográfica de um comportamento hu- France, "Cinérna et An!hropologie", bem como a publicação
mano qualquer caracteriza-se pela confrontação de dois sis- "Cinéma et Sciences Humaines", que reúne pesquisas ele· .
temas de apresentação: o do cineasta e o das pessoas fil- tuadas pelos membros da "Formatíon".
madas. Estas últimas agem de acordo com uma série de re-
gras definidas pelo processo no qual atuam. Levando ainda MARCIUS SOARES FREIRE
em conta que as pessoas filmadas têm consciência da pre- pesquisadore de cinema (Brasil)
sença do cineasta e se sabem observadas, podemos con-
cluir que, de uma maneira ou de outra, elas se "colocam em
cena". Ê a essa forma autônoma de apresentar-se que cha- Március Soares Freire
mamos de "auto-apresentação". Para penetrar eficiente- Doutor em Cinematografia
mente no continuum comportamental das pessoas filmadas, Universidade de Paris X - Nanterre
o pesquisador-cineasta deve procurar conformar seu sistema Membro associado da "Forrnation
de filmagem ao sistema de auto-apresentação do comporta- de Recherches Cinernatographíques"
mento observado. Para tanto, as melhores condições lhe se· da Universidade de Nanterre
rão oferecidas quando o fio condutor, por ele escolhido, coin- Professor do Departamento de Mullimeios • UNICAMP

24
ln this article, the author anatyses the reseercn film in its two Et autor enfoca su análisis en la pelfcula de investigación,
concepts: as the object andlor the instrument of investigation. contemplando sus dos caras: como objeto ylo instrumento de
in vestiqsciôn.
He detende the idea that a more specific methodofogy is nee-
ded wben producing animate images as instruments oi re- Propugna la idea de que es necesaria una metodologia mas
sesrcb. He thinks ove, the singularities of the direct observa- esoeomce para la producción de imã.genes animadas en
tlon, registered by the written fanguage - common to Anthro- cuanto instrumento de investígación. Reflexiona sobre ases-
pology - and of tne fifming observatfon paying attention to tne pecificidades de la observación directa, que registra et ten-
advantagens introduced by the videography in this process. guage escrito, corriente en la antropologfa, y las de la obser-
vación fflmíca, subrayando tas ventajas que en dicho ptoceeo
introduce la técnica dei vídeo.

NOTAS

(1) É bom lembrar que antes dos Lumiêre "inventarem" o cinematógrafo, Edíson já havia desenvolvido e explorado comercialmente seu Kinetoscópio (es-
pécie de grande caixa, provida de um visor através do qual um único espectador podia assistir ao espetáculo das imagens animadas). No entanto, o
sistema de iluminação da película era deficiente e não permitia a projeção sobre uma tela de grande formato.

(2) BRIGARD, Ernilie de, The History of ethnographlc film, pp. 13·43, in Paul Hockings (Ed.), Principies of visual anthropology. La Haye, Mouton, 1975.

(3) LEROl·GOURHAN, André, Clnéma et sclences humalnes. Le film ethnographlque existe-t-11?, in Revue de géographie humaine etcrethnologie,
n'l 3, pp. 42-51, 1948.
(4) FERRO, Marc, Cinéma et histolre, Paris, Denoel/Gonthier, 1977.

(5) ROUCK, Jean, Le film ethnographlque, pp.429-471, in Jean Poríer(Ed.) Ethnologie Générale, Paris, Gallimard, 1968.

(6) FAANCE, Claudine, de, Clnétna et anthropolo gle, Paris, Editions de la Maison des Sciences de L'Homme, 1982.

(7) Claudine de France, ibid.

(8) FRANCE, Xavier de, "Loi d'exclusion paníeíte ou totate", ln, Elements de scénographle du clnéma, Prépublications de la Formation de Recherches
Cinématographiques - Université de Paris X - Nanterre.

25
REGISTRO VISUAL E MÉTODO ANTROPOLÓGICO
CLAUDIA MENEZES

A interdisciplinaridade entre a Antropologia a fotografia e o lação à produção da época, por estarem eles voltados ao
cinema tem sido verdadeira raridade no meio científico brasí- exame da tipologia popular, de indígenas e mestiços, trabalho
leiro, embora nos últimos anos venha crescendo o intercãrn- realizado em várias expedições que os conduzem entre 1840
bio entre pesquisadores e especialistas da imagem. Este e 1866 às províncias.
quadro não é característico apenas da etnologia indígena
mas da antropologia social como um todo, quer esteía dire- Com a popularização da fotografia na Europa amplia-se o
cionada ao estudo do campesinato ou dos segmentos urba- mercado para produtos caracterizados pelo exotismo. oeor-
nos. ges Leuzinger é um dos que empreendem ensaios fotográfi-
cos paisagísticos e inclui em seu roteiro regiões bem mais
Recordemos, inicialmente, que o registro visual desde a sua IOngínquas,como o vale dos rios Madeira e Mamoré, onde
criação técnica - o daguerreótipoem 1839 e a câmera foto- busca imagens na rica flora e fauna e nos povos indígenas.
gráfica dez anos depois - esteve associado a uma postura
inquisidora frente à realidade social, atitude que caracteriza No entanto, a memória visual das sociedades indígenas bra-
também a investigação etnográfica. sileiras, enquanto procedimento sistemático de obtenção de
imagens fixas e em movimento, é iniciada somente em 1890
Esta perspectiva conduziu Stanley (John Míx) a obter as pri- por Cândido Mariano Rondon, - militar e positivista atuante -
meiras fotos sobre indígenas,em 1853, nos Estados Unidos, que chefia a Comissão de implantação de linhas telegráficas
retratando o avanço da linha férrea sobre o território dos Pés no centro-oeste e norte do país.
pretos (Bíackíoot). Tais registros em daguerreótipos,de ines-
timável valor histórico, se perderam. Concomitante ao processo de abertura de estradas conside-
radas estratégicas para a ligação entre Mato Grosso e o
Na década de 70 do século passado os indígenas voltaram a Amazonas, são realizados levantamentos e pesquisas na
ser objeto de interesse por parte de fotógrafos enviados para área da botânica, geografia e mineralogia, bem como lança-
o oeste, a medida em que a fronteira econômica norte-ameri- dos os fundamentos ideológicos e administrativos do indige-
cana se deslocava. Detectar a mudança foi, uma vez mais, a nismo de Estado, concretizados na organização do Serviço
principal motivação para o desenvolvimento de um trabalho de Proteção aos Índios em 1910.
sistemático de registro da imagem.
O acervo visual da Comissão resultou da contribuição de
William H. Jackson, Hillen e S. Curtis realizam, assim, im· uma equipe de fotógrafos e cinegrafistas integrada por Leduc,
portante documentação de caráter antropológico, marcada José Louro, Charlote Rosenbaurn, Lyra, Cel. Joaquim Rios,
pela proposta de produzir "fotografias de salvamento", ou Hamilton Botelho de Magalhães e o Major Luís Thomaz Reís,
seja, de preservar aspectos das culturas nativas ameaçadas que atuaram junto às expedições no períodode 1890 e 1938.
pelas frentes de colonização.
Muitos dos grupos indígenas retratados no período o foram
No Brasil o processo de registro da realidade nacional resul- em primeira mão, uma vez que coube aos militares iniciá-los
tou de movimento inverso. O segmento da sociedade brasi- no convívio permanentecom o meio regional.
leira a ser fotografado inicialmentefoi a elite econômica e po-
lítica citadina. Senhores de engenho, comerciantes e seus Em 1912 Roquette-Pinto fixou as primeiras imagens em mo-
familiares são o tema preferido dos "poríraits" dos daguer- vimento dos Nambiquara e fotografou os Pareci da Serra do
reotipistas europeus, de diferentes nacionalidades,chegados Norte, material que ilustra o seu livro clássico "Rondônia". Na
ao país na década de 40. mesma data o Major Reis filmou Os Sertões de Mato Grosso;
em seguida registra a expedição científica liderada por Theo-
As lígações com o interior eram praticamente inexistentes e doro Roosevelt (Expedição Roosevelt - 1914). Dois anos
as viagens apresentavam inúmeras dificuldades, particular- após obtém raro documento da vida cotidiana e cerimonial
mente devido ao peso e à fragilidadedo equipamentofotográfi· dos Bororo do Rio São Lourenço (MT). Ronuro, Selvas do
co. Os artistas preferiam fixar-se no litoral, onde conviviam Xingu (1924), realizado entre junho e novembro, acompanha
com a burguesia local dos grandes centros como Rio de Ja- a exploração do Rio Ronuro. Parima, fronteiras do Brasil e
neiro, Salvador e Recife. As obras fotográficas de Marc Fer- Viagem a Roraima, ambos de 1927, enfocam as regiões de
rez e a de Louis Agassiz constituem vertente peculiar em re- fronteira com a Venezuela e Guianas. Com Inspetoria E. de

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Fronteiras encerra-se o ciclo de filmes etnográficos, regis- seleção de aspectos culturais críticos, portanto, de um tipo
trando a atuação missionária salesiana . na região do alto Rio de procedimento na feitura de documentação fotográfica e
Negro. fílmica que possibilite a realização de filmes-fonte ou filmes-
memória.
Esta extensa e inédita, documentação, fOmica e fotográfica,
contém a memória de inúmeras sociedades indígenas: as lo- Esta produção perde muito da sua razão de ser, se não for
caü zadas no centro, nordeste e sul do Mato Grosso; as que utilizada para fins educativos, através de programas pedagó-
habitavam as cabeceiras do Rio Xingu e de seu fundador, o gicos especiais que supõem a aplicação de modelos capa-
Ronuro, bem como as que viviam ao longo do Araguaia e do zes de analisar o mundo cultural, bem como pelos Museus
Olapoque, Um terceiro conjunto de imagens cobre aspectos antropológicos, que necessitam do apoio de recursos audio-
culturais de grupos do vate do rio Trombetas e do seu visuais para desempenharem plenamente o seu papel de di-
afluente Cuminá, além dos que viviam nos vales dos rios Jari, vulgadores de conhecimento.
Negro e Branco.
Uma outra questão a ser destacaoa, de caráter epistemológi-
Este esboço de cronologia - certamente incompleto - revela co, é a da objetividade/subjetividade no cinema, fundamental
a existência de uma produção que elege a indianidade como na própria concepção do que vem a ser um filme científico,
tema central mas que se realiza de modo pouco sistemático um filme documentário, um filme etnográfico, um filme mono-
e adota perspectiva descritiva. Podemos definí-lo como a gráfico, um filme-reportagem, um documentário ficcionado.
pré-história do registro visual no país, no que se refere às Está implícito ar um problema de seletividade (o que filmar,
populações indígenas. como filmar) ligado à discussão que opõe empirismo (visão
positivista do mundo) a uma proposta de análise hermenêuti-
Mesmo agora, apesar do desenvolvimento da comunicação ca da realidade.
no Brasil, a antropologia visual enquanto campo de reflexão,
voltado à adequação e aplicação dos princípios teóricos e Jean Rouch, a partir de sua própria experiência de antropólo-
metodológicos próprios da ciência antropológica aos meios go-cineasta (ou será o inverso?), defende a idéia de através
de registro de imagem e som nas áreas da documentação, da subjetividade chegarmos à objetividade científica. Esta vai
pesquisa e ensino, não conseguiu firmar-se com campo autô- ser testada e comprovada no momento em que o filme é pro-
nomo. Certamente não é por falta de objeto. A diversidade jetado para os que foram retratados. Eles é que irão dizer se
cultural do Brasil é um fato sociológico indiscutível. Estamos a "sua" realidade foi ou não devidamente desvendada. Reto·
numa parte do mundo que vive a última possibilidade de de· ma-se, assim, a relação entre cinema e audiência anunciada
vassamento de fronteiras internas, cujo processo tem colo- por Canudo, que enfatiza o contexto no qual um filme é exibi·
cado a descoberto grupos humanos até então desconheci- do e analísado: dependendo da problemática vivida por uma
dos e que apresentam formas de experimentação cultural comunidade esta pode identificar-se com o resultado fOmico
peculiares e únicas. ou rejeitá-lo.

Ainda assim podemos estabelecer alguns pontos que são Chegamos, assim, a um problema teórico de base que é a
considerados, consensualmente, como fundamentais para a construção do objeto a ser investigado e que inclui a discus-
emergência desta sub-disciplina: são sobre o método adotado pela antropologia visual.

- O primeiro deles é a importância da antropologia visual pa- Ê indiscutível que a questão da subjetividade permeia as
ra detectar as transformações das sociedades humanas, ciências sociais, colocando-se, sobretudo, para o trabalho de
especificamente para o processo de fixação e memoriza- campo e a investigação científica que enfocam culturas es-
ção dos universos sociais em vias de desaparição, nota· tranhas à tradição cristã ocidental.
damente as sociedades pré-letradas e os segmentos cam-
poneses, enfim, as sociedades tradicionais. Geerts acredita se possível encontrar uma via para superar o
impasse entre uma postura "a la Malinowski", que exige a
- Toda e qualquer discussão referente a grupos étnicos, pesquisa participante, cuja marca registrada é a empatia do
mecanismos de identificação étnica, dinâmica de mudan- cientista com o meio a ser observco. e os grandes modelos
ça, tradicionalismo, relações entre economia de subsís- abstratos, que incorporam elementos anantlcos em conformi-
tência e modo de produção capitalista são matéria-prima dade com a tradição teórica da semiologia.
por excelência da antropologia visual.
Para tanto propõe que se detecte o "texto" existente em cada
- Esta colocação conduz diretamente a outra. Os adeptos cultura particular, do qual existem versões que poderão ser
da etnografia e do filme etnográfico encontram tanto na fo- contrastadas e comparadas através de formas simbólicas
tografia quanto no cinema um meio e um instrumento de facilmente observáveis. A ponta do véu cultural pode ser le-
pesquisa e buscam fazer co filme uma fonte de dados que vantada mediante a identificação de categorías eleitas por
registrem a história humana. Se propõem, assim, a usar cada grupo social, através das quais este se auto-reconhe-
a imagem como dado bruto e constituir com ela arquivos ce.
comparáveis aos arquivos de documentação escrita.
Esta proposição metodológica nos parece útil quando se trata
A defesa deste tipo de enfoque e de trabalho implica numa de definir indicadores para uma abordagem analítica da ima-
concepção do que seja a coleta de dados, de critérios para gem, tendo em vista que a antropologia visual constitui uma

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sub-disciplina capacitada a apreender e . fixar manifestações vos estudados recuperarem a sua auto-imagem, reafirmando
simbólicas, mesmo quando estas se mostram pouco com· a sua identidade diferencial frente à totalidade social.
preensíveis.
-$ta "Antropologia da devolução" caminha para um novo
Devemos acrescentar a estas considerações a dimensão modelo de ação, que visa contribuir para a instrumentaliza-
política da antropologia visual, o papel da militância e do en- ção destas populações no uso de recursos visuais de modo
gajamento que tem caracterizado, nos últimos anos, a atua- a formar índios, camponeses e operários como realizadores.
ção do antr~ólogo e a produção fOmica etnográfica nacional.
É preciso não esquecer, finalmente, que os filmes enquanto
No Brasil, a produção de imagem tem se colocado a serviço produtos simbólicos interferem na dinâmica social, são parte
da luta de libertação das populações étnicas indígenas e das do processo pelo qual as culturas tanto podem ser homoge-
classes subalternas, o que pressupõe uma clara oposição às neizadas e descaracterizadas quanto estimuladas a recupe-
formas de dominação econômica, política e ideológica ex- raro seu potencial criador.
pressa, esta última, no processo que nos acostumamos a
denominar de violência simbólica.

Deste modo o registro e a investigação têm sido realizados CLAUOIA MENEZES


de modo a contemplar mecanismos que possibilitem aos po- Antropóloga (Brasil)

This etticle presente a bríef chronology on the relationship Este artículo presenta breve cronologia de la historia dei rela-
botween researchers and image specialists when recording cionamento entre pesquisadores y especialistas de ímágen
Brazilian reality, special/y the indigenous documentation. en eJ registro de la realidad brasllefía, en especial en lo que
se refiere a la documentación ind{gena.
ns maín interest is to discuss the concept of visual enthropo-
Jogy bringing out points considered fundamental for the ep- Tiene como su mayor interés discutir el concepto de antro-
pearing of this sub-discipline, also proposing specific working pologia visual, levantando puntos considerados fundamenta·
tes para la emergencia de esta suo-disciplina, además de
methodology.
proponer metodologfa especãice de trabajo.
Concluding, ít calls attention to tne mílitant character ot en-
thropologists and of tne own national 'ethnographical filming Finalizando, vá 1/amar la etenciõn para e/ carácter militante de
proâucüon of the lat years, thinking over the concept of "Re- antropólogos y de la propia prooocciõn fflmica etnográfica na-
turning Anthropology". cional de los últimos anos, refleccionando sobre el concepto
de "antropologia de la devo/ución".

BIBLIOGRAFIA

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Kossoy, Boris - Origens e Expansão da Fotografia no Brasil

Scherer, Joanna - lndians - Smithsonian lnslitution - Ridge Press Book/Crown - Publishers INC N.Y

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O CINEMA ANTROPOLóGICO E A AUTOGESTÃO INDÍGENA
ISABEL HERNANCEZ

1 - INTRODUÇÃO Esta é uma das principais razões por que o presente artigo
tenta relacionar dois temas poucos trabalhados e de interes-
Ao contrário da maioria dos 'países latino-americanos, a Ar- se recente na realidade cultural da Argentina de hoje: por um
gentina abriga uma proporção mínima de população autócto- lado a técnica do cinema antropológico como tendência rela-
ne (menos de 2 por cento). A origem desta realidade se en- tivamente nova em nosso meio (3), de singular criatividade e
contra em diferentes polnicas genocidas e práticas etnóci- múltiplas possibilidades dentro do cinema documentário, por
das. Por conseguinte temos, por um lado, grupos aborígenes outro lado a metodologia da autogestão indígena como uma
cuHur:,!mente arrasados e isolados entre si, sobrevivendo estratégia válida tanto para que nossos povos aborígenes
assegurem sua identidade e consigam se auto-representar
nos confins de nosso território, suportando as condições de
social e culluralrrente perante o resto do país, como para que
existência mais precárias que a sobrevivência de qualquer
o conjunto da sociedade argentina encontre e assuma unifi-
grupo humano possa aceitar, e por outro uma sociedade
cado de suas esquecidas raízes culturais.
centralizada, cujo nível de vida é melhor que o da maioria dos
países do continente, mas cuja identidade nacional se auto-
Torna-se sem dúvida um desafio refletir sobre ternas tão es-
privou da sorte de se enriquecer com a multifacetada baga-
pecíficos como novos. paro em seguida chegar a definir uma
gem cultural das etnias nativas.
relação entro eles que à primeira vista pareceria não existir,
ou que poderia, e obviamente pode, admitir outros termos. Por
Poderia acontecer, e seria benéfico, que com a institucionali-
exemplo: por que não relacionar o cinema antropo'óçico com
zação do país comece o tempo polftico de reconhecer erros
qualquer outra realidade, e não apenas com a indígena?
históricos, de trabalhar no desenvolvimento da consciência
crítica, e de lutar para remediar o remediável. Por outra parte, As páyinas a se0uir na verdade colocam inúmeras questões
porém, e à margem dos processos futuros, é mister conside-
desta natureza, porque somos conscientes da maior riqueza
rar que os objetivos estratégicos, de longo prazo, já foram ni- que pode oferecer um texto que problematize os temas, co-
tidamente explicitados pelos principais interessados (1): por
mo incentivo para o início de estudos mais profundos e de
um lado defende-se a integração social igualitária de aboríge-
rr ais fôlego.
ne à sociedade argentina, por outro visa-se a um enriqueci-
mento cultural mútuo de ambas as sociedades (a minoritária
Começaremos então descrevendo os parâmetros da atual
indígena e a majoritária não-indígena).
relação entre os rovos aborígenes e a sociedade argentina
(Seção li), para esclarecermos o papel da autogestão indíge·
Diante de tal colocação, e a partir do limitado ponto de vista na e dos cientistas ou trabalhadores sociais (em sentido
das ciências sociais, seria o caso de perguntar: qual é opa- amplo) que a apóiam.
pel que cabe ao documentarista, ao intelectual, ao artista.
educador, cientista ou trabalhador social comprometido pro- A seguir tentamos conceituar os processos de autodetermi-
fissional ou ideologicamente com a sociedade aborígene e nação e autogestão (Seção 111), e avançamos em direção a
com um conceito de nação multiétnica e culturalmente inte- urr.a, nova metodologia de trabalho social, mais participativa e
grada? ..• Pensamos que deveria lançar mão de todos os aberta ao uso de diferentes meios não convencionais.
meios, métodos, técnicas e instrumentos de sua especialida-
de que considere capazes de auxiliá-lo na busca dos obíe-
tivos estratéyícos mencionados, mas como simples interme- Depois nos concentrarros nas possibilidades práticas do ví-
diários, ou seja, seu verdadeiro trabalho deveria consistir na deo e do cinema antropológicos cerno instrumentos auxilia-
descoberta da forma de pôr criativamente tais meios nas res, com valor e potencialidades singulares quando do nas-
cimento e desenvolvimento de um determinado processo de
mãos dos próprios protagonistas, de uma cultura como de
autogestão, visando à autodeterminação das etnias nativas
outra.
(IVª e última seção do artigo).

A este nível, no contexto indígena, tanto os métodos de auto- Para terminar, queremos externar nossa esperança de
gestão como algumas técnicas não convencionais de pes- que este trabalho seja útil aos documentaristas, antropólogos
quisa participativa (papel que o cinema antropológico pode e cientistas sociais de maneira geral que pretendam descre-
desempenhar muito bem), nos parecem caminhos válidos ver, pesquisar e divulgar a realidade indígena en nosso país.
(2), e praticamente inexplorados. Mas sobretudo para os que são conscientes de que a socle-

29
dade colonizadora privou o índio de sua própria personalida- Para os povos aborígenes este pode ser um tempo e um es-
de cultural, de seu sentido de ser perante a "civilização" e, o paço fundamentaispara levantar a bandeira co legfiimodireito
mais grave, do exercício de sua iniciativa. de participar socialmente err pé de igualdade.

Por fim, esperamos ser úteis àqueles corr quem nos solidari- E óbvio que não estamos diante de um desafio próprio de
zamos, os que tentam, ou tentarão num futuro próximo, ser uma determinada conjuntura polltica, Nossa responsabilidade
admitidos numa comunidade nativa, com a profunda convic- corno nação é histórica, devido à essência indoamericana
ção de serem servidores, facilitadores, propiciadores de uma que povoa os ríncões mais afastados da Capital Federal.
tarefa coletiva e não meros "fornecedores de civilização e
cultura". Aos que lutam consigo mesmos para modificar pa- Se a meta a longo prazo (expressa, come dissemos, pelos
lavras e gestos urbanos, que decifram códigos incompreen- próprios povos aboríger.es) é mobilizar a sociedade nacional
síveis para o índio, ou que, no pior dos casos, os apresentam err relação à realidade indígena, procurando transformar
ao aborígenes com a imagem daquele "branco, huinka ou suas instituições por meio de uma ação que facilite a integra-
ahatay" que surge em suas recordações, justificando a des- ção social igualitária do índio à comunidade . argentina, não é
tribalização ou provocando o extermínio de seu povo. menos necessário - se não imprescindível - iniciar esta ta·
rela histórica imediatamente.Caso contrário, a oísserranação
li - OS POVOS INDÍGENAS E A SOCIEDADE dos comportamentos etnocidas e a ruína do habitat aborígene
AHGENTINA tornarão irreversível a situação de extermínio. Isto significa,
para todos os argentinos, assumir a necessidade dos povos
Nosso território abriga 15 dos 410 grupos étnicos que ainda autóctones de serem acompanhados em sua gestão de de-
hoje habita m no continente. Quase meic milhão de índios ar- senvolvimento econômico, de participação política e de re-
gentinos sobreviveram ao genocídio da Conquista e da Colô- nascimento cultural.
nia e às matanças indiscriminadas dos governos republica-
nos do século passado e do atual. Na motivação e no desenvolvimento desta tarefa cabe um
papel fundamental, sem dúvida, aos próprios povos indíge-
As páginas de nossa história que tentaram consolidar a "civi- nas. São eles que deverão fazer ouvir sua voz e, através de
lização" com a "barbárie", que pretenderam definir de forma seus canais tradicionais de comunicação e consulta, mobili-
unilateral nossa identidade nacional, tiveram que ocultar aos zar as bases de cada corr:unidade nativa para atingir tais
olhos do futuro os episódios bélicos mais indignos e oprobío- metas.
sos que, na verdade, consolidaram submissão do índio.
Mas já afirmamos que seria pouco fecunda uma ação da so-
Assim chegamos ao momento atual: a hora do etnocídio,que ciedade indígena, se a sociedade não-indígenanão assumis-
também se tentou e se tenta esconder. Comete-se etnocfdio se o compromisso do des-preconceito racial e cultural.
ao combater a consciência de pertencer a uma minoria na-
cional, quando se cala a palavra de um covo pronunciada em Eritão por onde começar? Qual o papet das instituições na·
sua própria língua, e quando se nega a um determinadogrupo clonais em sentido mais amplo, nesse início de profunda re-
racial e culturalmente diferenciado o direito a desfrutar, de- novação de comportamentos? Qual é o caminho, a instância
senvolver e transmitir sua própria cultura. organizacional que propiciará uma ação conjunta e eficaz,
capaz de resgatar experiências passadas e aperfeiçoá-las.
Nossa sociedade aprendeu a inscrever o desenvolvimento Óu de coordenar as atuais e enriquecê-las? Neste sentido,
de seu ser nacional no cenário multifacetado de uma cultura qual o papel dos agentes institucionalmente vinculados ao
de imigrantes, e a elevada proporção de "classe média" que mundo indígena, dos trabalhadores sociais (em sentido am-
a compõe (que em sua maioria desconhece o mundo índio, plo) comprometidos com ele?
mas é precocemente envolvida nas práticas de discrimina-
ção e no preconceito ajuda a reforçar um comportamentoet- Para resolver tais questões acreditamos ser de bom alvitre
nocida para com nossas populações autóctones. começar esclarecendo alguns conceitos.

A Antropologia, disciplina desenvolvida em nosso meio de


forma relativamente tardia e parca, e por outro lado incapaz Ili - AUTOC·ETERMINAÇÃOE AUTOGESTÃO
de se desvencilhar de sua origerr: colonialista, contribuiu para INDÍGENA
a arnpfiaçâodesse fenômeno.
O conceito de autodeterminaçãose refere às decisões de um
Nos últimos tempos, e paralelarrente ao nascimento de uma grupo humano auto-identificado (uma classe social, um po-
prorressa de democracia e maior participação social, parece- vo) durante o processo de se tomar sujeito de sua própria
ria ter começado a surgir entre nós uma certa preocupação história. No caso das minorias nacionais é um direito inalie-
por conhecer, e em alguns casos por assumir, nossas raízes nável, e no entanto reiteradamente desrespeitado pelas so-
culturais. Tal atitude se expressa, na sociedade não indígena, ciedades envolventes, baseadas no jogo poílucode uma cor-
por meio de um relativo interesse pelo problema. A indígena, relação desigual forças.
em troca, se .expríme por urna tentativa muito incipiente de
romper a tática de silêncio, procurar canais cs auto-recre- Por sua vez, a autogestão é a concretização metodológica,o
sentaçãc e alcançar algumas instâncias de organização já exercício orgânico desse direito, ou seja, a expressão orga·
existentes ou fundar outras. nizada dos fatores distintivos de pertença.

30
Autogestão não é participação. Esta última se refere à ad- Talvez, como diz Cotombres (10), trate-se essencialmente de
missão de determinado grupo humano ao desenrolar de urna "devolver a antropologia a sua vítimas" (embora em sentido
atividade que já existente tem vida própria, a partir de um mais amplo que o antropólogo citado e suas atividades espe-
sentido de ser que outros já lhe imprimiram. Também não im- cíficas).
plica a cogestão, nem a cooperativização, nem o controle de
base (4). No capítulo seguinte propomos uma forma viável para tanto.
Por isto nos referimos exclusivamente à organização social
No seio das etnias autóctones de nosso país, a autogestão é indígena da Argentina atual e a algumas de suas característi-
entendida como o instrumento de interferência e ao mesmo cas.
tempo de aprendizagem no exercício da autodeterminação
que deve necessariamente orientar as atividades concretas
Sabendo, como dissemos, que existem relações de interde-
da produção, a auto-representação polfiica, a saúde, a edu-
pendência entre as duas sociedades, delimitaremos, com um
cação, etc. de cada comunidade e de cada grupo étnico.
fim meramente analüico, o "sujeito-objeto" de nosso estudo:
um modelo de autogestão numa reserva ou agrupação indí-
As instâncias de autogestão podem estar a nível comunitário,
gena, um caso-tipo. Como em toda tipologia, sua característi-
zonal, regional, nacional e inclusive internacional (5) e atuar
cas dificilmente aparecerão de forma pura na realidade, mas
isolada ou paralelamente em diversas áreas, como os pro- nos parece válido descrever seus traços relevantes, para en-
cessos de autogestão a nível econômico, político, sanitário, riquecer nossa análise.
educacional, cultural, etc.
Passemos então à apresentação desse modelo.
É evidente que o fato de nos esclarecermos a respeito dos
fatores de identificação e diferenciação dos povos aboríge-
nes nos leva a definir sua situação de classe social, sua IV - VÍDEO E CINEMA ANTROPOLÓGIGOS,
consciência de pertencer a um grupo étnico diferenciado (em INSTRUMENTOS EFICAZES DA AUTOGESTÃO
termos raciais e culturais), sua identidade nacional e o grau CULTURAL
de conflito interétnico hoje registrado.
A. Uma comunidade indígena tipo: os agentes internos e a
Não enveredaremos aqui, obviamente, na explanação des- autogestão
ses temas, pois extrapolam os objetivos do presente artigo, e
por outra parte já foram alvo de análise nossa (8). Será difícil encontrar tarefa mais complicada que a de tentar
descrever uma comunidade indígena tipo em qualquer país
Admitiremos apenas, para demarcar o estudo do caso, que a
da América Latina, e mais ainda em nossa Argentina pluriét·
condição étnica sobredetermina a de classe, e que os aborí-
nica.
genes sofrem desqualiíicações próprias de sua diferença ra-
cial e cultural, que se somam às discriminações comuns da
Consultaremos fichas e anotações de trabalho de campo, lan-
classe social explorada à qual pertencem.
çaremos mão de recordações, antigos registros e encontros
com pastores do norte, agricultores mapuches, lenhadores
Assim, o caminho da libertação do indígena passa necessa-
do chaco, e sempre surgirá uma pergunta difícil de respon-
riamente pela tomada de consciência de sua situação de
der: qual é o denominador comum, o núcleo homogeinizador
classe específica (camponês pobre, sub-proletário marginal,
das comunidades aborígenes do norte andino, da Serra de
etc) (9), bem como da de sua condição de diferenciação étni-
Formasa ou do Chaco, da floresta de Missiones, dos pampas
ca (sentimento de pertencer a um povo racial e culturalmente
da província de Buenos Aires, dos planaltos de Patagonia ou
distinto, o que não implica necessariamente conflito de leal·
da Cordilheira de Neuquen?
dade para com o ser nacional argentino).

O debate, a partir das bases, desses e de outros pontos re· Como conseqüência da discriminação (6) - obstáculo histó-
lativos às necessidades das comunidades autóctones estará rico à auto-representação dos povos indígenas - e do recuo
configurando na prática um processo de mobilização cultural dos movimentos populares com um todo em nosso país nos
permanente, e é nesse processo que, como dissemos, ul- últimos anos, foram se enfraquecendo as instâncias interme-
trapassa as fronteiras das reservas ou das agrupações nati- diárias de organização autogestionária indígena. Subsistiram
vas, que o cientista ou o trabalhador social, respeitoso da de forma isolada e conílitiva por um lado os níveis mais tradi-
autodeterminação e da autogestão dos aborígenes, deverá cionais de autogoverno comunitário, e por outro os grupos
acrescentar seu trabalho de acompanhamento e aprofunda- superestruturais pouco representativos, geralmente urbanos.
mento das reivindicações do povo autóctone.
A autogestão cultural foi também uma das formas adotadas
Por todos esses motivos, definimos os processos de auto- com mais freqüência, provavelmente porque a resistência
gestão indígena (sejam quais forem seus níveis de desenvol- cultural, apesar de sua efitividade e de ser combatida do ponto
vimento e as áreas ou atividades que organizem), bem como de vista ideológico, acabou sendo uma das alternativas de
a ação dos trabalhadores sociais que a apóiem como a linha luta menos reprimida em temos drásticos. Não deixa de ser
estratégica prioritária a ser reforçada neste momento históri- curioso, mas nos ocorre que em virtude da maioria dos go-
co, considerando os dois objetivos apontados em páginas vernos autoritários, a cultura pode se sentida como menos
anteriores (referentes a ambas as sociedades). importuna que a polfiica (7).

31
Seja como for, não são formas independentes, e o mais pro- lavra. Por isto será lento e paciente, como veremos adiante,
vável é que, diante de uma realídade tão plurifacetada como o labor de um trabalhador social (em sentido amplo) que che~
problemática, o fato de promover a autogestão cultural impli- ga a uma comunidade e ali pretende acompanhar um proces-
que, cedo ou tarde, na inauguração de um processo de auto- so participativo ou autogestionário. O tempo adquire outras
gestão política, econômica, etc. dimensões no mundo indígena.

Os conceitos de autodeterminação e autogestão que esta· O fato do índio dessa comunidade tipo que estamos tentando
mos desenvolvendo se complementam com os de auto-re- desenvolver ser astuto ou aparente sê-lo também é um dos
presentação perante a sociedade gfobal e participaçáo das motivos por que sabe escolher de forma mais ou menos ex-
bases indfgenas {democracia interna) na comunidade nacio- plícita seus representantes (aquele homem de sua confiança,
nal, respectivamente. Sem isto os povos aborígenes nunca que tala como ele). Queremos dizer que, conforme o grau de
conseguirão definir a natureza reivindicatoria de sua presen- organização comunitária, pode acontecer que determinados
ça perante uma sociedade global que os desconhece e de- nativos se destaquem, mas o fato é toda a comunidade reco·
grada. nhece em seu seio dois, três ou mais integrantes que - ge·
ralmente por seu melhor desempenho perante "os de fora"
Por sua vez, sem estes dois aspectos fundamentais, a so- em defesa dos interesses "dos de dentro" - são líderes con-
ciedade argentina correria o risco de reduzir problemas so- sagrados, e esta figura pode ou não coincidir com a do caci-
ciais a manifestações folclóricas, ou ignorar a história de for- que, do compadre, do chefe familiar, etc.
ma acrítica, deixando-se envolver por novas utopias de natu-
reza indigenista. Este tipo de líder natural, personagem singularmente impor-
tante na descrição de nossa comunidade - tipo, será aqui
Não existe, por certo, pois estamos falando de povos, histó- chamado de agente interno emergente (que pertence à co-
rias e culturas diferentes. Mais que denominador comum, po- munidade e nela vive, como qualquer outro membro da comu-
demos apontar características que adjetivam, sem chegar a nidade, e por sua vez se destaca e emerge como um líder
decifrar certas peculiaridades substantivas. reconhecido por todos).

É assim que a tentativa de universalizar nos conduz ao ca- Eles serão os promotores ou animadores da organização, o
minho do concreto, e então acontece descrevermos uma germe de qualquer processo autogestionário, e o traço de
comunidade-tipo começarmos a relatar a chegada a uma união entre a comunidade indígena e os agentes externos,
aqrupação, reserva, redução ou comunidade indígena (con- que, respeitosos da idiossincrasia autóctone, concordem em
forme a região) e dizemos que começamos a caminhar por apoiar, promover ou incentivar qualquer tarefa visando a re-
uma terra pobre, escassa, e produtivamente marginal. A terra forçar a organização do povo índio.
(o habitat) que para o aborígene não é um bem econômico
Eles falam em sua própria língua aos componeses aboríge-
mas um espaço para a vida, se reduz ao mesmo ritmo em
nes, interpretam suas intenções e pontos de vistas, e por
que a família se multiplica. A montanha é devastada, as cer-
outra parte se apropriam e lhes transmitem mensagens, téc-
cas deslocadas, os animais transferidos, o curso da água
nicas e conhecimentos provenientes do mundo não cornuni-
modificado.
tárío dos quais, em determinados momentos, possam ser.
(receptores), desempenham também o papel de emissores e
Essa terra se apresenta diante de nossos olhos povoada de
podem chegar a transmitir a sociedade não indígena o valor e
casarios precários, mais ou menos preservados segundo o
as dimensões de cada uma das normas ideológicas e cultu-
clima, mais ou menos afastados um de outro conforme a
história e os costumes de cada povo. rais de seu povo.

Nessas moradias vivem homens e mulheres que trabalham,


Mais adiante descreveremos a função desses agentes-inter-
criamos filhos, comunicam-se entre si em sua própria língua,
nos-emergentes num processo de autogestão cultural de·
aprendem, esquecem, criam, destróem, riem, choram: em
senvolvido a partir da utilização de técnicas de cinema e ví-
suma, que vivem e querem sua terra e tudo que nela cresce,
deo. Passemos agora à descrição dos outros agentes com-
não como propriedade privada, pois tal figura jurídica dificil-
mente terá equivatemente numa cultura indígena, mas como plementares, os externos à comunidade aborígene.
uma forma de garantir a continuidade de sua existência.
8. Os agentes externos e a lei de comptementariedade:
Preservando suas tradições, unidas ou desunidas, com ve-
lhos litígios e desavenças ou sem eles, organizadas ou des- Numerosos são os organismos, instituições ou entidades que
membradas, em número médio muito difícil de estipular (de- em nosso país participam em maior ou menor medida da vida
pende da região), as famílias que habitam essa terra consti- de uma reserva ou agrupação aborígene, sejam eles estatais,
tuem o que aqui chamarmos de "comunidade indígena". internacionais, eclesiásticos e privados, com ou sem orienta·
ção religiosa.
Os séculos de dominação e de expropriação ensinaram a
esses integrantes da comunidade indígena que a desconfian· Com objetivos explícitos muito diversos {evangelizar, acultu-
ça e o silêncio são aliados e defensores de sua identidade e rar, capacitar, educar, etc.) e orientações diferentes (autoritá-
de sua sobrevivência como povo. Por isto o índio é calado e ria, paternalista, participativa, etc.), grande número de repre-
escuta muito tempo o forasteiro antes de pronunciar sua pa- sentantes de agências de natureza tão variada tentaram e

32
tentam aproximar-se de uma comunidade tipo como a que gestionârios e de pesquisa participativa, e comprometidos
acabamos de descrever. com a realidade argentina e indígena.

Trata-se de um fenômeno amplo, que se dá em todos os paí- É óbvio que aqui, como em qualquer contexto de trabalho,
ses do continente com população aborígene. Numa pesquisa surgia elementos desmobilizadores, portadores de ideologias
anterior (11) que se referia exclusivamente à educação de devastadoras da cosmovisão e da cultura aborígenes, mas es-
indígenas adultos, analisamos 40 programas em países da colhemos como cenário de nosso modelo de autogestão
tndoamérica, e ar detectamos a presença de 86 instituições e cultural e para a apresentaçao do perfil de nosso agente ex-
mais de 5.000 agentes. Talvez seja interessante destacar que terno, basicamente os profissionais conscientes e imbuídos
das entidades que coordenavam as experiências educativa de espírito que descrevemos acima. Serão nossos coptote-
pouco menos de 27,5% eram estatais, e 22,5% privadas sem gonistas, os portadores de uma mensagem externa de mobi·
orientação religiosa quer dizer a metade da .amostra (os 5% lização. Aqui serão chamados de agentes externos tipo (que
restantes) fala da presença das diferentes igrejas com poder não vivem na comunidade nem a ela pertencem).
de decisão nas organizações (15 por cento}, ou bem das de
tipo privado mas com orientação religiosa (35 por cento). Os O agente externo desempenha uma função de complementa·
organismos internacionais não exerciam funções de coorde- riedade com o agente lnterno (já mencionado na seção ante·
nação, apesar de sua grande interferência a nível financeiro. ríor), e vale a pena insistir sobre a importância e a necessi-
É provável que tais proporções tenham tendência a se repetir dade desta ação complementar, pois caso contrário os pro-
em nosso país. cessos de crescimento e de mobilização cultural das comu-
nidades nativas ficariam presos num círculo vicioso, sem o
Qual seu desempenho? Qual sua polüica em relação a índio? enriquecimento de uma bagagem de conhecimentos díteren-
tes, sem elementos de comparação diante das manifesta-
Que influência têm sobre a população autóctone? Qual seu ções ideológicas e culturais próprias do representante da so-
grau de respeito pela autodeterminação das comunidades ciedade não indígena, e, por fim, sem a necessária transfe-
nativas? Em seu conjunto, a ação doses afjentes é uma in- rência tecnológica, cuja mera presença motivará uma impor-
cógnita que até agora não produziu resultados altamente po- tante instância de reflexão, desde que aja sem imposições
sitivos no que tange à melhoria no nível de vida das popula- e falsas atitudes paternalistas. Não se trata de promover um
ções indígenas argentinas. processo de acufturação. Trata se de que a comunidade abo-
rígene aceite o empréstimo cultural, ele se apropria para sa-
Por outra parte, é evidente que praticamente não existe uma tisfazer suas necessidades e o transforme na medida dos
relação estreita e permanente entre os representantes des- objetivos visados. Quando estas condições forem preenchi·
sas entidades, que lhes permita compartilhar experiências das, estaremos diante de uma ação autogestionária, para
afins, nem uma entidade ou associação que as reúna, apóie cuja concretização é necessário, emora não imprescindível,
ou planeje as tarefas comuns a partir de critérios aceitos por o cumprimento da norma de complementariedade de que fa-
todos e de eficácia comprovada. lamos.

A situação de falta de coordenação e isolamento é até maior Aqui estamos nos referindo a uma comunidade aborígenes,
entre os agentes que trabalham sem nenhum respaldo insti- mas apenas para completar estas idéias, e como mostra o grá-
tucional, situação muito disseminada durante a ditadura mili- fico abaixo diremos que um agente interno indígena se
tar, devido a discriminação ideológica, o corte no orçamento transforma em agente-externo quando entra, por sua vez, pa-
dos programas sociais (12). ra a comunidade não-indígena (em que reside e a qual não
pertence) e cumpre da mesma forma um papel mobilizador
A existência de um organismo de coordenação das mais di- cultural externo quando, por exemplo, participa de um debate
versas intenções empreendidas no âmbito indígena aumenta- de divulgação cultural, ou da projeção de um filme (como
ria a influência de cada programa, economizaria esforços, uti- protagonista ou debatedor), de uma exposição de artesanato
lizaria melhor os recursos, unificaria critérios, permitiria que popular para expor e explicar os trabalhos produzidos em
se aprendesse com a experiência indireta, e o mais impor· uma comunidade, etc. Em cada um desses círculos transmite
tante, criaria as bases para a formulação e a implementação as manifestações ideológicas e culturais de sua própria etnia,
de uma política de integração igualitária de indígena à socie- enquanto representante de seu povo e divulgador de sua
dade nacional (13). cultura. Ao mesmo tempo, é ocioso afirmar que aquele que
num contexto indígena desempenho o papel de agente exter-
No que tange ao tema deste artigo, sublinhamos a irnportãn- no aqui se transformou em interno. Vejamos o gráfico:
eia de que uma seção de tal organismo coordenador fosse
dedicada à divulgação e à ação culturais voltadas para os
SOCIEDI\DE INDÍGENA SOCIEDADE NÃO INDJGENA
meios de comunicação, às técnicas de vídeo e cinema antro-
pológicos como instrumentos de autogestão cultural.
(") agente agen,cex,emo n~cnte
1 lntem<> <E----3> (nâ<> lndlgena) <E:- - - - - - - - lnt«nO
(Indígena) ~ agemo extenw ~ (não ln~locna)
Isto nos permitira, num prognóstico otimista de médio prazo, (IO<llgcna)
dispor de equipes . interdisciplinares de profissionais (antro-
pológos, educadores, cientístas e trabalhadores sociais em
geral, documentaristas, cineastas, etc.) caoacítados de forma (") Em ambos os casos (internos ou externos} nos referimos a agentes
homogênia em técnicas propociatorias de processos auto· emergentes.

33
Insistimos na figura do agente externo como um pesonagem- da autodeterminção e das atividades concretas da cultura
chave, um facilitador, que vai favorecer o processo de auto- numa comunidade tipo como a que descrevemos.
gestão indígena, a reiteramos que, para assegurar sua eletí-
vidade, ele deveria agir no quadro de um.planejamento dirigi· Vejamos agora como podera ser desenvolvida uma ação que
do e garantido economicamente por um organismo governa· integrasse os conceitos formulados até aqui à atuação con-
mental. junta de aqentes externos e internos (de agora em diante A·E
e A-~). e os resultados que poderia ter tal ação.
Vejamos a seguir como se conjugariam as ações dos agentes
internos ou comunitários emergentes e dos agentes externos O esboço de um modelo:
(equipe interdisciplinar: documentaristas, antropológos, edu- Uma equipe interdisciplinar (não mais de 6 membros) chega
cadores, cientistas e trabalhadores sociais em geral, etc.) no à comunidade tipo, previamente orientados e capacitados para
contexto da comunidade indígena tipo que descrevemos e a missão que pretendem cumprir. Prevêm alojar-se ali du-
motivados pelo uso de uma técnica: vídeo e cinema antropo- rante dois ou três meses (de todo modo isto é imprevisível,
lógicos. pois como já dissemos o tempo adquire outras dimensões no
C, u vídeo e o cinema antropológicos em mtios de agentes mundo indígena). Antes da viagem entraram em contato
externos e internos: com alguns líderes naturais (A-li emergentes), consultando-
os para saber se a visita ê conveniente, sobretudo conside-
O documentário cinematográfico, e em particular o antropoló- rando fatores clímaticos e do processo produtivo (período
gico, é um instrumento válido para descobrir (14), registrar posterior' a, colheita, tosquia, poda, etc.). A comunidade, por-
e divulgar as mais diversas manifestações de uma cultura vi· tanto, estará a par da chegada dos visitantes, e, em linhas
va. gerais, de seus objetivos.
O grau de efetividade que poderá atingir o desempenho de
Os A·E viajaram equipados com uma unidade móvel e vídeo
cada uma dessas funções vai depender, por certo, da ex-
(1 câmera; 1 cassete e um sistema de visão), e um gerador
pressividade, da dramaticidade e da força mobilizadora obti- (caso a comunidade não disponha de fonte de energia elétri-
das pela linguagem das imagens filmadas. Estas qualidades
ca própria).Respeitando as normas de organização e estrati-
até agora dependeram do cineasta, de sua capacidade pro-
ficação interna, a equipe, acompanha por um ou dois A-1 da
fissional e criativa, de sua intenção pol/tica e do comporta·
reserva ou agrupação farão visitas domicliares a cada uma
mento mais ou menos etnocêntrico que o guia, quando sua
das famílias componesas aborígenes que a compõem.
lente é confrontada com traços de uma cultura que não lhe é
própria.
Em cada visita se apresentarão e darão a conhecer aos inte-
grantes da comunidade o objetivo e a metodologia própria da
Dissemos até agora porque na medida em que a figura do missão que os leva até lá. Será proposta uma discussão co-
"cineasta" consiga se coletivizar e em que as culturas subju- letiva a respeito da necessidade da mesma, escolhendo-se
gadas (até o momento objeto de filmagem") se transformar para tanto de comum acordo com todos um lugar e uma data
em sujeitos gestores do registro cinematográfico de sua pró- de reunião mais ou menos imediata. Os A-1 trabalharão para
pria realidade, é óbvio que estaremos diante de parâmetros garantir o comparecimento ao encontro.
muito diferentes.
No dia da reunião, a discussão será feita pelos próprios abo-
Por outra parte, muita coisa foi dita pelos cientístas sociais a rígenes, com certeza em sua língua, na presença dos A-E (e
respeito do cinema como auxiliar de pesquisa, do ponto de se for necessário em algum momento, fora dela) o sentido da
vista de nosso tema devemos dizer que as técnicas de pes- proposta formulada.
quisa participativa, aliadas incondicionais da autogestão cu!·
tural, podem e devem se valer do vídeo e do cinema antro- A comunidade pedirá à equipe externa toda a informação que
pológicos com lreqüencia. precisar para tomar decisões. Os A-E começaram a atuar
como facilitadores, propiciadores e transmissores de certos
A pesquisa participativa nas ciências sociais (segundo ou- conhecimentos técnicos, apenas os que forem solicitados
tros autores e, sobrtudo, em outros contextos históricos, pela comunidade reunida.
também chamada de pesquisa-ação e pesquisa operacional
ou mobilizadora (15), foi capaz de introduzir uma mudança Os líderes emergentes (A·I) começarão, com certeza, como
metodologica fundamental: a tradicional relação entre o su- delegados implícitos dessa assembléia virtual, a definir uma
jeito pesquisador (função que no nosso caso poderia ser relação de maior aproxímação com os A-E.
cumprida pelo que chamamos aqui de "agente externo"), e o
obíeto pesquisado ("agente interno") se modifica a tal ponto O intercâmbio de informação e opiniões entre os integrantes
que ambos se tornam atores combinados que pesquisam sua da comunidade e os A·E, mediado pela presença ativa dos
própria realidade, com o objetivo explícito de transformá-la, A-1, irá crecendo e se tornando mais flexível, até o momento
modificando assim o rumo de seu próprio destíno histórico. em que, após uma ou duas reuniões abertas, os aborígenes
-se decidam quanto a seu verdadeiro interesse em desenvol-
Neste contexto, o vídeo e o cinema antropológicos constituem ver por um lado um trabalho em conjunto que incorpore o as-
elementos mobilizadores da pesquisa participativa auxiliar da sessoramento dos A·E, sem temor de que os interesses co-
autogestão cultural (16), que como dissemos, é a ferramenta munitários possam ser tolhidos, e por outro lado um labor que
de interferência e ao mesmo tempo aprendizado no exercício beneficíe diretamente os habitantes aborígenes.

34
O benefício da experiência que os A-E propõem será por rnentáríos em questão. Tal comparação será baseada tanto
certo discutido pelo conjunto da comunídade, a partir de crité- em descrições de agrupações ou reservas da mesma zona
rios de tipo econômico (custo e beneficio), político-orqantzan- ou grupo étnico, como de outras distantes e diferentes de
vos (possibilidade de fortalecer sua própria organização e nosso território, e também de outros países, sejam elas expe-
conseguir que os critérios preponderantes sejam os da maio- riências em áreas urbanas ou rurais, indígenas ou não indí·
ria dos membros da comunidade), culturais e educativos (se genas. A seleção e a localização deste material cinernatotrá-
lhes será permitido aprender e enriquecer-se internamente, fico serão feitas com o apoio e o assessoramento da equipe
oferecendo, ao mesmo tempo ao resto da sociedade conhe- central do organismo coordenador nacional. Os temas filma-
cimentos sobre sua própria comunidade), etc. dos deverão ir se aproximando gradativamente da realidade da
comunidade, e se possível deverão chegar a mostrar o desen-
É possível que o balanço final se resuma numa decisão ne- volvimento de outros processos autogestionários, em parti-
gativa da parte dos aborígenes em relação à conscretizaçâo cular em áreas indígenas: as conquistas, os percalços, as
da experiência proposta pelos A-E, em cujo caso estes se reti- condições de tempo e espaço, os fatores desmobílizadores,
rarão da comunidade, respeitando a decisão dos habitantes. enfim, os momentos de um processo que tenham sido docu-
Caso contrário, se dará por inaugurada a experiência, serão mentados por diferentes cienastas, e que valha a pena anali-
analisados os detalhes das etapas iniciais, e será discutida sar e discutir num debate de espectadores afins.
com todos a metodologia a ser aplicada.

É importante esclarecer que tanto numa situação como na A função dos A-E se limitará nesses momentos a explicar de
outra o resultado fala de uma tomada de posições, trata-se de forma didática e o mais simples possível os procedimentos
um produto momentâneo diante de um processo autogestio- técnicos que possibilitam filmar um documentário como os
nário (idéia de diferentes instâncias dentro de um determina- projetados na ocasião. na medida do possível, estas explica-
do processo). ções serão acompanhadas por uma demonstração prátíca
utilizando alguns dos aparelhos da unidade móvel.

Retornando à seqüência projetada, e no caso da realização


da experiência contar com a aprovação majoritária, a comu- Após várias noites de projeção e debate, e a medida que os
nidade designará seus representantes (A-1) para se encarre- A-C: vão se incorporando a vida da comunidade, colaborando
gar de determinadas tarefas práticas de organização, e os durante a labuta do campo, aprendendo com os pastores,
que demonstrem mais interesses em receber uma capacita- lenhadores ou artesãos técnicas autoctones e trabalho
ção técnica específica serão designados para acompanhar r.ianual, irão desenvolvendo pontos de contato com os habi-
os A-E em suas tarefas de organização e disposição dos tantes da comunidade, compartilhando certos temas de uma
instrumentos e do material cinematográficos. cultura viva que pretendem descobrir e documentar em con-
junto, para depois divulgar a outros grupos sociais.
A comunidade indíyena em seu conjunto decidirá então qual é
a problemática específica de sua reserva ou agrupação que Logo chegará então o momento de filmar, e a maior ou menor
lhe interessa documentar e divulgar, e com certeza solicitará participação aborígene nas filmagens dependerá, logicamen-
aos A-E o máximo de informação possível sobre outras ex- te, do tipo de relação estabelecida entre os A-E e os mora-
periências semelhantes. Esta será uma instância valiosa pa- dores, da flexibilidade de ambos e da proximidade dos A·l
ra o aprofundamento e a sistematização do conhecimento mais comprometidos com o trabalho a ser realizado. Depen-
que a comunidade possui sobre si mesma (início de uma derá também da experiência do câmera (18) de sua capaci-
pesquisa participativa). Ao mesmo tempo, será a oportunida- dade de transmitir uma determinada técnica, da complexlda-
de de planejar a próxima reunião, com a finalidade de proje- de do registro proposto e de outras tantas variáveis a possibi-
tar para as famílias reunidas os filmes mais relacionados com lidade dos camponeses filmarem sua própria realidade, ex-
a realidade vivida pela comunidade tipo. primindo seus próprios critérios estéticos e prioridade temáti-
ca (19).
Os A-E e os A-1 que externaram o interesse de aprender a
colaborar com determinados aspectos técnicos ajudarão a Por motivos de custo e velocidade de produção não há dúvi-
preparar artesanalmente, no lugar mais convenientes dos da de que é mais conveniente trabalhar com a técnica do ví-
casaríos, a sala ou pátio de projeção. Pensamos em docu- deo: só em termos de material virgem e processo de labora-
mentários em 16 mm adaptados para o vídeo, pois conside- tório, um filme de 16 mm de 30 minutos custa aproximada-
ramos que nesse formato existe abundante filmografia de ex- mente US$8.000. Um cassete de vídeo da mesma duração
celente cuaíidade sobre a problemática aqui proposta (17). custa em torno de US$30. Quanto ao tempo, uma unidade
Eventualmente, caso a unidade móvel disponha de um pro- móvel e vídeo pode entregar um produto terminado em cerca
jetor de 16 mm, poderia ser evitada a transposição ao vídeo, de 15 dias, e coisa difícil em 16 mm, mesmo multiplicando o
com a vantagem oferecida pela projeção em tela grande prazo por dez. Estamos evidentemente pensando em via-
diante de grupos numerosos. Em todo caso, o ideal seria gens de controle, discussão cm os habitantes da comunida-
combinar as duas técnicas de projeção. de; introdução de modificações na montagem. etc.

Os temas dos filmes deverão ser amplos o bastante para Por outra parte, as imagens do monitor simultâneo e a possi-
que, utilizando-se técnicas de dinâmica de grupo adaptadas bilidade de regravar que a técnica de vídeo oferece nos suge-
ao contexto, consiga-se comparar circunstâncias da vida co- rem mais capacidade didática para o tipo de trabalho aqui
tidiana da comunidade com a realidade aborda nos doeu- proposto.

35
A escolha . do tema suas seqüências, a forma de expressá-lo, derão da· dinâmica que tenham atingido as relações estabele-
e inclusivea montagem do trabalho diante da autora, se cidas entre os A-E, os A-i e os outros membros. Por outro
transformarão em instancias -de trabalho permanentemente lado, a . comunidade escolherá seus representantes para
compartilhadas com a maioria dos indígenas da comunidade, acompanharem a projeção do filme em outros sítios indígenas
a
e com presença cada vez mais destacada dos A-1 direta- ou em salas da Capital e do interior do pars.
mente envolvidos nos aspectos técnicos. Uma vez terminado
o filme, outra vez a toda a comunida reunida opinará sobre Concluímos assim a descrição do modelo, e nossa contribui-
sua realização: a autenticidade des colocações e sua capa- ção. Para terminar queremos dizer apenas que o nosso mo-
cidade de refletir a realidade. Avaliará igualmente o trabalho do de ver uma sociedade assim motivada e incentivada à
realizado, os· êxitos e fracassos, o aprendizado, a. relação autogestão, à participação e ao jogo de opiniões é uma so-
suryida entre os A·E e todos os integrantes da. comunidade, ciedade envlvída de fato num processo de mobilização cultu-
em suma: a resposta que cada um conseguiu dar às neces- ral. Só num terreno com tais características pode começar a
sidades de um trabalho coletivo dessa natureza. germinar a lenta e esperançada estratégia de equiparação
cultural, sem imposições sociais nem desvalorizações étni-
Tais discussões serão, por sua vez, filmadas e acrescenta- cas.
das no documentário, para que, como instrumento de divul-
gação, o filme reflita também a opinião daqueles que o fize- Buenos Aires, fevereiro de 1984.
ram sobre si mesmos e sobre o que foram capazes de pro·
duzir.

Os A-E se retirarão da comunidade discutindo os possíveis ISABEL HERNANDEZ (Argentina)


níveis de continuidade do trabalho empreendido, que depen- antropóloga

Et punto de partida de ta autora de! articulo es ta relación ac- ln thís article, the author stsns from lhe description of the mo-
tual entre los puebfos índfgenas y la sociedade argentina. deis of today's refation between lhe indigenous peoptes and
Luego reflexiona sobre et papel de fa autogestión indfgena y the Argentinean society; begining to think over the rote of the
de los cientfficos ideologicamente comprometidos coo dichos indígenous selfgovemment and oi the sciemists ideological/y
grupos. línked to these groups.

Ar trabajar fos conceptos de autodeterminación y autogestión, Working with the concepts oi selfdetermination and selfgo-
ef articulo propugna una nueva metodologia de trabajo social vemment, the erücte totesees a new methodology of a more
más participativa. participative social work,

Se analisan las posibilidades práctivas dei video y dei cine The practical possibilities of me anthropotogícaf video and ci-
anteropológicos como instrumentos de apoyo ai desarroflo nema are anafysed while auxifiary instruments in the deve-
dei processo de autodeterminación de las etnias autóctonas. lopment ot the selfdetermination process ot the native nations.

36
( 1) Resoluções do primeiro Congresso Índio Argentino, Buenos Aires, 12115 de setembro de 1983., por la Jiberación dei indígena. Documentos y tesumo-
nios, prologo e notas de Adolfo Colombres, Ed. Dei Sol, Buenos Aires, 1975., hacia la autogestion indígena. Documentos, compilação e prologo de A. co-
temeres, Quito 1977, etc.

(2) Baseamo-nos em nossa própria experiência de participação em processos de autogestão indígena (ver bibliografia), e em excelente experfencias de
criação e divulgação cinematográfica dessenvolvidas por grupos de vldeo e cinema dentro e fora do país, como Testimonio (Argentina), lotus (Chile); Centro
de Capacitación Campesina (Peru). Visando uma maior participação temos as experiências pioneirs de Edgar Morin e Jean Roche com Chronique d'un été,

(3) Fernando Birri filmou em 1956/58 Tire Die. Ouanto a Jorge preíorán, embora também tenha começado a filmar (A lastres), pode-se dizer que sua obra
cinematográfica adquire o caráter de documentário antropológico só a partir de 1966, comPumamarca Ttepicnes ceseros, Las Rondas de Vai/e Fértil, etc,
época em que surgiriam também cineastas como Óscar Kantor (Los Juncueros, Tierra Seca), R aymundo Gleyzer ou Nemseio Juárez (Muerte y Pueblo ).

(4) A análise de cada um desses conceitos ultrapassa nossos objetivos. O leitor interessado pode consultar. CORNEL10, Lucio, lntroducción a la Autoges·
tión, Coleção Autogestión, eo. EI Cid. Número 1, Buenos Aires, 1978.

(5) "Asocíacíón Indígena de la República Argentina" (AIRA) tem representantes no Conselho Mundial de Povos Indígenas (Word Council or lndian Peo-
ples), sediado no Canadá e com escritórios na Europa, Oceania, América Central e do Sul.

(6) Ver Hemandez, Isabel. Discriminación étnica en el externmo e extremo sur da América latina. Clacso, Buenos Aires. Dezembro de 1978.

(7) Ver Hernandez, Isabel. La identidad étnica en contextos socio-políticos de represion y autoritarismo, aportes-geral (aportes geral, Santiago, Chile
1984.)

(8) Ver HERNANDEZ, Isabel, Los tnoios y te Antropologfa en la Argentina, in ,'UNQUEIRA C. e CARVALHO E., Los índios y la Antropo/ogfa en América dei
Sul, Buenos Aires, abril de 1984. Também HERNANDEZ Isabel, Corciencie da America y educación indfgena. in Teorts yPráctica de la Educa-
ción' IDRC, Ottawa, Canadá, agosto de 1983.

(9) Ver HERNANDEZ, I, Los índios y la Antropologfa ea.; op. cit, E po/iación económica y prejuici, pp. 17 e ss.

(1 O) COLOMBRES, Adolfo, LA HORA DEL 'PÁRBARO', Bases para una antropotog(a social de apoyo, Premia Editora, México, 1982.

(11) HERNANDEZ, Isabel, Conciencia étnica y Educación de Adultos lndfgenas en América Latina, Relatório final IDEC. Ottawa, Canadá.

( 12) Esses agentes merecem um reconhecimento especial por seu trabalho de todos estes anos. Tem que superar todos os obstáculos do meio, buscar os
recursos necessários, junto a fontes diversas (geralmente exrerns), enfrentar a concorrência da burocracia oficial, privada ou eclesiástica e as divergências
pol rtlcas de seus opositores e de muitos colegas. Apesar de todas essas circunstâncias pouco favoráveis continuam desenvolvendo uma tarefa criativa e de
compromisso com a libertação do indígena e o enriquecimento cultural de nosso sociedade.

(13) Trabalhamos esta idéia durante anos até lhe dar forma e publicá-la no começo do atual período de governo democrático ("Carta abierta a la Argentina
no-indígena", Jornal Ctarín, 5·1 • 1984). Pág. 24 Cont.). Pensamos na criação de um instituto popular a aborígene. entidade que, com nome e funçõs simi-
lares, existe em praticamente todos os países da índoamérlca. Propunhamos e continuaremos propondo que tal instituto por um lado opere com suostdlos
do Estado e, por outro, tenha capacidade executiva autônoma. Suas funçõs básicas seriam pesquisar, coordenar e divulgar a presença da cultura indígena
na cultura do povo argentino, e vice-versa. As condições para criação do lstituto parecem existir: sua orientação, o quadro teórico-metodológico, os recue-
sos humanos, a consciência de sua necessidade, os germes de organização em áreas indígenas e não-indígenas estão dando sinais de certa maturidade
e viabilidade. O que ainda não parece corresponder a esta realidade, apesar das gestões neste sentido, é a tomada de decisão a nível governamental (Mi·
nistérlos, Sub· secretarias, Secretarias de Cultura, Diretoria de Aborígenes, etc., tanto a nível nacional como provincial). Para exprimir eficazmente a função
de coordenação, promoção e dinamização das culturas autóctone no seio da sociedade argentina, esta entidade deveria contar também com um corpo
consultivo onde encontrem eco, voz e voto os aborígenes agrupados em organizações de base verdadeiramente representativas, bem como os represen-
tantes dos mais diversos setores da socíeda nacional trabalhem por, com ou para o indígena, associados em instâncias organizativas de diversos tipos.

(14) Descobrir no sentido de localizar e delimitar imagens dentro da dinâmica complexa de um tempo e um espaço dados.

(15) Ver VIO CROSSI F;, GIANOTTEN V. DE VIT T, etc, tnvestiqeciorr participativa y prexis rural, ed. Mosca Azul, Lima, 1981, GAJARDO, Marcela, "Evolu·
ción, siíuacion actual y perspectivas de las estregias de la investigación participatia en América Latina", in Teorfa y Práctica de la cducación Popular, IERC.
Ottawa, Canadá, agosto de 1983.

(16) Um exemplo singutar é o material filmográfico do "Centro de Capacitación Campesina" da Universidade Nacional de San Cristóbal de Huamanga
(Peru), produzido ao longo de um paciente trabalho de pesquisa participativa e autogestão cultural (1980 até a presente data, ver VIC GROSSI. HOTTEN
V., etc. po, cít)

(17) Ver, por exemplo, catálgo do "Fendo nacional de las Artes".

(18) Calcula-se que um câmera precisa de pelo menos dois anos de experiência para estar à altura de uma linha de trabalho como a proposta aqui. É óbio
que não pensamos que um camponês possa fazê-lo em dois meses, longe disto. O que importa é que consiga ir se apropriando da tecnologia, compreen-
dendo sua racionalidade e perdendo o medo de ter acesso a ela.

(19) No Chile, por exemplo, uma equipe do Grupo de lnvestigciones Agrarias (G!A} iniciou no verão ce 1982 um grupo de índios maouches de Cautrn, nu-
ma experiência baseada no uso de câmeras fotográficas. O primeiro resultado foi um audiovisual plenamente eeuzado e montado pelos aborfgenes em que
o tema principal de cerca de 80 por cento das imagens é a terra (os estábulos e os campos semeados) e já no final surgem duas ou três camadas incoroo-
=
rando os nativos, junto de suas casas ou em suas terefas agríoolas. É evidente que para esses mapuches (rnapu terra; che = gente), o núcleo de sua
cosmovisão (a terra) predominou sobre qualquer outra organização temática possível.

37
O SABER E O SABOR SE CRUZAM NO CASAMENTO
ENTRE CINEMA E ANTROPOLOGIA
SELDA VALE DA COSTA

UM FRUTO HÍBRIDO: O FILME ETNOGRÁFICO "mudanças culturais", "modenizaçâo tecnológica" são os no-
vos estímulos para o fillme etnográfico: os africanos em Pa-
Antropologia e Cinema possuem as condições idelais para ris, as comunidades indígenas no mercado de trabalho, os
um casamento harmonioso, com frutos que enriqueceriam chicanos na Califórnia, etc.
ambas as áreas. O cinema é percebido, geralmente, como
o lugar privilegiado do depositário simbólico e a antropologia Por volta de 1970, a Antropologia, principalmente a européia,
como a área do conhecimento que se preocupa fundamen- centra seu olhar para a produção simbólica do mundo capita-
talmente com o uníveso simbólico das sociedades. lista. As profundas consequências do desenvolvimento da
indústria cultural, manifestadas nas alterações de comporta-
Entretanto, cinema e antropologia nem sempre foram bons mento e consumo, na expressão de novas aspirações e no
companheiros na difícil viagem cultural. Breves aproxima- fluir de novas percepções, atraem a atenção e o interesse de
ções geraram um fruto hlbrido: o filme etnográfico. Rejeitado antropológos que, ao lado de estudiosos de outras áreas -
por ambos, cresceu ao bel-prazer das aventuras coloniais. Psicanálise, Lingüística, História, Sociologia - passam a es·
Acarinhado por projetos "cíentítlco-humanltarístas'' de insti- tudar o fenômeno artístico como produto de um processo so-
cial, que expressa determinadas visões de mundo. A ênfase
tuições governamentais e particulares, universidades e rnu-
seus - o Museu do Homem, em Paris, produziu, com Jean dada à arte como bem cultural e como manifestações ideoló-
Rouch, mais de 100 filmes sobre a África-, o filme etnográfi- gicas de uma determinada época, coloca para a Antropologia
co alimentou-se e fortaleceu-se através das imagens dos a questão do espaço privilegiado do imaginário coletivo. E o
países colonizados. Com tão vasta e rica matéria-prima - a cinema é, por excelência, esse espaço. Os filmes passaram
"diversidade cultural", objeto tradicional do olhar antropológi- a ser "lidos" não apenas como documentos, ou "retratos" de
co-, o filme etnográfico tornou-se um inesgotável filão de ri- um povo ou de uma época, mas como "construções artlsti·
cas imagens para a Europa e para os Estados Unidos, pos- cas carregadas de energia e significação", como depositários
síbilitando inclusive o aparecimento de parentes pobres, os das possibilidades truncadas, como espaço do "oculto", do
filmes tipo "mundo cão", Em contrapartida, incentivou os fil· "diverso", como expressão de um novo ritual simbólico.
mes argelinos pós-descolonização e os belos e recentes fil-
mes africanos de Sembéne Ousmane. Em síntese, a Antropologia vem mantendo com o Cinema
pelo menos três tipos de relações:
O filme etnográfico foi a primeira, e por muito tempo a princi-
pal, mas não única, possibilidade de aproximação €ntre & - O cinema como fonte documental para os estudos de
Antropologia e o cinema, registrando as atividades de Etnólo- campo do etnólogo - o filme etnográfico.
gos e viajantes em expedições científicas. O campo de reali-
zação cinematográfica era o mesmo em que se encontrava o 2 - O cinema como produção simbólica, inserida em deter-
objeto tradicional da Antropologia, as chamadas "Sociedades minadas relações de produção - a tnaústne dos so-
Primitivas", onde vivia aquele ser negado pelo olhar ociden- nhos.
tal, sintetizado no desabafo indignado de Condominas (1979):
"iletrado, analfabeto, alógico, pagão, simples, inferior, arcaico, 3 - O cinema, e principalmente os filmes, como oecosnenoe
exótico, tribal, não evoluído, não desenvolvido, sem história, e produtores do imaginário coletivo, como campo do
sem cultura, sem Deus, sem fé, sem lei, sem mercado, sem poético, dos sonhos e das esperanças coletivas oculta·
moeda, sem problemas, sem isto, sem aquilo e sabe Deus das.
sem mais o que ainda e, para acabar a enumeração, primitivo
e selvagem". Essas relações não são pacíficas. São relações de conflito,
de parte a parte. Na Antropologia como no Cinema encon-
Com o processo de descolonização e a consequente crise tramos rejeições e resistências a esse intercâmbio.
da Antropologia, houve o deslocamento de seu objeto de es-
tudo, que passou, em parte, para o mundo ocidental indus- O FILME ETNOGRÁFICO: O OLHAR
tnalizado, O cinema, entretanto, continuou a ser utilizado pela DO COLONIZADOR?
Antropologia nos mesmos moldes anteriores. Agora, a cãrne-
ra enfoca os "grupos minoritários", "os grupos camponeses" Em suas pesquisas de campo o Etnólogo utilizava a escrita
dentro do espaço ocidental. Os estudos sobre "Aculturação", como seu principal meio de registro das observações colhi-

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das diretamente junto ao grupo pesquisado. São os diários de sempre um campo perigoso, e a acusação maior é que as
campo. Neles, registra suas impressões pessoais, descreve análises movidas por estas preocupações perdem de vista a
o ambiente físico-cultural, com ilustrações pictóricas e foto- especificidade do cinema... procuram constatar nos filmes
gráficas inclusive, e recolhe a fala do grupo. Essa visão pes- aquilo já conhecido na anãüse da sociedade". No último Sim-
soal, registrada na escrita, começou a sofrer críticas do pósio Nacional de História, em Curitiba, os organizadores do
ponto de vista da objetividade. O cinema aparece então como curso Cinema, Cidade e Crise, confessavam: •. "o olhar (do
meio capaz de registrar as observações mais "objetivamen- historiador) se recusa a penetrar no interior da organização
te", "neutralizando" a interferência do pesquisador, ao mes- ffimica, contentando-se com a manifestação exterior da ima-
mo tempo que facilitava a exposição de seus resultados a um gem·."
público mais vasto.
ANTROPOLOGIA FÍLMICA
Os cine-jornals, as atualidades cinematográficas mundiais,
os chamados documentários enchiam as telas em todo mun- A defesa do filme etnográfico se prende às possibilidades
do. O cinema estava em toda parte, registrando, informando descobertas peta câmera cinematográfica e ao novo olhar do
e divertindo. Por que não na Antropologia? Seu uso nas pes- antropólogo em direção ao seu objeto de estudo. Essa es-
quisas de laboratório, nas pesquisas de campo e em expedi- perança no valor da utilização do filme etnográfico é comparti-
ções científicas é estimulado: universidades e museus pas- lhada por cientistas e cineastas europeus e também por seus
sam a financiar as filmagens. Ao lado do fotógrafo, segue colegas do "Terceiro Mundo", principalmente os novos ci-
agora o cinegrafista. E os filmes começam a ser vistos tanto neastas africanos. Afirmam que o filme etnográfico, mais que
pela comunidade acadêmica como por um público ávido de qualquer outro gênero cinematográfico, pode revelar os mo-
imagens do "exótico". As reações não se fizeram esperar. delos culturais das sociedades; pode oferecer importantes
São criticados como documentários enfadonhos, parados, informações que escapam à Antropologia escrita, como ima-
sem valor estético. A comunidade científica fica dividida. De gens de atividades que combinam espaço, ritmo e movimen-
um lado, reforça-se seu valor como documento, como meio to: rituais, operações tecnológicas, gestos, sorrisos, olha-
de divulgação de usos e costumes de povos "distantes", res •.. E concluem: mesmo que a imagem nunca possa a vir a
como meio que contribuiria para a quebra do etnocentrismo e substituir por completo a palavra na Antropologia, o cinema
de atitudes discriminatórias. Por outro lado, critica-se no filme pode, e deve, ultrapassar os limites dessa palavra. Trata-se
documentário, etnográfico, a falta de rigor científico, expresso de descobrir a linguagem adequada aos elementos que ma-
nas imagens e na montagem final. Mas, no cerne dos ata- nipula, criar uma semiótica do fifme para produzir um filme
ques e críticas dos antropólogos está também, e fundamen- que se baste a si mesmo. Com o uso do som sincrónico, a
talmente, a profunda resistência ao uso do visual numa "dis- fala dos filmados pode chegar mais diretamente ao público,
ciplina tradicionalmente de palavras, como o afirma Marga- sem a intermediação ideológica do som off ou dos letreiros do
reth Mead, em 1975: "as imagens desempenham na maioria período silencioso do cinema. O fato de que o tradicional ob-
das vezes uma função apenas demonstrativa •.• são comple- jeto da câmera cinematográfica dos etnólogos - os povos
mento e não instrumento .•. imagem e som são substituição colonizados, os grupos "minoritários" - venha gradativa-
da palavra... privadas de texto, as imagens não são nada; mente assumindo o papel de sujeito histórico, desloca a rela-
existe um império de palavras sobre a imagem". ção sujeito-objeto para novo plano. Os cineastas são agora
simultaneamente sujeitos e objetos de seu fazer cinemato-
gráfico, vêm-se, ouvem-se e reconhecem-se, não mais como
Se bem é verdade que as crüícas ao filme etnográfico, do
"insetos filmado~", mas como sujeitos de seu próprio cons-
ponto de vista estético. e da línguagem, como do ponto de
truir histórico. A busca de uma linguagem semiótica do filme
vista científico sejam procedentes - a maioria dos filmes et-
está levando os etnólogos-cineastas, principalmente os afri-
nográficos não passam de simples organização em imagens canos e os mexicanos, a propor a criação de uma nova dis-
dos resultados da pesquisa; não se desprendem das carac- ciplina: a Antropologia Fllmica.
tarfsticas do discurso falado ou escrito; utilizam a montagem
apenas como harmonização da narrativa, "e quando a mon-
tagem não é suficiente, um comentário oral, em ott, unifica IMAGEM E REALIDADE
o todo (Claudíne de France, 1982); o filme etnográfico é o "o-
A resistência para olhar o cinema como fonte e documento
lhar do colonizador", que vinha "filmar os africanos como in-
de conhecimento na área das Ciências Sociais vem em parte
setos" - é verdade também que essas crüicas não escon-
dos cientistas estarem presos ao determinismo escrita, ou
dem as dificuldades do uso e compreensão do visual na An-
da fala, impossibilitando-os perceber a legitimidade da ima-
tropologia.
gem. No entanto, escrita, fala e imagem estão impregnadas
Mas, resistências ao uso do cinema como possível fonte de de subjetividade de seus autores: a ideologia que determina a
conhecimento não é privilégio da Antropologia. Na área da escolha de um ângulo cinematográfico é a mesma que define
História, as discussões são acaloradas. Ana Teresa Fabris um estilo literário na narrativa histórica.
afirma: "Confrontada como o fenômeno artístico, a História
assume geralmente duas posturas: confere-lhe um papel me- Para o cientista social, "o filme não passa de 'divertimento',
ramente auxiliar ou não o leva em conta, por não considerar o na medida em que, para ele, sua fala ainda não é um 'discur-
pensamento visual parte integrante do pensamento de uma so', seu conteúdo ainda não é uma 'fonte', sua materialidade
época, ao mesmo tempo participante e gerador duma visão ainda não é um 'documento" (Luiz Sodré Teixeira). O cinema
de mundo". Por sua vez, José Mário ortiz confirma: "para os tem sido visto, por isso, como pura "fantasia" e "sonho", co-
estudos de orientação histórico-sociológica, o cinema foí mo algo que não tem realidade, como algo meramente "ima-

39
ginário", "Falso". Verdade, mentira, real, imaginário, docu- VERDADE ? MENTIRA ? .
mentário, ficção ••. eis o dilema em que está imersa a maioria
dos cientistas sociais ao olhar o cinema. Os filmes são produções simbólicas, partes integrantes do
real, são "realidades ideais", como o explicita Godelier: "O
Logo que surge o cinema, em fins do século passado, a rea- pensamento não 'reflete' passivamente a realidade, mas
lidade é eleita como o lugar privilegiado do olhar cinematográfi- a interpreta ativamente .•• e organiza todas as práticas sociais
co. Os primeiros filmes procuravam "retratar", através da sobre essa realidade e, portanto, contribui para a produção
câmera, o movimento da vida nas cidades, documentando a de novas realidades sociais" ( ••• ) "as representações da
ação e os comportamentos de seus habitantes, como a pro- "realidade" são interpretações que legitimam ou ilegitimam as
var que o cinema vinha para ampliar as possibilidades técni- relações dos homens entre si e com a natureza".
cas da fotografia. Esta, como o demonstra Walter Benjamin,
havia estabelecido um corte técnico revolucionário com a Tomar as representações como idéias falsas, ilusórias, que
pintura, e alcançado uma dimensão que não se esgotava na os homens têm de si mesmos e do mundo, e que "legitimam"
simples possibilidade da captação do real pela câmera; es- uma ordem social existente nascida sem elas, é atribuir a es-
ta, ao fixar seu objeto, penetra nele tão profundamente que sas representações um conteúdo ideológico capaz de explí-
não só capta seus contornos visíveis, mas revela a sua car por si só as relações sociais de dominação e opressão.
substância oculta, "mundos de imagens habitando as coisas O conceito marxista tradicional de ideologia e de sua função
mais minúsculas, suficientemente ocultas e signifícativas pa- na sociedade vem sofrendo várias criticas. Canevacci, apoia·
ra encontrarem um refúgio nos sonhos diurnos •.•''. A fotogra- do em Adorno e Horkheimer chega a apontar a decadência e
fia revelaria esse inconsciente ótico, como a psicanálise re- morte do conceito ao afirmar: "o destíno da ideologia será o
vela o inconsciente pulsional, de não ser jamais completamente verdadeira, nem, ao con-
trário, completamente falsa".
Se a fotografia ao captar/capturar o instante, ao recortá-lo de
seu continuum e lixá-lo, através da câmera, produzia a irna- Da mesma forma que as discussões sobre o filme etnográfi-
gem do real, o advento do cinema vai revolucionar essa pos- co trouxeram para o interior da Antropologia a necessidade
sibilidade, ao reproduzir a própria vida em seu movimento. O de se repensar a relação sujeito-objeto, a indústria cultural e
cinema não pretende apenas capturar a realidade, pretende o cinema teriam desencadeado essas críticas e, ao mesmo
ser a própria realidade. Com o cinema, imagem e realidade tempo, carreado para a Antropologia as discussões sobre a
se fundem e confundem. Se a imagem, em sua primeira compreensão dessa nova realidade. Ao propor um papel im-
acepção, significa algo visualmente a um objeto ou pessoa portante à Antropologia na análise do fenômeno cinema -
real, e essa semelhança depende do grau de fidelidade de a Antropólogia Fflmica - (também proposta pelos defensores
sua reprodução, o cinema ao desenvolver suas técnicas do filme etonoçráüco, Canevacci avança: "O cinema deve
mais recentes permite uma reprodução cada vez mais fiel da ser considerado globalmente, não apenas em relação à co-
realidade ao ponto de não só reproduzi-la mas de criá~la e nexão cenônica estrutura/superestrutura, mas também em
face da terceira dinâmica, a hipo-estrutural".
recriá-la.

Inicialmente com a fotograia e depois com o cinema, as dis- O conceito de hlpo-estruture de Canevacci procura dar conta
cussões sobre a reprodução do real colocaram a questão do das manifestações da natureza humana, ocultas, reprimidas
que é a realidade, como é percebida, como é ela reproduzida. ao longo da história: os instintos, as paixões, os sonhos, o
Veio a debate a questão das representações da realidade, ou imaginário inconsciente que o cinema teria possibilitado aflo-
seja, as imagens são espelho e reflexo do real, são produ- rar e mesmo produzir e reproduzir.
ções dessa realidade, são percepções ilusórias? Uma ima-
gem, por mais fiel ao objeto captado, pode configurar-se co- Para concluir, tomemos como iluminação para o aprofunda-
mento da compreensão do fenômeno tnmico as idéias de
mo real?
Walter Benjamin: "O cinema tem a capacidade de ir até es-
A questão realidade versus imaginário, verdade versus ideo- tratos ocultos da realidade, provocando paralelamente à dí·
logia suscitada pela imagem cinematográfica produziu as versão um alargamento da percepção". Ê a busca dessas
mais diversas posições filosóficas e abriu caminho para a realidades ocultadas, reprimidas, aliada à construção de uma
classificação de "gêneros" cinematográficos de todos os linguagem cinematográfica própria que tem unido antropólo-
gostos: ficção, documentário, filme de arte, filme histórico, gos e cineastas na proposta de uma Antropologia F/Jmica.
comédia, drama, aventura, etc. É sintomática a preferência
dos cientistas sociais pelo material não ficcional, denominado
como "documentário", "Como se a verdade (e "neutralidade")
fosse assim autenticada, e que entre ambos, "ficção" e "do-
cumento" não fossem reservadas maiores surpresas que a
relação entre "real" e "falso'.' (XII Simpósio Nacional de His- SELDA V. COSTA (Brasil)
tória). antrópologa

40
Adopting a criticai perspectiva, the essay deats with the te- Con una perspeCtiva crftica, e/ ensayo trata de revelar Tos
velation of lhe ideofogical limits that determine the sten ot the condicionamientos ideológicos que marcan e/ surgimiento de
ethnógraphic film -. Ttie careful too« at the definitlon of this type la petfcula etnográfica. E/ eje de ta reflexión entre e/ cine y la
of filming product is the link to the retection on tne relation ciencia antropológica es e/ anáfisis de la definición de dicha
between the cinema ena. the anthropo/ogicaf scienoe. Visual e/ase de producto fflmico. La antropofog(a fllmica es una nue-
anthropology is presented as a new discipline, showin'g tne va disciplina, que pone de manifesto una dimensión oculta de
social reality's unseen dímension: the unconscious imaginary la rea/idad social - e/ imaginaria inconciente - que el discurso
that tne cinematographic discourse wou/d be apt to unveil and cinematográfico tendrfa como desarrollar y reproducir.
reproduce.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2. Carvalho, EA. (org.) Godelier. Ed. Ática, 1981.

3. Carvalho, A.D. O Camarada e a Câmera. Cinema e Antropologia para Alem do Filme Etnográfico, Inala, Luanda, 1984.

4. Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro, Boletim n9 11, 1986.

5. Benjamin, Walter. Obras Escolhidas, vol. 1, Brasiliense, 1985.

6. Fabris, A.T. "História e Arte. A história em busca de novas linguagens" in Revista Projeto História, n2 4, PUC/SP, 1985.

7. Ramos, J.M. Ortiz. "Relações Cinema· História. Perigo e Fascinação", in Revista Projeto História, n2 4, P UC/SP, 1985.

8. Teixeira, LG.S. "Panorama dar República", in A /9 República no Cinema, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1982.

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VÍDEO E REAFIRMAÇÃO ÉTNICA
VlNCENT CARELU"

1. O VÍDEO CHEGA NAS ALDEIAS lação ao produto final a que poderiam chegar e o "alto custo"
do investimento a ser feito, permaneceram, por assim dizer,
Já se fazem dez anos, ou um pouco mais, que surgiu um dos fechados a este tipo de iniciativa.
primeiros projetos de vídeo no Brasil, especificamente na
área lndigenista conhecido como Inter Povo's2. No entanto só Hoje o vfdeo está começando a chegar às aldeias. Do pouco
muito recentemente que este trabalho deixou de ser uma ini- que pudemos levantar até o momento, sabemos que os Ka-
ciativa isolada e pioneira para começar a ganhar uma difusão yapós, iniciados pela produtora independente do Rio - Veneta
Vídeo - já dispõem de duas câmeras VHS e VCRs e TVs em
concreta.
cinco aldeias.
foi nos últimos dois anos que o vídeo de fato invadiu os lares
Esta mesma produtora carioca está capacitando a equipe do
de classe média brasileira - os vídeo-clubes já competem em
projeto de educação entre os Ticuna do Rio Solimões Torü
número com os bares de esquina - e que o seu uso come·
Duü 'ügü (Nosso Povo) no uso de equipamentosque acabou
çou a ser absorvido pelos movimentos populares até chegar,
de adquirir. E outros grupos organizados em torno da ques-
como não poderia deixar de ser, aos meios indígenas e indi-
tão da educação, como os creanos, certamente seguirão o
genistas.
exemplo.
As dificuldades que a Inter Povos e outros, que porventura
tenham se aventurado neste sentido enfrentaram, se devem As missões Salesianas trocaram seus tradicionais projetores
antes de mais nada ao caráter pioneiro do projeto. Não havia de 16 mm das matinés de bang-bang por VCRs, de modo
ocorrido ainda a popularização do vídeo, a constituição de que várias aldeias Xavante já têm acesso ao vídeo e an-
uma rede de distribuição, de modo que os grupos de apoio ao seiam por produzirem sua própria programação. No Rio Ne-
movimento indígena, hesitando entre a insegurança com re- gro, não só existem vídeo em todos os grandes centros rnis-

42
sionários como existe espaço para inserir uma programação que esta prevista acabou acontecendo com o capitão trazen-
regional nos canais da TV, nos longos intervalos da progra- do, um a um, os representantes dos vários grupos perante a
mação que chega até lá e o Centro Ecumênico de Docu- câmera, para fazerem uma exposição de sua situação nas
mentação e Informação (CEDI), inicia um trabalho de registro várias gírias ou mesmo em português. Na sequência, o ca-
naquela área. pitão fez cada grupo Nambiquara entoar seus cantos de
guerra (o que é raramente feito, porque podem trazer algum
O Centro de Trabalho lndigenista (CTI), com seu projeto Ví- sinal funesto). E para finalizar a sua performance, para a
deo nas Aldeias, introduziu no último ano, o uso do vídeo en- nossa total surpresa, ele encenou a morte simbólica de um
tre os Nambíquarade Mato Grosso do Norte e os Gavião do fazendeiro, flechando um desenho no papel com vários de
Pará, grupos que já adquiriram seus próprios equipamentos. seus guerreiros, com grande comemoração.

Várias regionais do Conselho lndigenista Missionário (C1MI) e Responsável pela direção da festa, o capitão Pedro assumiu,
da Operação Anchieta (OPAN),já vem adquirindo seus primei- com toda: a consciência, a direção do vídeo, usando vários
ros equipamentos. A União das Nações Indígenas (UNI) já recursos - o discurso, o canto e a dramatização - para ex-
tem produzido seus primeiros tapes e exibido nas suas pere- pressar uma mensagem política Nambiquara para o mundo
grinações pelo país. Enfim, a versatibilidade dos aparelhos que em duas palavras significava: Reconquistamos com
atuais reduziram consideravelmente, tanto o preço dos equi- muito custo o nosso território e o primeiro que voltar a inva-
pamentos em si como também os custos de produção do re- dí-lo vai ter guerra.
gistro, e permitiram a recente difusão do vídeo em nosso
meio. O que era sonho da Inter Povos já começa a ser reali- Mas o melhor ainda estava por vir. Os convidados se foram e
dade. permanecemos dizendo ao Capitão que gostaríamos de ouví-
lo mais e então ele e seu pessoal apresentaram, no dia se-
O Festival de Cinema dos Povos Indígenas deve ser uma guinte, uma jornada de 12 horas de emoção, magia e surpre-
oportunidade para tomarmos melhor consciência disso e sa. As seis horas da manhã o Capitão, discursando na lín-
avançarmos no levantamento desta rede que já está se for- gua, à beira de um penhasco sobre as matas dos rios do ter-
mando. ritório daqueles Nambiquaras, fez um apanhado das trans-
portações sofridas pelo grupo e da lenta reconquista daquela
área.
2. DUAS EXPERIÊNCIAS
Assim que ele terminava de falar. fomos alcançados pelo
Nós mesmos não escapamos à essa onda de vídeo e resol-
restante da aldeia, todos pintados e carregando abacaxis.
vemos revisitar, sob o patrodnio do CTl, os grupos indígenas
Enquanto se preparava e bebia o chicha de abacaxi, os pa-
com os quais tivemos mais convívio nos últimos anos en-
jés, em transe, puxaram as rezas de agradecimentos aos
quanto indigenista e fotógrafo. Trabalhamos nessas comuni-
espíritos e todos cantaram. Depois, ainda, houveram algu-
dades como câmera, que se deixar conduzir pela dinâmica
mas brincadeiras, jogando pedras e flechas no precipício, e a
coletiva e como exibidores tanto do material produzido ali na
excitação era grande quando generalizou-se rapidamente
hora, como de filmes de outras tribos, elaborados para o
uma briga ritualizada, usada antigamente, antes das expedi-
grande público.
ções guerreiras. Com os cachorros enlouquecidos, aquela
algazarra só teve fim com o sacrifício à flechadas de um ca-
UMA RECEPÇÃO EUFÓRICA chorro que mordera uma velha, na confusão.

Entre os Nambíquaras nos propusemos a registrar um rito de


puberdade realizado no contexto de uma ampla reunião re- Deviam ser umas 11 horas, quando os índios retornaram à
gional dos Nambiquaras de todos os dialetos, como de outros aldeia e começaram a preparar as flautas para apresentaram
grupos tribais vizinhos (out.lnov. 1986) diante da câmera a Festa da Moça, tal qual eles teriam feito,
sem a presença dos outros grupos. E então, a moça que já
Nos dias que antecederam a festa registramos os preparati- havia sido despachada, voltou momentaneamentepara a ca-
vos e os resultados eram exibidos diariamente. Fomos mos- sa das flautas e em 2 horas foram reencenadas as 24 horas
trando como eles poderiam dialogar comigo (a câmera) e as· do ritual musicado, desta vez com flautas e não com cantos.
sistir suas declarações na sequência, como podiam brincar e
se ver brincando. A familiarização com o instrumento vídeo Naquele clima de euforia coletiva que reinava, alguém falou
foi tão rápida que ao chegarem os convidados de fora perce- em furação de nariz. Desde o estabelecimento do contato
bemos de repente que já estávamos sendo dirigidos pelo ca- com a civilização, há uns vinte anos, as novas gerações dei-
pitão Pedro, anfitrião da festa e do encontro. Ele nos chamou xaram de portar a marca característica do grupo, que é um
e organizou imediatamente uma apresentaçao formal dos re- furo no nariz e outro no beiço. Nesta fase de reconquista de
presentantes de todas as aldeias perante a câmera. seu espaço, o grupo vinha projetandoretomar este uso numa
data remota ainda a ser marcada. De repente resolveram que
A partir daí, o capitão não cessou de produzir o vídeo, crian- o momento de retomar a furação tinha de ser aquele mo-
do eventos, escolhendo locações, sempre se certificando de mento, enquanto a câmera estivesse alí, para que tudo fosse
que estávamos gravando isso.ou aqílo. No dia quese seguiu registrado.
ao ritual, o capitão Pedro fez com que todas as aldeias visi-
tantes pudessem se apresentar e tivessem reqistrada uma Da festa simulada partimos direto para a furação, esta sem
amostra de suas próprias danças e a "assembléia indígena" nenhuma simulação. Fomos esclarecidos de que deveríamos

43
filmar todos os 19 homens que seriam furados. Por um ins- Ao reassumirem o comando de seu destino, os Gaviões co-
tante, no decorrer da furação, desviamos a câmera para co- meçaram a reencontrar o seu ritmo e seu modo de vida já
brir a platéia que assistia, mas a furação foi interrompida e bastante descaracterizado. Os rituais foram sendo retoma-
fomos chamados a atenção de que cada um deles queria ter dos progressivamente e neste processo o gravador desem-
o ato de sua furação registrado. penhou um papel muito importante para que os cantos fos-
sem reaprendidos por todos.
Neste momento, entendemos, com toda clareza, que sem
dúvida, eles estavam atuando no sentido deles se represen- Nos anos que se seguiram, a reserva Gavião foi atingida por
tarem para o mundo de fora, mas antes de mais nada, aque- grandes projetos governamentais - em 1980 uma linha de
las imagens estavam tendo um significado muito intenso para transmissão de alta tensão que conduz a energia gerada em
eles próprios. Tucurur e em 1982 a ferrovia Carajás que escoa o minério da
serra dos Carajás para exportação.
Ouando já eram umas seis horas da tarde, toda a aldeia se
sentou para rever a emocionante maratona daquele dia, des- Os índios foram inflexíveis nas negociações e exigiram, nos
de a hilariante briga/confusão no penhasco até a furação que dois casos, indenizações que lhes possibilitaram ascender a
os jovens, com a cara inchada e uma expressão de dor, as- uma das situações mais estáveis economicamente a que um
sistiram com orgulho. Sempre tínhamos imaginado que o ví- grupo brasileiro tenha chegado, vivendo um bom padrão de
deo seria recebido com entusiasmo, mas nunca que ele pu- vida, exclusivamente dos juros dessas indenizações.
f
desse provocar uma tal comoção.
Esta estabilidade não quer dizer, no entanto, que os Gaviões
E ainda houvera outros desdobramentos. No mês seguinte não vivam o drama da descaracterização cultural das novas
documentamos uma outra festa de puberdade e a visão críti- gerações: a morte de todos os velhos e a interrupção de seu
ca que o vídeo proporcionou da festa anterior fez com que, ciclo cerimonial por vários anos consecutivos, a miscigena·
entre outras coisas, todos tirassem suas roupas e as pintu- ção, a proximidade de uma grande cidade e o alto padrão de
ras corporais ressurgiram com todo o requinte que elas me- consumo alcançado, o abandono da língua Gavião por parte
reciam tradicionalmente, além de festejarem o ritual simulta- dos jovens e das crianças. A liderança do chefe Krokrenun
neamente em duas vesões, a do visitante e a do anfitrião, pa- não foi suficiente para evitar este processo e a "rapaziada"
ra que todos pudessem apresentar seus cantos. Uma sínte- continua preferindo o futebol e a televisão às corridas de tora
se desta experiência está editado em vídeo, no tape que se e as festas tradicionais.
intitula "A Festa da Moça" (e encaminhado ao Festival).
Depois de ter realizado uma obra política notável, reunindo
Depois disso, a administração regional da FUNAI adquiriu os sob a sua liderança os 3 grupos Gavião, tradicionalmente ri-
equipamentos de vídeo e estas imagens puderam realmente vais, o velho chefe, que é também um dos únicos cantadores
permanecer com eles e está se iniciando ali, a formação de que sobreviveram, está empenhado de corpo e alma no res-
um núcleo Nambiquara de produção de vídeo. gate da tradição da tribo. E para tanto, tem realizado todos os
anos os rituais de que ainda se lembram porque alguns "já
O trabalho de documentação prossegue, sob a liderança do estão enterrados".
capitão Pedro, levantando os vestígios dos pequenos grupos
Nambiquara ainda isolados e que estão sendo perseguidos Há alguns anos atrás a comunidade havia adquirido uma cá-
por madeireiros e fazendeiros que desbravam novas frontei- mera Super-ê com a finalidade de documentar suas festas,
ras ao sul de Rondônia, ou seja, que estão passando por tu- mas não tiveram como editar o material e a tentativa acabou
do aquilo que os grupos hoje assistidos pela FUNAI viveram fracassando. Ao ver o vídeo o Krokrenun não desistiu, com-
há vinte anos atrás. prou um VCR e nos contratou para documentar a festa do
ano que já vimos registrando há uns cinco meses. Os vários
UM PROJETO CULTURAL INDÍGENA aparelhos de TV já existentes na aldeia, que exerceu tanta
influência sobre os jovens, passaram agora à serviço do seu
Na primeira exibição de vídeo realizada entre os Gaviões, o projeto cultural de recuperação da vida tradicional. Esse re-
gistro vai ficar para os meus netos, diz o Capitão, satisfeito.
líder do grupo teve uma exclamação: "Era disto que eu esta·
va precisando".
Hoje as cessões noturnas de vídeo no pátio da aldeia já fo-
ram incorporados à rotina e além de se assistirem, tomaram
O primeiro contato pacífico dos Gaviões com uma frente de
contato com filmes contemporâneos "sobre" os índios, de
atração se deu exatamente há trinta anos atrás. A mortalida-
documentário à ficção. Os Gaviões pretendem iniciar a sua
de dos primeiros anos foi tão violenta que o líder Krokrenun,
própria produção, já tendo em perspectiva uma programação
certo de que nenhum deles escaparia, começou a distribuir
para a escola das crianças: uma cartilha e a mitologia Gavião
as crianças sobreviventes aos brancos das vilas próximas.
em vídeo.
Nos anos seguintes, os demais grupos foram "pacificados" e
reunidos numa reseva onde trabalharam até 1975, como co- 3. PERSPECTIVAS?
letores de castanha para a agência governamental. Neste
ano os índios romperam com a FUNAl e passaram eles Os dois exemplos aqui relatados, semelhantes sem dúvida à
mesmos a administrarem a produção da castanha que afinar inúmeras experiências já realizadas em outros países e que
de contas lhes pertencia. começam a pipocar também pelo Brasil afora, trazem consí-

44
go vários desafios para os quais ainda estamos mal prepara- ras situadas em pontos estratégicos do país, para atender a
dos. A receptividade é grande mas os meios de realização solicitação de tal ou qual grupo ou para cobrir temas nacío-
são poucos. Esta é urna realidade com que o vídeo em movi- nals de interesse de todas as aldeias e do grande público em
mento popular se depara de uma maneira geral, quanto mais geral?
no movimento indígena que apenas engatinha neste ramo.
Cem que tipo de apoio estes núcleos emergentes de produ- E mais, sonhando longe, poderemos à médio ou longo prazo,
ção de vídeo ind(genas ou de entidades de apoio podem pensarmos numa organização com o respaldo necessário
contar para editarem seus materiais e desenvolveram uma para poder reunir a produção independente,os registros jor-
linguagemprópria? nalísticos realizados pelas cadeias de TV nacionais (que fla-
gram momentos cruciais da história do movimento indígena
Interessados em impulsionar o trabalho nesta área, o CEDI contemporâneo e que na maioria dos casos tem suas fitas
que já tem uma tradição na prestação de serviços no campo apagadas num prazo de 24 horas) e porque não o dar a TVs
indigenista, está implementando uma infra-estrutura de edi- estrangeiras (que se valem sempre da nossa assessoria e
ção e copiagem destinada não só as suas próprias produ- dos nossos contatos para realizarem seus trabalhos) para
ções mas à dinamização de núcleos regionais de produção editarmos coisas parecidas como um telejornalperiódico?
na fase de elaboração de pautas e roteiros mas principal-
mente no trabalho de pós-produção. Existem precedentes de uma articulação deste tipo nos paí-
ses latino-americanosmais avançados neste campo?
Outra dificuldade que não só nós, mas todos devem estar
sentindo, é de como faze chegar a estas comunidades, um Por tudo o que foi levantado aqui é oportuna a vinda do 1t
acervo atualizado de filmes e tapes sobre assuntos de seu Festival Latino-Americano de Cinema dos Povos Indígenas
interesse. ao Brasil para trazer a experiencia acumulada dos outros
países e propiciar o encontro e a discussão dos produtores
Sentimos a necessidade que se estabeleça um entendimento nacionais.
ou uma associação que permita, pelo menos num primeiro
momento, a reunião desta produção esparsa para sua circu-
lação nas aldeias. Poderemos pensar, num futuro próximo, VINCENT CARELLI (Brasil)
em executar pautas articulando o trabalho de várias produto- fotógrafo

This text is a brief report about two experieaces on the use of Este texto es un breve relato de dos experiencies de uso dei
video ln indigenous community and a preliminary register of video en comunidades indígenas,además de un catastro ore-
the vídeo proauction's emerging initiatives in the area of lhe líminar de las iniciativas emergentes en lo que a rea/ización
indian and indigenous movement, presenting the need for in- de videos en ef campo dei movimiento indígena e indigenista
tetection between them. se refiere, p/anteando na necesidad de una interacción entre
ambas.

NOTAS

1 Vincent Carelli é membro do Centro de Trabalho lndigenista e editor fotográfico da coleção Povos Indígenas no Brasil do Centro Ecumênico de Docu-
mentação e Informação.
2 Produtora de Andrea Tonnaci (SP)

45
MITO E FOTOGRAFIA I

AS AVENTURAS EROTICAS DE KAMUKUA


ET/ENNE SAMAIN

Sem dúvida nenhuma, Susan Sontag tem razão de abrir seus pequenos saiam juntos com as piranhas e os pentes-de-co-
Ensaios sobre a Fotografia (1) com a seguínte reflexão: "A bra venenosos (6).
humanidade permanece irremediavelmente presa dentro da
caverna de Platão, regalando-se ainda, como é seu velho A mulher falou:
hábito, com meras imagens da realidade." Pois - acrescenta - "Agora você vê, Kamukua, como os peixes estão morren-
ela - "Embora, num certo sentido, a câmara efetivamente do."
capte a realidade e faça mais do que apenas interpretá-la, - "Estou vendo, sim!"
a fotografia constitui uma interpretação do mundo, da mesma - "Você sabe que não sou boa", acrescentou a mulher.
maneira que a pintura •.. o desenho" e, complementaríamos
desde já, o mito. Assim morreram as piranhas, todos os bichinhos que fica-
vam na barriga da mulher; todos morreram. Só ficou lá, na
Ao apresentar o mito de Kamukua, uma narrativa indígena barriga dela, uma piranhazinha, É por isto que da mulher, até
(2), cheia de sabedoria e de saboroso humor erótico, preten- agora, corre um sangue de mulher, diferente (7).
demos aprofundar um pouco as relações que parecem unir -
é nossa hipótese de trabalho - o mito e a fotografia. Pensa- Ela falou para Kamukua:
mos, pelo menos, poder oferecer, deste modo e no duplo re· - "Então morreu tudo?"
gistro da Antropologia Social e das Artes Visuais, uns subsí- - "Morreu tudo, você viu", disse ele.
dios que permitissem nos aproximar e definir melhor algumas
das questões relativas â natureza e ás funç6es dessas duas
Aí Kamukua fez o amor com ela. A mulher disse:
expressões da comunicação e da ideología humana. - "Você tem que se sentar (8)", e ela lhe ensinou como se
sentar.
A. O MITO DE KAMUKUA
Ela acrescentou:
Uma mulher, muito bonita, toda pintada, entrou na casa de
- "Se a minhahama fizer coceira, você nem pode falar'eté' (9)".
Kamukua. Kamukua virou para ela:

- "Mulher, donde você vem"? Kamukua amou-a até ela fazer coceira. Aí Kamukua excía-
- "Eu vou embora", respondeu a mulher. rnou:
-"Eté!"
Kamukua pegou-a
quando ele lançou seu 'eté', a mulher apertou o pinto dele e
- "O que é, Kamukua?" exclamou. pulou com o pinto dele bem longe. O pinto do rapaz esticou. A
mulher pulou outra vez para trás e o pinto do homem se en-
Ao segurá-la, Kamukua lhe dizia: dureceu, esticando-se ainda mais.
- "Posso namorar com você?"
A mulher falou:
A mulher respondeu: - "Será que não te avisei, Kamukua?"
- "Comigo não, você sabe que não sou boa (3)".
E acrescentou:
Ela acrescentou: - "Bem que disse: quando minha hama vai te fazer coceira,
- "Se você quiser fazer o amor comigo, lembre-se: tem pira- você nem poderá dizer 'eté', Eis que você disse 'eté" ••• é por
nhas na minha hama (4) e elas vão te morder." isto que apertei teu pinto e que pulei bem longe para trás."

Então Kamukua disse: A mulher lhe aconselhou:


- "Vou te dar um remédio de raízes (5). - "Agora, você tem que chamar os pernaltas: Jaburu-o-lonqo
e Socô-o-branco, Convoque também 'Nlrapi e Yawanakapl, a
Kamukua cortou as raízes de um cipó, enquanto a mulher fi- harpia e o socó-de-bíco-curto. Eles poderão te curar."
cava deitada no chão. Ele pegou as raízes, bateu-as e botou
na água. A água estava saindo das ra(zes: tudutudu ..• Aí, os A mulher foi embora, voltou para a casa dela. Kamukua ficou
peixes começaram a morrer na barriga da mulher. Peixes lá. A mulher lhe tinha dito ainda:

46
- "Trance um cesto bem grande para colocar dentro teu banco. Kamukua estava deitado na sua rede. Tsiwa'én lhe
pinto." disse:
- "O que foi, meu neto?"
Kamukua trançou um cesto bem grande. Nele, jogou o seu - "Estou ruim", respondeu Kamukua.
pinto. Encheu tudo mas tinha ainda mais, não bastava. Fabri- Tsiwa'én acrescentou:
cou então um cesto maior ainda e continuou a colocar seu - "Por que você fez assim com ela?"
pinto. Encheu também este cesto, e conseguiu botar tudo. - "Ela me tinha dito, é verdade, que era ruim; mas mesmo
Então ele pegou os dois cestos, cheios de pinto e, carregan- assim queria fazer o amor com ela", respondeu Kamukua.
do cada um sobre um ombro, foi andando ••• Tsiwa'én rezava ao mesmo tempo que bicava o pinto de Ka-
mukua: tac, tac, tac •.• Este estava diminuindo, mais ou me-
A esposa de Kamukua viu-o: nos assim: de uma boa braçada.
- "O que aconteceu, Kamukua?" Ela acrescentou: "Bem O pequeno pássaro parou de rezar e chamou a coruja.
feito para ti, Kamukua, você vai saber o que custa mexer Quando a coruja rezou, o pinto esticou outra vez. Tsiwa'én
com as mulheres dos outros! Agora, você vai ter que ficar em interveio:
casa, você não poderá mais sair com isto .•• Bem feito para ti, - "Pare! Não pode rezá-lo mais."
Kamukua, você não poderá mais fazer o amor comigo!" A coruja parou, e Tsíwa'én recomeçou a rezar, bicando: tac,
tac, tac ••• Ele fez uma pausa:
Ele ficou em casa com os cestos. Ficava deitado na rede. - "Você está quase bom, meu neto."
Sua mulher estava se pintando, e Kamukua sentiu seu pinto Retomou seu trabalho: tac, tac, tac ••.
endurecer como se fosse madeira. Ela viu o sexo dele: - "Vamos chegar lá, meu neto."
- "Kamukua, o teu pinto parece ser uma cobra!" O pinto de Kamukua tinha voltado, bem como convém.
Os pásseros-pajés ratificaram em coro:
No dia seguinte, Kamukua ficou só na casa até a tarde. Sua - "Quando nascerão nossos netos, uns terão pinto curto,
mulher estava brava e lhe disse: outros pinto comprido."
- "Vai chamar os teus pássaros-curandeiros, agora, para Tsiwa'én disse a Kamukua:
que venham rezar sobre ti. Bem feito que você ficou assim. - "Acabei de rezar sobre ti. O que fiz, foi o meu pai que me
Ah! Você queria mexer com as mulheres dos outros ••• " ensinou,"
Kamukua confessou:
O irmão de Kamukua foi chamar Jaburu-o-íonço: - "Eh, sim, sou eu que fiz errado. Não devia mexer com a
- "Vovô, vem ver aquele rapaz; não sei o que aconteceu mulher de um outro,"
com ele." Kamukua pagou os pássaros-curandeiros, dando a cada um
colares de conchas:
Ele foi falar também com Socó-o-branco: - "Vovô, isso para teu serviço." "Eis para ti, Vovô"; "Vovó,
- "Vovô, vem rezar o pinto do meu irmão." eu te pago com os meus colares."
Kamukua pagou também os pernaltas.
Ele chamou também a harpia e Socó-de-bico-curto:
- "Venham rezar o pinto de Kamukua." A mulher que tinha feito esta coisa ruim, tinha ido embora pa-
ra sua aldeia. Os pássaros-curandeiros, a coruja, os pernal-
Ar eles vieram, entraram na casa de Kamukua. Jaburu-o-lon- tas disseram:
- "Agora, vamos embora. Quanto a você •.• você vai entrar
go se aproximou:
- "O que foi, meu neto?" para sempre na história, aquela que se contará aos seus
- "Vem rezar o meu pinto", respondeu Kamukua. netos."
- "A culpa é sua; sempre você está mexendo com as mu- Todos voltaram então para a casa deles.
lheres dos outros", acrescentou o pernalta. Os cestos permaneceram lá, pendurados debaixo do teto da
casa •.•
A mulher que colocou o pinto de Kamukua em tal estado,
chamava-se Takutapura kunya (10). Jaburu-o·longo disse A esposa de Kamukua acrescentou:
aKamukua: - "Daqui por diante, quando uma outra mulher tentar te se-
- "Essa mulher é muito perigosa. Você não devia fazer o duzir, você abrirá seus olhos antes de tocar nela."
amor com ela. Ela é muito ruim." Kamukua sorria enquanto falava. Respondeu:
- "Não sabia mesmo! Pensava que esta mulher era boa ••.
Mas foi bom assim •.• pois, desta maneira, entrarei na histó-
O pernalta rezou mas não dava certo. Pelo contrário, o pinto ria,"
de Kamukua, esticou mais ainda. Então ele parou e Socó-o- Assim falava para sua mulher. É por isto que, até hoje, conta-
branco foi no lugar dele. Foi igual. Quando o socõ rezava, o se esta história.
pinto esticava-se ainda mais. Não dava certo mesmo. O ou-
tro pernalta, Socó-de-bico-curto, rezou também: o pinto de •
Kamukua cresceu mais ainda. Então todos os permaltas B. MITO E FOTOGRAFIA: TRÊS REFLEXÕES
cessaram de rezar •.•
Os mitos nascem para serem ditos. Não são escritos e nun-
O irmão de Kamukua foi chamar outros pássaros: Tsiwa 'én- ca o serão verdadeiramente, mesmo que transcritos. Obede-
pequeno-bico e Íwla 'o-a-coruja. Os pássaros entraram na cem a uma outra lógica, a uma outra organização cognitiva
casa de Kamukua para curá-lo. Eles se sentaram sobre o do pensamento humano. O visual também, mesmo se, de

47
ambas (oralidade e escrita), parece participar. Essas obser- Em todos esses casos, este "ressuscitar" (verbal ou visual)
vações valem ainda para as pinturas, os desenhos que não oferece muito mais que simples informações perdidas no
precisam da mediação (verbal) para se oferecer o olhar e se tempo e no espaço; abre-nos a uma confrontação, singular e
dizer ao espírito. Linguagens concretas, palpáveis, sempre - muitas vezes - inconsciente, entre um passado evocado e
sensíveis, parece que tanto as narrativas mfticas (geralmente um presente vivido. Pois se o mito de Kamukua tem como
cheias de visualidade) como as fotografias se recusam à efeito direto o de remeter ao que adveio ao herói, .marido
abstração tão própria à escrita. E por que? adúltero, alerta também a comunidade atual sobre aquilo que
acontecerá para quem ultrapassar as regras da "medida
É interessante, pelo menos, observar que os índios Kamayu- exata". Semelhantemente,olhando para os bigodes bem lis-
rã (Alto-Xínqu, MT) não possuem um termo especffico para trados do retrato de meu avô ou revendo-me, vinte cinco
conotar o que glosamos por "mito" ou, ainda, por "história, anos depois, de calças tipo golfe, numa fotografia escolar,
estória" e "narrativa". Eles utilizam a palavra moroneta, um estou conduzindo, quase que involuntariamente, a medir o
conceito mais abrangente e genérico que designa toda forma que separa e une duas épocas, não somente marcadas por
de explanação, antes de tudo verbal e narrativa, mas que po- estilos diferentes mas por toda uma arte de viver, de fazer e
de ser também de ordem visual e pictória. É por isto que um de ser. Como diz Roland Barthes: "Sou o ponto de referência
"desenho" (tá angap) traçado sobre o chão {por exemplo pa- de qualquer fotografia, e é nisso que ela me induz a me es-
ra evitar de dever pronunciar o nome - tabu de uma pessoa) pantar, dirigindo-me a pergunta fundamental: por que será
ou uma "fotografia" serão também designados como sendo que vivo aqui e agora?" (11). A "verdade" do mito ou da foto-
moroneta. Tal correspondência semântica é reveladora. Sig- grafia é de ordem metafísica. Encontra-se precisamente nis-
nifica que para os Kamayurás, "histórias, desenhos, fotogra- to: na capacidade que ambos têm de retalhar e de sulcar cri-
fias" são moroneta não somente porque são capazes de, de- ticamente nosso presente.
sacompanhados da expressão falada, explanar o que regis-
tram, mas sobretudo - queremos salientar o fato - porque Confrontação singular e inconsciente, dizíamos há pouco.
são as "réplicas" de uma realidade que somente podem "e- Confronto, diríamos, que nos provoca e nos convoca a um
vocar'' e "retratar". Com outras palavras, as moronetss não necessário repensar humano.
são a realidade, mas apenas as representações e as figuras
dela, o que remete a um original presente ou, mais geral- 2. Se para existir, o mito e a fotografia precisam desta rela-
mente, ausente sem o qual não existiriam. ção com o passado, outro marco parece ainda unl-los: um e
outra procuram, geralmente,tomar normativo aquilo que ten-
Essas considerações bastam, pensamos, para nos autorizar tam apresentar. Melhor seria dizer: ambos pretendem mode-
traçar algumas linhas comparativas entre mitos e fotografias lar (representar por meio de modelos) o que, precisamente,
e, conseqüentemente, nos permítir ampliar o debate sobre a querem apresentar como ideais sociais.
natureza e as funções da fotografia. Debate este, fundamen-
tal pensamos, se quisermos entrar, críticamente e de olhos Os mitos, diríamos, são como espelhos que refletem para
abertos, na era pós-gutenberguiana,a era do 'Homo Visua/is' uma comunidade dada não somente os modelos e os arqué-
da qual participamos. tipos passados mas também uma realidade de uma outra or-
dem do que o real no qual mergulhamos homens. Este último
é, de certo modo, factício, sempre em recomposição com re·
1. Tanto o mito como a fotografia têm algo em comum: am-
lação ao primeiro que o informa e o reconstrói sem parar.
bos remetem sempre a um passado, mais ou menos distante
Acrescentaríamos que o mito tem como função decisiva a de
em termos espaço - temporais, sem o qual nem poderiam
sequer existir. O mito não seria mito se não insistisse sobre transmitir, de recordar e de reforçar, por meio da palavra e
este distanciamento necessário que culmina no "Era uma junto à comunidade, o que são seus valores e ideais, suas
vez" ou "Começou assim". A fotografiatambém - mesmo a normas de conduta, individuais e comunitários (12).
chamada fotografia de atualidade - precisa deste distancia-
mento ("écart") para tornar possível a função informativa que Na prática,a fotografiadesempenha um papel similar. Bastaria
lhe é inerente. lembrar o que significa para ela e para as Artes em geral a fi-
gura do "modelo artístico". Este não passa de uma tentativa
Ambos, com efeito, têm essa pretensão e este poder: os de mistificadora - e, neste sentido, claramente ideológica - de
evocar o passado (í.é. o que, suposta ou realmente, aconte- premo-ver o que, por natureza, é eminentementeocasional,
ceu) no presente e de oferecê-lo não como mera reprodução, fugitivo ou provisório. Nesta linha de pensamento, é difícil en-
inerte e coalhada, de um acontecimento qualquer, e sim co- centrar urna pessoa que se deixe fotografar naturalmente ou
mo uma fonte sempre informativa, geralmente comparativa e, que se satisfaça com as fotografias que dela foram feitas.
muitas vezes, reguladora das condutas e dos comporta- Parece que sempre falta um brilho, uma áurea que faria do
mentos sociais presentes. Sr. de Tal e da Sra. de Tal os protótipos do "homem ideal" ou
da "mulher eterna". Divinização, eter(n)ização que o fotógrafo
de moda ou de revistas para homens (ou mulheres) procu-
Lembrar as façanhas de Kamukua, herói cultural mítico, não
ram perenizar ao gosto do público e da época.
tem menos importância social para a comunidade ind(gena
Kamayurá do que teria, para nós, o fato de rever a fotografia
de um grupo de crianças saindo de uma mina de carvão na Kamukua "sorria" enquanto falava sua esposa. Sabia que
Inglaterra deste começo de século, ou de defrontar-nos no- entraria na "história", mesmo que adúltero. A fotografia corno
vamente com o triste corpo coberto de napalmde uma menina, o mito nunca mentem. Apenas tentam trans-fiqurar a realida-
gritando de horror e de dor, sobre uma estrada do Vietnã. de e, ar, está sua missão.

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3. Isso nos conduz a uma terceira reflexão: os mitos como há de se reconhecer que a margem de composição e de
as fotografias são magias nas mãos dos homens. criação, deixada ao narrador, permanece muito ampla. Este
pode, fiel à estrutura global, ampliar tal episódio, reduzir tal
Mágicas arcaicas, os mitos, por serem as expressões de um outro, insistir sobre tal detalhe, deixar de lado tal outro. Essa
pensamento selvagem, concreto e "bricotetir" se tomaram manipulação do mito se entende: a produção ou a transmis-
infelizmente, na linguagem coloquial, sinônimos de coisas são de um mito é sempre definida pelo contexto sócio-cultu-
"falsas, tendenciosas, fantasiosas e irreais". Mâgicas mo- ral. Este contexto é o terreno do qual o mito emana, do qual
demas, as fotografias continuam nos vendendo, no entanto, a extrai seus elementos e no qual se configura; ele é, ao mes-
ilusão de uma objetividade e de uma transparência que nunca mo tempo, o espaço social que pretende informar, nutrir e re-
possuíram, mas que nosso pensamento científico, abstrato-e criar, tanto no seu presente quanto no seu devir histórico.
racional, insiste a lhes outorgar pela simples razão - acaba- Este contexto, recortado concretamente pelos homens, pelas
remos por pensar - que os cristais de nitrato de prata, sob a suas ações, pelas suas emoções e expectativas, constitui-
ação da luz, não podem mentir! se também em um palco, afetivo-ideológico,onde o mito for-
mula-se e reformula-se continuamente. Este contexto, enfim,
A questão da 'objetividade' do mito e da fotografia não é, evi- é a matriz de uma lógica do concreto onde o mito pensa-se e
dentemente tão simples se, pelo menos, admitimos que não repensa-se na especificidade de sua "própria língua mítica",
existem reproduções fiéis da realidade.'Existe, sim, esforços isto é, na sua cultura.
variados (o mito e a fotografia, entre outros) da humanidade
para, dela, se aproximar, pensá-la, representá-la,organizá-la Considerações paralelas podem ser feitas no que diz res-
e, também, mistificá-la. Oeste ponto de vista, a verdade é, peito à fotografia. Susan Sontag tem razão de insistir sobre o
por excelência, o mito do mito, l.é., a impossibilidade, con- fato de que "ninguém tira a mesma fotografia da mesma coi-
creta e infinita, de se dizer a si mesma, na íntegra. Mas te· sa" .•• "A fotografia - acrescenta - é uma prova não só do
mos que ir mais adiante. Se o mito não é a realidade,e sim o que está ao nosso redor, mas também do que o indivíduovê;
espelho que a evoca e convoca o homem a vê-la na sua não só um registro, mas uma avaliação do mundo" (13) Isto
exemplaridade primordial, a fotografia, por sua vez, apresen- significa, entre outras coisas, que, sem dever falar aqui de
ta-se como a duplicata, achatada e sempre fragmentada, do trucagens, de retoques e de outras operações de laboratório,
mundo histórico e real no qual o homem mergulha. O primei- toda fotografia é definida pelo enquadramento,o ângulo,o fo-
ro, para assim dizer, arranca o homem ao seu tempo e ao co, a luminosidade,etc•.• sem dúvida um complexo de meios
seu espaço histórico. A segunda o projeta e o confina neles, técnicos intrínsecos à fotografia, mas cuja combinação e
em todos os sentidos da palavra. O mito procura dizer o ser manipulação são também diretamente definidas pelo opera·
humano na sua infinidade e na sua intemporalidade. A foto- dor. Este operador não é neutro nem inocente. Ele está de-
grafia, embora aspire algo mais, só consegue falar dele na terminado pela cultura à qual pertence, desejoso de transmitir
sua contingência e na sua finitude. Kamukua ficou feliz por- uma mensagem, num momento histórico particular, para um
que podia 'entrar' na história. A menina, coberta de napalm, público preciso. Através dele e de seus produtos, expressa-
pertence a nossa história e, dela, não sairá. se toda uma visão do mundo, sempre reconstruída.
Dito isto e, sabendo que a natureza dessas representações
não pode ser confundida, resta dizer que ambas têm essas Não tínhamos, neste breve ensaio, a pretensão de fazer um
outras peculiaridades: além de ser produzidas pelo homem, balanço da pesquisa recente sobre a natureza e as funções
elas são reproduztveis quase que infinitamente. O que siçni- sociais da fotografia (14). Ouerfamos apenas abrir uma nova
fica? Sig~ífíca que a produção de um mito ou de uma íotoqra- perspectiva que não foi ainda explorada. Resta para fazer, é
fia - que se examine isto a nível da comunidade que os fez verdade, uma transposição visual do mito de Kamukua, a
emergir, ou a nfvel · do narrador fotógrafo que os reproduz e qual nos diria, provavelmente, algo de novo sobre o caráter
transmite - nunca é um ato neutro e muito menos inocente. finito e, talvez, provisório deste ensaio.

O mito não existe ao estado puro. Existem, sim, versões de


um mito. Essas - para serem reconhecíveis pela comunida- ETIENNE SAMAIN (Brasil)
de - devem, evidentemente, reproduzir os elementos funda- antropólogo
mentais à estrutura do mito, isto é os elementos a partir dos Departamentode Multimeiosdo
quais tal mito se define e se distingue de tal outro. Dito isto, Instituto de Artes da UNICAMP

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The author uses, in this enicle, a mythica/ nstretive of the in- EI autor dei articulo utiliza una narrativa mltica de índios dei
dians of tne Xingu to think competetivety over the twoforms Xingu para necer una reflexión comparativa entre dos formas
ot interpreting reafity: myth and photography, aiming, in this de interpretar a la realidad dei mito y la fotografía com miras
way, to enlarge the clebate on the nature and lhe function of a ampliar el debate en torno a la Indo/ey las funciones de la
photography, in the era oi tne "Homo Visuais". fotograffa,en ta era dei "Homo Visua/is"!

NOTAS

(t) SONTAG, S.,Ensaios sobre a Fotografia, 2'2 ed., Rio de Janeiro (Ed.Arbor Ltda), 1983, p. 3 e 7.

(2) Recolhemos em 1977 este mito, contado por Tarakuay, na aldeia dos índios Kamayurá, grupo de língua tupi, de aproximadamente 200 pessoas, vi-
vendo na região dos formadores do rio Xingu (Mato Grosso do Norte).

(3) indisposta.

(4) Hama designa o sexo da mulher, a vagina em particular.

(5) Raízes Mo especificadas no decorrer da narração. Maistarde, foi possíve lsaberquese tratava das, yokerak6, finas raízes que se misturam oom água e
que a mulher tem que beber "de manhã", à noite e no dia seguinte." Inibidor de ovulação, esse remédio faz com que a "mulher não tem mais sangue
durante três luas" (comentário indfgena).

(6) Em português regional "pente-de-cobra" remete a uma espécie de mil-patas, de mais ou menos trinta centímetros de comprimento, com cabeça de
escorpião, muito temidos pelos índios.

(7) O fluxo menstrual (maitsu) que os Kamayurá dístinguem do sangue humano (lwQ.

(8) Takurnã, de Kotok, o tradutor do mito, acrescentava: "Para fazer o amor, é melhor ficar deitado ou sentado do que em pé."

(9) Eté: exclamação indígena, traduzindo o riso provocado por cócegas.

(10) Takutapura kunya: "mulher de Takutapura", antigo sitio indígena, hoje desaparecido.

(11) BARTHES, R.,La Cbembte Claire. Notesur /aPhotographie, Cahiersdu Cinema. Gallimard e Seuil, p. 131.

(12) Remetemos a um artigo anterior. SAMAIN, E., "Rellexões críticas sobre o tratamento dos mitos" inRevista de Antropologia (USP- São Paulo). vol, 27-
28 (nov, de 1985) 233·244.

(13) SONTAG, S., Ensaios sobre a fotografia, p. 86.

(14) Para o leitor interessado, remetemos à seguinte seleção de trabalhos: BARTHES, R., La cnsmbre claire. Note sur la Photographie, Paris (Galli·
te
mard/Seuil), 1980; BAUDR ILLARD, J., Les stratégies tetetes, Paris (Grassei), 1983; BAZ IN, A., Ou'est-ce que Cinéma? 1: Ontologie de l'image pho-
tographique, Paris (Cert), 1975; BENJAMIN, W., L'homme, te langage et la culture Cap.111. "Petite Hístoire de la Photographie" e cap. VI. "L'oeuvre
d'art à l'êre de sareproductivité technique", Paris {Denoel/Gonthier: col. "Médíations"), 1971; BOURDlEU, P; SOL TANSKI, L; CASTEL, R; CHAMBO-
REDON, J., Un art moyen. Essai sur tes usages sociaux de la Photographie, 2Q ed. Paris (Minuit), 1965; CARREIRA FERNANDEZ, G., La Photogra
graphie. Le Néant Digressions autour d'une mort occtdemste, Paris (Put. col, "Sociologie d'aujou rd'hui), 1986; FREUN D, G., Photographie et Société,
Paris (Seuil: col. "Points"), 1974; FULCH!GNON 1, E., La civítisation de l'image ou les bottes de pandore, Paris (Payot Gol. PBP, 262), 1972; KEIM, JA,
La photographie et L'homme. Sociologie et Psycnotoçie de la photographíe, Paris· Tournai (Casterman: cor, Mutations I Orientaüons), 1971; SON·
T AG, S., La photographie, Paris (Seuil), 1979; VAN LIER, H., Philosophie de la photographie, Bruxe11es {Ed. Jeunesses et Arts Plastiques, Pafais des
Beaux • Arts), 1981 ; VACCARI, Fr., La photographie et l'inconscient tecnnotoçique, Paris (Creatís), 1981.

50
Tinguá- Rio de Janeiro 1979

""

UMA RELAÇAO DE AMOR EM 2 TEMPOS


MARIA ANDRÉA LOYOLA

Trabalhando com a mesma realidade, o fotógrafo e o antro- Escolhi Ana porque gostei de seu trabalho embora, na época,
pólogo podem ter em comum a tarefa de captar a especifici- não soubesse ainda olhar direito uma foto.
dade que caracteriza essa realidade. Mas, além de utilizarem
Urna série de locais e de informantes da pesquisa foram fo-
técnicas que os diferenciam, eles investem-se de disposi-
tografados ao término da primeira etapa do trabalho de cam-
ções e de competências distintas: o fotógrafo, como um ar-
po e os resultados foram reunidos numa pequena encader-
tista, trabalha com a imagem e com a emoção; o antropólogo, nação, cuja seleção e sequência seguiam uma lógica própria,
como um cientista, com a palavra e com a razão. isto é, a lógica do fotógrafo. As fotos ficaram lindas e tecni-
camente perfeitas, mas nós, antropólogos, não ficamos muito
Esse dualismo simplista presidiu, por muito tempo, a relação
satisfeitos. Ou melhor, ficamos "estranhados".
de trabalho que Ana Regina Nogueira e eu iniciamos no final
de 1978, durante a pesquisa que coordenei sobre terapias Depois descobri porque: sem dúvida, um "clima" do local ha-
populares no bairro de Santa Rita, município de Nova lgua- via sido captado, mas esse clima não coincidia com o clima
çu.(1) percebido ou desejado por nós, antropólogos; a emoção do
fotógrafo não casava com a razão (com a emoção, eu diria)
Há muito tempo desejava utilizar a fotografia em minhas pes- do antropólogo; nossas imagens não coincidiam.
quisas, mas não tinha muita idéia de como fazê-lo. Sabia que
não queria um mero registro, mas alguma coisa que comple- Decidimos então que na segunda fase da pesquisa o trabalho
mentasse e se integrasse â análise e que fornecesse ao lei- fotográfico seria desenvolvido juntamente com o nosso, e
tor uma imagem sensível da realidade em questão. Queria não a posteriori como ocorrera com o primeiro. Decidimos
também fotos bonitas, com qualidade técnica e não aquele também que as fotos seriam feitas a cor e montadas num au-
amontoado de sombras mal enquadradas que os antropólo- dio-visual. Assim, imagens e palavras poderiam se integrar
gos em geral costumam fazer. mais facilmente.

51
Os problemas não tardaram a aparecer. Os membros da trabalho e submetida à vingança inconsciente da Ana que,
equipe, não habituados com a presença de um fotógrafo em em nome de todos os fotógrafos, tentava me imputar o papel
campo e percebendo nele a representação (no sentido teatral) que tradicionalmente lhes coube: ó de documentarista/ilus-
de sua própria atividade, ficaram consírançídos e incomoda- trador. Tiriha que ilustrar com palavras, um trabalho que não
dos com sua atuação: achavam que ele desrespeitava os me pertencia, a "visão" de uma realidade que eu não conse-
informantes, penetrando impudicamente em sua intimidade, guia enxergar do mesmo modo.
pela aproximação física excessiva (ctoses) e, principalmente,
pela personafização indevida e totalmente contrária aos Escrevi o meu texto e, naturalmente a briga continuou, Agora
canônes da ciência (registràndo ou fixando impressões, em cima do texto, considerado puramente racional, frio, sem
posturas corporais, objetos pessoais, identificando as pes- poesia ou emoção, em suma, completamente ina~quado à
soas). Afinal, só os antropólogos têm o direito de fazer isso, estética das imagens.
pois assimilaram durante um longo período de aprendizagem,
a técnica de ser indiscreto, de bisbilhotar e de penetrar na in-
timidade alheia, guardando as devidas distâncias. A mim Nessa altura nossas relações estavam tão difíceis, para não
também incomodava esses "avanços" intimistas. Mas ob- dizer impraticáveis, que alguns mediadores foram acionados:
servava, ao mesmo tempo, que os desrespeitados infor- um fotógrafo especialista em audlo-vtsuat e uma antropóloga
mantes estavam bem à vontade (mais à vontade, aliás, que que já havia trabalhado com fotografia. Com uma dose sin-
diante de nosso gravador e de nossas perguntas) e que ado- gular de paciência e vontade de acertar, acompanhamos o
ravam mesmo serem fotografados. Por outro lado, estava cu- trabalho dos dois - ele mexendo com as imagens; ela com o
riosa e, corno coordenadora da pesquisa, tinha que levar o texto - sem chegarmos a uma conclusão. Finalmente deci-
trabalho até o fim. Mesmo porque, o trabalho fotográfico custa dimos fazer uma troca: eu tentaria montar as imagens como
caro e não é visto como essencial ao trabalho dos antropólo- eu imaginava que elas deveriam ser montadas e a Ana tenta-
gos pelas instituições de pesquisa; muito menos pelas agên- ria tornar o texto original mais caloroso. Ela acabou não me-
cias financiadoras. xendo no texto mas retrabalhou longamente minha monta·
gem. No final de uma semana, pondo, tirando, trocando pas-
A parte de fotografia passou então, e lastimavelmente, a ser sando e repassando slides juntas, chegamos a um acordo.
feita de forma separada. Acompanhava a Ana pelos locais
pesquisados e ia lhe indicando o que eu achava que devia Após esta batalha, a escolha do fundo musical foi rápida e
ser fotografado. Falava-lhe longamente sobre a pesquisa e sem problemas e um belo audlo-vlsual me acompanhou em
porque desejava tal ou qual foto. Ela me falava sobre a foto- minha viagem para a França, para onde fui escrever e falar
grafia, sobre as imagens que tinha produzido, que incluía, sobre a pesquisa. Depois de uma dessas palestras me fize-
além das fotos que eu solicitava, inúmeras outras de sua ram o seguinte comentário: "sem o audio-visual seria difícil
própria iniciativa. A refação correu solta, comunicativa, apai- entender muita coisa do que você disse."
xonante.
Um ano depois a Ana apareceu em Paris. Mostrei-lhe o artigo
Até que chegou o momento de montar o audio-visual. Rece- sobre a pesquisa que havia escrito para a revista ACTES OE
bo, logo no início, um telefonema da Ana dizendo que a parte LA RECHERCHE EN SCIENCES SOCJALES e, morrendo
visual do audio estava pronta e que eu fosse vê-la para ela- de medo, as fotos que havia selecionado para acompanhar o
borar o texto. Estranhei que tivesse sido excluída desse pro- artigo. Seu comentário foi simples: Perfeito! A mesma palavra
cesso, mas fui ver para crer. E, como eu temia, o que vi não ouvi dela quando lhe mostrei as fotos selecionadas para o li-
tinha nada a ver com o que eu imaginava. Repetindo o pro- vro que escrevi, também na França, sobre a pesquisa.(2)
cesso da primeira etapa, ela havia selecionado as fotos por
sua qualidade estética e as sequenciado segundo a mesma Como e por quais caminhos chegamos a esta "perfeição" eu
lógica: pelo "barato" ou emoção que certas imagens, coloca- não sei dizer mais do que disse. O fato é que hoje acho que
das juntas, provocavam. já sei olhar uma foto e me sinto mais preparada para lidar
com o fotógrafo e explorar melhor a fotografia em meu traba-
Aí, começou a briga. Ela não abria mão desse princípio; eu lho. E acho que a Ana descobriu que uma foto não perde sua
achava que tanto a seleção quanto a sequência das fotos qualidade estética, nem o fotógrafo o seu valor, pelo fato de se
deviam exprimir um "barato" estético, mas principalmente, a integrar numa lógica outra. Eu reelaborei minha visão das fo-
realidade investigada tal como eu a concebia ou enxergava. tografias depois de haver analisado o material da pesquisa
Na época achava, inclusive, que o roteiro das fotos devia (no início achava que elas deveriam revelar o escopo empí-
corresponder ao nosso roteiro empírico: mostrar Nova lgua- rico da pesquisa; depois, as idéias centrais que nortearam a
çú, o trem lotado no qual as pessoas iam e vinham, a estrada análise), e ela também depois de ter lido o meu artigo. Nesse
poeirenta que levava a Santa Rita, o aspecto geral do bairro, terreno conceituai e abstrato nossas sínteses se encontra-
as fossas a céu aberto, 1 o interior das casas, o trabalho e o ram, nosso conflito se apaziguou. Como é difícil, não obstante
cotidiano das pessoas e, em seguida, os agentes de saúde, possível, nas relações interdisciplinares em geral, criou-se
seus rituais e suas práticas. um espaço em que as fronteiras se dissolveram e a realidade
que cada uma tentava aprisionar, e aprisionou, à sua maneira
Por um bom momento ficamos nesse impasse, sem que uma se impôs para além de novos embates profissionais.
nem outra abrisse mão de suas razões. Resolvi dar um tem-
po e escrever o texto. Sentia-me como numa perna só, tendo Sobre o pressuposto colocado no início e explicitado durante
que falar sobre imagens "sem imagens" ou sobre imagens a montagem do audio, que passamos a discutir com frequên-
sem um imaginário próprio. Sentia-me expropriada de meu cia desde então, eu faria os seguintes reparos. Se o fotógrafo

52
se ancorou na estética ou na linguagem pessoal para abrir ou se de seus métodos e técnicas de pesquisa. Da mesma for·
alargar seu espaço social, para diferenciar-se dos retratistas, ma que o antropólogo analisa e critica a realidade que obssr-
ilustradores, jornalistas e da massa de fotógrafos amadores va, o fotógrafo também o faz.
que as kodaks da vida fazem proliferar todo dia, para impor
sua autonomia e enobrecer sua arte ou o seu trabalho, ele A diferença fundamental entre os dois está, a meu ver, no
não tem por isso o privilégio da emoção, nem deve abrir mão fato de que o fotógrafo recorta e fixa a realidade, decompon-
da razão, como exclusividade da ciência. do-a, analisando-a e sintetizando-a no momento do click, en-
quanto o antropólogo registra, recorta, decompõe e remonta a
Fotógrafo e antropólogo têm em comum o fato de que ambos realidade num novo todo que constituí a sua síntese. Se as
sintetizam a partir de datalhes; estão atentos às linguagens teorias e a tecnologia orientam o trabalho do fotógrafo, e as
do corpo, dos gestos, assim como a das expressões e dos teorias sociais e Metodologia Científica o do antropólogo, na
costumes e as incorporam à sua própria linguagem. Ambos prática esse processo, para ambos, me parecer ser um só: o
produzem imagens e dirigem o olhar do observador/leitor so- da criação. Criação que, quando eles operam em conjunto,
bre a realidade. Se a emoção conduz e determina o cfick do será melhor e mais produtiva se o antropólogo informar o
fotógrafo, é também a emoção que, em grande parte, conduz olhar do fotógrafo e o fotógrafo iluminar o olhar do antropólo-
a escolha, a percepção e a relação que o antropólogo man- go.
tém com seu objeto de estudo, até o término de cada um de
seus trabalhos e, muitas vezes, por toda a vida. Assim como
o fotógrafo utiliza-se da técnica fotográfica para enquadrar MARIA ANDRÉA LOYOLA (Brasil)
sua emoção, da mesma forma o antropólogo o faz, servindo- antropóloga

lt deals with the refation between anthropology and ptiotoçre- Se trata de la relación entre la antropologia y la fotografia, a
phy from the concrete working experíence lived by a pnoto- partir de una experiencia concreta de trabajo que vivieton una
grapher and an anthropo/ogist (and her party) during a reser- fotógrafa y una antropóloga (y sus compsiieros de trabajo}.
ch on popular therapies. ft discusses certains presupposi- Discute unas premisas que orientam dicha retecôr; que se
tions which orientate that relation made clear in tne workíng tueron evidenciando a lo largo dei proceso de trabajo, y
process and brings forward some hypotheses about the pos- plantea atgunas hipótesis sobre las possibilidades y los limi-
síbilities and the fimits of interprofissional performance using tes de la ectuectôn interprofesional, cuya referencia es la ín-
as reference the nature and the singularities ot anthropotogy dole y la especificidad de la antropologia y de la fotograffa.
and photography.

NOTAS
1 Essa pesquisa foi patrocinada pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e financiada pela FINEP (Financiadora de
Estudos e Projetos). Seus resultados em português, encontram-se no livro de minha autoria, Médicos e Curandeiros, Conflito Social e Sa6de,
São Paulo, Difel, 1984.
2 M.A. LOYOLA - L'Esprit et le Corps; Des therapeutiques populaires dans la banlieu de Rio. Paris, Editions de la Maison des Sciences de L'Homme,
1983. . .

. 53
A REPRESENTAÇÃO !CÔNICA NA COTIDIANIDADE
DO OPERÁRIO SAPATEIRO DA CIDADE DE FRANCA-SP
FERNANDO DE TACCA

A REPRESENTAÇÃO !CÔNICA NA COTIDIANIDADE As fotografias escolhidas para este trabalho fazem parte de
DO OPERÁRIO SAPATEIRO DE FRANCA aproximadamente 1.200 fotogramas captados em pesquisa
de campo realizada durante todo o ano de 1986. Três câma-
ras simples 35 mm foram colocadas em sistema de rodízio
com 13 operários e operárias subdivididos em quatro grupos.
Este trabalho pretende realizar uma leitura semiotógicade al- Cada indivfduo esteve com a câmara por dois meses e foto-
guns aspectos perceptivos da visualidade de um grupo social grafou semanalmenteos seguintes temas: a família, os obie-
claramente definido. tos pessoais, a casa, o bairro, a cidade, o caminho do traba-
lho e a fábrica. Foi-lhes dado somente o instrumental opera·
Fornecer o material necessário para que o operário sapateiro cional mínimo para o manuseio da câmara não sugerindo-
fotografasse o seu meio cultural, ou seja, fotografasse a si lhes nada atém destes grandes temas. O critério de selecío-
mesmo, resultou em um auto-retrato. namento das fotos foi unicamente de portarem alguma forma
de representação icónica ou mesmo de inserir, no recorte
A premissa básica desta pesquisa é de que o ato de foto- fotográfico, veículos de transmissão de signos icónicos. Fo-
grafar é um ato valorativo de atribuição de importância e o ram escolhidas vinte e oito fotografias do total, sem a preo-
auto-retrato resultante do olho cultural do operário. Ao inver· cupação inicial de identificação do autor.
termos o olho produtor da imagem fotográfica, mudou-se
Parti do corpo conceituai desenvolvido na proposta teórica de
também toda uma relação de poder presente no uso da foto-
Humberto Eco que identifica nos signos icónicos a reprodu-
grafia como documentação social.
ção de "... algumas condições da percepção comum, com
base em códigos perceptivos normais e selecionandoos es-
Esta proposta nos colocou perante uma nova problemática
tímulos que podem permitir se construir uma estrutura per·
da Antropologia Visual, qual seja, nos colocou frente ao re-
ceptiva que possua o mesmo significado da experiência real
corte fotográfico da realidade produzido pela ótica do operá-
denotada pelo signo icónico (Eco: 76: 102). Assim, indepen-
rio. dente das relações de analogia, similaridade, proporcionali·
dade, ou "nativa semelhança", defendida por outros autores
A visão fotográfica do universo operário que nos ê apresen- (Barthes, Peirce, Morris), os signos icónicos seriam aqueles
tada pelas fotografias mostrou que até a mais luminosa obje- que"... estimulam uma estrutura perceptiva semelhante
tiva de um fotógrafo-pesquisadorteria dificuldades em pene- àquela que seria estimulada pelo objeto imitado" (Eco: 80:
trar na intimidade registrada por este olhar. 171 ).

Propor, analisar este rico material através da aplicação de um Os signos icónicos seriam, assim como outros signos, uni-
dades distintas, reconhecidas e identificadas socialmente em
instrumental teórico construído pela reflexão semiológica,
qualquer cultura. Esta "unidade cultural", abstrações meto-
permitirá, acredito eu, aprofundarmos o uso da fotografia co-
mo um método de pesquisa e de comunicação visual na an- dológicas que são, articulam-se através da cultura na qual se
inserem e transformam-secontínua e ininterruptamentede uni-
tropologia.
dades culturais formadoras e geradoras de outras unidades
Assim, pretendo neste pequeno trabalho investigar e tentar culturais.
decodificar parte do universo visual do operário sapateiro Eco utiliza-se do conceito peirceano de "semiose ilimitada"
tendo com eixo os signos e representações icónicas pre- definido enquanto condição primeira de significação e de pro-
sentes em seu cotidiano. cesso semiótico através da contínua circularidade dos sig-
nos. Entretanto, critica Peirce de não compreender que o
signo final desta cadeia é melhor compreendido em termos
li de um "campo semântico", uma estrutura integrado que in-
terliga os signos entre si. Este "campo semântico" entendido
Ao recortar sua realidade pelo ato de fotografar, o sapateiro enquanto um sistema semântico, dependente de uma codiíi-
valorizou duplamente estes signos. Primeiro, porque eles já cação concretizada peta experiência perceptiva, implica em
faziam parte de seu mundo simbólico e segundo que, ao fo- associarmos ao código icónico um código de reconhecimento
tografá-tos, acrescentaram-lhes uma forte dose vatoraüva, regido por convenção cultural ou mesmo por um "modelo
seja pela livre escolha, seja pela segmentação espacial. icónico dominante".

54
Aproximamos aqui da argumentação de A. Schaff de que em A fotografia será considerada sob dois aspectos intrrnsica-
qualquer cultura os indivíduos que dela participam são porta- mente ligados entre si. Primeiro, a fotografia será considera-
dores de "óculos sociais" através dos quais internalizam es- da um código icónico e em segundo será considerada como
teriótipos de percepção. Este conceito amplia a tese de Sa- um código que possui apenas a primeira articulação. Des-
pír-Whorf da língua como veículo modulante da construção da tarte, os semas só são. analisáveis nos signos e as figuras
realidade. Impostos historicamente por determinada cultura, não seriam reconhecidas nos signos. Como diz Eco: "Visto
os "óculos sociais" enxergam aquilo que lhe é peculiar e que a recognoscibitidade dos signos icónicos ocorre ao nível
identificado com tal, já que são gerados por "corredores se- do sema-contexto-côdiqo" .•• "A catalogação das imagens fi-
mânticos e ísotópícos" impregnados pelos traços ideológi- gurativas enquanto codificadas devem ocorrer ao nível das
cos-culturais desta sociedade (Blikstein: 85: 61 ). unidades semânticas, esse nível é suficiente para urna se-
miologia das comunicações visuais" (Eco: 76: 135).
Ao investigarmos um campo ou corredor semântico de uma
dada cultura, ou no nosso caso, da visualidade de uma clas-
Ili
se social, a própria técnica da obtenção dos dados já é em si
mesma um "óculos". Os "óculos sociais" aqui são as pró-
Identificamos assim nove campos semânticos ou corredores
prias câmaras fotográficas. Temos então uma superposição
isotópicos construtores do código icônico presente na cou-
de iconicidade: os objetos e imagens que são signos icõnicos
dianidade de operário sapateiro: a indústria cultural, os meios
presentes no cotidiano representados por imagens fotográfi-
de comunicação de massas, a reprodução biológica, a se-
cas geradas pelos próprios operários. Signos icónicos filtra-
xualidade, a religiosidade, o infantilismo, o trabalho operário
dos e selecionados por outra representação icônica, o signi-
cotidiano, o status e o próprio código fotográfico.
ficante se transforma em significado que novamente se
transforma em significante. Estes campos semânticos se intercruzaram entre si e aru-
cularn-se intrínsicamente relacionados uns nos outros. De
Caberia aqui então a pergunta: é a fotografia uma linguagem urna certa forma, eles se complementam mutuamente tendo
com os atributos de uma língua? Eco nos propõe conside- em vista reforçar a reprodução do sistema.
rarmos o conceito de língua somente para aquelas em que a
existência da dupla articulação é indubitavelmente reconhe- Se por um lado a indústria cultural se faz presente intensa·
cida e aceita e a todos outros sistemas sfgnicos e plurisígni- mente no espaço privado e íntimo, os meios de comunicação
cos, com as mais variadas articulações, chama-os de códi- de massas, por atingirem a unidade familiar em bloco atuam
no privado, mas, coletivo. A impossibilidade de fixação da
gos.
imagem em movimento na televisão e no cinema conduz ao
Sabemos das dificuldades de extraposição dos conceitos lin- espaço privado e íntimo dos quartos, o convívio com as ima-
güísticos originados em Saussure quando aplicados especifi- gens de rádio, televisão e cinema.
camente à fotografia. Barthes, em seu livro "A Câmara Cla-
ra", identifica as chamadas "unidades isoláveis" ou unidades A reprodução puramente biológica próxima que é da sexuali-
mínimas de segunda articulação em determinadas fotoqra- dade reprimida além de acentuar o vasto campo da reprocu-
ção da mão-de-obra nos leva a relacioná-los com certo infan-
fias.
tilismo que se faz presente tanto no espaço privado como no
Entretanto, esta unidade chamada por ele de "punctun" é de privado íntimo. Entendendo este infantilismo como a pé· 3·
uma construção conceituai indefinida e serve mais para seu nência de elementos infantis no mundo adulto, em alguns ca-
subjetivismo pessoal do que para uma proposta metodológica sos o cachorro de pelúcia permanece intocavelmente envolto
aplicável na análise da imagem fotográfica. em um plástico protetor ou mesmo no lugar mais alto da es-
tHte, longe das crianças; detectamos aqui uma relação de
Ao desmistificar o dogma da dupla articulação como condi- nao maturidade que interessa sobretudo para a reprodução
ção essencial para a existência de linguagem, Eco encontra das relações de dominação.
códigos comunicativos com diferentes articulações e nos
propõe uma terminologia baseada nas categorias criadas po A religiosidade acentuada pela tentativa de penetração no
Luís Príeto (Eco: 76: 128). Os códigos ícõnicos articulam-se espaço mítico-religioso da imagem de Cristo, através da
então em três elementos chaves: aproximação máxima da câmara fotográfica com o objeto fo-
tografado, encontra paralelo com a mesma atitude em relação
1 - As Figuras: - são geralmente os elementos dos signos ao mundo fantástico do vídeo.
e considerados somente com valor diferencial, não partíci-
pando do significado denotado pelos elementos de primeira A forte relação entre estes dois campos originada no código
fotográfico, permite-nos identificar o que J, Baudrillard chama
articulação.
de "realidade ausente" do "homem do arranjo" onde "A orga-
2 - Os Signos: - são elementos de primeira articulação que nízaçao das coisas •.. é sempre ao mesmo tempo um registro
poderoso de projeção e de bloqueio" (Braudrillard: 73: 35).
denotam através de artíffcios convencionalizados e são iden-
Neste sentido, a estante do único operário com cargo de
tificados tendo o sema como contexto de análise.
chefia ( chefe de seção) que participou da pesquisa, nos de-
3 - Os Semas: - são os chamados enunciados icônicos monstra o desejo de ascensão social como também já marca
complexos e constituem o contexto que permite eventual- a sua diferença em relação aos outros operários. O retrato da
menina com o braço por cima da televisão colorida, como se
mente reconhecer os signos icônicos" (Eco: 76: 137)
55
fosse um membro da família, nos indica ctaràmenteuma rela- Se todos campos semânticos e corredores isotópicos apare-
ção arranjada de demonstrar status. cem como reprodutores do "modêlo icónico dominante" e em
consequência da reprodução do próprio sistema, será atra-
Será no trabalho operário cotidiano que aparecerá o signo vés do código fotográfico, tendo como suporte o corpo hu-
icónico de todos os dias da vida do sapateiro: a forma, mo· mano, que o sapateiro deixa de reproduzir o código ícõníco
deto em madeira ou plástico do pé humano que permite a fa- cotidiano. Nestas duas fotos, o sapateiro utiliza-se do código
bricação do calçado. A fotografia, tirada em ângulo bem fotográfico e do próprio corpo para significar, rompendo desta
acentuado de baixo para cima, nos apresenta a forma em forma, com os esteriótipos da percepção que lhe são impos-
primeiro plano e corta o operário que a segura pelo meio, dei- tos.
xando-o no anonimato. O ângulo, que evidencia uma suomis-
são ao signo icónico ao mesmo tempo que tenta fugir do
controle fabril ao se abaixar, nos mostra que este signo se
caracteriza como o grande signo icónico opressor da cotidia- FERNANDO DE TACCA (Brasil)
nidade operária. fotógrafo

This work intends to perform semiotíc reading and decode Este trabajo se propone a realizar la /ectura semiótica y a
aspects ot the imagery of a certain social ctess. Tbe tecnnlcst descodificar aspectos imaginar/os de una ciene e/ase social.
equípment was given to workets ot some shoe tectones in Equipamento técnico tué fornecido a trabajadores de a/gunas
Franca, State of São Paulo (Brazil) to photograph themse/ves fábricas de cstzedo, en la ciudad de Franca, Estado de São
and their own societ environment, resulting in tne projection of Pauto, Brasil, para que pudiesen fotografiarse a si mesmos y
images through their own cultural condiuons. So, this resera- a su propio ambiente cultural, resultando una proyección de
ch deals wíth the iconic representations of tne worker's daily su ímágen através de condicionamentos cultura/es propios.
fite through photos teken by them. Este estudio trata, est, de las representaciones iconográficas
de la vida diaria de los trabajadores através de las totograffas
tomadas por e/los mismos.

BIBLIOGRAFIA

Barthes, Roland - A Câmara Clara - Col. Arte e Comunicação, Lisboa, 1980.

Baudrillard, Jean - O Sistema dos Objetos - Perspectiva, Cor. Debates, 1973, São Paulo.

Blikstein, lzidoro - Kaspar Hauser ou a Fabricação da Realidade - Cultrix, 1985, São Paulo.

Eco, Humberto - A Estrutura Ausente - Perspectiva, Col. Estudos, 1976, São Paulo. -As Formas do Conteúdo - Perspectiva, 1974, São Paulo. - O Signo
- Ed. Presença, 1985, lisboa - Tratado Geral de Semiótica - Perspe<:tiva, Col, Estudos, 1980, São Paulo.

56
A REPRESENTAÇÃO JCÔNICA NA COTIDIANID~DE
DO OPERÁRIO SAPATEIRO DE FRANCA

Foto 1 Foto 4

Foto 2 Foto 5

Foto 3 Foto 6
57
Foto 7 Foto 10

Foto 8 Foto 11

~::il!.~"':~,'i'7D1lJ.~•:t;~:tii1Fftlft~~\,.,
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58
Foto 13 Foto 15-A

Foto 14

Foto 15 Foto 17 59
Foto 16 Foto 20

Foto 18 Foto 21

Foto 19 Foto 22
60
Foto 23 Foto 26

Foto 24 Foto 27

1 F ernanoo de T acca
Mestrando do Departamento de Muttimeios
IA. - UNICAMP

2 Pesquisa com o apoio do INFOTO-FUNARTE (Concurso Marc Ferrez


- 84) e da UNICAMP

Foto 25 61
QUADRO 01

Sema icônico {a fotografia)

Suporte Espacialidade Campo Semântico ou


Signos !cônicos ou Relaçiio com outros Relação com objetos Observações Corredor Isotópico
Unidades Culturais Signos lcônlcos pessoas/situação

foto - 01 Terço Interior Indústria Cultural


Reprodução fotográfica - Cama Privado Íntimo Religiosidade
de ídolos de radio e TV Pessoa donnindo

foto- 02 Pessoa dando destaque Interior Indústria Cultural


Reprodução fotográfica Boneca a uma das reproduções Privado Íntimo Infantilismo
de ídolos de rádio e TV

foto-03 Pessoa em 1 Q plano Interior Indústria Cultural


Reprodução fotográfica - âng. de baixo para cima Privado Íntimo
de ídolos de rádio e TV

foto -04 Pessoa em 1'? plano lnteriorlPrív. Íntimo Indústria Cultural


Beprodução fotográfica - âng. de baixo para cima Nas fotos 19/20 um
de ídolos de rádio e TV fotografou o outro

Fotográfico foto- 06 Porta fechada lnterior/Priv. íntimo Indústria Cultural


Reprod. fotog. de - ângulo baixa para círna Objeto do desenho Sexualidade
mulher nua

foto-06 Exterior Indústria Cultural


Reprod. fotográfica - - Público Sexualidade
out-door/carro de corrida

foto - 07 Foto fixado no alto Interior Religiosidade


Foto da mãe - âng. baixo para cima Privado Sexualidade

foto -08 Foto do pai ausente Interior Religiosidade


Reprodução fotográfica Imagem da cruz - Privado
do Papa
QUADR002

Sema icônico (a fotografia)

Suporte Espacialidade Campo Semântico ou


Signos tcõnicos ou Relação com outros Relação com objetos Observações Corredor Isotópico
Unidades Culturais Signos lcônicos pessoas/situação

foto - 09 - Cama Interior Infantilismo


Boneca Privado Íntimo Reprodução

foto-10 - Criança Interior lnfantílismo


Cachorro de pelúcia Sofá Privado

foto - 11 - Armário Interior Infantilismo


Cachorro de pelúcia Rádio Privado

foto- 12 Imagem sagrada Estante Interior Infantilismo


Escultural Cachorro de pelúcia Rep. fot. de crianças TV Privado M.C.M.

foto -13 - Estante Interior Infantilismo


Cachorro de pelúcia TV Privado M.C.M.

foto-14 TV ligada - Interior Infantilismo


Cachorro de pelúcia Privado M.C.M.

foto -15 Outras formas Apresentação da forma Interior /Público Trabalho operário
Forma de sapato âng. baixo para cima Único sg. lcõn, fotografado cotidiano
na fábrica

foto-15-A - Operária recém-casada Interior Infantilismo


Cachorro de Pelúcia Sentada na cama do casal Privado

M.C.M. - meios de comunicação de massas


QUADRO 03

Sema icônico (a fotografia)

Suporte Espacialidade Campo Semântico ou


Signos tcõnícos ou Relação com outros Relação com objetos Observações Corredor Isotópico
Unidades Culturais Signos lcônicos pessoas/situação

foto -16 Imagem sagrada Rádio Interior Infantilismo


Imagens infantis Bonecas Cãm, fotográfica Privado íntimo Religiosidade
Cômoda

Desenho/ foto- 17 - Espelho Interior Religiosidade


Pintura Imagem de Cristo Privado Código. fotográfico

foto-18 - - lnterior/Priv. ínt. Religiosidade


Imagens sagradas Aproximação máxima

loto -19 - Âng. cima p/baixo Exterior/Priv. ínt. Religiosidade


A perna da mãe fragmentando o corpo Foto levada a um ex-votos Código fotográfico

o Corpo foto- 20 - Espelho lnterior/priv. fnt. Código fotográfico


Auto-retrato Único auto-retrato da pesquise
QUADR004

Sema icõnico (a fotografia)

Suporte Espacialidade Campo Semântico ou


Signos Icónicos ou Relação com outros Relação com objetos Observações Corredor Isotópico
Unidades Culturais Signos Icónicos pessoas/situação

foto - 21 - Estante/rádio/telefone/máq. Interior/Privado Status


TV de escrever Foto feita pelo único operário M.C.M.
e/cargo de chefia

foto - 22 TV ligada Pessoa vendo TV Interior M.C.M.


TV Solá Privado
Estante
foto - 23 TV Rádio Interior/Privado M.C.M.
TV Rádio aparecemem
nível inferior

Veículo de foto -24 TV ligada Criança com braço Privado Status


de transm TV em cima da TV Privado M.C.M.
l
de signos Rei. íntima
icónicos

foto - 25 TV ligada - Interior M.C.M.


TV Privado

foto - 26 - - Interior/Privado M.C.M;


TV Íntimo
Aproximação máxima

foto -27 - - Exterior M.C.M.


Prédio do cinema Público

foto-28 - - Interior/Publico
Foto do ídolo na Tentativa de resgatar M.C.M.
tela do cinema um instantâneo do filme

O)
Ol
Moças Kamayurá - Xingu 1978

FOTOGRAFIA E PESQUISA ANTROPOLÓGICA *


MILTON GURAN

A utilização da fotografia na pesquisa antropológica pode as- mamente rápida da realidade, a fotografia permite inventariar
sumir um papel extremamente enriquecedor na medida em cenários, eventos e circunstâncias, e, sobretudo, fixar o im-
que a foto avance da condição de material ilustrativo para a previsto e o inusitado.
de dado antropológico, abrindo novas possibilidades para
uma participação mais ativa no conjunto da investigação. Assim como o cinema, a fotografiaao representar a realidade
Neste sentido, a fotografia, ao se enriquecer de elementos o faz de maneira particular, possibilitando uma leitura tanto
antropológicos, torna-se capaz de viabilizar uma reflexão mais rica quanto a capacidade do leitor de se aperceber das
objetiva de como indivíduos ou grupos sociais representam, representações contidas na imagem, uma vez que esta não
organizam e classificam suas experiências. se reduz a uma mera transcrição. É enorme a distância que
separa o ato de operar um equipamento fotográfico - sobre-
Consideramos, assim, a Antropologia Visual como a adequa· tudo se se tratar das modernas câmeras automatizadas - e a
ção da linguagem fotogrâfica e cinematográfica às necessida- utilização maximizada desta tecnologia por quem domine a
des da pesquisa antropológica, assumindo a função de um linguagem fotográfica. Pelo menos tão grande quanto a exis-
instrumento sistemático de investigação, e também de um tente entre a expressão de um sentimento por quem saiba
recurso para demonstração das conclusões, com discurso apenas falar, e esse mesmo sentimento cristalizado por um
próprio. poeta. No entanto, a fotografia, por ter se tornado uma ativi-
dade de massa, acabou tendo o entendimentodo seu discur-
A fotografia é uma técnica de representação da realidade so e a consequente manipulação de sua linguagem listados
que, pelo seu rigor e particularismo, constitui linguagem pró- no rol das coisas "simples".
pria e inconfundível.Sendo a participação do autor (fotógrafo)
balizada por uma técnica rígida e completamente vinculada Consideramos que nem tudo que se vê é fotografável, ou
às condições dadas, uma foto pode traduzir com bastante ri- seja, pode ser traduzido de forma eficiente através da lingua-
gor a evidência do real. E possibilitando a apreensão extre- gem fotográfica. Por outro lado, uma das potencialidades da

66
fotografia é destacar um aspecto particular que se encontra As possibilidades técnicas da fotografia, e a escolha do equi-
diluído em um vasto e sequenciado campo de visão, explici- pamento também devem ser considerados: quanto mais sim·
tando, através da seleção do momento e do corte, singulari- pies, mais fácil de se trabalhar e de se relacionar com a co-
dade e transcendênclade uma cena. O ato de fotografar se munidade estudada. Outro aspecto essencial é o respeito
realiza em um átimo de tempo, e nele se resume toda a com- peta luz ambiente, e portanto pelo "clima", não só como téc-
plexidade e singularidade da fotografia. Trata-se de efetivar nica de descrição mas como estratégia de abordagem: um
um reconhecimentoantecipado: aquilo que é visto não é mais "flash" é sempre uma interferência negativa, embora haja ca-
foto, já passou. Satisfeitos os pré-requisitos técnicos - aferi- sos em que é inevitável. Na pesquisa antropológica a inten-
ção da luz, velocidade de registro, profundidade de campo - ção é fotografar o possível, e não mobilizar uma aparelhagem
é a feição da luz e seleção do momento, ou seja, o instante em sofisticada para viabilizar uma foto inexequível.As exceções
que todo o conjunto de fatores técnicos e os dados de con- existem, mas devem ser consideradas como tal.
teúdo se integram, atingindo a plenitude da expressão plástl-
-ca fotográfica, que separam o bom do mau resultado em fo- Questão relevante é a escolha entre a foto cor e a preto-e-
tografia. Seja qual for o objetivo da foto de campo, a escolha branco. Já foi dito que a foto colorida tenta imitar a realidade,
do momento é fundamental para a otlrnização do resultado. e a preto-e-branco a representa. De fato, afora o fato da du-
Portanto, fotografar se toma um ato pessoal e intransferível, rabilidade da documentação (a foto cor não tem a mesma
resultante da imprescindível interação entre o fotógrafo e o estabilidade de imagem) a foto preto-e-branco vai muito mais
conteúdo da cena abordada. além em eloquência e poder de síntese, embora a cor possa
ser essencial em muitos casos. Na verdade, ao longo de um
Esse aspecto primordial da atuação do fotógrafo acaba in- trabalho de documentação quase sempre é possível conju·
fluenciando sua relação em qualquer trabalho de caráter in- gar-se com vantagens a cor e o preto-e-branco.
terdisciplinar, sobretudo no que o envolve com um antropólo-
go em trabalho de campo. No caso da fotografia de cinema e Acreditamos que são imensos os ganhos da Antropologia em
de vfdeo a solidão do fotógrafo nos parece menos absoluta, recorrer ao uso da fotografia na pesquisa de campo, estabe-
uma vez que a linguagem fílmica se baseia em planos reçís- lecendo as suas formas de produção e utilização a partir da
trados em 24 fotos por segundo, enquanto a foto fixa é muitas interação entre antropólogo e fotógrafo, e de seus respecti-
vezes colhida no milésimo de segundo. Não se trata, então, vos campos de atuação.
de compartilhar o corte do real, mas sim de prever (ou intuir)
e captar um momento-síntese representativo do universo ob- O trabalho interdisciplinartem consagrado o uso da fotografia
servado. Solitário e discreto em comparação a uma equipe para:
de filmagem, o fotógrafo depende da sua capacidade de gerar
empatia com os indivíduos fotografados, e, na maioria das - descrição sistemática;
vezes, de não alterar com sua presença o desenrolar de uma
cena para proceder a uma boa documentação. - registro das relações sociais, simbolismo etc.;

- como instrumento-chavede pesquisa e devolução cultural.


No caso da documentação fOmica, o intercâmbio de idéias
consubstancia-se na direção de cena. Neste procedimentoa
co-autorla é viável, permitindo uma maior participação do an- A descrição talvez seja o modo de utilização da foto mais fá-
tropólogo na obtenção do produto de imagem em sr. Na foto- cil e evidente, capaz de substituir e/ou complementar o ca-
grafia, a interação entre antropólogoe fotógrafo se dá em ou· derno de notas com vantagens diante de situações de gran-
tro tempo, anterior ao ato de fotografar. Na documentaçãode des complexidade visual, a exemplo da vida cerimonial de um
caráter antropológico é fundamental que o fotógrafo esteja povo. Entende-se, no entanto, que a descrição não resulta
instrumentalizado pelo antropólogo,tendo uma clara definição necessariamente de um registro exaustivo, sendo muito mais
do objeto de estudo, para que esteja apto a perceber o que, o fruto de uma seleção criteriosa de aspectos e momentos
como e quando deve fotografar, bem como a avaliar os limi- significativos da realidade enfocada.
tes impostos pelo grupo estudado no trato das questões que
são de domínio público ou de domínio privado. O mais importante é que a fotografia tanto pode ser o ponto
de partida quanto o resultado final. Ela pode propor a ques-
Documentação fotográfica não é reportagem, e portanto não tão, e buscar a resposta. Isso é particularmentemarcante no
se baseia em fotos "roubadas". O flagrante faz parte do dis- registro das relações sociais, onde os indivíduos se definem
curso fotográfico, e é mesmo peça fundamental,mas no caso também através da linguagem gestual. É a partir daí que a
da pesquisa antropológica mas vale o registro do fato conti- foto como "instrumento-chave" de pesquisa mostra seu po-
nuado - e ar sim, a escolha do momento mais denso - do tenciat inquiridor, quando devolvida aos indivíduos fotografa·
que a busca de uma situação fugaz que talvez interfira no dos. Ela contém um complexo e revelador inventário de ele·
contexto. mentos sempre visto com interesse pelo fotografado na me-
dida em que espelha sua própria realidade.
Lembremos ainda que o ato de fotografar é sempre crítico, ou
seja, por mais isento que se pretenda é determinado pelo A eficiência do uso da documentação fotográfica se dá em
conjunto de conceitos que o fotógrafo traz dentro de si. Ê im- função do acompanhamento das informações obtidas pelo
portante tentar neutralizar esta bagagem cutural e buscar o antropólogo, indicadoras do que deve ser registrado para
'ponto de vista dos indivíduos fotografados ao se descrever servir de suporte a posterior demonstração de conclusões,
seu universo. ou possibilitar a descoberta de aspectos até então desaper-

67
cebidos. O trabalho de documentação. se realiza finalmente como "ilustrações". Este descaso com a imagem reflete a
na leitura das fotos, sua análise enquanto fonte de dados ou origem literária do discurso científico e o tipo de formação dos
demonstração de conclusões. quadros acadêmicos. Por outro fado, a formação do fotógrafo
é absolutamentedesorganizada,feita a partir da sensibilidade
Sem entrar nas possíveis conceituações de Antropologia Vi· individual, e muitas vezes carente de base mínima que per-
suai, mas considerando apenas a fotografia enquanto parte mita um entendimento mais global do discurso antropológico.
do instrumental da pesquisa antropológica, que nos parece a
base de qualquer trabalho experimental neste carneo, a pri- O importante, portanto, é que o antropólogo apreenda a lin-
meira providência é entender a fotografia enquanto lingua- guagem fotográfica, e o fotógrafo, por sua vez, se familiarize
gem. Uma aproximação entre os discursos antropológico e com o método e o objetivo da pesquisa antropológica, espe-
fotográfico é condição essencial para que o trabalho possa cializando-se neste tipo de documentação.
ser desenvolvido. E isso não tem se mostrado muito simples,
haja vista a apropriação frequentemente feita pela antropolo- MJLTON GURAN (Brasil)
gia de fotos tecnicamente deficientes, usadas normalmente fotógrafo

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68
EI artículo enfoca fa fndole interdisciplinaria de fa labor en co- lt deafs with tne refation between these two disciplines: Pho-
mún de te totograffa y la antropologfa, y de la relación de tre- tography and Anthropology, and with the work relation betwe-
bajo entre fotógrafo y antropólogo. Reflexiona sobre e/ len- en tne photographer and tne anthropo/ogist. The author thinks
guage fotogr~fico y las aplicaciones de te fotografia a la in- over tne photographic language and the photographing ect,
vestigación antropofógica. conskietinq eteo tne uses of photograpy in the anthropological
reseetcb.

• Este trabalho é resultado da experiência de documentação fotográfica da pesquisa levada a efeito pela antropóloga Ana Lulza Fayel Sanas, da Unlversi-
dade de Brasília, entre caladores de lixo da periferia de Brasília, no período de 1982-3. A documentação foi objeto de um projeto especifico de experí-
mentação das utilizações da fotografia na pesquisa antropotógíca apoiado pelo CNPq, e, mais tarde, serviu de material de estudo durante o Curso de Pós·
Graduação "Latu Senso" em Antropologia - Recursos Audiovisuais na Etnologia, da Universidade Católica de Goiás (1963). Como resultado final foi
feito um audiovisual de 15 minutos chamado "Gente não é Lixo".

69
ALGUMAS QUESTÕES DA DOCUMENTAÇÃO AUDIOVISUAL
PARA ANTROPOLOGIA
KIM-lR-SEN P. LEAL

Roberto da Mana em "Relativizando: uma Introdução à Antropologia So· também como fotógrafo, pois essa atividade implica na mani-
clal": "Mas a gente nunca deve esquecer que há muito tempo para boas pulação de uma linguagem especffica, cobra técnicas e mé-
fotos e que as melhores monografias antropológicas foram escritas com
todos particulares que apesar de não diferirem em muitos
imaginação e boas teorias, não com fotografias perfeitas". (p, 120)
pontos da prática etnográfica exigem posicionamentos e
posturas diferentes.
Nós, praticantes do documentarismo audiovisual para ciên-
cias sociais questionamos esta colocação pois acreditamos
Segundo a opinião mais generalizada dos livros-textos, prati-
que podem ser produzidas excelentes monografias antropoló-
car a etnografia é estabelecer relações, selecionar infonnan-
gicas e etnográficas (ou etnofotográlícas) com imaginação e
tes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear cam-
boas fotografias. Usamos o exemplo apenas para introduzir a
pos, manter um diário e em alguns casos aprofundar o este-
convicção de que as atividades devem ser separadas. Não
do da língua.
que o antropólogo não possa fotografar ou que o fotógrafo
não possa praticar antropologia, mas que seja configurada a
Na etnofotografia, o estabelecimento de relações diretas com
especialização de atividades. O que vai determinar quem faz
os indivíduos fotografados tem que ser praticado e é um dos
ou não a fotografia de pesquisa antropológica são as condi-
primeiros pontos que devemos colocar, mesmo porque, sem
ções específicas de cada trabalho. O próprio antropólogo de· ele, não teremos um bom resultado. A não ser que usemos
ve fotografar se esta for a única possibilidade. As fotos po- métodos de espionagem com câmeras ou microfones camu-
dem ser realizadas também pelo informantes locais, pois flados, o que é de eficiência duvidosa. A prudência, o bom
existem muitos casos específicos de investigação antropoló- senso e a ação tranqüilizadora dos informantes locais e
gica onde é fundamental buscar uma visão local, íntima ou mesmo dos introdutores regionais devem iniciar a conve-
interna da comunidade. niência ou a inconveniência do uso dos equipamentos foto-
gráficos que são inicialmente assustadores, mas que com
A documentação de caráter antropológico tem critérios espe- muito tato podem ser aceitos como uma peça absolutamente
cífícos. O fotodocumentarismo é diferenciado em alguns pontos normal, como a nossa própria presença. Na utilização de
do fotojornalismo. O fotodocumentarista tem por obrigação ser aparelhos mecânicos ou eletrônicos, a discrição é uma regra
um bom fotojorna1ista, ou seja, registrar tudo o que for posst- máxima. Nenhum índio Bororó do Pantanal do Rio São Lou-
vef, com bastante astúcia e agilidade, procurar ângulos que
renço e nem mesmo um morador em baixo da ponte no cen-
facilitem a compreensão do acontecimento e fazer tudo para
tro de uma grande cidade, por exemplo, se sente à vontade
comunicar visualmente o evento. A diferença é que não es·
diante de um microfone ou de uma câmera fotográfica ou ci-
tamos num campo de futebol, muito menos no plenário do
nemalográfica, apontada como se fosse um fuzil. Sem um
Congresso Nacional. Normalmente documentamos situações
"namoro" efetivo entre o documentarista audiovisual e o seu
e grupos sociais com códigos e símbolos muitas vezes su-
escolhido, o resultado acontecerá falceado, mascarado. No
tilmente diferentes dos nossos. Como documentarista de
caso de gravações em campo é fundamental selecionar o
uma dada realidade, temos que primeiramente nos inteirar
informante adequado, ou seja, aquele que vai dar as rnelho-
destes códigos, respeitando-os, e se possível entendendo o
res informações para a pesquisa. Em muitos casos, esses
univeso cultural em questão. Se nos for permitido fotografar
mesmos informantes são também as figuras mais represen-
determinado ritual, devemos respeitá-lo. Não fazemos parte
tativas visualmente. É frequente na etnologia o uso de foto-
dele, estamos apenas documentando. O fotojornalista tem
grafias para o levantamento de genealogias, ou seja, o ma-
por obrigação documentar custe o que custar. O fotodocu-
peamento de parentescos dentro de um grupo familiar ou fri·
mentarista depende de todo um conjunto de informações pré-
bal.
vias. Ele trabalha com determinada realidade sócio-cultural
que deverá ser mostrada da forma mais verdadeira possível Aqui talvez fosse conveniente retornarmos um pouco à teoria
É lógico que para entender a cultura de um povo é necessá- antropológica tratando da prática da documentação audiovi-
rio viver com ele, aprender sua língua e costumes, e sobretu- suai neste tipo de pesquisa. Lembrando, à propósito, que os
do identificar-se com seus problemas e aspirações. E nem empiristas afirmam que a tarefa básica do antropólogo no
sempre isto é possível, o que se torna uma limitação ao nos- campo é registrar comportamentos face-a-face diretamente
so trabalho. observados entre membros de uma comunidade local intera-
gindo uns com os outros em suas atividades diárias. Na do·
O etnógrafo é sobrecarregado com uma série de questões de cumentação audiovisual podemos afirmar quase a mesma
ordem metodológica e prática, que inviabiliza sua atuação coisa mudando talvez a palavra "registrar". Quando os an-

70
tropótogos usam o termo registrar, estão pensando em ca- rante o processo de documentação, devemos analisar todo o
dernetas, mapas, gráficos, genealogias e normas de paren- material que está sendo produzido para com isso melhorar a
tesco. Na documentação sócio-cultural, a ativídade pertinente qualidade do retorno ou do resgate. Neste momento devemos
ao fotógrafo, cinegrafísta, técnico de som ou vídeo, nomea- devolver os produtos (fotos, sons e filmes) para a comunida-
dos neste trabalho como documentarista, toma uma dimen- de, analisando o processo de recepção, e se possível, doeu·
são globalizante, pois é a sua principal função: documentar, mentar essa devolução. Acreditamos também que esta forma
registrar, comunicar, comunicar com registro, usar os meios de resgate tem uma função especial para o ser humano. Po-
de comunicação de massa para informar sobre vidas distan- demos voltar ao passado pré-histórico, quando nossos ante-
tes ou sobre outros povos e realidades próximas, mas que passados grafavam as imagens do bízão e de outros animais
no nosso cotidiano não visualizamos analiticamente. de caça nas paredes das cavernas também com o objetivo
de poder estudar a sua anatomia, dominando-a melhor, para
Registro deixa de ser apenas um Item para ser essência do assim atirar certeiramente seus projéteis. De alguma forma,
trabalho do documentarista. Aliás a palavra registrar é super- esses referenciais procurados pelo homem pré-histórico se
ficial e genérica. E, além de ser própria da linguagem literária- assemelha com a fotografia. Quando fotografamos para uma
pesquisa, congelamos pedaços selecionados de uma deter-
escrita, nos deixa a impressão de que apenas grafamos
minada realidade para podermos assim analisá-la melhor.
aquelas "coisas", somente a imprimimos em nossos equipa-
mentos sofisticados. A palavra correta talvez seja "resgatar".
É fundamental relembrarmos que estes extratos visuais ou KIM-IR-SEN LEAL (Brasil)
sonoros, além da função de comunicar, cumprem outro im- fotógrafo
portante papel de facilitar o auto entendimento. Ou seja, du-

Proposing a New classifícatíon for the producer of images the A la vez que propone una nueve denominación para el pro-
audiovisual documentarist - the author affirms his belief in the ductor de imágenes - e/ documentalista audiovisual - ef autor
independence between the action fie/d ot the anthropologist afirma su conviociôn en cuanto a la independencie de los
and ot the documentarist. lt also deafs with the singularities ot ámbitos de ectueciôn dei antropólogo y dei documentalista.
documentation in the area of the ethnographic teseercn, and Enfoca asimismo la especificidad de la documentación en e/
of the relat,on between the documentarist and the photogra- campo de fa investiga~ión etnográfica y te relación dei docu-
phed object. mentalista con e/ objeto fotografiado.

71
NOSSA VOZ DA TERRA MEMÓRIA E FUTURO
JORGE SILVAE .MARTHÀRODRIGUEZ

"Nuestra Voz de Tierra, Memoria y Futuro." - Um tal de excelentíssimo Senhor Arcebispo, excelentíssi-
"Se Não Houver História ... Como Levantar a Cabeça •.. mo Senhor não sei quem, que fica sentado no patácio e por
isto temos que chamá-lo de excelentíssimo senhor! Temos
Corr.o Lutar? que acabar com isso •.• os excelentíssimos somos nós que a
Uma experiência de recuperação crítica da história, apre- terra produz para que eles comam, mas porque nós traba-
sentada por Jorge Silva e Marta Rodríguez e pela Fundação lhamos a terra - dirá Juan G. Palechor.
Cine-lnvetigación Social. Boqotá-Cotõmbia.
Pensar politicamenteo passado, Em terceiro lugar, opera-se uma ruptura importante. É venci·
Pensar historicamenteo presente. do o medo da repressão das autoridades: "Perdemos o medo
Recuperação da terra, recuperação crítica óa história. da prisão, porque a prisão !oi uma escola onde nos cons-
cientizamos mais sobre a justeza de nossas reivindicações.
Os indígenas do Oauca-Colômbía, lutaram e lutam ainda hoje Percebemos que não lutamos por terras alheias, e sim por
pela recuperação de suas terras, porque para eles a terra é a terras que são nossas há séculos", dizia Marcos Avirama, ·
mãe, a raiz da cultura. É a partir dessa luta pela recuperação
de seu território usurpado, querendo dizer, a partir da base Após longos períodos de luta, com avanços e retrocessos,
material da vida das comunidades indígenas do Cauca, que de muita repressão, a comunidade assume o controle da ter-
vai se colocando para eles o problema da recuperação crítica ra. A terra passa então para as mãos do Cabildo (3). Ao ser
de sua história, dentro de um projeto de resistência cultural, recuperada a terra, inicia-se uma etapa de fortalecimentodas
para ler pofitcamente o passado e pensar historicamente o formas de governo autenticamente representativas dos indí-
presente. Porque um povo que não detém o controle de seu genas: os Cablldos.
passado, não tem o controle de seu presente, nem pode vi-
sualizar uma opção para o futuro, ou seja, não conhece sua Paralelamente, a organização "O Conselho Regional Indíge-
verdadeira face. na do Cauca" (CRIC) - que se autodeline como um Conse-
lho em que estão representados todos os Csbiâos do Cauca
A passagem da submissão à organização é longa e muito - consciente da necessidade da educação, dá início a uma
complexa. Na luta pela recuperação da terra, os ind!genas experiência cultural e organizacional muito importante: toi
entram num processo que é uma cadeia de rupturas suces- proposta, em melo a grandes limitações, uma leitura crítica da
sivas em relação às formas tradicionais de dominação. As história, para unir esse conhecimento do passado à necessi-
lutas de hoíe têm antecedentes importantes. A recuperação dade de traníorrnar o presente. É uma das contribuições mais
crítica de seu passado os leva a adotar uma posição deres- importantes do CRIC.
peito e reconhecimento em relação às lutas travadas por Ma-
Nesse processo, a memória individual, a história da reserva,
nuel Quintrn Lame (1), mas a criticar-lhe o "legalismo'' exces- a história regional, a memória dos anciãos, foram elementos
sivo. Uma primeira ruptura ocorreu então no que tange ao ca- valiosos que, comunicados oralmente em reuniões, congres-
ráter exclusivamente "legalista" das lutas pela terra. sos, seminários e assembléias, foram recuperando devagar
essa memória coleliva, essa memória popular, realizando ao
Err, segundo lugar, rompe-se com o respeito tradicional e a mesmo tempo um processo de "Desrniüãcaçâo'', de "Des-
submissão à hierarquia eclesiástica católica, cuja influência montagem" da historiografia oficial, e definindo a história oü-
no Cauca é bem conhecida. Na experiência que apresenta- eia! como um espaço polftico utilizado de maneira muito eü-
mos, referente à comunidadede Coconuco, a primeira luta no caz pelos inimigos do índio, e instrumentalizado de forma
resguardo (2) é travada para recuperar uma considerável e bem efetiva, e por todos os meios conteúdos racistas, valo-
tensão de terras do resguardo que estava em mãos da Igreja. res etnocêntricos, antinacionais, que dis!arçados de erudição
conflqurem essa "amnésia coletiva", mul!ilando profunda-
- Lutar contra o Arcebispo é como lutar contra meio Gover- mente a identidadecultural nacional.
no, diz Dolores Sauca.
A partir dessa recuperação crütca do passado, novas formas
- Tivemos que nos entender com um senhor chamado de de consciência surgem e se consolidam, dando à palavra e à
Arcebispo, mas que também age como latifundiário - acres- ação do (ndio de Cauca uma profundidade e uma força dife-
centa "Marcos Avirarna, rentes.

72
SURGE ENTÃO UM NOVO "DISCURSO". Tais representações ideológicas poderiam ser coerentes
APARECE UMA LINGUAGEM DIFERENTE. com o universo da fazenda tradicional, com as relações de
produção e com as formas de submissão pessoal que defi-
O indigenismo é superado e toma-se consciência das espe- nem o modo de produção da fazenda Cauca.
cificidades culturais e políticas dos indígenas, mas no con-
texto de processos organizacionais e políticos a nível nacio- Entretanto, na mina de enxofre das "Indústrias Puracé" os
nal, com conteúdo classista. indígenas já transformados em proletários também afirmam
que os americanos que exploram a mina são sócios do dia-
Chega-se à reflexão e à busca de uma "Plataforma Política". bo, e não tomam medidas para a segurança industrial para
Fala-se da construção do socialismo a partir de organizações que semestralmente morra um operário, pois é o contrato que
sociais tradicionais dos indígenas, fala-se de unidade da es- têm com o diabo: "Entregar-lhe um operário a cada seis me-
querda e de política de alianças. Pela primeira vez um movi- ses.
mento indígena fala essa linguagem.
Os americanos de uma empresa multinacional ai estão asso-
"Nuestra voz de tierra, Memoria y futuro", filme colombiano ciados ao diabo porque "os americanos só vêm ao nosso
de Jorge Silva e Marta Rodríguez apresenta o processo des- país para levar embora a riqueza, deixando aqui apenas a
crito acima, que é também um trajeto que vai do pensamento miséria e a fome. Os gringos e o diabo contra os camponeses
mágico à ideologia política, mostrando como o mito e o uni- de Puracé", diz Jaime Piso, Secretário da Comarca da Pura-
verso mágico são espaços do inconsciente em que se orga- cé, mas afirma também: "No entanto, nós podemos lutar
niza o univeso da dominação, sendo as formas de domina- contra eles, mas com a organizaçao, porque a união faz a
ção de classe explicadas magicamente, ao lado das formas força."
de resistência cultural. Tambêm é uma leitura do processo de
desenvolvimento e transformação do discurso de uma comu- Estamos então diante de uma realidade diversa, complexa.
nidade a partir de uma experiência concreta, no seio da qual Por outro lado, a partir da luta pela terra e através de um pro-
interagem magia, mito e ideologia. cesso de 1 o anos de práxis social, os indígenas expõem uma
plataforma política baseada em forma comunitárias. Por outro
A tradição oral compilada na comunidade nos narra como, lado, porém, esta o mito, o universo mágico, que ai na reali-
em primeira instância, o latifundiário se enriquece graças a dade pesquisada coexiste com o processo organizativo.
sua relação com o diabo que, segundo essa tradição, dá o di·
nheiro que o latifundiário necessita para fazer deslanchar a O universo do mito e da lenda não estão separados nem em
produção da fazenda. contradição com a realidade, mas são parte estrutural dela -
diz Günther Grass. Mas isto já era claro há muito tempo,
Para o índio, a origem da riqueza do latifundiário reside na desde Alejo Carpentier e sua concepção do "Real-Maravilho·
aliança entre ele e o diabo, e não na expropriação feita pelo so" na realidade da América Latina, onde se superpõem dis-
latifundiário do trabalho do índio. Neste mito, a mais-valia é tintas formas de apreensão da realidade.
explicada magicamente.

Eis então, de modo breve e esquemático, o quadro de refe-


- Os latifundiários parecem com o diabo, porque tem o cora-
rência estrutural em que se situa esta experiência de recupe-
ção duro e humilham os índios, diz a história que contam
nossos pais antigos diz o narrador. ração crítica da história.

O filme foi terminado em cezernbro de 1981, mas esta pes-


Esta representação da origem da riqueza material, associan- quisa continua. Marta Rodríguez e Jorge Silva, realizadores
do os patrões a forças extraeconômicas, e associando toda do filme, estão trabalhando num livro que sistematizará esta
a simbologia que representa a violência contra o índio a for· experiência, da qual o presente trabalho é apenas uma pri-
ças malignas, ao diabo, ao "vento mau", ao "inimigo", à "má meira apresentação escrita.
hora", revela claramente como estão subjacente à memória
coletiva os símbolos da violência trazida pelo conquistador A seguir transcrevemos alguns textos dos indígenas, incluí-
espanhol, e o trauma tão profundo que foi para o índio a con- dos no filme, servindo aqui como exemplo do processo des-
quista. crito acima.

Por exemplo, na lenda o diabo aparece sob forma de perso- A organização do "Conselho Regional Indígena do Cauca"
nagens que representam para o índio as formas de domina- surge em 1970, com um programa básico de sete pontos.
ção, ou seja, latifundiário, capataz, policial. Todos estes per-
sonagens aparecem invariavelmente montados a cavalo e Primeiro ponto: "Recuperar as terras dos resguardos" (2)
com esporas reluzentes. - "Porque na verdade, aqui neste resguardo já temos que
trabalhar só para os latifundiários ou, pode-se dizer, trabalhar
Os textos clássicos dos indígenas americanos revelam o im- em nossas próprias terras, terras que nossos antepassados
pacto que causou neles o fato do conquistador chegar a ca- se deixaram roubar, neste resguardo existem 517 famílias vi-
valo, acompanhado de cães ferozes, e sempre "têm nos pés vendo num terreno de apenas 900 hectares. Destes 900
essas estranhas estrelas de ferro", quer dizer, esporas ou hectares, de terra arável ou que sirva para a pecuária e a
esporins. agricultura serão uns 600. O resto são penhascos.

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Neste resguardo existem mais de 27 latifundiários que fica- passados, tratando dos costumes que se tinha e que em al-
ram com as melhores terras, e nós estamos trabalhando num guns lugares foi possível reviver, entãó essa cultura seria
sfiio em que as terras não servem mais para nada ...: diz Mar- preservada. Para mim esta é a importância da história - afir-
cos Avirama, Governador do Cabildo. ma o jovem indígena.

- Foi aí que entendemos que a melhor maneira de defender


Segundo ponto: "Ampliação dos resguardos." nossa história, nossa língua e nossas culturas era através da
Terceiro ponto: "Fortalecimento dos Cabildos indígenas.''
luta para a recuperação da terra.
Quarto ponto: "Não pagamento de 'terraje' (4)
Quinto ponto: "Dar a conhecer as leis indígenas e exigir sua Pois bem, companheiros, como já vimos nos títulos que pos-
justa aplicação." suímos, os limites de nosso resguardo, estão claros, então
Sexto ponto: "Defender as línguas indígenas e a história de temos que estudar e ver quais são as possibilidades de recu-
nossos povos." perar as terras que nos tiraram - diz Marcos Avirama numa
Sétimo ponto: "Formar professores indígenas para educar em
assembléia.
nossa própria língua.''
- Nós não podemos continuar assim - diz Nelly Sauca -
Na memória coletiva do índio ainda vivem a cacique Gaitana
porque nosso pais estão muito pobres e nós somos muito
e Juan Tama, José Gonzalo Sánchez., Eutiquio Timoté e o
pequenos para ir trabalhar numa fazenda, ir ganhar uns míse-
"terrajero" Manuel Quintfn lame, "O homem que não se hu-
ros pesos. Por isso temos que recuperar o que nos pertence,
milhou diante da injustiça". O programa que guia esta luta de
porque essas terras de Cobaló não são do Arcebispo, e sim
hoje se baseia no conteúdo do programa já defendido em
dos indígenas. Então companheiros, o que temos que res-
1910 por Lame.
ponder quando o Juiz nos perguntar quem nos lidera, quem
nos dirige, nós lhe diremos que nos dirige a fome e a neces-
Ele lutou por muito tempo e foi muito perseguido. Ouintfn foi
sidade.
preso mais de cem vezes, mas sara e continuava lutando. A
prisão não lhe dava medo. Ouintín sabia que para mudar era
- Para nós indígenas,a terra não é só um pedaço de planície
preciso lutar, mas acreditava que se devia lutar nas formas
ou de montanha que nos dá comida. Como vivemos nela,
legais, digamos, como diz o governo, como rezam as leis, do
como nos alegramos ou sofremos por ela, é para nós a raiz
que deve ser através das leis, então lutou dessa maneira.
da vida. Por isto a olhamos e a defendemos como a raiz de
nossa cultura - diz um indígenaCaucano.
Em nossa história também temos que pensar e lembrar que
essas coisas oe luta legal, só mandar saudações ao presi-
Nesse processo de luta pela recuperação da terra são recu-
dente ou ao ministro, ou ao prefeito, isso não dá nenhum re-
peradas as formas de organização social básicas, os Cabil-
sultado. O que dá resultado e deve ficar em nossa história é
dos. "Nós continuamos lutando e insistindo em que estas ter-
se organizar e lutar de modo decidido, é assim que vamos
ras tinham que passar para as mãos do Cabíldo, porque esta
fazer nossa história, não?
é a autoridademáxima.
J. Gregorio Palechor
"Foi assim que uma vez por fim recuperada, a terra passou
para as mãos do Cabildo, porque para nós indígenas, o Ca-
Pois é... o esforço desta organização foi muito no sentido de
bitdo é a autoridade máxima por sua forma de governo, e
renovar a história e renovamos a história, embora não de to-
porque é a pessoa que distribui o que nós necessitamos e
do, mas levantamos a cabeça e assim também a raiz da
que esteja dentro da resguarda. O Cabildo é o encarregado
história que conheemos .- diz um jovem indígena.- Pois que
de adjudicar as terras aos companheiros mais necessitados,
podíamos nós saber sobre o trabalho de Juan Tama, sobre o
mas o indígena que precise de terra tem necessariamente
trabalho e a luta de José Gonzalo Sánchez, ou da Gaitana,
que entregar um pedido ao Cabildo para estudo, e o Cabildo
ou mesmo de Ouintrn Lame? Eu, em particular, ouvindo a
faz a adjudicação correspondente. Quer dizer, o Cabildo é o
nossa hitória, sinto um orgulho especial das lutas travadas e
pai e a mãe que entregam a terra ao indígena que dela ne-
de como a autonomia foi defendida desde há muito tempo
cessite".
atrás. Hoje, com a organização, conseguimos recuperar es-
sa história, e daí estarmos analisando nossa problemática. E
precisamente••. se não houve história.., Corno levantar a ca- Juan Gregorio Palechor
beça? Como lutar?
A terra é para nós a mãe, porque nós amamos a terra e a
Eis porque aparece o movimento indígena em 1973. Percor- trabalhamos. Para que os latifundiários precisam da terra?
remos grandes distâncias. Caminhamos por lugares onde para tê-la, só para vê-la e fazer com que nós a trabalhemos,
nunca havíamos caminhado antes. Encontramos muitos mesmo depois de tê-la roubado de nós. Querem a terra só
rostos e línguas diferentes. Depois de muito isolamento im- para dizer que é deles. A terra não é deles, e sim nossa, os
posto, encontramos outros indígenas, começamos a nos co- pobres que a trabalhamos.
nhecer e a respeitar as outras culturas, os outros povos e
suas próprias formas. A terra é nossa, pois a trabalhamos, não dos ladrões ociosos
que a roubaram, assassinando nossos antepassados e fa-
O importante é que cada um se encontre a si mesmo, não? zendo os acreditar que nós não tínhamos nada, e matando·
Acho que tratando do que é a origem, do que foram os ante- nos,"

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Gertrudis, viúva de Lame. te, pois já não temos índios, e os que restam são peças de
museu. Seja como for, esta celebração nos serve como pre-
O Quinto congresso do CRIC, com o processo educativo já texto para o fim-de-semana mais longo do ano." Palavras de
avançado, assim fala Juan G. Palechor: locutor.

"A experiência histórica nos demcnstra, e é preciso entender, "Sim ••• em todo o país é festejado o dia da chegada do espa-
que esses chamados políticos liberais e conservadores são nhol, mas nós indígenas, se não festejamos este dia é porque
os verdadeiros inimigos das classes populares. Em 1948 as· é para nós um dia de luto, um dia de tristeza. Para nós indí-
sassinaram o líder Jorge Eliecer Gaitan, e depois do que se genas esse dia é um dia infeliz que não esquecemos, porque
chamou "EI bogotazo" de 9 de abril a violência se abate so- destruíram nossa civilização, ou seja, nossa raça." Palavras
bre o povo colombiano e principalmente sobre o partido libe- de Eulogío Gurrute, indígena de Coconuco.
ral, e aí aproveitaram, contra os próprios indígenas. Em Tier-
"Por não lhes ser dado o que queriam, pegavam e matavam
radentro, naquela época, os indígenas eram levados numa
uma quantidade de mulheres e crianças indígenas. Restavam
furgoneta e jogados no rio Paez, eram jogados no rio .•• vivos.
tribos completamente destruídas e após a destruição e a
Assim mataram centenas de indígenas. É preciso que se
queima de suas choças eram tirados e roubados todos os
saiba disso. Essa é nossa história que é preciso saber. De·
tesouros que havia dentro delas. A chegada dos espanhóis
sencadearam uma violência que não está escrita na história,
foi um desastre para nós indígenas, porque foi a perda de
porque não houve ninguém que escrevesse sobre nossa si·
nossa riqueza e de nossa cultura.
íuação, que escrevesse como foi essa história.
Os indígenas que sobreviveram à catástrofe, porque são os
A história oficial.
sobreviventes, hoje lutam por sua liberdade, e é isso que eles
Um aniversário da academia de história.
Urr; acadêmico fala em homenagem às Forças Annadas. tentam destruir, porque pode ser que daqui a um tempo haja
mais uma civilização de indígenas e possamos enfrentar seja
"Ern nome da academia desejo expressar, senhor general, o que for, lutar por nossa própria raça e por nossos direitos.
nossos mais sinceros agradecimentos e deixar constância
neste dia, do apreço, respeito e admiração que mereceram Porque os indígenas foram guerreiros, foram lutadores, sem-
desta academia as Forças Armadas, em sua nobre função pre lutaram por sua liberdade. Mas a perseguição contra os
docente. Porque a história da Colômbia foi ensinada nas es- indígenas continua e não era antes. Os brancos continuam a
colas militares, mas escolas de aplicação das armas. Os nos perseguir como se fôssemos selvagens, cães, pois so-
membros das Forças Armadas também foram professores mos obstáculos para eles", conclui Eulogio Gurrute.
de história, tarefa presente em nossa academia, que deseja
dar prosseguimento a essa colaboração desinteressada,
entusiasta e fecunda, e formar no seio da academia esse
grupo de militares e civis que trabalham com o mesmo ideal,
que tem apenas um nome que não fenece jamais: o amor à
pátria."
Mas o ind(gena responde assím: Do ETNC-CÍDIO
ao HOMICÍDIO
"É por isso que muitos de nós desconhecem nossa própria
história, nossa verdadeira história. Não nos ensinam. Ou se- Em novembro de 1978 é assassinado Avelino UI, dirigente.
rá por que não acham conveniente? É por isto então que eu No dia 4 de fevereiro de 1979, é assassinado em Tierraden-
proponho essa mudança, e a proponho como um trabalho pa- tro Benjamín Dindicué, diante da mulher e dos filhos, outro dí·
ra nossa luta. Trocar essa história deles, escrita como lhes rigente.
convêm, pela verdadeira história de nós mesmos, ou seja, Como eles, mais de sessenta dirigentes foram assassinados.
urna recuperação crítica de nossa história,"
"É af que a gente começa a pensar até quando vão continuar
Através de um processo educativo, vai se chegando a colo- nos matando sem castigo para os culpados. Porque se al-
cações como a anterior. Entretanto, os meios de comunica- gum de nós quiser ficar à frente e conduzir os companheiros,
ção, o rádio, dizem: como dizem, "à clareza", então tem que ser liquidado para
que tudo termine ali. Ali tudo se acaba em "escuras voltas".
"Hoje é doze de outubro ••• dia do descobrimento da América.
Dia da raça, dia da festa nacional. Dia de uma raça inexiste- Diz Gertrudis, viúva de lame.

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"Durante muito tempo os latifundiários nos disseram que o cas, para buscar uma forma de nos entender, de fazer uma
diabo existe. Pois o diabo são os latifundiários, todos juntos, unidade, para que assim; companheiros, cada vez mais ta-
os que nos matam. Os que dizem que se a gente morrer em çamos frente ao inimigo. Vemos que a esquerda colombiana
pecado vai para o inferno. E que inferno! quem faz o inferno está dividida em mil pedaços, e nossa tarefa não é continuar
são os latifundiários assassinos. Por isto jurei que o que meu dividindo, mas buscar soluções, para que mais tarde possa-
esposo Justiniano Lame - assassinado durante uma recupe- mos começar a ter posições unitárias.
ração de terras - havia ensinado a mim e a meus filhos, con-
tlnuartamos com a luta, mesmo que também nos custasse a Nossa posição é ficarmos simplesmente desenvolvendo à
vida. recuperação da terra, porque isto é um primeiro passo muito
importante, porque é justamente ar, através dos trabalhos
Porque nós não vamos ficar dormindo porque o mataram. E comunitários, através das "Mingas", que nós temos uma ba-
nós vamos saber como continuar na luta: porque ele disse: se para a construção do socialismo."
"Quando me matarem, a mim, Justiniano, você e meus filhos
não têm que ficar assustados, porque nós não morremos de E prossegue Gertrudis:
medo, porque para morrer foi que nascemos, mas lutando.
Por isso continuarei na luta contra os latifundiários e contra o "Por isso eu digo a meus filhos. Não nos acovardemos, ai·
governo, porque governo e latifundiário são uma pessoa só. gum dia faremos o que Justiniano dizia. Justiniano nunca en-
Fôssemos onde fôssemos, nas praças públicas, Justiniano sinou timidez aos filhos. Desde recém-nascidos ele disse:
ali falava. "Não vou ensinar timidez a meus filhos."

"Nossa posição, companheiros, como organização, como


organização indígena do Cauca, é de lançar um apelo aos JORGE SILVA e MARTHA RODRIGUEZ
companheiros das diferentes organizações sindicais e polrti· documentarista {Colômbia) antropóloga (Colômbia)

Los autores presentam el cine vinculado a la investígación so- The cinema, associated with the socio/ogical resesrch, is
ciológica como instrumento de educación popular, a partir de presented by the authors as a too/ for popular education,
la expetiencie de realizar una película que refleja la actuación starting from the expetience of a film portraying the role oi the
dei Consejo lndfgena dei Cauca - CRIC (Colômbia). EI con- lndigenous Council of Cauca - CRIC (Colombia). This coun-
sejo es la principal instancia organizativa polftica de tos Co- cif is tbe principal representation of the Coconuto's pofitical
coruno, constituída en función de la lucha de dicho grupo in- organization, which appeared after the struggle ot this indige-
dfgena para recobrar su tierra. La recuperación crãice de su nous group for the retaking ot their lands. The criticai redisco-
pasado histórico les posibilitó desvincularse, de viejas formas very of their hostotioe! past al/owed not only their breakíng
de dominación, y formular un nuevo discurso en et que coe- away trom o/d forms of domination but also tne building of a
xisten mito, magia e ídeologfa,reflejando te treyectone de tos new discourse where myth, magic and ideology live together,
índios como campesinos y profetarios. mirroríngthe indian's course whílepeasants and proletarians.

NOTAS

( 1) Manuel Quintfn Lame: lutador e poeta indígena do Cauca, muito célebre em torno de 191O.

(2) Resguardos: nome dado às terras comunitárias; reserva.

(3) Cabildos: Forma de governo própria às culturas indígenas do Cauca. Um Cabildo é formado por 12 dignitários indígenas. É a autoridade suprema indí·
gena, dentro do resguardo.

( 4) Terraje: Nome dado no Cauca ao pagamento do arrendamento da terra com trabalho. Man< diz que se trata da forma mais antiga da servidão feudal. No
interior do país, esta instituição era conhecida como a "Obrigação", e foi extinta em 1936, mas no Cauca essa forma econômica e)(iStíu até 1970, quan-
do apenas a luta dos indígenas conseguiu sua abolição.

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CAUSACHUM CUZCO:
EM BUSCA DA CONSCIÊNCIA PERDIDA
ALBERTO GlÚDICI

Ao escrever sobre Causachum Cuzco gostaria de tentar significa San Martín reivindicando para si o estandarte "que
responder uma pergunta extracinematográfica, porque embo- Pízarro trouxe para escravizar os índios", são suas palavras.
ra alheia ao cinema a projeção de meu filme sempre a levan- E anos antes o próprio San Martín - então coronel recém-de-
ta: por que Cuzco? OU, mais precisamente, por que um ar- sembarcado em Buenos Aires - freqüenta as tertúlias porte-
gentino - ou um portenho, o que é mais "grave" - faz um fil. nhas despertando a idéia de uma coleta para publicar os
me em e sobre Cuzco? A resposta mais válida - corno em Comenarios Reales de Garcilaso. Por que este livro? Porque
qualquer empreendimento - seria esta: porque senti a ne- o colonizador o havia proibido algumas décadas antes, e por-
cessidade de fazê-lo. Ponto final. Será preciso esclarecer al- que era na América hispânica o livro do ressurgir indigenista.
go mais? Sim, na medida em que eu também preciso sentir Porque nossos próceres sentiram com força essa raiz ame-
que meu trabalho não é um caprichO, mas tem raízes mais ricana, porque o desatino borgiano de nos sentirmos euro-
profundas. Elas seriam nossa inserção americana. Ê difícil peus veio muito mais tarde.
descobrir, porque o americanismo dos portenhos costuma
ser mais retórico que efetivo. Então, em primeira instância, E agora passarei a uma vivência pessoal. Tempo: 1977. Lu-
Causachum Cuzco pode ser a crônica profundamente senti- gar: o Mercado de La Quiaca. Uma barraca de venda de
da dessa descoberta. De que ao filmá-lo não estava fazendo "comidinhas" com meia dúzia de comensais em tomo de urna
algo alheio e mim mesmo, a meu meio ou a minha cultura. tábua que fazia as vezes de mesa. A meu lado, um adoles-
Que como um sonho que na manhã seguinte nos escapa cente tímido, "do interior". Tem uma dupla admiração pelo
mas que queremos capturar - e recordar devido às chaves autor destas linhas: porque sou de Buenos Aires e porque
que pode nos proporcionar sobre nós mesmos - assim esta- estive em Machu Pichu, estuda relojoaria por correspondên-
va Cuzco latente, oculto entre as brumas do despertar, me cia: as lições lhe chegam de Buenos Aires (acho que do Otto
esperando. Krause) e está esperando fazer 18 anos, ter um passaporte ..•
e viajar a Machu Pichu, Um dia havia decidido ir lá, Atraves-
Mas ainda assim sinto que cometi algo impróprio: um argenti· sar a fronteira com a Bolívia é fácil. Foi. Atravessou toda a
no estreando no cinema no Peru e então vem a necessidade Bolívia mas quando chegou à fronteira do Peru o mandaram
de ampliar as justificativas. Chegam as leituras. E constatar de volta. E sonhava, sonhava com esse Cuzco mítico, com
que as tições escolares falsificaram as coisas. Que se estu- esse Machu Pichu de seus ancestrais. Enquanto isto estuda,
darmos história americana não estudaremos história argenti· estuda esforçadamente por correspondência. Lições que lhe
na e vice-versa. Como se fossem continentes separados. chegam de Buenos Aires lhe possibilitam progredir e se de-
Que, por exemplo, a gesta de Tupac Amarú tem a ver com senvolver. De volta à capital, olhei o mapa. La Ouiaca está
essa outra história. E que se falarmos de 25 de maio, ignora~ no meio do caminho: a sudeste, Buenos Aires, a noroeste
remos as Câmaras Municipais abertas do Alto Peru, em Machu Píchu, E lá deixei aquele cidadão argentino - hoje já o
1809, que faziam fortes pressões sobre a indecisa Buenos é que espera seu passaporte e vive dividido entre duas reali-
Aires. Em troca saberemos sobre Fernando VII, sobre a Re- dades essenciais para seu desenvolvimento integral. Muitas
volução Francesa de 1789 e sobre a Americana de 1776, vezes, diante da mesa de montagem, pensei naquele rapazi-
mas não sobre o movimento comunitário da Colômbia, nem nho e sentia que estava fazendo um filme também para ele.
sobre Tiradentes, nem sobre Tupac ou os ecos tupamaristas Talvez essencialmente para ele, embora quem sabe nunca o
que chegam a Bolívia ainda no início do novo século. Entre veja. Porque com certeza algum dia verá o verdadeiro Cus-
1781 - Tupac Amarú - e 181 O Revolução de Maio - há ape- co.
nas 29 anos. Muito menos que entre nós e Sandino ou o 17
de outubro de 1945. O lapso decorrido foi breve, o espaço Até ao mais distraído Cuzco oferece um constante ir e vir, um
ainda menor. Quando as tropas de San Martín entraram em mergulho no tempo e um renascer a partir da história. A cada
Callao - a inexpugnável fortaleza goda - encontram um ca~ passo é possível fazer um corte vertical e outro horizontal.
nhão argentino capturado ao Exército do Norte. Era uma das Vertical, porque emergem os diferentes estamentos da histó-
primaras peças de fundição nacional, e ainda tinha gravado ria peruana. Horizontal porque esse corte em profundidade
seu nome de batismo: Tupac Amarú! é lido lineannente, em imagens sincréticas, únicas, tanto nos
múltiplos testemunhos "inanimados" corno na atividade pofrti-
Exército do Norte significa general Balcarce disparando sal- ca e social do momento presente. Duas linhas com um des-
vas de artilharia em homenagem a lnti, o Sol dos incas, signi- dobramento permanente: o passado político e a colonização, a
fica Belgrano com sua utopia de um inca coroado. E Callao religiosidade aparente e o panteísmo latente, e na cadeia

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ininterrupta de movimentos agrários, o renascer constante da reza. E o homem, nessa interrelação, vai se apresentando,
comunidade com a terra. Duas linhas, duas coordenadas que embora não apareça fisicamente•••
sempre têm um ponco de junção: o (ndio.O índio ancestral da
América, o mitayo (*) da Colômbia, o servo.da República, o Há uma seqüência que sempre desperta a atenção dos es-
protagonista atual. Duas. linhas constantes e um ponto de en-. pectadores, e que é uma pergunta quase obrigatória nos de-
centro que permanentemente nos levam e trazem por esses bates subseqüentes: a associação pedras-milho. "Nunca vi-
cortes profundos da história. mos essa comparação, de onde a tirou?", me perguntam. Foi
idéia minha, respondo um pouco ruborizado. Foi assim. Em
Cuzco há uma igreja de clausura - Santa Clara - que abre
O desafio para mim era fazer uma narração cinematográfica portas uma vez por semana, e só um par de horas. Seu ínte-
de tudo isso. O método: um documentário de montagem, com rior está cheio de espelhos, em ângulos e alturas diferentes,
sua própria leitura narrava. Documentário de montagem: soa que multiplicam as formas e captam ademais a luz externa,
quase como uma aberração, jâ que quase por definição o do- fazendo-a ricochetear de espelho em espelho. Naquele dia,
cumento renega o corte, por pressupor que corta. E montar atrás de um antepero de madeira lindamente entalhado, re-
ou ligar fragmentos implica numa "traição" à realidade, intro- zam as freiras da clausura. Dirijo-me ao Mercado, e aproveito
duzindo a subjetividade e a intencionalidade do autor. A câ- a manhã de quinta-feira em que Santa Clara se desclausura
mera. Desse ponto de vista, relata o prosseguir e o devir de para dar mais uma olhadinha em seu interior. Por trás do
própria realidade. Oure o quanto durar, porque o tempo do grande portão agora aberto há outra porta, de vidro. O vidro
documentário não é cinematográfico, e sim real.•• Mas em reflete a parede em frente: um muro inca de pequenos volu-
meu caso senti que a realidade se narrava a si mesma atra- mes, que, ao se refletirem, parecem ainda mais miúdos e
vés de infinitos cortes, fragmentos, segmentos de si mesma: compactos. Ao mesmo tempo, o vidro deixa transparecer um
através de jogos de associações, de referências temáticas e Cristo situado na aconchegante penumbra da igreja: rnaqnífl-
visuais. Porque a realidade bruta - que sempre propõe o en- ca imagem sincrética, como numa dupla exposição fotográfi-
godo da imitação - oferece a cada passo o método segundo ca ou cinematográfica. E sigo meu caminho em direção ao
o qual foi sendo construída e o fluir que marca seu constante Mercado com a imagem daquele Cristo emergindo dos es-
devir. Quatro momentos da história correspondem no filme a treitos contornos do muro incalco, ainda mais nítidos quando
quatro blocos temáticos. Por um lado, o mítico passado in- desenhados no vidro da igreja. E agora, no Mercado, de có-
caico e o tempo da conquista, como duas instâncias "esrna- coras quero comprar "rnaícítos". São tão curiosos esses mi·
gadas" no fundo dos tempos através dos testemunhos ina- lhos secos: diferentes tamanhos, tons e cores, desde o creme
nimados que nos chegam do passado, latentes porém em claro ao negro azeviche e jaspeado, alguns com grãos pe-
seu meio natural. Registros "mortos", dentro da Natureza vi- quenos e outros como grandes caroços ••• Mexendo numa
va. Em seguida, com imagens de homens atuais, com uma cesta ampla, essa multidão de grãozinhos me parece••• o rnu-
voz em off atual - a de Saturnino Huilka, líder camponês oc- ro inca que acabei de ver refletido. É quase uma miragem.
togenário relatando sua vida - o destino do fndio desde a Coincidência? Casualidade? talvez sim, talvez não, mas em
Conquista até os anos que precederam sua tomada de cons- todo caso resume a idéia que está dando voltas em minha
ciência e o tempo presente, como um futuro possível e recor- cabeça sobre a integração da arquitetura ao meio ambiente
rente. Da morosidade do caos original, com uma câmera que nascendo e tomando forma a partir do caos primitivos. A
se deleita e descansa sobre as pedras, passando pela exte- comparação arqueológica não é muito cinematográfica, mas
nuante agonia do holocausto indígena, o filme irá cada vez na montagem a ajustamos ao ritmo geral da seqüência e,
mais se aprofundando na vertigem: cada vez mais frenético, ademais, junto com José luis Díaz, o técnico de som, lhe in-
para que as reuniões, as danças rurais e o tema dançado da corporamos ruídos de pedras contra pedras, um som em
colheita sejam, essencialmente, o pulso vital do que vive ott que chega ao fundo dos tempos, quando o aborfgene
sendo conjugado como tempo presente. encontrou no milho o segredo da pedra". Estas coorde-
O passado incaico, à margem dos ecos sentimentais que nadas pedra-milho-homem prosseguem na seqüência
seguinte, quando as linhas sinuosas de dois volumes de pe·
ressoam em certo folclorismo, me atraiu especialmente en-
dra evocam agora os "ardentes rios do verão", segundo a
quanto ex-estudante de arquitetura e, mais remotamente,
bela analogia de Arguedas. Pedras que parecem milhos: pe-
como artista plástico formado nos ensinamentos do cubismo
dras queardemcomo rios profundos. Rios e milhos como co-
lothiano que nos inculcou a escultora Cecília Marcovich, o
ordenadas da natureza, e a pedra feita à imagem de uma e
que é essa arquitetura que se multiplica como os cogumelos
ao ardor da outra, como síntese da obra humana.
ao longo da serra andina senão cubismo puro? É como se o
pensamento de seus construtores materializasse no espaço
um mundo de arestas, volumes e estruturas cúbicas. Cubis- Associação e desdobramento virão depois na evocação da
mo incrustado na própria natorezaí Diferenciado dela e ao Conquista e ainda mais quando os carregdores de fardos,
mesmo tempoa ela se integrando, pois a permanentedesagre- modernos servos da gleba parecem como símbolo do bolo-
gação de formas dá lugar ao meio e, ao se entregar a ele, o causto indígena. O carregador se desdobra nos Cristos das
absorve. Modelo de arquitetura orgânica, de espaço escultõ- igrejas (nu com quem os aborígenes se identificam e que os
rico livre de adornos decorativos, a "modernidade" do incaico santeiros do passado talharam com feições indígenas), e o
reside justamente no fato que a própria noção construtiva é fardo que curva nas costas se identifica com a cruz. Pois pa-
também o elemento ornamental. Toda a primeira parte - do res, dois blocos análogos: rosto vivo com rosto escultórico,
caos original de brumas, vento, montaha e rio - procura ex- fardo com cruz. Mas assim como as pedras se semelhamao
pressar cínematografícamenteessa noção, a idéia da pedra milho e depois se transformam em linhas ardentes como os
que ao ir "criando" espaços próprios vai humanizandoa natu- rios turbulentos, os fardos têm uma assombrosa semelhança

78
com os muros da imensa fortaleza inca que círcunca Cuzco, Um Criador que destes luz ao sol, guardaf-o para que ilumine
O índio, como eixo renovado deste novo par de coordenadas, os homens que criastes, oh Criador.
deste encadeamento que se desdobra. Mas se num (Cristo)
o índio encontra a mimese de seu sofrimento, no outro (ma- Locução:
rionete) encontrará a de sua tomada de consciência. Cuzco. Berço e auge do homem andino. Foco de irradiação
de uma civilização que mereceu com sua presença o destino
Aqui cabe uma digressão. Cada elementodo filme ê puro do- do continente. Ê a cultura andina delta por homens que viram
cumento, e ao mesmo tempo código de leitura. Ou seja, sem na comunidade o fundamento de sua relação na imensa Mãe
outro discurso - sem zonas nortes do ponto de vista da ima- Terra, que tudo contêm e tudo germina, e com lnti, o Sol, e
gem, tão comuns em muitos documentários o espectador vai cálido e próximo protetor. Ete, que disse "Que seja Cuzco o
"lendo" o filme. O texto do roteiro - locução e sobretudo re- que pode, o que mede". E Cuzco pôde, mediu, dominou. Do-
lato em off - é outra história paralela mas independente da minou as montanhas e modificou sua face, enlaçou suas
que mostra o texto que "lemos" através das imagens. Huilka, formas sinuosas na dança serpenteante de seus terraços,
o narrador em off, conta sua vida: vida que resume várias zombou de precipícios e gargantas ( .••) E no milho macio,
existências. O que ele diz é lido de forma equivalente em nesse milho que tem como que favos, com grãos apertados
imagens. Fala de sua tomada de consciência passada, des- que são como os homens, de compacto destino, nesse milho
sa lenta passagem pelas brumas da consciência. "Eu era ig- macio encontrou o segredo da pedra. E tomou da pedra e lhe
norante", diz, e vem a pergunta angustiada: "Como podia deu forma. Formas como grãos de milho macio.
abrir a lei para mim e os meus? " Ela tem no plano dos car-
regadores a correspondência literal de algo que não sabe que Voz em off, em quecbue, de Satumino Huifka:
rumo tomar, de uma opressão e de uma humilhação que Vieram da Espanha 40 galeões. Será que trouxeram a terra
não tem fim. Então o dilema era como fazer a passagem às costas? A terra era nossa. Já a deixaram cansada de
desse "eu era ignorante" a esse outro "e começou a luta". tanto explorá-la. Que voltem para sua terra.
Claro, sempre há o recurso das lotos de época, GO$ noti-
ciários. Mas o desafio era narrar sem muletas, narrar com Nossos antepassados tinham muita sabedoria e excelente
o que o realizador tem diante dos olhos. E agora, diante dos memória. Fizeram tudo com pensamentos muito bons. Ergue-
meus, há um teatro marionetes. O camponês (Ciscucha) ram fantásticos impérios. Mas sua atividade, sua vida, seu
pergunta, fala, discute com o latifundiário. Através desse conhecimento, seu ouro, tudo foi levado pelos espanhóis e
diálogo o filme avança no tema da tomada consciência, marca nossa cultura retrocedeu•..
o ponto do avanço na história real, mas retrocedendo no
tempo, desfazendo todo o caminho andado para a frente no Sobre planos alternados de Ctistos e indígenas,
filme, cronologicamente. E assim se chega à origem da si- um canto refigioso:
tuação do índio despossufdo. Duplo movimento de avanço e Ouçam, ouçam essa afronta.
recuo, para que o índio espectador, em mimese com o índio-
marionete percorra esse mesmo caminho de volta às fontes. Lamento em off:
O problema que dava voltas em minha cabeça, ou seja, co- Aí, ai, ai. E a imagem passa a um teatro de marionetes numa
mo passar do relato do passado, do já acontecido, ao pre- aldeia.
sente, foi resolvido pelas marionetes. A peça das marionetes
faz de ponte de um novo jogo de associações, porque essa Entra Ctscuctie (um camponês) com um fardo às costas:
marionete entrou com um fardo às costas, virou u-n boneco e Ai, me cansei. Oh, que lindo trigal. De quem será?
tornou a sair de cena com um cartaz altivo que é exatamente
o que existe numa reunião agrária. Ser de carne e osso que
Aparece Hermógenes, e fazendeiro:
se metamorfoseia em marionete, marionete que retorna a sua
F - que você está fazendo em minha terra? Vá embora!
humanidade num novo jogo de desdobramento e encadea-
C - Patrãozinho, eu estava olhando. De quem comprou esta
mentos.
terra?
Ao mesmo tempo, porém, essa pecinha introduz, num filme F - Foi meu pai que meu deu.
documentário, o elemento de ficção. A ponte que laça o sulto C - Ah, está bem. E o seu pai, de quem comprou?
qualitativo da história é uma ficção, mas em si mesma, pois F - Não brinque comigo, não tenho tempo a perder. Meu avô
dentro do filme é estritamente documentáriojâ que acontece a deixou para meu pai.
realmente. Ficção e realidade do documentário se identificam C - Ah. E seu avô, comprou de quem?
ao ser uma mesma matéria a documentar. E permitem pre- (risos)
servar sua as muletas de velhas fotos ou noücíáríos - o ca- F - Ah, caramba! Meu bisavô foi quem deixou para meu avô.
ráter de coral, a forma de hino a que todo o filme aspira. Tra- e - Bisbisque?
balhando neste gênero difícil, não renunciando às infinitas F - Bisavô, bugre.
possibilidades de modelar na rnoviola, nas bandas sonoras, C - Tá, tá. E esse seu bisavô, de quem a comprou?
na música e nos efeitos, tinha material para um proposta F - Foi meu tataravô que deixou para meu bisavô•.•
complexa: narrar através da livre manipulaçãodo documento. C - Tataraque (risos)
Acredito - é o que me satisfaz que a abcisse que reúne to- F - Meu tataravô, índio!
das as ordenadas deste filme - ou seja, o manipar aborígene C - Ah, bom. E o seu tataravô, de quem comprou?
americano - não foi traído. F - Escute, meu tataravô não comprou de ninguém. Conse-
Roteiro (fragmentos} guiu a terra lutando com os índios e os camponeses. Meus
Locução, poema quechua incaico tataravós lutaram para conseguí-la.

79
e"' ."" Ah! Com o meu tataravô? motivo, para reconquistar tudo isso, mas levou-se nosso
F-Ê. .. . . . companheiro e antepasado.. Tupac Amará, Na serra, deu o
e - Já que você conseguiu a terra com a luta de nossos bi- grito de liberdade, e tudo o que ele pensou, seu grito, está re-
savós, nós vamos decidir a coisa lutando •.• (ao público) é ou nascendo agora { ••• ) Agora a vida está fervendo ( ••• ) Assim,
não é? quando chegamos ao coração das coisas, a sociedade
Público- É! avançará. Outros concluirão o caminho que abrimos. Então
C - Vamos lutar! Então me devolva a terra! nosso sangue rejuvenescerá. Crescerá como uma flor de vi·
da. Crescerá como um Novo Sol •••
No tim, Ciscucha levanta um cartaz:
Terra sem patrão. Pànorâmica descendente sobre uma reu- Letreiro: FIM.
nião agrária de cartaz idêntico. Voz de Fuilka em off:

••• Por este motivo nós reivindicamos que a terra retorne a ALBERTO GIÚDICE
nossas mãos. Para os fazendeiros nunca mais. Por esse jornalista e documentarista (Argentina)

ln this article, the author thínks over his film "Causachum Se trata de una ref/exión sobre la petfcu/a Causachum Cuz-
Cuzco ··, made in the town of Cusco, birthplace of the Peru- co, que e/ autor dei articulo teeuzõ en la ciudad de Cuzco,
vian history. cuna de la hístoriaperuana.

ln bis documentary, he had, as a cha/lenge, to do a cinema- E/ desaf(o era hacer en su documental una narración cine-
tographic narratíve that essemble ali the saga ot lhe focal matográfica que aglutinarél. toda la saga dei ind{gena de lu-
indígene, though to be the tusion point ot the Peruvían nis- gar, percíbido como punto de fusíón de la historia peruana: en
tory: in its past, ln the cofonization,in the Repub/ic and nowa- su pasado, en la cokxúzsciôn, en ta república y en nuestros
days. ates.
ln this way, Archaeology becomes one ot lhe guidelines to En dicho enfoque la arqueologia se convierte en uno de los
editing. The author discusses the concept ot "editing docu- hilos dei montaje. E/ autor discute et concepto de "documen-
mentary" thus ctassifyíng bis film, and íncludes, at me end of tal de montsie", categorfa aplicada a su pe/fcufa e incluye, ai
his artícle, parts of the script. final, fragmentos de su guíón.

•.

(1) Publicado originalmente na Revista "Cine Ubre".


("} Mitayo, de MITA: tributo pago pelos índios do Peru (N. da :r) Causachum Cusco - Publicado originalmente na Revista "Cine Líbrs",

80
MEKÁRON OPOIJOIE
LUIZ HENRIQUE DE M. RIOS
RENATO RODRIGUES PEREIRA
MÓNICA FROTA

Noite no Kapoto. Nossos passos se fazem ouvir, cruzando co, O que gravávamos era reproduzido quase diariamente.
inquietos o pátio da aldeia. Estamos entre os Txucarramãe, As sessões de TV congregavam a maior parte dos habitan-
ao norte do Parque Indígena do Xingu, entreouvindo conver- tes da aldeia. Risos e expressões de espanto acompanhavam
sas que escapam da Casa dos homens, ruídos das últimas as cenas da vida cotidiana e os filmes que leváramos conos-
tarefas domésticas que transcorrem indiferentes a nós. O fo- co abordando outras civilizações, ou a própria vida dos ka-
go multiplica-se em cada fogueira, única luz de mais uma yapó anos atrás.
noite. Detemo-nos perto da Casa dos homens, monitor e vi-
deocassete ajeitam-se sobre o móvel improvisado, alguém Em breve dois jovens foram designados - e aceitaram pron-
aciona o gerador e em instantes há mais uma luz no Kapoto. tamente - para aprender a manejar o equipamento. Um deles
Crianças e mulheres deixam suas casas, as primeiras es- saiu-se tão bem que em pouco tempo circulava com desen-
premem-se diante das outras, os homens já se aproximam voltura, seguido por um séquito de crianças, a registrar o dia
puxando bancos e arrastando esteiras. Sobre a tela, as ima- a dia xinguano.
gens e as palavras que Kromari, o mais velho líder Txucar-
ramãe, enviou de sua aldeia. Mekaron e Raoni sugeriram que viajássemos até as outras
aldeias kayapó - há mais nove espalhadas pelo sul do Pará
Ourante 45 dias estivemos nesta tribo kayapó, lá se vão dois - levando mensagens gravadas no Kapotó. Estivemos com
anos. Não produzíamos um filme ou um programa para a te- os Gorotire e os Aukre no Parque Indígena Kayapó. Entre os
levisão. Chegamos até eles para verificar até que ponto era Gorotire, onde vivem cerca de 700 pessoas, a primeira ses-
verdade o que ouvíramos, meses antes, no Rio de Janeiro: são de TV foi, digamos, movimentada. Literalmente toda a al-
alguns grupos indígenas do Xingu estavam interessados em deia acotovelou-se na Casa dos homens, que como é óbvio,
"aprender a filmar", Logo eles, cuja expressiva vida cerimo- não fora planejada para tais ocasiões.
nial atraía levas de cineqrafistas. Logo eles, cartões postais
da nacionalidade, saudáveis ilustrações do "verdadeiro-índio" Todos estes acontecimentos, aqui abreviados, passaram-se
e, até há poucos anos, exemplos mimados da contraditória em 1985. Os Txucarramãe, desde então, procuraram obter o
polílica indigenista brasileira. seu próprio equipamento, o que os Gorotire, em melhor situa-
ção econômica, conseguiram meses depois. Convidaram-
O que ouvíramos, no caso dos Txucarramãe, era sem dúvida nos a voltar à aldeia para prosseguir o trabalho inúmeras ve-
verdadeiro. Não que todos eles estivessem ansiosos em zes. Mas com que recursos? Até então financiáramos o pro-
aprender mais uma arte ocidental. Mas Mekaron, desde o iní- jeto em conjunto com os índios, um fato, note-se, singular.
cio, e Raoni em seguida, anteviam na possibilidade de mani-
pular uma câmera e registrar certos acontecimentos, benefí- Mas eis que no início de 87 os Txucarramãe pedem e obtêm
cios significativos para os seus. como parte do pagamento devido por uma equipe da televi-
são britânica, uma unidade completa de gravação de vídeo ta-
Devíamos, em poucas palavras, explorar as possibilidades pe; e que, surpresos, vemos casualmente num telejornal,
de uso da mídia eletrônica entre eles. Era este o nosso papel, kiabieti, nosso jovem aprendiz, câmera em punho, gravando
o papel de dois antropólogos ligados à produção e criação de um ato político encenado por vários grupos ind/genas na As-
vídeo, e de uma cineasta e profissional de televisão. As dúvi- sembléia Constituinte. Os Txucarramãe levavam adiante, e
das, é evidente, superavam as certezas. Por que realizar um às suas próprias custas, o projeto. Um projeto que despertou
trabalho deste tipo? Que significado teria para um grupo indí- reações previsíveis, do tipo "para que levar mais um bem in·
gena que nem mesmo manipula a palavra escrita, empregar a dustrializado aos índios?" Raciocínio tendencioso, pois pres-
moderna tecnologia audiovisual? Não estaríamos criando supõe dar-se a relação entre índios e brancos em mão única
mais um laço de dependência entre eles e a nossa socieda- e sugere que somos nós os fiadores de seu futuro.
de?
A convivência com os Txucarramãe permitiu relativizar ar-
Colocamo-nos a seu serviço. Gravávamos, em VHS, o que gumentos paternalistas e visões apocalípticas sempre acio-
eles sugeriam. A construção da nova aldeia, abertura de ro- nadas quando se trata de abordar o contato interétnico. Eles
ças, caçadas, cantos e rituais de iniciação. Aos poucos ven- são parte ativa - e assim se consideram - deste processo, e
cemos a desconfiança daqueles que viam em nós mais um a incorporação de certas tecnologias e saberes ocidentais é
grupo de cinegrafistas ávidos por belas impressões do exóti- concebida como uma estratégia de enfrentamento, um meio

81
de, fortalecer sua posição. A utilização do vídeo tape, por quanto o da permanência, enquanto na nossa sociedade é
exemplo, tem nftidas implicações pollticas. Desde o início corriqueiro tomar as "culturas primitivas" por um conjunto de
prestou-se à troca de informações intertribais: entre os líde- traços e costumes tradicionais incapazes de articularem-se
res Txucarramãe e Gorotire circulam mensagens expressas com a História. ·
em monólogos formalizados contendo, entre outras coisas,
considerações sobre a situação das terras kayapó, que co- Não temos um programa de vídeo que resulte dos trabalhos
mo se sabe, sofrem o impacto da frente de expansão agro- desenvolvidos. As quase trinta horas de material gravado
industrial, das minerações, e de grandes projetos do Governo não contêm uma abordagem sistemática da vida dos Txucar-
Federal. Por outro lado, a gravação do ato público na Cons- ramãe. Estão voltadas para o interesse deles e a eles per-
tituinte demonstra a intenção de empregar o VT como instru- tencem. Mas em julho próximo estaremos de volta, durante
mento de pressão às autoridades brasileiras responsáveis um ritual de nominação. Será então possível, com dois equi-
pela política indigenista. Segundo Raoni, todas as reuniões pamentos, documentar o trabalho e percorrer outras ques-
com os "homens grandes" de Brasília serão doravante do- tões: que representações fazem os Txucarramãe a respeito
cumentadas em vídeo. de seus próprios rituais? que aspectos privilegiarão, posta-
dos atrás das lentes, ao registrar suas atividades cerimo-
Encontramos, enfim, nas narrativas míticas dos Txucarra- niais? Como será editar um programa sobre esses dois anos
mãe, algumas respostas às nossas indagações. Segundo com a participação de nossos amigos?
elas, todas as práticas e bens culturais kayapó provêm de fo-
ra, de um Outro - a natureza, o inimigo. São aquisições ou Questões em que estaremos absorvidos quando cruzarmos
conquistas. O uso do VT é pensado de acordo com esses mais uma vez a noite do Kapoto.
parâmetros. E os jovens que em março último gravaram o ri·
tual de nominação de um menino estavam de acordo com
outro valor muito caro aos kayapó: há que preservar a "cultu- Maio de 87
ra-dos-avós". É curioso observar que os Txucarramáe con- VENETA VÍDEO (RENATO/LUIS HENRIQUE/MONICA)
cebem sua cultura tanto do ponto de vista da mudança realizadores na área de vídeo (Brasil)

li deals with a video expetience with the indians of the Xingu E/ artículo enfoca una experiencia hecha con vídeo, manco-
Netions! Park. Anthropologists linked to the vídeo production munadamente con los índios dei Parque de Xingu. Antropólo-
went to the Xingu to work with the indians the possibilities of gos vinculados a la producción y creación en video se fueron
the electronic media, enabling them to use the equipments in a trabajar en comunidades indígenas con miras a explorar las
oroet to register theirown reality. posibilidades de los medios eletrónicos en e/ seno de tos in-
dígenas, capacitando los para el manejo de los equípos y re-
gistro de su propia realidad.

82
Festa de "Carnavales". Dança de grupos locais na praça central da Ilha, no dia dedicado às autoridades, daquela semana de festas.

ANTROPOLOGIA E CINEMA: I

UM DOCUMENTARIO NA ILHA DE TAOUILE


PATRÍCIA MONTE-MÓR

O filme documentário que está sendo realizado no Peru, na Ilha de Ta- minando especialmente tipos diferenciados de flauta e hoje
quile, dirigido por JOSÊ INACIO PARENTE, faz parte de um projeto de· proprietários de suas terras, após alguns anos de muita luta.
senvotvido em etapas, iá tendo sido concluída sua 1 ~ parte. Concebido
pelo cineasta José lnacio Parente e pela antropóloga Patrícia Monte-
Mór, autora do presente artigo, que também dirigiu a pesquisa de campo, Sem hotéis ou infra-estrutura básica ao desenvolvimento do
contou com a colaboração da antropóloga Ana Maria Daou e com a par- turismo tradicional, de difícil acesso, Taquíle somente se in-
ticipação de líderes da Comunicadade da Ilha de Taquite.' clui nas rotas turísticas alternativas, sob controle exclusivo
da própria comunidade, que administra a vida na ilha.
Entre flores do campo e abundantes pedras, a 4.200 metros
de altitude em pleno lago-oceano do Titicaca, situa-se a Ilha Vestidos com seus trajes tradicionais, por eles mesmos
Taquile, com seus 1.000 habitantes nativos, indígenas, que- confeccionados, taquilenhos se diferenciam de seus demais
chuas. vizinhos lacustres e do continente, construindo a sua identi-
dade através da idéia de tradição, costume, proprietário de
Depois de galgar 400 metros em estreito caminho sinuoso e suas terras.
rochoso, chega-se ao povoado principal da ilha, avistando-
se, por todo território, as pequenas casas de adobe de seus Nosso objetivo, neste artigo, é descrever e refletir sobre nossa
habitantes, e as "terrazas" cultivadas. experiência enquanto cineasta e antropóloga, num trabalho
conjunto, realizado no universo da Ilha de Taquile, no Lago
São tecelões, pequenos agricultores, músicos exímios, do- Títícara, Peru, de produção de um filme documentârio.

83
A HISTÓRIA DO PROJETO TAQUILE propriedade comunitária dos taquilenhos. No percurso, ainda
próximo ao porto, vivem os Uros, povos das ilhas flutuantes
Tínhamos como objetivo comum a realização de um filme do- com quem os taquãenhoe trocam o excedente de suas roças
cumentário, que abordasse o cotidiano dos moradores da por algum pescado. Puno é a região considerada no Peru
Ilha. Nosso próprio objeto nos impunha um maior aprofunda- como o berço das .tradições musicais, no altiplano andino,
mento no conhecimento daquele universo para a realização abrigando os dois principais grupos étnicos: de língua que-
do filme, no que a pesquisa antropológica se faria fundamen- cbua e aymara. Os de Taquile são quechuas e se conside-
tal. · ram herdeiros dos próprios Incas.

Por dificuldades de produção - realização fora do Brasil, sem Na Ilha cultiva-se o milho, favas ocas, batata, cevada, num
apoio financeiro significativo, com pequena equipe não po- clima frio, chegando a temperatura de 159C abaixo de zero,
demos nos locomover para Tà.quile em dois momentos dis- em algumas épocas.
tintos, conforme desejávamos. A pesquisa primeiro e depois,
as filmagens. Partimos para um trabalho conjunto, pesquisa e De fins do século XIX até 1924 Taquile foi utilizada como pri-
filme se alimentando mutuamente. são política, confinando uma série de pessoas de relevada
projeção na história peruana, como Ortega, Caballero e o
Não queríamos produzir mais um dos muitos documentários General Sanchez Cerro.
estereotipados sobre o nativo, expondo a comunidade en-
quanto uma vitrine para atrair o turista. Queríamos contar, Desde a colonização espanhola a ilha vivia de feudatário em
através de um filme, numa perspectiva de maior compromis- feudatário, chegando as mãos de Cuentas, família de gran-
so com a própria comunidade, um pouco da sua vida real, des proprietários de Puno. Para o trabalho nas propriedades,
cotidiana, resgatar a sua história e a sua memória. em épocas diversas, foram arregimentadas também para a
ilha, famílias das regiões vizinhas, que com os nativos vão
Partimos, de olhos abertos, ouvidos atentos, câmera na mão, formar hoje os oito troncos familiares que habitam Taquile.
gravador e os demais instrumentos necessários à nossa Os Flores, Huatta, Quispe, Mamani, Machaca, Cruz, Yucra,
pesquisa e documentação. Marca são proprietários da Ilha com "título de propriedade",
os primeiros da região do lago, a partir de urna luta e pro-
Chegamos à Jlha em fevereiro de 1985. Uma viagem anterior gressiva organização comunitária de quase um século, sob
já havíamos feito, em fevereiro de 1983, o que nos facilitou suas lideranças locais.
nos primeiros passos de nosso Projeto.
Entre o lote privado e o trabalho coletivo, os taquilenhos de·
Depois de feitos todos os contatos para a produção no Pe-
sempenham hoje as suas tarefas, as suas festas, os seus
ru, ultrapassadas as duras barreiras da burocracia estatal,
rituais, obedecendo a uma lógica que lhes é própria, herdada
auxiliados por inúmeros companheiros de lá e de cá, segui-
dos costumes "de nuestros abuelos".
mos para um mês no Tlticaca, nesta aventura! Não com uma
pesquisa realizada anteriormente, não para uma filmagem
"Ségun nuestros abuelos decfan, no hay que ser ladron, no
simplesmente descritiva, mas para realizar um trabalho con-
hay que ser flojo, no hay que ser mentiroso. Nosotros aqui
junto, construído com a assessoria de nossos próprios infor-
nunca sabemos robar, nunca sabemos ser flojos y ni tampo-
mantes e personagens que, ao final, embarcavam também
co somos ociosos. Siempre nosotros estamos con nuestra
em nosso sonho.
artesanía y conservando ... Ama sua, ama lulla, ama queua,
Nosotros tenemos las tres leyes que cumplímos, ley de la
AILHA isla taquíle."

As comunidades andinas compõem-se de famílias dentro de O discurso taquilenho que fala de comunidade, harmonia, so-
um território delimitado e tradicionalmente dividido em duas lidariedade, tradição, trabalho, fartura, festas, costumes é
metades: alto e baixo, que se opõem e se complementam. muíto marcante, como a própria necessidade de estar a todo
Cada metade é subdividida em duas partes: direita e esquer- tempo reforçando a sua identidade em oposição aos "mistis"
da. Esta repartição do espaço já existia no Império Inca as- (grandes proprietários de terra), aos "de fora", mesmo que de
sim reproduzida em Taquile. Na repartição territorial, nos oi- seus vizinhos do lago ou ainda, turistas.
versos aspectos da vida ritual, nos códigos das vestimentas
e sua produção artesanal, na música, no trabalho, nas festas Quanto a esta categoria, turistas, os de taquile parecem ter a
e no mundo do sagrado: em tudo se assemelha Taquile às noção nítida de que é preciso incluir a ilha num determinado
tradições do Império lncaico - tornando-se um cenário sin- roteiro turístico, mas dentro do controle da própria comunida-
gular e conferindo-lhe originalidade. de:

Situada no berço mítico da civilização incaica, o Titicaca, Ta-


quile tem a forma alongada e relêvo acidentado, com uma "No esta cambiando con el turismo, esta alegrando, ellos nos
superfície de 4.500 m2, com seus habitantes que vivem basi- contan de sus países y nosotros contamos de nuestra isla,
camente da agricultura e da tecelagem. Vívimos de artesanía porque ellos compran y traen oínero, es
decír, estamos haciendo un trueque: artesanía con plata. Con
Puno é a cidade no continente de onde se parte para a Ilha, eso compramos lo que nos gusta: el pan, el arroz, el azúcar,
numa viagem de 4 horas em pequenas embarcações, de kerozene."

84
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A identificação das pessoas nas fotos. Album que levamos de pre-
sente para a comunidade com fotografias que fizemos em Taquite
em nessa primeira visita à Ilha, cm 1983.

A atividade artesanal mais importante de Taquile é o tecido,


de especial beleza e cores, com desenhos que são a sua
marca, já conhecidos nas obras de arte do exterior. O negro
é a cor predominante no traje tradicional usado cotidiana-
mente em Taquile, sobressaindo-se o enorme manto preto
usado pelas mulheres. Taquile é uma ilha de tecelões.
Uma das autoridades da organização poUUca comunitária, tradi-
As festas de santos do ritual católico mesclam-se aos diver- cional das populações andinas: "varaioc", nos trajes de gala, Los
sos cultos da tradição quecbua, em especial aqueles ligados Carnavales.
à Pachamama, Mãe Terra, gênese de tudo, da vida, símbolo
da fertilidade, sempre presente no universo andino, e em Ta-
quile, a todo momento reverenciada. O FILME

Ao nível da organizaçao social, a comunidade taquilenha é Neste cenário realizamos a 1ª etapa do Projeto, de um filme
organizada por grupos familiares, sendo a transmissão da feito em 16 mm, a cores.
terra assegurada pelo casamento, o que é fundamental para
se entender a organização social, econômica e política da São 50 minutos de material já pré-montado em que registra-
ilha. mos, como num mosaico, a vida taquiíenha, Nada podia nos
escapar. A avidez que tínhamos em conhecer e registrar tudo
Politicamente, é o Tenente Governador a autoridade máxima, era imensa, e o tempo, afinal, pouco para tanta coisa!
"el gobierno central en la lsla Taquíle", tradicionalmente eleito
por toda a comunidade em praça pública. Recebidos em casa do Tenente Governador, alí nos aloja-
mos - os três que formávamos a equipe: o cineasta e duas
Na praça central de Taquíle, "lglesia Pata", estão assentadas antropólogas, com conhecimentos técnicos básicos de cine-
as principais construções comunitárias: a igreja, a agência ma. Somente fomos conhecer a família após dias já passa-
municipal (a Alcadia), a governância e o Juizado de Paz. dos. Era tempo de "Camavates", quando dança-se, bebe-se,
Também ali se encontram a cooperativa artesanal e um pe- visita-se, festeja-se pela boa colheita e fartura no ano que se
queno comércio alojado na própria residência dos moradores. inicia.
Uma escola primária, e um posto médico, com condições mí-
nimas de funcionamento ajudam a compor este cenário. Alojamo-nos, com os equipamentos, em dois cômodos do 29
piso da casa em que vivia a tamllia com os pais, já bastante
Na geografia rochosa e acidentada da ilha, encontramos, em idosos, do Tenente.
ponto altos e estratégicos, ruínas em pedras, de constru-
ções, atribuídas ao período lncaico, envoltas em significados Passávamos os dias em nosso caminhar por toda parte, nas
sagrados para os habitantes. Em pontos semelhantes está descobertas, filmagens, sempre acompanhados de uma jo-
também localizada uma via sacra, parte dos rituais religiosos vem equipe que formamos, de moradores locais, que se jun-
locais. taram a nós. Dois, em especial, funcionavam mesmo como
nossos guias e assistentes.
No dia a dia, de trabalho e festa, o que se vê, a cada instante·
são homens e mulheres, tecendo, em agulhas, pelos cami- As noites, passávamos a discutir a produção do dia, fazendo
nhos, na soleira da porta, pasteando uma vaca ou ovelhas - previsões, refletindo sobre nosso trabalho, a luz de um lam-
únicos animais locais - os gorros, os coletes, as faixas, os pião, depois da sopa, peixe cozido ou um pequeno lanche
tecidos que vendem e vestem. feito em casa de Rosa - que nos fornecia alimentação diária.

85
A tensão filme ...,. pesquisa era, no entanto, vívida a cada dia. No desejo do cineasta, diantE} daqueles dados e daquele
Para a realização do filme, os dados levantados pornossas contexto, faríamos Mariano repetir a morte do carneiro e todo
investigações, mesmo que nos parecessem insuficientes, já o ritual seguinte, para as filmagens. Parecia-me, no entanto,
davam ·as pistas para· seguirmos adiante •. Fasclnados pelo fazer este pedido ao pai uma violentação "Antropológica",
universo da· 11ha, queríamos aprofundar, no entanto; ques- ainda que fomecessemos o carneiro, que posterionnente
tões, eleger temas principais, abandonando, muitas vezes, a serve para a alimentação da família. Afinal, o fato jâ havia
visão mais global qae () filme exigia. ocorrido, dentro de seu tempo, dentro da lógica que lhe é
própria e lhe dá sentido, naquelá cultura. E assim procedemos,
Por motivos operacionais nos dividíamos, em geral, em dois nesta e em outras situações diversas, em que parecia se im-
grupos; um com o cineasta, uma das pesquisadoras e um por a necessidade de uma maior intervenção na realidade por
dos assistentes, ficando a outra pesquisadora e assistente parte do diretor, e que a idéia de uma pretensa neutralidade
mais dedicados a pesquisa, propriamente dita. cientffica se apoderava de mim, afastando-nos muitas vezes,
de maiores interferências nas situações dadas.
A abordagem que buscamos no filme foi a de desvendar a
trama, o tecido constitutivo da vida em Taquile, que parece Este caso pode bem exemplificar os diversos momentos de
estar formada por fios principais: o costume e a tradição que- dúvidas e tensões, nesta nossa experiência, entre as neces-
chuas como pano de fundo no plantar, tecer e dançar, da vi- sidades do filme e · um certo purismo da pesquisa, entre a
da local. objetividade e a subjetividade a Antropologia e o Cinema. Vejo
hoje que seria perfeitamente cabível refazer a história do car-
neiro, pedir que cenas fossem repetidas para melhor ângulo
Finalizamos a primeira etapa do projeto, com o material reaü- da câmera, melhor facilidade de luz, etc. Interferência já fa-
zado, registrando, como num mosaico, dimensões diversas zíamos nós desde o momento em que chegamos à ilha. ln·
da vida e do cotidiano: nascimento e morte, dias de trabalho terferência já fazíamos nos com nossas roupas, nossa lín-
na casa e na roça, dias de festa, rituais sagrados, organiza- gua, nossas caras, nossos equipamentos e curiosidade. Afi-
ção Polrticoc,sociat, artesanato e geografia local. nal, nossos informantes-atores muito se lisonjeavam de se-
rem os escolhidos para participarem mais de perto de nosso
Gravamos 10 horas de material sonoro, entrevistas, músi- trabalho e, ao final, interferindo mesmo na produção.
cas, depoimentos.
Acredito que a discusão que Jorge Preloran faz num artigo
A continuidade do projeto depende, agora, de ajuda financei- neste mesmo Caderno de Texto sobre filme etnográfico seja
ra •• Queremos levar e discutir com a comunidade o material muito elucidativa para estas considerações, como também
já filmado. Estamos certos de que precisamos aprofundar al- entendo ser fundamental refletir sobre o formato do doeu·
guns temas, entrevistar personagens específicos, viver novo mentário e o público que pretende atingir.
período de tempo na Ilha. Neste processo, queremos incor-
porar sugestões e expectativas da própria comunidade que Se assessoria da pesquisa tinha utilidade, neste projeto, en-
terá uma cópia do filme, como um dos possíveis retratos de quanto indicação de caminhos, descoberta de significados e
sua realidade. contextualização das observações, por outro lado, não deve-
ria tolher a criatividade e necessidade do cineasta de colher
ou até fazer repetir novas imagens essenciais para a língua-
CINEMA E ANTROPOLOGIA
gem do cinema.
Fazendo o breve relato de um caso, prática comum na tradi-
Não se tratava, pois, de fazer um filme· com lindos aspectos
ção antropológica, gostaria de levantar algumas reflexões a
curiosos de uma comunidade, nem subjulgado por uma su-
cerca da pesquisa e da filmagem nesta nossa experiência posta neutralidade científica, mas com uma dramática pró-
em Taquile. pria, interagindo com o público a que se destina que certa-
mente estará distante daquele universo e contexto.
Levados por Alípio, um menino de 13 anos e nosso guia, to-
mos à casa de Mariano Huat Quispe, ver seu filho que
acabara de nascer. No quintal, os demais filhos, pequenos,
nos recebiam. A entrada da casa percebemos uma marca de CONSIDERAÇÕES FINAIS
sangue jorrado na parede, junto à porta. No interior da casa,
em um mesmo cômodo, uma das crianças cozinhava, junto a Na experiência relatada, a pesquisa antropológica teve o pa-
um fogo de lenha, estando, do outro lado, sobre uma cama de pel de relativizar informações, decodificar o universo e o sig-
pedras e colchão de palha, Mariano, a mulher e o filho. Ma- nificado das relações, aprofundar o conhecimento, permitindo
riano tecia um gorro de lã, ao lado da mulher deitada junto à a concepção de um filme-documentário, mais comprometido
criança. com a vida da comunidade e com seus moradores. A ima-
gem visual, através do cinema, orientada pelas indicações da
Ficamos muitas horas na casa, conversando, buscando par- pesquisa; possibilitou uma linguagem dramática e estética da
tilhar daqueles momentos. tão significativos para a família de realidade. A neutralidade cíentãica e a ética propostas tradi-
Mariano. Falavam-nos dos rituais em torno do nascimento de cionalmente pela Antropologia era conjugada com a estética,
uma criança e que, o sangue da porta, de um carneiro sacri- a linguagem e dinâmica que buscava o cineasta. Com a câ-
ficado para o ritual, era devido ao nascimento. de um filho ho- mera, passamos a condensar, através do significante irna-
mem1 gem, os múltiplos significados daquele universo. A preocupa-

86
ção com a relativização da Antropologia vai se contrapor a Faltam-nos algumas imagens complementares. Resta-nos
busca pela linguagem universal com que o Cinema pretende voltar, exibir o material para a comunidade de Taquite, deba-
trabalhar. ter com eles os caminhos a seguir.

Neste contexto de diferenças e aproximações trabalhamos PATRÍCIA MONTE-MÓR {Brasil)


incansavelmente durante um mês de vlda-pesquisa-ãmêl antropóloga

This articfe relates tne working experience ot a Brazi/ian ca- Este artfcu/o relata la experiencia de trabajo mancomunado
meraman and a Brazi/ian anthropologist in the making of a encre un cinegrafista y una antropóloga brasilefios para la
documentary film in an island of the Lake Titicaca, in Peru. realización de una película documental en una is/a dei Lago
Titicaca, en Peru.

lt deals with tne difficulties faced by them in the complex uni- Es una reflexión sobre las dificultades de dicho trabajo en
verse to be recorded. lt descrites the island, its singularities, conjunto, en e/ marco de la complejidad dei universo que se
inhabitants, history and originality. documenta. Describe la isla, sus especificidades, habitantes,
historia y origínalidad.

NOTA
• Agradecemos a Pecy Mamani, Pablo Huatta Cruz, Rosa Jananpa, Diego lararazavel, José Matos Mar, Nora de lzcue, dentre outros que estão colaborando
na realizaçao do filme. Este artigo é dedicado a José Ínacio Parente. •

87
O CINEMA INDEPENDENTE COLOMBIANO
MARTHA RODRIGUEZ

O cinema independente colombiano está inscrito num co- encontrarás meu canto
nexto continental, não nasce por geração espontânea, como Te sigo
fenômeno isolado. pobreza
te vigio
A origem desse movimento de cineastas - gerando o que foi te cerco
chamado de "TERCER CINE", "CINE MARGINAL", "CINE te disparo
POLÍTICO" - está nos anos 60 e nos movimentos de liberta- te isolo
ção na América Latina. te aparo as unhas
quebro
Seus traços essenciais são: sair às ruas se recusando a os dentes que te restam
usar equipamentos pesados, trabalhar com orçamentos re- Estou em todas as partes
duzidos e por um equipamento leve - muitas vezes com a no oceano com os pescadores
câmara na mão -, condições que propiciavam o trabalho com na mina
setores populares, abordando assim uma problemática social os homens
e rompendo com velhas formas e estereótipos. ao limpar a testa
secar o suor negro
Segundo o escritor Humberto Valverde, em seu livro "Re- encontram
portaje Crítica ai Cine Colombiano", "o novo cinema latinoa- meus poemas
mericano surge e se desenvolve numa situação de convul-
são social no auge da luta de classes, marcado pelo triunfo
da Revolução Cubana, pela força dos movimentos de liberta- A hora
ção, pela aguerrida luta do povo vietnamita, pelas rebeliões pobreza
estudantis, no contexto, portanto, de uma luta continental e yo te sigo
mundial. Este é um elemento decisivo para entender seu Como fuiste implacable
substrato político, sua busca de raízes nacionais e sua fun- soy implacable
ção de agitador. Nasce então o cinema de combate, denún- Junto
cia e análise das condições do subdesenvolvimento. É o ci- a cada pobre
nema que abandona as salas e os recintos tracionais e vai me encontrarás cantando
se instalar nos sindicatos, escolas e universidades. bajo
cada sábana
E se dizemos que não é um fenômeno isolado, é porque na- de hospital imposible
quela momento se desenvolvia no campo das artes, da cria- encontrarás mi canto
ção artística, todo um movimento na poesia, nas artes plásti~ Te sigo
cas, no teatro e na literatura que necessariamente influencia- pobreza
rá a procura dos cineastas. te vigilo
te acerco
te disparo
Assim cantava Pablo Neruda em sua "Ode à Pobreza": te aislo
te cerceno las unas
Agora pobreza te rompo
eu te sigo los díentes que te quedan
Como foste implacável Estoy en todas partes
sou implacável en el océano com los pescadores
Junto en lamina
a cada pobre tos hombres
me encontrarás cantando ai limpiarse la frente
sob secarse el sudor negro
cada lençol encuentram
de hospital impossível mis poemas

88
Assim, os cineastas testemunhos desse tempo foram com Mas é a partir de 1970 que surge uma nova tendência no oi-
suas câmeras às minas, às fábricas, aos '2Chircales" (1) nema independente colombiano, e essa nova geração de ci-
morar cinco anos com os operários, testemunhar sua expio· neastas oriunda dos cineclubes ou da crfiica, vai se expres-
ração vergonhosa, saíram às ruas com os estudantes ••• sar através do documentário.

Como o cineasta uruguaio Mario Handler em seu documentá· Como dizia Gláuber Rocha, ar "basta uma idéia na cabeça e
rio de alguns minutos de duração, "Que Vivan los Estudian- uma câmera na mão".
tes"; onde a chilena Violeta Parra cantava "Viva os estudan-
tes porque são o fermento do pão que sairá do forno todo sa- Desse grupo podemos destacar os seguintes documentários:
boroso", assim também se uniram a canção à poesia e as • "Asalto", de Carlos Alvares, 1968, sobre a invasão da Uni-.
artes plásticas. O pintor Alejandro Obregón nos impressiona- versidade Nacional de Bogotá pelo exército, muito influencia·
va com seu quadro da "Violência na Colômbia", e o escritor do por "Now", filme do diretor cubano Santiago Alvarêz.
"Arturo Alape" com seu "Diário de un guerrillero" nos introdu-
ziam no mundo do que era e continua sendo a "Violência Po- - "Chircales", 1966-72, documentário sobre a exploração
tica na Colômbia". sub-humana à que latifundiários e patrões submetem uma
famma de fabricantes de tijolos.
Nos anos 60 retorna à Colômbia o sociólogo e sacerdote
Camilo Torres Restrepo, e é criada a primeira faculdade de - "Campesinos", 1975, sobre as lutas agrárias dos anos 30
Sociologia na Universidade Nacional da Colômbia, com sede na região de T equendama; trabalho de recuperação histórica.
em Bogotá. Assim, as ciências sociais nos dariam as ferra-
mentas para analisar toda essa conturbada realidade. • "Planas", 1970, testemunho sobre um etnocídio (o assassi-
nato dos índios guahibos), efetuado pelos militares.
No Brasil Gláuber Rocha dizia: "Nossa intenção também é
não fazer do Cinema Novo um círculo fechado de cineastas, Os documentários "Chircales", "Campesinos" e "Planas"
queremos com nossa luta implantar uma mentalidade; e o ci- são de Martha Rodríguez e Jorge Silva.
nema brasileiro ainda tem que se transformar num cinema
verdadeiramente novo, digno de um país novo." Também foram realizados "Quê es la democracia", 1971, so-
bre as eleições, e "Colombia 70", sobre a vida de uma men-
E o Cinema Novo brasileiro toma a decisão de elevar o cine- diga, de Carlos Alvarez, além de "Oiga Vea", 1972, de Carlos
ma de seu país ao nível de "força cultural", o que não era Mayolo e Luis Ospina.
nem nunca havia sido (H. Valverde).
Trata-se de filmes que já abordam abertamente uma proble-
Duas obras capitais - "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de mática social, e cujos atores são pela primeira vez gente do
Gláuber Rocha, e "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos povo, com uma ótica polfiica determinada e com uma finali-
Santos· foram apresentadas no Festival de Cannes de 1964, dade muito clara de denunciar a dominação de classe, a ex-
e são as obras mais revolucionárias que abrem caminho para ploração do homem pelo homem.
o Novo Cinema Latinoamericano.
Não foi por acaso que depois da morte do sacerdote Camilo
Os festivais latinoamericanos de Viíía dei Mar (Chile) e Méri· Torres em 1966 Martha Rodríguez e Jorge Silva dedicaram a
da (Venezuela) em 1968, foram o ponto de encontro dos cí- sua memória o filme feito em "Chircales", pois foi onde ele
neastas que haviam optado por colocar suas câmeras do la- trabalhou como sociólogo durante quatro anos.
do do povo. Assim, Jorge Sanjines com seu filme "Revoru-·
ción", Fernando Solanas com "La hora de los Hornos", Car- Mais tarde Carlos Alvarez realizará "Aproximación a Camilo",
los Alvarés com "Asalto" e Martha Rodríguez e Jorge Silva documentário baseado numa longa entrevista com a mãe de
com "Chircales'' demonstraram naquele momento com seus Camilo, "lsabelita", pouco depois da morte do sacerdote.
filmes que não trabalhavam isolados, mas faziam parte de um Realizará também "Los hijos dei subdesarrollo", sobre a si-
grande movimento do conjunto da América Latina, que se tuação da infância na Colômbia, e por útimo o filme "Desen-
consolidava e se unia na prática política e artística. cuentros", sobre a Igreja na América Latina.

Quanto ao cinema independente colombiano, seus antece- Em 1970, Silva e Rodríguez se dedicam a testemunhar o au-
dentes seriam filmes como "Raíces de Píedra", de José Ma- ge do movimento rural, e fazem dois filmes. O primeiro deles,
rra Arzuaga, de 1962, que, embora utilize atores tem como • "Nuestra voz de tierra, memoria y futuro" - em conjunto com
cenário um lamaçal num bairro operário ao sul de Bogotá. o Conselho Regional Indígena do Cauca (CRtC), sobre as
Sofrendo influências óbvias do neo-realismo italiano, depois lutas dos índios do Cauca peta recuperação de suas terras,
virá "~HICHIGUA" de Pepe Sanchez, 1963, cujo tema é a história e cultura, seu primeiro longa-metragem. Realizam
história de um pivete, mas com atores. também "La voz de tos sobrevivientes", curta de 20 minutos,
junto com Anistia Internacional, sobre as torturas e assassi-
Mas o filme que de fato deu início ao cinema que poderíamos natos sofridos pelos indígenas do CRIC na última década.
chamar de "político" foi "CAMILO TORRES", de 1967, um
curta de Diego León Giraldo, feito em função da morte do sa- Mayolo e Ospina continuam na linha de denúncia com docu-
cerdote Camilo Torres na guerrilha, com a colaboração de mentários ficção, realizando "Asunción" e a seguir "La Ha-
uma equipe de professores da Universidade Nacional, onde maca" e seu curta mais importante, "Agarrando Pueblo". Luis
Camilo foi capelão e de onde lançou sua plataforma política. Ospina nos diz: "É um filme sobre o cinema, especificamente

89
sobre um certo tipo de cinema feito na Colômbia e muitas ve~ A Companhia de Fomento Cinematográfico (FOCINE), abriu
zes exportado para a Europa, o cinema que explora nossa um espaço na televisão, dando oportunidades a novos cí-
miséria, a miséria enlatada." neastas. Entre os fümes realizados neste contexto se desta-
cam "El potro chusmero" e "Hombre de Acero", de Carlos
Para eles, o método de trabalho é o riso, Luis Ospina afirma: Duplat. Ambos tratam da violência polft.ica, tema ainda não
"sempre começamos a trabalhar quando algo é desmistifica- abordado cabalmente pelo cinema na Colômbia, apesar do
do para nós, e a melhor maneira de evidenciar este fato é esforço de Francisco Norden com o filme de ficção "Conde-
através do humor." res no entíerran todos los días'', e do filme de Juan José Beja·
rano ~ "Atrapados" - sobre o tema da violência no casal.
Uma cineasta colombiana que não podemos esquecer é Ga-
briela Samper, pois embora sua passagem pelo cinema tenha
sido breve (morreu em 1974), deixou documentários que re-
presentavam • como dizia ela • uma tentativa de descobrir a
verdade do povo colombiano: "EI hombre de la Sal" e "Los
santíssimos hermanos", sobre uma comunidade religiosa de
camponeses da região de Tolima, cuja origem é a violência MARTHA RODRIGUEZ
poHtica. antropóloga e pesquisadora (Colômbia)

The erücte focus on the birth of the independent cinema in E/ artfcufo enfoca el nacimiento dei cine independientecolam-
Colombia, Jinkingit to the revolutionary process in Latin Ame- IDiano, vinculandolo ai proceso revotucionerio latinoamericano
rica in the Sixties and to some movements of film renovation de década de los 60, y a otros movimientos de tenoveciôn
like the "Cinema Novo" in Brazi/. Thís marginal or political ci- cinematogr~fica, como Cinema Novo en Brasil. Este cine
nema turns to the diagnosis of the underdevefopmentcondi- marginal o polftico se vuelca hacia e/ diagnóstico de las con-
tions and takes place within the unions, mines, universities diciones de subdesarrollo y se instala en los sindicatos, mi·
and peasant communities. ln the Seventies the documentary nas, universidades y comunidades campesinas. En la déca-
production in Cofombia assumes new ctuuectetistics. da de los 70, la producción de Colombia asume cetectettsti-
cas nuevas.

(1) Chircales • Lamaçais (tenno regional colombiano) (N.da T.)

90
O fNDIO BRASILEIRO E O CINEMA
JOÃO CARLOS RODRIGUES

"Porque não procuramos um trabalho socialmente útil?" lese do underground americano Andy Warhol, que filmou o
Empire State durante 24 horas seguidas.
(Pioneiro cineasta Almeida Fleming in Introdução ao cinema brasileiro.
Alex Viany • 1959).
Portanto, todos os filmes brasileiros sobre o assunto foram
Homens esquecidos do arco-e-flecha feitos por brancos urbanos de certo nível intelectual. Isto não
deixam-se consumir em nome
os invalida em absoluto, mas certamente os caracteriza.
da integração que desintegra
a raiz do ser e do viver.
"Vocês têm obrigação de usar calça Uma das atitudes mais típicas da sociedade brasüeira em re-
camisa paletó sapato e lenço lação aos nossos índios foi, ou é, o idealismo, já revelado na
enquanto no Leblon nos despedimos carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal. É bom fri-
de Ioda convenção, e viva a natureza.•. !
sar que a expressão idealismo, no nosso entender, não tem
(Canos Drummond de Andrade - "Entre Noel e os Índios" in As Impure- nenhuma conotação pejorativa. Mais tarde, esta tendência
zas do branco - 197 4) evoluiu, com a ajuda de filósofos franceses, para a teoria do
'nobre selvagem', que deu no Indianismo, movimento ao qual
Este trabalho é dedicado à memória de Paulo Emílio sanes Gomes. pertencem os romances de José de Alencar e os poemas de
Gonçalves Dias. Segundo o Indianismo, o índio é caracteri-
zado como um puro, um ingênuo, de certa maneira um ar-
O cinema brasileiro sempre retratou, nos filmes que focaliza-
quétipo do habitante de uma hipotética Idade do Ouro da Hu-
ram os grupos indígenas nacionais, as principais tendências
manidade.
com que estas populações foram vistas por setores mais
amplos da nossa sociedade. Como procuraremos demons-
Desde o cinema silencioso, nossos cineastas já mostravam
trar.
suas afinidades com o idealismo; e suas preferências por
adaptações dos celebérrimos romances de Alencar. Do livro
Ao contrário de outros países americanos, o Brasil jamais
O Guarani houve nada mais, nada menos, do que quatro
possuiu cineastas de raça índia, ou mesmo mestiços de for·
versões anteriores a 1930: duas de Vittorio Capellaro ( 1917 e
tes traços culturais ameríndios - como o mexicano Emílio
1926), uma de João de Deus (1920) e ainda outra de Benja-
"Índio" Fernandez ou o boliviano Jorge Sanjines. Também, se
min de Oliveira, intitulada Os Guaranis. Existem igualmente
existiram, nunca foram divulgadas possíveis tentativas de fa-
três versões de iracema, uma de Capetlaro em 1917, uma de
zer com que populações ainda tribais experimentassem, por
Jorge Kouchin em 1931 e a de Vittorio Cardlnali, em 1949.
si mesmas, a experiência cinematográfica - tal como acon-
Luiz de Barros ainda dirigiu em 1919 uma adaptação de Ubi·
teceu com a tribo americana Navaho sob a orientação de
rajara, auas bem recebido pela crítica da época.
professores da Universidade de Harvard. Em apenas um
curta-metragem nacional, o pouco conhecido O Começo en-
A temática desses filmes, assim como dos romances em que
tes do começo (1973) de Roberto Kahané e Domingos De·
foram inspirados, é puramente idealista. O Peri de O Guara-
masi, apresentação da cosmogonia dos Desana (grupo Tu-
cano do Rio Negro), há uma leve co-autoria dos índios, atra- ni é mais fiel à família da branca Ceei do que ao seu próprio
povo. A ingênua e bela lracema morre de amor, depois de
vês dos desenhos que ilustram o filme.
abandonada pelo Guerreiro Branco. Em Ubirajara não apare-
Em ambos os casos citados, existência de cineastas asso- cem personagens civilizados, mas a vida tribal é idealizada a
ciados racial e culturalmente aos índios e filmes realizados ponto de lembrar o Parafso Terrestre.
por populações ainda tribais - podem ser notadas diferenças
marcantes com as obras de cineastas urbanos e brancos SO· Infelizmente, nada restou desses filmes, principalmente os
bre os mesmos temas. No primeiro caso, as diferenças se fi· mais antigos, com exceção de algumas fotografias. Através
zeram no enfoque político-social e mesmo estético, e, no se- delas, entretanto, podemos constatar a pouca verossimilhan-
gundo, na própria temática e estrutura narrativa. Um dos file ça com trajes e costumes de tribos reais. Para o público, as-
mes feitos pelos Navaho que mais emocionou a tribo é total- sim como para o cineasta de então, o índio era um arquétipo.
mente ininteligível para não-iniciados na sua cultura: trata-se Não importava que fosse real, desde que parecesse real
de uma série de planos estáticos de uma árvore sagrada, do segundo os cânones vigentes. Mesmo os atores não procu-
amanhecer ao anoitecer. Assemelha-se, por mais incrível ravam aproximar-se do tipo étnico ameríndio. Tanto Tácito de
que isso possa parecer, com filmes vanguardistas da primeira Souza quanto Benjamin de Oliveira, que interpretaram Pen,

91
eram negros. Igualmente, lracema de Alencar e llka Soares, melhor se aproximam do tipo étnico adequado {Ana Maria Ma-
duas lracemas de nosso cinema, eram brancas - e a seçun- galhães, Roberto Bonfim), até que ponto suas interpretações
da ainda de olhos verdes. se aproximam dois indígenas reais, e até que ponto não pas-
Também O Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto sam de emanações do nosso modo branco e civilizado de
Mauro, produzido pelo Instituto do Cacau da Bahia e contan- encarar o índio? Qual seria a atitude dos xavantes se tives-
do na equipe com os nomes de Villa-Lobos, Roquete Pinto e sem a oportunidade de ver a imponência de samurai dos
Taunay, pode ser incluído no mesmo ciclo. Visualmente be- guerreiros de Ubirajara?
líssimo, é uma reencenação didâtica da chegada dos portu-
gueses ao Brasil, segundo a carta de Caminha. A seqüência As adaptações em 1979 de treceme, de Carlos Coimbra, e
da ida dos dois primeiros indígenas aos navios de Cabral é de O Guarani, de Fauzi Mansur, marcam um passo atrás,
bem ilustrativa do "nativo" puro, bom e ingênuo. tanto no tratamento da minoria índia, quanto na interpretação
dos atores, cenografia etc. O idealismo chega às últimas
Mais recente, Ubrrajara, o senhor da lança (1975), de André conseqüências: como nos filmes mudos inspirados nos
Luiz Oliveira, continua as analogias com as obras acima ci- mesmos romances, os personagens não se parecem nem
tadas. Mesmo a tribos protagonistas foram inventadas por agem como índios reais.
Alencar, e depois idealizadas pelo cineasta a partir do que
sobrou dos reais xavantes. É ambientado numa indefinida Também entre os documentários encontramos idealismo e
Idade do Ouro, antes da chegada de brancos ao Planalto paternalismo. Os filmes pertencentes ao Museu do Índio são
Central - quando os fndios ainda seriam puros, saudáveis, muito raros e importantes, pois grande parte do seu acervo
heróicos. No final, um corte abrupto nos traz aos miseráveis desapareceu no incêndio que, em 1968, destruiu as instala-
indígenas contemporâneos, perambulando pela praça dos ções do Serviço de Proteção ao Índio. A maior parte desses
Três Poderes, em Brasília. Onde o idealismo de Ubirajara? curtas-metragens está, contudo, mais preocupada em retra-
Em primeiro lugar, na idealização da vida tribal, quando os tar a ação de órgãos estatais (propaganda),do que em estu-
brancos ainda não matavam os índíos, mas estes matavam- dar os indfgenas (ciência).
se entre si. Em segundo lugar, pela insinuação feita no final
de que a situação destas populações, hoje em dia, possa ser Trilhas sonoras repletas de música clássica (de Villa-Lobos e
resolvida apenas através de leis voltadas na capital federal. Remo Usai) e narrações pomposas, quando não anticientífi·
cas, neutralizam muito da força e raridade das imagens de,
4juricaba, o rebelde da Amazônia (1977), de Oswaldo Caldei· por exemplo, A Epopéia da comissão Aondon (1955), de
ra, utiliza a resistência da tribo aruaque dos Manaús contra Achiles Tartari, t~uituro e Katapato. ambos de Nilo Veloso e
os portugueses, no século XVII. Aqui foi dada pouca impor- ambos de 1945.
tância ao levantamento etnológico da tribo, alias já extinta.
Ajuricaba é apenas um arquétipo dos mártires contra o colo· Por ironia, estas mesmas narrações e trilhas sonoras, muito
nialisrno, no Brasil ou qualquer outro local, e não um ser vivo. esclarecem de como era visto o índio pelos órgãos governa-
Inexiste enquanto gente e estiliza-se como símbolo. mentais da época. Esclarecem o branco, embora seu objeti-
vo fosse explicar o índio. Qual o valor científico de um funeral
Como era gostoso o meu francês (1971), de Nelson Pereira Baroro onde os chocalhos rituais foram substituídos por Villa-
dos Santos, possui duas narrativas paralelas, ambas no pe- Lobos? Note-se que este tipo de acompanhamento musical
ríodo colonial. Uma é muito semelhante à história verídica do aparece até em Um Dia na Vida de uma tribo da floresta tro-
alemão Hans Staden, aprisionado pelos Tupis no litoral bra- pical (1950), do antropólogoDarcy Ribeiro.
sileiro. É uma narrativa aveníuresca, sem maiores preten-
sões, com tesouros enterrados e coisas do gênero. A se- Outra série de filmes trata de célebres indiqenistas, corno .•
gunda narrativa diz respeito aos Tupinambás e sua socieda- Noel Nutels e os irmãos Villas-Soas. Não focaliza, entretanto,
de, muito bem reconstituída, auas. Aqui está o coração do rn- nenhuma tribo em especial, fugindo ao âmbito deste trabalho.
me. Os índios aprendem a tecnologia material do francês pri- Consideramos que o enfoque dado por esses filmes é pura-
sioneiro, e, depois, o devoram ritualmente, para absorvê-lo mente idealista, por mais interessantes que possam ser al-
também no mundo espiritual. Há uma analogia com a teoria guns deles - por apresentarem os ditos funcionários como
antropofágica do modernista Oswald de Andrade, e, por isso seres abnegados vivendo em meio à barbárie, beirando o
mesmo, não podemos afirmar que o filme seja totalmente sobrenatural. As declarações do cineasta Paulo César Sara-
isento de idealismo. Por um lado, os atores representam indí· cení a respeito do Anchieta José do Brasil (1979) confirma o
genas do século XVI; por outro lado, representam a nós to- que o filme também poderá ser incluído nesta série. O ci-
dos, brasileiros, deglutindo a cultura estrangeira. neasta antecipa-se ao processo de canonização que corre
De modo geral, a preocupação com a verossimilhança, nes- hâ séculos no Vaticano sobre o jesu!ta que dedicou sua vida
ses três últimos filmes, é muito superior aos do período silen- aos Tupis do litoral.
cioso. Costumes e vestimentas são inspirados em estudos
científicos. Como era gostoso o meu francês e Ubirajara são Além do idealismo, a , sociedade brasileira também encarou
inteiramente falados em línguas ameríndias (respectivmente, as populações índias com preconceito, variando do horror ao
tupi e xavante), com legendas em português. desprezo. Esta corrente, se não gerou nenhummovimento lite-
rário do vulto do Indianismo, talvez. tenha sido a mais fre-
Mas, até que ponto são adequadas.as interpretações e tipos qüente entre os colonos e seringueiros que entraram em
físicos dos atores Eduardo Embassahy, Ana Maria Miranda, contacto direto com as tribos brasileiras•. Ainda em 1911, o
Taíse Costa, Érico Vida! e Rinaldo Genes? Mesmo os que jornal catarinense de língua alemã Urwaldsbote assim se re-

92
feria em relação aos Xokleng: ''Exterminem-se os refratários Os outros representantes dessa corrente humanista nos, fil-
à marcha ascendente da nossa civilização!" mes brasileiros que focalizam sociedades aborígenes, são
quase todos documentários. E podem dividir-se entre filmes
É bem verdade que o cinema nacional não apresenta obras expositivos e reportagens jornalísticas.
laudatórias do genocídio, como acontece com películas norte-
americanas de determinados períodos, mas, também, entre Entre os documentários expositivos estão Ilha do Bana-
nós, os preconceitos vieram a refletir-se na arte cinemato- nal (1970) deGenilVasconcelos (sobre os Carajás), e Jorne-
gráfica. Em 1926, quando da filmagem do seu segundo O da Kamayuráa (1966) e Kuarup (1963) de Heinz Fõrthman -
Guarani, o diretor Vittorio Capellaro e o ator Tácito de Souza também produzidos por órgãos estatais. Os dois primeiros,
foram detidos pela polícia de Santos, sob a alegação de me· se bem que interessantes, ainda pecam pelo uso de música
nosprezar "os brios do Brasil, mostrando os índios do Bana- ocidental e comentários pomposos. O terceiro é bastante
nal, quando por aqui há tanto progresso". Só foram soltos ilustrativo da lesta do Kustup, ritual dos mortos do Alto Xingu.
depois da interferência pessoal do Marechal Rondon. Já Os Índios Xetás da serra dos Dourados foi produzido pela
Universidade Federal do Paraná, por uma equipe comandada
Os filmes mais abertamente preconceituosos são mais re- pelo professor Loureiro Fernandes. É uma reconstituição da
centes, e, curiosamente, referem-se quase todos à tribo dos vida material desta tribo Tupi-Guarani, hoje reduzida a ape-
Xavantes. nas cinco indivíduos. Pode parecer exaustivo, mas é seçu-
ramente cientftico, pois aprendemos realmente alguma coisa
.\ verdadeira história desta tribo Gê érealmentedramét'ca. C
do assunto focalizado. Por irônica metáfora, os orgulhosos
grupo Akuen sempre habitou a bacia do Tocantins. Com o
Xetás se transformam em ciência, quando prestes a desapa-
avanço dos brancos, em 1859 dividiu-se em dois grupos. O
recer como cultura.
primeiro (Xerente) foi pacificado em 1870 e hoje desapare-
ceu. O segundo grupo (Xavante) emigrou para o rio das
Mortes e ofereceu séria resistência até 1946, quando foi
Entre os filmes-reportagens brasileiros, um dos mais conhe-
atraído pelo sertanista Francisco Meireles.
cidos é sem a menor dúvida Rankonkamekra, vulgo Cane-
Tudo isso passou em brancas nuvens para cineastas ávidos la (1975) de Walter Lima Júnior, pordução da TV-Globo. Tra-
de escândalo. O tom variou do deboche (a chanchada de AI· ta-se de urri documento pungente sobre essa tribo rnara-
fredo Palácios Casei-me com um Xavante, 1957) às aventu- nhense. Os Canelas falam português e vivem em andrajos,
ras classe-8 (Além do rio das Mortes, 1959, de Duillio Mas- confinados entre as propriedades dos brancos. É a mais inte-
troianni), passando por pseudocumentários. ressante mostra a respeito de uma tribo em grau avançado
de "aculturação", longe das capivaras, rios caudalosos e ri·
Outros filmes brasileiros expuseram preconceito contra indí- tuais exóticos. Ruínas de povos. O mesmo pode ser dito de
genas, mesmo quando não na sua própria essência, corno os Pancacaru do Brejo dos Padres (1977), de Vladimir Carva-
dois acima citados. Destaca-se um documentário de 1 f)55 lho, que apresenta a festa do umbu dos igualrrente "integra-
sobre os amores da índia Diacuí com o branco Aires de Sou- dos" Pancacarus, das cercanias de Paulo Afonso. Ou de
za. Toda a opinião pública simpatizava com os dois amantes, Terra dos fndios (1979} de Zelito Viana, documentário de lon-
mas o simples fato de por-se em dúvida o direito de uma ga metragem.
"selvagem" desposar um "civilizado", já indica um precon-
ceito. Já o recente Auké (1976) de Oswaldo Caldeira, parte Dado o pouco interesse dos nossos cineastas pela docu-
muito habilmente de um mito timbira sobre a criação do ho- mentação das tribos ainda existentes, não é de espantar,
mem branco, para estabelecer um painel do tratamento pre- portanto, que alguns dos filmes mais expressivos à respeito
conceituoso do índio no cinema nacional. do assunto sejam estrangeiros.

Só a partir do presente século, mais especificamente depois


A "pacificação" dos Kren-Akarore, acontecida em 1972, es-
da primeira missão Rondon em 1906, começou a esboçar-se
capou à percepção dos nossos mais sensíveis diretores,
uma alternativa ao idealismo e ao preconceito, mais realista e
mas não da BBC de Londres, cujo A Tribo que se escondeu
científica. Esta corrente, digamos assim, humanista, está em
do homem correu as TVs mundiais. Só agora a FUNAI esta·
franca ascensão entre a elite educada dos centros urbanos.
befeceu os primeiros contactos com os Yanomanis da fron-
Rejeita a violência como método, e tenta compreender a si·
teira da Venezuela e Roraima, focalizados desde 1968 pelo
luação dessas comunidades em crise, integrando-as sem
antropólogo Timothy Asch, no curta-metragem The Feast/0
destroçá-las.
Festim para a Universidade de Columbia. Podemos também
citar o polêmico Guerra de pacificação na Amazónia (1976),
Uyrá, um fndio à procura de Deus (1973), de Gustavo Dahl,
do francês Yves Boissot.
mostrou como os preconceitos culturais levam um índio ao
suicídio. Caminha mais um passo em direção à ciência, não
fosse baseado num ensaio do antropólogo Darcy Ribeiro ti· /:laoní (1978) de Jean-Pierre Dutileux e Luiz Carlos Saldanha,
rado de um fato verídico. Em 1939, Uyrá, índio Urubu-Kaapor candidato ao Oscar, virou sucesso de bilheteria e foi visto
do Estado do Maranhão, sai em busca da mítica Terra Sem por uma platéia bem maior do que esse tipo de filme costuma
Males e do ancestral divinizado Mafra. Com a mulher e os li· obter. Documenta a luta dos Txucarramâe do Xingu contra
lhos, caminha para o litoral. O contacto com os brancos (po- invasores das suas terras, a visita do cacique Raoni a São
bres ou ricos, paternalistas ou violentos) destrói sua confian- Paulo, suas conversas com a direção da FUNAI e apresenta
ça em si mesmo, e o conduz ao suicídio. Talvez inevitável, um flagrante dos últimos Kren-Akarore, vítimas de lavagem
mas nem por isso menos pungente. cerebral ao contactar a civilização moderna.

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Vimos que o cinema brasileiro exprime, de uma maneira ou Oeste) as frentes econômicas sempre desalojaram as co-
de outra, as principais atitudes de nossa sociedade em rela· munidades nativas das região. O assunto continua virgem nó
ção às comunidades indígenas: idealismo, preconceito e hu- cinema nacional, embora tenha sido quase o tema principal
manismo. Passemos então a .verificar se nossos filmes re- no gênero western do cinema americano.
fletem, com a mesma desenvoltura, episódios da história do
Brasil onde os índios interferiram. VI-RONOON

Desde já, podemos afirmar, com segurança, que as relações Em seu próprio diário, Rondon assinala que fizera, em 1915,
história do Brasil I cinema brasileiro sempre deixaram muito a "três conferências com projeções" sobre trabalhos do SPI,
desejar para seja qual for o período. Mas, voltemos aos ín- sem esclarecer de que tipo de projeções se tratava. A primei-
dios. ra clara referência à presença de cinegrafista em expedição
exploradora é de 1916, onde ele registra na Comissão da
1 • OS PRIMÓRDIOS DA COLONIZAÇÃO Carta de Mato Grosso: "Azevedo - operador cinematográfi-
co". É de supor que os celulóides rodados não fossem muito
Podemos citar O cescobnmemo do Brasil, de Humberto Wau· abundantes. Tanto que, seis anos depois, recebido no palá-
ro, como um bom exemplo de representação didática de urr- cio Guanabara pelo rei Alberto, diz Rondon que "após o jan-
acontecimento verídico. Sobre o início da ocupação do litoral, tar foram exibidos todos os filmes de minhas diversas comis-
com as rivalidades entre portugueses e franceses pelo pau- sões, explicados por mim próprio", despertando grande entu-
brasil, há Como era gostoso o meu trencês, de Nelson Perei- siasmo do soberano belga e, sobretudo, de sua esposa Eli-
ra dos Santos, onde podemos ver uma boa reconstituição zabeth.
dos costumes Tupinambás. Ajuricaba, de Oswaldo Caldeira, É provável que, posteriormente, as filmagens se tivessem in-
trata das lutas entre Manaús e Portugueses no rio Amazo- corporado à rotina pois, na primeira Comissão de Inspeção
nas. de Fronteiras, que percorreu os limites com as Guianas e a
Venezuela, já existia mesmo um Serviço Cinematográfico,
chefiado pelo major Luiz Thornaz Reis e tendo a integrá-lo o
li - OS JESUÍTAS cinegrafísta José Louro.

Foram cs primeiros a preocupar-se com os indígenas.Sobre Há um filme do SPI (Epopéia da comissão Rondon), editado
o seu apostolado no litoral, Paulo César Saraceni fez An- em 1955 com material bem mais antigo. As imagens são ra-
chieta José do Brasil. E República Guarani (1979) de Sílvio ríssimas, mas os comentários pomposos e a música "épica"
Back é o único filme sobre as missões jesuítas no extremo tiram muito da sua força.
sul, onde se abrigavam milhares de índios. As missões toram
destruídas simultaneamente pelos portugueses, de um lado,
e pelos espanhóis, de outro. Não há nada sobre o sincretis-
mo cristão/guarani, que causou grandes migrações chefia-
das pelos "santinhos", salvo breve rrenção em Ajuricaba.

Ili - AMPLIAÇÃO TERRITORIAL E FORMAÇÃO DA VII - SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO


NACIONALIDADE
Seu acervo foi quase todo destruído num incêndio em 1968.
O cineasta Paulo Thiago, em A 8é!fa/ha dos G1:Narapes Dos documentários que sobraram, em condições de serem
trata das lutas entre portugueses e holandeses no Nordeste. exibidos, todos sofrem as mesmas deficiências citadas no
Um dos personaçer.s é o índios potiguar Felipe Camarão, item anterior. Já em Uyrá de Gustavo Dahl é retratado um
aliado dos portugueses. O Caçador de Esmerafdas (1978} de funcionário paternalista do SPI.
Osvaldo de Oliveira faz um quadro omisso e paternalista dos
horrores do ciclo bandeirante da "caça-ao-índio".
VIII- AS NOVAS FRENTES PIONEIRAS

IV- GUERF:A ENTRE ÍNDIOS E COLONOS Apenas filmes de propaganda foram divulgados sobre as
obras da Transamazônica e Perimetral Norte. O documentá-
í\:enhuma película foi realizada sobre a guerra dos Bárbaros, rio inglês da BBC A Tribo que se escondeu do homem mos-
travada no interior nordestino contra a tribo Cariri. Nem sobre tra o pânico dos Kren..-Akarorecom a aproximação de uma
a colonização dos vales dos rios Pardo (MG), Doce (ES) e. estrada.
ltajaf (SC), que provocou o extermínio, respectivamente, dos
Aimorés, Botocudos e Xokleng.
IX - FUNAI E MISSÕES RELIGIOSAS

V· AS FRENTES ECONÔMICAS Não divulgam suas atividades cinematográficas, se existem.

Quer extrativistas (ciclo da borracha na Amazônia), agrícolas Note-se como os filmes brasileiros que tratam de índios de
(cana do Nordeste, café do Sudeste) ou pastoris (Centro- períodos remotos e tribos já extintas são bem mais numero-

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sos do que os sobre índios contemporâneos, Nossos iilnies lndios Xetás da serra dos Dourados: Uyrá trata de um Uru-
ainda se caracterizam por evitar os temas mais explosivos. bu-Kaapor do Maranhão e suas relações com a sociedade
civilizada> Não é feita nenhuma amostragem da tribo. Nada
Agora, vejamos como se distribuem os filmes numa classifi- pudemos levantar sobre o documentário i"apirapés (1936), de
cação de tribos e grupos lingüísticos. Ramon Garcia, cadastrado por Alex Viany no seu livro tnuo-
dução ao cinema brasileiro, de 1959. Existe a respeito dos
Antes de mais nada, quantos índiosssss existem no Brasil? modernos Guaranis o curta de Regina Jehá Guaranis (1976)
Rondon os estimava em 1 milhão e 500 mil. O SPI, em finais e sobre as Missões, República Guarani.
da década de 40, em 500 mil (vide Introdução à antropologia
brasileira, de Arthur Ramos). Em 1973 a FUNAI forneceu o TRONCO MACRO-GÊ - Os Xavantes foram caricaturados
número de 212 mil, e hoje, incluídas as novas tribos contac- err Casei-me com um Xavante e Além do rio das Mortes.
tadas no extremo norte, devem beirar os 300 mil. É pouco Nada pode ser apurado sobre dois documentários de 1959 ci-
mais de 0,3% da população do país. O que não constitui um tados por Alex Viany: TerritórioXavante de Fernando Negrei-
bom motivo para continuarem ignorados. ros e Frente a frente com Xavantes de Venil Vasconcelos.
Cs Canelas e os Kren-Akarore são o assunto de Rankon-
Para a maioria de nós, um índio é um índio, independente- kamekra, vulgo Canela e A Tribo que se escondeu do no-
mente de sua localização geográfica, caracterftlca cultural ou mem. Nada a respeito dos Cariri, Aimoré, Botocudos, Tímbí-
grau de integração. Fingimos não notar as óbvias diferenças ras, Caiapó, Kaingang/Xokleng etc.
étnicas entre os franzinos e pálidos Yanomanis da fronteira
com a Venezuela e os atléticos e acobreados habitantes do TRONCO CARAÍBA - Os curtas-metragens Kuikuro e Kala-
parque do Xingu. pato tratam das tribos homônimas do Xingu. Aparentemente,
nada existe sobre os recentemente pacificados Waimiri-
A divisão oficiosa das tribos brasileiras se faz com funda- Atroaris.
mentos lingüísticos. Assim, além de quatro grandes grupos
(Tupi-Guarani, Macro-Gê, Caraíba e Aruaque), existem ou- TRONCO ARUAOUE - Ajuricaba diz respeito a um herói
tros menores (como o Tucano, Carajá e Nambiquara). dos Manaús mas, sendo esta tribo extinta, nada existe sobre
ela. The Feast/0 Festim documenta o encontro de dois gru-
Fomos condicionados a. achar serem os Tupi-Guarani mais
pos Yanomanis na Venezuela. Ao que consta, não há docu-
desenvolvidos que os Gê. Estes, embora de maneira gerar
mentários notáveis sobre a cerâmica dos Aruan de Marajó.
não ultizassem a agricultura, foram os prováveis autores dos
misteriosos hieroglitos das itacoatiaras (pedras lavradas), en-
TRONCO CARAJÁ - Vide o curta-metragem Ilha do Bana-
contradas ttanto no Alto Uaupés, quanto no Estado da Paraí-
nal.
ba. Muitos de nós já viram nos museus os magnfficos exem·
piares da cerâmica marajoara, mas quantos sabem terem si-
TRONCO TUCANO - O Começo antes do começo, curta-
do feitos pelos extintos Aruan, de fala aruaque? E quantos de
metragem, ilustra a complexa cosmogonia da tribo Desana.
nós viram num mapa as rotas das migrações Tupi-Guarani,
cujas tribos, em busca da mrtlca Terra Sem Males, emigra-
À guisa de finalizar, podemos chegar sem susto às seguintes
ram do Brasil Central ao Paraguai, para depois subir o litoral
conclusões:
Atlântico, deslocando os Gê para o interior - pouco antes da
chegada dos portugueses? E as migrações dos agressivos
a) os tilmes brasileiros não apresentam de maneira adequa-
Caraíbas, do Xingu às Antilhas; massacrando os pacíficos
da a realidade indígena, na complexidade dos seus costu-
Aruaques? mes, diferenças culturais e grau de integração. O ideal seria
O avanço secular do branco para o oeste subverteu a rela- haver um filme pelo menos sobre cada uma das centenas de
ção entre os diversos grupos indígenas. Os Tupi-Guarani, tribos;
outrora os mais populosos, hoje ocupam o terceiro lugar da
b} refletindo o problema mais amplo das relações precárias
lista, depois dos Aruaques e dos Gê - mais distantes do lito-
entre o cinema brasileiro e a história do Brasil, a participação
ral. O grupo mais numeroso (Aruaque) é também o menos
dos índios neste gênero de filmes ainda deixa a desejar. No-
conhecido. Muitas das tribos que o compõem só agora estão
temos a preferência dos cineastas por assuntos remotos no
sendo contactadas pela FUNAI. Em apenas poucos locais a
tempo, e seu pudor em abordar temas mais atuais e explosi-
cifra de natalidade e maior do que a de mortalidade: no par-
vos;
que do Xingu e na região do rio Negro, por exemplo.
e) por outro lado, os filmes brasileiros exprimem de modo
A distribuição dos filmes entre as tribos e grupos lingüísticos
bastante amplo as diversas visões do índio pela sociedade
ainda deixa muito a desejar. Das centenas de tribos existen-
branca. A saber, principalmente, o idealismo, o preconceito e
tes, apenas pouco mais de uma dezena foi estudada. Se
o humanismo. na maioria dessas obras, aprendemos bas-
subtrairmos os filmes de ficção, o número ainda ficará mais
tante do modo como o branco vê (ou viu) o índio - mas muito
reduzido. Vejamos.
pouco de como este realmente é, ou vê o mundo.
TRONCO TUPI-GUARANI - os extintos Tupinambás dope·
ríodo colonial aparecem em três filmes: O Descobrimento do Como, desde o início, pretendemos demonstrar.
Brasil, Como era gostoso o meu francês e Anchieta. Os Ka-
mayrá do Xingu e os Xetá do Paraná foram retratados res- JOÃO CARLOS RODRIGUES
pectivamente nos curtas-metragens Jorna/da Kamayurá e Os jornalista, crítico de cinema, cineasta (Brasil)

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AI analizar/a producción, brasilefia de pelfcufas contemática Ana/ysing the Brazilian filming.prodÜction.on indigenous the-
indfgena, e/autor indentifica tres lfneas especificas que ento- me, tte author identifies three specific approaching Jines: tne
cen e/ tema ~ el idealismo, e/ prejuicio .y el humanismo - y idealism, mo prejudice and the humanism, doing a criticai ap-
nece asimismo um balance critico de dicha txoouccôn. Trata preciation. · He tties to relate the film already made to a ctassi-
de estsotecer relaciones entre las pe/fculas producidas y una fication of utoes and the finguistic groups ot. Brazif.
c/asificación de tribus y grupos lingufsticos brasi/enos.

ÍNDICE DOS FILMES DE FICÇÃO CITADOS, POR ORDEM DE APARIÇÃO NO TEXTO.

O Guarani ( 1916). Direção: Vittoria CapeHaro. EI enco: Vittorio Capellaro e Georgina marchíaní.

O Guarani ( 1920}. Direção: João de Deus. Elenco: Pedro Dias e Abigali Maia:

O Guarani (1926). Direção: Vittorio Capellaro. Elenco: Tácito de Souza e Armanda Mauceri.

Os Guaranis (sem data}. Elenco: Benjamin de Oliveira.

lracema ( 1919}. Direção: Vittorio Capelfaro. Elenco: lracema de Alencar e Vittorío Capeltaro.

lracema ( 1931 }. Direção: Jorge Kouchin. Elenco: Dora Fteury e Ronaldo de Alencar.

lracema ( 1949). Direção: Vittorio Cardinali. Elenco: llka Soares e Mário Brasini.

Ubirajara ( 1919). Direção: Luiz de Barros. Elenco: Álvaro Fonseca, Antônia Denegri, Manuel Araújo.

O Descobrimento do Brasil (1937). Direção: Humberto Mauro. Música: Heitor Villa-Lcbcs. Elenco: Álvaro CostaJoão de Deus, Manoel Rocha.

Ubirajara, o senhor da lança ( 1975). Direção: André Luiz Oliveira. Elenco: T atau, Taíse Costa, Roberto Bonfim, Ana Maria Miranda.

Ajuricaba, o rebelde da Amazónia (1977}. Direção: Oswaldo Caldeira. Elenco: Paulo .Villaça, Rinatdo Genes, Nildo Parente.

Como era gostoso o meu francés (1971). Direção: Nelson Pereira dos Santos. Elenco: Ardufno Colasanti, Ana Maria Magalhães, Eduardo Embassahy,
Manfredo Coíasaníi, Janíra Santiago.

fracema ( 1 9 79). Direção: Carlos Coimbra. Elenco: Helena Ramos, Toni Corrêa,Carlos Koppa, Alberto Ruschel.

O Guarani (1979). q reção: Fauzi Mansur. Elenco: David Cardoso, Dorothée Marie Bouvler, Flávio Porto, Luigi Picchi.
Achienta José do Brasil (1977). Direção: Palo César Saraceni. Elenco: Ney Latorraca, Maurício do Valle, Joel Barcelos, Maria Gtadys.

Casei-me com um Xavante (1957). Direção: Alfredo Palácios. Elenco: Pagano Sobrinho, Maria Vidal, Lueli Figeíró, Lota Brah.

Além do rio das Mortes ( 1959). Direção: Duílio Mastroianni. Elenco: Maurício do Valle, Altair Villar, Karla Kramer.

Uyr;J., um (ndio à procura de Deus (1973). Direção: Gustavo Dahl.Elenco: Érico Vidal, Ana Maria W.agalhães, Gustavo Dahl.

O Caçador de Esmeraldas (1979). Direção: Osvaldo de Oliveira. Elenco: Jofre Soares, Arduíno Colasanti, Glória Menezes, Tarcfsio Meira, Vanja Orico.

Este artigo foi originalmente publicado em Cinema Brasileiro: Oito Estudos Embrafilme, Funarte, MEC (1980}.

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Caderno de Textos

ANTROPOlOGIA VISUAl
"Antropologia Visual" é um caderno de textos
que reúne contribuições de antropólogos,
fotógrafos e realizadores analisando, sob
diferentes óticas e experiências intelectuais, as
relações entre a antropologia e os meios
audiovisuais: a fotografia, o vídeo e o cinema.
Sua publicação tem por finalidade colaborar
para o avanço da reflexão metodológica e
teórica da Antropologia Visual contribuindo
assim para legitimar esta nova disciplina, bem
como integrar o esforço pioneiro do Museu do
lndio para implantar uma estrutura capaz de
levar adiante a tarefa de registrar, analisar e
divulgar a realidade indígena do pais.

Museu do Índio
FUNAI • Fundação Nacional do (ndlo

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