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ANTOLOGIA POÉTICA

ARIEL COLETIVO LITERÁRIO


thays albuquerque

estrangeira desde que nasci

de onde eu venho?
qual o ponto de partida?
um traço numa cartografia d’áfrica?
um pranto numa nau sombria?
uma cor vermelha brasílica?
há um caleidoscópio de travessias

sou naturalmente estrangeira


inúmeros espaços me habitam
me oferecem ora descanso ora conflitos
sou de todos e de nenhum
novos territórios e tempos me buscam
por ser atlântica, sigo o ritmo das ondas

à deriva, creio no poder dos ventos


me entrego à encruzilhada
o futuro me olha com desejo
toda terra é minha casa
e o meu lugar no mundo é negro
sem saber de onde ou de quando, estou aqui.

***

o que os olhos (não) podem ver?

você já pensou em voar?


já sonhou voando?
acho que boiar de braços abertos
escutando somente
os cantares do mar
é uma forma de voar

sei lá, os elementos se misturam


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como a faísca
que se desprende da fogueira
livre, ao vento
é fogo ou ar?

talvez, por isso,


a palavra flutuar
pode referir-se
tanto à água quanto ao ar
eu sei, são muitos devaneios

tenho criado chaves caleidoscópicas


para desvendar
o que está distante,
muito além do que,
objetivamente,
meus olhos podem ver

você também faz isso?

***

¿qué los ojos (no) pueden ver?

¿vos ya pensaste uma volar?


¿ya soñaste volando?
Creo que flotar de brazos abiertos
escuchando solamente
los cantares de la mar
es uma forma de volar

qué sé yo, los elementos se mezclan


como uma chispa
que se desprende de la hoguera
libre, al viento
¿es fuego o aire?

Quizá, por eso,


la palabra flotar
puede referirse
tanto al agua cuanto al aire
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lo sé, son muchos evaneios

estoy creando llaves caleidoscópicas


para desvendar
lo que está distante,
más allá de lo que,
objetivamente,
mis ojos pueden ver

¿vos también hacés eso?

***

Eucorpoterritório

o que pode um corpo negro?


Tem algo que não pode um corpo negro?
Não um, mas uma. Uma corpa.
Uma mulher negra
muitas mulheres negras
de peles e de histórias negras

como fazemos a passagem


do corpo sofredor para o corpo criador?
Elaboramos tudo num só território-corpo-arte?
Acolhendo a tempestade e a maré mansa,
na angústia e na ternura
de ser quem se é.

“eu sou porque nós somos”


há uma linha ancestral que me conecta
com aquelas e aqueles que vieram antes de mim
portanto, a minha história não é só minha
é de todo povo negro e indígena
por outro lado, é também do povo branco
e de sua tradicional opressão

como posso atualizar?


Como podemos recontar a história?
Ainda somos as mais resumidas,
violentadas, preteridas no brasil hoje.
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Qual o valor da vida de uma mulher negra?

Uma mulher negra e pobre?


Uma mulher negra e rica?
Uma mulher negra e lésbica?
Uma mulher negra e heterossexual?
Uma mulher negra e trans?
Uma mulher negra com deficiência?
Uma mulher negra e artista?...
quantos são os desafios diários
para continuarmos vivas?
Quantos são os desafios diários
para reafirmarmos nossa existência
e nossa humanidade?
Como, então, manifestar nossas vozes
que ecoam desejos de ontem e de hoje?
Como, então, proteger nossos ventres livres
que germinam vidas e sonhos para nós mesmas
e para as gerações vindouras?
Como, então, alimentar nossos corações
para amar abertamente mulheres e homens,
para amar também além de binarismos,
além do humano, amar nosso chão,
a terra, o ar, a água, o fogo...
amar tudo que somos e onde estamos?
Estamos aqui.

Mergulho nas descobertas do meu corpo


eu tenho um corpo
não, não: eu sou um corpo
eu sou o corpo
eu sou meu corpo
meu espaço de prazer e de luta
o meu corpo me leva e eu vou
nos trânsitos físicos e mentais
integrando e rompendo arrecifes
há povoados e cidades colossais
que me compõem, que eu possuo
percorro estradas, imagino lugares
navego nas águas memórias
eu amo, eu amo, eu amo...
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eu sou um corpo que sente
construo passado-presente-futuro
abraço o labirinto como uma espiral
não ando em círculos, eu avanço
da margem eu reinvento o centro,
eu desfaço o centro, concebo novas relações
proponho novas configurações de contatos e convivências
uma nova cartografia da fala e da escuta
uma forma plural de ser, de estar, de saber
minha voz derruba fronteiras, não aceita fronteiras
eucorpoterritório transito e ocupo o mundo.

aline sou

o que é poesia?
olhar as mãos calejadas de meu pai
sentir os olhos cansados de minha mãe
erguer a cabeça enquanto chove
voltar pra casa
partida
sem sentir, nada
apenas a boca salgada
/elas querem falar de poesia/
olhar os traços negro tupi-guarani de meu pai
sentir a memória viva da mãe de minha mãe
baixar a cabeça enquanto velo
voltar pra casa
sem levar nada
apenas a alma ilhada
/elas querem falar/
po·e·si·a
compor versos
forma harmônica
sensibilizar e despertar
/há mais valia se é poesia?/
aqui encerro, pulsando
há dor

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e na magia do dia
sou poesia

***

a minha cor
é motivo de elogio amor e dor
a minha cor
é razão para olhares invejosos
a minha cor
não tem paz, não descansa
a minha cor
desperta sentimentos de ódio e vingança
a minha cor
é sempre lembrada sexualizada, sempre
observada inanimada silenciada
é minha cor
ecoa as dores das mulheres pretas
estupradas ontem, hoje e amanhã
a minha cor
reflete o semblante do que tu queres abusar, humilhar
a minha cor
é raiz forte
que há séculos, séculos e séculos e séculos
grita
chora
morre, mas eu nunca deixei de amar
a minha cor

Micaela Sá
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Cama

Mais uma noite chega e mais uma vez aquele desejo queimando a garganta, sinto o meu corpo
inteiro pulsando. Por incrível que pareça não sinto a falta de ninguém. Por incrível, não!
Nunca sinto essa falta. Todas as noites, antes de dormir, o ritual inicia: Penso no contato da
minha mão em meu corpo, meus toques e meus sentidos despertados por mim. Egoísmo
delicioso de me sentir. Narcisismo, talvez. Amor próprio. Prazer próprio. Excitação ao me
perceber em cada pequeno detalhe do meu corpo tão clamado por todos e todas. Ao me ver,
sinto desejo de mim. Da minha boca que faz enlouquecer com sussurros e gemidos. Posso
sentir desde o fio do meu cabelo até o meu sexo pulsando e é por mim. Mais do que me sentir,
registrar essa experiência parece inusitada. Registrar meus espasmos e contrações por
saborear meu corpo e meu gosto. No escuro do quarto, todos os desejos revelados e realizados
somente a quem os interessa. Aos meus instintos eu revelo em imagens e sombras o delinear
do meu corpo e os prazeres a quem jamais revelarei. São meus por essência. De relance, vejo
o meu olhar penetrante de quem come, de quem devora sem espera, porque me faço pronta.
Sinto calafrios, sinto pelos eriçados e poros dilatados. Como se não fosse suficiente sentir em
meu corpo, me dou o direito do duplo prazer: sentir no corpo e no toque o prazer de me
desfrutar.

***

Ela(s)

No meio do domingo tinha uma amiga


Tinha uma garota no meio do domingo
No meio do domingo tinha uma moça
Tinha uma mulher no meio do domingo

Eu devia seguir, colocar em dia minhas tarefas, mas nada conseguia concluir.
Eu tinha que trabalhar, provas para corrigir, redações que nunca chegavam ao fim, mas
ela a cada minuto se chegava, fazendo casa em mim.
Eu precisava estudar, artigos para entregar, uma monografia para defender e uma tese
para escrever, mas – que bom – tinha uma delícia no meio do domingo.

No meio do domingo tinha uma ficante


Tinha uma namorada no meio do domingo
No meio do domingo tinha uma esposa
Tinha uma companheira no meio do domingo.

No meio do domingo (ou no domingo do meio pro fim)


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a companhia e a presença dela
atrapalhou tudo em mim.

***

Abraço-afago

Ainda bem que já estávamos em quarentena... eu pensava...


Seria muito difícil ter que me afastar desse jeito tão brusco.
A partida era esperada, mas ninguém pensava que seria agora... no meio da pandemia?
Olho para trás e penso: ainda bem que já estávamos distantes e que nossa rotina havia sido
ressignificada: mensagens de texto, áudios – que mais parecem podcasts, fotos, vídeos,
ligações...
Tudo isso tentava substituir o café presencial, diário, no mesmo lugar e, pontualmente, às
nove e quinze.
Cafés, por vezes regado pelas atualizações das últimas 24 horas, por vezes silencioso, em
alguns momentos, conversando através do olhar ou por mensagem – quando alguma ameaça
nos rondava.
Tudo isso era só uma tentativa de substituir o abraço que fora suspenso por medidas de saúde
pública.
A Organização Mundial de Saúde que me perdoe, mas se persistirem os sintomas de
saudades, o coração é que será consultado.

Renally Luna

a vida é caminho
ponte de corda e madeira
trilha de uma cachoeira
balanço em meio a natureza
passo devagarzinho
na vida caminho
***

TRAVESSIA

É sempre sobre ir, travessia é o movimento. Rabisco poemas como quem tem maestria no que
se faz, pelo menos essa é a sensação. Na verdade, são vísceras, gozo e pele. Tudo à
exposição! É a vida acontecendo e a gente devorando. É sobre tragar o indigesto. Café é
droga, amor é vício. É sempre sobre alguma coisa. Alguém te atravessa e pronto! Já tem

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poesia nisso aí. É sobre partir, mas é muito mais sobre ficar. Sobre os restos, sobre os riscos.
O ir sempre acaba quando se chega em algum lugar, mas o que fica será pra sempre o que foi
vivido.

***

tua origem da natureza


tua beleza
encanto de mil horas
passarinha
não viverei mais
triste ou sozinha
em teu abraço
habito meu espaço
em minha rima tesa
descompasso
no mundo
mais uma guerreira
pra sempre
em meus braços
Teresa

Haissa Vitoriano

Nota rápida sobre os agravos do meu peito: não tenho estrutura para mergulhos, gosto mesmo
é de lavar os pés de vez em quando.
.
.
.
.
Desde pequena conservo este hábito: várias vezes, no dia, ir ao banheiro lavar os pés. Ia
também ao quintal, retirava, com uma cuia, água da lavanderia e molhava meus pés,
esfregando um sobre o outro e os dois sobre a pedra que calçava o terreno. Outro dia ouvi
algo que deve ser verdade, que sofro mesmo é de pés quentes (mas isso nada tem a ver com
sorte).

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Minibiografia das autoras

Thays Albuquerque
@thays.albuquerque.tk
Poeta, negra e feminista. Nasceu em Recife, em 1986, e vive no trânsito entre Pernambuco e
Paraíba desde 2011, já que trabalha como professora de Literaturas Hispânicas na
Universidade Estadual da Paraíba, em Campina Grande. Em 2020, concluiu o Doutorado em
Letras, Teoria da Literatura, na Universidade Federal de Pernambuco. Em 2022, publicou o
livro “o corpo e caleidoscópio”, pela editora Castanha Mecânica. Integra o Ariel Coletivo
Literário, é uma das articuladoras do Podcast Tramando e do projeto As Poetas do Pajeú. Há
anos articula a palavra com a imagem em produções de vídeo-poemas. Entende a literatura de
forma plural, como manifestação cultural cultivada nos mais diferentes espaços e por todo
tipo de gente, e vivencia a poesia como uma postura diante da vida.

aline sou
@4lin3s
mulher negra, natural de Belo Jardim (PE), 1987. atua como pesquisadora, comunicadora,
realizadora audiovisual e produtora cultural. Utiliza dos conhecimentos metodológicos da
formação acadêmica em engenharia novas formas de decodificar o sistema, e enegrecer as
referências. Escritora e performer, parte das próprias experiências para questionar as
limitações impostas à mulher negra, utilizando fotografia e audiovisual para composição.
Fomenta vivências que potencializam sua sensibilidade na construção de oficinas de escrita
criativa para mulheres. Idealizadora do Delas Coletivo, articuladora no Ariel Coletivo
Literário, integrante do Maracatu Estrela Brilhante do Recife e do Coletivo Suçuaranas em
Recife. Escreve, e é poesia.

Micaela Sá
@micaelaletras
Mulher, feminista e brincante com a poesia. Professora de Literatura no sertão potiguar
(UFERSA), doutora em Literatura e Interculturalidade (UEPB), integrante do Ariel Coletivo
Literário. Nos espaços pelos quais tem feito travessia, dissemina e experimenta a poesia como
resistência, potência, suspiro e forma de pensar as possibilidades de ser e estar sujeito.

Renally Luna
@r3n4lly
Mulher, mãe, poeta. Filha de Campina Grande (PB) e moradora do mundo. Professora e
estudante de literatura, amante de todas as letras. Espalha poesias declamando arte com o
Ariel Coletivo Literário. Acredita que escrever é fluxo e energia de vida, é inconsciente que te
leva, e assim escreve quando o vento bate e a palavra vem.

Haissa Vitoriano
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@haissavitoriano

Haissa Vitoriano é paraibana, da cidade de Campina Grande. Mulher e mãe. Com sua mãe
conheceu a poética e o amor pelas letras; como mulher e mãe vive e divide a poesia. Caminha
entre a prosa e o verso, a pesquisa e o ensino. Nem sempre escreve, mas não desgruda da
palavra.

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