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Educação Unisinos

9 (1):5-14, jan/abr 2005


© 2005 by Unisinos

Paulo Freire e Heidegger:


o essencial é deixar aprender
Paulo Freire and Heidegger:
essentials of letting learn

Rosa Maria F. Martini


rosamfm@terra.com.br

Resumo: Este trabalho tem por objetivo realizar uma reflexão filosófica sobre o que Paulo
Freire e Heidegger pensaram sobre o ensinar e o apreender e a formação do educador. Faz-
se essa análise com intenção de refletir filosoficamente os textos iniciais de Paulo Freire, tais
como Educação como Prática da Liberdade (1967) e A Pedagogia do Oprimido (1974) e a
lição inicial das últimas aulas que Heidegger ministrou na Universidade de Freiburg, nos
semestres de inverno e verão (1951 e 1952), publicadas na obra O que Significa Pensar.
Trata-se de interpretar a forma como esses dois pensadores aproximam-se da idéia do
“deixar aprender”, ao falarem do lugar do educador, embora se situem em formas de
racionalidade diferentes. Freire, nos trabalhos citados, compreende o “deixar aprender” a
partir de um processo dialético de crítica à educação tradicional, enquanto Heidegger busca
interpretar o que significa o ensinar e o aprender, no contexto do que significa pensar,
enquanto o educador mesmo precisa colocar-se na posição de alguém que está sendo
chamado à tarefa do aprender a pensar como o essencial do ensinar... aprender.

Palavras-chave: deixar aprender, aprender a pensar, aprender a aprender.

Abstract: This paper develops a philosophical research study about teacher education. It
underlines the meaning of “letting learn” in some of the first works of Paulo Freire as
Education as the Practice of Liberty (1967) and The Pedagogy of the Opressed (1974) and
the last lectures that Heidegger gave in winter and summer semesters in 1951 and 1952 at
The University of Freiburg. These lectures had the theme What is Called Thinking. This
paper emphasizes the interpretation of the meaning of “letting learn” when these two
thinkers tried to act and speak assuming the role of the professor, notwithstanding they
understand this issue on different forms of rationality. Freire understands “letting learn” as a
dialectical process of criticizing traditional education, Heidegger asks for the meaning of
learning and teaching in the context of what is called thinking. The professor assumes the
role of someone who has the task of learning to think as the essential of teaching...

Key words: letting learn, learning to think, learn to learn.

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Rosa Maria F. Martini

Introdução construiu uma síntese peculiar, ba- história brasileira, década de 1960,
seada numa forma de racionalidade durante a qual foi abortado esse pro-
Este trabalho busca interpretar al- crítico-dialética, que integra a cesso de democratização pela
guns princípios pedagógicos comuns dialética hegeliano-marxista ao incompreensão das classes dominan-
humanismo existencialista cristão de tes, que não aceitaram as bases de
no pensamento de Paulo Freire e de
Mounier, Jaspers e Marcel, entre ou- uma verdadeira pedagogia democrá-
Heidegger. Tal pretensão poderia apre-
tros, os quais também têm a influên- tica. O trabalho de Freire é, antes de
sentar-se como um paradoxo, visto cia da fenomenologia, ainda centrada tudo, o trabalho de um educador a
que estes dois autores trabalham a na filosofia transcendental, porém a serviço da libertação do homem, emer-
partir de diferentes formas de raciona- caminho de um trabalho de valoriza- gindo porém de condições históricas
lidade e, sobretudo, têm experiências ção do mundo da vida, da cultura e e intelectuais peculiares que foram os
históricas diferentes. Trata-se no pre- da história. germens de uma autêntica concep-
sente trabalho de interpretar por meio Desde o início ao fim de sua vida, ção da cultura brasileira, elaborada
da trajetória dos autores a forma como Freire foi um incansável defensor da pela experiência de um grupo de inte-
eles colocam a questão da formação educação como instrumento da eman- lectuais brasileiros, como Ernani
do educador. Nestes tempos de “im- cipação do sujeito, histórica e cultu- Maria Fiori, Álvaro Vieira Pinto, Cel-
pério”, a educação parece apresentar- ralmente condicionado. O homem é so Furtado e outros que se coloca-
se sob o domínio dos interesses ins- um “ser-no-mundo”, inserido numa ram a serviço do movimento de emer-
trumentais da ciência e tecnologia, e o cultura, numa sociedade e num mo- gência política das classes popula-
mercado global impõe suas regras por mento histórico que deve ser lido e res. O próprio Freire (1967) afirma a
meio do consenso de Washington, interpretado a partir de um ponto de influência que tiveram em sua obra
restando pouca autonomia para atri- vista crítico. Este ponto de vista crí- os trabalhos do Instituto Superior de
buir à cultura e à educação um signifi- tico baseia-se em relações Estudos Brasileiros (ISEB) e a funda-
cado e uma atuação mais humanista e intersubjetivas e dialógicas, media- ção da Universidade de Brasília con-
criativa. Sobretudo nos países emer- das pelo processo educativo-crítico, cebida por Darci Ribeiro, enquanto
gentes, como o Brasil, que tenta al- concebido como forma de emancipar ambos representavam um despertar
cançar proeminência no mercado homens e mulheres de uma forma da consciência nacional. Segundo o
globalizado, as prioridades colocadas mágica e ingênua de consciência. próprio Freire (1967), o ISEB foi um
Freire afirma o giro marxista da práti- marco na forma de pensar o Brasil. O
não dão conta da educação e cultura
ca frente à teoria com o objetivo de intelectual brasileiro costumava pen-
como um todo, especialmente a pes-
atribuir uma força crítica à prática sar o país a partir de uma visão euro-
quisa na área das humanidades e o
educativa tradicional, perpassada por péia ou americana. O ISEB refletiu um
estímulo à criatividade e autonomia
relações autoritárias, que devem ser clima de desalienação, capaz de pen-
para projetos pedagógicos.
superadas pela aprendizagem da lei- sar o Brasil como sujeito, como pro-
O ser humano não pode ser aten-
tura crítica do mundo, na qual texto e jeto principal. A força de pensamen-
dido apenas em nível de sobrevivên- contexto estão implicados. Freire de- to do ISEB tinha origem na identifi-
cia, mas também precisa ser dicou-se à alfabetização de adultos, cação e integração com a realidade
humanizado em sua sensibilidade e concebida não como processo me- nacional, capaz de fecundar de forma
criatividade bem como no estímulo à cânico, mas como um processo cria- surpreendente a criação de um inte-
tomada de consciência do seu mun- dor pelo qual o alfabetizando vai se lectual que se põe a serviço da cultu-
do. A escolha desses dois autores se tornando sujeito do próprio proces- ra nacional. Desta integração, segun-
dá porque ambos tentaram falar a par- so. Ensinar e aprender se correlacio- do Freire, nasceu a força de um pen-
tir do lugar do professor e do que é nam na medida em que os samento criador próprio e o compro-
mais essencial em sua tarefa, ou seja, alfabetizandos vão assumindo a po- misso com a realidade pensada e as-
do “deixar aprender” e do aprender a sição de sujeitos curiosos e críticos sumida. Freire observa que o ISEB,
pensar sobre o mais essencial do en- de quem indaga sobre sua própria não sendo uma universidade, falou e
sinar, que é aprender a pensar o mais prática, o que implica a crítica do pró- foi escutado por uma geração univer-
alargadamente possível. prio ato de ensinar. Assim compreen- sitária e não sendo um organismo de
dido, o ensinar é “aprendizagem do classe fazia conferências em sindica-
A contribuição de Paulo aprender”. Freire contribuiu concre- tos. Para Freire, tanto o ISEB como a
Freire para a democracia tamente para a democratização da
6 cultura, e sua prática revela os sinais
Universidade de Brasília representa-
ram o despertar da consciência naci-
Paulo Freire (1920-1997) foi um fi- do tempo e das condições históricas onal, que avançava em busca da con-
lósofo da educação brasileira que que lhe deram origem, numa etapa da quista da verdadeira democracia no

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Paulo Freire e Heidegger: o essencial é deixar aprender

Brasil como tarefa de transformação. senta questões metodológicas, es- pendência científica, tecnológica e
Nesse sentido, a mensagem de am- sas evidenciam seu esforço de cri- do capital, mantendo afastados e no
bos continua repercutindo na tarefa ação, no sentido de que o método exílio os melhores cérebros em qua-
do intelectual brasileiro, na juventu- esteja a serviço de uma formação se todas as áreas.
de e no povo brasileiro. ampliada por meio de aprendiza-
Diante desse otimismo de Freire, gens sociais, caracterizadas como O pensamento de Freire
ao escrever uma de suas obras mais dialógicas, que envolvem o reco- na formação do educador
importantes no exílio, Educação nhecimento de si mesmo no outro,
como Prática da Liberdade (1967), estimulando a ultrapassagem de re- Algumas interpretações escola-
perguntamo-nos se poderíamos lações em que o poder não se exer- novistas do trabalho de Freire e até
continuar pensando da mesma for- ça unilateralmente, seja por aceita- mesmo ligadas a correntes do
ma diante da realidade atual, domi- ção passiva (consciência mágica), humanismo existencial americano de
nada por uma economia globalizada seja por internalização de relações cunho liberal foram levadas, na déca-
e pela complexidade de um mundo autoritárias pelas quais o sujeito se da de 1970, para o contexto da forma-
cultural que massifica e se diferen- identifica com o poder (consciên- ção de professores. Estas formas, com
cia cada vez mais e dificulta um pen- cia ingênua), mas sim por meio de que o trabalho de Freire se inseriu na
samento que precisa ao mesmo tem- um diálogo de mútuo reconhecimen- formação de professores, esvaziaram
po ser autônomo e interdependente, to, pelo qual o que ensina e o que a questão do trabalho e da interação,
sem curvar-se a qualquer espécie aprende se enriquecem mutuamen- aspectos essenciais da metodologia
de pretensão hegemônica. Por ou- te, por meio da tarefa do ensinar e hegeliano-marxista, na qual está cal-
tro lado, Freire não tinha a percep- do aprender. O ensinar e o apren- cado o método de educação de adul-
ção ingênua de que a educação pu- der se tornam procedimentos rever- tos de Paulo Freire. Com essas inter-
desse ser algo milagroso que por si síveis na medida em que aprendiza- pretações, seu pensamento foi alvo
mesmo pudesse transformar todas gens sociais e dialógicas implicam de críticas dos conteudistas que, ao
as condições que a sociedade bra- a troca de papéis, em termos do criticarem essas interpretações, es-
sileira necessitava para colocar-se ensinante e do aprendente, troca queciam que o centro do processo da
numa posição igualitária com as que conduz a autonomia e interde- pedagogia freiriana é justamente tra-
pendência. Torna-se de certa forma balho e interação, conceitos caros ao
nações mais desenvolvidas. Acre-
evidente que o populismo reinante jovem Hegel do tempo de Jena e extre-
ditava, entretanto, no valor media-
nos inícios dos anos 1960 tenha se mamente valorizados por Marx, o gran-
dor de uma educação para a demo-
interessado apenas instrumental- de herdeiro da esquerda de Hegel. Por
cracia que envolve flexibilidade e
mente por um método de alfabeti- isso mesmo, a idéia de métodos base-
abertura para mudanças. Educação
zação de adultos que era extrema- ados em laissez-faire em que o traba-
voltada para o constante diálogo
mente eficaz, na medida em que, va- lho do professor no espaço de ensino
com o outro, predisposta a cons- lorizando o universo cultural do al-
tantes revisões, a uma certa rebel- não é valorizado, foi de certa forma
fabetizando, permitia que o proces- uma maneira de a elite dominante na
dia, à identificação com métodos e so ocorresse muito mais rapidamen-
processos científicos e críticos Universidade, mesmo até com alguma
te, o que na época significava pos-
com acento na racionalidade, mas, boa intenção, mas com uma análise
sibilidade de aumentar a quantida-
sobretudo na solidariedade. Para muito superficial dos pressupostos
de de votantes. O que as classes
Freire, não se tratava apenas de dirigentes, o alto empresariado e a hegeliano-marxistas do pensamento
superar o analfabetismo, mas prin- classe média, que temia perder al- de Freire, apresentar-se como demo-
cipalmente de superar nossa gum privilégio, não suportaram e crática e atualizada. Mesmo assim, o
inexperiência democrática. Segun- julgaram ser subversivo foi justa- pensamento de Freire começou a mar-
do Freire (1967), uma educação de- mente a revolução pacífica de uma car presença na Universidade, contri-
mocrática se funda na crença no ho- educação para a democracia. Por buindo para uma progressiva demo-
mem, na crença que ele não só pode, isso o povo foi convocado a trocar cratização da formação de professo-
mas deve discutir seus problemas, a ida às urnas pelas armas de uma res e da própria Universidade, princi-
discutir os problemas de seu traba- revolução autoritária que se com- palmente porque seu pensamento foi
lho, de seu país, do seu continente, prometia com o velho ideal objeto de muitos estudos em nível de
do mundo em suas relações globais positivista da ordem e do progres- Pós-Graduação1, havendo muitas te-
e da própria democracia. Mesmo so, mantendo relações autoritárias ses de mestrado e doutorado que abor-
quando Freire se preocupa e apre- internamente e externamente de de- daram seu pensamento. Entretanto, 7
1
Ver, entre outros, Andreola (1985) e Becker (1993).

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em nível de graduação o pensamento nia numa experiência de educação gar com os mesmos conteúdos. En-
de Freire permaneceu um certo tempo, democrática. O trabalho de Freire A tretanto a experiência do ensinar e do
durante a década de oitenta, ainda Educação como Prática da Liber- aprender é um processo dialógico na
associado a “ideologias escola- dade2 promove uma pedagogia em direção de um processo autônomo e
novistas”, liberais e também ao cha- que não há escola, nem professor, no crítico de aprendizagem. Esse proces-
mado “populismo pedagógico”, que sentido tradicional do termo, mas cír- so de conquista da autonomia deve
usou o pensamento de Freire de for- culos de cultura com um coordena- ser arduamente palmilhado pelo pro-
ma ideologizada, ocupando totalmen- dor, cuja tarefa essencial é o diálogo. fessor e pelo aluno, por meio do diálo-
te o espaço de ensino com doutrina- Nesse diálogo em que o alfabetizan- go entre professor e aluno e do próprio
ção política de cunho corporativista, do é estimulado a superar os níveis trabalho tanto do professor como do
o que também desfigurou o trabalho de consciência mágica, na qual ape- aluno. As palavras chaves são traba-
especificamente pedagógico de Freire. nas sofre e se submete aos fatos, ele lho e interação, conceitos amplamente
Este sempre visou estimular o educan- é levado também a superar o nível de usados por Hegel e Marx, nos quais se
do para a leitura do mundo e da cultu- consciência ingênua, pela qual se ma- trava o combate entre a consciência do
ra como um todo, sem discriminação oprimido e do opressor. Muitas vezes
nifesta a ignorância da própria igno-
entre cultura popular e erudita, sem o oprimido em sua aparente docilidade
rância e do saber, prestando-se por
proselitismos de qualquer ordem e sem apenas reproduz o opressor em si mes-
isso mesmo a uma manipulação ideo-
colocar-se a serviço de nenhuma ins- mo. A diferença entre a educação ban-
lógica por aqueles que se julgam cul-
tância que não fosse o cultivo da de- cária e a libertadora reside em que a
tos e superiores. Para Freire (1967), a
mocracia e da aprendizagem da leitu- primeira mantém a contradição entre
consciência crítica é aquela que re-
ra e escrita como forma de “aprender a educador e educando, e a segunda é
sulta de uma organização reflexiva do
dizer sua própria palavra”, como mui- problematizadora e serve à libertação,
pensamento e representa as coisas e
to bem coloca o Prof. Ernani Fiori em realizando a superação da consciência
os fatos como se dão na existência
seu prefácio da Pedagogia do Opri- mágica e da consciência ingênua. O
empírica, nas suas correlações cau- educador já não é o que apenas educa,
mido. sais e circunstanciais. Freire (1967) mas o que enquanto educa é educado,
propõe para tal um método ativo, em diálogo com o educando que, ao ser
Freire educador dialogal e criticizador; a modificação educado, também educa. O papel do
do conteúdo programático da edu-
educador problematizador é proporcio-
Freire, como educador, criou, a cação; o uso de técnicas de
nar a ultrapassagem do nivel da “doxa”
partir do seu método de alfabetiza- codificação e decodificação3. Na obra
para o conhecimento verdadeiro que se
ção de adultos, uma pedagogia por Pedagogia do Oprimido4, editada no
dá em nível do “logos”.
meio da qual tanto educador como Brasil em 1970, Freire inspira-se em
educando, homens igualmente livres Hegel e Marx, usando a célebre figu-
ra da Fenomenologia do Espírito, a A obra de Heidegger
e críticos, aprendem no trabalho co-
mum de tomada de consciência da relação “Servo e Senhor”, para dar e suas circunstâncias
situação em que vivem, a aprendiza- conta do movimento dialético das históricas
gem do aprender, ou seja, a busca de consciências, enfatizando, pelo uso
eliminação das relações autoritárias da lógica dialética de Hegel, o senti- Heidegger (1889-1976) é conside-
e do diálogo que permite o “deixar do da educação como um processo rado por muitos especialistas um dos
aprender”, não como mera manifes- de emancipação de uma dependên- maiores filósofos do século XX. En-
tação de uma tomada de consciência cia inicial. Freire (1974) descreve a tretanto, tem uma biografia contradi-
dos objetos culturais, mas como educação tradicional como uma ope- tória por causa de suas ligações com
consciência da possibilidade de ração bancária: o professor dá o co- o nacional-socialismo, entre 1931 e
emancipação e conquista da cidada- nhecimento, e os alunos devem pa- 1934.

2
A educação como prática da Liberdade em que Freire (1967) apresenta uma reflexão filosófica sobre seu método de alfabetização de adultos descreve
a situação da sociedade brasileira dos anos 1960. Esta estava desenvolvendo um processo de industrialização e urbanização sem um correspondente
processo de democratização. A cultura brasileira era atravessada por relações autoritárias e o povo não tinha acesso à educação, havendo um alto nível
de analfabetos,15 milhões para uma população de 25 milhões. O trabalho começou em Angicos, Rio Grande do Norte, uma das regiões mais pobres
do Nordeste. O resultado foram 300 trabalhadores alfabetizados em aproximadamente 45 dias.
3
Freire usou um enfoque gnosiológico e antropológico para introduzir o conceito de cultura. Após a redução deste conceito a seus traços básicos, foram
codificadas onze situações existenciais, estimuladoras para que os grupos pudessem desenvolver um trabalho de descodificação de suas compreensões.

8 Estas situações foram pintadas por Francisco Brennand, um grande artista brasileiro. Isto mostra as preocupações de Freire de inserir o processo de
alfabetização num apelo à sensibilidade e criatividade, buscando ampliar o cognitivo para o diálogo e a fruição sensível da arte.
4
Freire dedicou o livro a seu companheiro de exílio Ernani Maria Fiori que prefaciou o livro com a idéia do aprender a dizer sua palavra. Fiori, professor
da UFRGS, expurgado pelo regime militar como tantos outros intelectuais e artistas brasileiros, afirma a questão da comunicação como intersubjetividade
das consciências que ao dizerem-se no diálogo dizem também o mundo.

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Paulo Freire e Heidegger: o essencial é deixar aprender

Segundo Safranski (2000), seu caos da República de Weimar que total de nosso dasein alemão (dis-
mais recente biógrafo e também filó- desmoronava e, sobretudo, uma for- curso de Tübigen, 30.11.1933). Nes-
sofo, Heidegger nasceu de uma famí- taleza contra o perigo de uma rebe- se mesmo ano, segundo seu biógra-
lia de classe média baixa em uma pe- lião comunista. Ainda segundo fo (Safranski, 2000), Heidegger in-
quena cidade, Messkirch, de apenas Safranski (2000), a revolução nacio- gressa na Comunidade dos Profes-
2000 habitantes, no final do século nal-socialista se tornará para ele um sores Universitários Alemães, uma
XIX, situada entre Bodensee, nos acontecimento que domina o ser, pe- espécie de facção nacional-socialista
Alpes suevos, e o Danúbio superior. netrando até o mais íntimo de sua fi- da Liga das Universidades Alemãs
Sua infância e adolescência foi per- losofia, levando o filósofo para além que insistia em que as Universida-
passada por conflitos entre Estado e das fronteiras da filosofia. Em feve- des se alinhassem aos princípios ide-
Igreja, da qual dependeu grande par- reiro de 1933, chegou para Heidegger ológicos do Führer, ponto no qual
te de sua formação, por meio de bol- o momento de ação. Safranski (2000) não havia o mínimo consenso. Em 1º
sas de estudo, arranjadas por amigos comenta também as explicações de de maio de 1933, Heidegger adere ofi-
da família que reconheciam seu ta- Heidegger, em 1960, a um aluno que cialmente ao nacional-socialismo.
lento. Passou pelo Liceu de lhe confessava seu mal-estar por ad- Pouco depois, ainda em maio, após
Constança, tendo completado sua mirar sua filosofia e assistir os docu- a renúncia de um reitor, anteriomente
formação inicial no liceu e na univer- mentários dos últimos anos do regi- eleito, Heidegger assumiu a reitoria.
sidade de Freiburg. Segundo seu bi- me de Hitler. Heidegger então lhe ex- Entretanto, não conseguiu integrar
ógrafo, Heidegger continuou depen- plica que no ano de 1932 havia sete seu modo de ser à política nacional-
dente financeiramente do mundo ca- milhões de desempregados que, com socialista na Universidade. Havia re-
tólico, mesmo quando já começava a suas famílias, só podiam esperar sistências contra ele de ambos os
se afastar da Igreja. Foi como bolsis- pobreza e necessidade. Ainda é lados: os catedráticos conservado-
ta que fez o ginásio em Constance, Safranski (2000) que comenta que a res sentiam falta em Heidegger de
alojado no pensionato católico dissolução dos partidos de Weimar um conteúdo temático “positivo” em
Konradihaus, que preparava para a não se deu apenas pelo medo da re- seu ensino, os ideólogos nazistas
carreira sacerdotal (1903-1906). pressão, mas também porque esta- sentiam falta de uma admissão pú-
Heidegger entrou no noviciado jesu- vam sendo arrebatados pela revolu- blica da concepção de mundo naci-
íta, em Tisis, Vorarlberg, na Áustria, ção nacional-socialista. Em 17 de onal-socialista. Como conseqüência
de onde foi desligado devido a pro- maio de 1933, Hitler chega a fazer um de todos esses tropeços, Heidegger
blemas cardíacos. Era, então, força- Discurso sobre a Paz, que foi inclu- demite-se da reitoria em 23 de abril
do a fazer concessões das quais se sive elogiado pela imprensa ameri- de 1934 e, na medida de sua gradual
envergonhava. Para ele era um ver- cana, no respeitado Times. Esse decepção com uma ideologia que
dadeiro desgosto sentir-se depen- apoio inicial, como comenta julgara ser salvadora do povo ale-
dente de uma instituição que mistu- Hobsbawm (1995), significou as ha- mão, vai gradativamente separando
rava seus interesses com a coisa pú- bituais maquinações da Realpolitik. sua filosofia de motivos políticos.
blica e um dos motivos de sua inicial Oposição ou acordo, um certo Stein (1988), grande estudioso de
simpatia pelo movimento nazista foi contrabalanceamento ou, se neces- Heidegger, afirma que o filósofo,
porque o mesmo aparecia como sário, um combate contra a Alema- desde sua obra Ser e Tempo (1951)
anticlerical. Assim, em 1913 encerra nha dependiam dos interesses da elabora uma ontologia, cujo método
seus estudos para o sacerdócio e re- política de Estado de cada país e da fenomenológico-hermenêutico ten-
aliza estudos de filosofia, humanida- situação em geral. Heidegger, segun- ta criar uma nova forma de
des e ciências naturais em Freiburg, do seu amigo Jaspers, com quem aca- racionalidade que, enquanto “boa
mas ainda com bolsa de estudos para bou rompendo, esteve como que en- circularidade”, busca pensar as es-
filosofia católica. Estuda com feitiçado por Hitler. Anteriormente, truturas constitutivas do ser-aí,
Edmund Husserl e descobre a lógica sempre manteve-se apolítico. Nesse dasein, enquanto estruturas trans-
como um valor transcendental da momento, a filosofia de Heidegger cendentais que se apresentam des-
vida. Em 1913, conclui sua tese de entrega-se ao torvelinho da realida- trancendentalizadas na medida em
doutorado (A doutrina do juízo no de política. Heidegger vivenciou que buscam o sentido do ser, num
Psicologismo). Em 1931/32 a ligação este período como a encarnação de ente finito capaz de compreender o
de Heidegger com o partido nacio- um destino. A revolução nacional- ser. O ser-aí é também ser-no-mun-
nal-socialista não passa de uma opi- socialista o eletrizou filosoficamen- do, é cuidado (Sorge) e é temporal.
nião política. Segundo seu biógrafo, te. Na rebelião de 1933, ele desco- A temporalidade para Heidegger, se- 9
ele vê nesse partido uma força briu um acontecimento metafísico gundo Stein, é apresentada como um
ordenadora da crise econômica e do fundamental: “uma transformação princípio ativo de distinção e orde-

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nação que articula o mundo numa ainda o “acampamento da ciência” O texto de Heidegger
estrutura determinada de manifesta- em que a idéia central era viver jun- sobre o ensinar e o
ção do ser. Desta forma, Heidegger tos, trabalhar juntos e pensar juntos, aprender
busca um princípio de racionalidade na natureza livre. Este projeto visava
que possibilite a compreensão e jus- despertar para a realidade vital da na-
Desde 1950 até 1952, nos semes-
tificação de “ontologias regionais”, tureza e da história, por meio do qual
tres de inverno e verão, Heidegger
capazes de justificar as razões da seriam superados o ideologismo es-
ministrou seus últimos seminários na
estrutura historial em que os com- téril do cristianismo e o reducionis-
Universidade de Freiburg. Os semi-
promissos possíveis de uma época mo factual positivista. Outro projeto
nários tiveram por tema “O que sig-
se articulam, numa racionalidade criativo de Heidegger foi a idéia de
nifica pensar”5. A primeira aula refle-
contingente que aparece como “des- uma espécie de mosteiro para filóso-
te sobre o que significa pensar e so-
tinação”. Stein (1997) constata que fos. Seria uma comunidade vital
bre “o ensinar e o aprender”. A prin-
Heidegger desenvolve um pensa- educativa, na qual haveria alternân-
cipal afirmação de Heidegger é que o
mento pós-metafísico que implica um cia natural de trabalho científico, dis-
essencial sobre o ensinar é “apren-
conceito de homem, não mais como tração, recolhimento, jogos militares,
der a pensar”. Heidegger (1964) pro-
animal racional, mas como Sorge trabalhos físicos, esportes e come-
põe que aprender é mais essencial
(cuidado). A partir dessa morações. Também deveria haver
que ensinar. O próprio professor tem
constatação, tanto a ontologia como oportunidade de legítima solidão,
a tarefa de aprender a pensar, e isto é
uma teoria da verdade terão que ser pois o que serve à comunidade não
o mais grave sobre o ensinar e o
refeitas. Elas não mais se apresenta- poderia nascer apenas da comunida-
aprender. Heidegger (1964) enuncia
rão como sentido dado necessaria- de. Todas essas idéias mostram que,
suas duas principais questões: “o que
mente por um ente metafísico, nem apesar do engano ideológico,
é aprender? O que é aprender a pen-
como tarefa de conhecimento de uma Heidegger era um verdadeiro mestre,
sar?” Segundo Heidegger (1964), al-
consciência logocêntrica, mas como dedicado à filosofia e à educação, ten-
guém aprende quando adequa o seu
produção de significados totalmen- tando fazer da universidade um cen-
agir ou não agir, segundo o que con-
te entregues ao homem em sua tro irradiador de cultura, da qual o
sidera essencial em cada assunto.
finitude, capaz de uma força destrui- povo alemão deveria ser participan-
Desta forma, aprendemos a pensar
dora que se transforma para te. Todas essas iniciativas, bem como
quando perguntamos por algo que
Heidegger numa força reveladora da seu filosofar hermético e ligado à lin-
guagem como “morada do ser” aca- avaliamos como algo muito sério. En-
linguagem, na qual o ser habita, se
baram resultando em sua saída da rei- tretanto, o mais sério é que não pen-
vela e desvela pelo dizer do Dasein.
toria, por não mais agradar ao regime samos, mesmo quando nosso mun-
Heidegger educador nazista. Entretanto, continuou minis- do nos obriga a pensar. Essa situa-
trando conferências por toda a Euro- ção de nosso mundo nos leva a agir
pa e recebendo alunos em sua caba- em vez de pensar. Mesmo alguém que
Apesar de todas as contradições
de Heidegger, podemos ver em sua na de Todnauberg onde se situava o pretenda fazer filosofia, geralmente
atuação a figura de um educador? lugar ideal para seu filosofar. um especialista, um acadêmico, pode
Penso que podemos responder afir- Heidegger foi um mestre porque acre- cair no mesmo erro, pois muitas pro-
mativamente. Tanto antes como de- ditou no homem como ser do cuida- duções filosóficas também viram as
pois de sua breve passagem pelo do, capaz de por si mesmo e, a partir costas para o que realmente deve mo-
nazismo, Heidegger estava imbuído de sua finitude, buscar o sentido do tivar o pensar. Heidegger reafirma: “o
de idéias relativas à auto-educação. ser e de sua existência. O estar joga- mais sério em nosso tempo é que não
Muitas vezes referiu-se à universida- do na existência obriga o Dasein à pensamos”. Entretanto, o homem his-
de como uma comunidade viva de busca do sentido, e para essa tarefa tórico tem pensado e tem confiado
mestres e estudantes. Durante sua o mestre, enquanto educador e pen- profundamente na memória.
passagem pela reitoria, segundo seu sador, só pode preparar o terreno e Heidegger (1952) adverte que todas
biógrafo, tentou trazer os operários acompanhar o aprendiz “naquilo que essas afirmações não estão relaciona-
para a universidade, com a idéia de nunca deixa de se inscrever”, o bus- das à ciência. Temos que manter uma
que a universidade pertencia a um car o sentido na aprendizagem do certa distância para mergulharmos no
projeto do povo alemão. Concebeu pensar como “deixar aprender”. pensar. De certa forma, a ciência não

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Em 1952, Heidegger entregou para publicação os manuscritos dos últimos seminários, ministrados em 1950 e1951 como professor ativo em Freiburg.
Os seminários foram reunidos sob o título O que significa Pensar e resumem toda a problemática com a qual Heidegger se ocupou desde 1950 até o
ano de sua morte em 1976. Os textos revelam seu comprometimento com a tarefa de professor e com sua concepção do aprender como “deixar
aprender” e aprender a pensar.

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Paulo Freire e Heidegger: o essencial é deixar aprender

pensa, embora esteja relacionada de o começo. A memória vela e desvela- ta. A mão denota porque o homem é
uma forma especial ao pensamento. se a si mesma, naquilo que devemos um signo. As mãos solicitam ou im-
Entretanto Heidegger critica precisa- pensar em cada caso. Assim, a frase ploram, quando este gesto desenvol-
mente um certo tráfico instrumental e poética de Höelderlin “somos sinais ve a humanidade. Os gestos da mão
vantajoso entre o pensar e as ciênci- não decodificados” refere-se à proble- vão além da fala no momento em que
as. Ele se refere à diferença entre a mática situação do pensar e do apren- o homem fala ou cala. Cada movimen-
racionalidade demonstrativa da ciên- der a pensar. Segundo Heidegger to da mão é fonte do pensar. A relação
cia (apophansis) e a racionalidade (1951), aprender significa adequar nos- entre a mão e o pensamento é a mais
compreensiva da filosofia (hermenêu- so agir ou não agir ao que em cada caso simples e a mais difícil, conforme a si-
tica). Estas duas formas de racionali- pode ser considerado como essencial. tuação especialmente requer. Logo
dade estão relacionadas uma à outra, Quer lidemos com a ciência, com a téc- precisamos aprender a pensar, mes-
mas são diferentes. Neste caso, não nica ou com alguma outra ação, o prin- mo porque a capacidade de pensar,
é possível estabelecer uma ponte; a cipal é a relação que o aprendiz estabe- quando o talento para tal existe, não
única forma é dar um salto. As pes- lece com sua atividade e o essencial é a oferece nenhuma garantia sobre a re-
soas envolvidas em tarefas científi- aprendizagem que é requerida. Se não lação com o próprio pensar. Chama-
cas enfrentam esta forma de colocar há essa relação a atividade se torna ape- mos o mais sério o que temos que pen-
a ciência em questão, como se fosse nas uma simples atividade mecânica, sar, mas o mais sério em nosso tempo
um escândalo ou algo estranho ao uma parte de um trabalho como mero é que não pensamos. Heidegger en-
pensamento. Heidegger adverte que negócio, e toda a atividade humana cerra esta primeira lição tematizando a
somente quando esquecemos pro- precisa enfrentar esse tipo de risco. relação problemática entre Filosofia e
fundamente tudo o que sabemos, até Heidegger dá então o exemplo do car- Ciências. A questão do logos demons-
o presente, como essencial do pen- pinteiro. O aprendiz de carpintaria deve trativo (apophansis) e o logos com-
sar, é que podemos aprender a pen- aprender durante sua aprendizagem as preensivo (hermenêutica) fica
sar. Isto acontece porque o que de- relações entre a madeira e os objetos recolocada na medida em que
vemos pensar se vela para nós. de madeira por meio da inteira relação Heidegger acentua o jogo entre
Quando alguém toma este caminho com sua atividade. Para desenvolver velamento e desvelamento. Ele con-
como um andarilho, ele tenta produ- essa atividade, o aprendiz deve ter al- clui sua aula magistral invocando
zir sinais. Esta condição de ser al- guém que o ensine. Assim, ensinar é Höelderlin no hino a Mnemosyne: “So-
guém que tenta assinalar o que se mais difícil que aprender. Isto é assim mos sinais não decodificados, habita-
vela é a essência da humanidade. não porque o professor deva ter mais mos sem dor e, numa terra estranha,
Heidegger relembra então os manus- conhecimento para dar. Ensinar é mais nós quase perdemos a fala”.
critos de Höelderlin: “Nós somos si- difícil porque significa “deixar apren- Heidegger afirma a relação entre poe-
nais não decodificados”. Heidegger der”. O professor, como um pensador, sia e pensamento.Talvez essa relação
refere-se ainda à palavra grega é muito mais inseguro sobre o que ele possa ser discutida quando estiver-
Mnemosyne como a personagem tem entre as mãos. A verdadeira rela- mos quase no caminho do pensar.
mítica. Mito significa a palavra que é ção entre o professor, como pensador, Nesta primeira lição de Heidegger po-
pronunciada. Pronunciar significa em e os aprendizes não é baseada na auto- demos entrever o esforço do filósofo
grego desvelar, manifestar. Mito é a ridade de quem cumpre uma missão. em alargar o domínio do conhecimen-
palavra que toca a essência do hu- Ser professor, enquanto pensador, é to e do próprio pensamento como ten-
mano. Logos quer dizer o mesmo. muito mais do que ser um especialista tativa de ligar racionalidade e sensibi-
Mito e Logos foram separados pela numa área de conhecimento. Do ponto
lidade. Não seria esta a tarefa princi-
Filosofia. Esta separação provocou de vista comercial, ninguém quer ser
pal do professor para poder
maus resultados, como o moderno professor porque esta tarefa está rela-
reencantar a experiência do aprender,
racionalismo. Segundo Heidegger cionada com aquilo que remete a pen-
deixando aprender sem omitir “o es-
(1951), Mnemosyne, filha do céu e da sar sobre o que é o mais grave. Em ne-
tender as mãos”?
terra, esposa de Zeus, tornou-se a nhum caso o ensinar está relacionado
mãe das musas em nove noites con- com uma atividade puramente manual,
Conclusão: como
secutivas. O jogo, a música, a dança pois a mão não é um órgão puramente
e a poesia pertencem a Mnemosyne. prensor como as garras de um animal. Paulo Freire e Heidegger
Entretanto, a memória não pode ser Somente um ser que fala ou pensa pode conceberam o “deixar
aprender”
reduzida ao ato psicológico de
rememoração. Memória é o todo do
dispor da manualidade. A mão dá e
oferece e não somente puxa e empur- 11
pensar em todas as suas partes; me- ra. A mão oferece a si mesmo e recebe É preciso retornar às condições em
mória é o que devemos pensar desde a outra mão. A mão sustenta e supor- que os dois autores conceberam a

volume 9, número 1, janeiro • abril 2005

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Rosa Maria F. Martini

idéia do “deixar aprender” para inda- outros intelectuais brasileiros tam- cultura alemã, tradições que cultiva-
gar pelo significado que Freire e bém exilados, Paulo Freire realizou a vam a guerra e a violência como for-
Heidegger atribuíram a esta afirma- reflexão sobre sua prática. Essa refle- ma de salvação do povo e da cultu-
ção. Não há dúvida de que ambos xão estava baseada fundamentalmen- ra. Loparic (1990) nos adverte para a
ousaram correr o risco de enfrentar te em Hegel e Marx, cristianizados periculosidade das filosofias e das
a periculosidade de um pensamento pelo humanismo existencialista cris- tradições, quando elas priorizam ape-
radical, como é o questionamento fi- tão de Mounier, Marcel e outros que nas a sua própria visão de mundo.
losófico. Por outro lado, as circuns- tinham ligações com a fenomenolo- Quanto às acusações de participa-
tâncias históricas que Freire e gia husserliana. A prática freiriana es- ção de Heidegger no movimento na-
Heidegger enfrentaram de certa for- tava toda ela baseada na idéia de uma cional-socialista e de seu anti-
ma se assemelhavam porque exigi- historicidade das consciências aber- semitismo, bem como sua recusa a
am do intelectual um posicionamen- tas para o futuro, buscando superar uma retratação pública, Loparic
to efetivo e um envolvimento políti- a alienação por meio de um processo (1990) invoca, oportunamente, a
co com as questões de seu país. Tal- de conscientização, baseado no mo- idéia de que um crime moral só pode
vez pudéssemos afirmar que a situa- vimento dialético hegeliano e marxis- ser julgado por um tribunal interior.
ção da Alemanha de Heidegger fos- ta. Percebe–se nitidamente que Freire No caso do protestantismo, a cons-
se mais crítica, dado o período entre situou-se no paradigma da consciên- ciência se confessa diante de Deus,
duas devastadoras guerras mundi- cia e da representação, inclusive por e, no caso do catolicismo, a confis-
ais. Entretanto, o Brasil enfrentava suas ligações à lingüística tradicio- são é privada diante de um ministro
a guerra interna da manipulação da nal de Saussure. Sua preocupação que representa Deus. Heidegger,
ignorância do povo pelas classes com a tradição e a cultura estão liga- tendo formação teológica, manteve-
dominantes e a ameaça de um de- das ao conceito de “mundo da vida” se em silêncio por julgar que só Deus
senvolvimento atrelado ao capital da fenomenologia de Husserl e não seria um tribunal competente para
estrangeiro. partilha do relativismo cultural das julgar a culpa moral.
Paulo Freire ousou dar sua contri- correntes pós-modernas, embora te- Ainda na mesma obra, Loparic
buição de intelectual e professor cri- nha enfatizado a importância do diá- (1990) apresenta a tese da periculosi-
ando um método de alfabetização de logo e da cultura no processo de a- dade das filosofias e das tradições.
adultos que oportunizasse, alem do prendizagem. Alem disso, mostrou Utilizando a própria urdidura de Ser
domínio mecânico dos códigos es- que não há sentido em fazer discrimi- e Tempo, Loparic (1990) apresenta a
critos, uma leitura significativa do nação entre cultura erudita e cultura idéia dos três êxtases do tempo como
mundo e da cultura do alfabetizando, popular pois ambas são fruto da ação forma de caracterização das tradi-
resultando disso o processo de alfa- do homem no mundo, numa dada cir- ções: a dionisíaca ou fisiocêntrica
betização num verdadeiro processo cunstância histórico-social. Sem a refere-se ao passado, a apolínea ao
de conscientização, motivador de for- leitura do mundo, o sujeito não é ca- presente e a yahvista judaico-cristã,
mas de emancipação. Paulo Freire paz de interpretação e crítica de seu ligada a uma tradição ética, nomocên-
partiu de uma prática pedagógica que momento histórico. Nem tampouco é trica, refere-se ao futuro. Ainda se-
pretendeu promover um grande pro- capaz de projetar sua emancipação, gundo Loparic (1990), a virada do
cesso de inclusão cultural e social, enquanto projeto intersubjetivo, que pensamento de Heidegger (Kehre)
mobilizando universitários, comuni- acolhe o outro no seu reconhecimen- para a linguagem como “morada do
dades eclesiais de base e movimen- to, na solidariedade, na cooperação ser” se ligou à percepção do perigo
tos de cultura popular. Inicialmente e na compreensão. Daí os pós-mo- extremo representado pela vontade
foi apoiado por alguns elementos da dernos americanos tentarem situá-lo metafísica de potência, no sentido de
classe dominante, tais como intelec- na hermenêutica culturalista, o que Nietzsche, gerada por uma instância
tuais e professores universitários que não é o caso, dado que as origens de que se situa fora da estrutura do es-
realmente desejavam um processo de seu pensamento estão basicamente tar-aí. Assim o último Heidegger, o
democratização da sociedade brasi- vinculadas a Hegel, Marx e ao exis- que nos fala do deixar aprender, re-
leira. Entretanto, a institucionalização tencialismo cristão. flete as manifestações do Ser a partir
do movimento de alfabetização pe- Heidegger aderiu a uma ontolo- do jogo de presença e ausência do
los mecanismos do Estado (MEC e gia da finitude e, diante da Alema- Ser no Tempo do Ser. Este é um tem-
Universidades Públicas) pareceu nha destruída pela Primeira Guerra po das configurações epocais do Ser,
subversivo às classes dominantes, e
12 o movimento foi totalmente aborta-
Mundial, necessitava sair da pura
meditação filosófica para comprome-
das quais advém o Ser que se mostra
como vontade de potência; uma ou-
do pela interferência da ditadura mili- ter-se com a prática política. Sua fi- tra mostração será a da subjetivida-
tar. Apenas no exílio, no diálogo com losofia se liga às origens pagãs da de cartesiana, outra ainda, a do mo-

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Paulo Freire e Heidegger: o essencial é deixar aprender

vimento emancipatório da redenção baseado numa filosofia totalizante. contra-se com o “deixar aprender”
do proletariado, como no marxismo, Porém, vale destacar que ambos sou- de Heidegger, enquanto aprendiza-
outro o do pensamento que habita a beram, apesar de seus enganos, tes- gem do aprender a pensar.
linguagem. O êxtase do passado é, temunhar seu comprometimento com
segundo Heidegger, um “perfeito a a tarefa pedagógica. Ambos se de- Referências
priori” (1927, p. 130, in Loparic, ram conta de que é preciso criar es-
1990), um ter sido, ontologicamente paços de liberdade para aprender e ANDREOLA, B. 1985. Emmanuel
fundante dos modos de ser ônticos. que aprender significa aprender a Mounier et Paulo Freire: une pédagogie
A ontologia tradicional kantiana per- pensar pelo próprio exercício do de la personne et de la communauté.
mite apenas que se afirme a anteriori- pensar e pela familiaridade com esse Louvai-la-Neuve, BE. Thése Doctoral,
dade “empírica” de um ente intramun- exercício, o que só pode ocorrer se Université Catholique de Louvain.
BECKER, F. 1993. Da ação à operação:
dano em relação a outro. O caráter o professor aprendeu a pensar e re-
o caminho da aprendizagem em Piaget
escatológico da tradição yahvista, toma essa aprendizagem como uma e Freire. Porto Alegre, Palmarinca.
própria do judaísmo e do cristianis- aventura que empreende com o alu- FREIRE, P. 1967. Educação como práti-
mo, é nomocêntrico, procedendo de no, cada vez que se dedica a ensi- ca da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e
certa forma uma negação do presen- nar. Portanto, o “deixar aprender” Terra.
te para acenar com o advento do rei- tem a conotação da “liberdade para FREIRE, P. 1974. Pedagogia do Oprimi-
no dos céus ou do reino da liberda- aprender” e do “aprender a apren- do. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
de, segundo Marx. O tempo apolíneo der”, o que requer esforço próprio e FREIRE, P. 1997. Pedagogia da autono-
ou a visão de mundo logocêntrica e orientação do professor, como al- mia saberes necessários à prática
cartesiana, duramente criticados por guém que está embarcado juntamen- educativa. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Heidegger, são próprias da ciência e te com o aluno no âmbito do pensa- HEIDEGGER, M. 1951. El Ser Y el Tiempo.
Mexico, Fondo de Cultura Economica.
da técnica. Segundo esta interpreta- mento, já que só o homem é capaz
HEIDEGGER, M. 1964. ¿Que Significa
ção de Loparic (1990), baseada na de dizer o ser na linguagem. Pode-
Pensar? Buenos Aires, Editorial Nova.
concepção de tempo heideggeriana, mos também afirmar que a liberdade HOBSBWAWM, E. 1995. Era dos extre-
tanto Heidegger como Paulo Freire que Freire e Heidegger invocam em mos: o breve século XX 1914-1991.
correram o risco das ideologizações termos de “deixar aprender” e ser li- São Paulo, Companhia das Letras.
e compreensões totalizantes da filo- vre para pensar, além de representa- LOPARIC, Z. 1990. Heidegger réu, um
sofia de seu tempo. Entretanto, pen- rem um risco, decorrente da finitude ensaio sobre a periculosidade da Filo-
sofia. São Paulo, Papirus.
so que Heidegger mergulhou mais e precariedade do homem que se co-
STEIN, E. 1988. Seis estudos sobre Ser e
fortemente no engano do totalitaris- loca no caminho do pensar, signifi- Tempo. Rio de Janeiro, Vozes.
mo nazista, permitindo que sua filo- cam ainda hoje uma grande ousadia. STEIN, E. 1997. A caminho de uma fun-
sofia fosse corrompida por esse en- Isso porque, cada vez mais, o poder damentação pós-metafísica. Porto Ale-
gano, ainda que tenha se dado conta hegemônico de nações com domí- gre, EDIPUCRS.
disso tardiamente. Segundo nio científico e tecnológico, e con-
Safranski (2000), Heidegger se enga- seqüentemente com poderio bélico
nou politicamente porque sonhou fi- e domínio dos meios de comunica-
losoficamente. Embora, inicialmente, ção, insiste em impor sua visão de
Heidegger não o tenha admitido, tar- mundo e sua forma de pensar ao res-
diamente, ele transformará seu enga- to do mundo, dificultando qualquer
no em uma história filosófica, tendo tentativa de pensar por si mesmo e a
sido o próprio ser que se enganou partir de suas próprias tradições, tal
nele e através dele. como esses grandes mestres propu-
Freire sabia que a educação não seram que fosse a tarefa do educa-
era o único recurso para o processo dor. Portanto, aquele que pretende
de democratização. Seu erro foi acre- ensinar, enquanto alguém que
ditar que a classe dominante e o Es- aprende a pensar, precisa mergulhar Rosa Maria F. Martini
tado brasileiro já estivessem prepa- fundo na aventura do pensamento, UFRGS/FACED

rados para um processo de emanci- desejando sempre encontrar formas


pação do povo, baseado numa filo- de convidar e acompanhar a ativida-
sofia de cunho escatológico, como de de pensar do aprendiz, sem ter a
a visão de mundo hegeliano-marxis- certeza de possuir o mapa do cami- 13
ta. Houve, portanto, no caso de nho do pensamento. Assim, “a liber-
Freire um erro de avaliação política, dade para aprender” de Freire en-

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