Você está na página 1de 4

Crônica sobre o amor

Crônica sobre o amor

Desde que o mundo é mundo, o amor existe. Ou melhor, conforme o ponto de vista do
leitor e de sua crença religiosa, o mundo só existe porque havia amor. Amor que existia antes
de tudo, o amor que existia sobre o nada e que deste nada fez tudo. Um tanto confuso, parece
em princípio, mas mais fácil do que se pensa. Aliás, o amor é de fácil entendimento. É de fácil
acesso. Somos nós que o complicamos.
No entanto, esta crônica não fala do amor anterior à criação do mundo. Também não
versa sobre o amor maternal, ou paternal ou outra forma de amor familiar. Nem mesmo fala
sobre o amor romântico, carnal, platônico...o amor dos poetas. O amor de que falo aqui é o que
se estabeleceu entre mim e um serzinho de quatro patas, com focinho, rabo curto e um coração
capaz de me amar incondicionalmente.
Esta história de amor se inicia numa visita a uma feira de filhotes, num sábado entre
final de outubro e início de novembro de 2008. Sempre me encantei, e ainda me encanto, com
filhotes, seja de que animal for, mas me encanto mais ainda com filhotes de cachorro. E, vez ou
outra, saía sábado pela manhã dar uma volta numa loja de produtos veterinários e agrícolas que
mantinha uma feira de filhotes, só para observar e me encantar. Só que desta vez o encanto
ultrapassou o limite do somente olhar...
Desde criança eu convivi com cachorros em casa: o Fiel, que faleceu quando eu era ainda
muito pequena. Depois meu pai ganhou a Kita, uma mistura de vira-latas com o vulgo
linguicinha. Ela morreu envenenada quando eu estava com uns nove anos de idade. Depois
minha irmã adotou a Lady, com certeza era uma mistura de vira-latas com perdigueiro porque
quando sentia um cheiro diferente posicionava-se como um cão de caça igual aos que a gente
vê na televisão. Logo que ela morreu, com seus doze anos de idade, veio o Nick, depois o Lipi,
mas nenhum eu podia chamar de meu.
Quando, no sábado a que me referi, cheguei na feira e fui passando pelos filhotes
expostos, me encantei mais do que o normal com os filhotes de Fox Terrier pelo duro. Eram as
coisinhas mais fofas deste mundo. Eles me trouxeram a lembrança do Cachorrinho Samba,
personagem de livros infanto-juvenis da Maria José Dupré. Se bem que pesquisando, dizem que
o cachorrinho Samba é Fox paulistinha, mas ainda acho que está mais para Terrier. Passeei por
toda a feira, mas voltei até os Fox Terrier e peguei o contato do criador. Fui embora.
Passei a semana pesquisando sobre a raça, que tamanho teria, conversei com meu então
marido (tínhamos pouco mais de um ano de casados) e marquei para que na sexta-feira o criador
levasse os filhotes machos para eu escolher. Estava certa, queria um cachorrinho para chamar
de meu.

Adriana Soczek Sampaio


Crônica sobre o amor

Ele levou os dois bebês fox e os soltou na sala do meu apartamento. Um deles saiu
explorando o ambiente e pensei: este é muito independente. E o outro veio até mim, me cheirou
e lambeu minha mão. Não tive dúvidas, esse havia me escolhido e era com ele que queria ficar.
Levei anos para compreender esta escolha dele. Hoje sei que foi o cheiro de calabresa que estava
na minha mão que o ajudou a me escolher. Sorrio com esta possibilidade ser verdadeira.
Enfim, naquela sexta-feira à noite começou nossa história de amor, mesmo que
intermediada pelo cheiro de calabresa. O nome escolhido foi Frederico, mas mais conhecido
como Fred.
Confesso que ele era um cachorrinho arteiro. Estragou um par de chinelos, minhas
almofadas, um pedaço do rodapé na cozinha e o braço da cadeira da sala de estar. Lembro bem
de quando aprendeu a abrir a porta sanfonada da cozinha e fugir para a sala e, chegando em
casa, o flagrei com uma almofada na boca, sendo chacoalhada e voando espuma para tudo
quanto era lado. Achei graça, não briguei.
Nosso amor só foi crescendo e, após dormir na cama comigo em duas noites frias, nunca
mais dormiu sozinho. Sempre junto comigo na cama e isso me rendeu algumas mordidas nos
dedos dos pés, quando desavisada eu me mexia rápido demais e ele entendia que devia me
proteger e “atacava” o possível invasor. Neste caso, meu pé.
Em 2009 adoeci seriamente. Uma dor de cabeça infinita que não diminuía nem com
medicação na veia. Foram noventa dias de sofrimento. Eu imaginava que iria morrer, mesmo
com os exames não indicando nada. Porém, nada fazia a dor diminuir. Eu saía trabalhar porque
não tinha como ficar em casa, mas quando retornava, era o Fred que me fazia companhia. Eu
ligava a televisão, assistia a seriados no canal da Disney (eu não conseguia raciocinar muito além
de um seriado infanto-juvenil), e ele se aninhava no meu colo, sendo o melhor parceiro que eu
podia ter.
Sempre que fico triste, ele vem ficar pertinho de mim. Se choro, coloca as patinhas ao
redor da minha cabeça e lambe as lágrimas. Temos uma cumplicidade que extrapola o
entendimento. Já teve vezes em ambos tivemos diarreia no mesmo dia, outras vezes intestino
prendeu... ou acabamos vomitando sem nem comer a mesma comida (geralmente ele belisca
comida de humanos, mas não sou dada a comer ração).
Um pouco antes do Fred completar um ano de vida, fiz minha primeira viagem para fora
do país. Cortou o coração ter que o deixar num hotel, mas não tinha como ser diferente. Foi dos
meus braços que a moça o pegou para instalá-lo no pet. Ao retornar, fui toda empolgada busca-
lo. Estava nitidamente magoado comigo pois ficou exatas vinte e quatro horas sem olhar ou
interagir comigo. Sim. Eu o pegava no colo, olhava para ele e ele virava o focinho e desviava o

Adriana Soczek Sampaio


Crônica sobre o amor

olhar. Mas interagia com outras pessoas. Resumo: nas viagens seguintes nunca mais fui eu quem
o entregou no hotel.
Quando o veterinário o levou para ser castrado, meu coração foi castrado junto. Falei
para o veterinário que tinha muito medo da anestesia, porque a Lady morreu com uma quando
foi fazer cirurgia. Ele, todo prestativo, disse que assim que a cirurgia terminasse e o Fred se
recuperasse da anestesia, o traria de volta. Pouco tempo depois, o celular tocou e era o
veterinário. Como o combinado era o Fred ser trazido para casa assim que estivesse recuperado,
quando o celular tocou quase enfartei, pensando no pior. Mas era o veterinário avisando: o Fred
está bem e, assim que passar a anestesia, levo ele para casa. O veterinário foi muito prestativo,
mas para uma pessoa com medo, aquela ligação quase me levou ao infarto.
E, conforme os anos foram passando, nosso amor e cumplicidade só aumentavam. O
Fred poderia estar em qualquer lugar da casa que, era só escutar que eu sentei no sofá, e corria
deitar no meu colo. Eu ia para a mesa de trabalho digitar, ficava ele choramingando e puxando
meu braço com a patinha para ir para o sofá e ficar com ele. Algumas muitas vezes levava o
notebook junto. Quem disse que conseguia digitar? O Fred deitava no meu colo e apoiava a
cabeça sobre o teclado. O jeito era ficar curtindo meu amorzinho.
Noites de virada de ano eram um sufoco. O Fred tremia muito de medo dos fogos de
artifício. O que eu fazia? Como uma “mãe” cuidadosa pegava meu pequeno no colo, abraçava e
ficava dentro de casa, tentando buscar o lugar em que ele ficasse mais à vontade e ouvisse
menos os barulhos dos fogos. Ouvi algumas vezes pessoas me dizendo que estava perdendo a
virada por causa de “um cachorro”. Não! Estava escolhendo entre ver fogos de artifícios e cuidar
do meu pequeno amor incondicional. Se nos outros 364 dias do ano ele estava ali, ao meu lado,
sendo companheiro fiel e amoroso, por que eu não poderia abdicar de alguns minutos para ser
somente dele?
Não foram poucas as vezes em que fui cozinhar com ele no colo. Tipo uma criança
mesmo: as patas traseiras ao redor da minha cintura e as patas dianteiras, uma de cada lado do
meu pescoço. Certo dia de folga dirigi cerca de cem quilômetros para leva-lo conhecer a praia.
Certo período moramos em um condomínio com vários blocos, o que era bom porque
podia passear com ele sem precisar sair para a rua. No quarto andar de um dos blocos haviam
duas cadelas da raça shnauzer bastante barulhentas e que latiam muito quando eu passava com
o Fred. Quando elas latiam, ele apenas olhava na direção delas, virava o focinho e prosseguia
nosso passeio. Nos dias em que elas não estavam na janela, ele parava, latia até que elas
aparecessem na janela e latissem para ele. Neste momento ele virava o focinho e ia embora,
com a satisfação de ter obtido êxito em seu intento.

Adriana Soczek Sampaio


Crônica sobre o amor

O tempo passou e o Fred está com treze anos. A saúde está bem no geral, mas há pouco
mais de um ano ficou cego pela idade e agora está tendo muita dificuldade de caminhar por
causa das patas traseiras. Cai o tempo todo, preciso acordar de madrugada para levar o pote
com água até ele, para facilitar as coisas. Caminha muito devagar, não consegue erguer a pata
para fazer xixi, enfim, é o ciclo da vida finalizando.
Todos os dias do último ano tenho tentado ser o melhor para ele, assim como ele foi o
melhor para mim nestes trezes anos de vida. Nem sempre é fácil e, às vezes, na pressa do dia a
dia eu me estresso com algumas bagunças que ele faz. Mas peço perdão a ele, meu companheiro
de vida. Tenho que me preparar para o dia em que ele parta. Se choro enquanto escrevo esta
crônica? Sim e sim. E chorarei quando ele partir, assim como chorei quando o vi cego tentando
se guiar pelos caminhos já feitos antes com facilidade. E choro cada dia, quando vejo a
dificuldade em caminhar em linha reta ou em se manter em pé em alguns momentos.
Hoje, aqui em casa, somos apenas eu e ele. Muitas vezes não posso sair à noite porque
não posso deixa-lo sozinho. Isso me incomoda? De jeito algum, porque como nos disse um dia
O Pequeno Príncipe: “nos tornamos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos”1. A
saudade é o preço que terei que pagar, um dia, por amar o Fred. Meu único receio é de que ele
não saiba o quanto o amo e o quanto ele me ensinou. Aprendi com ele a ser mais paciente.
Aprendi sobre o amor incondicional. Aprendi a ser presença, mesmo na ausência. Entendi que
o amor não é egoísta, nós é que o somos. Com ele, aprendi também que algumas horas de sono
‘perdidas’ não são nada quando são gastas com quem a gente ama. E o amor tem disso. Mesmo
com o risco de perder alguém a quem se ama, o ele quem faz tudo valer a pena. Afinal, a vida
não seria a mesma sem o amor.

1
Referência à obra O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry.

Adriana Soczek Sampaio

Você também pode gostar