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Quimera existencial
Francimeire Leme

Quando minhas pupilas dormiram: era assim. Assim que eu via a vida. Não era à toa.
Somente. Era um vulcão ao contrário. As erupções eram internas. Internamente, eu as
sentia. Todos os dias. Todo momento. Sentia-as. E nada fazia para pará-las. Nada.
Tentava conviver com elas. Não eram tantas. Eram breves. Às vezes, eu gostava. Outras
(a maioria), queria que fossem embora. Elas me faziam sentir a vida. Sentir como é estar
respirando. Vivendo.

Minhas veias transbordavam erupções, conflitos, contradições, confusões, pensamentos


dispersos. Breves constantes emoções que me instigavam. Alimentavam minhas horas.
Meus dias. Os anos caminhavam ferozes, sentia na minha pele. Ela vibrava envelhecida,
branca, careca. Fraca. Meus poros estavam em sintonia com o tempo. Frágeis.

Lançavam-me olhares perdidos. Não me compreendiam. Eu, tampouco. Nada notavam,


nada encontravam. Nada. Cravaram-me os olhos como um felino, procurando.
Interrogava-me, onde estou? Dentro ou fora, deles? Sentia-os. Todos. Também
perdidos. Perdendo-se, uns aos outros.

Vagava pelas estradas. De rua a rua, caminhava. Olhava a tudo. As vozes cantantes e as
gritantes. Os passos, sim, os passos firmes e tranquilos. Eram doces, às vezes.
Cintilavam na aurora. Mas nada diziam. Ou não os compreendia, certamente.

Daqueles anos, o vazio continuava reinando. Invicto. De cada letra expressa. Sem dó.
Sem borrachas. Aquele vazio invadia, destrutivo. Estava no pé descalço dos andantes,
no dente de ouro do coronel, na conversa fiada. Estava na vida, destroçada.

Os pássaros soavam outro cantar. Mais agudo e dolorido. Sofriam. Também nada
compreendiam. Sobrevoavam perdidos. Confusos. Respiravam, em seus ninhos.
Reproduziam-se, ainda. Sem nada saber?
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Esquecia-me, mas o tempo transpirava. Vivia-se na roda-gigante. Na caixa de entrada.


A voz daqueles, ouvia-se. Atônitas e rápidas. Diziam algo, mas era tão breve que se
perdiam na sonoridade. Que vida. Qual vida. Temporalmente, fugaz.
Fingia-se cantar pelas portas vazias. Mas nada, de fato, alegrava-se. Era noite, opaca.
Com uma sirene, tocava-se. Tocava-se, mas nada se sentia. Na porta aberta escutava-se
outrora vazia. Os raios solares eram vagos e dispersos, mas ouvia-se.

Daquele tempo, o gemer daqueles dentes, arrepiava-me. Não pelas noites mal dormidas.
Mas pelos trincar atônito e feroz, daqueles felinos mal cuidados. Fugia, sempre. O
alimento era atroz, carne viva. Assustava-me, inconsistentemente.

Todavia, entrementes, vacilava. As contradições me tomavam. Eram devastadoras.


Sonhava em pesadelos. Os ombros debatiam-se. Camuflados naquele casulo em vida.
Agitavam-se, exasperados pelos suspiros alheios. Alheios ao existir daquela
vivênciassobrevivência.

Os pelos, sim, os pelos insistem em devorar-me. Breves nostalgias percorrendo as


lacunas íngremes. Estáticos e leves. Submergem a vida, entre nós. Insistem a cada
estação vibrar entre as peles, ociosamente.

Jamais escolhia, entre as ilusões, as quais crer. Acreditava, sem crer. Era uma crença
religiosa, viva. Lasciva d’água. Germinava nas relações opacas. Germinava nos meus
quereres mais impulsivos. Nas emoções mais salgadas e frias.

Quando dava por mim estava transbordando conflitos, agonias vãs. Sentia o vazio da
própria espécie. O vazio das sensações mais selvagens. Das ações mais tolas. Era o
modo. Sim, o modo. O modo como agia a tudo, a todos. E, sabia-se, que o modo estava
à moda.

Naquele pão expirava toda a minha essência. Era um trigo arrancado das vísceras da
Terra. Era o alimento daquela vida imunda. Daquele teatro sem fim. Não terminava,
nunca. Mesmo quando substituíam os atores. A peça continuava, rodopiando
lembranças.
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Diziam que era diferente. Aquele ser, só. Sim, diferente. Não se encaixava a ninguém.
Não se encontrava no cenário. Tinham dó. Dava pena. Uns suspiravam. Outros
gargalhavam. Era um espetáculo. Olhar a própria espécie. Olhar a própria cria. Mas
pariam, por todos os lados. Dia a dia.
Gesticulava-se, desordenadamente, ao observar o mundo. O seu mundo. Achava que o
seu era o do outro. E assim, o outro, o seu. Enrolava-se nesse e naquele mundo. Vivi
assim. Entremundos.

Na hora, embriagava-me sempre. Não por querer. Era por preguiça daquilo tudo.
Daqueles encontros casuais. Daquelas obrigatoriedades vis. Daqueles quadros estáticos
e impressionistas. Daquelas músicas incompreensíveis. Não se sabia. Mas era um ritual.
Viver.

As folhas no chão entregavam-me. O tempo me corroía, interiormente. Caminhar me


doía. A paciência vagava, longe. Distante, lembrava-me. Lembrava-me de quando tudo
fazia sentido. Tudo era tão leve, bonito e intenso. Que tempo. Envelheci tão rápido. Não
se passaram nem três dezenas de vã vivência.

Hibridamente, suspirava entre as paredes dos cômodos. Eram cômodos normais. De


lembranças frias. Sós. Sem seres vivos. Uma única espécie preenchia toda aquela
existência concreta.

Fogos. Inundava-me por todo o corpo. Suspirava um calor humano profundo. Enchia
toda aquel’alma. Toda. De ilusões perversas a inquietudes maduras. Ao amanhecer,
acordava suspirando o vento da janela entreaberta. Da noite aguda.

Os livros me embriagavam. A felicidade com começo e fim. Era uma ficção


embriagante. Meus olhos se excitavam ao virar aquelas páginas centenárias. Aqueles
olhares, daqueles templos. Passado e presente me transcendiam. A existência tornava-se
parte de outrora. Perdia-me nos tempos, entreletras.

Virtualidade, sempre fora uma mentira. O que queríamos mais, não é. Projeções de
vidas, palavras e emoções. Nada real. Um misto de vontade e hipocrisia. De fantasia e
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meias verdades. Uma falácia contemporânea. Uma rede de estranhos cultuando


estranhezas de uma espécie medíocre.

Gotas agonizantes transpiram em mim. Suor da minha existência. Espasmos de um ser


em uma sociedade enferma. Doentia. Aprisionada em quimeras individuais. Vazia de
sonhos e esperanças. A ilusão e a ambição imperam aqueles corações de carne. Vagas
noções embaralham os encontros. O dito é ordem. O novo é fome. A miséria, normal.
Lucro, essencial.

Respirar esse oxigênio é demais. Suporto algumas horas, na verdade, uns minutos me
bastam. O restante doou ao primeiro. Ou segundo ser ao meu redor. Ao lado. Seja quem
for, seja o que for. Exalar esse ar me embriaga de dor. Dor de uma existência medíocre.
Enfadonha, vil. Uma existência consciente.

Ah, a inocência era meu alimento. Vivia suavemente. Acreditava em tudo. Todos.
Fracos, fortes, pequenos, altos, todos. Encantava-me com a vida. Era tudo novo. Todas
aquelas emoções. Aqueles encontros. Aqueles olhares. Aquelas palavras. Aqueles
sentidos. Aquelas dores. Eu as sentia tanto. Intensamente, muitas saudades.

Que dias trágicos. Acidentais. Acidentes têm acontecido sempre. O trágico, ainda, é
fazer da própria vida um acidente permanente. Lentamente, acidental. Em cada curva,
um recuo de medo e agonia. Triste e inquietante.

Compreender os instantes passados como se fossem presentes. Eis envelhecer,


cometendo erros tão juvenis, assim. Quase infantis. Comicamente irônico. Um riso
brando, rápido, consciente. Suave curva ao redor dos lábios secos. Uma constatação.

Escrevia como se amasse profundamente uma ideia, uma ilusão. Cada letra expressava
uma saudade, uma vontade de estar, um toque breve e intenso. Era bonito. Verdadeiro.
Frases inspiradas por uma paixão jovial. Tão inocente. Tão terna. Tão... era tudo.

Não pude falar. Não era mais aquilo, deveras. Suplicava emoção. Alguma. Por favor.
Isso me dominava, inteiramente. Sem pudor. Naqueles dias opacos. Dias mortos.
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Obrigatórios. Vãs loucuras de existência. Cinzas ternuras, superficiais sonoridades e


olhares de vidro. Não pude falar.

Chorava. As lágrimas pulavam como em um penhasco sem volta. As súplicas


ecoavam... hipócritas. Nada. Surgia ou balbuciava abraços. Canseiras atormentavam-
me. Só naquele quadro, naquele horizonte vertical. Trovões.

Queria poder decifrar respostas outras que me afligem na alvorada. Respostas de fases
inconsequentes e imaturas. Fases semiabertas da alma. D’quela vontade de querer algo
que não se sabe muito bem. Mas que existe. E você sabe que existe, em algum lugar, de
algum modo. Obtuso e confuso, mas existe.

Existir transcende toda a realidade parva e superficial criada diariamente. Poucos são os
conscientes. A maioria sobrevive dizendo amém a cada ação opressora.
Inconsequentemente, existe-se. Sábios são os que dizem aquilo que os dominadores
querem ouvir. Insistentemente.

Os olhos despertaram da quimera. Opacos. Mas com um pequeno e breve brilho. De


quem. Para quem. Sobre quem. Quem. Não se sabe muito bem. Sabe-se que a esperança
calejada e consciente ronda por aí. Escondida. Ferida. Atrás de alguma ilusão.

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