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Do Livro:

DARWIN, Charles. A Origem do Homem e a Seleção Sexual. Tradução Eugênio Amado.


Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2004. – Capítulo V, PP. 108-115.

CAPÍTULO V

DO DESENVOLVIMENTO DAS FACULDADES


INTELECTUAIS E MORAIS DURANTE AS
ERAS PRIMITIVAS E A CIVILIZADA

O progresso dos poderes intelectuais através da seleção natural — Im-


portância da imitação — faculdades sociais e morais — Seu desenvolvi-
mento em âmbito tribal — Até que ponto a seleção natural atua nas nações
civilizadas - Prova de que as nações civilizadas já foram bárbaras.

O
s assuntos a serem discutidos neste capítulo são do maior interesse,
mas creio que os tratei de maneira imperfeita e fragmentária. Wallace,
num admirável artigo ao qual já me referi!, afirma que o homem,
após ter adquirido parte das faculdades morais e intelectuais que o
distinguem dos animais inferiores, teria estado propenso a ter sua estrutura
corporal modificada através da seleção natural, ou por qualquer outro meio,
já que está capacitado, através de suas faculdades mentais, "a conservar
harmonicamente seu corpo inalterado vivendo num universo em constante
mutação".
O ser humano possui grande capacidade de adaptar seus hábitos às novas
condições de vida. Inventa armas, instrumentos e vários estratagemas para
conseguir alimento e defender-se. Quando migra para uma região de clima
mais frio, usa agasalhos, constrói abrigos, produz fogo, com cuja ajuda
cozinha alimentos que, se deixados crus, seriam indigestos. Ajuda seus
companheiros de diversos modos e toma precauções no tocante às possíveis
eventualidades. Já em eras remotas praticou algum tipo de divisão do
trabalho. Os animais inferiores, por outro lado, devem ter sua estrutura
corporal modificada, a fim de sobreviverem sob condições grandemente
alteradas. Têm de se tornar mais fortes, ou adquirir dentes e garras mais
eficazes, para defender-se de novos inimigos, ou diminuir de tamanho para
escapar dos perigos e de serem descobertos. Quando migram para climas frios,
ganham pêlos mais bastos ou alteram sua constituição interna. Se não
conseguem modificar-se, acabam por extinguir-se.
Ocorre coisa bem diferente, como com justiça insiste Wallace, com
relação às faculdades intelectuais e morais do homem. Estas são variáveis, e
temos toda razão de

I "Antropological Review". mai/1868. p. CLVIII.

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acreditar que tendem a ser hereditárias. Por conseguinte, se elas fossem outrora de
grande importância para o homem primitivo e para seus ancestrais simiescos, teriam
sido aperfeiçoadas ou transformadas com a ajuda da seleção natural.
Acerca da grande importância das faculdades intelectuais, não pode haver dúvi-
da, pois o homem deve principalmente a elas sua posição preeminente no mundo.
Podemos ver que, nos estados mais precários da sociedade, os indivíduos mais saga-
zes, aqueles que inventaram e usaram as melhores armas ou armadilhas, e que foram
mais hábeis em se defenderem, são os que procriam em maior número. As tribos que
possuem o maior número de pessoas assim dotadas aumentam em número e
suplantam as outras. Os números dependem basicamente dos meios de
subsistência, que por sua vez dependem em parte das condições físicas do lugar,
conquanto em grau bem menor que das técnicas aí praticadas. À medida que a tribo
aumenta numericamente e conquista mais vitórias, ela cresce ainda mais pela
absorção de outras tribos A estatura e força dos homens de uma tribo também são
importantes para seu sucesso, e este depende em parte da natureza e quantidade do
alimento que a tribo tem condições de obter. Na Europa, os homens da Idade do
Bronze foram suplantados por uma raça mais poderosa, e, a julgar pelos punhos
de suas espadas, de mãos maiores, mas seu sucesso poderia ser devido também,
ainda que em grau menor, a sua superioridade quanto á técnica.
Tudo o que sabemos sobre os selvagens, ou que a seu respeito podemos deduzir
de suas tradições e antigos monumentos, já que sua história em geral é totalmente
esquecida pelos que posteriormente passaram a viver em seus territórios, mostra que,
desde os tempos mais remotos, as tribos residentes num local foram sendo suplanta-
das por outras. Vestígios de tribos extintas ou esquecidas têm sido descobertos em
diversas regiões civilizadas da Terra, nas planícies selvagens da América e nas ilhas
isoladas do Pacífico. Nos dias de hoje, nações civilizadas estão por toda parte su-
plantando as bárbaras, exceto onde o clima opõe uma barreira mortal, e elas são bem
sucedidas, principalmente, embora não exclusivamente, em razão de suas técnicas,
que são produto do intelecto. Por conseguinte, é altamente provável que, no caso do
homem, as faculdades intelectuais tenham sido gradualmente aperfeiçoadas através
da seleção natural, e esta conclusão é suficiente para o nosso propósito.
Indubitavelmente seria bem interessante traçar o desenvolvimento de cada faculdade
isolada, desde o estado em que se encontra nos animais inferiores até aquele que
chegou a atingir no homem, mas faltam-me capacidade e conhecimento para permitir
essa tentativa.
Cabe supor que, tão logo os ancestrais do homem se tornaram sociais (o que
provavelmente deve ter ocorrido num período bem remoto), o progresso das facul-

2. Depois de certo tempo, as pessoas ou as tribos absorvidas por outra tribo acreditam descender dos mesmos
antepassados, conforme observou Sir Henry Maine ("A Lei nos tempos antigo". 1861. p 131). 3. Morlot.
"Soc. Vaud. Sc Nat". 1860. p 294

l09
dades intelectuais há de ter sido ajudado e modificado de maneira marcante, da qual
somente vemos alguns vestígios nos animais inferiores, a saber: através do princípio de
imitação, juntamente com a razão e a experiência. Os macacos são muito propensos
a imitar, bem como os selvagens mais primitivos, e o simples fato mencionado há
pouco de que, passado algum tempo, os animais param de cair no mesmo tipo de
armadilha, mostra que eles aprendem pela experiência, sabendo imitar
as precauções dos outros. Ora, se algum membro da tribo dotado de maior
sagacidade tivesse inventado uma nova armadilha, uma nova arma, ou outro meio
qualquer de ataque e defesa, o simples interesse, sem ajuda de grande poder de
raciocínio, levaria os outros membros do grupo a imitá-lo, e todos iriam lucrar com
isso.
A prática habitual de cada nova técnica deve igualmente, ao menos em ligeiro
grau, reforçar o intelecto. Se a nova invenção for importante, a tribo aumentará em
número, espalhar-se-á e haverá de suplantar as outras. Numa tribo que desse modo
se tornou mais numerosa, sempre haveria maior chance do surgimento de outros indi-
víduos mais capazes e dotados de maior capacidade inventiva. Se tais indivíduos ge-
rarem fílhos que herdem sua superioridade mental, a chance do nascimento de outros
por certo mais engenhosos seria ainda maior, especialmente em se tratando de uma
tribo pequena. Mesmo que ele não tivesse filhos, seus consangúíneos viveriam naquela
tribo, e, conforme os agricultores tantas vezes já comprovaram4, bastaria isso para
que, por meio da preservação dos caracteres e dos cruzamentos dos membros daquela
família, as características desejadas pudessem repetir-se entre seus descendentes.
Voltemos agora a considerar as faculdades sociais e morais. A fim de que o ho-
mem primitivo, ou seus ancestrais simiescos, se tivessem tomado sociais, eles devem
ter adquirido os mesmos sentimentos instintivos que impelem outros animais a viver
em grupo, ostentando indubitavelmente a mesma disposição geral. Devem ter-se sen-
tido inquietos quando separados de seus camaradas, por quem certamente nutriam
algum tipo de afeição; devem ter-se protegido mutuamente do perigo e se ajudado em
caso de defesa ou ataque. Tudo isso implica em algum grau de solidariedade, fidelida-
de e coragem.
Tais qualidades sociais, cuja importância fundamental para os animais inferiores
não é questionada por quem quer que seja, foram sem dúvida adquiridas pelos ances-
trais do homem de maneira similar, isso é, através da seleção natural, auxiliada pelo
hábito adquirido. Quando duas tribos de homens primitivos, de forças equivalentes,
vivendo na mesma região, batalhavam entre si, caso uma delas incluísse um número
maior de indivíduos corajosos, solidários e fiéis, sempre prontos a alertar os compa-
nheiros de algum perigo constatado e a se defender mutuamente, essa tribo tenderia a
ser mais bem sucedida no combate e derrotar a outra.
É fácil imaginar qual não teria sido a importância da fidelidade e da coragem nas
incessantes guerras travadas pelos selvagens! A vantagem que soldados disciplinados

4 Forneci vários exemplos em meu livro "Variabilidade dos animais domésticos, vol II. à p. 196.

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têm sobre hordas indisciplinadas provém principalmente da confiança que
cada qual deposita em seus camaradas.
A obediência, como Bagehot mostrou5, possui um valor imenso, na
mesma medida em que qualquer forma de governo é sempre melhor que
nenhuma. Pessoas egoístas e propensas a rixas não podem coexistir juntas, e
onde não existe coesão, nada se pode realizar. Uma tribo que possua essas
qualidades em alto grau tenderá a espalhar-se e subjugar as outras, mas com
o decorrer do tempo deverá por seu turno, a julgar pela lição da História, ser
superada por alguma outra tribo ainda mais bem dotada do que ela. Assim,
as qualidades sociais e morais tenderão lentamente a progredir e espalhar-se
pelo mundo afora.
Pode-se perguntar, porém, como é que, dentro do âmbito de uma tribo,
numerosos indivíduos vieram a tornar-se dotados dessas qualidades sociais e
morais, e como teria sido alcançado o padrão de excelência. É extremamente
duvidoso que os descendentes de pais mais solidários e benevolentes, ou
daqueles que foram mais leais a seus camaradas, seriam mais numerosos que
os dos pais egoístas e pérfidos dessa mesma tribo. Aqueles que, a trair seus
camaradas, antes não hesitariam em sacrificar a própria vida, conforme
tantas vezes já se constatou entre os selvagens, com freqüência morreram
antes de deixar descendentes que herdassem sua natureza nobre. Os bravos
que não receiam seguir para a frente de batalha ou arriscar a vida de peito
aberto correm maior risco de morrer que os outros. Por conseguinte, parece
pouco possível (tendo em mente que não estamos tratando aqui da vitória de
uma tribo sobre outra) que o número de homens dotados de tais virtudes, ou
que o padrão de excelência do caráter individual, possa ser aumentado
através da seleção natural, ou seja, como resultado da sobrevivência dos
mais aptos.
Embora as circunstâncias que levam a um aumento do número de homens
assim dotados sejam complexas demais para que as acompanhemos
claramente, podemos esquematízar alguns de seus prováveis passos. Em
primeiro lugar, à medida que os poderes de raciocínio e previdência dos
indivíduos vão-se aperfeiçoando, cada qual irá aprender, com base em sua
experiência, que, se porventura ajudar seus companheiros, certamente
haverá de receber algum tipo de ajuda como forma de retribuição. Por esse
motivo um tanto mesquinho, ele poderá adquirir o hábito de ajudar seus
companheiros e de executar ações generosas, o que por certo haverá de
reforçar seu sentimento de solidariedade, aquele que confere o primeiro
impulso às nobres ações. Ademais, quando os hábitos são seguidos durante
muitas gerações, tendem a tornar-se hereditários.
Mas há um outro estímulo que concorre ainda mais ponderavelmente
para o desenvolvimento das virtudes sociais: o louvor ou a censura do
próximo. A satisfação sentida pela aprovação e o medo da condenação,
assim como o ato de externar nosso elogio ou nossa censura, são devidos
primariamente, como vimos num capítulo

5 Conferir uma série de artigos «obre Física e Política na "Fortnoghtly Review", edições de nov/1867, 1/4/1868
e I/7/I869. os quais foram posteriormente publicados em separatas.

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precedente, ao instinto de solidariedade, que foi sem dúvida adquirido
originalmente, como aliás o foram todos os outros instintos, através da
seleção natural. Em que período remoto teriam os ancestrais do homem, no
decurso de seu desenvolvimento, passado a ser impelidos ou contidos pelo
elogio ou pela censura de seus companheiros, é coisa que ignoramos. Mas
sabe-se que até mesmo os cães apreciam o encorajamento e o elogio, e ficam
constrangidos com a censura. Os selvagens, mesmo os mais primitivos, nutrem
o sentimento de glória, como o demonstram claramente pelo fato de
preservarem os troféus de suas proezas, pelo costume que têm de se gabar
vaidosamente, e pelo seu extremo cuidado quanto à aparência pessoal e ao uso
de adornos. Com efeito, tais hábitos não teriam o menor sentido, caso eles não
sentissem respeito pela opinião de seus camaradas.
Eles certamente sentem vergonha quando quebram suas próprias regras:
todavia, não há quem possa dizer qual seria a extensão de seu remorso.
Surpreendeu-me não ter podido registrar qualquer evidência desse sentimento
entre os selvagens, e também Sir John Lubbock confessa não saber de nenhum
exemplo passível de atestá-lo6. Não obstante, se varrermos de nossas mentes
todos os casos apresentados em romances e peças teatrais, ou as confissões
em leito de morte feitas aos sacerdotes, duvido se muitos de nós já alguma
vez testemunhamos efetivamente um caso de remorso, embora possamos
muitas vezes sentir vergonha ou experimentar um sentimento de contrição por
ofensas menores. O selvagem que prefere sacrificar a vida a trair sua tribo, ou
que prefere ir preso a quebrar a palavra7, será que não sentiria remorso no
íntimo de seu coração, ainda que o esconda, se tivesse falhado num dever
que considera sagrado?
Podemos concluir, portanto, que o homem primitivo, num período bastante
remoto, deve ter sido influenciado pelo elogio e censura de seus
companheiros. É óbvio que os indivíduos da tribo aprovariam a conduta que,
segundo seu entendimento, serviria ao bem de todos, reprovando a que lhes
parecesse má. "Faze o bem ao próximo, assim como gostarias de que o
próximo agisse com relação a ti" — eis aí a pedra basilar da moralidade. Por
conseguinte, provavelmente não seria exagerado afirmar que. desde os
tempos remotos, deve ter sido extremamente importante para o homem o amor
ao elogio e o horror à censura. Um indivíduo que tenha sacrificado sua vida
pelo bem do próximo, movido não por algum sentimento profundo e
instintivo, mas tão-somente pelo desejo de glória, poderia, só com seu
exemplo, provocar esse mesmo desejo nos seus camaradas, levando-os a realizar
gestos nobres em decorrência do sentimento de admiração. Desse modo, poderá
ele fazer a sua tribo um bem maior do que o faria pelo simples fato de gerar
filhos que talvez herdassem seu caráter heróico.
Com o desenvolvimento da experiência e da razão, o homem passa a
prever as mais remotas conseqüências de suas ações. Assim, as virtudes que
produzem satisfa-

6. "Origem da civilização", 1870. p 265


7. Wallace apresenta alguns exemplos em sua obra "Contribuições à teoria da
seleção natural".

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ção pessoal, tais como a temperança, a castidade. etc., as quais, nos tempos passa-
dos, como já vimos, eram inteiramente desdenhadas, passam a ser estimuladas, che-
gando eventualmente a se tornar sagradas. Não preciso repetir o que já foi dito num
capítulo precedente acerca desse assunto altamente complexo, lembrando apenas
que nosso senso moral ou consciência teve sua origem remota nos instintos sociais;
mais tarde, passou a ser guiado em grande parte pela aprovação do próximo, e regido
pela razão e pelo interesse pessoal, até que, em tempos mais recentes, foi condiciona-
do por profundos sentimentos religiosos, e confirmado pela instrução e pelo hábito.
Não podemos nos esquecer de que, embora um alto padrão de moralidade forne-
ça pequena ou nula vantagem a cada indivíduo e a seus filhos sobre os outros homens
de uma tribo, a elevação desse padrão e o aumento do número de homens dotados de
caráter nobre certamente haverão de acarretar uma enorme vantagem para essa tribo
em relação a outra. Não há dúvida de que uma tribo que possuísse muitos indivíduos
dotados em alto grau do senso de patriotismo, de fidelidade, de obediência, de cora-
gem e de solidariedade, todos sempre prontos a se ajudarem entre si e a se sacrifica-
rem pelo bem comum, seria vitoriosa sobre a maior parte das outras tribos, num claro
exemplo do que constituiria a seleção natural. Em todos os tempos e em todo o mun-
do, tribos suplantaram tribos, e como a moralidade é um dos elementos ponderáveis
desse sucesso, um padrão de moralidade e um certo número de homens bem dotados
tendem a se instalar e crescer em toda parte. Entretanto, é muito difícil encontrar a
explicação dos motivos que teriam levado uma determinada tribo, e não outra a gal-
gar os degraus do sucesso e da civilização.
Muitos selvagens estão ainda hoje na mesma condição em que se encontravam
quando de seu descobrimento, centenas de anos atrás. Como Bagehot notou, estamos
acostumados a encarar o progresso como a regra geral da sociedade humana, mas a
História não dá respaldo a tal idéia. Os antigos não pensavam assim, e o mesmo se
pode dizer dos orientais de hoje em dia. De acordo com outra alta autoridade,
Maine8, "a maioria da Humanidade jamais demonstrou a mínima partícula de
desejo de reforçar essas instituições civis ". O progresso parece depender do
concurso simultâneo de muitas condições favoráveis, demasiado complexas para
que se permita seu acompanhamento. Mas já se observou muitas vezes que um clima
frio pode ser altamente favorável, senão mesmo indispensável, à implantação da
indústria e ao desenvolvimento das artes. Pressionados pela necessidade, os
esquimós fizeram várias invenções engenhosas, mas seu clima é rigoroso demais
para permitir um progresso contínuo. Já a vida nômade, seja através das vastas
planícies, das densas florestas dos trópicos, ou ao longo dos extensos e ermos litorais,
tem sempre se mostrado altamente improdutiva.

8. Sír Henry Maine. "A Lei nos temos antigos". 1861. p. 22. Para conferir as observações de Bafehot. consulte-se
a "Fortnightly Review" de 1/4/1868, p. 452.

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Quando estudei os selvagens da Terra do Fogo, descobri que a posse de uma
propriedade, de moradia fixa e a união de várias famílias sob as ordens de um chefe
eram os requisitos indispensáveis para o estabelecimento da civilização. Tais hábitos
decorrem quase sempre da prática de se cultivar o solo, e a adoção dessa prática,
conforme demonstrei em outra obra, costuma resultar de acidentes fortuitos, tais como
a queda das sementes de uma árvore frutífera num monte de detritos e a subseqüente
produção de uma variedade excepcional. Seja como for, até o presente ainda não se
encontrou a resposta para a questão relativa ao início do processo de civilização.
Até que ponto a seleção natural atua nas nações civilizadas — Nestes
últimos capítulos tenho considerado o progresso alcançado pelo homem a partir de
uma condição semi-humana até alcançar o estado atual dos nossos selvagens. Penso
que seria útil acrescentar a seguir algumas considerações acerca da atuação da
seleção natural sobre as nações civilizadas. Esse assunto foi habilmente discutido por
W. R. Greg9, e anteriormente por Wallace e Galton10. A maioria de minhas
observações foi extraída desses três autores.
Entre os selvagens, os indivíduos fracos de corpo ou de mente são logo elimina-
dos, enquanto que os sobreviventes exibem geralmente uma saúde vigorosa. Já no
que se refere a nós outros, homens civilizados, fazemos o possível para combater o
processo de eliminação, construindo asilos para os deficientes mentais, os aleijados,
os doentes, e instituindo leis de assistência aos pobres, sendo que nossos médicos
lançam mão de todos os seus recursos para salvar as vidas de qualquer semelhante
que esteja em risco de morrer. Há razão para se acreditar que a vacinação em massa
tenha preservado milhares de pessoas de constituição fraca, que sem ela teriam su-
cumbido à varíola. Devido a coisas como essa, os membros fracos das sociedades
civilizadas acabam por propagar seu tipo. Ninguém que tenha empreendido o cruza-
mento de animais domésticos duvida de que tal atitude pode ser altamente prejudicial
à raça do homem. É surpreendente como um simples descuido ou uma providência
mal tomada pode acarretar a degeneração de uma raça doméstica! Com efeito, salvo
no que se refere ao homem, dificilmente haveria alguém tão ignorante que incentivas-
se, ou mesmo permitisse, o cruzamento de seus piores exemplares...
A ajuda que nos sentimos impelidos a prestar aos desassistidos decorre de maneira
casual do instinto de solidariedade, originalmente adquirido como parte dos instintos
sociais, mas subseqüentemente tornado, conforme mostramos, mais terno e mais
amplamente difundido. Tampouco poderíamos tolher nossa solidariedade, mesmo se
tal atitude nos fosse ditada pela razão pura e simples, sem prejudicar a parte mais
nobre de nossa natureza. O cirurgião pode sufocar seu sentimento enquanto realiza

9. "Fraser´s Magazine", set/1868. p353. Esse artigo parece ter impressionado várias pessoas e dado origem aos
dois notáveis ensaios e uma réplica publicados no "Spectator" de 3/10 e 17/10 de 1868. Foi também discutido no
"(Q. Journal of Medical Science" de 1869. à p 152; por Lawson Tait. no "Dublim Q. Journal of Medical Science" de
fev/1860. e por E. Ray Lankester, em sua "Longevidade comparada". 1870. p 128 Considerações semelhantes
já haviam sido publicadas no "Australasian" de 11/7/1867 Vali-me de várias idéias defendidas por esses autores.
10 "O gênio hereditário". 1870. pp 132-140.

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uma operação, pois sabe que está agindo para o bem do paciente; nós, porém, se
negligenciarmos intencionalmente os fracos e desvalidos, mesmo tendo em vista um
benefício eventual, sentir-nos-emos muito mal. Daí aceitarmos sem queixa os
indubitavelmente maus efeitos da sobrevivência e reprodução dos fracos, o que não
nos impede de termos consciência da necessidade de criar algum tipo de obstáculo à
sua propagação, impedindo que os membros mais débeis e inferiores da sociedade se
casem de maneira tão liberada quanto os sadios. Esse obstáculo pode ir-se tornando
cada vez maior, até transformar-se numa efetiva proibição ao casamento e procriação
dos fracos de corpo ou mente, o que me parece constituir antes uma esperança que
uma possibilidade real.
Em todos os países civilizados, o homem acumula propriedades e as lega a seus
filhos. Desse modo. os habitantes desses países não largam simultaneamente na corri-
da rumo ao sucesso. Mas isso longe está de constituir um mal implacável, uma vez
que, se não houvesse concentrações de capital, as artes não poderiam
desenvolver-se, e é principalmente através do seu poder que as raças civilizadas
se espalham e continuam até hoje estendendo seu raio de influência, impondo-se
pouco a pouco às raças inferiores. O acúmulo moderado de riquezas não interfere
com o processo de seleção. Quando um pobre enriquece, seus filhos empreendem
negócios ou assumem profissões nas quais há bastante competição, de modo que os
mais habilitados física e mentalmente acabam saindo-se melhor. A presença de uma
plêiade de homens instruídos que não precisam trabalhar para conseguir o pão de cada
dia é importante para uma nação, talvez até mesmo essencial, já que a eles compete a
totalidade do trabalho intelectual, sobre o qual se assenta o progresso material, isso sem
mencionar outros benefícios.

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Texto Escaneado por Gilberto Miranda Júnior para o Portal Philosophia –


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Do Livro:

DARWIN, Charles. A Origem do Homem e a Seleção Sexual. Tradução


Eugênio Amado. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2004. – Capítulo V, PP.
108-115.

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