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RELIGIOSIDADE E OS ESPAÇOS DE PRODUÇÃO DE SENTIDO: UM

OLHAR SOBRE O TERRITÓRIO DA SAÚDE MENTAL


Religiosity and spaces for sense production: a look at mental health

Renata Ferreira Cerqueira¹

RESUMO
O estudo analisou a relação entre o sofrimento psíquico e a religiosidade evangélica
Pentecostal, tal como se manifesta na prática de um serviço territorializado de saúde
mental. Teve como objetivo analisar o discurso de usuários de um serviço de atenção
diária sobre a importância das Igrejas Evangélicas nas suas trajetórias terapêuticas para
tratar o sofrimento psíquico. Utilizou-se a metodologia qualitativa, nos moldes de uma
pesquisa etnográfica focal, tendo como método de apreensão de dados a história de
vida. Concluiu-se que o espaço religioso permite uma compreensão da doença que a
medicina oficial não foi capaz de dar. Esperamos contribuir na valorização da
experiência da pessoa que busca na religião um sentido para o sofrimento, além de
melhor qualidade de vida.
Palavras-chave: Religião; Saúde Mental; Apoio Social; Pesquisa Qualitativa.

ABSTRACT
This study analyzed the relationship between psychic suffering and Pentecostal
Evangelical religiousness, as it appears in the practice of a mental health service
responsible for a certain territory. Its aim was to analyze what daily mental health care
users say about the importance of Evangelical Churches in their therapeutic histories to
treat the psychic suffering. A qualitative methodology was used, following the pattern
of a focal ethnographic research, using their life history as the data collection method. It
was concluded that the religious environment allows an understanding of the illness that
regular medicine wasn't able to offer. We hope to contribute to an appreciation of the
experience of the person that seeks in religion a sense for his or her suffering, besides a
better quality of life.
Key words: Religion; Mental Health; Social Support; Qualitative Research.
_________________________
¹ Mestre em Ciências na Área de Saúde Pública – ENSP/FIOCRUZ. Enfermeira do Hospital -Dia do
Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro/SES. Endereço para correspondência: Travessa José de Alencar, 93
casa 1. Barreto, Niterói, RJ. CEP 24110080.
Tel: (21) 2720 2199. E-mail: refece@uol.com.br.

INTRODUÇÃO

1
O artigo que se apresenta é parte da dissertação de mestrado defendida na
Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca sob a linha de pesquisa Educação,
Saúde e Cidadania, coordenada pelos Professores Victor Vincent Valla e Eduardo
Navarro Stotz. O eixo da linha de pesquisa envolve uma série de outros estudos
referentes ao saber popular: práticas e discursos na construção de acessos diferenciados
à rede básica de saúde.
A partir da articulação dos conceitos de território, religiosidade e apoio
social com a saúde mental, buscamos compreender como o sofrimento psíquico é
interpretado pelas pessoas que acolhemos e cuidamos nos serviços de atenção diária.
Partimos do pressuposto de que as instituições religiosas atuam como rede de sentido e
apoio social e que a busca por espaços religiosos faz parte das trajetórias terapêuticas
que os usuários de serviços de saúde mental constroem e percorrem.
Milton Santos (1988) conceitua o território da vida como o território das
trocas simbólicas e materiais e problematiza a noção de espaço como matriz das
relações sociais e de produção, uma vez que é nele que acontecem as trocas mercantis e
a reprodução das relações sociais. Nessa releitura dos conceitos, o espaço é discutido
como uma estrutura determinante nas trocas sociais, em constante diálogo com o
território. Quanto a isso, Santos (1988, p.26), nos diz que:
O espaço deve ser considerado como um conjunto indissociável de que
participam de um lado, certo arranjo de objetos geográficos, objetos naturais
e objetos sociais, e de outro, a vida que os preenche e os anima, ou seja, a
sociedade em movimento.

A partir da relação dinâmica entre espaço e território, chegamos ao conceito


do espaço socialmente organizado, que é o espaço das relações concretas. Conforme nos
diz Santos (1988, p.75), “é esse conjunto de todas as coisas arranjadas em sistema que
forma a configuração territorial cuja realidade e extensão se confundem com o próprio
território de um país”. Nossa discussão de território partiu do conceito de espaço
socialmente organizado: o território da vida. A influência de vários fatores determina o
processo saúde-doença no território da vida, “que ao interagirem entre si modificam os
resultados desse processo, mas também os próprios fatores/sujeitos envolvidos nessa
mistura que é vida” (CAMPOS, 2006, p.42).
Não há como discutir o conceito de território isoladamente, pois passa a ser a
unidade de assistência, de análise e de implementação do cuidado. Lancetti e Amarante
(2006, p.624), definem objetivamente esse conceito, afirmando que o território “não é
apenas a região administrativa, mas a das relações sociais e políticas, afetivas e

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ideológicas que existem em uma dada sociedade”.
A partir dessa discussão, compreende-se a política de descentralização
proposta pelo Movimento Sanitário, que resultou na configuração do Sistema Único de
Saúde – SUS e incorporada pelo movimento de Reforma Psiquiátrica que definiu o
território como cenário de ação da política dos dispositivos substitutivos da assistência
psiquiátrica.
O Movimento de Reforma Sanitária brasileiro tem uma importância singular:
um país que reorientava seus passos em direção ao processo de redemocratização. O
Movimento Sanitário que vinha se configurando desde os anos 70, animado por
movimentos populares, cada vez mais numerosos e consistentes, questionava práticas
totalizantes do regime autoritário.
A Conferência de Alma Ata que aconteceu em 1978, na ex-URSS, foi um
marco conceitual para o Movimento Sanitário, com a proposta de reorientação das ações
de saúde. Nesse âmbito, a saúde foi discutida enquanto prática social (Vasconcelos,
1998); compreendeu-se então que, o processo saúde-doença necessitava ser visto do
nível local, valorizando a participação comunitária e as ações básicas de saúde.
A VIII Conferência Nacional de Saúde que aconteceu em 1986, e a
Constituição de 1988 possibilitaram momentos decisórios para a formatação político-
ideológica do projeto de Reforma Sanitária: o papel do Estado foi questionado e
reformulado e suas ações redimensionadas. Ideologicamente, o conceito de saúde foi
reforçado enquanto coletivo: a saúde coletiva.
O Movimento Sanitário se deparou com a questão do território enquanto
local de implementação das políticas de saúde. O que sabemos é que a rede básica de
saúde tornou-se um grande receptor de demandas; uma porta de entrada para os serviços
de saúde e continua não atendendo as necessidades imediatas da população. Esse é o
desafio que se impõe aos idealizadores e executores das políticas públicas de saúde.
A partir do conceito de território e de sua aplicação nas políticas de saúde,
temos agora diversas questões a serem consideradas, principalmente referentes à
territorialidade da assistência psiquiátrica.
A Reforma Psiquiátrica construiu uma metodologia de assistência centrada
no território como unidade produtora e reprodutora de relações sociais. A equipe de
saúde mental é inserida nesse território, que foi transformado em interlocutor das crises
sociais do cotidiano. Ao buscar um espaço substitutivo para dialogar com o transtorno
mental, a Reforma Psiquiátrica enfrentou e enfrenta dificuldades que são peculiares a

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qualquer movimento que resulte em uma mudança do paradigma e acima de tudo, na
emergência de uma nova cultura.
A descentralização da assistência do hospital psiquiátrico e a construção de
uma rede de serviços substitutivos composta por centros de atenção diária, unidades
ambulatoriais, centros de convivência, lares abrigados e trabalho protegido,
redimensionou o binômio saúde-doença, que passou a ser compreendido através da
tríade saúde-doença-cuidado (DAVID, 2001).
Outro desafio, dentre muitos outros, é reconhecer a existência de um
conhecimento não oficializado, que dá sentido ao discurso das classes populares.
Entramos na discussão que foi iniciada por Victor Valla: a construção compartilhada
do conhecimento. Quando estamos diante de conhecimentos e de saberes que não são
reconhecidos como oficiais, temos a postura de desmerecê-los, sem a preocupação de
compreender como tais saberes foram construídos e a importância para a vida das
pessoas:
A história nunca começa com o contato dos profissionais dos serviços com
suas clientelas. A história é anterior. Se a referência para o saber é o do
profissional, isso dificulta a chegada ao saber do outro. Os saberes da
população são elaborados sobre a experiência concreta, sobre sobrevivência,
distintas daquelas do profissional. (VALLA, 1998, p.12).

Esse é um dos maiores desafios do contato com usuários de serviços de


saúde mental: buscar compartilhar um conhecimento e uma linguagem que durante
muito tempo foram silenciados pelo isolamento e pela exclusão. Não cabe mais
ignorarmos o que as pessoas estão nos dizendo em relação ao seu sofrimento, nem
tampouco adotarmos uma postura de embate, principalmente quando nos mencionam
suas opções religiosas.
O conhecimento que tentamos compreender através da lógica racionalizada
da academia tem como substrato mitos e crenças que foram legitimados pela idéia de
que forças contrárias atuariam e influenciariam o bom viver. Por outro lado, na
dinâmica dos sistemas religiosos, há um potencial racionalizador (Machado, 1996), que
consiste em dar sentido à experiência vivida.
As dimensões de solidariedade, acolhimento e emoção compõem o Apoio
Social ou Social Support. Trazido para a discussão no cenário brasileiro por Victor
Valla, a Teoria do Apoio Social surgiu nos Estados Unidos em meio à crise dos serviços
de saúde dos anos 80. A epidemiologista social americana Meredith Minkler (1985)
define esse conceito:

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Qualquer informação, falada ou não, e/ou auxílio material, oferecidos por
grupos e/ou pessoas que já se conhecem, que resultam em efeitos emocionais
e/ou comportamentos positivos. Trata-se de um processo recíproco, isto é,
que tanto gera efeitos positivos para o recipiente, como para quem oferece
apoio, dessa forma permitindo que ambos tenham mais sentido de controle
sobres suas vidas e que desse processo se apreende de que as pessoas
necessitam umas das outras. ( apud VALLA (1999, p.10).

No universo da religiosidade popular a luta pela sobrevivência é uma


constante. Nesse sentido, a religião popular pode ser descrita como um conjunto de
“estratégias de sobrevivência que as classes populares adotam dentro de uma
sociedade que lhes nega oportunidade e seus direitos legítimos” (VALLA, 2001,
p.131).
O pentecostalismo surgiu nos Estados Unidos, no início do século XX, como
um movimento de resistência popular caracterizado principalmente pela diversidade
cultural dos diferentes povos que constituíram o território norte-americano, além da
forte influência da religiosidade negra dos Estados do Sul. Novaes (2001, p.73)
considera que “... o pentecostalismo no Brasil deve ser analisado como um produto
histórico singular”, principalmente devido à matriz religiosa sincrética que define o
campo religioso brasileiro.
O surgimento do pentecostalismo no Brasil foi objeto de estudo de vários
autores (FERNANDES, 1996; BONFATTI, 2000; NOVAES, 2001). O movimento
Pentecostal, originário da cultura popular norte-americana, chegou ao Brasil nas
primeiras quatro décadas do século passado, inicialmente na região Norte do Brasil,
representada pela denominação Assembléia de Deus, e depois no Nordeste, com a
denominação Congregação Cristã do Brasil. Nos anos 70, surgiu, na região Sudeste,
mais precisamente no Rio de Janeiro, a Igreja Universal do Reino de Deus, fundada no
ano de 1977 (NOVAES, 2001).
Nesse processo, conforme afirma Novaes (2001, p.51), emerge “a
identidade: ser crente. Ser evangélico pentecostal no Brasil se define por oposição a
ser católico”. Alguns autores, César(1992), Fernandes (1996), Machado (1996),
Novaes (2001) e Valla (2001) tentam compreender a dinâmica do movimento
pentecostalista, desde sua chegada ao Brasil à conquista de um número cada vez maior
de fiéis nas suas diversas denominações, além da participação ativa e maciça no cenário
político brasileiro.
O espaço de diálogo e inserção que o pentecostalismo encontrou no Brasil
foi um território fértil, animado por uma população extremamente pobre, carente de

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recursos materiais e, principalmente, em busca de um sentido para a vida. O território
religioso, até então visto como dominado pela religião Católica, demonstra que pode ser
plural, sincrético e visitado simultaneamente. Na luta pela sobrevivência, são as classes
populares que se beneficiam imediatamente desses espaços.
Waldo César, ao analisar o movimento Pentecostal e sua fácil
permeabilidade no cotidiano das pessoas das classes populares, nos diz que:

O pentecostalismo é a forma popular do protestantismo – e que não pode ser


totalmente entendido ou estudado independente deste último. O fato é que as
igrejas protestantes históricas nunca souberam lidar com o popular. (CÉSAR,
1992, p.52).
Uma outra explicação que tem sido elaborada para tentar compreender a
lógica da conversão e sua repercussão na vida dos fiéis é a transcendência, discutida
também por Waldo César. Sabemos das transformações que a pessoa experimenta ao
receber um alento esperançoso no espaço religioso. César (1992) tenta compreender
essa lógica não se baseando apenas nos relatos de uma melhoria de vida quantitativa,
pois o autor acredita que há a dimensão do transcendente.

E complementa:

O fervor pentecostal se distingue de outras experiências religiosas populares


na sua relação com a questão da sobrevivência pessoal e familiar. A
sobrevivência, que é um acontecimento material, se submete a um outro
valor, de ordem sobrenatural. (CÉSAR, 1992, p.54).
É nesse território rico de significações que se produz sentido para
compreender e lidar com o sofrimento psíquico.

CASUÍSTICA E MÉTODOS

Desenvolvemos um estudo com abordagem qualitativa, nos moldes de uma


pesquisa etnográfica focal, tendo como método de apreensão de dados a história de
vida. O objetivo principal do método etnográfico é descrever experiências a partir de
um contexto cultural, considerando o fenômeno saúde-doença como uma produção
social (ROPER e SHAPIRA, 2000).

Utilizamos como referencial teórico-metodológico a teoria do Apoio Social,


para a qual Cohen e Syme apud Cardoso (1999, p.30) descreveram a hipótese do efeito
direto, em que o Apoio Social eleva a auto-estima podendo influenciar na

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susceptibilidade das doenças, e a hipótese do efeito de proteção, a qual refere que o
Apoio Social resguarda as pessoas que são submetidas ao estresse. As pesquisas que
foram desenvolvidas a partir dessas duas hipóteses demonstraram que o Apoio Social
interfere positivamente na reabilitação física e psicológica das pessoas.
O presente estudo partiu de um serviço de atenção diária territorializado,
onde são desenvolvidos atendimentos de reabilitação psicossocial para pessoas
portadoras de transtornos mentais. Os clientes passam o dia nesse serviço, onde
participam de grupos terapêuticos, são acompanhados por técnicos de referência com
quem elaboram seus projetos terapêuticos. Minha inserção nesse serviço é como
enfermeira da equipe de reabilitação, conceito definido por Saraceno (1999, p.12)
como: “...um conjunto de estratégias orientadas a aumentar as oportunidades de troca
de recursos e de afetos: é somente no interior de tal dinâmica das trocas que se cria um
efeito habilitador”. A reabilitação psicossocial tem como objetivo principal estimular o
indivíduo a participar ativamente do seu tratamento. Temos com isso a possibilidade de
interferir no curso cronificante da doença, para que assim haja o “resgate de
identidades” e uma possível reconstrução dos laços de contratualidade social.
A população participante do estudo constituiu na clientela desse serviço e de
familiares, que mencionassem a busca por instituições religiosas para lidar e
compreender o sofrimento psíquico. Inicialmente observou-se que algumas pessoas que
procuraram atendimento psiquiátrico tinham recorrido no percurso de sua trajetória
terapêutica a alguma agência religiosa, mais predominantemente as Igrejas Pentecostais.
O instrumento de coleta de dados consistiu em um roteiro de entrevista composto por
questões norteadoras. As entrevistas foram registradas em fitas magnéticas e
posteriormente transcritas.
A fim de garantir a utilização das informações colhidas, os cinco
participantes do estudo assinaram um termo de consentimento com a garantia do
anonimato. Após a transcrição e análise dos dados, as fitas magnéticas foram apagadas.
Os dados foram submetidos à Análise de Conteúdo; seguiu-se à fase da
leitura flutuante, de aproximação e sensibilização com os relatos. Nessa fase, não houve
preocupação com a definição de categorias e sim com o conteúdo das entrevistas e de
que maneira os relatos poderiam dialogar entre si e com a literatura. A Análise de
Conteúdo relaciona o indivíduo produtor e emissor de mensagens em um processo de
interação e comunicação social. Assim, por definição, Análise de Conteúdo é:

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[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por
procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das
mensagens, indicadores que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/recepção destas mensagens. (BARDIN,
1994, p.38).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da leitura das entrevistas, procedeu-se à elaboração de uma


categoria “geral” - Os Espaços de Produção de Sentido, subdividida por subcategorias:
Corpo, Família, Conversão e Cura.
Na primeira subcategoria, o corpo, enquanto instrumento de percepção da
doença, sofre tanto o processo de adoecimento quanto as intervenções terapêuticas. É o
espaço mediador do sujeito com o mundo coletivo e as práticas terapêuticas. A família
age como cuidadora durante o processo de adoecimento e de tratamento. A ação da
família é o que determina muitas vezes o tipo de ajuda e tratamento que o indivíduo se
utilizará. Nos espaços de conversão e de cura, dá-se a construção de significados e
significantes; são as impressões das marcas sociais na produção de sentido para
compreender o processo de adoecimento a partir do itinerário religioso. Serão nesses
espaços que veremos a importância das agências religiosas nas trajetórias terapêuticas,
além da confluência das representações da doença e da sistematização do cuidado.
Corpo
O corpo é a unidade concreta, onde são inscritas as marcas sociais, históricas
e culturais; o que o faz ser apropriado por grupos sociais: “...o corpo surge então não
apenas como objeto de representação, mas como fundamento da nossa subjetividade”
(FERREIRA, 2001, p.55). A ruptura interna causada pelo sofrimento psíquico deixa o
indivíduo fragilizado e, na busca para reencontrar seu equilíbrio, utiliza seu corpo como
instrumento de comunicação.
Reginaldo chamou minha atenção quando chegou ao serviço com um
livrinho da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus). Perguntei onde havia
conseguido aquele livro e respondeu que comprara na igreja que freqüentava. Ele
relatou que procurou a igreja para se livrar do vício das drogas:
“Eu tinha mais ou menos vinte anos, aí eu entrei pro mundo das
drogas, eu fiquei um bom tempo e agora tem um ano que eu tô
sem usar... aí, devido ao tóxico, e à audição de vozes,

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alucinação, até hoje ainda tem, mas diminuiu bastante por
causa de que eu estou na igreja... eu tava com o pensamento,
vazio ficava quieto no meu canto, não queria conversar com
ninguém, ficava com o pensamento vazio, assim e ouvindo
vozes” (Reginaldo).
A partir da experiência de Reginaldo, podemos observar que “ouvir vozes”
causa um processo de desestruturação do indivíduo, da sua relação com o meio e com as
pessoas que o cercam. Esse estranhamento é mais angustiante, principalmente por ouvir
vozes dizendo a todo o tempo que irão matá-lo:
“Apesar de que a gente ter as atribulações da vida, mas não é
normal ficar escutando vozes dizendo que vai matar aí eu vou
pra igreja, né?” (Reginaldo).

Reginaldo, para diminuir a angústia e se curar das vozes, procurou a Igreja


Pentecostal. Durante seus momentos de crise e de agitação, falava muito em espiritismo,
em macumba, e por isso acredita estar possuído por um espírito; e que a cura viria com
a sua libertação. A pregação do pastor e as interpretações sobre as possíveis causas do
sofrimento psíquico, sempre relacionadas a espíritos malignos, confirmam a esperança
de cura e libertação:
“Antes de eu usar drogas eu não tinha essa perturbação não, foi
depois que eu comecei a usar drogas, essa perturbação na
cabeça (...). Conforme fui fazendo o uso das drogas, sempre
atrai troço negativo pra cima da gente. Eu não sabia. Os bispos
e os pastores falam que isso é encosto, um encosto maligno”
(Reginaldo).

A condição de estar possuído nos permite compreender que o corpo, por


estar em contato com o meio ambiente, sofre por todos os passos errados dados pelo
indivíduo. Devido ao longo período que usou drogas, Reginaldo hoje sofre com as
vozes que o angustiam e ele tem um claro entendimento disso: “eu acredito mais que
tenha sido devido a eu ter usado muitas drogas e também, problema espiritual”. No
entanto, percebe o adoecimento como castigo por não respeitar o seu corpo, tornando-o
frágil, atraindo forças negativas: “mas hoje eu me arrependo de ter entrado pro mundo
das drogas, me incomoda muito ficar ouvindo essa perturbação, eu tenho que me
segurar”.

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Compreendendo que o espaço religioso permite a reinserção social e
possibilita uma reorganização psíquica, o discurso de Reginaldo nos faz perceber que a
explicação para o adoecimento é socialmente construída e aceita no universo da Igreja
Pentecostal. É a idéia de que o corpo sofre pela falta de cuidado e pelos excessos que o
indivíduo comete e que funciona como uma explicação que, de certa forma, exime o
indivíduo da responsabilidade do que possa ter feito para prejudicar a si e a outros.
Bonfatti (2000), em seu estudo, utilizou uma categoria para explicar que há uma
compreensão construída no universo Evangélico, a qual o indivíduo se beneficia de uma
posição de vítima em relação ao mal que lhe acomete. O que evidencia, por outro lado,
uma forma menos dolorida de lidar com as limitações e dificuldades impostas pelo
transtorno.
Nosso outro entrevistado, Francisco, é muito questionador, busca sempre
explicações lógicas para suas dúvidas, principalmente quando são relacionadas à sua
doença. Busca intensamente os espaços religiosos na esperança de entender e se curar
da esquizofrenia:
“Eu fui na Igreja Deus é Amor, e tive essa experiência. Eu
procurei a igreja pra ser curado da esquizofrenia” (Francisco).

Os conflitos religiosos que vivencia são exteriorizados por queixas físicas e,


para que possamos compreender o mal-estar que sente, nos deu esse exemplo: “dizem
eles que as pessoas que têm problemas no pé, têm um pé maior que o outro depois que
foi lá, ficou normal”. Seu corpo é seu parâmetro de estabilidade. Francisco interpreta
cada alteração do seu corpo como se fosse a manifestação de uma doença grave. Por
esse motivo, submete-se constantemente a exames clínicos, faz exames de sangue
regularmente, procura vários médicos para comprovar suas desconfianças. Francisco
acredita ser portador do vírus HIV, embora vários testes provassem o contrário. Chegou
a tomar dez litros de água e angustia-se até hoje por não ter eliminado de uma vez essa
quantidade de água. Para ele, essa é a maior comprovação de que há uma anormalidade
com seu corpo. Francisco queixa-se constantemente que está emagrecendo e que isso é
conseqüência da infecção de algum vírus:

“Há dois anos eu bebi dez litros de água de uma vez só. Não
aconteceu nada. Isso não pode ser normal. Pra onde foi essa
água toda?” (Francisco).
Essas doloridas experiências que Francisco relata ao sentir seu corpo doente,

1
o impulsionaram a procurar explicação na Igreja Evangélica. Seu discurso, por vezes é
revoltado e ressentido, por não ter encontrado ainda uma explicação que o satisfaça. Sua
trajetória de busca por espaços religiosos o faz ser uma pessoa muito crítica, com um
conteúdo de experiências de vida muito ricas, ainda que permeado por tanto sofrimento.
A doença enquanto sofrimento afasta o indivíduo do seu mundo de relações
sociais, e a necessidade de estabelecer algum vínculo que reoriente e possibilite a
reconstrução da sua identidade é um processo longo. Esse é o desafio a que se propõe a
reabilitação psicossocial: resgatar identidades e (re)construir laços sociais possíveis.
Costa apud Nardi (2001), ao discutir esse processo, nos permite refletir sobre o
sofrimento psíquico como uma identidade emergente:
O distúrbio mental existe quando as representações de que o indivíduo dispõe
para sentir e pensar sua identidade ou as causalidades e finalidades de seus
projetos e emoções não se articulam em nenhuma rede de significados
presente em sua consciência socializada. (NARDI, 2001, p.101).

Família
A rede de cuidados tem na família sua trama inicial. Por ser a primeira
instituição social que a pessoa tem contato, a família traduz e remonta os códigos
sociais que são norteadores da vida em sociedade. Além disso, é o núcleo de cuidados
iniciais que estão dispostos ao indivíduo que adoece. É a família quem primeiro acolhe
o sofrimento e, dentro das suas possibilidades, lida com a situação com seus próprios
meios.
A dinâmica da família que comporta um membro em sofrimento psíquico
está seriamente comprometida e desestruturada. A idéia de o familiar doente ser o “bode
expiatório” das questões familiares mal resolvidas, também é observada; o que de
maneira nenhuma minimiza o sofrimento que vem com o adoecimento. No entanto, há
familiares que são um desafio para a equipe de reabilitação, pois o desgaste dos laços
sociais faz com que o familiar acabe desistindo do parente doente por não considerá-lo
capaz de retomar a sua vida. E o “esgarçamento” dos laços familiares, o desânimo, que
por muitas vezes mina o relacionamento familiar, constituem um outro prisma de
atuação das equipes de referência dos serviços de atenção diária.
Uma das estratégias utilizadas nos serviços de atenção diária para lidar com
a dinâmica das famílias são os grupos de familiares. Acredita-se que, ao conhecer
experiências alheias, se compreenda a sua própria (ROSA, 2000). Nos grupos de família
que acontecem no serviço em que o estudo foi desenvolvido, se promove ajuda mútua,

1
pois os familiares “comparam” seus problemas, num contínuo processo de troca e
empatia:
Há como que uma certa “solidariedade na miséria”,
acompanhada por um sentimento de conforto/consolação, em que se
estabelecem gradações a partir das dificuldades do manejo sintomatológico,
de controle social e estado de lucidez. (ROSA, 2000, p.163).

É a lógica do Apoio Social sendo aplicada a uma clientela muito específica,


com peculiaridades e particularidades. O suporte que a família recebe nesses grupos é o
que sustenta uma atitude “cuidadora” e compreensiva, mas principalmente, de
tolerância.
Outra questão importante é o desgaste da família do usuário de drogas,
muitas vezes relacionado à negação da doença, tanto pelos familiares quanto pelos
usuários. O abuso de drogas ilícitas perpassa o caráter de criminalidade e da saúde
pública. Reginaldo comenta que sua família não freqüenta a mesma igreja que ele, mas
mesmo assim, recebe apoio para procurar um lugar onde se sinta bem. Assim ele nos
diz:
“Minha mãe sempre me aconselha a procurar a igreja.
Quando eu tô confuso assim, e falo em macumba, ela me
aconselha a procurar a igreja. Minhas irmãs também”
(Reginaldo).
Esse contexto demonstra que há uma figura singular do cuidado, que é a
mulher. Na maioria das vezes as mães acompanham seus filhos. O papel da mulher
nesse cenário é o de cuidadora. As famílias, principalmente na figura dessas mulheres,
buscam outras formas de Apoio Social para lidar com essas dificuldades. O espaço
religioso é rico de sentido e significado para as pessoas que lá chegam com essa
demanda específica. Bonfatti (2000) chama a atenção para uma forma expressiva de
busca pelo espaço religioso, que são as Correntes da Família, as quais acontecem uma
vez por semana na Igreja Universal do Reino de Deus. Observa-se ainda que o espaço
de oração dessa corrente seja provido de eficácia simbólica, pois faz com que as
orações alcancem à pessoa doente sem que ela freqüente a igreja. Geralmente, são
apenas as mães que freqüentam as orações, são elas que, convertidas, buscam a
salvação para seus parentes doentes:
Na maioria das vezes, foram vistos com retratos de filhos, roupas de maridos
e garrafas pertencentes àqueles que têm problema de bebida. Destaca-se o
fato de que essas ausências, momento algum, foram profundamente
lamentadas ou questionadas. (BONFATTI, 2000, p.157).

1
Conversão
Conforme reforçamos várias vezes nesse estudo, o universo religioso é
dotado de significantes que reorientam a experiência de vida do sujeito, dando sentido à
sua existência (BONFATTI, 2000). Essa peculiaridade do espaço religioso foi tema de
diversos estudos (CÉSAR, 1992; VALLA, 2001) sobre religiosidade e pobreza, pois são
as classes populares que se beneficiam mais diretamente desses espaços de vivência
religiosa. É dentro desse espaço de compreensão que buscaremos evidenciar o papel
determinante que a religião Pentecostal tem nas vidas dessas pessoas.
O sentido envolve a construção social, expectativas de pessoas que possuem
algumas experiências em comum. Quanto à questão do sentido e sua orquestração
social e coletiva, Spink e Medrado consideram que:
O sentido é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais
precisamente interativo, por meio do qual as pessoas – na dinâmica das
relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas –
constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as
situações e fenômenos à sua volta. (SPINK; MEDRADO, 1999, p.41)

O sofrimento psíquico enquanto fenômeno que envolve uma coletividade (o


indivíduo que sofre, a família e a comunidade), provoca a reorientação da visão de
mundo, a revisão de conceitos e significados para que a vida diante do sofrimento
continue a ter sentido.
Em um estudo sobre a relação entre o pertencimento religioso enquanto
fator de proteção da doença mental, Dalgalarrondo (1997) observou que esses grupos
religiosos podem funcionar como uma intensa rede social, influenciando diretamente na
tolerância da comunidade com a pessoa em sofrimento psíquico.
Norteados por esses elementos e características do espaço religioso
Pentecostal na produção de sentido, podemos prosseguir na compreensão de figuras
importantes nessa composição da matriz religiosa e que se mostraram recorrentes nos
discursos dos entrevistados. Conversaremos com os dados através de três elementos que
Bonfatti (2000) observou serem recorrentes no campo religioso Pentecostal. Esses
elementos são: a conversão, a cura e o exorcismo, os quais justificam a motivação dos
fiéis que estão sempre à procura de algo que os faça sentir mais confortados. Bonfatti
(2000, p.38) afirma que “a membresia [coletividade] da IURD vê exorcismo, conversão

1
e cura dentro de uma única dimensão vivencial e psíquica, coerente e cheia de
sentido”.
Embora se defina como um freqüentador da Igreja Evangélica e não uma
pessoa convertida, Reginaldo traz em seu relato a importância do pertencimento e do
apoio espiritual que recebe na igreja e porque considera importante no seu processo de
tratamento:
“Tem que ter uma religião, na igreja católica, na igreja de
crente ou então fico no mundo, sem nada, sem nenhuma
religião. Ou com a religião, na igreja. Eu não me sinto uma
pessoa convertida não. Me sinto assim: uma pessoa que
freqüenta a igreja, mas eu não sou crente, sabe? Eu ainda tenho
meus vícios, fumo cigarro, aí não me considero uma pessoa
convertida, sou freqüentador da igreja” (Reginaldo).
A conversão indica o tipo de compromisso que o indivíduo estabelece com
a igreja. De acordo com Prandi:
A conversão está associada em grande medida à pobreza e à marginalidade
social, pois se acredita que, “as religiões cristãs de conversão ajudam a
organizar a vida dos conversos, que são, sobretudo pobres e marginalizados,
dotando-os de apetrechos culturais e psicossociais para melhor enfrentar a
vida nas grandes cidades. (PRANDI, 1996, p.264)

O vínculo que Reginaldo mantém com a igreja não é um compromisso


formalizado. Ao mesmo tempo em que freqüenta o espaço religioso, não se identifica
como uma pessoa convertida. No entanto, a lógica do pertencimento faz com que
Reginaldo não se sinta só e vulnerável ao vício das drogas, e é envolvido por um
sentimento de esperança para reconstruir sua vida. Isso nos faz pensar que as curas e
outros benefícios obtidos na igreja não acontecem apenas entre os membros
convertidos. Essa transitoriedade gera a possibilidade de a pessoa freqüentar a igreja
por um período de tempo determinado, o que o torna um membro flutuante, categoria
analisada por Bonfatti (2000).
O autor analisa a categoria membro flutuante baseado no fato de que os
membros convertidos estabelecem um compromisso com a igreja, enquanto que o
membro flutuante está de forma passageira, podendo ser de outras denominações
Evangélicas ou do Catolicismo, da Umbanda, do Espiritismo Kardecista e do
Candomblé (Bonfatti, 2000). É característico da matriz religiosa brasileira o
sincretismo, que permite o trânsito em diversos espaços religiosos. No caso de

1
Reginaldo, que se insere na categoria de membro flutuante, buscou a Igreja Universal
para se libertar do vício das drogas. Entretanto, se fez notar como um membro da
IURD, pois foi assim que eu o identifiquei: quando o vi trazendo um livro da Igreja
Universal. Ele cita diferenças que caracterizam o modo de ser de uma pessoa
convertida:
“Uma pessoa convertida não fuma, não bebe, fica sempre em
oração, a maior parte do tempo orando, fica falando de Deus o
tempo todo. Eu não sou assim.” (Reginaldo).
Já a conversão de Francisco à religião Evangélica permitiu que se
construísse um espaço de representações, que mesmo sendo muito sofrido, é dotado de
significações. Francisco concentrou sua busca na cura da esquizofrenia, mas a sensação
de pertencer a um núcleo religioso, o faz se sentir confortado, o que é percebido na sua
fala, ao expressar suas idéias, as quais sempre são permeadas por conteúdos religiosos.
Hoje ele freqüenta uma Igreja Pentecostal de outra denominação. De certa forma,
aprendeu a conviver com o sofrimento psíquico: “Eu sou uma pessoa esquizofrênica,
mas eu posso ser curado da esquizofrenia dentro da minha igreja”.
Francisco leva para a sua vida elementos religiosos que norteiam, por
exemplo, seu relacionamento conjugal. Embora esteja feliz com sua companheira,
considera que sua vida conjugal está em pecado; se sente culpado por não ser casado
com sua namorada. Seu relato a seguir confirma esse conflito:
“A esquizofrenia é um sentimento que a pessoa adulta traz de
criança, é um sentimento de auto-culpa. Todo esquizofrênico se
sente culpado porque ele nunca ouviu um sim. A palavra não
acabou me destruindo” (Francisco).
Intencionalidade ou não a questão é que a pessoa convertida encontra o
sentido que procurava pra reordenar o caos provocado pelas dificuldades e por um
universo investido de miséria, descontentamento e fortes elementos culturais reforçados
pela nossa matriz religiosa extremamente sincrética.
Cura
A cura é outro elemento determinante, constante no universo Pentecostal. A
pessoa que procura a igreja nos momentos difíceis da vida busca retomar a estabilidade,
que pode ser compreendida aqui como cura. Ao falarmos em cura no pentecostalismo,
nos vem a imagem já criada de que esse universo é demarcado por duas forças
antagônicas: o bem e o mal. O que nos faz pensar que a cura é compreendida nesse

1
espaço como o bem vencendo o mal em uma batalha religiosa permeada por emoção e
muita expectativa (CÉSAR, 1992; BONFATTI, 2000). O resgate da normalidade, a cura
de uma doença diagnosticada como incurável, as constantes brigas familiares, os
parentes dependentes de drogas e álcool, são males que as pessoas buscam combater na
igreja. Ao levar para a igreja todas essas experiências sofridas, as pessoas esperam
assistir a algo forte, que represente simbolicamente o mal sendo vencido e a benção
alcançada.
Reginaldo acredita que se livrará das drogas fazendo a Corrente da
Libertação:
“Sexta-feira é a corrente da libertação e terça-feira é a união
pela família. Eu acredito que a voz pode sumir, através desse
culto de libertação, eu acredito que Jesus vai operar e vai fazer
com que essa voz suma, eu acredito” (Reginaldo).
Francisco, após ter percorrido vários espaços religiosos, nos conta a sua
experiência em um culto na Igreja Assembléia de Deus, uma das denominações do
pentecostalismo; “foi uma experiência muito ruim, porque batia com a minha própria
consciência”. Ele relata ainda que se sentia confuso diante da gritaria dos cultos e das
sessões de exorcismo que presenciou na igreja:
“Eles pegam as pessoas pelos cabelos como se tivessem
pegando um bicho. Eles puxam a pessoa que vai manifestar o
espírito ruim, a entidade e seguram a pessoa e conversam com o
demônio” (Francisco).
O incômodo por ter presenciado alguns cultos nessa igreja causou em
Francisco diversas inquietações, principalmente relativas ao uso do espaço religioso e
do conteúdo sincrético dos cultos Pentecostais. Francisco faz uma comparação entre o
que chama de espiritismo e a Igreja Pentecostal:
“Já a Igreja Pentecostal não usa o branco, eles usam a gritaria,
o sai, sai, sai. E aquilo ali vai entrando na cabeça das pessoas,
e os espíritos das trevas se apossam daquelas pessoas. E essas
pessoas ouvem vozes, vêem vultos, realmente elas vêem mesmo,
porque aquilo ali é a atuação do demônio” (Francisco).

Mais uma vez Francisco relata seu sentimento daquela profusão de gritos em
línguas estranhas que eram pronunciadas e que também falou em línguas: “Essas

1
línguas, são línguas que eles recebem, são uma espécie de espiritismo; eu já falei, é
uma coisa que não é agradável”. Além disso, comenta a participação do pastor como o
grande incentivador daquele ritual, admitindo existir uma atmosfera que envolve e
excita quem está assistindo ao culto: “Até uma criança sabe que esse tipo de língua que
a pessoa recebe, ou está excitado, pelo movimento, pelo murmurinho, pelo barulho”.
Esses elementos são determinantes da nossa matriz religiosa sincrética,
conceito trazido para discussão por Bittencourt Filho apud Bonfatti (2000, p.57), que
nos fala de um substrato religioso cultural, que se apropria e incorpora-se ao
inconsciente e consciente coletivos.

CONCLUSÃO

Tentamos demonstrar alguns elementos que compõem o universo


Pentecostal. A emoção que perpassa o culto transforma o indivíduo em alguém que é
capaz de orar e produzir algo através disso. A emoção e o acolhimento que as pessoas
buscam e compartilham nas igrejas é o que as motiva a continuar freqüentando os
espaços religiosos. Há um momento inexplicável que é o grande atrativo da Igreja
Pentecostal e independe da manipulação dos pastores na condução do culto. A emoção,
a glossolalia, a presença do Espírito Santo, são características marcantes do culto
Pentecostal onde se “renovam as forças”.
O universo Pentecostal tem a peculiaridade de aceitar todos que chegam.
Exemplo disso é o grande número de alcoolistas, usuários de drogas que se convertem.
A religião Pentecostal lida com experiências concretas: quem se converte passa a ter
maior gerência sobre sua vida, o dinheiro passa a sobrar mais, os filhos seguem o
caminho certo, o marido pára de beber. No entanto, César (1992, p.7) nos convida a
uma reflexão:
[...] é fato que o número de conversões cresce dia a dia e as estratégias de
sobrevivência destas novas criaturas contam com algo mais do que uma simples
contabilidade ou uma propensão para cortar gastos com vícios, mulheres e outras
coisas do mundo. (CÉSAR,1992, p.7)

Tudo isso nos permite inferir que o pentecostalismo lida com o cotidiano das
classes populares como nenhum outro sistema religioso conseguiu alcançar.

1
E o que falar no caso do sofrimento psíquico? Talvez a lógica da
sobrevivência seja a mesma, acrescida da característica da doença mental, que é
abstrata, diagnosticada principalmente pelo relato e pela história de vida da pessoa que
sofre. Por estar na esfera da percepção e da subjetividade, o sofrimento psíquico não se
permite ver e tocar, o que faz com que as pessoas busquem algo concreto, que faça a
diferença em suas vidas. Acreditamos que a religiosidade atue como um dos vários
núcleos polifônicos utilizados pelas pessoas para expressar uma forma de dar sentido à
vida, principalmente diante da miséria e do desamparo.
O território da vida abrange a dimensão religiosa da vida do indivíduo e o
território da saúde mental abrange o espaço da religião, mesmo que ainda não se dê
conta disso. No entanto, nos deparamos cada vez mais com as trajetórias terapêuticas
territorializadas e sistematizadas a partir do discurso religioso e que muitas vezes nós,
profissionais de saúde mental, o desvalorizamos em detrimento de uma lógica
racionalizada.
Espera-se que essa articulação de conceitos possa enriquecer a prática dos
profissionais da saúde mental, uma vez que o momento é de discussão sobre a
necessidade de mudanças no enfoque das políticas públicas, para que sejam centradas
no acolhimento e no reforço das redes sociais.

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Submissão: junho de 2007


Aprovação: outubro de 2007

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