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MARÍLIA
2021
Nayara de Fátima Mazini Ferrari
Marília
2021
Nayara de Fátima Mazini Ferrari
Banca Examinadora:
___________________________
Prof.ª Dr.ª Camila Mugnai Vieira
Faculdade de Medicina de Marília
________________________________
Prof. Dr. Gilson Caleman
Faculdade de Medicina de Marília
______________________________
Prof.ª Dr.ª Solange Aparecida Nappo
Universidade Federal de São Paulo
RESUMO
A busca pelo tratamento com canabinoides para diversas patologias vem crescendo na
população, seja pela abordagem compassiva, paliativa, como monoterapia ou terapia adjunta,
seja como alternativa aos fármacos alopáticos e de alto custo. O manejo desta terapêutica
demanda profissionais médicos capacitados, para que os pacientes tenham acesso e alcancem
os melhores resultados. Evidências científicas vêm sendo amplamente produzidas, e apesar da
postura reticente das instituições regulamentares da medicina, bem como as representações
sociais estigmatizantes, percebe-se um aumento progressivo no número de profissionais
prescritores. Esta pesquisa teve o objetivo de analisar o conhecimento, as concepções e as
práticas dos médicos prescritores de Cannabis Medicinal, por meio da realização de entrevistas
semidirigidas, via Skype. As entrevistas dos 17 participantes foram gravadas, transcritas e os
conteúdos analisados na modalidade temática, baseado em Bardin. Os resultados apontaram a
predominância da especialidade de Psiquiatria e que a maioria prescreve canabinoides via
assistência particular ou convênio, em consultório próprio. Os participantes descreveram sobre
as vivências na prescrição da Cannabis, experiência própria como paciente e prescrevendo para
familiares, motivações que os levaram a tornarem-se prescritores e particularidades do percurso
formativo, questões histórico-sociais de estigma e preconceito, relação com colegas de
profissão, postura do Conselho de Classe, atores sociais relevantes, iniciativas e protagonismo
na aprendizagem e aspectos da formação médica. Sobre a prática clínica, consonante às
evidências científicas encontradas, pontuaram como manejam a terapêutica nas diferentes
faixas-etárias e patologias, quais os resultados alcançados, efeitos colaterais, riscos e
contraindicações da CM, expuseram sobre cuidados quanto interações medicamentosas,
situações de polimedicação, bem como peculiaridades na prescrição de THC. Apresentaram
sobre as dificuldades de acesso ao tratamento, tipos de produtos disponíveis, lacunas de
conhecimento, a temática nas instituições formadoras, necessidades de aprofundamento das
pesquisas, potenciais caminhos para a melhoria do acesso, regulamentação no país e
apresentaram a Medicina Canabinoide como uma especialidade médica a ser construída.
ABSTRACT
The demand for cannabinoid treatment for several pathologies is growing among the
population, either for the compassionate, palliative approach, as monotherapy or adjunctive
therapy, or as an alternative to allopathic and high-cost drugs. The management of this therapy
requires trained medical professionals, so patients can access and achieve the best results.
Scientific evidence has been widely produced, and despite the reticent stance of medical
regulatory institutions, as well as stigmatizing social representations, a progressive increase in
the number of prescribing professionals is perceived. This research aimed to analyze the
knowledge, conceptions, and practices of medical prescribers of Medicinal Cannabis by
conducting semi-directed interviews via Skype. Seventeen physicians from different regions of
Brazil participated, who responded to contacts through the Brazilian Society for Cannabis
Studies and matched the inclusion criteria of prescribing for at least 1 patient and having a
minimum experience of 6 months. The interviews of these 17 participants were recorded,
transcribed, and subjected to Content Analysis, in thematic modality. Results pointed out the
predominance of medical specialty in Psychiatry and that the majority prescribes cannabinoids
through private or health insurance assistance, in their own office. From the analysis of the
results, 4 themes were found: 1. Path of Medical Cannabis prescribing physicians, 2.
Prescribing Medicinal Cannabis, 3. Participants' perceptions regarding access to Medicinal
Cannabis and 4. Training for Medical Cannabis prescribers. Participants described their
experiences in prescribing Cannabis, their own experience as patients and prescribing for
family members, the motivations that led them to become prescribers and particularities of their
training, historical and social issues of stigma and prejudice, their relationship with professional
colleagues, the position of their Class Council, relevant social actors, initiatives and
protagonism in learning, and aspects of medical training. About clinical practice, in accordance
with the scientific evidence found, they pointed out how they handle therapy in different age
groups and pathologies, the results achieved, side effects, risks, and contraindications, they
explained the care regarding drug interactions, polymedication situations, as well as
peculiarities in the prescription of tetrahydrocannabinol. They reported difficulties in accessing
treatment, types of products available, and knowledge gaps. They also highlighted how the
subject is approached in training institutions, the needs for further research, potential ways to
improve access, regulation in the country, and introduced Cannabinoid Medicine as a medical
specialty to be built. We conclude that, despite all the difficulties and challenges of Brazilian
scenario that demand the revision of paradigms in social sphere and transformations in health
care, the prescribing physicians identify the exponential scientific advances and demonstrate
the therapeutic potential of Cannabis in their practices, consolidating it as a promising
perspective in health field, being essential that medicine appropriates this knowledge
continuously, with investments in training since graduation.
2-AG 2-araquidonilglicerol
ABRACE Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança
ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade
AIDS Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária
AZT Zidovudina
CAPS Centros de Atenção Psicossocial
CAAE Certificado de Apresentação de Apreciação Ética
CB1 Receptor Canabinoide tipo 1
CB2 Receptor Canabinoide tipo 2
CB3 Receptor Canabinoide tipo 3
CBD Canabidiol
CEP Comitê de Ética e Pesquisa
CESeC Centro de Estudos de Segurança e Cidadania
CF Constituição Federal
CFM Conselho Federal de Medicina
CM Cannabis Medicinal
CND Comissão de Entorpecentes/Narcóticos
CNFE Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes
CONITEC Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS
CRM Conselho Regional de Medicina
DCN Diretrizes Curriculares Nacionais
DRS Departamento Regional de Saúde IX de Marília
EC Emenda Constitucional
ECDD Comitê de Experts em Dependência de Drogas
ECT Eletroconvulsoterapia
EDEPE Escola da Defensoria Pública
FAAH Fatty Acid Amide Hydrolase
FACT Federação das Associações de Cannabis Terapêutica
Famema Faculdade de Medicina de Marília
HIV Vírus da imunodeficiência humana
MDB-SP Partido Movimento Democrático Brasileiro do Estado de São Paulo
MGL Monoacyl Glicerol
MS Ministério da Saúde
OMS Organização Mundial de Saúde
ONU Organização das Nações Unidas
PL Projeto de Lei
PSB-PR Partido Socialismo e Liberdade do Estado de Paraná
QI Quociente intelectual
RAPS Rede de Atenção Psicossocial
RD Redução de Danos
RDC Resolução da Diretoria Colegiada
RE Recurso Extraordinário
RT Residências Terapêuticas
SEC Sistema Endocanabinoide
SBEC Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis
SP São Paulo
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
SUG Sugestão Legislativa
SUS Sistema Único de Saúde
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
TDAH Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
TEA Transtorno do Espectro Autista
THC Tetrahidrocanabinol
TOC Transtorno Obsessivo Compulsivo
TOD Transtorno Opositivo Desafiador
TPM Tensão Pré-menstrual
UNESP Universidade Estadual Paulista
UNIFESP Universidade Federal de São Paulo
UNODC United Nations Office on Drugs and Crime
USP Universidade de São Paulo
UTI Unidade de terapia intensiva
VNS Estimulação elétrica do nervo vago
APRESENTAÇÃO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 20
1.1 O uso terapêutico da Cannabis Medicinal (CM) ............................................... 21
1.2 História, políticas públicas, aspectos sociais e econômicos relacionados à
Cannabis ................................................................................................................ 24
1.3 Avanços legislativos, judiciais e mobilização popular ....................................... 35
1.4 Médicos prescritores de CM: formação e cuidado ampliado ........................... 38
2 JUSTIFICATIVA ................................................................................................. 44
3 OBJETIVOS ......................................................................................................... 45
3.1 Objetivo geral........................................................................................................ 45
3.2 Objetivos específicos ............................................................................................. 45
4 MÉTODO .............................................................................................................. 46
4.1 Local....................................................................................................................... 46
4.2 Participantes ......................................................................................................... 46
4.3 Procedimentos éticos ............................................................................................ 47
4.4 Instrumento da pesquisa ...................................................................................... 47
4.5 Procedimentos de coleta de dados ....................................................................... 48
4.6 Análise de dados ................................................................................................... 50
5 RESULTADOS ..................................................................................................... 52
5.1 Caracterização dos participantes ........................................................................ 52
5.2 Resultados das entrevistas com médicos prescritores ....................................... 60
5.2.1 Tema 1: Percurso dos médicos prescritores de Cannabis Medicinal .................. 61
5.2.1.1 Subtema: Cenário de inserção do prescritor de Cannabis .................................... 62
5.2.1.1.1 Categoria: Perspectivas sociais e contextos proibicionistas ................................... 62
5.2.1.1.1.1 Preconceito ............................................................................................................. 62
5.2.1.1.1.2 Conservadorismo e religião .................................................................................... 64
5.2.1.1.1.3 Proibicionismo e legalização .................................................................................. 64
5.2.1.1.2 Categoria: Uso medicinal da Cannabis .................................................................. 65
5.2.1.1.2.1 Primeiros contatos e começo do uso medicinal da Cannabis ................................. 65
5.2.1.1.2.2 Lacunas de conhecimentos e desafios .................................................................... 66
5.2.1.1.3 Categoria: Atores sociais relevantes ........................................................................ 69
5.2.1.1.3.1 Seus familiares ........................................................................................................ 69
5.2.1.1.3.2 Sociedade ................................................................................................................ 70
5.2.1.1.3.3 Colegas de profissão ............................................................................................... 71
5.2.1.1.3.4 Conselhos de classe ................................................................................................ 73
5.2.1.1.3.5 Pacientes e seus familiares ..................................................................................... 74
5.2.1.2 Subtema: Decisão profissional: repercussões e implicações ................................. 76
5.2.1.2.1 Categoria: Tornando-se um prescritor de Cannabis ............................................... 76
5.2.1.2.1.1 Motivações ............................................................................................................. 76
5.2.1.2.1.2 Concepções sobre assumir-se como prescritor ....................................................... 79
5.2.2 Tema 2: Prescrevendo a Cannabis Medicinal ...................................................... 81
5.2.2.1 Subtema: Prática clínica ........................................................................................ 81
5.2.2.1.1 Categoria: Cannabis na atenção integral à saúde ................................................... 82
5.2.2.1.1.1 Sistema endocanabinoide e manejo da Cannabis Medicinal.................................. 82
5.2.2.1.1.2 Saúde da criança e do adolescente .......................................................................... 83
5.2.2.1.1.3 Saúde do adulto ...................................................................................................... 84
5.2.2.1.1.4 Saúde da mulher ..................................................................................................... 87
5.2.2.1.1.5 Saúde do idoso ........................................................................................................ 87
5.2.2.1.2 Categoria: Cuidados ............................................................................................... 90
5.2.2.1.2.1 Efeitos colaterais..................................................................................................... 91
5.2.2.1.2.2 Interações medicamentosas .................................................................................... 92
5.2.2.1.2.3 Riscos e contraindicações ....................................................................................... 93
5.2.2.2 Subtema – Vivências e experiências próximas ....................................................... 95
5.2.2.2.1 Categoria: Autoprescrição e prescrição para familiares ......................................... 95
5.2.2.2.1.1 Experiência própria como paciente ........................................................................ 95
5.2.2.2.1.2 Vivências com entes familiares .............................................................................. 96
5.2.3 Tema 3: Percepções dos participantes sobre o acesso à Cannabis Medicinal .... 98
5.2.3.1 Subtema: Dificuldades de acesso ao tratamento .................................................... 99
5.2.3.1.1 Categoria: Fatores negativos incidentes ................................................................. 99
5.2.3.1.1.1 Tabus e preconceito ................................................................................................ 99
5.2.3.1.1.2 Insuficiência de prescritores ................................................................................. 100
5.2.3.1.1.3 Custo do tratamento .............................................................................................. 100
5.2.3.1.1.4 Falta de regulamentação ....................................................................................... 101
5.2.3.1.2 Categoria: Fatores positivos incidentes ................................................................ 101
5.2.3.1.2.1 Luta dos pacientes e famílias ................................................................................ 102
5.2.3.1.2.2 Atuação dos médicos prescritores ........................................................................ 102
5.2.3.1.2.3 Caminhos para melhorar o acesso ........................................................................ 103
5.2.3.2 Subtema: Políticas PÚBLICAS e perspectivas socioeconômicas ........................ 104
5.2.3.2.1 Categoria: Políticas públicas de saúde.................................................................. 105
5.2.3.2.1.1 Prescrição de Cannabis no SUS ........................................................................... 105
5.2.3.2.1.2 Fomento de políticas públicas .............................................................................. 106
5.2.3.2.1.3 Monetização e farmacêuticas................................................................................ 106
5.2.3.2.2 Categoria: Aspectos socioeconômicos ................................................................. 107
5.2.3.2.2.1 Saúde, economia e impacto social ........................................................................ 107
5.2.3.2.2.2 Produtos disponíveis ............................................................................................. 108
5.2.4 Tema 4: Formação dos médicos prescritores de Cannabis Medicinal .............. 109
5.2.4.1 Subtema: Determinantes na formação médica ..................................................... 109
5.2.4.1.1 Categoria: Percursos do conhecimento ................................................................ 110
5.2.4.1.1.1 Iniciativas dos prescritores na aprendizagem ....................................................... 110
5.2.4.1.2 Categoria: Cannabis Medicinal na educação médica ........................................... 111
5.2.4.1.2.1 Cannabis Medicinal nas instituições formadoras ................................................. 111
5.2.4.1.2.2 Inserção na grade curricular ................................................................................. 113
5.2.4.1.2.3 Medicina canabinoide: ciência e pesquisa ............................................................ 113
7 CONCLUSÃO..................................................................................................... 136
1 INTRODUÇÃO
A saúde é definida como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não
somente ausência de afecções e enfermidades”, segundo a Organização Mundial de Saúde
(OMS).(1)
Este conceito, aliado à garantia constitucional dos direitos humanos fundamentais,
revela o animus da saúde enquanto direito social, que deve ser assegurado sem qualquer forma
de distinção de raça, religião, ideologia ou condição socioeconômica.(2)
O Sistema Único de Saúde (SUS), uma conquista democrática, expressão do exercício
da cidadania brasileira, consolida o direito à saúde enquanto política pública, por meio de três
pilares que o externam através dos princípios da universalidade, equidade de acesso e
integralidade.(3) Enquanto principal política de inclusão social traz, pelo princípio da
integralidade, uma gama de estratégias e ações voltadas para o atendimento do usuário em sua
totalidade, ouvindo e compreendendo o contexto social em que se insere, a fim de atender suas
demandas, prioritariamente na frente de prevenção de doenças e agravos, não se limitando e
incluindo a assistência em todos os níveis de complexidade.
Assim, a garantia de acesso à saúde a todas as pessoas, também transita os princípios da
universalidade e da equidade, tratando de forma desigual os desiguais, de modo que as
necessidades individuais sejam olhadas dinamicamente, atendendo às peculiaridades próprias
do sujeito, para além da coletividade, outrossim, objeto do cuidado.(4)
A Reforma Sanitária e a construção do SUS trouxeram ao longo dos anos a ampliação
de conceitos, desenvolvendo tecnologias, cuja intencionalidade voltada à defesa da vida, trouxe
na complexidade dos aspectos do cuidado, os processos de transformação e humanização das
práticas de saúde.
Neste contexto, surgem as práticas integrativas, alternativas e complementares, com
métodos investigados, validados e incentivados pelo Ministério da Saúde, numa perspectiva
ampla, múltipla e sincrética articulando estratégias sensíveis ao cuidado holístico, sendo o
sujeito o foco do cuidado, de modo a contemplar suas subjetividades, vivências e
autoconhecimento.(5)
Reconhecidas pela OMS, as Medicinas Tradicionais e as Medicinas Integrativas e
Complementares contribuem para a ampliação dos cuidados voltados à saúde, de forma
holística. Elas trazem o conceito de práticas de promoção e recuperação em saúde,
reconhecendo as dimensões física, mental, espiritual, social e cultural, considerando a
segurança, a eficácia e a qualidade de seu uso, incluindo e consolidando o pluralismo
21
1
Conhecida como maconha, a Cannabis sativa L é uma planta milenar que possui um significativo valor
terapêutico. Seu uso medicinal é relatado desde a era medieval, em achados que datam de 3750 a.C.
em países como China, África e Grécia. Atualmente, pela ampla difusão do uso no tratamento de
doenças, adotou-se popularmente a nomenclatura Cannabis Medicinal (CM), a fim de diferenciar o
uso terapêutico do uso social.(7)
22
Esta coletânea trouxe alegações que foram alvo de discursos fortemente racistas e
eugenistas, afirmando que o uso da maconha trazia uma degradação da humanidade, pois os
viciados eram analfabetos, sem cultura e o uso da maconha causava nos indivíduos a
despersonalização e perda de sentimentos, como a prostituição das esposas e filhas, assassinatos
por motivos fúteis, sendo de suma importância a defesa destes infelizes do vício dos usos sociais
da planta, pois ameaçavam permanentemente a segurança da sociedade.(53,58)
Desta forma, as relações de poder entre vigilância em saúde, segurança, população e
governo mantêm a sociedade sob a mira das práticas disciplinares, cuja governamentalidade2 é
tanto alvo quanto instrumento nessas relações, sobretudo quando propõe o ideário sobre o
louco/perigoso/criminoso/marginal, colocando-o como um inimigo social, posto que ataca a
sociedade ao cometer delitos ou apresentar “anormalidades”, ofertando como remédio social a
reclusão como forma de punição e controle, em defesa da sociedade.(55,60)
A partir do início do século XX, o médico Rodrigues Dória recorreu desde princípios
de uma suposta “moralidade sã” até ao “conhecimento médico” do mal inerente, alegando que
a proibição da maconha poderia conter a violência. Assim, foi um dos pioneiros nos argumentos
médicos-científicos, trazendo em suas afirmações a experiência do médico francês Roger
Dupouy, especialista em ópio, transferindo o suposto quadro dos viciados em ópio para os
usuários de maconha brasileiros, colaborando fortemente para a proibição do uso da maconha
no país.(58)
Num discurso revolucionário às avessas das lutas sociais, o médico Rodrigues Dória
propôs uma clivagem histórica e política quando, comparando os negros aos brancos, definiu
que os brancos são a raça evoluída na civilização e que a raça preta era considerada inferior,
selvagem e ignorante, não possuía a mesma origem, língua e religião, estragando o robusto
organismo do branco no vício de fumar a maconha. Seu discurso assegurou uma higiene
silenciosa da sociedade, fazendo coincidir suas aspirações quanto à raça negra com a gestão de
polícia, adentrando cada vez mais o racismo nos dispositivos legais de poder.(58)
Os argumentos dos médicos e cientistas seguintes se mantiveram difundindo hipóteses
que, para além das questões raciais, associavam o uso de maconha ao desenvolvimento de
doenças, distúrbios mentais e sociais, caracterizando a maconha como uma substância
altamente perigosa, capaz de levar ao cometimento de crimes bárbaros.(58,61)
Neste sentido, o médico Assis Iglésias contribuiu, alegando que o indivíduo que usava
2
Governamentalidade é um conceito que busca explicar o processo que possibilitou o surgimento do
Estado de governo, o regime de poder e as características de sua tecnologia que, após o século XVIII
terá como alvo principal a população, a saber, a biopolítica.(63)
27
maconha perdia o brio, a dignidade, o sentimento de dever, se tornava incapaz para trabalhos e
só buscava obedecer ao vício, descrevendo a maconha como a “planta da loucura” e até mesmo
da morte.(53)
Os médicos Adauto Botelho e Pedro Pernambuco, além de citarem Assis Iglésias,
categorizam o vício como toxicomania, reafirmando que provinha da África e invadia
assustadoramente o Brasil, sob a alegação de que a raça outrora cativa, como vingança, trouxera
bem guardado consigo o algoz que mais tarde escravizaria a raça opressora.(61) Contribuindo, o
médico Oscar Barbosa, conclamando a atenção dos médicos nortistas e das autoridades
competentes, também se manifestou quanto ao ameaçador vício da maconha. Segundo ele, os
pretos e seus descendentes adeptos da maconha constituíam uma séria ameaça aos patrícios,
dada a rápida vulgarização por meio de suas cerimônias fetichistas.(61)
Isso explica a associação “pobre-preto-maconheiro-marginal-bandido”, diretrizes da
medicina-legal, comum entre as autoridades médicas e policiais, que atribuem à maconha uma
relação com a loucura, a doença e a delinquência, a partir de um “poder-saber” que demarcou
a legitimidade da norma, estabelecendo como princípio a coerção para coibir o que é
considerado crime.(63)
Neste sentido, o saber médico-científico do início do século XX criou um discurso justo
e verdadeiro capaz de constituir um saber-poder que orientou a instauração de mecanismos
diversos como regras, valores, linguagem, comportamentos e desejos, ditando até os dias atuais
o que é considerado como a verdade sobre os usos da maconha.(53)
Estes mesmos discursos também definiram uma justificação social, moral e legal para
classificar alguns sujeitos como anormais, intervindo a favor de uma suposta defesa da
sociedade contra tal “anomalia” ou “mal social”, discursos que constituíram as raízes do
preconceito, derivados de práticas orientadas pelo racismo, tanto pela categoria médica como
pelo senso comum da sociedade.(53)
Decorrente desta construção, a primeira lei de drogas do país foi assinada em 1921 pelo
presidente Epitácio Pessoa, proibindo a venda de cocaína, ópio, morfina e seus derivados.(57)
Em 1932, embasado nos estudos da medicina-legal de Rodrigues Dória e Assis Iglésias,
a maconha foi incluída na lista de substâncias ilegais, sob a denominação de Cannabis Indica,
sendo utilizada como elemento unificador no combate nacional às drogas em 1936, quando foi
criada a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), centralizando numa
única agência federal todos os esforços da guerra contra as drogas.(58)
Em 1938, o governo do ditador Getúlio Vargas promulgou um decreto que reprimia a
posse e o tráfico de entorpecentes, pela primeira vez incluindo a maconha, que passaram a ser
28
3
“em defesa da família tradicional brasileira”: expressão comumente utilizada pelo atual governo
conservador para referir-se à representação da literalidade da união entre homem e mulher assumindo
um sentido restritivo, pelo viés da repressão à união socioafetiva.(70)
30
medicamentos à base de Cannabis por meio da RDC nº 327, com validade de três anos. Neste
momento, a agência vetou o item 241, do relator William Dib, que tratava da regulamentação
dos requisitos para o cultivo da planta no país, arquivando a proposta. Consequentemente, com
a manutenção da proibição do cultivo, os fabricantes ficaram condicionados à importação do
extrato da planta, para a produção de medicamentos no Brasil.(74,75)
A RDC n° 327/2019 dispõe sobre os procedimentos para a concessão da Autorização
Sanitária, tornando possível a fabricação e a importação de produtos de Cannabis, bem como
estabelece exigências para a comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e
fiscalização de produtos derivados para fins medicinais, por empresas do setor farmacêutico.(74)
Neste sentido, a ANVISA foi insuficiente, vez que não tratou do cultivo da Cannabis
sativa L para fins medicinais no país, o que garantiria segurança jurídica às milhares de
pacientes e famílias que necessitam da CM para a realização de tratamentos de saúde.(68)
Numa análise dos acontecimentos, é importante retomar que a Lei de Drogas de 2006
já criou um excludente criminal e salvo conduto quando dispôs sobre a possibilidade de
desenvolvimento das atividades de pesquisa e uso terapêutico de drogas ilícitas. Assim, é
possível o uso medicinal da Cannabis, ainda que haja ausência ou insuficiência de
regulamentação por inércia e/ou omissão do Poder Público, posto que não impede o direito à
saúde dos cidadãos acometidos por enfermidades tratáveis por meio da CM.(77)
No que diz respeito às ações do Poder Legislativo, vários Projetos de Lei (PL) foram
propostos ao longo dos últimos sete anos, como por exemplo, o PL 514/2017 relatado pela
senadora Marta Suplicy (MDB-SP), que surgiu a partir dos debates na Comissão de Direitos
Humanos do Senado sobre a Sugestão Legislativa nº 25 (SUG 25), de iniciativa popular. Este
PL propunha a alteração do artigo 28 da Lei de Drogas, descriminalizando o cultivo de maconha
para fins terapêuticos mediante prescrição médica, determinando que o semeio, o cultivo e a
colheita fossem restritos às quantidades adequadas para o tratamento do paciente. A proposta
foi apoiada por sete senadores e apenas dois foram contrários, entretanto, quando colocada em
votação foi suspensa pelo pedido de vista do senador Eduardo Amorim.(76)
Destaca-se também o Projeto de Lei nº 10.549 de 2018, de autoria do Deputado Federal
Paulo Teixeira, que disciplina e regulamenta o uso da Cannabis e seus derivados, estabelecendo
à União a competência para regulamentação, autorização e fiscalização da importação,
exportação, plantio, cultura, colheita, produção, fabricação, trânsito, transporte, aquisição a
qualquer título, armazenamento, emprego, comércio, distribuição, fornecimento, posse e uso.
Esta proposta legislativa está em conformidade com a política de redução de danos e formaliza
a distinção entre o uso recreativo da Cannabis (que deve ser objeto de regulamentação
32
específica) e o uso para fins terapêuticos e medicinais, garantindo o direito à saúde dos pacientes
que possam se beneficiar do tratamento com a CM. Todavia, encontra-se com a tramitação
suspensa e sem qualquer prazo ou notícia de retomada da discussão.(77)
Neste cenário, o Projeto de Lei nº 399, de autoria do Deputado federal Fábio Cruz
Mitidieri, surgiu em 2015 como uma tentativa de inserir no artigo 2º da Lei de Drogas um
parágrafo que viabilizava a comercialização de medicamentos que contenham extratos,
substratos ou partes da planta Cannabis sativa L em sua formulação, no território nacional.
Entretanto, a referida Lei de Drogas já previa o plantio de plantas com compostos psicoativos
para fins de pesquisa científica e uso medicinal, sob autorização da União.(78) Por conseguinte,
este projeto foi retomado em 2019, quando o presidente da Câmara Rodrigo Maia determinou
que o texto original do PL 399 fosse analisado por uma Comissão Parlamentar, incumbida de
apresentar um texto substitutivo que regulamentasse o cultivo, produção e venda de Cannabis
para fins medicinais.(79)
No âmbito mundial, o Comitê de Experts em Dependência de Drogas (ECDD) da OMS,
após o 41º Encontro realizado em Genebra de 2018, em resposta às Resoluções CND 52/5 e
50/2 que solicitavam a atualização dos relatórios sobre Cannabis já que a análise sobre o uso
do dronabinol apontou pesquisas científicas robustas evidenciando seu potencial terapêutico,
propôs que a Cannabis sativa L, sua resina e subprodutos fossem reclassificados dentro da
recomendação proibicionista que a categorizava como droga potencialmente perigosa e não
reconhecia seu uso medicinal, imposta pelas Convenções da ONU de 1961.(80-82)
Em de 2019, a 62ª Sessão da Comissão de Entorpecentes (CND) do UNODC (United
Nations Office on Drugs and Crime), com objetivo de fazer o balanço da implementação dos
compromissos assumidos para o combate ao problema mundial das drogas, apresentou, discutiu
e aprovou propostas, retirando a Cannabis e suas resinas da Lista IV passando-a para a Lista I,
indicando que a planta ficará sob controle rigoroso e determinado por legislação específica de
cada país, porém com reconhecimento do uso medicinal. Assim, preparações de Cannabis que
não tenham mais que 0,2 % de THC, não devem estar em qualquer Lista proibicionista, pois
não oferecem riscos à saúde e não geram dependência, dispensando qualquer controle
internacional.(80-82)
Meio ao contexto em 2019 e 2020, numa tentativa de reforçar as medidas proibicionistas
e de controle, houve uma nova investida do Executivo, trazendo como pauta comum “a droga
da maconha” junto aos Ministérios da Cidadania e da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos e Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, nas figuras de Osmar
Terra, Damares Alves e Quirino Cordeiro, realizando lives e fazendo mobilizações junto a
33
apoiadores bolsonaristas como a “Marcha das Famílias contra as Drogas”, apregoando que as
estratégias de flexibilização do controle da maconha são danosas e que provocarão o aumento
do narcotráfico, da violência, do encarceramento, de acidentes de trânsito, de transtornos
mentais, de hospitalizações psiquiátricas e intoxicações de crianças.(83-86)
Em 2021, novamente se valendo de discursos médicos investidos do “saber-poder”,
lançaram a ‘Cartilha da Maconha’, sob o apelativo e tendencioso título “Os riscos do uso da
maconha na família, na infância e na juventude” e também a Cartilha ‘Argumentos contra a
legalização da maconha’, um posicionamento contra o PL399 em tramitação.(83,87-89)
No âmbito internacional, perante a Comissão de Narcóticos da OMS, o Brasil adotou
posição contrária à redução do controle internacional sobre a maconha, sob a afirmativa de que
a flexibilização contribuiria para diminuição da percepção de risco sobre os graves malefícios
aos usuários, suas famílias e todo o conjunto social, afetando principalmente as camadas mais
vulneráveis da sociedade, aumentando a gravidade dos problemas enfrentados pela comunidade
internacional.(83)
Consonante, o posicionamento do atual governo não considera aceitável qualquer
legislação que permita uso “terapêutico” de maconha e alega que posturas diversas levarão ao
aumento da perda da confiança, separação conjugal, agressividade, de homicídios, suicídios,
distúrbios mentais, da criminalidade e da violência, decadência do trabalho, declínio da saúde,
já que a maconha é a droga que mais impõe o sistema de justiça criminal às pessoas.(83,87)
Neste sentido, a leitura sobre a legalização das drogas no Brasil é justificada sob a
racionalidade de que, na saúde pública, o acesso ao tratamento de qualidade para um dependente
é limitado e restrito, de modo que extrapola uma perspectiva puramente moral.(87,88)
Por outro lado, assimila o governo que a perspectiva daqueles que propõem a
legalização total ou intermediária do uso de drogas deve ser rechaçada, visto que o usuário além
de colocar em risco a própria integridade, assim o faz com aqueles que fazem parte do seu
círculo social, de forma que a proibição total do uso de drogas seria a melhor opção, pois não
causaria nenhum dano social.(88)
Segundo um estudo recentemente publicado pelo Centro de Estudos de Segurança e
Cidadania (CESeC), referente à análise orçamentária de 2017 dos estados de Rio de Janeiro e
São Paulo, a “Guerra às Drogas”, presente tanto na Justiça como na Saúde, custou no período
de um ano R$ 5,2 bilhões aos cofres públicos, analisando apenas o setor do judiciário (Polícia
Militar, Polícia Civil, Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunal de Justiça), sem
acrescentar os gastos do orçamento da saúde. Numa analogia dentro do trágico enfrentamento
do governo brasileiro à pandemia, este montante seria suficiente para a compra de 108 milhões
34
Num cenário de tantos interesses em jogo e tantos jogos de interesses, para além dos
manifestos das Marchas da Maconha que datam mais de 20 anos, desde 2014 o Legislativo tem
sido impelido e impulsionado pela sociedade civil por meio da luta dos pacientes de uso
medicinal da Cannabis, pelos avanços das associações que se espalham pelo território nacional
e pela fundação da Federação das Associações de Cannabis Terapêutica (FACT), movimentos
sociais que amparados junto a profissionais da saúde, do direito, da agronomia, da veterinária,
da antropologia, dentre outros campos, embasados na ciência, consolidam a reivindicação de
uma nova política sobre drogas, emergente à regulamentação pela democratização do acesso à
CM, acesso à pesquisa e propostas de reparação social aos atingidos pela falaciosa “guerra às
drogas”.(95,96)
Estados e municípios iniciaram articulações voltadas ao amparo dos pacientes com a
propositura de diversos projetos de lei, ao tempo em que o Judiciário vem caso a caso
discutindo, reconhecendo e legitimando o direito destas pessoas à saúde, à vida e à dignidade
por meio de habeas corpus individual com autorização do cultivo doméstico e habeas corpus
coletivo para associações de pacientes, como é o caso da Cultive - Associação de Cannabis e
Saúde e da Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (ABRACE).(97-99)
36
orientação jurídica para acesso ao medicamento e legalização de plantio, atuam ativamente para
a regulamentação da produção nacional da Cannabis para o uso medicinal, apoiam pesquisas,
divulgam conhecimento, tendo a finalidade de simplificar o acesso à informação por meio do
tríplice formado por associado, prescritor e informação sobre Cannabis, melhorando a relação
com o profissional habilitado e formando um consenso teórico sobre o tratamento com a CM e
mais profissionalismo, poupando o tempo do paciente.(107)
A luta dos movimentos sociais pelo acesso à maconha medicinal conseguiu mobilizar
importantes argumentos tanto sobre a verdade médica, como sobre a verdade jurídica,
instrumentalizados contra os discursos médicos e jurídicos anteriores pautados no racismo e
eugenia estruturais, promovendo uma reconfiguração em âmbito nacional sobre a “verdade
médico-legal”. Assim, foram abertos os caminhos para reconfigurações das práticas de poder
(contrapoder) a partir de novos saberes médicos-científicos e novas perspectivas jurídicas
contra o idealismo hegemônico proibicionista. Desta forma, a maconha paulatinamente deixa
de ser vista como droga que deve ser criminalizada e ganha status de remédio, conceito
construído a partir dos discursos médicos que atestam seu poder terapêutico, adentrando no
judiciário sob o prisma da luta pelos direitos humanos fundamentais, diante das dificuldades de
acesso dos pacientes ao tratamento, principalmente pelo alto custo.(108)
Neste ínterim, a sobressaliente postura dos médicos prescritores de CM é tida como uma
“contraconduta”4 ao prescrever o uso de uma planta proibida para o tratamento de doenças,
comportando-se como resistência frente ao poder disciplinar e à biopolítica5, à medida que
exprime um outro paradigma que não o sustentado ao longo da história e mantido pelo governo
federal. Esse fenômeno constitui um status relevante de “contrapoder” em relação à veracidade
vigente sobre o uso desta planta, pois propõe conflitos, controvérsias e disputas sobre o que é
de fato a verdade em torno de seus usos, trazendo uma proposta de remodelação de baixo para
cima nas lutas de transformação das estruturas de poder.(55,109)
Com o a entendimento e a clareza sobre como a biopolítica eugenista foi estruturada em
nosso país, torna-se possível compreender a magnitude da luta dos pacientes, familiares e
4
Contraconduta: definição focaultiana sobre a resistência contemporânea que designa reações, com
deslocamento da noção de poder/resistência para a compreensão do poder inserido nas relações como
ações ético-políticas, com origem na “atitude crítica”.
5
Biopolítica: agregamento entre os discursos médicos e jurídicos que torna a saúde um objeto de
intervenção crescente resultando em uma normalização dos hábitos da população.(110)
39
educação e formação para que os médicos possam prescrever essa ferramenta terapêutica com
segurança e eficácia, ampliando o acesso ao conhecimento a todas as especialidades e áreas de
atuação da medicina.(113)
Mesmo com nomes consagrados na comunidade científica brasileira, como do
pesquisador e Professor Elisaldo Carlini, referência mundial no assunto, hoje contamos com
mais de 500 mil médicos em atuação no Brasil, mas apenas dois mil deles efetivamente
prescrevem a CM. Então, para que seja possível democratizar o acesso à CM no vasto território
brasileiro, é necessário um trabalho forte na formação e qualificação dos profissionais da saúde,
impactando os médicos e pesquisadores com estudos laboratoriais e clínicos em relação ao
assunto, com informações baseadas em evidências. (114)
Professor Carlini já apontava para as dificuldades na realização de pesquisas no Brasil
na temática da Cannabis e do CBD, em razão da construção ideológica proibicionista dos
periódicos científicos nas décadas de 1950 e 1960, que reverberaram no judiciário. Entretanto,
revela a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, como o
grande celeiro de pesquisas do país, com a criação em 2017 do Centro de Pesquisas em
canabinoides, resultado da parceria entre a faculdade e a indústria farmacêutica Prati-
Donaduzzi, fruto de um alinhamento que nasceu já com estudo clínico aprovado sobre o uso do
CBD em mais de 120 crianças e adolescentes com epilepsia refratária. (115)
Neste sentido, um estudo combinando diversos parâmetros bibliométricos realizou uma
análise de 1.167 artigos científicos publicados entre 1940 e 2019, considerados de relevância
científica pelas principais bases de dados, identificou que a USP é a instituição que mais publica
artigos sobre o canabidiol (CBD) no mundo. A Universidade tem mais que o dobro da segunda
instituição, o King’s College London, do Reino Unido, seguida em terceiro pela Universidade
de Jerusalém, em Israel e, em quarto, pelo Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos Estados
Unidos. (116)
Ademais, é de extrema importância, para além da produção de conhecimento acerca do
assunto, identificar se os médicos que prescrevem medicamentos à base de CM estudam sobre
o assunto, onde buscam se atualizar, como estudam e produzem conteúdo dentro da academia,
se utilizam estudos já existentes para prescrever e informar seus pacientes sobre todos os
benefícios e efeitos adversos do uso da CM como uma alternativa terapêutica.(112)
Entende-se que existe um processo de geração de transmissão e recepção da informação
científica, e que o mapeamento dos produtores de saberes, dos usuários desta informação e os
meios pelos quais ocorre é fundamental para compreender o fenômeno, já que todo o processo
judicial e as tomadas de decisões dos juízes e gestores, devem partir da ideia da comunicação
41
científica.(112)
Tradicionalmente, a formação médica está fundamentada em conceitos em que se
estabelece um ciclo prioritariamente biológico e se desenvolve o apego à tecnologia para apoio
à clínica, com critérios de normalidade que pouco estimulam a interação com o paciente para a
definição da conduta, condição que negligencia a subjetividade da pessoa em prol do cuidado
físico do corpo.(117)
O movimento da epidemiologia clínica é um dos pilares da chamada medicina baseada
em evidências, com foco na medicina preventiva, auxiliando na sustentabilidade dos sistemas
de saúde, influenciando a implantação de políticas de saúde, públicas e privadas, embasadas no
processo de sistematicamente descobrir, avaliar e usar achados de investigações de modo que
as melhores referências disponíveis, distribuídas ao longo de uma escala de evidências, devem
ser consideradas no processo de escolha como base para decisões. Isso implica que, a prática
clínica apenas baseada na experiência profissional, tem maior probabilidade de levar a erros e
consequentemente, prejuízos à saúde dos indivíduos afetados por essa prática.(118)
O método da medicina centrada na pessoa traz no enfoque do atendimento médico a
partilha de responsabilidades, buscando maior autonomia do paciente frente ao seu tratamento
e sua saúde, diferente do modelo biomédico. Preconiza o conhecimento da pessoa de modo
holístico, entendendo o adoecimento não apenas no âmbito biológico, mas reconhecendo que
há um processo de experiência em que por diversas vezes, as causas não são específicas,
demandando a compreensão da integralidade da pessoa e seu meio, de modo que o médico,
além dos aspectos biológicos tenha um olhar para os sentimentos e subjetividades, no
significado da experiência do adoecimento. Por conseguinte, o médico em conjunto com o
paciente, faz o plano de diagnósticos, condutas, responsabilidades e metas, incorporando a
prevenção e a promoção de saúde, para melhoria de qualidade de vida, com redução de riscos
e complicações.(122)
A Clínica Ampliada e Compartilhada enfatiza o sujeito singular, sem desconsiderar a
doença e o contexto, abrindo novas possibilidades de cuidado. O objeto de interesse é o sujeito
singular adoecido ou com risco de adoecer, levando-se em consideração o contexto e a doença,
de forma que a história de vida do paciente assume relevância nos encontros clínicos
objetivando a busca pela autonomia do doente de modo que continue sua vida apesar da doença,
podendo escolher seu caminho, diante das opções científicas comprovadas estatisticamente.(119)
Neste ínterim, observa-se que o tratamento com a CM impõe ao médico uma relação
mais próxima do paciente, propondo uma mudança do método convencional da clínica para um
método contra hegemônico, trazendo para além do processo saúde-doença, o vínculo,
42
comprometimento e coparticipação.
Dentro dos modelos da educação médica, o movimento pela Reforma Sanitária
Brasileira, defendeu uma atenção à saúde de forma integral, como direito de todos e dever do
Estado, nascendo com o SUS uma iniciativa audaciosa ao tentar constituir um sistema voltado
à promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento e reabilitação. Logo, o modelo
biomédico flexneriano já não se enquadrava, sendo necessário o rompimento com o
aprendizado hospitalocêntrico, demandando parte da formação para a atenção básica e outros
cenários, permeados pela humanização da assistência, com uso de metodologias ativas de
ensino-aprendizagem, estabelecidos nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN).(120-122)
Entretanto, a escola médica ainda é concebida à imagem da cátedra, não permitindo
qualquer avanço organizacional à medida que mantém um modelo educacional médico-
assistencial de estrutura rígida, burocrática e centralizada, baseado numa concepção autoritária
e autocrática, de ideologia liberal e individualista, cuja estrutura acadêmica permanece
anacrônica, determinada por interesses industriais e mercantilistas que inviabilizam a
modernização do processo educativo, transformando o médico num elo na cadeia do consumo
de produtos e equipamentos, em especial os medicamentos.(123)
Assim, ainda que na maioria dos regimentos das escolas médicas brasileiras esteja
estabelecido o compromisso com a formação de um profissional técnico e eticamente preparado
para atender aos problemas prioritários da comunidade, o modelo educacional encontra-se
profundamente desvinculado da realidade socioeconômica e sanitária do país, distanciado da
realidade do quadro de saúde da população, sem embasamento conceitual e metodológico e
muito pouco ou nada tem feito em busca da correção destes desvios.(123)
Desta forma, o desenvolvimento de uma política científica e tecnológica comprometida
com os interesses maiores da sociedade, coloca para a universidade o desafio na definição e
aplicação de uma política de vigilância cuja organização curricular deve ser reformulada com
ênfase na aprendizagem, incorporando o desenvolvimento de atitudes e habilidades, de maneira
a superar o modelo acadêmico autoritário, por meio de um projeto educacional ajustado ao
projeto da sociedade, para atender as necessidades e exigências, guardando coerência com o
processo de transformação da cultura social, trazendo solução para os problemas médico-
sociais individuais e coletivos, com base no impacto social, na eficiência, na eficácia, na
equidade e na prevenção.(123)
Hoje, o desafio na formação do profissional médico comprometida com o projeto de
transformação colocado pela sociedade, envolve as mais diversas formas de tecnologias duras
e leve-duras, inclusive auxiliando a própria formação, sem perder de vista os aspectos de
43
2 JUSTIFICATIVA
A busca pelo tratamento com canabinoides para diversas patologias vem crescendo na
população, seja pela abordagem compassiva, paliativa, como monoterapia ou terapia adjunta,
seja enquanto alternativa aos fármacos alopáticos e de alto custo, pelos resultados positivos
evidenciados cientificamente.
O manejo desta terapêutica de baixa toxicidade, alta performance e versatilidade traz a
necessidade de profissionais médicos capacitados a fim de que os pacientes tenham acesso à
Cannabis Medicinal e alcancem os melhores resultados.
Evidências científicas vêm sendo amplamente produzidas comprovando seus
benefícios, e apesar da postura reticente ao uso medicinal desta planta recentemente assumida
por algumas entidades médicas, bem como as representações sociais estigmatizantes, vários
médicos amparados pelos resultados significativos vêm se dedicando e aprofundando seus
conhecimentos para a oferta da Cannabis Medicinal como possibilidade terapêutica aos seus
pacientes.
45
3 OBJETIVOS
4 MÉTODO
4.1 Local
A coleta de dados foi realizada ao longo de 2020, com entrevista online, via Skype, o
que permitiu que os participantes fossem de vários locais do país. Os contatos dos médicos
convidados foram disponibilizados pela SBEC uma associação científica, pessoa jurídica de
direito privado, sem fins lucrativos, formada por profissionais e acadêmicos de diversas áreas,
interessados na promoção, consolidação e expansão da pesquisa científica, formação
profissional e estudo das aplicações da Cannabis e seus derivados, tendo objetivo voltado à
promoção de atividades e finalidades de relevância pública e social.
A opção de aplicação do estudo junto à Sociedade, que congrega membros que se
apoiam entre si, derivou das limitações de participação dos médicos em razão das
regulamentações dos órgãos de controle nacionais, que acabam por manter estes profissionais
anônimos e expostos a possíveis complicadores legais, já que as normativas existentes do
próprio conselho de classe são deveras restritivas tanto com relação às especialidades
autorizadas a prescrever canabinoides, bem como quanto à indicação terapêutica, o que traz
temeridade aos médicos prescritores.
4.2 Participantes
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos
(CEP).
Os dados pessoais dos participantes estarão sob sigilo e os resultados serão utilizados
em divulgação científica, sem a identificação destes.
ano de conclusão); mestrado (área e ano de conclusão); doutorado (área e ano de conclusão);
município(s)/estado(s) em que atua; atua na Saúde: pública, privada, suplementar/convênios;
Atividades exercidas na atuação profissional: assistência, gestão, docência, pesquisa; Formação
específica sobre Cannabis Medicinal: (qual(is) curso(s), onde, como, quando); Aplica a
terapêutica canabinoide na: Atenção Primária, Atenção Secundária, Atenção Terciária ou
consultório; Nível de complexidade: Atenção Primária, Atenção Secundária, Atenção Terciária,
Consultório; Prescreve Extrato de Cannabis na Rede: Pública, Privada ou suplementar; Aceita
ser contatado para participar da próxima etapa da pesquisa. O roteiro de entrevistas
semiestruturado, foi elaborado visando atender aos objetivos propostos pela pesquisa. A
pesquisadora desenvolveu um instrumento norteador, com perguntas abertas, direcionado para
o que sabem, o que pensam e quais as vivências dos médicos prescritores em relação à temática
da Cannabis Medicinal (APÊNDICE B).
Este roteiro foi submetido a dois especialistas para apreciação e realizadas adequações
a partir de sugestões destes. Também foi realizado um estudo piloto, por meio da realização de
uma entrevista, baseada no roteiro, com dois médicos prescritores, para avaliar se de fato
atendia aos objetivos da pesquisa, sendo feitas as alterações necessárias para a versão final.
Para Manzini(127), o planejamento da coleta de informações, demanda a elaboração
cuidadosa de questões voltadas a atingir os objetivos pretendidos, o que exige a adequação da
sequência de perguntas, a elaboração de roteiros, a necessidade de adequação de roteiros por
meio de juízes, a realização de projeto piloto para, dentre outros aspectos, adequar o roteiro e a
linguagem.
Num primeiro momento, foi realizado contato telefônico com a Diretora Executiva da
instituição, explicando sobre a pesquisa, seus objetivos e o método que seria utilizado,
solicitando sua anuência em relação à parceria junto à instituição de pesquisa.
Ao aceite, a Diretora Executiva, durante uma reunião online com os membros,
apresentou a pesquisadora que pôde falar sobre a pesquisa, e solicitar a colaboração dos
mesmos.
A coleta de dados foi realizada no período de maio a agosto de 2020, com os médicos
membros da instituição, em duas etapas, a primeira por meio de formulário eletrônico
disponível na plataforma Google Forms e a segunda por entrevista online agendada.
Na 1ª Etapa, foi encaminhado por meio de grupo de WhatsApp, do qual participavam
49
estes prescritores, um breve texto explicativo com o link de acesso para o Formulário Google,
cujo questionário trazia o levantamento de dados básicos referentes à caracterização do grupo
a ser entrevistado.
Foi encaminhado via redes sociais, Whatsapp e para lista de e-mails disponibilizada pela
instituição um breve texto explicativo convidando os médicos para a pesquisa, por meio de link
do formulário eletrônico com questionário de caracterização dos participantes membros da
SBEC.
Este mesmo texto com o link foi encaminhado de tempo em tempo, no decorrer do
processo de coleta de dados (maio a agosto de 2020), bem como individualmente no contato
privado de WhatsApp ou via e-mail, para os médicos que sinalizaram disponibilidade para
participar da pesquisa durante a reunião, ou noutros momentos aleatórios.
A pesquisadora explicou todos os procedimentos da pesquisa, passando por meio do
aplicativo WhatsApp e por e-mail as orientações e um cronograma para agendamento das
entrevistas que ocorreram via Skype, em horários diversos flexíveis conforme a disponibilidade
dos participantes.
Os critérios iniciais que excluíram participantes decorreram de não terem iniciado ainda
a prescrição de Cannabis Medicinal, ainda serem estudantes de medicina não formados, ou por
serem prescritores, porém de categoria não médica (veterinário ou dentista).
Alguns, apesar de apresentado aceite no formulário, não responderam ou retornaram os
contatos realizados posteriormente por WhatsApp, ligação e e-mail, inviabilizando que a
entrevista fosse realizada dentro do prazo estabelecido para a coleta dos dados.
Todos receberam o TCLE, assinaram e encaminharam para a pesquisadora, via
WhatsApp ou por e-mail.
À medida que os participantes respondiam o formulário, as entrevistas foram marcadas,
seguindo a disponibilidade de tempo de cada um.
Fechado o agendamento, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, a partir do
roteiro já adequado.
A entrevista semiestruturada também é conhecida por entrevista semiaberta ou
semidiretiva, é focada num assunto, com perguntas básicas e principais que são
complementadas por questões que surgem a partir das circunstâncias vivenciadas durante a
entrevista. (127)
Houve um total de 27 inscritos pelo formulário eletrônico. Destes, 17 participantes
avançaram para a etapa seguinte, a entrevista online e concluíram sua participação, compondo
a amostra final do estudo. As entrevistas foram gravadas na íntegra em áudio e tiveram duração
50
5 RESULTADOS
Psiquiatria 8 40%
Saúde Mental Coletiva 1 5%
Medicina da família 1 5%
Preceptoria e Medicina da família e comunidade 1 5%
Pediatria 1 5%
Radiologia Pediátrica 1 5%
Anatomia Patológica 1 5%
Perícia Médica 1 5%
Medicina Aeroespacial 1 5%
Cannabis Medicinal 1 5%
6
O número total de especialidades indica que há situações em que o profissional possui mais de uma
especialização.
54
Pública 13 39,4%
Privada 15 45,5%
Suplementar 05 15,1%
Total 337 100%
Fonte: Elaboração própria.
7
O total se refere ao número de respostas concedidas pelos participantes, pois podiam indicar mais de
uma resposta.
55
Conclusão
Região Centro-
- -
Oeste
8 municípios do estado de São Paulo/SP; 8
Sudeste municípios do estado de Minas Gerais; 1 81,0%
município do estado de Rio de Janeiro;
1 município do estado de Paraná e 1 município do
Região Sul 9,5%
estado de Santa Catarina
Total 218 100%
Fonte: Elaboração própria.
8
O número total indica que alguns profissionais trabalham em mais de um município.
9
O número total de respostas indica que os entrevistados prescrevem nos vários níveis de complexidade
em saúde.
56
Assistência 17 41,5%
Docência 08 19,5%
Pesquisa 09 22,0%
Gestão 07 17,0%
Total 4111 100%
Fonte: Elaboração própria.
Os resultados esclarecem que uma parcela significativa destes médicos atua na docência
10
O número total de respostas demonstra que os médicos participantes prescrevem a CM nas diversas
redes.
11
O número total de respostas indica que estes médicos exercem mais de um tipo de atividade na prática
profissional.
57
Participante Caracterização
Continua
Participante Caracterização
Continuação
Participante Caracterização
Conclusão
A seguir são apresentados os resultados referentes aos relatos dos médicos prescritores
entrevistados, organizados em Temas, Subtemas, Categorias e Subcategorias.
Continua
1. Perspectivas sociais e 1. Preconceito
contextos proibicionistas 2. Conservadorismo e religião
3. Proibicionismo e legalização
Conclusão
1. Efeitos colaterais
2. Cuidados
2. Interações medicamentosas
3. Riscos e contraindicações
1. Tabus e Preconceito
1. Fatores negativos 2. Insuficiência de Prescritores
incidentes 3. Custo do Tratamento
1. Dificuldades de 4. Falta de Regulamentação
acesso ao Tratamento
Nesse tema foram abordados os relatos dos entrevistados sobre suas vivências,
permeadas por diversos fatores relacionados ao percurso trilhado até se tornarem médicos
prescritores de CM.
Assim, foram organizados os subtemas ‘Cenário de inserção do prescritor de Cannabis’
e ‘Decisão profissional: repercussões e implicações’, delineados em categorias e suas
respectivas subcategorias, conforme Quadro 3.
62
1. Perspectivas 1. Preconceito
sociais e contextos 2. Conservadorismo e religião
proibicionistas 3. Proibicionismo e legalização
1. Seus familiares
2. Sociedade
3. Atores sociais
3. Colegas de profissão
relevantes
4. Conselhos de classe
5. Pacientes e seus familiares
1. Tornando-se um 1. Motivações
2. Decisão profissional:
prescritor de 2. Concepções sobre assumir-se
repercussões e implicações
Cannabis como prescritor
5.2.1.1.1.1 Preconceito
panaceia ou mesmo algo do curandeirismo, sem espaço para validação científica enquanto
opção terapêutica. Segundo eles, esta é a tendência quando não se sabe como age uma
substância, algo que só é passível de romper com conhecimentos.
Os participantes pontuaram que permeia a classe médica o mesmo senso comum
estrutural da nossa sociedade, cujo direcionamento acadêmico e construto retórico caminha
disseminando discursos limitantes de que a Cannabis é uma droga, com muitos efeitos
colaterais, que causa dependência, que gera prejuízo de memória, é ruim, não se pode usar
porque vai viciar e fazer mal, sem ofertar acesso aos conhecimentos científicos sobre o SEC e
o uso medicinal, tampouco entender as suas relações com os demais sistemas do nosso corpo,
ou mesmo conceder abertura para discussões a respeito, deixando o aluno à margem da ciência.
Desta forma, descreveram que por vezes o preconceito é acentuado a tal ponto, que
impossibilita o profissional de se quer ouvir sobre o assunto, uma objeção ligada com o desejo
de não saber mesmo, de não ir atrás, não conhecer, de prontamente se negar e rejeitar, dizer
não, inviabilizando qualquer chance de se quer pensar sobre ofertar a CM dentro de sua prática
clínica.
O entrevistado P15 contou que é difícil dizer que os colegas têm essa postura, mas é a
realidade, lamentou.
Admitiram que a percepção desta hostilidade e aversão resulta da simples constatação
de que há tanta coisa sendo divulgada sobre a CM, como seus resultados benéficos para as
crianças, segurança e eficácia que, se o médico não disponibiliza nem o mínimo de tempo para
pesquisar, ler a respeito e verificar se há ou não fundamento científico, é difícil não pensar que
tal desmotivação não decorra do preconceito.
Neste sentido, ressaltaram que muitos colegas prescrevem medicamentos potentes, com
efeitos colaterais importantes e que podem gerar consequências graves para o paciente, como
opioides e outros medicamentos, de modo que não veem outro motivo senão o preconceito e
falta de conhecimento para justificar essa postura de refuta, rejeição, desprezo e repulsa à
prescrição da Cannabis, o que para eles claramente está ligado à planta.
Por conseguinte, acrescentaram que, não obstante, prevalece uma cisão completa
conceitual, visto que associam a maconha fumada com o CBD ou mesmo que o CBD é remédio
e maconha é outra coisa, de modo que não é factível ainda a clareza de que CBD é remédio e
não deixa de ser maconha.
Assim, inferiram a compreensão sobre o papel do médico prescritor assumindo um
posicionamento proativo, publicando estudos, fazendo lives, no intuito de desmistificar o
assunto, salientando sobre a relevância do trabalho de quebrar o preconceito, fazendo com que
64
demandas da sociedade.
Os entrevistados apontaram que a falta de conhecimento também deve ser compreendida
a partir das dificuldades de acesso à informação, situação que perdura na graduação e na pós-
graduação, posto que o desconhecimento sobre o SEC e o uso de canabinoides é algo comum
tanto aos médicos recém-formados quanto aos médicos especialistas, como por exemplo,
neurologistas, psiquiatras e oncologistas que ainda não prescrevem canabinoides. Esta
constatação está atrelada ao fato de que não há cursos estruturados, apenas cursos livres avulsos,
o repertório literário manual específico sobre SEC e Cannabis é ínfimo, a divulgação sobre o
tratamento na sociedade de forma geral e peculiarmente na comunidade acadêmica é restrita,
bem como a divulgação sobre os resultados da terapêutica canabinoide na prática clínica, o que
por vezes leva o médico a ter “um pé atrás”, esperar ficar pronto todos os estudos, ensaios
clínicos randomizados de altos níveis de evidência, para depois decidir se quer ou não
incorporar aquela opção dentro de sua prática.
Alguns médicos, apesar de terem um bom nível de conhecimento e experiência na
prescrição de Cannabis, ou mesmo saberem que é um tratamento com baixos riscos, revelaram
que não se sentem plenamente seguros, pois é preciso considerar o preconceito social que
também está nos pacientes e se precaver de algum possível processo judicial. Muitos
prescritores afirmaram que o processo de aquisição de conhecimentos nunca é suficiente, é
inesgotável, há muito que estudar e aprender principalmente da prática clínica, por não ser uma
terapêutica com protocolos estabelecidos, por ser caro, não existir acúmulo amplo sobre o
assunto, um conhecimento que está sendo construído, carece de estudos clínicos para
determinadas doenças, alvitrando que dá para melhorar bastante, para aperfeiçoar, nem estamos
perto do todo que é possível desvendar, do que ainda é possível evoluir, do que tem para
acontecer.
Outros se descreveram novatos, indicando que ainda estão aprendendo, estudando, se
inteirando, tendo experiências próprias como prescritor, discutindo casos, tomando coragem
para ampliar o repertório, mantendo-se sempre em busca de cursos, atualizações, pós-
graduação, congressos, aulas e palestras, instruções de outros médicos, retomando que, em
termos científicos, há muito a estudar principalmente sobre interação medicamentosa, relação
com a gravidez e puerpério, áreas em que ainda têm receios, situações em que vêm muita
diferença na resposta terapêutica, entender melhor a forma quantitativa de miligramagem,
dentre outras questões.
Por outro lado, alguns participantes disseram que tinham ressalvas e um pouco de medo
de prescrever a Cannabis no início, por ser uma terapêutica completamente diferente das outras
68
medicações costumeiras, na qual cada indivíduo é único e cada caso tem uma dose específica,
uma resposta específica, o que de certa forma gera uma certa insegurança. Entretanto,
esclareceram que a tranquilidade veio com o tempo, por meio dos estudos e da prática clínica
realizando o manejo, das melhoras vivenciadas junto aos pacientes, constatando que é uma
prática segura, com nenhum ou pouco efeito colateral, e o máximo que pode acontecer é não
alcançar os resultados esperados. Citaram ainda que lhes trouxe confiança fazer cursos, ler
livros e artigos, de modo que atualmente sentem uma segurança razoável, interagindo com
outros prescritores, com grupos de outros profissionais, compartilhando informações, cientes
de que os avanços científicos são gradativos.
Noutra perspectiva, entrevistados relataram que só começaram a prescrever quando se
sentiram seguros com todo o contexto que envolvia a CM, tanto com relação à própria família,
as questões judiciais, mas principalmente ao se razoar sobre a segurança para o paciente,
aplicando o princípio de primum non nocere, ou seja, de primeiro não fazer nenhum mal à
pessoa, posto que os canabinoides não têm potencial tóxico a ponto de causar uma depressão
respiratória, não causarão prejuízos ao paciente.
Nesta perspectiva, os participantes destacaram que a falta de formação e seus
determinantes compõem um fenômeno muito desafiador ao pensar sobre o número escasso de
prescritores de CM no Brasil, visto que muitos profissionais ainda não ouviram falar sobre o
assunto, os prescritores estão com as agendas abarrotadas e muitos pacientes precisam do
tratamento, mas permanecem marginalizados, atravessados também pelo alto custo.
Neste âmbito, citaram outro fator incidente explicando que existem médicos que não
conhecem por própria experiência os resultados da terapêutica canabinoide e preferem que o
outro prescreva que não ele, por medo. Por vezes, este medo vem do receio de não saber
manejar, de ter dificuldades com os pacientes, por falta de conhecimento ou por reticência
pessoal, por não querer mesmo se tornar um prescritor. Desta maneira, afirmaram que quem se
propõe a buscar, a pesquisar sobre o SEC acaba, se não prescrevendo, indicando um profissional
prescritor. Entretanto, ressaltaram que se o profissional médico além de não obter informação
estiver fechado, não prescreverá nunca.
Desta forma, pontuaram que não tem como ser experiente sem começar a prescrever a
CM, pois por mais que se estude, a prática clínica exige outros conhecimentos e habilidades
que são desenvolvidos com a vivência e experiência da prescrição, de modo que não há como
alcançar um nível suficiente de conhecimento apenas estudando. Complementando,
enfatizaram que ainda que a Cannabis seja algo seguro, é necessário saber manejá-la, saber
sobre o CBD, o THC e outros canabinoides, sobre o efeito entourage, terpenos e demais
69
substâncias do fitocomplexo, saber como encontrar a dosagem certa, a melhor dose, fazendo o
máximo possível para a adequada adaptação do paciente, a fim de se alcançar os melhores
resultados.
e alguns que não aceitam de forma alguma, pois não conceberam a possibilidade do uso
medicinal da Cannabis até os dias atuais.
O participante P5 pontuou que o pior preconceito sofreu dentro de sua família, pois, faz
parte de uma árvore genealógica de mesma especialidade e, ao decidir-se mudar de área,
rompeu com a tradição da família, com um planejamento de anos, ficaram sem falar com ele
por um preconceito pesado que perdura até hoje. Ele disse que seu pai, apontando o dedo em
sua cara, o julgou questionando se ele iria abrir um consultório para ficar fumando maconha
com o paciente e dizendo que iria manchar o nome dele, perguntando ainda se ele havia se
formado médico para ficar receitando maconha. Ele afirmou estar certo de que sua decisão foi
assertiva ao perceber que os médicos querem prescrever, os pacientes precisam do tratamento
e é difícil encontrar um profissional prescritor, assumindo um projeto de vida junto a sua noiva
e um amigo.
Noutro panorama, os entrevistados expuseram que a aceitação dentre os familiares foi
melhorando à medida que foram estudando, se apropriando e tendo bons resultados a partir do
tratamento com a CM, de modo que inclusive passaram a prescrever para seus entes.
5.2.1.1.3.2 Sociedade
determinado patamar de confiança propiciando que, ao abraçarem lutar por uma causa, as
pessoas param para escutá-los e refletem a respeito.
Segundo a concepção de um participante, existem dois grupos distintos de pessoas. O
primeiro trata-se daqueles que realmente não gostam, não entendem, não querem saber mesmo,
são preconceituosos, ignorantes e cabeça fechada, não importa se veem evolução e melhora do
paciente que faz o tratamento com a Cannabis, pois nunca se simpatizarão, ressaltando que é o
tipo de preconceito que está impregnado na sociedade, citando o exemplo da reação negativa
das imobiliárias quando buscava um imóvel para seu consultório. Por outro lado, esclareceu
que também há pessoas que se convencerão a partir de argumentos, de artigos e estudos, de
trocas de ideias e experiências, situações nas quais é possível observar que as pessoas estão
realmente melhorando. Para ele, as pessoas são muito “8 ou 80”, ou não querem saber, ou falam
que é fantástico e que tem algum parente que precisa do tratamento, um preconceito esdrúxulo.
Afinal, foi consenso dentre os prescritores sobre o trabalho fundamental que ou já
desempenham ou precisam se comprometer para a conscientização, tanto da classe médica, dos
profissionais de saúde, das pessoas que trabalham no judiciário, advogados, quanto
procuradores, juízes e defensores e citaram sobre palestras ministradas na OAB, na Câmara
Municipal, no serviço público fazendo visitas domiciliares, pois o entendimento da sociedade
como um todo é muito preconceituoso e desprovido de informações científicas.
questionam ironicamente se realmente tratam seus pacientes com Cannabis, afirmando que não
teriam essa coragem, colegas que tratam o assunto como se estivessem “prescrevendo crack
para criança”, fatos que ocorreram tanto com médicos de suas idades, como com médicos da
velha guarda que não gostam do assunto de jeito algum, causando um impacto de sofrimento e
frustração pela falta de apoio e pelo descrédito, o que consideram uma grande hipocrisia.
Por conseguinte, os entrevistados se posicionaram de que são profissionais que
deveriam difundir conhecimento e, pelo contrário, estão restringindo por puro preconceito e
desconhecimento, até mesmo privando uma gama de pacientes de ter acesso a um tratamento
que talvez fosse o melhor para suas necessidades. Entretanto, apesar de continuarem
enfrentando preconceito de muitos colegas, situaram que sempre se mantêm disponíveis para
conversar sobre o assunto.
Num foro mais específico, foi possível observar que, dentre as mulheres prescritoras,
houve mais relatos quanto a percepção de se sentirem apontadas, questionadas e julgadas, ao
ponto de ter repercussão sobre a prática profissional. Neste sentido, relataram tristeza e
descontentamento com relação aos demais médicos por manterem uma posição de rejeição e
não aceitarem o tratamento com a CM como uma prática médica, o que demonstra inclusive a
falta de conhecimento sobre uma terapêutica que tem se mostrado tão eficaz.
Neste ínterim, a entrevistada P16 descreveu que se sente muito mal pelo julgamento de
pessoas que a colocam como “maconheira” e a discriminam, até pelo jeito que a olham.
Entretanto, ela afirmou que prefere passar por estas situações desconfortáveis e se assumir como
uma profissional que está a favor da saúde, provocando nestas pessoas um incômodo que traga
reflexão.
Por outro lado, alguns entrevistados declararam que não sofreram preconceitos, não
tiveram quaisquer problemas, nunca foram questionados por estarem trabalhando nesta área e
acreditam que os outros médicos já entenderam, outros veem o tratamento com ar de
curiosidade e fazem perguntas pensando na possibilidade de tratar um parente que precisa,
muitos colegas de trabalho param e escutam sobre o assunto, a maioria sabe sobre a existência
do CBD, pois foi bem divulgado e os que não sabem ou não conhecem também não criticam,
ou mesmo aqueles que criticam ou não gostam atualmente não estão falando nada e aqueles que
têm um pouco mais de abertura estão começando a se informar, estudar e incorporar a
terapêutica em suas práticas clínicas, um cenário bem diferente quando comparado há 10 anos
atrás, tempo em que colegas precursores iniciaram a prescrição de canabinoides.
Apontaram que tem colegas que acham fantástico esta possibilidade terapêutica e os
apoiam, bem como outros com olhar um tanto mais empreendedor, dizendo que ganharão muita
73
grana, que serão muito procurados, que é uma área promissora na qual terão muito sucesso.
Também contaram sobre médicos mais velhos que querem aprender a respeito para abrir clínica
e estudantes que os procuram querendo realizar estágio no último ano da faculdade, pedindo
curso, módulos, aulas, planejando abrir uma clínica ou franquia quando se formarem.
Então, relataram de suas experiências que a opinião das pessoas tem mudado rápido e
hoje em dia, os mesmos colegas que tinham “um pé atrás” têm pedido ajuda, encaminhado
pacientes, querem entender como a terapêutica é aplicada, os consultam sobre as indicações,
principalmente quando veem a melhora de casos em que já não se tem mais o que fazer, ou
outros que não prescrevem mas reconhecem a própria limitação pela falta de conhecimento,
não condenam a decisão do paciente, o que de algum modo, já é um avanço.
Desta forma, pontuaram que o feedback por parte dos pacientes e colegas de trabalho
tem sido positivo e isso se deve aos estudos publicados e relatos de casos demonstrando a
eficácia do tratamento com a CM, cujos resultados com o passar do tempo legitimam a prática
clínica.
Assim, os entrevistados salientaram que muitos médicos optam por não prescrever
justamente por não poder contar com o apoio do CFM que, numa situação jurídica, será o
primeiro a ser contra a posição do prescritor, quando na verdade deveria defender os associados.
Neste sentido, complementaram que quando foram descobertas as ações dos canabinoides não
houve qualquer divulgação por parte do CFM, que, destarte, mantém uma nébula em torno do
assunto e se vale do medo para coagir a ação dos médicos prescritores.
Por conseguinte, alguns participantes relataram que a judicialização da medicina é uma
temeridade muito grande dentre os médicos, enfatizando que enfrentaram muito medo de sofrer
perseguição pelo CRM. Entretanto, esclareceram que este sentimento acaba quando o médico
se instrui juridicamente e passa a conhecer as outras leis e meios que o protegem, entendendo
que o conselho até pode tentar caçar o CRM do médico, mas perderá a ação porque a
regulamentação da ANVISA se sobrepõe à resolução do CFM, apropriando-se de que o ato
médico é inviolável e ninguém pode ser indiciado, nem preso por prescrever o tratamento com
Cannabis.
Neste ínterim, os médicos afirmaram que o CFM está muito defasado e atrasado sobre
o assunto, pois desde 2014 muita coisa aconteceu e não modificaram uma resolução que não
tem valor jurídico algum. Assim, queixaram-se da lentidão nas instruções e também apontaram
a necessidade de que o conselho assuma uma postura mais favorável, que se manifeste sobre o
assunto e traga uma maior tranquilidade e segurança aos médicos associados, principalmente
para aqueles que estão iniciando, pois há vários colegas bem interessados em conhecer sobre o
SEC, um sistema importantíssimo, e saber como é o tratamento com canabinoides.
No tocante às restrições impostas, os entrevistados enfatizaram sobre a repercussão das
consequências que acabam por impedir o acesso dos mais pobres e vulneráveis posto que
inviabiliza a prescrição do tratamento com Cannabis no SUS. Desta forma, retomam quanto a
necessidade de atitudes mais pró-ativas dos médicos, assumindo junto aos pacientes uma
postura de resistência, coragem e enfrentamento perante o CFM, ainda que a garantia de direitos
demande a justiça.
Os participantes contaram que, com relação aos pacientes e familiares, não passaram
por nenhuma situação de desrespeito ou não aceitação quanto a decisão de serem prescritores
de CM, não perceberam qualquer paciente que tenha abandonado o consultório, pelo contrário,
muitos acabam inclusive trazendo algum familiar que também precisa do tratamento, um pai,
75
um irmão, assim como muitos de nós conhecem alguém com dor crônica, um familiar que é
epilético, autista, alguém com depressão.
Entretanto, pontuaram que não desconsideram o fato de que existem muitas pessoas com
preconceito sobre o uso da Cannabis e quando o tratamento é proposto, ficam “de cabelo em
pé”, cabendo ao prescritor esclarecer, explicar e nunca forçar de modo que, se o paciente tiver
medo, não quiser, não for uma terapêutica que ele aprove por qualquer razão, respeitam a sua
decisão.
No mesmo sentido, alguns entrevistados explanaram que identificam pacientes que se
beneficiariam muito com o tratamento, mas esbarram no preconceito dos pais, um cenário
complicado e que traz algumas dificuldades, não deixam o médico totalmente confortável em
conversar sobre o assunto, pois nem sempre são bem recebidos. Assim, sugerem a CM quando
já conhecem o paciente há um tempo, mesmo porque não é para todos os pacientes que indicam
o tratamento.
Noutra situação, um médico expôs que quando se trata de casos em que já possui larga
experiência na prática clínica, consegue falar sobre o tratamento na primeira consulta sem
barreiras, pois sabe dos resultados com propriedade. Mas também revelou sobre vivências com
pacientes que aceitam o tratamento a princípio e depois voltam atrás e vice-versa.
Os entrevistados apontaram que ultimamente há uma busca expressiva pelo tratamento
que tem aumentado progressivamente, de modo que têm recebido muitas pessoas que já chegam
com a demanda do tratamento com Cannabis para suas patologias, dentre eles pacientes
encaminhados por colegas especificamente para a prescrição de canabinoides, o que gerou um
crescimento importante no movimento dos consultórios.
Por outro lado, citaram que pensam na coragem dos pacientes em praticar a
desobediência civil, das mães que foram taxadas como traficantes internacionais na defesa dos
direitos de seus filhos, então, questionaram por que sendo médicos não poderiam se juntar aos
pacientes nesta luta, assumindo também estes riscos.
Isto posto, descreveram sobre a postura profissional, narrando que mantêm uma prática
tanto no serviço público como no consultório de proximidade e dedicação junto aos seus
pacientes, um aspecto relevante do tratamento com Cannabis, pois além da relação médico-
paciente, também acontece uma aproximação com os familiares e esse contato é muito positivo.
Desta forma, por fim, familiares também acabam aderindo ao tratamento com canabinoides
para questões de saúde e inclusive se apropriam do tema até mesmo realizando cursos.
76
5.2.1.2.1.1 Motivações
filhos de pacientes que chegavam já relatando o uso do óleo artesanal, buscando ajuda médica
para o manejo adequado do tratamento e saber mais a respeito, se podiam continuar, buscavam
por uma opinião e direcionamento médico.
Neste sentido, apontaram que eram contextos que traziam muito incômodo e os
deixavam com a sensação de impotência, de pouco estarem fazendo por aquelas pessoas,
situações que os chocavam muito, se sentiam incapazes como profissionais, circunstâncias de
busca da própria família que chegava com artigos e uma série de informações e terem que
assumir que não sabiam o que fazer, de modo que os impulsionaram a estudar, a buscarem sobre
como poderiam resolver tais problemas mais a fundo, melhorar a qualidade de vida daquelas
pessoas.
Dentre os participantes, dois médicos pontuaram (P5 e P8) que estavam muito
insatisfeitos com a forma como vinham exercendo a medicina, recebendo pacientes que
tomavam remédios para pressão, diabetes, dores, para dormir, antidepressivos, ansiolíticos e
fármacos para o estômago por conta de tantas drogas que usavam e isso em série, uma situação
frequente, recorrente e que se arrastava ao longo de anos, sem melhorar a vida daquelas pessoas,
copiando receitas e ajudando a manter essa sequência de coisas, com cada pessoa tomando uma
média de 10 a 12 medicamentos por dia sem mudar os hábitos de vida, sem conseguir emagrecer
e com muita depressão, de modo que em vez de ajudá-las a melhorar, de certa forma estavam
contribuindo para ficarem mais doentes e dependentes de todas aquelas medicações.
Segundo eles, este cenário todo lhes trazia muita inquietação, indignação e foi quando
pensaram nas opções dentro da fitoterapia, começaram a considerar sobre a Cannabis, se
informaram e viram que era um tratamento com resultados positivos, perceberam que era um
campo de atuação que poderia ser mais palpável e de fato fazer diferença na vida de seus
pacientes. Então, tomaram a decisão de não mais fazerem receitas daqueles tipos, pois com a
CM conseguiram diminuir os remédios para pressão, regularam a glicemia, diminuíram a
ansiedade e repensaram o estilo de vida, passando a viver de uma maneira mais simples e com
saúde, uma mudança deveras significativa.
Dois participantes (P10 e P11) contaram que a grande motivação enquanto prescritor foi
decorrente da atuação em entidades do terceiro setor, participando de mutirões de atendimento,
acompanhando o trabalho de outros prescritores, tendo a oportunidade de verem na prática o
manejo clínico, os resultados dos pacientes, impactos sociais e repercussões na vida tanto dos
pacientes como das famílias, salientando que há uma demanda efetiva de pessoas que buscam
pelo tratamento por meio das associações que não pode ser desconsiderada.
O prescritor P11 contou que todo esse movimento junto à sociedade civil organizada o
78
motivou, de modo que levou suas vivências para dentro da Universidade, desenvolveu projetos
de extensão prevendo a realização de atendimentos para prescrição de canabinoides, compondo
momentos bem dinâmicos em que está dialogando com diversos grupos para possíveis
parcerias, o que, segundo ele, é muito gratificante e, até onde pode revelar, já tem cerca de 75%
de resultados com o uso da CM como muito bons e espetaculares.
Noutra perspectiva, entrevistados relataram que conhecer a terapêutica por meio de
palestras, congressos, seminários, mais profundamente por meio das experiências demonstradas
em cursos sobre prescrição de Cannabis e efetivamente os resultados têm sido maravilhosos, o
que os motivam muito. Desse modo, a imersão em conhecimento os encorajou a decidirem
tentar esta nova opção de tratamento, se convenceram de fato a prescrever, momento em que
perceberam que estavam se reinventando em algo realmente palpável que foi um divisor de
águas, pois era um cenário sem médico para “dar a cara a tapa” e estava na hora de usarem a
credibilidade profissional, se exporem e assumirem o trabalho para valer.
Continuando, revelaram que uma coisa é ler sobre um assunto, estudar, saber a respeito
e, outra coisa, é ver acontecer, acompanhar todo o processo, certificar na prática a melhora do
paciente, a surpreendente diferença na qualidade de vida, experiências que mudam o ponto de
vista enquanto médico de forma positiva, pois deixam o profissional impactado, despertam o
entusiasmo para estudar, não deixar mais de se dedicar e se aprofundar, porque vale toda a luta
contra qualquer preconceito imposto ao trabalho como prescritor.
Por unanimidade, em todos os discursos ficou evidente que a motivação médica para
prescrever está intimamente vinculada às respostas à terapêutica da CM vivenciadas pelos
participantes com alcance de resultados tão positivos, que os estimulam cada vez mais a
prescrevê-la, além de ser notória a adesão dos pacientes ao tratamento, percebendo-se a baixa
ou nenhuma desistência. Por conseguinte, enfatizaram que são vidas que o tratamento com a
Cannabis tem feito toda a diferença, trazendo uma melhora significativa sobre a disposição, a
vontade, o apetite, a diminuição da insônia e da dor, o otimismo, voltam a sorrir, contar piadas
e, de modo especial, os pacientes terminais que falecem podendo sorrir, um conforto muito
diferenciado, um resultado tão expressivo que fica marcado e faz desejar que outros pacientes
tenham a mesma oportunidade.
Segundo os relatos, a expressão dos sentimentos dos médicos experienciando os
resultados positivos, se não na queixa principal, na melhora de algum outro aspecto associado,
traz ao prescritor esperança, alívio diante do sentimento de impotência frente à realidade dos
pacientes refratários e polimedicados, pessoas que atendem em seus consultórios, pronto
socorro, atenção primária e hospitais, cuja repercussão proporciona a retomada da viabilidade
79
de acreditar no cuidado da prática médica. Assim, citaram que o vínculo, afeto e relação de
confiança tornam-se intensos, de modo que conjugam os resultados numa série de adjetivos
como “impressionantes, notórios, surpreendentes, parecem milagre, parecem mágica, são
inegáveis”. Tais expressões remetem ao êxito frente à possibilidade de reduzir o sofrimento, de
modo especial e peculiar dos pacientes refratários, situações em que foram esgotadas as opções
terapêuticas convencionais.
Por fim, lamentaram não ter começado antes a utilizar esta ferramenta terapêutica
incorporando-a na prática clínica, por não terem conhecido essa possibilidade durante a
formação, pois já teriam ajudado muitas pessoas, ofertando para seus pacientes um melhor
tratamento.
prescritores de Cannabis e agora está começando a se assumir, divulgando seu trabalho nas
redes sociais e esta nova fase tem feito a diferença em sua vida pessoal e está fazendo em seu
consultório, pois identificou que precisa continuar a acreditar em si e ajudar as pessoas que
precisam, sem hipocrisia.
Por outro lado, vários médicos pontuaram que, desde o início de suas trajetórias na
prescrição de CM, não passaram por nenhuma experiência constrangedora ou desagradável,
não tiveram maiores problemas, não sentiram mudanças abruptas, não foi algo polêmico,
ocorreu como algo normal e tranquilo, pois na prática observavam que seus pacientes de fato
estavam melhorando e acreditam que esta aceitação pode estar ligada ao fato de serem pessoas
muito conhecidas, já estarem no mercado de trabalho há muito tempo, terem uma história e um
nome construído, boas referências, o que determina de certa forma que a sociedade atribua
crédito e confiança ao trabalho que desenvolvem, então seguiram estudando e se aprofundando,
aumentando a confiança, com retornos sempre positivos.
Sob um prisma diverso, dois entrevistados (P2 e P8) narraram que tornarem-se
prescritores de Cannabis trouxe mudanças na forma de cuidar dos pacientes, no sentido de ver
uma possibilidade de tratá-los integrando mais suas práticas clínicas, de forma ampliada,
pensando para além de protocolos, pensando no paciente como um todo. Assim, explicaram
que estudar o SEC e perceber que está envolvido em todos os processos do corpo humano,
conduziu uma reflexão sobre a contextualização das patologias neste todo, e que deveriam se
preocupar mais com a integralidade do cuidado.
Seguidamente, participantes expuseram que assumirem-se prescritores foi muito
positivo e não têm problemas com críticas, pois, de certa forma se sentem muito bem e mais
confortáveis em conhecerem e estudarem o SEC, constatarem os efeitos dos canabinoides,
capazes e conhecedores de um campo muito rico em possibilidades terapêuticas, uma saída bem
mais fácil e tranquila quando comparada aos alopáticos antipsicóticos, por exemplo. Desse
modo, hoje se veem como referência nesta área e avaliam que a prescrição de Cannabis agrega
muito valor à prática clínica pela versatilidade e pelo amplo espectro de ação, ressaltando que
os resultados de seus pacientes melhoraram muito, fatos que os levam a afirmar que a Cannabis
deveria fazer parte do arsenal de toda e qualquer especialidade médica.
Noutra concepção, alguns entrevistados contaram que, decidir atuarem especificamente
como prescritores de canabinoides, proporcionou priorizar a prática clínica alinhada ao prazer
em trabalhar numa perspectiva que lhes trouxe satisfação, declarando que gostam muito dessa
área, pois realmente impacta a vida dos pacientes e dos familiares, os resultados são
expressivos, os feedbacks são muito bons e vivenciar isso é muito prazeroso.
81
Nos aspectos financeiros, os médicos pontuaram que existe um custo que é real, pois
investem bastante em tempo para estudos, cursos, marketing, pagam aluguel de clínica, mas por
outro lado sentem que estão ajudando muitas pessoas, ganhando experiência clínica e sabem
que, num futuro não distante, será um trabalho muito grande e valorizado.
1. Efeitos colaterais
2. Cuidados 2. Interações medicamentosas
3. Riscos e contraindicações
1. Autoprescrição e
2. Vivências e 1. Experiência própria como paciente
prescrição para
experiências próximas 2. Vivências com entes familiares
familiares
Frente aos estudos, pesquisas e consolidação de evidências que, por ora, não
acompanham as demandas cotidianas, bem como a legitimidade dos resultados alcançados
pelos pacientes, os participantes expuseram sobre como vêm conduzindo a prática clínica,
mediando ciência e realidade com ética e responsabilidade, a fim de garantir aos seus pacientes
82
o melhor tratamento nas distintas condições do ciclo da vida, bem como os melhores resultados
mediante os diversos objetivos terapêuticos.
Conforme relataram os entrevistados, nosso SEC foi descoberto por conta de pesquisas
referentes à planta Cannabis sativa L, durante estudos sobre o THC, quando o primeiro receptor
canabinoide foi identificado no cérebro, constatando que o mesmo se ligava a estruturas de
células do nosso Sistema Nervoso, advindo deste fato sua nomenclatura. Assim, enfatizaram
que esta descoberta obviamente não remeteu existir um receptor no cérebro só por existir a
planta, mas, foi a partir daquele momento que as pesquisas avançaram e progressivamente
pesquisadores têm decodificado um complexo sistema, suas ações e funções em nosso corpo.
Neste ínterim, os prescritores explicaram que a resposta terapêutica ao uso de
canabinoides acontece, pois temos receptores espalhados pelo nosso corpo todo, o que produz
um efeito que não trata uma doença especificamente, mas atua no equilíbrio de todo o
organismo buscando a homeostasia. Assim, quanto maior a homeostasia, melhor o resultado.
Em relação aos resultados, os médicos apontaram que, quando o paciente vai iniciar o
tratamento, é importante esclarecer que o tempo da resposta terapêutica é muito individual e
peculiar, de modo que há pacientes que melhoram em três dias, outros com uma semana e outros
demoram meses para alcançar a remissão dos sintomas, os melhores benefícios, mas, de forma
geral, pontuaram que a melhora é rápida e notável.
Neste sentido, ressaltaram que o prescritor deve ter em mente que não haverá prejuízo
ao paciente e que é possível manejar a Cannabis tranquilamente sempre começando com doses
baixas, aumentando devagar e acompanhando o paciente. Complementando, explicaram que a
terapêutica canabinoide não é como na medicina convencional que se prescreve tantos
miligramas por quilo, até existe uma indicação neste sentido, mas o mais importante é que a
resposta terapêutica será específica a depender de cada pessoa, do SEC do indivíduo naquele
momento que está passando, de modo que o ideal é estar sempre pensando que o paciente pode
83
responder com uma dose baixa, fazendo ajustes aos poucos, monitorando e observando se não
passou a janela terapêutica, ou seja, se não ultrapassou a melhor dose, pois acima disso o
paciente começa a não ter o efeito esperado.
Os entrevistados afirmaram que o fato de ter uma segurança bem conhecida sobre o
CBD, dá uma tranquilidade para o médico para testar a eficácia, pois é questão de fazer a
tentativa do tratamento com o paciente. Entretanto, apontaram quanto a importância de
conhecer e estar atento à possíveis interações medicamentosas, pois qualquer medicamento que
seja metabolizado pelo Citocromo P450 do fígado, pode interagir com o CBD, o que não é
impeditivo de usar, mas é necessário acompanhar por meio de exames, especialmente de função
hepática e coagulação, citando como exemplo o uso concomitante com fármacos como o
Clobazam (Frisium) e os antiagregantes plaquetários.
Diante do exposto, os entrevistados afirmaram que a Cannabis é uma ferramenta
terapêutica versátil e eficaz que pode ser prescrita para todas as faixas-etárias, conforme
critérios de indicação, anamnese e exames, para uma variedade de situações clínicas, sintomas
e doenças, principalmente as refratárias.
com fármacos convencionais não tem bons resultados, pois deixam a criança robotizada. Nesta
perspectiva, destacaram dos aspectos sobre a clínica como principais benefícios no TEA: a
melhora da sociabilidade, da cognição e da modulação comportamental, relatando que há
crianças que começam a falar, houve redução da hiperatividade, melhora da afetividade, do
humor e do convívio social, a criança passa a brincar, para de convulsionar, de gritar, de bater
a cabeça contra a parede, melhora o sono, vai acalmando e volta a frequentar a escola, onde
tinha dificuldades de aceitação.
Diante de suas vivências, descreveram os resultados alcançados com o tratamento com
a Cannabis no TEA como espetaculares, excelentes e notáveis, explicitando que quando
comparado ao tratamento com medicamentos alopáticos, percebe-se que o paciente responde
claramente melhor ao tratamento com canabinoides.
Dentre as principais repercussões sociais, pontuaram de forma enfática a redução do
sofrimento da mãe que nestas situações sempre está em estado de alerta, desesperada e sem
dormir, de forma que melhora muito os ganhos na qualidade de vida.
Na Epilepsia, os participantes citaram que o tratamento com a CM é eficaz para 70%
dos pacientes, está indicado e comprovado cientificamente. Explicaram que há pacientes que
deixam de usar medicamentos de resgate, mas mantêm o uso dos alopáticos e há situações em
que os resultados são tão positivos que torna possível retirar completamente os medicamentos
alopáticos e ficar apenas com a Cannabis. Diante disso, lamentaram que os casos mais
incidentes ainda são os quadros dos pacientes refratários, pois várias famílias procuram pelo
tratamento com canabinoides no desespero, como último recurso terapêutico.
Na adolescência, expuseram que a Cannabis é indicada para casos de autismo, epilepsia
e epilepsia refratária, transtornos de ansiedade, depressão, Transtorno Obsessivo Compulsivo
(TOC), TDAH, Síndrome de Tourette, Transtorno Bipolar, apontando que, nesta faixa-etária,
em muitos casos o transtorno de ansiedade e depressão estão associados ao vestibular.
Assim, mediante as considerações referendadas pelos médicos prescritores, é possível
considerar que o tratamento com canabinoides na infância e adolescência é seguro e que, além
de tratar sintomas, tem como foco terapêutico essencial a qualidade de vida, revelando que
quanto mais cedo inicia-se o tratamento, melhor é a resposta.
pacientes não alcançam um nível satisfatório de controle dos sintomas por meio dos
medicamentos convencionais ou não toleram seus efeitos colaterais.
Segundo os prescritores, em adultos jovens a grande procura é para o tratamento de
ansiedade, angústia e depressão, situações que intensificaram em razão da pandemia pelo
isolamento social, home office, condições financeiras e incertezas sobre a continuidade do viver.
Nestas condições, enfatizaram que as respostas são incríveis e citaram a melhora do sono,
redução da ansiedade, melhora da depressão e humor, e interrupção das crises de pânico,
ajudando a acalmar.
Um dos médicos contou que houve um caso em que foi necessário o uso de coadjuvantes
alopáticos para resolver completamente a queixa principal de seu paciente, a insônia.
Entretanto, afirmou que durante o tratamento apenas com canabinoides, pôde observar
melhoras significativas nas causas de base que compunham o quadro clínico, referindo-se ao
desaparecimento da dor no corpo e controle da ansiedade.
Outras patologias também descritas pelos prescritores tratáveis nos adultos mais jovens
compreendem: o câncer, TOC, Síndrome de Rett, doenças refratárias, pânico, fobia social,
transtorno bipolar, transtorno esquizoafetivo, autismo, pós-operatório, lúpus, artrite, artrose e
fibromialgia.
Na explanação de um dos participantes, houve a narrativa sobre sua experiência clínica
no tratamento da Síndrome de Tourette, uma doença que afeta muito a inserção social do
paciente, na qual apenas após ter tentado todas as medicações e protocolos convencionais sem
resultados, partiu para o tratamento com canabinoides. Entusiasmado, contou que desde o início
do tratamento com a Cannabis o resultado foi excelente, inclusive permitindo a diminuição dos
fármacos alopáticos.
Outro prescritor contribuiu que a especialidade de ortopedia já entende a ação dos
canabinoides, pois vê que o paciente em uso de CM obtém o alívio da dor e a consolidação
óssea é muito mais rápida.
Na população entre 30 a 60 anos, segundo os participantes, uma das queixas recorrentes
associada aos quadros clínicos é a dor de difícil controle em circunstâncias que requerem
tratamento multiprofissional como dor neuropática, fibromialgia, dor decorrente do diabetes,
artrite, artrose e outras dores crônicas, descrevendo que o resultado do tratamento é muito
positivo e notório, lamentando que muitos destes pacientes só buscam pelo tratamento com
Cannabis quando a dor evoluiu para um estágio insuportável.
Na oncologia, os prescritores afirmam que a terapêutica com canabinoides corrobora
nos cuidados paliativos, atua como antineoplásico coadjuvante à quimioterapia, e tem indicação
86
desde o início do tratamento. Outros resultados descritos pelos entrevistados foram: conseguir
parar o avanço do câncer, ao longo do processo não ter perda de peso, conseguir comer, não ter
quase nada de efeitos adversos da quimio e radio, não ficar vomitando, não passar mal e ao final
ganhar peso. Assim, descreveram como uma melhora que fica marcada sobre a qualidade de
vida, a disposição, a vontade, o apetite, a diminuição do enjoo, o otimismo, relatando que alguns
pacientes voltam a sorrir, contar piada, do jeito que eram antes e nos quadros graves falecem
sorrindo, em paz.
Para pacientes com HIV, consoante à experiência clínica de um dos médicos, a CM
trouxe benefícios em amplo espectro e pode ser prescrita tanto no início do tratamento, como
em fase de estabilidade viral, ajudando no controle da dor e outros sintomas.
Dentre os participantes, alguns contaram sobre suas vivências junto aos pacientes no
tratamento da dependência química. Neste contexto, indicaram a eficácia do uso medicinal no
tratamento da dependência à maconha fumada, cocaína, na redução de danos, ressaltando sobre
a alta procura dos pacientes, descrevendo sobre os resultados a melhora da fissura, redução da
impulsividade e ansiedade, o paciente deixa de buscar a droga, para de gastar, de trazer
prejuízos à família. Por conseguinte, revelaram que o uso da CM interfere no ciclo do vício, na
busca pela alteração da consciência para alívio do sofrimento, pois, reduz a ansiedade, a
impulsividade, o nervosismo, a irritabilidade, além de clinicamente não sobrecarregar o fígado
e corroborar contextualmente para a recuperação dos vínculos e laços sociais rompidos. Na
experiência clínica e opinião destes profissionais, nenhuma outra medicação proporcionou
todos estes benefícios.
Outros entrevistados relataram situações nas quais a CM é prescrita para familiares de
pacientes com demência por apresentarem comumente quadros de ansiedade e insônia, e
também como ferramenta terapêutica de prevenção. Estes médicos apontaram que há estudos
em animais que demonstram a possibilidade de uso como prevenção, pelo efeito da
neuroplasticidade.
De modo geral, os participantes identificaram que a indicação da Cannabis para adultos
entre 50 a 60 anos de idade é prevalente em casos de Parkinson, Alzheimer e outras demências,
doenças relacionadas à saúde mental, dor crônica, casos oncológicos e fibromialgia, ressaltando
ainda sobre a crescente procura diretamente pela Cannabis para o tratamento de condições de
saúde, sobretudo de pacientes que não querem usar alopáticos.
Destarte, destacaram que os benefícios fazem a diferença na vida dos pacientes, pois, o
tratamento com canabinoides exige uma mudança em todo o contexto e estilo de vida para o
melhor resultado, proporcionando além da melhora orgânica, uma melhora psíquica, o que
87
fibromialgia, dor crônica e principalmente na dor neuropática. Desta forma, esclareceram que
por vezes os tremores ainda permanecem, entretanto, é possível reduzir medicações alopáticas
nos casos de politratamento e o paciente consegue ter ânimo e sair da cama, uma resposta muito
gratificante.
Outro resultado extremamente significativo do tratamento com CM para os idosos,
relatado por um entrevistado, é a imunomodulação, algo importantíssimo, pois o paciente deixa
de ter infecções recorrentes, evitando uso de antibióticos e internações, um benefício
diferenciado que muitos prescritores desconhecem completamente.
No tratamento de idosos com câncer, os entrevistados enunciaram que os resultados são
incríveis e sobressaem em relação às demais doenças, pela melhora na qualidade de vida do
paciente. Estes médicos relataram esta percepção tanto ao narrar experiências próprias como no
compartilhamento dos bons resultados dentre os prescritores, concordando de que não é
possível afirmar que o tratamento com canabinoides cura câncer, pois uma metástase pode
aparecer até 20 anos depois do tumor inicial. Entretanto, foram unânimes em orientar que o
tratamento deve ser iniciado de forma precoce, a fim de que traga os melhores benefícios,
acrescentando que, existem estudos demonstrando que a CM ajuda a reduzir tumores em
diversos tipos de câncer como de mama, ovário, pâncreas, sistema gastrintestinal, pulmão e
mioblastoma.
Neste ínterim, um dos prescritores explicou que os canabinoides têm mecanismos de
ação antineoplásicos diferentes dos quimioterápicos e atuam em sinergia, mudando a relação
do tumor com o sistema imune, reduzindo a atração dos macrófagos e a disseminação de
metástases, diminuindo a capacidade das células cancerosas de formarem novos vasos. Segundo
ele, o CBD em altas doses consegue inibir o crescimento do tumor, pois induz um ambiente
desfavorável para seu crescimento, ao mesmo tempo em que provoca apoptose matando as
células do câncer. Assim, explicou que no tratamento de mioblastoma, o uso de CBD e THC
em altas doses reduz a velocidade de crescimento do tumor, além de matar as células
cancerígenas por apoptose, modificando a história da doença.
Para além do impacto nas especificidades fisiopatológicas da doença, os participantes
identificaram que o tratamento com canabinoides na oncologia tem três focos fundamentais
para o paciente: a quimioterapia, o cuidado paliativo e a sobrevida.
Em relação à quimioterapia, descreveram que a Cannabis dá suporte ao tratamento
diminuindo os efeitos colaterais das medicações, atuando sinergicamente e inclusive reduzindo
o tempo total de quimioterapia.
Se o câncer está em estágio avançado, os médicos indicaram que os benefícios da
90
Cannabis estão voltados aos cuidados paliativos, no suporte à dor, aos aspectos
psicoemocionais e à melhora na qualidade de vida, reduzindo o sofrimento.
Mas, dentre os três focos, debatem que o benefício principal é o aumento da sobrevida
geral do paciente, que pode acontecer tanto pelo tratamento em si como também pela maior
proximidade na relação médico-paciente que o tratamento exige. Neste ínterim, salientaram que
o tratamento com a CM traz qualidade de vida para idosos com doenças em fase terminal,
sentimento de esperança e de certa forma satisfação, trazendo impactos também para a família.
Os prescritores citaram vários efeitos benéficos para a terceira idade, dentre eles os
principais foram os neurorregenerativos, neuroprotetores, anti-inflamatórios e sedativos que
favorecem em especial os pacientes com doenças refratárias e os pacientes polimedicados, que
sofrem com os efeitos colaterais dos medicamentos alopáticos.
Nesta mesma perspectiva, também descreveram que de forma geral os principais
resultados compreendem: a melhora da dor, do sono, do apetite, efeitos positivos na modulação
psicoemocional, melhora do comportamento disfuncional, melhora da agressividade, os
pacientes voltam a sorrir, a conversar, reconhecer os familiares, voltam a fazer algumas coisas
que não conseguiam mais fazer sozinhos, sendo possível inclusive o paciente ter percepção
sobre a própria melhora, mesmo em queixas subjetivas.
Por conseguinte, relataram que estes resultados significativos ocorrem no tratamento de
doenças neurológicas e crônico-degenerativas, pois há o resgate da autonomia do paciente, fato
que muda completamente a vida dos cuidadores que têm a sobrecarga diminuída. Assim,
afirmaram que é visível a situação destes cuidadores que antes passavam a noite acordados
cuidando da agitação do idoso e tendo que trabalhar no dia seguinte, frente às mudanças com a
melhora do idoso, pois passam a conseguir dormir com tranquilidade e voltar a uma rotina
cotidiana com qualidade de vida.
Na Saúde do Idoso, portanto, os participantes trouxeram o entendimento de que a
Cannabis, ao tratar patologias e sintomas, harmoniza as relações do paciente com a família à
medida que modula o humor, o comportamento e a percepção, melhora a autonomia e traz alívio
ao sofrimento, devolvendo ao paciente a dignidade de viver, dias nos quais ainda seja possível
voltar a sorrir.
Uma circunstância também apontada pelos prescritores foi a situação de que, por vezes,
os pacientes com dor crônica usam a Cannabis na forma fumada quando precisam de uma via
de administração rápida. Neste sentido, enfatizaram sobre a importância de esclarecer ao
paciente de que a queima é prejudicial e a fumaça é tóxica ao sistema respiratório, que traz
riscos, pode causar tolerância e certa dependência no futuro.
Alguns entrevistados sinalizaram que, mesmo analisando o conjunto plural de seus
pacientes, nenhum deles apresentou falha terapêutica ou piora, inclusive nas situações em que
a Cannabis foi o tratamento de primeira escolha e também não presenciaram a ocorrência de
efeitos colaterais, afirmando que não houve situação alguma em que foi necessário retirar ou
mesmo diminuir a CM, por isso não veem riscos ou malefícios nesta terapêutica. Deste modo,
afirmaram que o tratamento com canabinoides além de ser seguro, com pouco ou nenhum efeito
colateral, minimiza efeitos colaterais do tratamento com alopáticos à medida que torna possível
reduzir as dosagens, bem como retirar medicamentos. Assim, esclareceram que a Cannabis é
uma ferramenta terapêutica e é preciso saber usá-la, pois, tudo é questão de dose.
Um dos prescritores expressou sua indignação, dizendo que o pior efeito colateral é o
preconceito, pois leva muitos profissionais sem conhecimento a se posicionarem de forma
equivocada e errônea sobre o assunto.
Mediante as alegações e ponderações apresentadas pelos participantes, a experiência
clínica vivenciada junto aos pacientes revela que o tratamento com a Cannabis é seguro,
entretanto, podem ocorrer efeitos colaterais que são evitáveis quando o tratamento é manejado
adequadamente pelo prescritor, com a titulação da dose terapêutica.
Num discurso comum, alguns prescritores mencionaram que tomam cuidados com as
interações medicamentosas, especialmente em pacientes que utilizam anticoagulantes,
anticonvulsivantes, neurolépticos e principalmente benzodiazepínicos como Rivotril e
Diazepam, pois o uso simultâneo com a Cannabis tanto pode provocar sonolência como
provocar insônia, assim como altas doses de THC podem diminuir os níveis da nivaldina
(antirretroviral) se administrado concomitantemente, por isso é recomendado o intervalo de
administração de três ou quatro horas.
Entrevistados informaram que há muitos estudos sobre os receptores, enzimas e genes
relacionados ao CBD, mas ainda existe uma lacuna de estudos em relação ao THC, expondo
também que há certa preocupação e apreensão sobretudo em relação aos idosos que muitas
93
vezes já chegam polimedicados, no sentido de dificuldades que podem ocorrer durante a prática
clínica, salientando quanto a necessidade do médico aprofundar e ter atenção às possíveis
interações e saber como evitá-las.
Comumente os participantes apontaram aspectos que demonstram conhecimento em
relação aos fármacos que interagem com a CM, como evitar as interações, a necessidade de
aprofundamento nas pesquisas científicas e as situações de polimedicação que inspiram maiores
cuidados e acompanhamento.
Ao questionar sobre possíveis riscos do tratamento com a CM, a maioria dos relatos dos
entrevistados descartou prontamente a possibilidade de riscos pelo uso medicinal e expressou
preocupações em relação ao uso fumado ou abusivo do THC, correlacionando à possibilidade
de desenvolvimento ou não de psicose e/ou esquizofrenia.
Alguns dos prescritores apontaram que, apesar de não terem presenciado qualquer
situação a respeito, o uso de THC em altas doses pode tornar o paciente menos interativo,
indisposto para o trabalho, trazendo repercussões na responsabilidade do indivíduo e impactos
sociais, tal como acontece no abuso de opioides. Também relataram que, quanto ao uso de
maconha fumada, é importante pensar os riscos para a população pediátrica e para os jovens
com propensão genética para esquizofrenia, pois o abuso de THC pode desencadear quadro
psicótico.
Neste sentido, apresentaram como principal contraindicação ao uso de THC os casos de
pacientes esquizofrênicos, psicóticos intensos, transtorno bipolar exacerbado e outros
transtornos psiquiátricos ou com casos na família, por receio de desencadeamento de crise.
Explicaram que são poucos casos, mas são pacientes que inspiram mais cuidados, requerendo
uso controlado em baixas/baixíssimas doses, uma boa avaliação do paciente e acompanhamento
com regularidade.
Corroborando sobre o assunto, alguns médicos esclareceram que em casos de psicose
ou mesmo no Alzheimer é necessário estabilizar a crise e controlar a patologia antes de iniciar
o tratamento com a CM, posto que é um fitoterápico e requer mudança no estilo de vida.
Noutra abordagem, prescritores narraram que nunca vivenciaram com seus pacientes
situações em que o uso terapêutico da Cannabis provocou psicose, salientando que esta é uma
questão que carece de estudo clínico. Segundo eles, as circunstâncias em que presenciaram
manifestações de pânico decorreram do uso abusivo de THC e configuraram um quadro
94
transitório, que cessou com a descontinuidade do uso. Neste âmbito, alertaram que a atribuição
de causa da esquizofrenia à maconha é uma afirmação temerária, ligada e correlacionada às
alusões do proibicionismo, corroborando que, até o momento, ainda não houveram estudos que
conseguiram de fato relacionar causa e efeito com a maconha excluindo outros fatores, como
por exemplo, o uso do álcool.
Em situações similares, um dos entrevistados explicou que, em pacientes com medo do
efeito psicoativo do THC, a própria ansiedade pode desencadear efeitos fisiológicos e
psicológicos desagradáveis.
Em perspectiva diversa, um médico explicitou sobre o tratamento com a CM que o risco
é muito pequeno e pode estar relacionado à hipersensibilidade do paciente a algum canabinoide
ou no uso concomitantemente com outras drogas metabolizadas pela via Citocromo P450, pois
pode ocorrer interação, aumentando ou diminuindo o clearance sistêmico, ou seja, afetando a
biodisponibilidade.
Participantes elucidaram que é necessário avaliar a necessidade e as hipóteses de riscos
caso a caso, ponderando que há pacientes que inspiram maior acompanhamento e
monitoramento, situações em que possa haver alguma contraindicação relativa, ou seja, casos
específicos principalmente de pacientes que usam muitas medicações, pacientes renais crônicos
ou com insuficiência renal grave pela falta estudos, casos que desenvolvem hiperemese ou têm
algum comprometimento hepático.
Alguns prescritores afirmaram que não indicam o tratamento com CM para pacientes
com problemas vasculares em uso de altas doses de anticoagulantes, infartados graves em uso
de antiarrítmicos, pacientes com doenças cardiovasculares e pulmonares graves, por receio do
paciente misturar os sintomas ou mesmo passar mal. Assim, outra preocupação que também
apresentaram foi com relação às gestantes, puérperas e mães que estão amamentando, por não
existir estudos suficientes de uso seguro.
A única contraindicação absoluta citada por um dos médicos foi para casos de depressão
endógena, que está relacionada a um fenótipo ligado à alteração genética, mas que ainda
necessita de aprofundamento das pesquisas. Para os demais tipos de depressão, ele retomou que
a Cannabis é muito indicada e por isso, é importante o levantamento do histórico familiar
durante a anamnese.
Num âmbito diverso, alguns médicos afirmaram não terem observado até então na
prática clínica situações que contraindicaram o uso terapêutico de canabinoides, não ouviram
relatos e desconhecem qualquer contraindicação absoluta até agora.
No cenário exposto, as citações dos prescritores demonstraram posicionamentos
95
Durante as entrevistas, houve relatos de pouco mais da metade dos médicos sobre
vivências no tratamento com a Cannabis para suas próprias patologias, incluindo a terapêutica
tanto em situações de quadros clínicos agudos, como em condições crônicas.
Desta forma, descreveram circunstâncias de saúde que os prejudicavam
consideravelmente tanto nas atividades de vida cotidiana, como no trabalho, por vezes até os
impedindo de atuar durante os períodos de agudização, citando patologias como crises de
ansiedade, crises de asma relacionadas à ansiedade, insônia importante, Lúpus com processos
de adoecimento e depressão, transtornos causados por estresse e esgotamento, hérnia de disco
cervical encarcerada, dor intensa e incessante por colocação de prótese metálica, dor crônica
por compressão de nervos com duração de mais de 40 anos, linfoma não Hodgkin, situações de
submissão a cirurgias e quimioterapia.
Por conseguinte, pontuaram que a autoprescrição do tratamento com canabinoides os
96
tem ajudado em muitos aspectos com um sucesso muito grande, com eficácia para quadros de
insônia, ansiedade e depressão, redução notória das crises de asma, diminuição e/ou retirada de
fármacos alopáticos, cessação das crises de Lúpus desde 2015, período em que começou o uso
medicinal da Cannabis, salientando nunca ter conseguido ficar tanto tempo sem nenhuma crise,
analgesia durante as cirurgias e pós-operatórios sem necessidade do uso de anti-inflamatórios,
melhor aceitação da doença e de como lidar com as questões de vida decorrentes da condição,
passar pela quimioterapia sem perder peso, sem dor, sem desespero, não vomitar nenhuma vez,
sem sofrer com as reações adversas. Neste sentido, afirmaram convictamente de que têm a clara
percepção e consciência de que a Cannabis foi crucial para o tratamento de suas condições,
ressaltando-a como um divisor de águas em suas vidas.
Com relação ao manejo, cada um teve experiências singulares dentro das vivências do
processo de adoecimento, entretanto, em comum passaram pela busca de informações seja por
iniciativa pessoal ou por aconselhamento com outro profissional. A partir disto, contaram
especificidades do tratamento, como por exemplo sobre o uso do CBD para dor crônica sem
resultado satisfatório, o que mudou completamente com o uso de apenas cinco gotas de um óleo
concentrado de THC, uso associado de extrato artesanal com um óleo importado rico em CBD
para conseguir chegar à melhor formulação para seu organismo, uso da Cannabis desde o início
do tratamento com quimioterapia tomando o óleo antes e após as sessões além do uso de horário,
uso da planta nos preparos da própria alimentação, uso no pré e pós-operatório, uso por
consumo homeopático, ou seja, usos personalizados adaptados à realidade de cada um, saberes
que adquiriram por meio de pesquisas, estudos, aprofundamentos e aprendendo com outros
prescritores participando de grupos, lendo e perguntando.
Os prescritores salientaram que a experiência pessoal com a Cannabis foi de extrema
importância, pois os ajudou a ter mais coragem, ver a partir dos próprios resultados que podiam
acreditar nessa terapêutica, ter o viés de um olhar diferente por testificar em si mesmo a vivência
deste tratamento e sentir na pele como é, ter segurança para prescrever, poder testemunhar a
realidade sem hipocrisia, o que os inspirou ainda mais a enfrentar os desafios de ser um médico
prescritor de CM na luta junto aos seus pacientes.
outras situações em que ouviram falar a respeito e, sem saberem por onde começar, foram
proativos, se informaram e assim tiveram a primeira experiência como prescritor.
Dentre os entrevistados, um deles descreveu que seu start para a prescrição de
canabinoides foi um familiar que desenvolveu Parkinson, outro contou sobre a necessidade de
saúde de um tio, três participantes relataram suas experiências com filhos com Autismo e um
deles com epilepsia refratária, um médico contou sobre sua luta para tratar sua mãe com
neuralgia do nervo trigêmeo e outro retratou sobre sua iniciativa para tratar a madrinha que tem
dor crônica, fibromialgia, dor neuropática, insônia e ansiedade.
Neste ínterim, uma psiquiatra contou que percebia que o filho tinha alguns
comportamentos diferentes, pois era muito zangado, a escola sempre ligava por ter batido num
coleguinha, batia a cabeça na parede quando pequenininho, por vezes tinha crises em que se
batia e quebrava as coisas, mas sempre terceirizava essas inabilidades sociais, porque por outro
lado passava de ano e era um garoto muito inteligente. Assim, o diagnóstico do autismo
aconteceu tardiamente, quando já tinha 16 anos e naquele momento sua vida mudou, passou a
entendê-lo e modificou sua relação com ele. Usou a risperidona, que a princípio foi efetivo,
entretanto, não segurava as crises, causou ganho de peso e desenvolvimento de mamas então,
pesquisando descobriu a opção da Cannabis, iniciou o uso do óleo de uma associação e buscou
autorização da ANVISA, para ter opções diferenciadas como chocolates, cápsula para usar
durante o dia e cápsula para usar a noite para dormir. E avaliando todo o contexto de luta com
seu filho, revelou que a médica precisou da mãe para conseguir chegar nesse lugar.
Contribuindo, outra médica relatou que sempre teve muitos pacientes autistas, inclusive
faz diagnóstico de autismo tardio, situações em que a pessoa passou a vida em sofrimento, se
achando inadequada e vê como o diagnóstico por vezes é libertador. Neste contexto, expôs que
já prescrevia canabinoides, mas apenas quando tudo que havia tentado tinha dado errado,
somente para patologias cujas indicações tinham estudos e nunca era a terapia de primeira
escolha. Ela pontuou que há dois anos recebeu o diagnóstico de Autismo de seu filho e, a partir
de sua vivência visualizando os resultados do próprio filho, passou a refletir e enfaticamente
declarou que se arrepende de não ter começado o tratamento com a Cannabis antes, por falta
de informação, pois no mesmo sentido, em sua prática clínica, muitos de seus pacientes
poderiam estar bem melhores há muito tempo.
Num mesmo contexto de vida, um participante relatou que tem um filho autista e
epilético que depende do uso medicinal de Cannabis e a partir desta experiência própria,
observando os resultados e sua melhora, tomou a decisão e começou a estudar para prescrever
para seus pacientes.
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Noutro âmbito, um entrevistado contou que seu primeiro contato com a Cannabis foi
para o tratamento de sua mãe que tem neuralgia do trigêmeo, uma dor que chegou num estágio
insuportável, mesmo com os diferentes tipos de tratamentos realizados. Segundo ele,
declinando sobre uma indicação de uma intervenção cirúrgica, foi quando pesquisando soube
do uso medicinal da Cannabis, tentou o tratamento com CBD, mas não obteve resultados
satisfatórios. Entretanto, seu irmão insistia no uso do THC e mostrando publicações sobre as
aplicações terapêuticas o convenceu a tentar. Ele tomou coragem, realizou a prova terapêutica
em si para depois iniciar com sua mãe, acompanhando-a de perto, administrando um óleo
artesanal que além de suprimir o choquinho na língua que ela sentia e cessar as dores, não
provocou qualquer efeito colateral.
Um médico expôs que sua primeira experiência prescrevendo a Cannabis foi para sua
madrinha que tinha dor crônica, fibromialgia, dor neuropática refratária, insônia e ansiedade,
com resultados expressivos. A partir desta vivência, pôde ver amigos que fumavam maconha,
começaram a usar o óleo artesanal e pararam de fumar, bem como outros tantos resultados em
pessoas próximas de seu convívio, fatos que despertaram seu interesse e o levaram a incluir
essa terapêutica em sua vida, possibilitando constatar resultados maravilhosos em várias
patologias.
Corroborando, um médico contou que seu primeiro carimbo de prescrição de CM foi
para um tio, indicando o uso de um óleo full spectrum de associação.
Nesta perspectiva permeada por vínculos e afetos, foi possível perceber durante as falas
dos entrevistados que, prescrever para familiares impõe responsabilidades que extravasam a
relação médico-paciente, pressupondo relações de confiança num contexto de subjetividades,
potencializando emoções, sentimentos e significados com relação à terapêutica e aos resultados
proporcionados.
Nesse tema foram abordados os relatos dos entrevistados sobre as percepções quanto o
acesso dos pacientes ao tratamento com canabinoides.
Assim, foram organizados os subtemas ‘Dificuldades de acesso ao Tratamento’ e
‘Políticas Públicas e Perspectivas Socioeconômicas’, delineados em categorias e suas
respectivas subcategorias, conforme Quadro 5.
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1. Tabus e Preconceito
1. Fatores negativos 2. Insuficiência de Prescritores
incidentes 3. Custo do Tratamento
4. Falta de Regulamentação
1. Dificuldades de
acesso ao Tratamento
1. Luta dos pacientes e famílias
2. Fatores positivos
2. Atuação dos médicos prescritores
incidentes
3. Caminhos para melhorar o acesso
Nos aspectos econômicos, para além das questões de acesso ao médico prescritor que
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só é possível para quem tem dinheiro e pode pagar pela consulta e acompanhamento particular,
uma constatação unânime dos entrevistados destacou como óbice o custo do tratamento que o
torna restrito, acessível apenas para aqueles que podem pagar e arcar com a manutenção do
tratamento, pontuando que, mesmo para os pacientes com melhores condições financeiras, os
produtos liberados, que vendem em farmácias ou por importação são muito caros.
Neste cenário, os participantes descreveram que é uma lástima ver a dificuldade de
acesso pelo custo do tratamento, salientando que essa é a pior parte, a situação que mais frustra
e cansa o prescritor que acredita e trabalha com dedicação junto aos seus pacientes, ao ver o
paciente sair com receita, feliz e esperançoso e, depois de alguns meses, responder que não
conseguiu dar continuidade e manter o tratamento.
regionais, promover lives e outras atividades para a divulgação do SEC e o tratamento com
canabinoides, pois o conhecimento pode facilitar o acesso do paciente ao tratamento seja por
meio da compra do medicamento, fornecimento pelo SUS ou por meio de autorização judicial
para o cultivo doméstico.
Assim, apontaram que estão chegando novos prescritores todos os dias e que os médicos
que já prescrevem estão nos projetos de partilha, somando e ajudando estes novos prescritores,
bem como expuseram que os médicos que estão se formando agora ou mesmo que ainda estão
na faculdade têm demonstrado bastante interesse e procurado conhecer sobre o uso medicinal
da Cannabis e a prática clínica, condições favoráveis que podem aumentar significativamente
o número de prescritores, pelo embasamento teórico-científico e pelo desenvolvimento de
segurança em relação à terapêutica.
Consequentemente, confluíram de que, mesmo na vigência deste governo conservador,
grandes avanços estão acontecendo de modo que acreditam numa renovação das lideranças que
estão dentro das instituições de saúde ao findar desta gestão.
Os entrevistados expuseram que para além das dificuldades enfrentadas, existem fatores
que podem incidir favoravelmente para que haja a democratização do acesso ao tratamento,
apontando que muito ajudaria nesta questão a incorporação da Cannabis ao SUS, pois assim os
médicos conseguirão chegar até quem precisa e hoje não tem acesso.
Outro ponto salientado pelos prescritores é de que temos avanços interessantes, pois há
progressivamente um aumento da apropriação sobre o conhecimento de modo que opinaram
ser uma questão de tempo, de experiência, de começar aparecer as informações nos congressos
e cursos, dos médicos verem na prática que a terapêutica tem resultado, para que mais médicos
avancem na prescrição.
Nesta perspectiva, concordaram que para aumentar o número de prescritores é
necessário mais estudos, mais conhecimentos e o caminho se perfaz desde a formação na
faculdade com ciência e educação em saúde, com difusão de informações, divulgação dos
avanços na ciência, nas pesquisas e a introdução deste conteúdo na formação, seja em disciplina
ou na abordagem como tema durante a graduação, enfatizando que se o uso da Cannabis fosse
popularizado, se a prescrição de canabinoides fosse mais disseminada e mais consciente, não
teríamos essa realidade de um médico que se recusa a oferecer uma opção de tratamento que
talvez seja a única que beneficiaria seu paciente.
104
No âmbito dos custos para a saúde pública, os participantes elucidaram ainda que,
pacientes em uso de CM, têm redução do uso de altas tecnologias em saúde, como idas ao
Pronto Socorro, internações em UTI, redução ou interrupção do uso de outros medicamentos,
inclusive de alto custo, ou seja, é claramente vantajoso para o sistema público de saúde.
Noutra perspectiva, destacaram que a implementação de toda a cadeia de produção da
Cannabis pode trazer geração de renda para o país, impactando positivamente nossa Economia,
um resultado importante a ser considerado pelo governo para sua aprovação e regulamentação.
Os médicos destacaram impactos positivos sobre aspectos sociais e econômicos,
assinalando que ao tratar o paciente, melhorando as condições de saúde, o comportamento, o
sono e a independência, reduz-se o sofrimento e a sobrecarga dos cuidadores, refletindo no
descanso, no sono e inclusive na renda, porque muitos conseguem voltar a trabalhar. A partir
desta constatação, entendem que o tratamento com CM traz impacto positivo para toda a
sociedade, pois a melhora do paciente repercute diretamente em todo contexto social no qual
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predomínio do THC e, por fim, se é uma patologia tratável com relações proporcionais de CBD
e THC, optam por um óleo equilibrado brasileiro ou ampliam o espectro do tratamento
combinando óleo nacional e óleo importado, quando possível e viável para o paciente.
O médico P7 exemplificou o uso combinado de produtos relatando que, quando trata
um paciente com câncer, foca no CBD em altas doses para o efeito antineoplásico e utiliza o
THC principalmente para redução dos efeitos dos quimioterápicos e nos cuidados paliativos.
Os prescritores relataram validar todas as formas de produtos, principalmente os
naturais, pois o paciente precisa ter acesso à terapêutica da forma que for possível, seja por
meio de um óleo artesanal de uma cepa rica em THC ou um óleo rico em CBD, ainda que em
uso de subdoses por não poder aumentar a quantidade do óleo em razão dos custos, ressaltando
a importância de tonificar o SEC.
Uma limitação descrita por um dos prescritores (P8) relacionada aos obstáculos na
adesão de médicos à CM e à dificuldade dos pacientes na busca de informações é a questão da
língua, pois as publicações dos artigos são preponderantemente em inglês.
Acrescentando, alguns participantes relataram que a aquisição de conhecimentos sobre
a Medicina Canabinoide também permitiu que exercessem à docência levando conteúdos para
seus alunos que estão sempre perguntando e têm bastante interesse, circunstâncias que os
estimulam ainda mais como prescritores, impulsionando progressos na academia por meio de
iniciativas de projetos de pesquisa e extensão.
Por conseguinte, se posicionaram partilhando que o conhecimento nunca é suficiente,
pois se aprende todos os dias estudando, pesquisando, assistindo documentários, lives,
palestras, cursos sobre o SEC, evidências clínicas das indicações e como prescrever,
participando de grupos de discussão e mentoria, com a clareza de que nem os profissionais mais
dedicados têm o domínio sobre tudo, nem nunca terão.
de Cannabis.
Alguns entrevistados apontaram que a formação convencional ofertada pelos cursos de
graduação em medicina é voltada à produção de mão de obra direcionada para a empresa,
focando os hospitais e a venda de medicamentos, ao passo que desvaloriza a atenção primária
e a pluralidade dos saberes. Segundo eles, o modelo de formação médica, esta forma de ensinar
e aprender a ciência, a medicina e a saúde, constitui um fator de extrema importância que
interfere na postura dos profissionais em relação à CM.
Por outro lado, os participantes que exercem à docência apontaram que o cenário
imposto pela pandemia favoreceu a possibilidade de que os professores revissem suas propostas
e repensassem o que poderia ser exequível diante da inviabilidade das salas de aula lotadas,
propondo a reflexão sobre um processo de ensino-aprendizagem factível de forma mais
saudável, articulando o ensino a distância ao telessaúde, tele atendimento, utilizando a
tecnologia para promover uma educação mais significativa, acolhendo as dificuldades dos
alunos.
Noutra abordagem, o médico P17 afirmou que é uma irresponsabilidade um Sistema
dessa relevância ainda ser menosprezado nas universidades. Ele afirmou não acreditar que haja
um consenso entre a academia de não ensinar sobre o SEC e o uso dos canabinoides, mas na
verdade tem certeza de que nem se discute a respeito, ou seja, um preconceito estrutural que
leva à negação da ciência.
Corroborando, o participante P9 descreveu que o aluno passa a faculdade inteira
acessando diversos conhecimentos, definindo o que mais gosta, tomando decisões e, com base
em tudo o que vê, vai delineando qual área seguirá após a graduação, explicando que durante
este processo, o aluno passa a ter referências, professores nos quais se espelha e se inspira.
Entretanto, tal qual é insuficiente o número de médicos prescritores, não existe professores que
sejam prescritores ou que dominem a temática, e, por consequência os alunos não conhecem,
não têm acesso à informação e formação.
No contexto dado, os prescritores admitiram que os discentes apenas se aproximarão e
conhecerão sobre o assunto se tiverem motivações próprias, de modo que aqueles que se
interessam veem que as descobertas estão acontecendo, procuram e pedem aulas.
Neste ínterim, descreveram que são diversos os questionamentos com os quais se
defrontam, ilustrando: “Como vou prescrever?” “Quem vai me orientar?” “Quem vai
supervisionar esse trabalho?” “Com quem vou discutir os casos?”. Assim, ressaltaram sobre a
necessidade da academia assumir este compromisso na formação médica, pois além de não
haver a abordagem na graduação, são poucas as pós-graduações que existem no Brasil e não há
113
informações para um constante aprimoramento, entretanto, ressaltaram que não é nada fácil,
pois enfrentam junto aos seus pacientes desafios todos os dias.
Estes médicos apontaram o quanto é imprescindível os avanços nas pesquisas, os testes
clínicos e todos os demais ritos científicos, pois a falta de pesquisas no Brasil produz uma
situação de penumbra que nem todos os médicos estão dispostos a encarar, enfatizando que a
ciência é feita de erros e acertos, não cabendo a justificativa de se ter medo para ficar insistindo
no erro.
No cenário apresentado, o participante P17 lembrou que a medicina teve uma
experiência frustrada quando tentou fazer uma medicação que age no SEC, em 2007. Ele contou
que introduziram no mercado de fármacos uma medicação chamada Rimonabanto, com a
promessa de reduzir o apetite, ajudar a emagrecer e tratar a obesidade. Assim, explicou que se
tratava de um medicamento cujo mecanismo de ação é um antagonista total de receptor CB1 e
que foi retirado de comercialização às pressas, pois estava provocando nos pacientes o suicídio.
Então, problematizou a situação questionando sobre como foi permitido lançar um fármaco que
o médico desconhece como age, tampouco conhece o sistema envolvido, pois não aprende em
sua formação sobre o assunto.
No mesmo contexto, outra situação exposta por alguns prescritores com indignação foi
a polarização da ciência que temos enfrentado no Brasil, um imbróglio que reflete diretamente
na postura adotada pelos médicos e que, tais quais as situações polemizadas na pandemia, as
questões referentes à Cannabis se tornaram mais um objeto de polarização com viés ideológico,
observando ainda que, para conseguir caminhar e avançar neste campo é inerente a atuação dos
agentes políticos, perspectiva que não pode ser ignorada.
Subsequente, reconhecendo as limitações da ciência, os entrevistados referiram que,
apesar dos avanços de estudos já divulgados, a carência de pesquisas e o número de publicações
nessa área ainda não permitem uma ampla discussão em aspectos como, por exemplo, situações
de crise, de interação medicamentosa e superdosagem. Assim, afirmaram que é essencial para
a medicina o investimento em pesquisas a fim de que os profissionais tenham conhecimento
técnico, estejam embasados em evidências, tenham mais confiança e se sintam mais seguros.
Nesta conjuntura, o prescritor P8 salientou a importância do desenvolvimento de
pesquisas no Brasil, explanando sobre o equívoco em sermos obrigados a ter por referência
achados científicos de outros países, exemplificando que a planta que nasce aqui não é igual as
plantas americanas ou europeias, pois há variáveis que as diferenciam como o solo, a
temperatura, o calor, características bem distintas, inclusive se compararmos entre as próprias
regiões do Brasil.
115
6 DISCUSSÃO
Por meio dos resultados foi possível verificar que, independente do ano de formação,
uma realidade comum a todos os participantes foi a ausência de conteúdo sobre o SEC e a
terapêutica com canabinoides durante a graduação, indicando que a falta de acesso ao
conhecimento constitui um obstáculo nos avanços com relação à classe médica, pois incide
diretamente na problemática da falta de profissionais capacitados para a prescrição de
Cannabis.
Neste sentido, os entrevistados correlacionam que soma-se o fato do SEC ser uma
descoberta mais recente à estruturação do conteúdo teórico da graduação que aconteceu há pelo
menos 25 anos, ainda que orientada em 2014 com fulcro na reflexão e crítica sobre a prática
para a transformação da realidade(130), constatando-se que ainda é prevalente o modelo de
formação medicocentrada, voltado à produção de mão de obra direcionada para o mercado, na
qual predomina o corporativismo, a preocupação excessiva com o profissionalismo, a
autarquização, o clientelismo ao passo que desvaloriza a atenção primária e a pluralidade dos
saberes, ou seja, não assume de fato um compromisso fidedigno com as condições
socioeconômicas e de saúde da população, fator que interfere na postura dos profissionais em
relação à Cannabis, posto que a ausência de espaços de discussão e formação nas instituições,
assim como a falta de fomento voltado à inserção destes conhecimentos, corrobora para a
continuidade do preconceito e o baixo número de médicos prescritores, consequências
completamente desvinculadas das necessidades da população. (121,123)
As lacunas de conhecimento sobre a temática, conforme demonstraram os prescritores,
devem ser compreendidas a partir das dificuldades de acesso à informação nos diferentes
âmbitos de formação profissional e divulgação restrita sobre a terapêutica e seus resultados na
prática clínica para a sociedade e comunidade acadêmica, fatores agravados pela ausência de
professores que dominam a temática, e, por consequência os alunos não conhecem, não sabem
minimamente aonde os canabinoides agem ou entendem porque a Cannabis tem tamanha
versatilidade no tratamento de tantas patologias, como apontado pelas publicações.
No percurso de aquisição de conhecimentos, a maioria dos entrevistados se denominou
autodidata por se apropriar da Medicina Canabinoide por iniciativas próprias de buscas,
pesquisando, estudando, realizando formação e aprofundamento sobre o SEC e CM, mantendo
esforços contínuos para um constante aprimoramento, um processo por vezes solitário e difícil,
desbravando um universo muito recente, com frequentes publicações de novas descobertas,
entretanto, pouco acessível.
117
drogas por meio da repressão penal e da política da abstinência, reiterando a ideia de proteção
da sociedade dos males das drogas.(67)
O debate literário contemporâneo figura a historicidade que traz os diferentes contornos
aos usos da Cannabis, tangível pelos meandros do Brasil colonial até os constituintes da
atualidade, desde os determinantes das cátedras acadêmicas ao cerne das lutas sociais,
possibilitando entender as discrepâncias experimentadas pelos médicos no percurso enquanto
prescritores de CM, já que remete a retomada de saberes milenares advindos das transferências
intergeracionais somados às atuais constatações por meio da ciência, refletindo a complexidade
das diferentes realidades vivenciadas a partir das peculiaridades dos cenários nos quais estão
inseridos.(53,57)
Coaduna com a situação exposta o fato de que a própria classe médica mantém
resistências frente às recentes pressões para alteração de leis e normas vigentes sobre a
Cannabis sativa L, evidenciadas pelos posicionamentos reticentes adotados pelo CFM e
acirrados pela Associação Brasileira de Psiquiatria afirmando não existir qualquer potencial
terapêutico nesta planta.(33,72)
Estas constatações refletem que, apesar da existência de importantes publicações
científicas, há uma resistência no Brasil em aceitar o uso medicinal da Cannabis, por parte de
médicos, legisladores e políticos, fato que adentra a realidade das instituições acadêmicas,
conflitando a ordem natural dos acontecimentos, das discussões científicas e demandas sociais
do país.(67,137)
Os resultados descreveram um panorama que reflete a ambiguidade e cisão que paira
sobre a temática, trazendo estereótipos estruturais e perspectivas científicas que por ora se
contrapõem, num cenário neste momento atravessado pela polarização da ciência com viés
ideológico que tem dividido a classe médica, trazendo vertentes dissidentes que incorporam o
ideário sócio-político-econômico no qual transitam os atores sociais que compõem a cena da
regulamentação da CM no Brasil.(132)
A ascensão da ideologia proibicionista deriva do discurso médico-científico brasileiro,
positivada por argumentos do início do século XX que difundia hipóteses sobre os usos da
Cannabis associando-a ao desenvolvimento de doenças, despersonificação do indivíduo,
distúrbios mentais e sociais, baseados em teorias raciais de eugenia, alegando que a proibição
dessa planta poderia conter a violência, discursos produzidos e difundidos por médicos como
Rodrigues Dória, Adauto Botelho, Pedro Pernambuco e Oscar Barbosa, utilizados para a
proibição da maconha.(58,61,132)
Estes argumentos agora são refutados pelos avanços da ciência nas descobertas do SEC
119
questões legais, possível penalização pelo Conselho ou problemas com a polícia, pelo
desconhecimento sobre as leis que amparam o exercício da profissão e o uso médico da
Cannabis, dúvidas sobre como indicar e prescrever, situações advindas da carência de
regulamentação, um atraso que inviabiliza pesquisas e impede o acesso aos brasileiros. Assim,
retrataram o posicionamento de profissionais que optam por esperar altos níveis de evidência
para depois decidir se querem ou não incorporar aquela opção em sua prática. Indicaram ainda
o preconceito social que também está nos pacientes e leva o médico a ser temerário e se precaver
de alguma forma de um possível processo judicial, preferindo por vezes que outro prescreva.
De fato, muitos são os desafios enfrentados na prescrição e no acesso a produtos em
território brasileiro se comparado a países como Canadá, Uruguai, Colômbia, Espanha, Itália,
Israel, Holanda e 47 estados dos EUA. Entretanto, os avanços regulamentares da ANVISA
reconhecem o potencial terapêutico da Cannabis e não restringe a especialidade médica
prescritora, já que não lhe cabe avaliar o exercício profissional.(139)
Aspectos apontados que atrapalham inclusive o processo de regulamentação no país são
os tabus e preconceitos que permanecem impregnados na sociedade e no âmbito do cuidado,
tanto por parte dos profissionais quanto por pacientes, pela falta de conhecimento e ignorância,
identificando ser uma situação passível de remodelação por meio da ciência e pela luta da
sociedade.(140)
Diante disso, relataram que, com uma divulgação maior no Brasil, adotaram estratégias
de apropriação de conhecimentos, tornando o caminho da aprendizagem, desenvolvimento e
aprofundamento menos complicado e muito mais rápido, alcançando uma maior segurança,
confiança e tranquilidade na aplicação da Cannabis com o tempo, construindo a formação
sempre atentos às constatações e buscando informações por meio de publicações, artigos
científicos, livros, cursos, congressos e atualizações, entendendo como é o acesso e as questões
da legislação brasileira, assim como por meio de experiências e vivências, prescrevendo e tendo
contato com os pacientes, discutindo casos, ampliando o repertório e nas trocas com outros
médicos.
No âmbito das relações e correlações, os entrevistados elencaram que há atores sociais
importantes cuja representatividade e comportamentos incidiram positiva ou negativamente
tanto nos aspectos pessoais quanto nos aspectos profissionais durante os caminhos que
percorreram desde o processo formativo até a exerção da prática clínica, cada qual com suas
particularidades, citando neste papel seus familiares, a sociedade, os colegas de profissão,
Conselhos de classe, pacientes e familiares.
Na perspectiva do método ativo, a comunicação e interação dos atores do processo são
121
permeadas por questões pessoais e profissionais recíprocas que trazem no encontro das
experiências e trocas fragilidades e fortalezas, possibilitando espaços potentes de uma
construção coletiva do saber, consolidando a aprendizagem significativa.(130)
Quanto aos desafios e enfrentamentos, contaram sobre situações familiares e
profissionais nas quais sofreram preconceitos, tiveram barreiras e conflitos, julgamentos,
comportamentos de desdém, descrédito, ironia e contextos discriminatórios junto aos colegas
de profissão, relatados principalmente pelas mulheres prescritoras. Sobre os Conselhos de
classe, trouxeram que o posicionamento é tendencioso e com viés ideológico, obstando avanços
ao passo que impõe um cenário de exposição, insegurança e vulnerabilidade pelas normativas
defasadas que negam a cientificidade do tratamento.
De outra maneira, participantes destacaram como fatores favoráveis o apoio e ajuda na
esfera familiar, o fato de não sofrerem preconceito e questionamentos na sociedade, a
receptividade junto aos colegas de profissão, a adesão dos pacientes ao tratamento e
proximidade com os familiares, ratificando a postura profissional que assumiram.
Não distante, aludiram sobre a luta dos pacientes e seus familiares no contexto
anacrônico brasileiro por meio da mobilização social, divulgando os resultados, segurança e
eficácia da CM, vivenciados pelos pacientes e prescritores na prática clínica, impactando no
aumento da procura pela população e na adesão médica à terapêutica, principalmente nos casos
de doenças progressivas e refratárias.(140)
A luta social dos pacientes e familiares, associações e movimentos pelo acesso à CM
surge no cenário brasileiro em 2014, com famílias de crianças com epilepsia refratária lutando
pelo direito à saúde e dignidade humana, na busca pelo acesso ao tratamento com canabinoides,
cuja força motriz trouxe a insurreição de saberes, contrariando os efeitos do estabelecido “saber-
poder” outrora considerado científico, travando um embate para dessujeitar saberes históricos
tradicionais, tornando-os livres e capazes de oposição. Deste lugar inicia os enfrentamentos
sociopolíticos-legais que tencionam as estruturas do Estado e pressionam por uma
regulamentação ampla da Cannabis no país.(136)
As associações de pacientes ao longo dos anos foram apropriando-se das possibilidades
de trabalhado em rede, com projetos e mutirões de atendimentos gratuitos, parcerias com as
universidades, emergindo na esfera jurídica o conceito de desobediência civil pacífica diante
da resistência e inércia do Estado que mantém a sociedade à margem da Lei.
A postura ativa e ativista dos pacientes, mães e famílias chegando aos médicos munidos
de conhecimentos científicos e demandando pelo tratamento com a CM, tem pressionado,
sensibilizado e mobilizado os médicos a se apropriarem quanto a Medicina Canabinoide para o
122
Isto é possível em razão de receptores, enzimas e ligantes dispersos pelo corpo todo com
funções fisiológicas pró-homeostáticas, que respondem ao fitocomplexo da Cannabis, de modo
que a atuação nestes sítios desencadeia uma série de respostas que proporcionam uma
modulação na liberação de neurotransmissores e das respostas imunológicas.(8-11,147)
Na prática clínica, observa-se a singularidade deste sistema nos pacientes, visto que a
resposta à terapêutica é muito individual e peculiar, o que demanda do prescritor iniciar com
baixas doses e aumentar lentamente, titulando a dosagem junto ao paciente a fim de não
ultrapassar a janela terapêutica, sendo possível constatar de modo geral que, o paciente pode
responder com uma dose baixa e na maioria dos casos o resultado é rápido e notável. Isso se
explica pela ação dos fitocanabinoides no SEC humano em mecanismos multimodais de forma
dosedependente, agindo em seus receptores e sinalizadores de forma agonista e antagonista em
altas e baixas doses.(145,148,149)
Os entrevistados colocaram que o acesso seguro ao tratamento com canabinoides,
pressupõe do prescritor conhecimento e disponibilidade na escolha do produto e no manuseio
da dose junto ao paciente, pois há uma variedade de tipos de produtos desde óleos de cultivo
doméstico produzidos pelo próprio paciente ou familiar, óleos produzidos por jardineiros, óleos
artesanais produzidos pelas associações, óleos padronizados nacionais disponíveis nas
farmácias e uma diversidade de produtos importados autorizados pela ANVISA, cada qual com
suas vantagens e desvantagens.
Os prescritores identificam na prática clínica que os pacientes que fazem uso de óleos
full spectrum geralmente apresentam melhores respostas, fato que é explicado em razão do
efeito comitiva ou efeito entourage pela sinergia de canabinoides, terpenos e flavonoides,
resultados também encontrados em estudos pré-clínicos. (147,148,150-152)
Entretanto, expuseram a limitação quanto a pouca existência de estudos com o óleo full
spectrum, tipo de produto mais acessado pelos pacientes, dada sua complexidade e o fato de
que a maioria das pesquisas realizadas foram com produtos isolados, com publicações
predominantemente tratando apenas do CBD e THC. (152,153)
Os entrevistados afirmaram não ter presenciado qualquer problema com nenhum óleo,
seja o importado ou o nacional, explicando que os óleos importados alcançam a vantagem de
apresentações muito concentradas em CBD e limitação do THC, já os óleos das associações
brasileiras são produtos com predomínio do THC. Assim, ressaltando a importância de
tonificação do SEC, esclareceram que pautam suas decisões considerando as necessidades e
possibilidades individuais de cada paciente, os caminhos para alcançar o produto, o controle de
qualidade, bem como o custo final do tratamento.
124
a titulação adequada da dose e que, na prática clínica, não tiveram qualquer queixa de ocorrência
de alucinações ou sintomas similares.(153)
Com relação às interações medicamentosas, os prescritores salientaram sobre os
cuidados que tomam especialmente em pacientes que utilizam anticoagulantes,
anticonvulsivantes, neurolépticos e benzodiazepínicos, pois o uso simultâneo com a Cannabis
tanto pode provocar sonolência como insônia.
Quanto ao uso de altas doses de THC, afirmaram que podem diminuir os níveis da
nivaldina se administrado concomitantemente e relataram certa preocupação com relação aos
pacientes que muitas vezes já chegam polimedicados, expondo que ainda existe uma lacuna de
estudos, exigindo do prescritor que esteja atento a possíveis interações e se mantenha em
contínua atualização quanto às publicações científicas. Assim, os achados da literatura apontam
um manejo que consiste em abordagens iniciais com baixas doses, redução de medicamentos,
troca de quimovares, diminuição ou até mesmo interrupção dos canabinoides para o controle
de interações medicamentosas.(153)
Os participantes demonstraram posicionamentos diversos com relação às
contraindicações, de forma que alguns disseram não terem observado até então na prática
clínica situações que contraindicaram o uso dos canabinoides, não ouviram relatos e
desconhecem qualquer contraindicação absoluta até agora, outros afirmaram que há
contraindicações relativas que podem estar relacionadas à hipersensibilidade do paciente a
algum canabinoide ou no uso concomitantemente com outras drogas metabolizadas pela via
Citocromo P450, pelo aumento ou diminuição do clearance sistêmico e biodisponibilidade e
alguns trataram como contraindicações absolutas as situações nas quais não haja respaldo
científico, insuficiência de estudos, ausência de experiências da prática clínica ou mesmo para
patologias sobre as quais ainda não tenham lido ou estudado.(153,184,185)
Neste contexto, a maioria dos entrevistados descartou prontamente a possibilidade de
riscos no uso medicinal, enfatizando a necessidade de avaliar caso a caso, pois, de fato conforme
literatura há pacientes que inspiram maior acompanhamento e monitoramento como pacientes
com insuficiência renal grave, renais crônicos, casos que desenvolvem hiperêmese ou com
comprometimento hepático, pacientes com problemas vasculares em uso de altas doses de
anticoagulantes, infartados graves em uso de antiarrítmicos, pacientes com doenças
cardiovasculares e pulmonares graves, gestantes, puérperas e mães que estão amamentando ou
mesmo casos em que a CM pode ser contraindicada por não existir estudos suficientes de uso
seguro.(153,186)
A única contraindicação absoluta citada pelo participante 7 foi para depressão endógena,
130
indicando que demanda o levantamento do histórico familiar durante a anamnese, mas que
ainda necessita de aprofundamento das pesquisas posto que até então não há evidências
científicas conclusivas.
Foi notável que paira dentre os entrevistados inseguranças e preocupações em relação
ao uso do THC, particularmente citando o uso fumado ou abusivo, correlacionando à
possibilidade de desenvolvimento de psicose e/ou esquizofrenia por propensão genética e riscos
na população pediátrica. Desta forma, apesar de afirmarem não terem presenciado qualquer
situação a respeito, explicando que são poucos os casos, acabam contraindicando o uso do THC
para pacientes esquizofrênicos, psicóticos intensos, transtorno bipolar exacerbado e outros
transtornos psiquiátricos ou com casos na família, por receio de desencadeamento de
crise.(153,185)
Entretanto, o que a literatura tem demonstrado é que o THC é seguro mesmo em altas
dosagens e, apesar de apresentar efeitos considerados adversos, quando é administrado com o
CBD tem seus efeitos psicomiméticos modulados, amenizados e até neutralizados, adendo o
fato de que CBD e THC interagem sinergicamente para melhorar os efeitos terapêuticos um do
outro (efeito entourage), sendo possível seu uso em tratamentos de transtornos
comportamentais.(148,149,187)
A vivência do grupo somada aos resultados de pesquisas publicadas permite inferir que
o THC em doses subclínicas, em baixa concentração e livre de efeitos psicoativos, pode
produzir os mesmos efeitos que o CBD, entretanto, consideraram que o CBD puro também tem
sua indicação peculiarmente para pessoas que não toleram o THC, encontrando uma boa
aceitação na psiquiatria e neurologia.(145,148,188)
Por outro lado, participantes elucidaram que as circunstâncias em que presenciaram
manifestações de pânico ou quadro psicótico decorreram do uso abusivo de THC e foram
transitórias, cessando com a descontinuidade do uso. Neste âmbito, alertaram que a atribuição
de causa da esquizofrenia à maconha é uma afirmação temerária, já que ainda não houveram
estudos que conseguiram de fato relacionar causa e efeito excluindo outros fatores, como por
exemplo, o álcool. Assim, concordaram que o uso de THC em altas doses pode tornar o paciente
menos interativo, indisposto para o trabalho, trazendo repercussões na responsabilidade do
indivíduo e impactos sociais. Explicaram que o THC requer uso controlado em
baixas/baixíssimas doses, uma boa avaliação do paciente, acompanhamento com regularidade,
intervindo prontamente nas primeiras manifestações. Corrobora neste sentido as evidências
científicas pré-clínicas, de estudos em animais de laboratório e humanos, demonstrando que
proporções variáveis de CBD: THC têm efeitos significativos de utilidade terapêutica.
131
e o cerne lenhoso, fibras resistentes para papel, têxteis e outras finalidades, sementes para
alimentação, óleos para fins medicinais e produção de biocombustível, beneficiando o meio
ambiente e a economia rural ao mesmo tempo em que proporciona uma fonte alternativa
sustentável. A Cannabis produz oito vezes e meia mais fibras por hectare do que as árvores e
absorve contaminadores de metal pesado do solo, limpando gradualmente a terra, e, depois que
é colhida, o campo fica praticamente livre de pragas para o plantio seguinte, uma economia de
milhares de dólares.(193,194)
Nos países em que a Cannabis foi legalizada, observa-se um impacto positivo na
economia, como por exemplo, os Estados Unidos que movimentou apenas com o uso medicinal
em 2017, o equivalente a U$ 6,7 bilhões, estimando-se que o mercado recreativo esteja
atualmente em U$ 1 bilhão, com expectativas de chegar a US$ 20 bilhões até 2022.(195)
É óbvio que não escapa ao cenário as intervenções das práticas habituais perpetuadas
pela indústria farmacêutica que visualiza na Cannabis um mercado extremamente lucrativo,
cuja lógica mercadológica, interesses e motivações de grupos específicos são capazes de
impulsionar mudanças na postura do atual governo neoliberal, ocupando os espaços
desbravados e construídos pela luta dos pacientes, familiares e médicos prescritores precursores
que assumiram todos os riscos até então.
Com relação às possibilidades para redução dos custos do tratamento e fomento das
políticas públicas, os prescritores citaram a necessidade de estratégias para viabilizar a
produção, comercialização e autossuficiência nacional, seja na produção a nível individual,
como em cooperativismo, ou mesmo em escala industrial e farmacêutica, por meio de uma
regulamentação que contemple a realidade brasileira das associações com iniciativas nos
estados que priorizem as parcerias com as universidades para acompanhamento e
implementação técnica e tecnológica, visando o fornecimento via SUS de produtos que atendam
os padrões de qualidade e funcionalidade para os pacientes. Neste sentido, acreditam que um
caminho profícuo é o papel dos pacientes e sociedade civil pressionando o governo e
demandando do SUS.
Diante disso, é fundamental destacar que o Estado existe em função da pessoa humana
e não o contrário, de forma que, assegurar o bem-estar individual e coletivo pela efetivação dos
direitos e garantias fundamentais é a forma pela qual o Estado demonstra aos cidadãos o porquê
de existir. Assim, cabe ao Estado sanar as dificuldades dos pacientes que necessitam do
tratamento à base de Cannabis para a seguridade de seu direito à saúde e dignidade humana,
resolvendo os entraves jurídico-burocráticos, os obstáculos financeiros do alto custo e a letargia
regulatória.(104)
133
12
A Medicina Translacional é voltada para estabelecer a conexão entre a pesquisa biomédica básica e a
inovação em saúde, de modo a gerar produtos, serviços e políticas que possam beneficiar a
população.(197)
134
constata-se que as demandas postas pela sociedade se colocam para as instituições formadoras
questionando o modelo médico assistencial vigente, que ainda perpetua a ideologia liberal e
individualista atravessada pela lógica do lucro do complexo médico-industrial, com vieses dos
interesses industriais e mercantilistas, uma estrutura acadêmica anacrônica que pouco tem feito
para as mudanças no processo educativo.(123)
Diante disso, o reconhecimento da precariedade desta política de saúde excludente para
os menos favorecidos não contempla a realidade socioeconômica e sanitária do país, fato que
aponta para a necessidade de uma profunda reformulação que desconstrua a concepção
autoritária e autocrática da educação médica e traga um currículo integrado, com abordagem
dialógica de competência e uso de metodologias ativas de ensino e aprendizagem, que assuma
o compromisso ético de um modelo de atenção à saúde cujo sistema educacional preconize o
desenvolvimento científico-tecnológico dentro do propósito conceitual e metodológico que
cumpra com a função social, favorecendo a construção de conhecimentos compatíveis com a
solução de problemas e produção da cidadania, numa perspectiva ampla e humana voltada para
a resposta das necessidades da sociedade.(130)
136
7 CONCLUSÃO
CM são muito menores e os sintomas mais comuns são enjoo, vômito, sonolência ou insônia,
tontura no início do tratamento, boca seca, perda ou aumento do apetite e sintomas
gastrointestinais.
Consonantes à literatura científica, pode ocorrer interações medicamentosas com
fármacos metabolizados pelo Citocromo P450 e há pacientes que inspiram maior
acompanhamento e monitoramento ou mesmo casos em que derivados da Cannabis podem ser
contraindicados, pois ainda há muito a ser pesquisado.
Visualiza-se no cenário da classe médica que o uso do THC ainda provoca muitas
polêmicas. Neste sentido, com relação ao desenvolvimento de psicose ou esquizofrenia e riscos
para a população pediátrica, a prática clínica dos prescritores demonstrou que esta é uma
afirmação que carece de estudos conclusivos relacionando causa e efeito, excluindo outros
fatores, pois o manejo seguro por meio da titulação criteriosa da dose tem efeitos significativos
de utilidade terapêutica.
Os desafios no processo formativo ressaltados derivam das dificuldades de acesso à
informação decorrentes da restrita divulgação dos conhecimentos para a sociedade e
comunidade acadêmica, não isentos dos contraditórios sociais, constituindo um obstáculo nos
avanços com relação à classe médica, incidindo diretamente na falta de profissionais
capacitados e na falta de acesso da população. Desta forma, percorreram estes caminhos
assumindo uma postura autodidata, construindo seus saberes estudando a fundo e buscando
continuamente aprimoramento, interfaceando os conhecimentos científicos disponíveis, as
trocas de experiências com outros prescritores e as vivências junto aos seus pacientes,
desenvolvendo habilidades no manejo terapêutico, alcançando uma maior segurança, confiança
e tranquilidade na aplicação da Cannabis com o passar do tempo.
Apresentadas todas estas perspectivas, conclui-se, portanto, que a carência de inserção
destes conhecimentos nos currículos em saúde, de espaços de discussão e formação nas
instituições, assim como a falta de fomento à pesquisa são questões centrais que requerem
posturas proativas pressionando, sensibilizando e mobilizando o poder público a assumir
compromissos que rumem para avanços na construção científica e democratização do acesso
ao tratamento com a CM para a população, sendo fundamental que a classe médica se aproprie
continuamente destes conhecimentos desde a graduação, explícito o mérito de sua relevância
na saúde humana.
139
A partir dos resultados deste estudo, será elaborado um produto técnico com proposta
de desenvolver um curso de capacitação sobre Cannabis Medicinal para profissionais do SUS
da Região de Saúde de Marília, com base em metodologias ativas de ensino e aprendizagem,
por meio de estratégias educacionais variadas, contando com professores qualificados
convidados de diferentes formações.
A atividade será coordenada pela pesquisadora e acontecerá em cinco encontros, com
duração de duas horas e periodicidade quinzenal, via plataforma online.
Serão ofertadas 50 vagas para profissionais de nível superior que atuem no SUS, em
serviços dos diferentes níveis de complexidade, indicados pelas Secretarias Municipais de
Saúde. As vagas serão distribuídas para os municípios de forma paritária, sendo 50% destinadas
a profissionais médicos.
140
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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APÊNDICES
APÊNDICE A – Instrumentos
ANEXOS