Você está na página 1de 231

O PIAZINHO

ELEUTÉRIO CZORNEI
O PIAZINHO
COPYRIGHT © 2022 BY ELEUTÉRIO CZORNEI
COPYRIGHT © 2022 BY JUVENAL TIODORO

REVISÃO E ORGANIZAÇÃO: ELEUTÉRIO CZORNEI/ROSANA DIAS DO


NASCIMENTO CZORNEI

CAPA: MARCOS ANTONIO CZORNEI/LETRONA

Dados Internacionais de catalogação da Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Czornei, Eleutério
O piazinho (livro eletrônico) / Eleutério Czornei,
Juvenal Tiodoro. – São José dos Pinhais, PR:
Ed. dos Autores, 2022.
PDF.

ISBN 978-65-00-51715-6

1. Ficção brasileira I. Tiodoro, Juvenal.


II. Título.

22-125380 CDD-B869.3
Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção: Literatura brasileira B869.3

Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129


AGRADEÇO AOS HERÓIS, VILÕES, MOCINHOS E BANDIDOS, E CLARO, OS
COADJUVANTES QUE COMPARTILHARAM AS AVENTURAS NARRADAS NESTE
LIVRO. A FAMÍLIA PELAS LEMBRANÇAS. A DANA PELO INCENTIVO.
MENÇÃO HONROSA A JUVENAL TIODORO, MEU ALTER EGO PREGUIÇOSO,
ENROLADO E DISPLICENTE E AOS LEITORES DO EXTINTO “JORNAL
IMPERIAL”.

ELEUTÉRIO CZORNEI
EM 2022 O PIAZINHO COMPLETA 50 ANOS.

VOCÊ PERGUNTARÁ: - A CRÔNICA “O PIAZINHO” FAZ 50 ANOS?

RESPONDEREI: - CLARO, QUE NÃO! SEU AUTOR, ELEUTÉRIO, COMPLETA 50


ANOS E QUEM GANHA O PRESENTE É VOCÊ! – ATÉ PARECE PROPAGANDA DE
MERCADO, NÉ?

NOVA PERGUNTA SUA: - O PRESENTE VAI SER UM CHURRASCO EM ESPETO


DE MADEIRA, COM CERVEJA DE GARRAFA, MAIONESE, SALADA DE TOMATE
COM CEBOLA E RISOTO DE FRANGO?

LHE DIREI QUE: - NÃO, O PRESENTE É ESTE LIVRO COM EDIÇÃO ÚNICA E
ELEGANTEMENTE ELABORADO PARA VOCÊ!

E VOCÊ VAI DIZER: - AH, TÁ! MAS NUM DÁ PRA TROCAR POR UM
CHURRASCO?

JUVENAL TIODORO
Sumá rio
AMANHÃ ......................................................................... 9
O HOMEM QUE NÃO VIA A COR DOS OLHOS .................. 10
PRIMEIRA CONFISSÃO .............................................................. 17
SUSPIRO ROUBADO ................................................................... 27
O INCÊNDIO E OS DORMINHOCOS ...................................... 33
O CHURRASCO ............................................................................. 39
OS GNOMOS DE JARDIM ......................................................... 47
UMA INESQUECÍVEL AULA DE MATEMÁTICA.................. 52
DESFILE SETE DE SETEMBRO .............................................. 56
ESCADA DE PEDRA ....................................................................... 60
O PIAZINHO .................................................................................... 62
ASSUSTADO ................................................................................... 65
O GOLEIRO .................................................................................... 69
A INDECISA DE SÃO JOSÉ DOS PINHAIS - 1 .................... 77
A INDECISA DE SÃO JOSÉ DOS PINHAIS - 2 .................... 84
ROSA GRACIOSA ............................................................................ 90
SONHOS DELIRANTES............................................................... 91
SAPATOS ......................................................................................... 94
COMPRANDO MEL....................................................................... 99
VELHO BABACA ......................................................................... 105
COMO PREPARAR UMA PAELLA .......................................... 111
PROFESSORA YOSHIKO .......................................................... 118
COMENDO UMA VIÚVA ........................................................... 121
A MAÇÃ, A MULTA E A APOSENTADA ................................ 126
O CORCEL, O CASAMENTO E A EMPURRADINHA ........ 130
A GRANDE INAUGURAÇÃO .................................................... 134
VENDE-SE ÂNCORA .................................................................... 138
O CARNEIRO ................................................................................ 140
CACHORRO-QUENTE NO MARACANÃ ............................... 144
CURITIBANA ASSALTADA NO RIO DE JANEIRO ............ 148
O HOMEM PARADO .................................................................. 154
O HOMEM PARADO DOIS ....................................................... 156
O ÚLTIMO DOS VELHOS ......................................................... 159
A REUNIÃO ................................................................................... 165
LEMBRANÇAS DE UMA VIDA ................................................ 171
E O COELHO? ............................................................................. 178
O VELHO BANHA ....................................................................... 183
CAPUT MORTUUM CABEÇA MORTA ...................................... 187
DELEGADO CALÇA CURTA .................................................... 189
SOBAKA - UMA LENDA DA FAMÍLIA CZORNEI ............... 196
UM CASAMENTO ........................................................................ 206
9

AMANHÃ
Na penumbra da noite
Na solidão do silêncio
Tudo está vazio
Tudo é escuridão

A garrafa vazia
O copo cheio
A cabeça sente
O corpo padece

Na falta de luz
As horas voam
Os pensamentos entristecem
Os olhos fecham

Chegou a hora
A cabeça rola
O corpo cai
Amanhã...
ressaca!!!
10

O HOMEM QUE NÃO


VIA A COR DOS
OLHOS
Acordo assustado. Os passos cadenciados faziam
estalar o assoalho de madeira. O barulho parecia
enorme em contraste com o silêncio da madrugada.
Não estava acostumado dormir na casa de outras
pessoas, mesmo sendo na casa dos meus avós. Os
passos eram do meu avô. Fiquei com os olhos
arregalados olhando aquele quarto, não via nada na
escuridão. No meu lado meu irmão dormia e meu pai
também. As cobertas de pena de galinha pareciam me
sufocar. A luz da cozinha foi acesa. O quarto ficou
mais assustador pela fraca luminosidade da lâmpada
incandescente que passava pela cortina. Cortina
estampada e colorida que fazia o papel de porta e
dividia a cozinha do quarto.
Um barulho assustador fez eu puxar a coberta até
meus olhos. Era da porta dos fundos que dava para o
quintal e enroscava no assoalho quando era aberta.
Meu avô resmungou com os cachorros que dormiam
nos três degraus da escada. Algum tempo depois a
porta foi fechada com o mesmo barulho. A dobradiça
da portinha do fogão a lenha rangeu. Um fósforo foi
aceso e os cavacos de lenha estalavam quando
começaram a pegar fogo. A água entrava na chaleira
11

como uma cachoeira. As gotas que escorriam pela


chaleira gritavam quando encontravam a chapa
quente do fogão.
O barulho de passos no assoalho de madeira voltou,
esses mais pesados. Meu pai se levantou. Fiz menção
de sair da cama, ele disse baixinho para eu voltar a
dormir que não estava na hora. Não dava e os olhos
continuavam abertos com o barulho da água
aquecendo e a lenha queimando no fogão. A luz fraca
iluminou o quarto quando ele passou empurrando a
cortina florida.

Tomavam chimarrão. O cheiro de banha de porco


impregnou o quarto enquanto era aquecida na
frigideira. Clac! Clac! Ovos chiaram em contato com a
gordura quente. Broa assada no forno a lenha e ovo
frito. Convite para levantar. A escuridão do quarto
dizia para ficar deitado. Será que levanto? Espero o
pai chamar? Olhei para meu irmão. Dormia. Fiquei
deitado.
Uma mão me sacode levemente. Teco acorde, tá na
hora de levantar! Acordei assustado - havia
adormecido enquanto na cozinha a conversa era lenta
e pausada, falavam de parentes que não conhecia,
plantação e tempo. Meu irmão já estava de pé, com
cara de brabo. Eu estou com sono, queria ficar
dormindo. Meus olhos teimam em se manter
fechados, não aceitam a claridade da manhã. Meu pai
falou mais firme: - vamos!
12

A manhã no sítio estava fria. Os cachorros seguiam


meu avô no trato das galinhas e porcos. Tomamos
café saboreando broa com ovo, enquanto meu pai
encilhava os cavalos e os engatava na carroça. Quase
a contragosto eu e meu irmão fomos em silêncio
sentados com o pai no banco, o machado, a serra, e a
cunha de ferro estavam acondicionados no fundo da
carroça. Silêncio quebrado pelos gritos do pai com os
cavalos e pelo ranger das rodas na estrada
esburacada e cheia de pedras soltas. A viagem foi
curta e nem deu 500 metros já chegamos no portão
de uma outra estrada da roça.

Depois da porteira fechada, na manhã orvalhada, o


cheiro do mato mistura-se com o odor dos cavalos. As
rodas perderam seu barulho devido à algumas poças
de água na estrada que agora era com mato e grama.
Enquanto o sol não brilhava com força, no meio do
mato uma paisagem sombreada surgiu, provocada
pela fumaça. Fumaça que sai vagarosamente de uma
chaminé, sem força, caindo sobre as árvores em volta.
Chaminé de uma casa de madeira antiga.

Paramos a carroça no quintal em frente a casa. O pai


desceu da carroça, eu e meu irmão ficamos sentados.
O pai chamou - venham dar benção pra bisavó! Ela
apareceu na porta. Fiquei com medo. Ela era velha.
Meu irmão foi na frente, eu fui atrás. Subimos os
degraus de madeira, fiquei na porta olhando para
dentro da cozinha escura. Não entendia o que a
bisavó falava, será que era polonês ou ucraniano?
Não sei! Com um sorriso no rosto ela ofereceu alguma
13

coisa, bolacha ou era broa? Não aceitei meneando a


cabeça.

O pai puxou uma cadeira e sentou junto a mesa. Foi


quando percebi uma porção de olhos me encarando.
O medo aumentou. Olhos frios, olhos sérios, olhos
clementes, olhos fixos, olhos inquisidores, olhos
afáveis, olhos tristes, olhos vivos, olhos esperançosos,
olhos melancólicos, olhos tirânicos, olhos coloridos:
verde, azul, vermelho, preto, castanho, amarelo.
Olhos. Na cozinha com iluminação precária os olhos
estampados nas paredes me abalaram. Eu mudei de
um lado, para o outro lado da porta. Os olhos me
seguiram. Sentei na porta olhando a carroça no
quintal e as árvores para tentar me distrair. Alguns
segundos depois voltei a olhar para dentro da
cozinha, os olhos estavam lá, fixos me olhando como
antes. Esmoreci. Encostei na parede da porta e fiquei
olhando para o chão.
A conversa foi rápida e o pai já estava se despedindo.
Eu não me despedi. Subi na carroça e não olhava
para a cozinha. Já estavamos andando quando
resolvi olhar para trás, para a porta, a bisavó estava
na porta me olhando fixamente e ao lado dela vários
olhos. Todos os olhos que vi na cozinha escura. A
bisavó continuou na porta, os olhos estavam
flutuando na minha direção. Com as mãos me agarrei
com força no banco da carroça. Os olhos em seus
pares flutuavam rápido na minha direção.

Cutuquei meu irmão. Ele respondeu seco: - pare piá!


14

O mato era fechado e escurecia o caminho, o sol não


tinha aparecido ainda. De repente os cavalos
aceleraram o trote. O pai assustado puxou os arreios,
tentando diminuir a velocidade, os cavalos não
corresponderam. A carroça estava descontrolada.
Minha respiração estava ofegante, olhei para trás, no
ar as cores dos olhos se misturaram e os pares se
desfizeram, e separados continuavam em alta
velocidade.

Meu irmão gritou: - olha a árvore caída. Olhei para a


frente uma árvore estava no caminho da carroça, mas
ela não se encontrava estirada no chão, seu tronco
formava um arco. Meu pai assustado, ficou de pé e
tentava controlar os cavalos e a carroça. A árvore era
verde e tinha vida, estava caída, mas não morta, seus
galhos eram verdes, e musgos recobriam suas cascas.
A carroça passou em disparada pelo arco. Como se
nada tivesse acontecido, após passar pelo arco os
cavalos desaceleraram e voltaram ao trote normal,
tranquilo, pacatos e sem pressa de chegar. O pai
relaxou e segurou as rédeas e a carroça parou. Do
susto da disparada dos cavalos me aliviei, não estava
acostumado a andar de carroça. Olhei novamente
para trás, os olhos estavam parados e não
ultrapassaram o arco.
A profusão das cores dos olhos misturados,
brilhavam intensamente neste momento, como se
fossem vagalumes. Enquanto meu pai olhava os
cavalos, eu olhava para trás, os olhos estáticos
penetravam em minha cabeça e como se apertassem
15

um interruptor de lâmpada, todos os olhos


começaram a apagar lentamente. As cores brilhantes
iam desaparecendo e ficaram todos num tom marrom
e depois cinza e no final restando só um contorno
fino, como se feito a lápis escolar preto.
A variedade de cores sumiu e os riscos dos olhos
ficaram emoldurados no arco. Neste instante alguns
raios de sol surgiram no céu e iluminaram a árvore
caída. Pisco duas vezes para ter certeza, árvore caída
tinha o desenho e o contorno de um olho. Os
contornos dos olhos vieram em minha direção, ergui
os braços tentando proteger a minha cabeça, ao
contato com minha cabeça eles se dissiparam
soltando uma fumaça que sumiu no ar
instantaneamente. Os olhos sumiram e os meus
lacrimejaram.

Depois de verificar os cavalos, começamos a andar


novamente e chegamos ao destino em pouco tempo,
uma clareira no meio da mata onde algumas árvores
derrubadas se encontravam. Iríamos fazer lenha para
o fogão. De repente meu irmão perguntou pro pai: -
porque na casa dela tava cheia de calendário de santo
pendurado nas paredes? Tinha uns bem antigo lá,
tava até desbotado, uns santo que não conheço…

Pai respondeu: - pra proteção, a bisavó acredita tanto


nos poderes dos santos que tem medo que aconteça
algo com ela se jogar as folhinhas antigas no lixo. Meu
irmão disse: - então ela mora sozinha e é protegida
pelos santos? Pai respondeu que sim.
16

Fico pensando: será que por não cumprimentar a


bisavó os olhos dos santos vieram me pegar???

...

Alguns anos mais tarde a mulher questiona:

- Como assim você não viu? Ele responde tranquilo:

- Eu vi a criança!

- Mas não viu a cor dos olhos dela? O sinal de que ela
estava exaltada era as três rugas na testa e para
provocá-la, ou não, ele respondeu seco: - Não!
- Como assim não? Você não viu a cor dos olhos? Ele
era ruivo de olhos azuis!!! Você não viu o olho azul?
Uma criança ruiva de olho azul e você não percebeu?

- Pra que tanto drama, eu vi que ele era ruivo!

Ela pergunta indignada: - Você sabe que cor é meu


olho?

Ele tenta mudar de assunto: - O que você vai querer


para a janta?

- Responda!!! Disse ela quase gritando.


17

PRIMEIRA CONFISSÃO
Sábado nove da manhã dos anos 80, estávamos na
sala da catequese do colégio das freiras. Aquela
algazarra enquanto ansiosos esperávamos a irmã
Rosa e a irmã Eliza, freiras ucranianas que sempre
andavam com seus hábitos típicos.

Domingo seria o grande dia, depois de vários meses


de preparação e aprendizado, a primeira comunhão.

Irmã Rosa conseguiu acalmar o alvoroço da turma


depois de alguns minutos. Fizemos uma oração.
Depois, simpática, ela explicou outra vez como seria
no dia seguinte. Prosseguindo, fomos na igreja
ensaiar a cerimônia.

Tumulto no caminho da sala de catequese até a igreja,


trinta e cinco crianças na faixa etária de oito anos
correndo e gritando. Na porta da igreja levamos a
primeira reprimenda da irmã Eliza:
- Silêncio! Agora vamos entrar na casa de Deus,
devemos ter respeito!!!

Irmã Rosa relembrou das vestimentas obrigatórias na


cerimônia, meninos calça social azul, sapatos pretos,
18

camisa branca manga longa e gravata borboleta;


meninas, vestido branco e sandálias brancas. Ensaio
geral da cerimônia e missa da primeira comunhão:
fila indiana por ordem de tamanho para entrar na
igreja; meninos no lado direito; meninas do lado
esquerdo; ordem e procedimentos para receber a
hóstia.

Em seguida irmã Eliza nos falou da confissão e que


deveríamos chegar até as 8:00 horas da manhã para
fazermos a confissão com o padre Marciano. Irmã
Eliza alertou que quem não fizesse a confissão no
horário não receberia a primeira comunhão e iria ter
que fazer novamente a catequese no ano que vem.
Acho que ninguém queria levantar todo sábado de
manhã durante um ano inteiro fazendo sol, frio ou
chuva.

No confessionário o ensaio era individual, a irmã fazia


o papel do padre. Enquanto um estava no
confessionário, os outros esperavam em silêncio
sentados nos bancos da igreja. Em silêncio estávamos
até alguém sair do confessionário, começou com um
burburinho e foi se transformando naquela algazarra
dentro da igreja. A irmã Eliza interrompe a festa e a
segunda reprimenda veio ríspida:
19

- Silêncio!!! Seus colegas estão ensaiando a


confissão!!!

E ameaçou:
- Se continuar esta bagunça, vocês não farão a
primeira comunhão este ano!!!

O silêncio voltava na igreja. Por poucos minutos é


claro! O burburinho começava baixinho e em pouco
tempo virava algazarra.

Após todos terem ensaiado a confissão, as últimas


orientações das freiras foram passadas, entre elas:
deveríamos aproveitar o período da tarde para
fazermos nossa lista de pecados, e inclusive
poderíamos anotar numa folha de papel para não
esquecermos nenhum.

Fizemos oração e fui embora correndo para almoçar.


Minha mãe tinha separado um prato de comida, pois
se deixasse nas panelas meus irmãos, mortos de
fome, teriam devorado tudo.

Após o almoço fui brincar com meus amigos no mato


onde o rio faz a volta. Voltei sujo e encardido, minha
mãe disse:
20

- Vai tomar banho piá!!! Enquanto eu preparo um


cuque de banana, pois teus primos virão para o
almoço amanhã!

Fui tomar banho pensando que ainda tinha que fazer


a lista de meus pecados. Pensei que iria ser fácil, mas
não foi. Como é difícil achar os pecados, ainda mais
quando se é uma inocente criança. Não conseguia
colocar os pecados no papel, e na catequese as irmãs
falaram um monte sobre pecado. Consultei os dez
mandamentos do catecismo:

Adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas.


Não invocar o Seu santo nome em vão.
Guardar os domingos e festas.
Honrar pai e mãe.
Não matar.
Não pecar contra a castidade.
Não furtar.
Não levantar falsos testemunhos
Não desejar a mulher do próximo.
Não cobiçar as coisas alheias.

Mesmo assim ficou difícil de achar os pecados. Fiquei


cansado procurando meus pecados, e na minha lista
constava os pecados de toda criança daquela época,
mesmo que não tivesse cometido: desrespeitar os
pais, brigar com algum colega, mentir, matar ou caçar
21

passarinho, entre outros pecados. Achava a lista


pequena.

Eu estava preocupado com um pecado que estava na


última linha da lista e que me atormentou. Este
pecado não deveria estar na lista de nenhum de meus
colegas e só parei de pensar nele quando peguei no
sono, depois do jantar.

Domingo. Minha mãe acordou-me cedo, tomei o café


que ela já havia preparado, e fui me vestir. A gravata
borboleta me apertava o pescoço. Cheguei cedo à
igreja, morava bem próximo. Meus amigos já estavam
lá, todos iguaizinhos: calça azul, camisa branca e
gravata borboleta, claro que alguns colocavam a
gravata borboleta no meio da camisa e não na gola, o
que era motivo de gargalhadas para todos. As
meninas nos seus vestidos brancos.

A irmã nos chamou para organizar a fila da confissão,


primeiro fizemos a oração. Meninos do lado direito do
confessionário e as meninas do lado esquerdo.
Enquanto estava na fila, o pecado que me atormentou
ontem ressurgiu. Ele estava na lista que eu carregava
no bolso da calça. Eu estava em dúvida se deveria
confessá-lo ao padre.
22

Estávamos todos em silêncio, quietos e mudos, o


padre não havia chegado ainda e algazarra também
não tinha ido. Em fila aguardando e o pecado
martelando na minha cabeça. Eu estava preocupado
com o pecado descrito na última linha de minha lista,
a mão dentro do bolso mexia e remexia o papelzinho
da lista.

O padre Marciano chegou. Meus pensamentos


voaram longe: será que ele é de Marte? Será que ele
veio num disco voador? Onde será que ele guarda a
espaçonave? Será ele é um alienígena? E usava
roupas de padre para esconder alguma coisa?

Olhando bem, ele tinha uma fisionomia diferente, era


meia altura, gordo e na cintura parecia um barril, e
usava óculos de fundo de garrafa, será que ele não
era marciano mesmo?

Meus devaneios foram interrompidos por um afetuoso


e sorridente padre, que disse:
- Bom dia crianças!

Todos nós respondemos o bom dia, alguns em tom


forte e outros, como eu, receosos, malmente abrindo
a boca. Ele continuou:
- Tudo bem com vocês?
23

E fez uma breve explanação sobre confissão e pediu


para que ninguém tivesse medo e nem vergonha de
confessar. E depois se dirigiu para o confessionário e
o primeiro “toc toc” surgiu.

Duas batidas na madeira do confessionário, o sinal


do padre para que o primeiro da fila fosse ao
confessionário para a confissão. Passados alguns
minutos saiu Josef, vermelho igual um pimentão,
coisa normal para quem é descendente de ucranianos
e polacos, e foi direto para os bancos onde se ajoelhou
e deveria estar cumprindo a penitência imposta pelo
padre.

Em seguida outro “toc toc”, agora foi uma menina. E


depois mais “toc toc” e um piá, e assim foram
alternadamente entrando piás e meninas. Minha vez
estava chegando, o “toc toc” me angustiava.

Uns continuavam saindo com o rosto vermelho,


outros sorridentes, e alguns estavam normais. Outro
“toc toc” e agora somente um na minha frente.

Minha vez. Estava aguardando o “toc toc” do padre no


confessionário, acabei nem ouvindo, estava com
pensamentos no último pecado descrito em minha
24

lista. João Teodósio, que estava atrás na fila, que me


cutucou.

De cabeça baixa fui para o confessionário, entrei,


ajoelhei fazendo o sinal da cruz, e não cumprimentei
o padre. O padre falou algumas palavras que de tão
nervoso, não entendi. O padre terminou e eu comecei
espontaneamente o que havia decorado e ensaiado no
dia anterior:

- Padre! Pequei contra Deus e contra os irmãos, estou


arrependido e peço perdão. É minha primeira
confissão e meus pecados são os seguintes:

- É ...

Empaquei. Estava nervoso não conseguia falar os


pecados. Tremendo fui obrigado a pegar minha lista
que estava no bolso da calça, mas ajoelhado demorou
um pouco até eu conseguir encontrar e retirar o
papelzinho.

E comecei a lê-los rapidamente, as freiras tinham


autorizado na primeira confissão que pudéssemos ler,
mas só na primeira confissão.

O padre interrompeu e falou:


25

- Não tenha pressa filho! Eu não vou fugir! Respire


fundo... e pode recomeçar, mas devagar!

Respirei e fiz o que o padre falou e comecei a ler


devagar um por um os meus pecados, não eram
tantos assim também. Cheguei ao último pecado da
minha lista, dei uma engasgada, ainda estava em
dúvidas se falava ou não.

O padre estava esperando e já iria começar o próximo


passo que é da aplicação da penitência, quando falei
alto o meu pecado, aquele que me atormentava:
- Roubei farofa do cuque padre!

Fiquei em silêncio, o padre também. Não sabia se o


padre estava calculando a minha penitência ou se
estava tomando fôlego para não explodir em
gargalhada.

Alguns instantes depois ele me aplicou a pena, a


minha penitência:
- Filho reze três pai nosso, três ave marias, e um creio
em deus!

Ele não falou nada sobre o roubo da farofa de cuque.


Imediatamente e antes que o padre mudasse de ideia,
26

comecei a rezar o ato de contrição. O padre fez outra


oração e terminou a confissão:
- Vai em paz e que o Senhor te acompanhe filho!

E escutei mais uma vez o “toc toc” no confessionário.


Este “toc toc” me libertou do tormento do último
pecado, eu estava tranquilo e aliviado, já havia feito
minha confissão, agradeci ao padre e saí.

Agora de cabeça erguida e com um sorriso no rosto,


igual ao do padre quando ele chegou. Aliviado fui
cumprir minha penitência, ajoelhado no banco da
igreja rezei os “pai nosso”, as “ave marias” e o creio
em Deus. E por conta própria rezei mais do que o
padre sentenciou.

O restante da cerimônia da primeira comunhão


correu tranquilamente. Ao término da cerimônia
voltei para casa com meus pais e meus irmãos para o
almoço especial: churrasco, naquela época não era
tão rotineiro como hoje e de sobremesa teve cuque de
banana e farofa, quer dizer, só tinha um pouco de
farofa, pois eu tinha “roubado” uma boa e grande
porção, mesmo assim o cuque estava uma delícia.
27

SUSPIRO ROUBADO
A mãe gritou para um de seus cinco filhos que
brincavam no quintal:
- Titaaaa!!! Titaaaaa!!! Venha rápido piá!!!

O garoto veio correndo e sujo de terra:


- Lave as mãos e vá lá correndo na bodega do Gastão
comprar um quilo de fígado de porco pra janta!

O garoto foi no tanque de lavar roupa, abriu e fechou


a torneira rapidamente, as poucas gotas de água que
conseguiram sair não foram suficientes para tirar a
terra das mãos. Ele secou as mãos na camisa, que
para sorte ou azar de sua mãe, já estavam sujas.

Pegou o dinheiro que estava na mão da mãe e


perguntou:
- Posso comprar um doce?

A mãe respondeu sabendo que sobraria poucas


moedas:
- Primeiro compre o fígado e se sobrar você pode
comprar um doce para vocês!!!
28

Tita foi correndo até a bodega do Gastão. Não era


longe, na verdade era só atravessar a rua, a bodega
ficava de frente a casa. Tita nem olhou para os dois
lados antes de atravessar a rua. Não existiam tantos
veículos que transitavam pela rua na década de 70 e
80, algumas carroças talvez.

O garoto comprou o fígado, pagou e sobrou troco, que


deu para comprar doce que teria que dividir com os
outros três irmãos e uma irmã.

Voltando com o fígado de porco embrulhado e o


pacote com doce, próximo do portão da casa, sem
querer o pacote com doce caiu. Ele olhou, pensou um
pouco, ajuntou o pacote e foi para a cozinha entregar
o pedido da mãe.

Ele falou:
- Tá mãe, o fígado, e deu pra compra um suspiro!

Suspiro. 28 gramas na média. Um doce quadrado


feito com leite, açúcar, glucose de milho e conservante
ácido sórbico. Ácido Sórbico? Não pergunte o que é,
pois eu vi numa receita na internet. O suspiro
quadrado vinha nas cores branca, vermelha ou
amarela.
29

A mãe agradeceu e falou:


- Chame teus irmãos que vou dividir o suspiro!

Tita foi até a porta e berrou chamando seus irmãos


para comer o suspiro de cor amarela.

O dinheiro era curto naqueles tempos, malmente os


pais conseguiam sustentar a casa, doce era artigo de
luxo. Mas quando a criançada ganhava um doce, uma
bala sequer, era uma festa, aquela algazarra, aquela
alegria, os olhos daqueles pequenos pirralhos sujos
de terra brilhavam de satisfação e de contentamento.
Claro que algumas vezes alguns faziam birra porque
o pedaço do outro era maior, ou que um queria aquela
cor que estava com o outro. Nada que umas
reprimendas bem dadas não resolvessem a questão,
mesmo que o beiço da criançada demorasse em
diminuir.

Todos os cinco filhos rodeando a mesa, pareciam


abelhas no mel. Trabalho difícil para a mãe dividir em
cinco pedaços um doce, ainda mais em pedaços
iguais e com os fiscais sempre em cima. O suspiro,
pelo seu formato e forma, era um doce um pouco mais
fácil de dividir. Agora dividir aquele doce de abobora
em formato de coração em pedaços iguais? Ou maria
mole? E o sorvete seco que vinha com bexiga?
30

A mãe com a faca na mão para dividir o suspiro, o


Tita falou:
- Mãe, acho que não vou querer meu pedaço!

A mãe olhando desconfiada para ele, disse pensativa:


- Ué, ué, ué... como assim não vai querer???

Ele respondeu disfarçando:


- Tô sem vontade!

Diante da algazarra que surgiu dos outros irmãos,


cada um gritando mais alto, querendo o pedaço que
sobraria a mãe bradou:
- Quietos!!! Senão ninguém vai ganhar nada... eu vou
dividir em quatro pedaços agora...

Enquanto a mãe dividia um único suspiro em quatro


partes, de fininho Tita saiu. Na euforia e algazarra
ninguém percebeu que ele escapuliu da cozinha.
Depois da divisão, a mãe foi cuidar do fígado de porco
que iria servir para acompanhar o feijão, arroz e
batata para o jantar. As crianças se divertiram
comendo um pedaço de suspiro, deixando migalhas
espalhadas pelo chão.
31

Após devorarem o suspiro, seus irmãos satisfeitos e


agradecidos voltaram a brincar no quintal. Onde Tita
estaria? se perguntavam enquanto brincavam.

Tita apareceu depois de algum tempo, com um sorriso


largo que quase não cabia no seu rosto e foi brincar
com seus irmãos.

...

Quando Tita deixou a cozinha, próximo ao portão


parou de repente e apreensivo olhou para os lados e
para trás, não viu ninguém, se abaixou, esticou a mão
para baixo de uma folhagem pegou algo e saiu
correndo para o fundo escondido do quintal.

"Havia dois suspiros quando saiu da bodega do


Gastão."

Sentou no chão, recostou-se num pé de uma árvore


qualquer, e levou à boca um suspiro de cor rosa.

"Quando o pacote caiu da mão sem querer, um


suspiro saiu do pacote."

Deu-lhe uma bela mordida com gosto naquele suspiro


rosa.
32

"Ele pegou o pacote com o suspiro amarelo e


empurrou o suspiro rosa para baixo de uma
folhagem."

Com os olhos fechados, a boca cheia, sentia derreter


o açúcar. Degustava aquele momento sozinho,
sentindo o prazer de comer um suspiro inteiro. O
açúcar derretendo e escorrendo pelo canto da boca.
Babava. Que delícia. Que sensação mágica.
Inebriante. Entorpecente. Ficou algum tempo sentado
sentindo o doce sabor de um suspiro.
33

O INCÊNDIO E OS
DORMINHOCOS
Madrugada de domingo.

O silêncio da noite e a lua que reinava sozinha na


escuridão eram parceiros da madrugada fria. De
repente o inesperado. O fogo na madrugada de
domingo trouxe o barulho de telhas estourando e a
claridade das labaredas.

O pai levantou rapidamente acordado pelo fogo.


Correu para fora, a mãe foi atrás. O fogo era no paiol
que ficava atrás da casa.

O pai e a mãe estavam tentando apagar o fogo que


iluminava o céu daquela madrugada, quando os
vizinhos chegaram com baldes e mangueiras para
ajudar. A claridade do fogo também tirou a
concentração dos jogadores de cacheta que
abandonaram o jogo e foram ajudar.

O paiol era de madeira e junto ficava o estoque de


lenha para o fogão, o fogo aumentava.
34

A vizinhança reunida para apagar o fogo. Era uma


confusão de gente correndo com baldes dos mais
variados tamanhos, tipos e cores, uma profusão de
mangueiras de jardim para todo lado, naquela época
não existia corpo de bombeiros na cidade. E cidade
pequena era assim antes, todo mundo se conhecia,
todo mundo se ajudava.

Uns ajudavam tirando água do poço. O poço de água


ficava bem no meio do quintal. Outros jogando baldes
de água nas chamas, outros jogavam água com a
mangueira. O fogo estava prestes a dominar o
telhado, e poderia fazer cair todo o paiol. A água era
jogada com força e rapidez em direção as chamas e
em direção das tábuas de madeira que ainda
resistiam ao fogo.

O fogo não queria se entregar facilmente e as chamas


teimavam em sobreviver. A preocupação era para o
fogo não atingir a casa que também era de madeira.

Algumas crianças perambulavam para lá e para cá no


meio da confusão, querendo ajudar; para desespero
dos pais que tinham que largar os baldes e tirar eles
de perto do fogo.
35

O tempo foi passando e os vários baldes de água e o


esforço de todos começaram a dar resultado. As
chamas que anteriormente iluminavam a madrugada
diminuíram, o fogo foi morrendo, a tensão e o medo
das pessoas aos poucos também foram
desaparecendo.

A correria e o medo causado pela imagem das chamas


consumindo a madeira, agora se transformara em
algumas piadas para descontrair e aliviar o cansaço
do esforço solidário em plena madrugada de domingo.

O fogo foi dominado, algumas pessoas continuavam


jogando água para não sobrar nenhuma brasa que
pudesse reacender. Outros como investigadores
profissionais, ou palpiteiros de plantão, tentavam
descobrir os motivos do incêndio.

Estava amanhecendo e os vizinhos cansados e com


sono voltavam para suas casas. Meu pai e minha mãe
estavam cansados e aliviados, agradeceram a Deus e
aos vizinhos pela ajuda.

Os jogadores de cacheta voltaram para o jogo, pois


para eles ainda era cedo para dormir, e não perderam
animação, saíram provocando:
36

- Agora que estou aquecido, minha sorte vai mudar!


hahahaha
- Vou recuperar meu dinheiro seus marrecos!
- Vai nada, agora que vai perder o resto dos trocados,
seu pato!
- Vamos rápido seus trouxas, que quero acabar com
o dinheiro de vocês e ir dormir!

A correria, a movimentação das pessoas de um lado


para outro, o barulho do fogo estalando e das pessoas
falando, cessou! Os últimos vizinhos foram embora, o
silêncio voltou a reinar juntamente com a lua que
voltou a dominar a penumbra da madrugada, mas ela
já estava ameaçada desta vez pelo sol, que dava sinais
de que estava acordando.

O pai e a mãe olharam para aquela cena do paiol


parcialmente destruído, não tinham mais nada para
fazer naquele momento. E antes de tentarem dormir
verificaram se não tinha nenhuma brasa viva. De
manhã poderiam avaliar o estrago.

Domingo de manhã

Na casa de madeira de cor verde o domingo amanhece


preguiçoso. Nossos pais estavam de pé com o café
37

pronto. Os quatros piás dormiam num quarto


pequeno, onde malmente havia espaço para dois
beliches. Nossa irmã dormia no sofá da sala.
Levantamos e nos espreguiçamos, tentando achar
uma desculpa para fugir da missa.

Ao levantarmos nos deparamos com sujeira na


cozinha e nos assustamos quando olhamos para o
paiol. A paisagem era de destruição, parecia filme de
guerra. Aquela cara de espanto dos quatro piás em
frente daquela imagem triste e feia: madeira e tábuas
pretas queimadas pelo fogo e espalhadas pelo quintal,
cacos de telhas para todo lado, a calçada cheia de
lama e cinza, baldes e mangueiras espalhados, parte
do telhado caído em cima do forno de assar pão.

Perguntas foram surgindo:


- Hã?! O que é isso?
- O que aconteceu?
- Mas como?
- Como que foi isso?
- Que horas?
- Quem apagou?
- Como começou?
- Quem fez isso?
- Por que não me acordou?
- Donde tantos baldes e mangueiras?
38

- Não escutei nada?


- Fogo? Mas como?

Nossos pais contaram o que aconteceu. Todo sábado


minha mãe fazia sete pães ou broas, e assava-os no
forno a lenha. O forno ficava junto do paiol.
Provavelmente as brasas que eram utilizadas para
aquecer o forno não foram bem apagadas, e de
madrugada o vento ajudou a iniciar o incêndio.

Na correria para apagar o fogo, eles não tiveram


tempo de nos acordar. Nossa irmã acordou de
madrugada, mas nós quatro no quarto a poucos
metros do paiol, embaixo praticamente do fogo, não
ouvimos nada. As pessoas falando e gritando
encostadas no nosso quarto, o barulho das telhas de
barro estourando, a claridade do fogo, nossos
vizinhos e nossos amigos ajudando e nós... dormindo!

Ainda surpresos pelo ocorrido perguntamos:


- E os gatinhos?

A mãe respondeu que os gatinhos estavam bem. O pai


falou:
- Hoje vocês não precisam ir para missa. Tomem café
e vamos limpar toda essa bagunça!!!
39

O CHURRASCO
Meados da década de 80, num sábado de uma manhã
qualquer de um mês de inverno em Papanduva,
cidade pequena do interior de Santa Catarina, nosso
pai veio com a notícia:

- Hoje à noite vou fazer um churrasco!

Meu pai devia ter recebido uma grana extra, pois na


época as condições da nossa família não permitiam o
churrasco como hoje, quase que rotina, todo final de
semana estamos comendo carne. O pai trabalhava
fora e ganhava salário mínimo para sustentar quatro
moleques e uma menina arteira, a mãe ajudava
costurando para a vizinhança.

Aquela notícia nos deixou eufóricos o dia todo.


Ficamos ansiosos para chegar a noite e comer o
churrasco, todos queriam ajudar a fazer alguma
coisa: varrer o quintal, cortar lenha, cortar grama,
lavar a louça, carpir o mato da horta, passar cera no
assoalho, lustrar o assoalho, tratar as galinhas e os
porcos, ou o porco? Ou eram os coelhos nessa época?
Não importa, geralmente não queríamos fazer nada.
40

Ou pelo menos penso que fizemos isso, afinal éramos


crianças e queríamos só brincar.

O dia foi passando e a tarde foi chegando. A mãe


estava fazendo pão caseiro, sete pães gigantes
assados no forno a lenha. Você acha muito? Agora
imagina cinco mortos de fome em fase de crescimento
sentados à mesa para um lanchinho: era pão com
doce, pão com margarina (e açúcar em cima), pão com
banha (nos dois lados), pão com torresmo, pão com
banana...

O forno de assar pães ficava ao lado do paiol, uns


cinco metros da cozinha. A brasa retirada do forno
serviria para o pai fazer o brasido para assar o
churrasco.

Os pães já estavam assados e a noite foi se achegando


trazendo o frio.

O pai fez a churrasqueira com alguns tijolos e pedras


em volta das brasas do forno. E também fez os espetos
duplos de ferro, utilizando pedaços de ferro de
construção que sobrou na empresa em que
trabalhava.
41

A carne desde manhã estava temperada: sal, pimenta


e cebola. Eu acho que era uma alcatra, ou melhor,
eram dois pedaços de carne, um para cada espeto,
um pedaço grande e outro pedaço pequeno.

Estávamos todos em volta da churrasqueira


aguardando a lenha colocada sobre as brasas pegar
fogo. Esperávamos o pai colocar os espetos com as
carnes. Aquela algazarra. Não queríamos saber de
sair do lado do fogo e nem escutamos quando a mãe
chamou. A noite estava sobre nós e esfriou bastante,
ela queria todos na cozinha. O pai teve que falar:
- Todos já para dentro, está frio aqui!

E lá foram as cinco crianças, quase que em fila


indiana e cabeça baixa para a cozinha, meios
ressentidos, queriam ver a carne sendo assada.

No primeiro momento ficamos quietos sentados na


cozinha, mas passou alguns minutos já estávamos
correndo pela casa: da cozinha para sala e vice-versa.
Aquele tumulto e algazarra de crianças falando (ou
berrando) ao mesmo tempo, pulando e correndo pela
casa de madeira. E como qualquer criança normal, ou
quase, sempre acontece alguma briga e choro, porque
um derrubou o outro na correria, um pegou um
brinquedo que não era dele.
42

Nosso pai colocou o espeto com o pedaço de carne


pequeno para assar, e ele entrava e saía da cozinha
para cuidar da carne. Isto incomodava a mãe, pois
entrava um vento frio pela porta aberta, o que
também era um convite para a criançada sair.

O pedaço de carne pequeno ficou pronto e o pai fez


um tira gosto, o que atiçou ainda mais a nossa
vontade de carne assada, não deu nem para repetir.
Ele já havia colocado o pedaço de carne grande para
assar, esse iria demorar um pouco mais, a carne era
grossa, mas nós não estávamos com pressa não.

O pai entrava e saía pela porta aberta, até que a mãe


mandou:
- Feche essa porta! está entrando um vento gelado e
essas crianças vão querer ir lá perto do fogo!

O pai fechou a porta e foi lá para fora. Passados


alguns minutos voltou e fechou a porta. Perguntou:
- Tá tudo pronto aqui na cozinha? Daqui a pouco a
carne deve ficar pronta!

A mãe confirmou:
- Aqui tá tudo pronto, só estamos esperando a carne!
As crianças já estão com fome!!!
43

E nós cansados de esperar, ansiosos, todos em volta


da mesa com os garfos e facas na mão, gritávamos:
- Queremos carne! Queremos carne!

O pai aguardava ansioso o resultado do jogo do bicho


pelo rádio. Alguns minutos se passaram até que saiu
o resultado. O pai não acertou o bicho e falou para
alegria geral:
- Vou buscar o churrasco!

Gritos de alegria como se fosse um gol em final de


copa do mundo. O pai abriu a porta, saiu e fechou.

O pai voltou rapidamente, entrou nervoso e


perguntou:
- Quem foi?

Todos se olharam e ninguém entendeu nada e a mãe


disse:
- Quem foi o quê?

O pai respondeu seco:


- Quem foi que pegou o espeto com o churrasco?

Aquela alegria inicial se transformou em


desconfiança. Ficamos quietos. O pai continuou:
- Não foi nenhum de vocês que pegou o churrasco?
44

A mãe respondeu dando uma reprimenda no pai:


- Eles não saíram da mesa, e você pare de brincadeira
e traga essa carne que estamos com fome!

A mãe nem terminou de falar direito, o pai saiu da


cozinha deixando a porta aberta e nós atrás dele.

Fomos até a churrasqueira, não tinha nada, só o


brasido. O pai estava procurando pelo jardim e
quintal, estava escuro, vai que algum cachorro tinha
arrastado o churrasco? Nós também começamos a
procurar.

Andamos pelo quintal e jardim inteiro, procuramos


perto da cerca, os portões estavam fechados, na rua
não havia uma alma viva, nenhum movimento. O
churrasco sumiu. Desapareceu. Não havia rastro,
não havia sinal de nada.

Após vários minutos de uma busca incessante, não


encontrarmos nada. O pai desolado chegou a uma
conclusão:
- Alguém furtou nosso churrasco!

Um dia inteiro de espera, aquele aguardado


churrasco preparado com todo o amor havia
45

desaparecido, assim como nosso entusiasmo.


Estávamos tristes, e o pior: agora também com fome.
Nossos pais deviam estar se perguntando: Quem seria
capaz de ter furtado nosso único espeto de
churrasco? E agora, o que fazer? As crianças
precisam comer.

Algum tempo depois nossos pais, sempre se


superando, acharam uma alternativa para saciar
nossa fome. Pão caseiro fresquinho e quente, arroz
cozido e para substituir a carne assada na brasa o
que tinha na despensa: carne de porco na lata.
Quando as geladeiras não existiam, um método de
conservação da carne de porco: a carne frita era
envolta na própria gordura e guardada por vários
meses.

Não ficamos satisfeitos com a substituição do


cardápio, estávamos decepcionados - furtaram nosso
churrasco - aquela longa espera para nada. A carne
de porco da lata foi o suficiente para saciar a fome e
irmos para a cama de barriga cheia.

Hoje não tenho saudade do churrasco que não


comemos, mas sim da carne de porco na lata. Aquele
cheiro da carne esquentando na panela de ferro em
cima da chapa de um fogão a lenha, se espalhando
46

por toda a cozinha, aquele sabor inigualável, chega a


dar água na boca só de pensar.

Obs.: O espeto foi encontrado vazio na manhã do dia


seguinte, jogado no quintal atrás do forno, ao lado do
pé de pêssego. Não encontramos o autor do furto.
47

OS GNOMOS DE
JARDIM
Em fila indiana andavam cabisbaixos os gnomos de
jardim. Estavam irrequietos. Correntes pesadas
prendiam seus pés. Um gigante de quatro olhos
segurava as correntes.

O gigante não tinha orelhas e não escutava, mas


enxergava tudo e muito bem com aqueles grandes
olhos esbugalhados, mas azuis, bem azuis. Na
cabeça do gigante, cada olho ficava num lado da
cabeça: um na frente, outro atrás, e um no lugar de
cada uma das orelhas dos humanos normais. Os
gnomos de jardim não tinham como fugir sem serem
vistos. Na boca do gigante, só um dente. Na outra mão
ele segurava um enorme tacape de pedra.

Os gnomos de jardim andavam sem saber para onde.


O gigante também não falava, só resmungava. O
caminho no meio de montanhas assustadoras e
tenebrosas era cheio de pedras. Para ajudar, nuvens
pesadas escureciam o céu. As árvores verdes e
frondosas olhavam os gnomos de jardim. Olhos
famintos. As árvores suculentas tinham medo do
48

gigante de quatro olhos com o tacape de pedra na


mão.

O caminho no meio da floresta termina numa enorme


montanha de pedras lisas e coloridas. Os gnomos de
jardim param. O gigante de quatro olhos bate na
pedra com seu tacape. Três batidas pausadas e leves,
a quarta e última batida é forte e estrondosa. Os
gnomos de jardim vislumbram quando da montanha
uma luz começa a surgir e uma porta começa a se
abrir.

A porta abriu, uma luz branca surgia de dentro da


montanha de pedras. O gigante grunhiu e apontou
com a mão para onde a luz saía. O gigante tirou as
correntes dos gnomos de jardim. Os gnomos de
jardim se olharam, pensaram em fugir correndo. O
gigante de quatro olhos percebeu e soltou um
grunhido medonho batendo com o tacape no chão. A
ideia de fugir fora descartada imediatamente pelos
gnomos de jardim e foram entrando devagar pela
porta. A porta fechou atrás deles. O gigante de quatro
olhos não entrou.

Uma enorme e gigantesca mesa chamou a atenção


dos gnomos de jardim, detalhes e símbolos
desconhecidos estampavam a madeira. Levaram um
susto quando surge por detrás da mesa uma leoa com
49

uma juba enorme, ela usava óculos e um chicote no


formato de cobra na cintura. E disse num tom firme
e seco:

- Vamos, estão esperando o que? Vão ficar aí


parados? Comecem a trabalhar e retirem todo o ouro
encrustado nas paredes!!!

Os gnomos de jardim viram um monte de


picaretinhas e baldinhos. Os gnomos de jardim
começaram o trabalho difícil, árduo e cansativo de
tirar ouro das paredes. Paredes enormes. O ouro
estava espalhado nas paredes como estrelas no céu.

Trabalho penoso para os gnomos de jardim,


acostumados a brincar livres, leves e soltos pelos
coloridos jardins das terras encantadas, cheio de
flores e pássaros que voavam livres pelo céu azul e sol
quente. Trabalho chato para os outrora alegres
gnomos de jardim, sempre tagarelas e brincalhões.

Um burburinho e um cochichar entre os gnomos de


jardim começou a se ouvir. Mas foi breve.

- SHHHHHHHHH!!!... PÁ!!!

Um barulho ensurdecedor do chicote, imitando no


início um chocalho de uma cobra e depois um estalo,
50

fez o burburinho parar. O chicote passou raspando


as orelhas de alguns gnomos de jardim espalhados
pela montanha cheia de ouro.

De repente, uma correria desvairada dos gnomos de


jardim. Um dos gnomos de jardim ao retirar uma
pedra de ouro voou uns 10 metros. Jogado pela
pressão da água represada atrás da montanha de
ouro. Muita água, que começou a inundar todo o
recinto. O alarme começa a tocar loucamente e os
gnomos de jardim correm desesperados... Rebuliço,
algazarra, correria.

A montanha de pedras tinha alarme de inundação?

Não tinha alarme. O sinal para o recreio tocou, a


imaginação fez os gnomos de jardim sumirem, a
inundação também e novamente éramos os alunos do
primário que corriam para ficar na fila da merenda. A
biblioteca ficava ao lado da cantina.

A garotada sempre preferia a bola, mas naquele dia


além do professor não estar presente, a aula de
educação física foi na biblioteca, pois estava chovendo
e não tinha como jogar bola nas quadras de cimento.

Lembro-me de um livro grosso e grande que ficou


aberto em cima da mesa naquele dia quando tocou o
51

sinal para o recreio. No livro imagens gigantes e


coloridas de cachoeiras hoje extintas: salto de sete
quedas (foi a maior cachoeira do mundo em volume
de água, ela desapareceu com a construção e
formação do lago da usina hidrelétrica de Itaipu). O
livro sobre sete quedas não sei se existe ainda, mas
lembro de vários outros livros da minha infância,
principalmente da coleção vaga-lume. E quem não
lembra?

Primeira vez na biblioteca, minha aventura terminou


naquele dia, mas fez surgir o gosto pela leitura.
52

UMA INESQUECÍVEL
AULA DE
MATEMÁTICA
Década de 80. A empolgação do retorno às aulas
depois das longas, ou nem tanto, férias escolares,
geravam uma alegria descontraída na garotada, ainda
mais que haviam deixado o primário, que era só para
crianças, e estavam no ginásio, 5ª série, já passavam
para categoria de mocinhos e mocinhas.

Se soubessem o que lhes esperava, era melhor não


terem crescido e ficado no primário mesmo.

Segundo dia de aula. Primeira aula do dia. Aula de


matemática. Segunda aula de matemática da
semana. A professora chega incomodada com a
algazarra da conversa animada dos alunos, que ainda
contavam aos colegas as aventuras e peripécias das
férias.

Ela chega e brada:


- Caderno na mesa! Vou conferir os exercícios de
casa da aula de ontem!
53

Silêncio geral.

Um mocinho que sentava no fundo da sala engoliu em


seco, arregalou os olhos e ficou com aquela cara de
quem faz "arte".

A professora passava mesa por mesa olhando os


cadernos.

O mocinho começa a se contorcer na cadeira. A


professora estava chegando cada vez mais próximo de
vistoriar o seu caderno. O medo começou a tomar
conta do pobre garoto, indefeso, sem desculpas. Ele
no ritmo de férias, fez a arte de não fazer o exercício.

Simples, havia esquecido completamente.


Provavelmente foi jogar bola no "campinho do
Gastão". Ou quem sabe foi brincar de "pega-pega" ou
de "esconder", ou de "soldado fugido", ou foi pescar
ou era caçar passarinho lá na "Voltinha"?

O garoto nunca foi relapso em seus afazeres, e acho


que até era considerado um bom aluno. Não era da
classe dos estudiosos, mas também não se
enquadrava na classe dos "vagabundos". Ficava num
patamar intermediário, mais próximo dos estudiosos.
Isso claro, na percepção dele.
54

Ele nunca teve problema com aulas de matemática,


não tinha dificuldade em resolver e entender as
questões. Com outras matérias também não tinha
dificuldades, só com educação artística. Não gostava
e não tinha nenhum dom para as atividades, até para
pintar os mapas exigidos pela Irmã Eliza para as
aulas de história se tornavam um tormento para ele.

A professora séria e sisuda chegou, olhou aquele


caderno com os exercícios em branco e esbravejou:

- Vai lá pra primeira carteira, e como castigo por


não ter feito o exercício, ficará de pé a aula inteira!

Ele ficou quieto, sem reação. Se antes já não era de


falar e nem fazer perguntas, agora de vez que daquela
boca não sairia sons.

Todos os alunos sentados, ele de pé ao lado da


carteira cabisbaixo. Seu rosto vermelhou de vergonha
no início, depois ficou amarelo, pálido. A cabeça não
mexia nem para olhar para os lados.

Interminável aula. A hora não passava, os minutos


deixaram de existir, os segundos não queriam se
mover no ponteiro do relógio, pura pirraça.
55

E como copiar a matéria que a professora passava no


quadro negro enquanto se estava de pé? Tortura! A
letra virou garranchos indecifráveis. Deve ser por isso
que a letra dele é horrível hoje? A caligrafia nunca foi
o forte do mocinho, os vários cadernos de caligrafia
utilizados no primário não conseguiam endireitar e
adequar os garranchos em apresentáveis e decifráveis
letras.

A aula terminou. A professora saiu e foi dar aula para


outra turma. O mocinho ficou de pé.

Alguns instantes depois, os colegas pediram para ele


sentar. Outra aula iria começar.
56

DESFILE SETE DE
SETEMBRO
Você sabia que os alunos do Alinor Vieira Corte nos
anos 80 já saiam às ruas? Você pode estar se
perguntando se era para protestar contra a
corrupção, para a melhoria da educação, saúde e
qualidade de vida?
Eu responderia: - Não!!!

Quando eu estava no primário, todos os alunos saiam


às ruas para desfilar nas comemorações do sete de
setembro.

Toda sociedade e as autoridades municipais


ansiosamente esperavam o desfile do Colégio
Estadual Alinor Vieira Corte. A cidade inteira parava
para ver o desfile. Claro, era feriado!

Para quem não lembra ou gazeou a aula de história,


no dia sete de setembro é comemorado dia da
independência.

Os ensaios para o desfile cívico iniciavam-se com


meses de antecedência. Primeiro os integrantes da
57

fanfarra, com seus instrumentos de percussão e


sopro.

Algum tempo depois o ensaio para o restante dos


alunos. As professoras eram responsáveis pela
organização de suas turmas. E não devia ser fácil
colocar em fila a molecada separando-os por
tamanhos, os maiores na frente e os outros de forma
decrescente até chegar nos "menorzinhos", lá no final
do "pelotão".

Várias semanas ensaiando pelas ruas de terra do


bairro para acertar o ritmo do passo ao som da
fanfarra escolar. Para alguns, era festa, para outros
uma tortura. E não era fácil acertar o pé direito com
a batida forte do bumbo. Ou era o pé esquerdo? Dá-
lhe recomendação das professoras irritadas e às vezes
alguns puxões de orelha e outras reprimendas:

- Olha pra frente Valdir!


- Dicléia e Luciamara, chega de conversa!!!
- Jaime, mantenha a distância do colega da
frente!!!
- "Prestatenção" Valentin... você não viu as
pedras???
- A batida é com o pé direito Terezinho!!! Pé
direitooooo!!!
58

- Douglas que quê você tá fazendo aí???... Espere a


sua turma!!!

As professoras se viam loucas para ensinar o ritmo


militar e colocar em sintonia o "pelotão". Haja
paciência! Será que ganhavam adicional para ensinar
a marchar?

Depois das várias semanas ensaiando, tudo pronto.


O desfile era de manhã, e os alunos deveriam chegar
cedo ao colégio. Nossos pais se sacrificavam para
poder comprar o uniforme para o sete de setembro.
Para eles, era um orgulho ver os filhos desfilando.
Aquele sentimento de patriotismo. O uniforme para o
desfile era calça azul marinho e camisa cor de rosa
para os piás, nos pés as famosas "congas". Você vai
perguntar por que camisa cor de rosa? Eu não sei,
mas quem souber pode responder. Para as meninas
vestido também na cor azul.

E complementava a indumentária de desfile um lindo


crachá. No crachá fundo branco constava o número
"7" estiloso, com quatro listras alternando o verde e o
amarelo. Será que o crachá era imposto pela ditadura
militar reinante na época? Bom, eu era pequeno, e o
último da fileira do pelotão, e não entendia daquelas
coisas naquele momento.
59

No desfile, tudo ocorria dentro das conformidades e


do previsto. Os alunos todos em sintonia e no ritmo
da batida da fanfarra? Claro que não era bem assim.

Fim do desfile para o nosso "pelotão". Esperávamos


nossos amigos do bairro e saíamos todos correndo em
disparada.

- Por que saiam correndo em disparada?

No dia do desfile, enquanto os alunos eram


organizados nas turmas e nos pelotões, o colégio
distribuía pedaços de cuque para as crianças não
passarem fome durante a apresentação. E após
terminado o desfile da nossa turma, saímos correndo
para o colégio para disputar os últimos pedaços de
cuque que restavam.
60

ESCADA DE PEDRA
escada de pedra
resiste no tempo
isolada na sua fria rigidez
degrau sobre degrau
degrau sob degrau
o sentido não muda o seu destino
imóvel continua!!!
décadas não contam
tempo não existe
parada e firme
não interage!!!
ao seu redor as mudanças acontecem...
árvores crescem
pássaros nascem
flores morrem
o vento passa!!!
escada de pedra não muda
outrora foi uma rocha
atava o mar e a montanha
imponente e dura
batalhou em se manter uma só
não resistiu!!!
fragmentada pelo esforço e suor
carregada por carecas de vestido marrom
separadas, um longo caminho formaram
61

sandálias de couro subiam e desciam


das bolsas cheias de pedras, o raio de sol despretensioso
atiçava a energia dourada
pedaços de madeira em forma de cruz balançavam de um
lado para outro
o esforço dos andantes contrastava com a melancolia das
melodias
a música se extinguiu e o silêncio sobreveio
ela ficou no mesmo caminho!!!
escada de pedra
corroída pelas águas
dominada pelo mato
destruída pelo tempo!!!
escada de pedra
musgo verde esconde sua história
Inerte e ranzinza
isolada no mesmo caminho!!!
escada de pedra
esquecida no mar
escondida na montanha
... caminho sem volta!!!
62

O PIAZINHO
Papanduva, Santa Catarina, um piazinho chega na
bodega arrastando um chinelo maior que seu pé,
calção puído e uma camiseta de manga comprida e
estampa desgastada pelo tempo. Ele está sujo de
terra. O nariz escorrendo.

A bodegueira abriu um sorriso ao ver o piazinho. Já o


conhecia, morava na casa da frente.

O piazinho caminha rápido, seus passos firmes


ecoam no assoalho de madeira da bodega vazia. Cara
de sério. O piazinho gostava de brincar na terra. O
piazinho não iria se perder para voltar para casa,
como num conto de fadas ele deixou um rastro, em
vez das migalhas de pão, terra e barro desgrudavam
do chinelo.

A bodegueira acabara de varrer o assoalho e olha os


pelotes de barros que o piazinho deixava. Não diz
nada.

Enquanto caminha em direção ao balcão o piazinho


ergue seu braço direito e na altura do cotovelo
encosta a manga da camiseta no nariz e desloca o
63

braço até o punho, sempre rente ao nariz. O nariz


ficou limpo, a camiseta ficou um pouco mais suja do
que já estava.

A bodegueira fica olhando ele se aproximar. Primeiro


ele coloca as mãos no balcão, só dava para ver o
cabelo loiro, liso e penteado para o lado esquerdo, no
estilo “vaca lambeu”. O piazinho na ponta dos pés se
esticando todo para ver a bodegueira. Os olhos azuis
surgem atrás do balcão e junto aquela cara redonda
e sisuda do polaquinho. Parece bravo.

A bodegueira pergunta amigavelmente:


- Veio visitar a titia???

O piazinho não deu trela e não respondeu. Jogou as


moedas que trazia numa das mãos em cima do balcão
e disse atropeladamente:
- Quero “frórfos”!!!

A bodegueira sorriu com a pronúncia enrolada:


- Hã??? O que você quer???

O piazinho continuou sério, arregalou os olhos azuis,


enrugou a testa e respondeu alto e devagar:
- Q U E R O "F R Ó R F O S"!!!
64

A bodegueira não controlando o sorriso entregou uma


caixa de fósforos e também umas balas de brinde. Iria
falar que era para dividir as balas com os irmãos, mas
não deu tempo. O piazinho de cara fechada, sério, de
três anos de idade, pegou a caixa de “frórfos” e as
balas, não agradeceu, não disse nada e foi embora
arrastando o chinelo que ainda continuava deixando
rastro.

Dizem que o piazinho, hoje um mocinho de mais de


40 anos, continua falando enrolado, ele discorda, só
concorda que é um pouco sério.
65

ASSUSTADO
Ele escarrapichado na cadeira lendo um jornal de
ontem sem muita vontade, na parte dos resumos de
novela parou de repente. Levanta da cadeira de
supetão.

Um barulho escutou na janela da sala. Procurando


desesperado o interruptor para acender a luz. Seriam
unhas arranhando o vidro? Sentiu um frio na
espinha.

Ele estava sozinho em casa e raios fulgidos


relampeavam no céu escuro da noite. O tempo não se
aguentava, e em breve faria jorrar litros de água sobre
a cidade. O álcool do litro de pinga de banana lhe
aguçava a audição e lhe entorpecia a serenidade.
Afastou a cortina lentamente, o suficiente para poder
observar.

Olhou pela janela na escuridão, não viu nada. Na


claridade temporária dos raios, também não viu
nada. Ufa! Aliviado fechou a cortina. Alucinação.
Deveria ser o consumo da cachaça no estômago vazio,
pensou.
66

Nisso, enquanto se deslocava para o banheiro,


novamente o barulho no vidro da janela. Aquele som
irritante de unhas esfregando no vidro lhe arrepiou.
Aquele friozinho no final da espinha. Pensou alto e
com o medo incorporando aquele corpo trêmulo:

- "Porra, não tem nada aí... acabei de ver... não tinha


nada... não vou olhar novamente!".

Mais uma vez aquele ruído irritante. O silêncio da


casa contrastava com o barulho dos raios e trovões,
as nuvens não iriam aguentar muito tempo
segurando tanta água represada. Apesar do medo, as
pernas se mexiam, ainda. Não resistiu, foi em direção
novamente da janela.

Desta vez arredou a cortina violentamente querendo


vislumbrar e pegar de surpresa o causador daquele
ruído.

Nada. Não via nada. O carro na garagem. O portão


fechado. No jardim nem seu sapo de estimação, o
Juvenalzinho, estava nesta véspera de chuva. Ficou
pálido.

Não via nada, só as folhas verdes e a única rosa


vermelha de seu jardim se mexiam freneticamente ao
67

sabor do vento forte. Só não acendeu a luz de fora,


porque estava queimada a uns três meses desde que
sua esposa lhe deixou, sem nenhum bilhete, nem
adeus.

O pavor lhe deu coragem para abrir a porta e


bisbilhotar lá fora. Ao redor nada, tudo no seu devido
lugar. Nisso novamente aquele ruído na janela. Teve
que apelar para seu olhar mais detalhista. Cerrou os
olhos e como um scanner começou a olhar toda a
janela, quando chegou ao canto inferior do lado
esquerdo deu um grito:

- Passarinho filho da puta! Você que tá me


assustando estas horas da madrugada!!! Praguejou
irritado.

O passarinho estava mais assustado que ele. No


cantinho da janela um minúsculo passarinho, filhote,
caiu do seu ninho que ficava no telhado do vizinho.
Como era novo e estava aprendendo a voar, não teve
forças suficientes para voltar ao ninho.

Ele pegou o passarinho levemente, subiu na escada


que estava lá fora desde a reforma inacabada da casa,
colocou-o no ninho. Fechou a porta, apagou a luz e
foi para o quarto.
68

Alguns segundos depois de deitar e de tantos alertas,


os raios e trovoadas não aguentaram a pressão e as
nuvens despejaram sobre a terra água, muita água.
Ele dormiu tranquilamente e aliviado, claro devido ao
álcool também. Ao som da chuva o passarinho no
aconchego do ninho também dormiu.
69

O GOLEIRO
Papanduva, Santa Catarina, ano de 1984, outrora
Escola Básica Alinor Vieira Corte, turma da 6ª série
do período vespertino, antigo ginásio. Aula de
educação física. O professor Bueno resolveu realizar
um torneio de futebol de salão entre os alunos das
turmas da 6ª série, na verdade era futebol de quadra.

Nos fundos da escola ficava o campo de areião, por


onde entrávamos pulando o muro. O futebol era com
bolas de borrachas, duras e pesadas, e deixavam
marcas na pele por um bom tempo quando a
criançada recebia uma bolada. Do lado a quadra de
cimento bruto e áspero, boa para ralar pernas e
braços da molecada, pois a vontade de dominar a bola
era enorme, e os choques, encontrões e as rasteiras
eram inevitáveis. A quadra não era coberta.

A participação era obrigatória e todos os alunos


deveriam participar de algum time, e claro, valia
pontos na nota do bimestre. Eu era um dos alunos da
turma da tarde. Os times ficariam a critério dos
próprios alunos. As panelinhas foram se formando.
Os "fominhas de bola” já foram escolhendo os
melhores jogadores para seus times.
70

E como em qualquer atividade esportiva os menos


habilidosos ficavam sobrando, os famosos “pernas de
pau". Eu estava naquele grupinho que sobrou, e como
era obrigatório teria que se encaixar em algum time.
Nunca fui um bom "boleiro" e às vezes sobrava até
nas intermináveis partidas no campinho do "Gastão",
onde o campo era dividido com as vacas e seus restos
orgânicos (estrumes) que fermentavam ao tempo.

A contragosto dos "donos da bola" a turma dos


"pernas de pau" foi incluída em algum time, claro que
ficaríamos só no banco de reservas e assistiríamos as
partidas de futebol por pura obrigação, para ganhar
a nota e não ter que "pegar" recuperação em educação
física.

Imagina contar para o pai que ficou em recuperação


em educação física?

Na maioria das vezes a aula de educação física se


restringia ao futebol. Era só jogar a bola de futebol
para ver a correria dos meninos, para as meninas era
"caçador" ou vôlei. Claro que o suor incomodava nas
aulas seguintes, mas quem ligava?
71

O torneio iria começar na sexta feira após a aula, e


continuaria no sábado de manhã. E nas semanas
seguintes também.

Primeira partida, eu no banco de reserva com mais


um colega. O árbitro era o professor. Começa a
partida. Primeiro ataque do time adversário e um
chute violento que foi espalmado espetacularmente
pelo goleiro do nosso time, o Chicletão.

Ele se jogou com tudo e defendeu a bola que tinha


endereço certo, a bola foi para o escanteio. Desespero
do astro do time adversário, na época não tinha
cabelo estilo moicano e nem usavas chuteiras de uma
marca americana de cores vibrantes. No máximo os
boleiros tinham chuteira, mas a maioria usava o
famoso "kichute", totalmente preto e com garras de
borracha, e alguns jogavam com as famosas "congas".
E algum tempo depois, chegou e ficou um bom tempo
nos pés da moçada o famoso "chineizinho", branco
com a estrelinha azul na lateral e solado verde, e este
já vinha fedido antes mesmo de usar.

Primeira e última defesa do goleiro. Chicletão


machucou a mão no lance e estava fora da partida.
Primeira substituição do time. No banco de reservas,
eu e um colega. Depois de uma breve discussão entre
72

os donos do time, chamaram meu colega para jogar


no gol, ele recusou a proposta. Só restou uma única
alternativa para o time: eu.

Nunca sonhei em ser um jogador de futebol, ainda


mais goleiro. Mas as oportunidades aparecem donde
menos se espera, pensei. Fiquei sentado no banco de
reservas imaginando num futuro não tão distante,
entrando num Maracanã lotado, poderia ser naquele
em que entravam uns 200 mil torcedores, a galera
ovacionando quando o alto falante pronunciasse meu
nome.

Ou melhor, acho que meu nome não. Não ficaria bem,


ele não é tão apelativo e não tem a sonoridade para
um famoso narrador esportivo gritar: vai que é
tuuuuuuuuuaaaaaa Eleutééééééééééériiiiiioooooooo.
Meus pensamentos foram interrompidos pelos
jogadores irritados chamando meu nome para entrar
rápido na quadra.

Alguém perguntou:

- Você já jogou no gol, né? Sabe as regras?

Não sei o que respondi, alguns jogadores do time


balançavam a cabeça negativamente. Mas outros
73

queriam correr atrás da bola, não importavam quem


era o goleiro, pois eles resolveriam lá no ataque. O
“dono” do time passou as instruções:

- Você e você fiquem ajudando na defesa. E pegando


a bola toquem pra mim, que eu resolvo! E você goleiro,
segura a bola e não deixa ela entrar!

Fácil assim, pensei. Se eu era desengonçado para


jogar com os pés, imagina um polaquinho de pernas
brancas jogando com as mãos. A quadra daquele
ângulo era gigante, as traves maiores ainda e a bola
era minúscula, e isso que naquela época eu não
precisava usar óculos. Eu achava.

Chicletão havia espalmado a bola para o escanteio


quando se machucou. Na cobrança do escanteio a
bola foi cruzada na área. Não precisei nem pular
direito, agarrei ela no ar. Sorrisos dos jogadores do
nosso time, palavras entusiasmadas:
- É isso aí goleiro!

- Vamo lá...!

- Boa goleiro!
74

Agarrando uma bola no alto, puxa! Fiquei me


achando... meus pensamentos voaram longe: goleiro
de uma final da UEFA Champions League? (naquela
época nem sabia que existia), ou uma final da copa
do mundo pela seleção brasileira?... De novo meus
pensamentos foram interrompidos pelos gritos dos
jogadores:

- Rápido goleiro, joga a bola pô!!! Tá dormindo!!!

Fiz um "belo" lançamento para o ataque com as mãos.


O lançamento foi estiloso e sem direção, a bola foi
interceptada pelo time adversário no meio de campo.
Nosso time correu para marcar. Mas o atacante era
rápido e chutou a bola do meio do campo. O chute
saiu mascado, meio sem rumo, a bola vinha
“piriricando” e sem muita força. Não tinha ninguém
na minha frente.

Fiquei imaginando uma defesa fácil e já calculando o


arremesso da bola para o nosso atacante, que estava
na banheira na área adversária. Iria ser gol na certa.
O atacante iria matar a bola no peito e pegar um
petardo fazendo a bola adentrar o ângulo do goleiro
adversário, ou talvez chutar e a bola entrar com
goleiro e tudo. Nosso atacante estava inquieto e
75

gesticulava freneticamente pedindo a bola que ainda


se aproximava.

Já estava se levantando para jogar a bola para nosso


atacante e... opa!!!

Opa? É opa!!!... A bola não estava na minha mão, cadê


a bola? pensei.

- Putz!!! Olhei para os jogadores do time. Indignados.


O atacante que antes balançava os braços
freneticamente agora estava irritado. Enquanto ele
chutava o chão, dava para perceber saindo da boca
do atacante, aqueles famosos caracteres de desenho
animado quando falam palavrão: bombas, raios,
morcegos, cobras, lagartos, caveira...

Desespero do meu time e alegria dos adversários...


um frango... um frango não... um senhor “frangaço”...
Desanimo total. Num chute despretensioso do Jair
Adada, a minha quase fantástica carreira de goleiro
foi por água abaixo. A bola passou entre minhas mãos
e o pior: debaixo das minhas pernas brancas. A bola
lentamente parou após a linha da trave. Gol do time
adversário: 1 x 0 para eles.
76

Só não fui substituído porque não tinha ninguém


para assumir a posição. A partida continuou.

O resultado final da partida vocês já sabem,


perdemos. Mas eu ganhei: joelhos e cotovelos
esfolados. Nem me despedi dos colegas direito, como
de costume pulei o muro do colégio, raramente
entrava pelo portão, andei uma quadra e já estava em
casa.

Sábado de manhã a partida seria na quadra do lado


da igreja matriz. Não apareci. Minha carreira de
goleiro não decolou. Ninguém sentiu a falta do goleiro
substituto. Não sei qual time foi campeão do torneio.

Minha nota de educação física foi na média e não


fiquei para recuperação. Continuei fazendo as aulas
de educação física, mas de torneios raramente
participava.

Hoje na cidade grande quando jogo, continuo com as


mesmas habilidades de quando piá, e para variar
quando entro em campo é para a vaga de goleiro.
Porque é a única vaga que sobra e também porque
não precisa rachar as despesas da quadra.
77

A INDECISA DE SÃO
JOSÉ DOS PINHAIS - 1
Primeiro Dia

- Oi amor, vou cortar o cabelo! Ela chegou toda


decidida e disse para o marido.

- Bem curtinho, estilo joãozinho! Continuou.

Ele perguntou desconfiado:

- Estilo joãozinho? Como é?

- Aquele corte bem curto, parece de piá, sabe qual é


né?... Agora tá na moda das artistas das novelas... E
você gosta de cabelo curto, então você vai gostar!
Venha aqui que vou te mostrar umas fotos na
internet!

No computador ela acessou o site de buscas e digitou


"cabelo estilo joãozinho". Rapidamente milhares de
fotos de mulheres com cabelo bem curto apareceram
na tela. Ela deve ter ficado várias horas na internet
vendo as fotos, pois foi logo mostrando as quais mais
78

gostou. Ele, semblante sério, olhava para ela e para


as fotos e perguntou:

- Sim e você vai cortar assim? ... Bem curtinho? ... E


não vai se arrepender né?

- Eu já me decidi! Eu preciso mudar! E cabelo cresce,


como você vive dizendo toda hora... Então eu vou
cortar o cabelo assim!

- Então tá bom!... Você quer cortar? Eu te apoio, veja


o salão que eu vou junto e inclusive vou pagar este
corte de cabelo, mas pega um salão "bão"! E não me
venha igual da última vez que foi cortar o cabelo,
cortou as pontas e queria que alguém percebesse!!!

Seu marido apoiava o corte, claro que antes fez todo


um questionamento e análise sobre os prós e contras,
ele é advogado. Ainda assim ela continuava
irredutível e decidida a cortar o cabelo. Cabelo todo
natural e comprido, cinco anos que não via nenhuma
gota de tinta. Ela toda alegre e satisfeita com o apoio
do marido iria cortar o cabelo.
79

Segundo Dia

- Mor... tava pensando... será que corto o cabelo bem


curtinho? Ou será que faço um corte um pouco mais
curto até o queixo.... que que “cê” acha?

- Eu prefiro o corte joãozinho!

- Mas veja... vai demorar para crescer!

- Ontem você estava decidida a cortar bem curtinho


né?

- Eu vou cortar, mas tava pensando que cortar aqui


na altura do queixo fica bom também né... que você
acha?

- Estilo chanel?

- Não estilo chanel, diferente!

- Como diferente?

- Ah sei lá... me ajude ... que você acha de na frente


comprido até o queixo e atrás curtinho?... Fica bem
bonito... vem vê umas fotos.
80

Foram de novo para o computador, ela deve ter ficado


o dia inteiro novamente procurando foto de corte de
cabelos, pensou ele.

- Mas você já marcou o salão?

- Já... quinta-feira as 9:30 da manhã, lá no centro,


setenta reais e foi indicação da Giovana!

- Ih... da Diooovana! Você sabe que eu não gosto dela,


e por acaso ela vai junto, aposto!!!

- Ah claro né!... Preciso de alguém que me ajude...


você vai estar trabalhando tá! E agora qual estilo eu
corto?

- Ontem não era joãozinho? E hoje você já quer outro


né?... O cabelo é teu você corta do jeito que você
quer...

Ela interrompeu:

- Ééé já sei.... o cabelo é meu e faço o que quiser com


ele... hããããã, isso não me ajudou nada... vou ligar
para Val e perguntar pra ela!
81

- Melhor não... você sabe que da outra vez você


perguntou e viu no que deu né! Você se arrependeu e
ficou estressada com ela!

Ela ficou pensando, desistiu da ideia de ligar para a


Val. Não por muito tempo, depois de duas horas ligou
falou com a Val e ficou chateada de novo:

- Ela me desanimou, não disse nada e só disse que eu


iria me arrepender de cortar o meu cabelo e bláblablá!

- Mas eu vou cortar o cabelo bem curtinho! Disse ela


decidida: - É amanhã e não tem volta e ainda vou
pintar de loiro!

Ele, desconfiado, só olhou para ela de relance.


Duvidava que ela fosse ao salão cortar o cabelo e
agora ainda mais pintar, mas não falou nada.
Continuou apoiando e ainda disse.

- Tá aqui o dinheiro para o corte de cabelo!

Ela respondeu:

- É.... mais vou pintar e é mais quarentão!


82

Ele só olhou com aquele olhar de indignação, tirou da


carteira e deu-lhe mais cinquentão. E disse:

- Quero o troco!!!

Terceiro Dia

Após longo dia exaustivo de trabalho no escritório,


calor insuportável e ele de terno o dia inteiro. Chegou
em casa. Ela já estava lá. E para surpresa dele, ou
não, ela não cortou o cabelo.

Ele questionou:

- Não era hoje que você iria cortar o cabelo?

- Era... só que eu fui lá pro centro encontrei a


Giovana... e ...

- E o quê?

- Ah mudei de ideia né... imagina... iria demorar uns


três anos para crescer o cabelo de novo... e vai que eu
não gostasse do cabelo curto... daí não dava pra fazer
nada né!... assim pelo menos eu posso mudar, fazer
um rabo de cavalo, uma escova, um coque, um
penteado diferente, curto não daria pra fazer nada...
83

mas eu vou fazer uma escova e uma hidratação no


cabelo tá... vai ficar bom tá... não se preocupe!!!

- Tá e o dinheiro, o que você fez?

- Bom... você sabe que eu estava andando no calçadão


e vi uma sandália linda... e você tá me devendo uma
sandália... lembra?

- Lembro não!!!

- Então... comprei uma ... você vai gostar! Peraí que


vou pegar pra você ver!

Trouxe, colocou no pé, virou, mexeu, andou e


perguntou para o marido:

- Você gostou?

- Dá cor não... mas se você gostou tá bom!!!

- Nas dá pra trocar... tem umas cores bem legais lá


na loja... e fiquei entre esta, uma roxa, uma fúcsia,
uma preta...

Ele se arrependeu de ter falado que não gostou da cor.


Então já sabia, iria perder seu sábado andando de
loja em loja para trocar a sandália.
84

A INDECISA DE SÃO
JOSÉ DOS PINHAIS - 2
Ela estava se arrumando para sair, iria visitar seus
parentes que há muito não via, apesar de morarem
próximos. O almoço fora marcado com dias de
antecedência, estava ansiosa.

A saudade, principalmente dos sobrinhos, era


enorme. Sentia falta daquela algazarra de quando
morava com sua mãe e eles não a deixavam em paz.
Eram seis quando ela morava lá, agora já estão em
oito, e a tendência é só aumentar. Depois de casada
vivia somente com o marido, não tinha filhos, não
tinha certeza se era o momento certo, na verdade era
muito nova ainda e queria aproveitar a vida.

Na vida com o marido, um cara pacato, quieto,


metódico e "tudo certinho", era advogado e sempre
tinha argumentos que a irritavam, levavam uma vida
sossegada, sem muito agito. Quando resolveu casar
era exatamente o que procurava, um pouco de paz e
tranquilidade. Ela era a filha caçula. A mais
independente. A sogra de uma de suas irmãs achava-
a "metidinha".
85

Sentia saudade daquelas conversas com suas irmãs,


e também das discussões e brigas. Brigas à toa ou
não, não importava, mas algumas vezes ficavam sem
se falar por um bom tempo. Ela sente saudades, não
admite perante o marido, mas precisa de uma
discussãozinha de vez em quando.

Andava irritada ultimamente, sentia falta de


conversar com sua mãe. Descontava no marido
algumas vezes, mas que para ela não tinha graça,
pois ele não reagia como esperava.

Depois do banho tomado, ele sentado no sofá na


frente da televisão estava pronto havia quase meia
hora, esperava-a arrumar o cabelo. Ela perguntou:

- Qual você prefere? Cabelo solto ou um coque? E


mostrou como ficariam os dois.

Ele responde economizando as palavras, como de


costume:
- Cabelo solto!

Ela continuou:
- Mas se eu fizer um coque assim, vai ficar bom?

- Sim! Respondeu ele.


86

- E se eu fizer um rabo de cavalo?

- Também fica bom!

- E se eu fizer assim, fica bom? E fez uma franjinha,


ele odiava este tipo de franjinha que estava em alta
naquela estação.

- Não! Prefiro o cabelo solto! Respondeu seco.

- Mas o rabo de cavalo não tá bom?

- Fica bom, mas eu prefiro o cabelo solto!

- Mas assim com o coque, você falou que fica bom?

- Ficou bom também, mas eu prefiro o cabelo solto!

- Tá... vou de cabelo solto! E saiu, voltou para


terminar o penteado na frente do espelho.

Voltou e o cabelo estava com um coque.

Ele falou:

- Porque pergunta minha opinião, se depois faz


diferente?
87

- Acho que assim ficou melhor! Respondeu ela.

Ele se resignou e resmungou:

- Tá pronta? Vamos chegar atrasados!

- Não tá vendo que não, agora vou me vestir! E não


fique me apressando não! Falou exaltada.

Lá foi ela se vestir. Mas um bom tempo, até que o


chamou para ver as opções. Lá foi ele para a tortura
de provação de roupas. Devia ter umas cinco
blusinhas, três calças e alguns vestidos. Primeiro
foram blusinhas com as calças, fez todas as
combinações possíveis. Ele sugeriu uma blusa
estampada com flores miudinhas e uma calça jeans
básica.

- Mas e se for esta blusinha azul com esta calça jeans?

- Ficou bom, mas eu prefiro a minha primeira opção!

- E este vestido vermelho?

- Eu prefiro a blusa florida e calça jeans, mas se for


de vestido eu prefiro o azul!
88

- Mas porque você quer que eu vá de calça?

- Você perguntou minha opinião e eu disse ué! Eu


prefiro de calça e blusa florida, porque você vai ficar
correndo com as crianças, e neste caso é melhor ir
com este tipo de roupa!

- Mas, e se eu quiser ir de vestido?

- Ué, se você quiser ir de vestido você vai, eu só estou


dando minha opinião!

- Ui! você me irrita, deixa... deixa, que eu me viro


sozinha, você não sabe me ajudar!

Uns minutos depois sai ela de calça jeans, e blusa


azul. E perguntou qual calçado:

- Tênis branco ou a sapatilha preta?

Ele ficou pensando que ela fazia isto só para irritá-lo.


Foi de tênis branco, única coisa que concordou com
ele até o momento.

- E agora tá bom assim? Disse ela.

- Não foi minha sugestão, mas tá "boa" assim! Disse


ele. E falou: - Vamos?
89

- Já falei que não me apresse. Não gosto que as


pessoas fiquem me apressando. Vou fazer a
maquiagem!

Foram-se mais alguns minutos. Ele quase dormindo


no sofá, quando ela apareceu e disse:

- Vamos? Ficou bom?

- Sim, ficou bom!

- Uiiii! que tipo de você, nem para fazer um elogio!!!


Comentou.

Ele já estava entrando no carro, quando ela lembrou:

- Deixa eu pegar minha bolsa! você acha que combina


a bordô pequena, ou a ocre grande?

- Pega qualquer uma, a bolsa vai ficar no carro


mesmo!!!

- Você é insensível mesmo! Falou e foi buscar a bolsa,


trouxe uma bolsa preta, com um gatinho na fivela!!!
90

ROSA GRACIOSA
Oh rosa
Oh rosa graciosa
Seus encantos floreiam a minha alma

Tu és bela
Oh rosa graciosa
Dos deuses preferida

Tuas cores
Oh rosa graciosa
Guardam teus segredos

Tu és solitária
Oh rosa graciosa
Teu amor eterno

Tu és selvagem
Oh rosa graciosa
De seus espinhos caem gotas de lágrima

No jardim da vida
Oh rosa graciosa
Tu és única

Oh dúvida
Rosa graciosa
Serei-te-eu?
91

SONHOS DELIRANTES
A calma de uma mente inerte resplandecia na nuvem
branca, única nas profundezas de seu interior. O
formato de algodão doce revelava o tempo esquecido
de aventuras infantis. Ele dominava a mente no
estágio inicial do sono, queria paz e sossego nas horas
em que era feliz na solidão do seu mundo. O que não
conseguia de olhos abertos, a solidão do mundo real
lhe angustiava.

Seu domínio sobre o sono não é verdadeiro, apenas


ilusão, como sua vida. Os devaneios e loucuras são
expressos de forma brutal e irreal, o descompasso do
mundo seu, que desconhece. As incertezas de seu
rumo são adicionados finitos pensamentos obscuros.
Esta noite fantasias e angústias juntas, para dominá-
lo.

O escarlate destrói seu controle, raios fúlgidos


rompem as lembranças de outrora. O sobe e desce da
montanha parada no ar, o desejo incontrolado de
gritar. Da Oris saltam lápis de cores berrantes. O
desespero aumenta. O som do atrito da estrela
fugitiva com o vento do espaço sideral é
ensurdecedor. Salta para fugir do encontro do
92

guarda-chuva e da bola de basquete, inimigos desde


que ele trocou o guarda-chuva pela bola.

Caiu no rio formado por lágrimas de sangue da


princesa, mas não afundou nas águas da cor ora
fúcsia, ora magenta. Ele chora junto, suas lágrimas
são negras, o que irrita mais a princesa. Ela se
contorce de dor, raiva, desespero, suas lágrimas e ela
se reduzindo ao infinito... Que preso a um cordão de
ouro fica estampado num quadro distorcido de uma
matrona medieval, onde ao lado um ponteiro louco de
relógio, não para de balançar... pra lá... e pra cá... a
sombra distorce o movimento. A sombra toma conta
do ponteiro, que trava... a sombra cobre tudo, as
corres berrantes desaparecem, só escuridão. Sozinho
com as lágrimas ainda escorrendo do seu rosto...
perdido... sem saída... a sombra começa a encobri-lo.
Não reage. A estrela fugitiva passa voando atrás do
vento, levando a sombra embora, o barulho
ensurdecedor volta com força. A nuvem branca
reaparece. O barulho continua.

Ele abre os olhos, o despertador continuará a tocar


enquanto ele não levantar. São 6:15 da manhã, a
rotina diária começa após uma noite de sono. Um
banho quente para tirar o suor da noite.
...
93

O dia longo de trabalho é cansativo, ele retorna para


casa no final da tarde exausto, mas antes passa na
confeitaria e pede:
- Me vê um sonho de nata e outro de creme!

A balconista, simpática, informa:


- Acabou o sonho de nata e de creme... só temos de
goiaba!!! O senhor vai querer?

Ele respondeu:
- Não! O sonho de goiaba me dá pesadelos! Me dá dois
pães de água!

Pagou a conta e foi embora da Confeitaria Sonhos


Delirantes, esta noite não irá sonhar.
94

SAPATOS
Ela não era nova, adolescente já foi, estava em outra
fase da vida, profissionalmente encaminhada, na
empresa reconhecida, promoções anuais lhe eram
concedidas, dinheiro não estava faltando, carro, casa,
investimentos, futuro garantido.

Mas na flor da idade, não curtia mais as baladas, os


barzinhos só para tomar alguns drinques com as
amigas após o serviço, ou para comemorar
aniversários. Na vida amorosa estava sem ânimo!
Estava carente! Algum tempo não tinha namorado!
Não era padrão de beleza "modelo", era mais
“carnuda”, se vangloriava disso e antigamente dizia: -
aqui tem onde pegar!!!

Hoje, só alguns ex-namorados lhe procuravam, claro


que para só uma noite de sexo sem compromisso.
Eles eram casados, ela não ligava. Eles com
namoradas, ela se satisfaz em ser a outra. Eles
querem uma rapidinha, ela não quer compromisso.
Ela era confiável, eles sabiam.

Mas o tempo foi passando, os bens materiais já não


lhe satisfazem. O carro só poeira na garagem. A
95

pipoca de micro-ondas e o vinho seco acompanham a


única expectadora sentada no sofá cama, na parede
uma tela gigante de última geração. Embriaga-se sem
companhia.

Estilo de vida sem graça. Falta a briga do filme de


ação, o medo e o friozinho na barriga do suspense,
faltando o futuro da ficção, a alegria das comédias, as
loucuras do amor, está faltando o par da comédia
romântica, com toda aquela enrolação, tragédias,
aventuras para chegar sempre ao final feliz.

A mocinha estava carente. A heroína já não consegue


viver sem o vilão, agora só o sexo não lhe acalma, ela
precisa de algo mais, ela precisa de alguém. Para
conversar, confidenciar, lhe ouvir, alguém em que ela
possa descontar o estresse do dia a dia e depois as
pazes, alguém que tenha manias, defeitos, seja seu
herói e seu vilão ao mesmo tempo, ela quer carinho,
aconchego, afago, uns puxões de orelha também (mas
de vez em quando)... Precisa de um namorado!

Estava decidida, de agora em diante, chega de sair


com os “exs”. Ela vai atrás de um parceiro, ela será só
dele e de mais ninguém, alguém para o resto da vida
e para um final feliz de sua existência. Chega de ficar
assistindo filme sozinha estatelada no sofá cama.
96

Ela pensou que iria ser fácil. Estava fora de forma na


questão da busca da felicidade, do amor... na balada
não se encontrou, dos barzinhos saiu embriagada,
dos amigos a indicação furou, da realidade virtual
para a real a distância é enorme, e nem tudo é o que
aparenta ser. Estava cansada da busca do homem
que ela sonhava.

Mas em um dia de sol, caminhava pela rua comercial


do centro da cidade, distraída, seus pensamentos
estavam a quilômetros de distância, quando foram
interrompidos. Bruscamente interrompidos.

- Era ele, só podia ser ele! Pensou. Alto, forte, cabelo


loiro (o vento fazia voar delicadamente), bem trajado!!!
Não é ilusão, só pode ser ele!!!

Depois de vários meses de busca incessante, ele


caminhava tranquilamente pela rua, estava longe, a
rua estava tranquila, ela não via mais ninguém
naquele momento. De longe seus olhos se
encontraram. Seu coração acelerou, ela pensou:

- Não posso ter um ataque agora!

Ele sorriu discretamente para ela, o sorriso dele foi


como uma chama, deve ter-lhe incendiado o seu
97

rosto, corou! Ela sem reação. Será que era para ela
que ele estava olhando? Duvidou! Ele continuava
olhando, só devia ser para ela, não tinha mais
ninguém naquele local da rua, ela sorriu.

Os passos dela já não eram firmes, ele se aproximava


cada vez mais. Ele ia ao encontro dela. Ela parou
imóvel, uma rocha, seus olhos brilharam como
diamante, sua boca secou e seu coração quase parou.

Da vibração inicial, do calor do coração batendo, ela


passou para um estado de palidez, parada no meio da
calçada, seus olhos não se mexiam, petrificada.

Alguns segundos passaram quando ela disse em voz


alta:
- É esse sapato que eu estava procurando, lindo,
divino!!! Vou levar!!!

Ela parou em frente de uma vitrine da loja de sapatos


femininos. Ele passou.

Um sapato de salto de cor vermelha, com detalhes em


lilás e pérola. Entrou e saiu da loja com dois pares de
sapatos. Um nunca chegou a usar e o outro talvez
uma única vez. Não precisava de sapato, mas este
impulso era mais forte, não conseguia resistir a um
sapato, sandália, chinelo, tamanco.
98

Não escutou e nem respondeu o “oi” do loiro de


cabelos ao vento. Namorado não encontrou, mas sua
coleção de sapatos aumenta a cada dia. Seu closet já
tem mais de 500 pares.

Continua a procura de namorado, mas só tem achado


sapatos!
99

COMPRANDO MEL
Final dos anos de 1990, Gumercindo e Gertrudes
moravam no 11º andar num prédio, bem no centro de
uma capital, e tinham somente uma filha, MariJane.
MariJane, 10 anos de idade, era uma menina esperta,
ia muito bem nas aulas do colégio, cursava inglês,
jogava xadrez como gente grande, ela se achava e
sempre tinha resposta para tudo, era uma sabe tudo
da vida da cidade, mas raramente ia para o campo.

Gumercindo e Gertrudes iriam viajar para um velório


de um parente distante, precisavam deixar sua filha
MariJane com alguém. MariJane ficou com sua tia
Jurema. Tia Jurema, irmã de Gertrudes, ela era viúva
e morava num bairro próximo ao centro duma
cidadezinha do interior, e próximo da capital.

MariJane tinha visto poucas vezes a tia Jurema, e não


lembrava de ter ido visitá-la alguma vez. A casa era
de madeira, bem simples, mas bem cuidada e tudo
em seu lugar, tia Jurema era bem simpática morava
sozinha e não tivera filhos.

MariJane ficara espantada em saber como as coisas


na cidade do interior eram diferente da cidade grande.
100

Diferente do apartamento em que morava, tia Jurema


tinha um quintal enorme com frutas e legumes
plantados e um galinheiro com algumas galinhas
caipiras.

Tia Jurema iria fazer bolacha de mel e MariJane


queria ajudar, pois sua mãe raramente fazia alguma
comida em casa, eram sempre enlatados, congelados
ou pedia a famosa pizza margherita por telefone. Após
conferir os ingredientes tia Jurema percebeu que
estava faltando o ingrediente principal, o mel. Tia
Jurema pediu para sua sobrinha MariJane:

- MariJane vai até a “bodega” e compre um quilo de


mel!

MariJane não entendeu:

- “Bodega”?

Tia Jurema falou:

- Ah “bodega” é o mercadinho ali da esquina.

MariJane disse:
101

- Ah ... eu vou no “Small”, ele é um mercadão bem


grande lá perto de casa, o pai vai de carro e o deixa
no estacionamento que fica embaixo do mercado, e a
gente sobe pela escada rolante, eu gosto de ficar
subindo e descendo, a tia já andou de escada rolante?

Não deu tempo de a tia Jurema responder, Marijane


continuou a falar:

- Tem uma loja só de revista, bastante revista de


novela, e do lado tem uma farmácia, minha mãe de
vez em quando vai na farmácia comprar remédio
quando eu fico doente, sabe tia, esses dias eu fiquei
doente e fiquei com umas bolinhas em todo meu
corpo, daí minha mãe comprou remédio lá na
farmácia no mercado, mas agora eu já melhorei, eu
fiquei alguns dias sem ir para a aula, eu fiquei com
saudades de falar com minhas amigas do colégio.
Sabia que lá tem uma lavanderia onde o pai manda
lavar os ternos dele, tem locadora, onde eu escolho
alguns desenhos que eu quero assistir, a tia gosta do
desenho do “Máskara”, ele tem uma máscara que
quando ele coloca ele fica com o rosto verde e se
transforma no que ele quiser, a tia já viu?

Tia Jurema, só balançou a cabeça negativamente,


MariJane continuou:
102

- Ele é bem engraçado. Lá no “Small”, daí tem um


montão de coisa, tem umas televisão bem grande de
pendurar na parede, meu pai disse que vai comprar
uma dessas para colocar no meu quarto, quando ele
tiver dinheiro, a tia gosta de ver televisão?

A sobrinha não parava de falar, Tia Jurema disse:

- Tá bom, depois você me conta o resto... mas vá logo


senão estas bolachas não vão sair antes da janta!

O mercadinho ficava uns 50 metros da casa da tia


Jurema, o bairro era tranquilo, bem sossegado, as
crianças ainda brincavam na rua, não tinha problema
em ir sozinha.

Chegando na “bodega”, aquela confusão e profusão


de materiais pendurados, empilhados e amontoados
atrás do balcão (pinicos, baldes, panelas, vassouras,
linguiça, salame, carne, frutas, na verdade tinha de
tudo um pouco), e encostado no balcão, o balconista.
Um senhor com cabelo “esgarciado”, barba por fazer,
camisa surrada, a barriga queria saltar para fora da
calça e forçava os botões da camisa, palito no canto
da boca.

MariJane chegou alegre e falou bem confiante


sabedora do que queria:
103

- Boa tarde, quero um quilo de mel!!!

O balconista falou:

- Sim mocinha, temos mel... temos esse de


bracatinga, esse de laranjeira, silvestre e de jataí, qual
você quer?

MariJane, indagou cheia de si e indignada, como se o


balconista não tivesse entendido o que ela queria:

- Não... o senhor não entendeu... eu quero mel de


abelha!!!

O balconista disse com um sorriso largo no rosto


redondo, vendo que mocinha não conhecia nada
sobre o assunto:

- Hum... mel de abelha... deixa eu ver...

E colocando todos os potes de mel no balcão disse:

- Tudo isso é mel de abelha! Esse é mel da flor de


bracatinga, esse é mel da flor de laranjeira, esse
silvestre e esse da abelha jataizinho.

Ela arregalou os olhos, MariJane enrubesceu, seu


rosto corou, ficou vermelho... ela travou, engoliu em
seco, abaixou a cabeça, não esperava, ela estava sem
104

argumentos, ela não sabia o que fazer, e muito menos


qual mel levar.

O balconista continuou:

- O que diferencia todo esse mel é o tipo da flor e da


época da colheita de cada um, mas todos eles são
feitos por abelhas.

MariJane disse quase sussurrando:

- Me dá um que dê para fazer bolacha de mel!!!


105

VELHO BABACA
Meados do ano de 2000, primeira turma do curso de
direito da Unibrasil. No período noturno existiam
duas turmas de 40 alunos, as aulas aconteciam no
então outrora convento das irmãs Oblatas.

Estávamos tendo aula com o professor Maliska, nos


introduzindo (literalmente) os fundamentos críticos
do direito público, devia estar falando de Hegel,
Nietzche, Friedrich Mueller, algum autor alemão..., a
didática não era sua prioridade, seu tom lento e sua
forma de voz tranquila e pausada faziam com que
qualquer aluno entrasse em estado de letargia, para
outros servia como sonífero, alguns um leve sono,
outros chegavam ao ponto de babar nos cadernos.

O convento ajudava neste ponto, trazendo aquele


conforto espiritual alicerçado em anos de preces,
rezas e cantos das freiras nas hoje salas de aula.

A aula transcorria num silêncio dos alunos, quem não


dormia tentava decifrar o que o professor pretendia
dizer com alguma palavra em alemão escrita no
quadro negro (ou já era quadro verde?), somente um
106

grupo de senhoras que sentava nas primeiras filas


prestava atenção na aula.

Segue-se a aula, na verdade duas aulas seguidas de


puro, devo dizer, aprendizado! O professor agora
estava estático na frente do quadro negro, analisando
a palavra que acabara de escrever.

Não sei se também não estava entendendo aquele


garrancho, ou estava recebendo uma mensagem do
além, dos autores alemães, para em breve proferir
com entusiasmo o significado da palavra
1
“Bundesverfassungsgericht” . Claro que não me
recordo da palavra precisamente, mas esta serve.

Além de estático estava em silêncio, colocou a mão na


cintura, pensava... depois colocou a mão direita no
queixo, meditava... mexia a cabeça para a direita,
depois para a esquerda, mudou a mão do queixo,
colocou a esquerda. O tempo passava, ele em
silêncio... a turma também.

A palavra continuava no quadro... ele olhava para o


quadro, nós para ele.... aquela figura magra, feito um
palito. Diziam as más línguas que se ele comesse uma

1
Tribunal Constitucional Federal Alemão.
107

coxinha ele ficaria com a barriga igual de uma mulher


grávida de 8 meses e meio.

De supetão falou áspero:

- Vou fechar a porta, o barulho está incomodando!!!

O barulho vinha da conversa dos colegas da outra


turma, que já estavam liberados para o intervalo.

Nisso, Nelson, que cursava sua segunda faculdade,


um alemão grande, bem grande, sobrava para fora da
cadeira, gerente de um hotel em Curitiba, disse
apontando para janela que ficava atrás dele:

- Não professor, o barulho não vem pela porta, vem


da janela, do pessoal que está na cantina para o
intervalo!

Enquanto o Nelson falava e apontava para trás, o


professor se deslocava da porta que havia fechado
para sua mesa.

Cláudio um rapaz novo de idade e novo na cidade,


veio para estudar na capital, originário de uma
colônia alemã na região de Guarapuava, sentava ao
lado da janela que dava para cantina, atrás do Nelson.
108

Cláudio estava entre os que dormiam na aula, e no


exato momento em que o Nelson falava e apontava em
direção a janela, Cláudio levantou a cabeça.
Sonolento perguntou assustado:

- Hã... o que foi, o que o professor falou?

Rápido como uma lebre, Demócrito, apesar da idade,


já era aposentado pelo INSS, experiente diretor de
uma empresa de energia, o pernambucano que se
achava carioca e habituado aos costumes
curitibanos, sentava na frente de Cláudio, respondeu
sério:

- O professor tá te chamando!

Cláudio levantou com aquela cara de sono, e ligeiro


se dirigiu até a mesa onde o professor já estava
sentado procurando entre os papéis espalhados a
ficha de chamadas. Cláudio falou todo preocupado:

- Sim professor?

O professor olhou para ele sem entender nada e


resmungou:

- Hã, o que você quer?


109

Cláudio já meio confuso disse:

- O professor me chamou!?

O professor que já estava um pouco irritado devido ao


barulho que vinha da cantina e porque não achava a
ficha de chamadas, respondeu secamente:

- Não chamei ninguém!

Cláudio corou de imediato e ficou sem reação,


paralisado na frente do professor. E olhando para
trás, viu seus colegas se partindo em risadas, entre
eles o Demócrito, o Nelson, e claro eu.

Cláudio pediu desculpas ao professor tão baixo que o


professor não escutou. Cláudio irritado e
envergonhado, pois no momento era motivo da alegria
dos colegas, saiu com a cabeça baixa e retornava para
seu lugar.

Nos poucos passos da mesa do professor até sua


cadeira, Cláudio olhava fixamente para o Demócrito,
olhos de fúria, a raiva do jovem interiorano estava
aflorando. Ao passar pelo Demócrito, falou áspero:

- VELHO BABACA!!!
110

E continuou, indignado:

- Nunca mais fale comigo, seu velho babão!!! Você vai


me pagar!!! Pode esperar!!!

Cláudio sentou resignado em sua carteira, pois todos


ao seu redor estavam dando risada, pelo menos
aqueles que acompanharam o desenrolar da cena
desde seu início.

Os outros colegas não entenderam o motivo de tanta


risada numa aula chata e sem graça.
111

COMO PREPARAR
UMA PAELLA
Sábado de um mês qualquer. O relógio digital
marcava 18:01:47s. O casal MariDane, já estava
alocado na divisão da casa que era usada
especificamente para o preparo de comida, ou seja,
na cozinha.

A cozinha era modernamente equipada com o último


modelo de refrigerador cromado com freezer invertido;
fogão tampo de vidro de cinco bocas; forno elétrico
com dois compartimentos; forno de micro-ondas com
vidro fumê; depurador de ar; pia para lavar louças;
torneira de água que serve para lavar e limpar os
alimentos bem como para lavar a louça; e também
alguns armários, feitos sob medida. Na residência do
casal MariDane a churrasqueira também fica na
cozinha, mas neste sábado a churrasqueira não faria
fumaça, para alegria da Mari.

Eles estavam ansiosos em preparar a receita da paella


valenciana que viram num programa de culinária da
televisão. E convidaram alguns amigos para saborear.
De manhã passaram horas no mercado municipal
adquirindo as iguarias e temperos importados,
112

necessários para o prato e para acompanhar várias


garrafas de vinhos também importados e alguns
frisantes. Na hora de pagar a conta, quase desistiram
da empreitada, mas os amigos confirmaram
presença, e agora? Para que serve o limite do cheque
especial! Pensaram. O cartão de crédito já estava
estourado desde o início do mês.

Nas receitas buscadas na internet estava descrito que


os bichos tinham que ser frescos: lula, polvo,
mariscos, lagosta, camarão, mexilhões e peixes. Eles
compraram todos vivos, por insistência do cunhado
da Mari, que é o irmão do Dane. Na cozinha o casal
MariDane se debatia para tentar controlar os bichos
escrotos que iriam para a panela junto com arroz
arbóreo.

Dane disse irritado:


- Porra, carajos! Quem é que teve essa ideia de
comprar estes negócios vivos, hein Mari?

Mari respondeu:
- Olha esse palavreado aqui na minha cozinha seu piá
de m..., e quem teve a ideia e começou a fazer o fervo
foi o teu irmão! Se entenda com ele agora! E o merda
ainda ficou de chegar cedo para nos ajudar a matar e
limpar estas coisas nojentas, cadê ele hein? Cadê?
113

Os bichos escrotos estavam vivos e se debatiam


espremidos no tanque de lavar roupa. A água jorrava
para todos os lados, devido ao movimento dos bichos
para impetrarem fuga do tanque, e um dos bichos
brigava ferozmente para dominar os outros, e se
tornar o rei do pedaço. Esta briga pela dominação do
pedaço e, ou para fugir, aumentava a quantia de água
que jorrava para forra do tanque, que agora inundava
além da lavanderia, também parte da cozinha. Agora
quem estava irritada era a Mari, que berrou:

- Ligue já pro teu irmão, agora piá! E vê “cê” ele tá


chegando para dar um jeito nestes bichos!

Dane ligou e disse:


- O piazão beleza? Tá chegando?

...

- Ainda??? Porra, carajos, os bichos estão dominando


a cozinha cara... Vem rápido!!!

Dane falou:
- Ele tá no ônibus e tá tudo congestionado por causa
das reformas pra copa, e já faz uma hora e meia que
ele tá dentro do busão, ele que falou!

Mari respondeu indignada:


- Esse teu irmão é um “embruião” mesmo!
114

Dane disse:
- Nem precisamos dele, não. Me ajude e vamos limpar
estes bichinhos e fazer uma bela paella. Os
convidados daqui a pouco estão chegando hein!

Mari respondeu seca:


- Não me apresse piá!

Mari foi para perto do tanque junto com Dane, ele


pegou um camarão para limpar, enquanto Mari
observava receosa.

Nisto, a lula como um ninja saindo das sombras, pula


sobre Mari. Ela se debateu para tentar segurar os
tentáculos com as ventosas. A lula poderosa
comprimia os delicados punhos de Mari, que
começava a ficar branca, mais do que ela já é. Ela
gritou desesperada:

- ME AJUDE COM ESTA LULA, RÁPIDO PIÁ!!!

Nisso o polvo com seus oito braços, com ventosas


mais poderosas do que da lula, se preparava para
saltar sobre a cabeça de Mari. Para sorte dela, Dane
chegou a tempo de dar uma vassourada no polvo, que
foi cair em cima das alfaces, tomates e palmito,
espirrando um líquido negro, espesso e com um
cheiro horrível sobre a futura salada.
115

As enguias, as algas marinhas e as estrelas do mar


estavam nervosas, e se debatiam freneticamente
lutando umas contra as outras no tanque.

Dane correu na sua caixa de ferramentas e pegou um


machado, um martelo e um serrote. Com o machado
acertou a cabeça do polvo. Os crustáceos com suas
garras gigantes foram derrotados com a ajuda do
martelo. Dane cortou com o serrote os tentáculos da
lula que comprimiam os braços da Mari. Os
moluscos, aqueles seres gelatinosos e ensaboados
que parecem aqueles brinquedinhos de borrachas,
não morriam com as marteladas.

Depois de vários minutos de tensão e desespero,


todos os bichos escrotos e nojentos estavam mortos,
esquartejados e estavam queimando no óleo quente
da grande e colorida panela de cozinhar. MariDane
estavam exaustos, olhos esbugalhados e irritados e
com as roupas molhadas e ainda teriam que limpar o
chão da cozinha e da lavanderia.

Quando estavam terminando de enxugar o chão


JotaTe chegou, irmão do Dane, que estressado não
parou de falar:

- Que merda hein! Duas horas de ônibus para andar


uns 14 quilômetros, tivesse vindo a pé já tava aqui faz
116

um tempão... Ei, parem de limpar o chão e vamos


matar os bichos, pessoal??? Tá na hora de começar a
cozinhar!

MariDane se entreolharam com os olhos faiscando de


raiva e falaram ao mesmo tempo:

- Os bichos tão queimando na panela!! Você só tem


que fazer a salada!!!

JotaTe olhou desconfiado, viu o alface, o tomate e o


palmito todos numa mesma travessa, e já temperada
com shoyo. Olhou para MariDane e iria falar que a
salada já estava pronta, mas eles estavam com uma
cara de cansados, desistiu.

JotaTe falou:
- Animação aí pessoal! Vocês tão precisando de um
vinho, peraí que vou abrir um!

Pegou uma garrafa de vinho chileno, abriu, e serviu


nas reluzentes taças e brindou quase que sozinho:
- A paella êêêêêê!

Enquanto cozinhava a paella, MariDane tomaram


uma ducha rápida, JotaTe ficou cuidando para não
queimar.
117

Os convidados chegaram, comeram, beberam, deram


risada e foram embora, empanturrados de tanto
comer e embriagados pelos vinhos e frisantes. Da
paella não sobrou nada, só da salada, que estava
meio amarga.

JotaTe saiu cambaleante apoiando-se na sua esposa


que chegou quando serviam a paella. MariDane
deixaram a louça suja na pia e dormiram abraçados
no sofá da sala exaustos e embriagados. Eles tiveram
pesadelos com monstros marinhos naquela noite.
118

PROFESSORA
YOSHIKO
Era início da década de 90. As coisas não deram certo
para minha família na cidade onde a noite escuta-se
o som forte do guizo de cobra, Cascavel.

Meu pai resolveu voltar para nossa cidade natal, Uraí,


norte do Paraná. Uirá-Y significa rio dos pássaros no
vocábulo tupi. O retorno da família seria gradativo e
eu fui o primeiro a ser “despachado” para morar com
minha avó.

Eu estudava no segundo grau e fui continuar os


estudos na única escola da cidade. Como a anterior,
a nova escola era pública. De Cascavel eu trouxe os
livros didáticos que meu pai com muito sacrifício
comprou.

A professora Yoshiko, sua família era de origem


oriental, foi direta ao assunto na sala de aula:

- Não valem nada aqui estes seus livros, né! Você


comprar as apostilas que usamos, né!
119

A escola era pública, mas utilizava material didático


de um colégio muito famoso na região, que era
particular. As apostilas eram caras e meus pais neste
momento não tinham condições de comprar outros
livros, e muito menos minha avó, que era agricultora.

Sentar ao lado dos novos colegas, foi a alternativa


para acompanhar as aulas nas adoradas apostilas da
professora Yoshiko.

Depois de vários dias nesta situação, a professora


Yoshiko estava incomodada. Eu alterava a disciplina
imposta na sala de aula, eu quebrava a tradicional
ordem formal de dar aula da professora Yoshiko.
Numa aula ela comunicou:

- Wésley, não senta mais você com ninguém a partir


de hoje, né! E as apostilas, para na minha aula
continuar, comprar, né!

Ela não esperava, e nem os colegas da turma


esperavam minha resposta. Levantei e disse:

- Eu tenho vários livros que foram comprados no


início do ano professora Yoshiko e não tenho dinheiro
para comprar as apostilas. Sei que a senhora não tem
120

nada a ver com minha vida, porém, essa é minha


realidade!

Esta minha desobediência da ordem (sem ela


autorizar os alunos não poderiam se manifestar)
afetou seu comando hierárquico. Eu vi aquela
japonesinha franzina se transformar numa grande e
malvada bruxa dos filmes de terror. Ela
provavelmente sentiu-se desrespeitada, e temerosa
da reação futura dos outros alunos, sentenciou-me
gaguejando inicialmente:

- A... a... a... partir de... de... hoje v...você não... não
poderá a... a... apresen...sen....sen... tar os trabalhos
da turma aqui na frente!

Pela minha franqueza, um castigo, aplicado com


rigidez pela professora Yoshiko. Fui privado daquilo
que mais gostava nas aulas que era a exposição oral
dos trabalhos em sala de aula.

Eu consegui encerrar o ano letivo “vegetando” sem as


apostilas das aulas de português da professora
Yoshiko. A direção do colégio, ciente dos fatos, não se
pronunciou e nem tentou encontrar uma solução
para o caso.
121

COMENDO UMA
VIÚVA
Vitória, Espírito Santo. Década de 60. O gerente de
uma madeireira comprava árvores de jacarandá. Na
região o jacarandá-da-baía era uma das mais
valorizadas madeiras brasileiras. Árvore de 15 a 25
metros de altura, com tronco 40–80 cm de diâmetro,
madeira rija, resistente e de cor negra, com desenhos
variados, fácil de ser trabalhada. Foi muito utilizada
em obras de marcenaria de luxo, construção de
instrumentos de corda e na fabricação de pianos.
Existia em abundância nas florestas da mata
atlântica, e desde a fase colonial houve sua
exploração. Hoje é uma das espécies em extinção.

“Seo João”, o gerente da madeireira estava


interessado em comprar um lote de árvores de
jacarandá localizadas no sul da Bahia. Seu
comprador Adolpho, com “ph” no nome, não obtivera
êxito na negociação com Euclides, o proprietário das
árvores, uma mistura de português, negro e índio
nativo.
122

“Seo João” avisou que ele iria falar com o proprietário.


Adolpho alertou:

- O senhor Euclides é meio sistemático “Seo João”,


aceita discutir a proposta com o senhor, mas você tem
que almoçar com ele. E já vou avisando “Seo João”
que a comida não é uma das qualidades naquele
rincão! Vá preparado!

Dia marcado, foram “Seo João” e Adolpho para o sul


da Bahia. Estrada de chão, calor típico de verão e sol
escaldante. Um pouco antes do almoço chegaram na
propriedade, após os cumprimentos formais ficaram
na varanda batendo papo sobre diversos assuntos. O
cheiro que vinha da cozinha não lhe agradava, era um
cheiro forte que “Seo João” não conseguia distinguir.

A esposa do senhor Euclides chamou-os para


almoçar. Na mesa uma panela de sopa. O cheiro que
ele sentia da varanda agora era mais forte, e vinha da
panela, da sopa. O cheiro lhe incomodava cada vez
mais.

Seu Euclides falou:

- Espero que aprecie a nossa sopa “Seo João”, aqui


chamamos este prato de “Sopa da Viúva”, conhece?
123

- Não, não conheço, mas tá com uma cara boa! Falou


“Seo João”.

O cheiro invadia suas narinas e seu estômago


começava a ficar embrulhado. Além da sopa, na mesa
como acompanhamento só farinha de mandioca e
água do rio num pote de barro. E o Adolpho lhe havia
prevenido que a água era do rio, e que o rio ficava
distante da casa.

“Seo João” observava o prato cheio de “sopa da viúva”.


A primeira colherada foi como se jogasse uma bomba
no seu estômago. “Sopa da viúva” era feita com tripas
de bode e temperos, e só. Um enjoo começou a
percorrer seu corpo. Se o cheiro era desagradável,
depois que soube que era de tripas de bode a situação
piorou. Ficou branco, mais do que já era. Náuseas.

Adolpho lhe estendeu um copo de água para amenizar


a situação. Comia lentamente tentando demonstrar
para o senhor Euclides que tudo estava bem.
Conversava. Sorria. Sorriso falso. O enjoo lhe
entorpecendo as ideias, o suor rompendo a face. O
calor ajudava em muito a piorar a situação.

“Seo João” comia uma colher de sopa de bode, uma


de farinha e um gole de água. Uma colherada de “sopa
de viúva”, um pouco do cheiro desagradável e uma
124

colherada de farinha de mandioca e um gole de água.


Sorriu de repente por ter descoberto a origem do
nome da sopa, sopa de viúva, e pensou na sua esposa
que ficara no sul do país, eles tinham recém-casados
quando aceitou a proposta de gerenciar a madeireira
no Espírito Santo. O estômago reclamava.

A tortura do almoço se prolongava em cada colherada.


Engolia a sopa, e empurrava a farinha com um gole
de água, limpava o suor, inspirava um pouco de
cheiro desagradável. Falava algumas palavras. Sorria.
Uma colherada de farinha, uma de sopa e um gole de
água. Perdeu-se na sequência e ordem dos produtos
ingeridos.

- Aceita mais um prato “Seo João”? Perguntou a


esposa do senhor Euclides.

Queria as árvores de jacarandá. Pensou na esposa. A


esposa do senhor Euclides com a concha cheia
esperando o aceite. Aceitou. O que fazer para fechar
um negócio. Uma colherada de cheiro insuportável,
um gole de farinha, inspirava a sopa da viúva. Uma
colher de bode, uma farinha de tripa, um gole de
cheiro insuportável. Seus pensamentos voavam
longe.
125

Terminou o prato de sopa de viúva, feito com tripa de


bode. Cheiro insuportável, desagradável, horrível. O
almoço terminou, não tinha sobremesa para tirar o
gosto amargo da boca. Voltaram para a varanda. A
brisa do vento, apesar de quente refrescou a cabeça e
as ideias. O estômago continuava embrulhado. Mais
alguns minutos de conversa entraram na questão das
árvores de jacarandá. Cinco minutos o negócio estava
fechado e “Seo João” e Adolpho deixaram a
propriedade retornando para o Espírito Santo.

Na viagem de retorno “Seo João” pensou em voz alta:

- Ainda bem que não ofereceram uma pinguinha para


abrir o apetite antes do almoço, né Adolpho!
126

A MAÇÃ, A MULTA E A
APOSENTADA
Um senhor todo educado e falante compra maçãs,
colhendo-as diretamente no pomar. Nos idos de 70 e
80 existia este pomar ao lado da BR 277, em
Guarapuava/PR. Ele agradece ao proprietário,
embarca no carro e continua seu caminho.

Enquanto dirige, ele pega uma maçã vermelha


reluzente e abocanha um pedaço com vontade.
Degustava aquele pedaço, doce como mel, e na
rodovia um carro lento a sua frente, ele sinaliza a
ultrapassagem. Uma mão no volante e outra na maçã.
Enquanto ultrapassa, outra mordida na maçã.
Saboreava aquela maçã sentido o néctar derreter e
escorrer pelos cantos de sua boca.

De repente no meio da pista um policial sinaliza para


ele encostar.

A maçã continuava na mão. O policial, que estava em


frente ao posto policial, diz:
127

- Bela ultrapassagem senhor, em local proibido e bem


na frente do posto policial... o senhor está com
pressa?

- Nem percebi que era faixa “contínua” seu policial,


estava comendo a maçã!

- E dirigindo só com uma das mãos? Hein... bonito,


muito bonito!!! Habilitação, RG e documentos do
veículo! Tenho que preencher uma multa! Falou o
policial.

Na mão do policial, a caneta estava pronta para


preencher o bloco de multas. Com os documentos
solicitados na mão, o policial olha o RG e pergunta:

- O senhor é da capital senhor João Candido?

- Sim! Respondeu o motorista mastigando a maçã.

- Por acaso o senhor trabalha no Funrural?


Continuou o policial.

- Sim!

- Então o senhor é doutor João Candido do Funrural?


128

- Sou eu mesmo, João Candido de Oliveira Neto, estou


voltando de reuniões do Funrural na região, semana
toda fora de casa!

- Pois é senhor João Candido, seu eu lhe aplicar esta


multa terei problemas... sérios problemas!

O motorista olhou desconfiado para o policial, não


entendendo o que se passava.

- Imagina eu chegar em casa e falar para minha mãe


que multei o Doutor João Candido hein?... Para ela, o
senhor é um santo. O senhor não deve lembrar, mas
minha mãe, dona Firmina, lhe procurou no seu
escritório na capital!

O motorista ouvia atento olhando para o bloco de


multas, e para a caneta que ficava balançando de um
lado para outro na mão do policial, que falava:

- Ela não iria acreditar que multei o doutor João


Candido... Acho que até eu levaria umas palmadas
dela doutor. Ela reza pro senhor todo santo dia em
agradecimento pelo que o senhor fez pra ela, ela é
devota de Nossa Senhora, sabe! Quando o posto do
Funrural negou a aposentadoria dela, ficou doente,
não tinha médico que resolvesse o problema. E olha
que sempre trabalhou na lavoura, e eu sou
129

testemunha, porque me criei no sítio! O policial


continuava falando e balançando a caneta no bloco:

- Ela não sabia o que fazer para conseguir a


aposentadoria. Aqui ninguém resolvia nada e só
diziam que não dava para aposentar. Até que alguém
disse para procurar o Dr. João Candido em Curitiba,
que ele poderia ajudar. E não é que deu certo? Ela
comenta, até hoje, que chegou ao seu escritório
mostrou a papelada, o senhor pediu para ela
aguardar um instante, saiu da sala com os papéis na
mão e quando voltou disse: “dona Firmina, a senhora
aguarde em casa que no máximo 30 dias você
receberá seu primeiro pagamento. Não é um papel
que vai me dizer quem é agricultor ou não”. Até hoje
ela conta isto e lhe agradece por ter conseguido
aposentadoria e nenhuma pergunta o senhor fez para
ela.

O policial guardou a caneta e o bloco e devolvendo o


RG e os documentos do carro disse:

- Seu dia de sorte hein Dr. João Candido! Por causa


de minha mãe, não tenho como lhe aplicar a multa
hoje! Mas dirija com cuidado!

O motorista agradeceu ao policial, pediu para mandar


lembranças para Dona Firmina, sorriu e foi embora.
130

O CORCEL, O
CASAMENTO E A
EMPURRADINHA
Nilcéia reclamava:
- Vá devagar João, você está rápido demais!

- Os guardas não estão trabalhando hoje! João


respondia sorrindo.

Nilcéia repreendia:
- Cuidado João, vai que você ganha uma multa, e este
mês já tivemos que parcelar o presente dos noivos,
né?

João dava risada. Conhecia a estrada como a palma


de sua mão e sabia onde os policiais gostavam de
ficar.

A viagem corria tranquila, poucos carros na estrada.


Próximo a um dos postos da Polícia Rodoviária, João
reduzia a velocidade. Dois guardas na frente do posto.
De longe João percebeu que os guardas se olharam.
131

Um balançou a cabeça, o outro veio em sua direção e


fez o sinal para encostar o veículo.

Nilcéia resmungava apreensiva:


- Eu te avisei que isso iria acontecer, fica andando
rápido... isso que dá!... agora vamos chegar atrasados
no casamento!

João resmungou:
- Deixa que eu resolvo!

O policial se aproxima, dá aquela olhadela


intimidadora pela janela e diz:

- Boa tarde cidadão! Favor desligar o veículo!


Documentos do senhor e do veículo!

João entregou os documentos e disse:

- Senhor Oficial o carro tá com problema na bobina e


se eu desligar ele não pega... a bobina aque...

O policial interrompeu seco:


- Favor desligar o veículo senhor!

João argumentou:
132

- Policial, eu vou desligar, mas depois o carro não vai


pegar...

O policial verificou os documentos e checou as


lanternas, pneus, e o extintor. Tudo estava em ordem.
No porta-malas, que estava abarrotado de bolsas,
sacolas e um pacote de presente, ele não quis
verificar. Entregou os documentos e disse:

- Tudo ok senhor, pode prosseguir com a viagem!

João gira a chave na ignição e nada. Mais uma vez e


nada do carro pegar. João olha para o policial, tira a
cabeça pela janela e diz:

- Eu avisei né? O senhor pode dar uma


empurradinha?

O policial, com aquela cara de que se arrependimento


matasse, olhou para seu parceiro que de longe
acompanhava a cena e chamou:

- Clemente faz favor... me ajuda a empurrar o veículo!

Clemente veio devagar e irritado:


133

- Pô Aderbal! Eu te falei pra você não parar este tipo


de carro!!!

- Pare de reclamar e vem rápido Clemente, tem uma


senhora e duas crianças pequenas no veículo!!!

Os dois policiais, com suas armas no cinto, óculos


escuros, e quepe na cabeça empurram o corcel uns
300 metros até um morro. Após o morro o teimoso
corcel embalou e João fez o possante pegar no tranco.
João buzinou agradecendo aos policiais pelo esforço
e acenou com a mão esquerda, com o pé direito pisava
fundo no acelerador. Tinha que descontar o tempo
perdido para não chegar atrasado ao casamento em
Tomazina, município do Norte do Paraná, terra natal
da Nilcéia.
134

A GRANDE
INAUGURAÇÃO
Numa de muitas viagens que realizei pelo interior do
Paraná, no tempo que trabalhava no extinto
Funrural, recordo de um acontecimento lá entre os
anos 70 e 80. Estava dirigindo pela região central do
estado, região de Guarapuava, escutava a rádio AM
de Entre Rios. Na época as músicas que tocavam no
rádio eram só sertanejas de raiz e as músicas
gauchescas.

Mas o que me chamou a atenção não eram as


músicas, mas a interrupção no meio de uma música
para um pronunciamento oficial do prefeito de
Pinhão. O Repórter fez a abertura:

- "Estamos aqui ao vivo de Pinhão, onde daqui a


pouco o prefeito municipal senhor José de Oliveira2
fará um pronunciamento oficial!! A praça central está
tomada pela população de Pinhão que veio em massa
prestigiar este importante evento para o município e
para a região"

2 Nome fictício
135

Após mais alguns minutos informando das


autoridades presentes, o repórter anunciou:
- "Atenção senhores, agora com vocês o prefeito
municipal começará o seu discurso..."

Nisso o prefeito já está falando:


- "Hoje o município de Pinhão entra para a história
nacional, depois de muito esforço, de muito
trabalho..."

Neste momento ele se empolga e como se estivesse


num comício em plena campanha eleitoral acirrada,
eufórico falou:
- "Pinhão passa a se comunicar com o mundo..."

O prefeito fez aquela pausa, aquele suspense até


parecia que a voz estava embargada pela emoção.
Alguns segundos depois, continuou:

- "É com muito orgulho e satisfação que trazemos


para o povo de Pinhão... esta conquista do povo, de
vocês minha gente... isto entrará para a história de
Pinhão..."

Discurso de político mesmo, pensei, fala logo antes


que eu perca o sinal do rádio, eu continuava
dirigindo.
136

- "Neste momento inauguramos o primeiro aparelho


de telex... Pinhão agora está conectado com o
mundo". Enfatizava o prefeito.

Deve estar sendo aplaudido de pé por toda a


população, imaginei. Perco a sintonia da rádio
enquanto o repórter entusiasmado fazia os
comentários da festa.

Eu fiquei imaginando após o discurso do prefeito a


população eufórica com o tão almejado aparelho de
telex. O pároco local abençoando o aparelho com
aquele ramo de cedrinho e água benta. As pessoas
fazendo fila para ver o objeto e cumprimentar o
prefeito, que deveria estar com um sorriso de um lado
ao outro do rosto.

Cidade do interior deveria estar em polvorosa, deveria


ser até feriado, mas se não era, o comércio fechou as
portas para prestigiar tão importante inauguração.
Fico imaginado a bandinha municipal ou a fanfarra
escolar com os alunos com aqueles trajes impecáveis
e coloridos, branco, azul, vermelho, verde, chapéu
vermelho com uma pena branca na ponta. Os alunos
por vários meses ensaiaram as músicas do repertório,
as tradicionais, as clássicas. E não deve ser fácil tocar
os instrumentos e fazer os passos ensaiados, uns
137

para a direita e outros para esquerda, jogar a baqueta


para cima, três voltas no ar e pegar novamente
batendo no bumbo, vários meses para se apresentar
na inauguração do aparelho de telex.

Acho que você que tá lendo neste momento nem sabe


o que é aparelho de telex, e retirando do wikipédia:
“Telex foi um sistema internacional de comunicações
escritas que prevaleceu até ao final do XX. Consistia
numa rede mundial com um plano de endereçamento
numérico, com terminais únicos que poderia enviar
uma mensagem escrita para qualquer outro terminal.
Ainda está em funcionamento em muitos países
apesar do número de subscritores do serviço se
encontrar em queda, pela introdução do e-mail, mais
barato. Os terminais pareciam e funcionavam como
máquinas de escrever ligadas a uma rede igual à
telefônica”.

Foi um importante instrumento de comunicação, e


existia até a importante profissão de operador de
telex, hoje ambos extintos.

Passados tantos anos, fico imaginando, como se daria


a inauguração do e-mail, das mensagens
instantâneas, entre outros.
138

VENDE-SE ÂNCORA
o que faz uma âncora no jardim da casa da cidade que
não tem mar?
cordas, correntes e amarras não lhe seguram
enterrada na terra
enfeite que não prende a atenção
paisagem tomada pelo mato
do outrora colorido jardim, a cor da folha seca reina
nesta paisagem triste uma âncora de ferro
a poeira do inverno seco esconde a cor branca que
encobriu sua glória
o peso de seus braços recurvados ainda resiste
a haste imponente não demonstra o tempo vivido
âncora encostada na cidade grande
lembrança de uma vida dentro do mar
lembrança para um velho
um velho que do mar fez seu lar
juventude a plenitude navegando no verdadeiro amor
cheio de aventuras e estórias nas ilhas do tempo
encarou as profundezas da solidão
enfrentou os monstros da alma
virou capitão da vida
virou um velho
de sua luta, uma lembrança
âncora para fincar sua vida passageira
ilusão da morte efêmera
139

as lembranças do velho capitão na escuridão da terra


seu destino contrariando sua vida
a âncora resiste no tempo
o mesmo destino?
desprezada no jardim sem vida da cidade artificial
podemos escolher o nosso destino?
Lembranças podem ser negociadas
A história traspassada
Ilusão transferida
Alma sacrificada
Âncora? Vende-se.
140

O CARNEIRO
Década de 80, cidade de Jaboti, estavam todos ao
redor de uma mesa grande na churrascaria "Carne
Quente", nome sugestivo para o grupo discutir os
rumos da campanha. A cidade era pequena, mas o
embate político não deixava a desejar as grandes
metrópoles. As estratégias da campanha, os rumos, o
marketing, o que usar ou não usar contra o
adversário.

Meu pai era um dos líderes políticos. Fora militar, e


mantinha o estilo linha dura, apesar de ter deixado o
exército anos atrás. Homem sério, com ele tinha que
seguir a cartilha rígida e hierárquica militar.

A eleição andava quente, as pesquisas indicavam a


derrota do nosso grupo. Apesar dos velhos e outrora
adversários de antigamente estarem do nosso lado,
indicaram o vice que compunha a nossa chapa, o
adversário era outro. Um grupo de esquerdistas
ligados a um padre subversivo que queriam tomar o
poder instalado na cidade há anos, já haviam tomado
o sindicato dos trabalhadores.
141

A conversa fluía tensa, os ânimos se acirravam na


estratégia para derrotar os novos adversários, alguns
pontos mais calorosos, entre goles de cerveja um
querendo mais que os outros definir os rumos da
campanha. Várias sugestões, poucas soluções.

Eu, um garoto de sete anos, pela primeira vez


acompanhava meu pai neste tipo de reunião. Estava
assustado com o tom ríspido das palavras, sentia a
tensão das pessoas na discussão, e isso me dava
medo. Meu pai já tinha me avisado:

- Você quer ir junto? Pode ir, mas se comporte e me


obedece... é uma reunião de trabalho Neto!!!

Neto é meu apelido e de meu avô não tenho o nome,


e isto é outra história.

Já havia passado do almoço, a churrascaria estava


esvaziando, a reunião já estava para mais de duas
horas de conversa e discussão. Eu com fome,
ninguém comia nada, só vinha garrafa de cerveja
cheia, e saía vazia. Fiquei esquecido, sentado ao lado
do meu pai e daqueles homens que falavam grosso e
gesticulavam bastante.
142

Encolhido, só escutando o que se passava, não


entendia nada. No início acompanhei atentamente
com olhos arregalados a discussão em torno da mesa.
Mas o tempo passou e a fome chegou.

Um cara passava com espeto de carne pra lá e pra cá.


No início ele perguntava se alguém queria carne,
ninguém o escutava, depois só passava olhando,
ninguém parecia estar com fome. E eu com fome.

Eu ficava olhando para o espeto com olhos sedentos


e boca salivando. O cara do espeto me viu e perguntou
se eu queria um pedaço de carne. Eu olhei para meu
pai, ele não me olhava. Cutuquei na perna dele, ele
resmungou para eu esperar um pouco, mas nem me
olhou. Olhei para o cara do espeto balancei
negativamente com a cabeça, e ele saiu com espeto de
carne.

Fiquei observando o cara do espeto com a carne até


ele entrar na área da churrasqueira. Se meu pai não
autorizasse eu não poderia pedir e nem comer.

O cara do espeto passava nas outras mesas com o


esperto cheio de carne. Eu ficava observando com a
faca e o garfo na mão.
143

Depois de muito tempo, um dos correligionários do


meu pai percebeu minha condição e disse para ele:
- Acho que seu garoto está com fome!!!

Meu pai perguntou-me:


- Você está com fome?

Eu olhei para ele e disse balançando afirmativamente


a cabeça:
- Quero carne!!!

Ele respondeu:
- Pode pedir pro moço quando ele passar!

O cara do espeto havia acabado de passar e estava


indo na direção da churrasqueira. E eu como estava
morrendo de fome, não quis perder tempo, berrei
desesperado:
- Ô CARNEIROOOOOO!!! Ô CARNEIROOOO...
QUERO CARNE!!!

Gargalhada geral de todos, menos de meu pai que


estava constrangido. Na minha cabeça quem trazia
leite era leiteiro, cartas era o carteiro....

Mas eu não estava preocupado naquele momento,


estava com fome e queria carne. Hoje, em
churrascaria não peço carneiro.
144

CACHORRO-QUENTE
NO MARACANÃ
Rio de Janeiro, estádio Maracanã antes da reforma
para a copa. Dois curitibanos aproveitaram um
pacote promocional de passagens aéreas e hotel
disponível na internet e fizeram um passeio de final
de semana. Dois dias para conhecer as belezas
naturais da cidade maravilhosa.

Não, não foram nas favelas dos morros cariocas.


Desculpas, sempre as desculpas:
- Não deu, né! Dois dias é pouco tempo para conhecer
tudo! Disse um.
- Até queria ir, acho interessante o modo de morar e
construir em morro, uma beleza do ser humano!
Filosofou outro.

Mas acharam um tempinho para assistir futebol.


Ambos fanáticos por futebol: o jogo era Botafogo
versus Fluminense. Ansiosos esperavam sentir a
emoção do estádio lotado, a torcida cantando e
empurrando o time para a vitória em busca do gol.
145

Jogo de domingo 18:00 horas começa e cadê a


torcida? Pouco tempo depois entenderam o motivo da
falta de torcedores num dos chamados "templos" do
futebol: jogo ruim, difícil de assistir, times apáticos,
jogadores sonolentos. Isto explicava porque os times
estavam na zona intermediária na tabela de
classificação do campeonato.

Fim do primeiro tempo, zero a zero. Os técnicos vão


mudar o time no intervalo e o jogo vai melhorar,
comentaram. Otimistas.

Apita o árbitro, e começa o segundo tempo. Igual ao


primeiro. Sonolento e sem emoção. Arquibancada
calada. Cadê a emoção para alegrar os poucos
torcedores perdidos no gigante de concreto?

Lá no fundo surge um grito. E o grito foi se


aproximando. Da torcida impaciente com a falta de
espetáculo?

Não, da vendedora de cachorro-quente, que gritava:


- Olha o cachorro queeeeeeeeeeeente!!!
- Cinco reais o cachorro queeeeeeeeeente!!!
146

Os vendedores ambulantes estavam no ritmo do jogo.


Não estavam conseguindo atrair a atenção dos
torcedores para seus produtos.

De cabelos brancos, uma senhora vinha animada


berrando:
- Cinco reais o cachorro queeeeeeeente!!!
- Olha o cachorro queeeeeeeeente!!!

Ela estava tentando cobrir o prejuízo do estádio vazio.


Estava difícil, o público estava tão animado quanto o
jogo.

De repente a senhora de cabelo branco muda o grito,


e começa a gritar:
- Roooooodoooogue!!!
- Olha o rooooodoooogue!!!

Chegando perto dos dois turistas curitibanos, ela


carrega seu vozeirão, e solta toda a sua fluência
verbal em inglês. Os dois curitibanos eram brancos,
bem brancos, as pernas são parecidas com dois
pedaços de palmito, ou duas mandiocas descascadas.
Ambos de cabelos loiros encaracolados e olhos azuis,
descendentes remotos de eslavos. São primos.

E agora são gringos.


147

A vendedora passou olhando para os dois e berrando


em inglês do Joel Santana:
- Olha rooooodooooogue!!!
- Roooooodoooooogue!!! Rooooodoooooogue!!!

A fome não chegou para os turistas curitibanos,


apreciadores do bom futebol, mas não do cachorro-
quente.

Jogo enrolado, amarrado, sem emoção. Jogo com cara


de zero a zero. Antes do término da partida deixaram
o estádio, o voo de volta à capital paranaense não iria
esperá-los.

Chegaram ao aeroporto em cima da hora, mas deu


tempo de saber que o fluminense ganhou o jogo, com
um belo gol nos acréscimos do segundo tempo. Eles
só viram o gol no dia seguinte, pela televisão.
148

CURITIBANA
ASSALTADA NO RIO
DE JANEIRO
Numa manhã fria de um dia normal da capital
paranaense, Dona Astride pegou o avião. Não avisou
os filhos, estava cansada de ser babá dos netos.
Desde que deixou a vida profissional não sabia dizer
não para os filhos. Cinco filhos e 12 netos. O neto
mais novo tinha sete meses e oito dias, e o mais velho
vai fazer 14 anos. Os netos sabiam aproveitar as
regalias da vó Astride. Ela não gostava de ser
chamada de vó.

Terça feira de sol no Rio de Janeiro. Sua amiga


Marietta combinara de mostrar as belezas da cidade
maravilhosa. Marietta desde que ficou viúva, mudou-
se para o Rio de Janeiro. Marietta havia esquecido
que de manhã tinha médico agendado e não poderia
desmarcar.

Astride ficou com a manhã livre. Seu marido, Juacir,


faleceu há alguns anos em decorrência de uma
cirrose, consequência de anos de consumo de álcool.
149

Dona Astride, estava bem conservada para os seus 61


anos de idade. Aposentada como funcionária do
serviço público estadual. Serviu como secretária de
diversos governadores do Paraná.

Astride resolveu andar de ônibus. Pediu informações


na recepção do hotel e o trajeto iria ser curto. Não
tinha medo da violência da cidade. Era descendente
de alemães e teve que enfrentar muita coisa nesta
vida. A primeira luta foi convencer a sua família, que
veio da Alemanha pós-guerra, a aceitar o seu
casamento com o Juacir, que tinha pele morena.

No ônibus, todos os lugares estavam ocupados. Ela


não se importou, queria ver a cidade maravilhosa,
cidade de sol, povo alegre, diferente da capital onde
morava. Já conhecia o Rio, mas esteve só a trabalho
e não teve tempo para se dedicar e apreciar as belezas
naturais.

Estava absorta em seus pensamentos apreciando o


vai e vem das pessoas na praia tomando sol, jogando
bola, correndo, quando alguém lhe chama puxando
seu braço.

Um moço novo, negro, forte e bem vestido, lhe oferecia


um lugar educadamente:
150

- Senhora pode sentar aqui, por favor!!!

Ela olhou bem aquele jovem e seus pensamentos


voltaram no tempo: imaginou-se com uns vinte e
poucos anos, na flor da idade, bonita, esbelta, sempre
foi desejada pelos homens, as propostas, bilhetes,
cartas, flores e gracejos eram constantes. Imaginou-
se num vestido de “piriguete”... humpf! É! não iria ter
para nenhuma destas meninas novas não!

Ela sentiu um calor interno aumentar. Começou a se


abanar, pensou estar corada. Desde que seu marido
falecera não teve nenhum outro relacionamento, os
netos não deixavam. Em outra época ela não iria
deixar este jovem escapar. Queria ser agarrada por
seus braços fortes de academia, sentir o suor
escorrendo no corpo nu, tirar bem devagar esta
camisa branca que marca seu físico ... ai! que estou
pensando?... Respirou fundo e tentou se recompor e
tirar os pensamentos libidinosos da cabeça. O jovem
estava de pé apontando o banco para ela sentar. Não
era de se jogar fora... suspirou!

Olhando bem nos olhos dele disse com um sorriso


safado:
151

- Precisa não moço... assim consigo apreciar "bem" a


paisagem!!! E deu uma piscadela com o olho direito
para o jovem.

Ele insistiu, mas ela recusou. Ele ficou sentado.

Dona Astride para distrair-se, admirava a praia.


Passado alguns minutos sentiu que faltava algo.

Olhou para o pulso, cadê o relógio? O sangue ferveu


e a reação foi instantânea.

Chegou bem próximo do ouvido do jovem que


continuava sentado no banco e disse baixinho e
pausadamente, mas num tom firme e amedrontador:
- Me passa o relógio!!! Me passa o relógio, JÁ!!!

Ele ficou sem reação, tentou argumentar sem


entender:
- Mas...

Ele foi bruscamente interrompido, ela ainda falando


firme na orelha dele:
- Só porque é bonitão, pensa que vai me enganar é...
me passa o relógio já... senão eu vou fazer um
escândalo aqui neste ônibus!!!
152

O rapaz tirou o relógio do pulso e entregou. Ela pegou


o relógio jogou irritada dentro da bolsa. Apertou a
campainha e desceu do ônibus. Pensou e foi
resmungando enquanto andava pelo calçadão:
- Sujeito asqueroso, vem dando de bom moço para
“ingrupir” uma senhora... mas comigo não... sou
velha, mais tô ligada na parada!!!

Sorriu satisfeita com a gíria que ouviu de seus netos.

O passeio daquela manhã estava cancelado. Voltou a


pé para o hotel e iria aproveitar a piscina.

Chegou ao hotel, entrou no quarto, jogou a bolsa na


cama e parou. Ficou estática, imóvel, branca, pálida
e de boca aberta. Engoliu em seco.

Rapidamente pegou a bolsa. Abriu. Estava tremendo.


Virou a bolsa em cima da cama. Foi jogando tudo para
o lado: carteira, pente, maquiagem, batom, passagem
aérea, moedas, celular, porta retrato, dinheiro,
caderninho de telefone, óculos de leitura, recibos de
táxi, cartões de bancos e lojas, secador de cabelo,
escova de dente, mais um pente, lenço de papel,
pirulitos, spray para cabelos, remédio contra artrite,
remédio da diabetes, vitaminas em cápsulas e um
153

relógio. Desesperada segurava em sua mão, um


relógio da marca Tag Heuer link calibre S.

Na mesa de cabeceira do quarto, ao lado do abajur


estilo inglês, inerte, o seu relógio continuava
marcando as horas. O seu relógio de ouro.

O seu relógio era sentimental, ganhou de um


governador. E dizem as más línguas que foi por causa
deste governador que o falecido Juacir começou a
beber. O governador era bem próximo dela.

Depois de consultar um relojoeiro amigo seu,


descobriu que o relógio era original e muito apreciado
por jogadores de futebol.
154

O HOMEM PARADO
De repente um homem que caminhava para no meio
da calçada. As pessoas vão e vem. Ele fica parado.

Os pedestres continuam andando, apressados. Moços


elegantes em seus ternos bem cortados e gel no
cabelo, donas de casa carregando várias sacolas
coloridas, estudantes com seus enormes fones de
ouvidos com músicas barulhentas, as mocinhas em
trajes provocantes enviando mensagens nos
modernos telefones móveis. Todos ficam irritados com
um homem parado no meio da calçada.

As pessoas andam agitadas. Correndo. Sem


paciência. Vida moderna. Um homem continua
parado, estático, disperso com olhar no horizonte.

Quase é atropelado pela multidão de pedestres.


Alguns esbarrões e encontrões das pessoas que não
conseguem se desviar ou não lhe veem.

Com a irritação, surgem alguns impropérios


proferidos. Alguns inaudíveis e baixinhos, outros,
não:
155

- Sai da frente velho maluco...

- Ei tio, não tomou o remédio hoje não...

Após 23 segundos parado, a figura do homenzinho


vermelho apagou e o do homenzinho verde acendeu
no semáforo. Ele atravessou a avenida na faixa, em
segurança e sem correria.
156

O HOMEM PARADO
DOIS
O homem de terno preto bem cortado, gravata com
listras vermelhas, azuis e brancas, caminhava
apressado pela calçada da grande cidade.

Seus olhos faiscavam de raiva, rosto vermelho, veias


do pescoço exaltadas faziam circular o sangue que
fervia. Iria explodir. Os passos eram largos com o
sapato macio de uma grife famosa. O homem
segurava firme uma pasta volumosa debaixo de seu
braço. A pasta estampava em letras garrafais o nome
do seu escritório.

Estava irritado, não via a hora de voltar a sua cômoda


sala. Resolveu fazer um pouco de exercício e foi a pé
até o tribunal. Arrependeu-se. Agora tinha que
percorrer 15 quadras. Estava ofegante ao andar as
três primeiras quadras.

Sem avisar, o homem irritado parou. Ficou parado.


Irritado continuava. Algumas pessoas alvoraçadas
passavam por ele, outras começaram a parar ao lado
dele. As pessoas estavam em silêncio. Ele ficou
157

absorto. Quem parava também. Alguns minutos


passaram, ele parado, as pessoas paradas.

Neste tempo parado, seu coração começou a bater


mais tranquilo e as veias do pescoço voltaram ao
normal. Seu semblante, mais ameno. Esquecera-se
de Juli. Era o primeiro emprego de Juli, a bonita
secretária, quase 17 anos e primeiro mês de trabalho.

Uma música andina lhe acalmou. As melodias do


charango, a batida do tambor, o som da flauta de pã
e da quena, junto com o colorido traje dos músicos,
tornaram o meio da praça um templo andino de
serenidade e de paz. A tensão do homem parado
sumiu e sua alma relaxou.

Ele escutou uma, depois outra música. A música


parou. Os músicos também precisam sobreviver. O
homem parado procurou nos bolsos e lembrou que
não havia sacado dinheiro no banco.

O homem parado voltou a caminhar, agora tranquilo.


Enquanto caminhava sua paz começou a se esvair.
Acelerou novamente seus passos. As veias do pescoço
não se exaltaram, mas de hoje a nova secretaria não
iria passar.
158

Era a segunda vez na semana que ela lhe passava


uma data de audiência errada. A primeira ele perdeu
o dia, chegou dois dias depois. E hoje chegou com um
dia de antecedência. Ele não gostava da falta de
atenção das secretárias. E por isso era a quinta
secretaria do ano. Elas não gostavam do salário.
159

O ÚLTIMO DOS
VELHOS
Teca fechou o livro e olhou para os lados com aquela
felicidade estampada no rosto querendo compartilhar
sua alegria com algum passageiro. O ônibus
deslocava-se para o centro. Ninguém olhou para ela,
todos concentrados na tela do celular. E mesmo que
a olhassem, a máscara de caveirinhas lhe cobria o
sorriso. O uso de máscara era obrigatório devido a
pandemia que assolava o mundo. Teca ficou
resignada segurando firmemente o livro repousado
em suas pernas.

O ônibus foi ultrapassado por vários carros em alta


velocidade, era a polícia com suas luzes piscando e
sirenes estridentes, que incomodava os ouvidos
sensíveis de Teca.

Vendo os vários carros da polícia alvoroçados, Teca


lembrou do café da manhã. Como de costume seu pai
ligava diariamente a TV no jornal matutino para
acompanhar as notícias. Ela estava de saco cheio de
só ter notícias policiais, via raramente a previsão do
tempo. E ultimamente o homem do tempo não
acertava nenhuma, não previu para a capital dos
160

pinheirais e dos quatros climas num dia só que


estaríamos assolados por um calor atípico neste
inverno e ainda acompanhado de uma seca
inesperada que provocava rodízio de água nunca visto
na cidade. O apresentador em seu terno sob medida
será que havia falado “... a polícia nas ruas com uma
grande operação...”?

Sua atenção foi desviada para o barulho chato e


insistente de um celular que tocava a todo volume.
Barulhos e sons se acumulavam, isto a enraivecia,
seus frágeis ouvidos sofriam. Os passageiros olhavam
de um lado para outro para procurar o incauto dono
do aparelho. Era uma passageira sentada à sua
frente.

Teca analisou a elegante senhora de cima abaixo e ela


destoava do restante dos passageiros, estava muito
bem vestida para andar de ônibus: salto alto e fino,
saia e blusa social chiquérrima, na mão anéis de
brilhantes e de ouro reluziam com o sol escaldante.
No braço, pulseiras com pendentes que deviam valer
mais do que ela ganhava como atendente de
telemarketing no ano inteiro. A maquiagem discreta e
perfeita escondia a idade real. Da bolsa de grife ela
tira um iphone 12 e diz firme e seca:
161

- Que você quer? Sua voz soava autoritária. - Pegue o


último dos velhos!

A frase ecoava na cabeça de Teca “pegue o último dos


velhos...”, “...o último dos velhos...”, “...velhos...”,
“...idosos foram encontrados mortos...”. Remexeu sua
memória e lembrou de uma repórter de blusa amarela
e que o vento teimava em esparramar seu cabelo,
falando que “idosos foram encontrados mortos”. Mas
não lembrava direito, não prestara atenção. Flashes
da repórter surgiam em sua cabeça. Trechos
indecifráveis. Será que ela falou que um velho
sobreviveu? Ou será que disse “...idosos foram
encontrados abandonados...”? Várias hipóteses
surgiram na cabeça de Teca.

- Acabe com o velho primeiro!... Já disse!... Não


discuta! Disse a mulher.

Imagens de velhos mortos e ensanguentados


pululavam a mente de Teca, pensou no seu avô. Seu
avô era um velhinho querido, brincalhão, um amor de
pessoa. A imagem de seu avô se misturou com a
imagem de velhos mortos. Essas imagens e o calor lhe
provocaram tontura.
162

- E deixe tudo limpo desta vez! Senão... Disse a


mulher ao telefone com uma voz intimidadora, e
olhava diretamente para Teca.

A mulher desligou o telefone e guardou-o na bolsa.


Teca corou e virou imediatamente os olhos para a
janela, desconcertada. Ela é que estava encarando a
mulher durante toda a ligação. Enquanto virava o
rosto ela percebeu de relance que a mulher tinha
tatuagens. Tatuagens? Ligou a imagem ao repórter de
gravata amarela e ao fundo uma praça cheia de gente
falando “...líder da máfia...”. Perplexa, diversas
imagens de mafiosos tatuados surgiram.

Teca percebeu que a mulher permanecia incólume e


plena em sua soberba, olhou rispidamente para cima.
Um rapaz alto, porte atlético, usando terno, camisa e
gravata pretas, estava ao lado da mulher. A ficha
caiu. Um frio percorreu sua espinha. Os líderes
mafiosos sempre tinham tatuagens, tinham
segurança particular e agora estavam matando os
velhinhos.

A polícia estava atrás desta mulher, concluiu Teca,


que pegou seu telefone e teclou os números 190. Seu
dedo ficou apreensivo em cima do botão verde.
Vacilante não conseguiu apertar a tecla para ligar.
163

Nesse momento o homem de terno põe a mão dentro


do paletó.

Teca empalideceu. O homem tira o celular que vibrava


silenciosamente no bolso e diz com uma voz fina:

- Oi querido! Já estou chegando! Apertou a


campainha do ônibus.

Enquanto o homem descia, aquele barulho


azucrinante voltou. O toque chato e alto do iphone
ecoou no ônibus. Teca aproveitou o momento em que
a mulher abria a bolsa para pegar e atender o
telefone, levantou e apertou a campainha e ficou
parada em frente a porta. Nestes poucos segundos em
que o ônibus percorria para chegar ao ponto pareciam
uma eternidade para Teca. O barulho do celular
tocando continuava.

O ônibus parou. Teca desceu apressada e aliviada.


Ufa! pensou. Nisso escutou aquela voz autoritária e
firme atrás dela, que dizia:

- Já falei filha! É para pegar os cupcake mais velhos,


os de hoje são para a festa de aniversário de seu pai
à noite!
164

Teca segurando o livro nas mãos disse inaudível atrás


da máscara - “tenho que parar de ler Sherlock
Holmes, ele me deixa agitada demais!”.
165

A REUNIÃO
Segunda feira tensa no C.P.D. Daqui alguns minutos
todos participarão da “a reunião” que poderá mudar
o rumo de tudo o que você conheceu até hoje deste
departamento. A apresentação estava pronta e os
apresentadores ansiosos ensaiavam as frases de
efeito para impressionar o presidente e conseguir
aprovação esperada há tempos.

Os colaboradores não continham o nervosismo e


estavam ansiosos pela participação do presidente,
pela primeira vez em todos esses anos de empresa,
Dr. Aristóteles. Alguns colaboradores com mais de
dois anos não conheciam ele pessoalmente. O
nervosismo natural era reforçado pelos insistentes
lembretes da chefe do departamento, a gaúcha Ieda:

- O Dr. Aristóteles vai tá na reunião, pessoal! Agilizem


as apresentações!

- Não esqueçam das frases de efeito, Dr. Aristóteles


tem que aprovar o projeto!

- Dr. Aristóteles é exigente, vocês já conhecem a fama


dele, se ele não gostar da apresentação ele manda
166

parar! Então foco na apresentação! Treinem pessoal,


treinem muito, o aquário tá a disposição para vocês
treinarem, e se quiserem minha avaliação da
apresentação é só chamar!

Antes do horário agendado, todo o departamento já se


encontrava na sala do conselho, 20 pessoas.
Microfone testado uma, duas, três vezes. Slides no
ponto. Ieda conseguiu que os slides também fossem
impressos e conseguiu um milagre ainda: impresso
colorido. Os impressos na ordem de apresentação
colocados na pasta da empresa e milimetricamente
dispostos nos lugares onde estariam Dr. Aristóteles e
os demais diretores. Silêncio mortal na sala.

Dr. Aristóteles era pontual e gostava de pontualidade.


Dez horas, horário de início da reunião. Nada do Dr.
Aristóteles. Ieda olhava do relógio para a porta, da
porta para o relógio. Dez horas e um minuto, Ieda
impaciente. Dez horas e cinco minutos, o silêncio
continua na sala. Dez horas e dez minutos todos
impacientes, alguns copos de água já estavam vazios.
Algumas cadeiras giravam de um lado para o outro
fazendo perceber que precisam de óleo. Blocos de
anotações começavam a ser preenchidos por
desenhos abstratos e surrealistas. Alguns cochichos
começavam a se ouvir.
167

O telefone da sala do conselho tocou. Todos se


olharam. Ieda atendeu com seu peculiar tom seco
dizendo:
- Ieda!

Depois disse mais três palavras secas:


- Sim!

- Tá!

- Aviso!

Ieda desligou o telefone e falou:


- Era Dona Elisabeth avisando que Dr. Aristóteles
está no trânsito, mas já está chegando e é para
esperarmos aqui na sala!

Silêncio de alguns. Resmungos de outros. Não tinham


o que fazer além de esperar. Alguém comentou com o
colega ao lado:

- O professor deu uma prova de cinco questões de


“verdadeiro” ou “fácil”!

- Hã... peraí?! Tenho que reprocessar de novo!

- Então, era uma prova inicial de iniciação!


168

Outro colega se meteu na conversa:


- O professor indagou o motivo de o aluno, burro, ter
feito um triângulo ao invés de um quadrado!

- Não insira elementos geográficos na história! Disse


outro.

Assim aos poucos o pessoal foi se soltando, enquanto


aguardavam a chegada do Dr. Aristóteles, diminuindo
o nervosismo da apresentação. A conversa tomou
conta da sala de reunião. Assuntos variados
ressoavam na sala: trabalho, jogos, futebol, escola,
comida, bebida. As conversas se misturavam e até se
confundiam entre as vinte pessoas presentes:

- Quanto está o litro de “velho barreto”?


- Isso é sazional, primeiro passo inicial é a busca da
procura!
- Melhor! Vamos buscar na busca! Isso é uma luz no
fim do túmulo!
- Isto é de “plaxe”, eu sempre tenho uma bala na
manga!
- Com base nisso a gente tem uma base que todas as
possibilidades que possibilitem que a informação
informou...
- Você “comeriria”?
169

- Existia uma ausência de informação, de quais


situações estão em qual situação? Entendeu? Esta é
uma melhoria para melhorar!
- Tenho certeza que eu acho! Que todo mundo é igual
pra todo mundo. Pois, foi no começo que a gente
começou a colocar as pernas nos “is”!
- Fiquei puto e falei pra ele: vá plantar macaco! Não
sabe arquivar no arquivo...
- Eu sempre fui da idade que eu sou e minha mãe não
me deixava ir na “lanhouse” porque eu era menina...
péra! Eu ainda sou menina!
- Dai, fizemos a alterança, refazer novamente, porque
eu tinha lançado esse lançamento e foi aí que fiquei
absurdado ao identificar o que foi identificado...
- Você viu aquele filme “o auto da comparecida”?
- No “geratório” era cada flegada mano, depois a chefe
mandou desflegar tudo, puta que pariu, o pior de tudo
é que depois mandou flegar, vai entender!
- Já no começo eu comecei, eu incluo eu, porque
estamos em época de vacas de dieta...
- Aonde que não está aparecendo? Antes ou default?
Ela alterou a data do evento e não “desalterou”!
- Quanto mais a gente envelhece, mais aparece pelo
em lugar errado.

Passados trinta minutos, todos estavam distraídos,


sorridentes e alegres, menos Ieda, que estava
170

angustiada e irritada pelo barulho da conversa dos


subordinados, foi quando o telefone tocou. Ieda
gritou:
- Verdo!

Pessoal se olhou e silenciou. Enquanto Ieda falava ao


telefone alguém cochichou para um colega do lado:
- Você que conhece o dicionário da chefe, o que
significa “verdo”?
- Ixi, cara! Ela criou outra palavra, vamos ter que
adicionar mais esta...

Ieda desligou e disse frustrada:


- Era Dona Elisabeth, Dr Aristóteles tá preso no
trânsito e a reunião está cancelada. Todo mundo para
o trabalho agora!

A mudança do nome do departamento de C.P.D. para


departamento de T.I. ficou para uma outra
oportunidade e vai depender da agenda do Dr.
Aristóteles.
171

LEMBRANÇAS DE
UMA VIDA
Em 20/07/1969 dizem que um homem, Neil
Armstrong chegou à lua num foguete espacial
chamado Apolo 11. Mesmo com uma grande
divulgação em todos os meios de comunicação da
época, rádio, TV, jornais, revistas e filmes, alguns
ainda duvidam desta façanha do homem.

Mas não duvidamos de uma cerimônia ocorrida um


dia antes em Papanduva (SC), no dia 19/07/1969.
Esta cerimônia não teve curtidas no face, nem live no
insta, nem selfie em grupos de whatsapp, não saiu no
jornal, nem na TV, muito em menos em revista.

Poucas imagens que retrataram uma época bem


diferente da atual.

Numa foto em preto e branco, com suas janelas em


forma de seta apontando para o céu, a Igreja Matriz
São Sebastião aparecia ao fundo. Os convidados se
apinhando em cima da carroceria de um caminhão,
olhos espremidos por causa do sol. No meio da turma
um violeiro e um gaiteiro informavam que a festa
172

estava apenas começando. Os padrinhos posavam à


frente do caminhão e entre eles radiavam um belo
casal, ela de vestido branco, véu, grinalda, uma
serena moça com 19 anos que segurava firme o
buque, de terno e gravata um formoso rapaz de 23
anos, Miguelina e Líbio.

Esta imagem completa cinquenta anos, e uma frase


resume a união de Líbio e Miguelina, Mateus 19 - 6
"Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto,
não separe o homem o que Deus uniu”.

De personalidades bem distintas e que se


completaram nestes 50 anos. Ele valente nos tempos
de solteiro quando enfrentava sozinho a “gangue” de
Monte Castelo nos bailes lá no Guarani, ela
conciliadora e meiga. Aprenderam a conviver com os
defeitos um do outro. Temperamentos distintos.
Trabalhadores. E fortes. Fortes para aguentar um ao
outro. Fortes para não desistirem. Fácil? Dirão que
não foi.

Desta união o fruto, cinco belos filhos de olhos azuis.


Uma família.
Para os pais os filhos sempre serão belos e serão
sempre suas crianças, não importa se os filhos já
estão com quase 50 anos de idade.
173

Como resumir uma história de vida juntos numa


folha? Creio que as nossas lembranças de criança
expressam a vida deste casal. Lembranças de uma
época sem celular, sem automóvel, sem internet.

Lembranças da casa de madeira, onde brincávamos


de esconder e pega-pega nos quartos, na sala ou na
cozinha. Dos tempos dos banhos de bacia, depois o
banho do chuveiro no latão onde a água quente era
colocada com a chaleira, nesse tempo o banho era
rápido. Depois quando veio o chuveiro elétrico, o
banho era demorado, que sacrifício para tirar alguns
debaixo da água quente, principalmente no inverno.
Nesta época não sabíamos que tinha que pagar a
conta de luz.

Lembranças de quando todos os filhos dormiam


numa única cama de casal. Depois cada um teve sua
cama, as beliches, ou quase todos, alguém dormia no
sofá e não deixava os outros assistir os filmes de
noite. Colchão forrado com palha de milho? Já
dormimos com aquele barulhinho de palha quando
estava fresca. Claro que para alguns a palha tinha
que ser trocada volta e meia por causa de uns líquidos
que teimavam em sair sozinhos no meio da noite, e
que davam uma trabalheira para Líbio e Miguelina
174

trocar a palha e o lençol, principalmente no inverno


quando não tinha sol.

Lembranças de quando íamos a pé visitar os “vô” e na


volta aprendíamos a fazer os cata-ventos com as
folhas do caraguatá.

Lembranças do quintal com árvores frutíferas, onde


existiu o nosso “elefante verde”. Onde fazíamos os
“grandes” lagos nas valetas com a água da chuva,
claro que deixávamos algumas ferramentas perdidas
no meio da terra. O chiqueiro para nós era o forte
onde brincávamos com nossas “espingardas” de
madeira. Uma vez começamos a fazer um túnel para
passar por baixo do paiol. É ... não deu muito certo.

Para sustentar os filhos famintos em fase de


crescimento vem à lembrança o forno a lenha.
Funcionava a todo vapor produzindo uma quantidade
gigantesca de pães e broas toda semana. Pão com
margarina de latão, e ainda colocávamos açúcar em
cima da margarina, pão com banha, pão com doce
caseiro. Haja braço para sovar as massas e cortar a
lenha. E quanto de dinheiro precisava para comprar
o trigo? Nós não nos preocupávamos com isso.
Queríamos sempre o pão fresquinho e reclamávamos
quando tínhamos que comer o pão seco, mas hoje
175

passados alguns anos, lembramos com saudade


daquele pão “velho” feito no “bafo”.

Lembramos também daquele churrasco que um dia


nos surrupiaram, das brincadeiras na rua com os
vizinhos até quase meia noite, mas do incêndio no
paiol não lembramos porque estávamos dormindo
tranquilamente.

E falar em comida, quando a família foi crescendo, as


noras e o genro lembram também com saudades
quando eram obrigados a comer “aquele” cuque de
fermento e os haluskes.

Quantas lembranças. Cada um de nós tem essas e


outras lembranças deste tempo. Puxando estas
poucas lembranças, vemos como esse casal, Líbio e
Miguelina, criaram seus filhos. Com muito suor,
trabalho e amor. Muita pedra foi quebrada, madeiras
serradas e sacos carregados, muita linha entrou nos
tecidos e muito pão foi amassado. E para descansar,
no domingo ainda trabalhavam na roça. Trabalho,
muito trabalho.

Foram fortes para aguentar essa piazada teimosa. E


teimosia podemos dizer que é uma característica
herdada de vocês.
176

Somos eternas crianças com nossas birras,


divergências e picuinhas. E de vez em quando ainda
precisamos de um puxão de orelha, uma reprimenda
e até quem sabe umas palmadas para não
esquecermos o que somos e como fomos criados.

Líbio e Miguelina, casal forte. Forte para criarem


cinco filhos. Forte para manterem unida a família,
não mais uma família, várias famílias, além dos filhos
agora noras, genro, netos, de personalidades
distintas que se sentem bem e gostam de estar com
vocês.

Tivemos tudo o que precisávamos: carinho, respeito,


honestidade e educação. Herdamos de ambos seus
defeitos mais também suas qualidades, suas virtudes
e suas bondades. E essa é a herança que queremos
guardar de vocês, além das lembranças na memória.
Nenhuma escola ensina todo esse aprendizado e esta
vivência que tivemos com vocês, e queremos
continuar aprendendo e tentar incorporar isso na
nossa vida, repassando e ensinando o que
aprendemos com Líbio e Miguelina para nossos filhos.

Miguelina e Líbio, 50 anos de vida juntos, de


sacrifícios, de momentos bons, de dificuldades, de
177

alegrias, de superação. Hoje é um dia de festa, mas é


um dia principalmente de agradecimento.

Nós agradecemos pela vida que vocês nos deram, por


tudo que aprendemos e que vamos ainda aprender
com vocês.

TE AMAMOS.
178

E O COELHO?
O sinal de nova mensagem tocou no celular. Ela levou
um susto. Os olhos que estavam atentos nas letras
mortas do livro, rapidamente passaram para o celular
ao lado da cama. Ela olhou viu o remetente, neste
momento duas novas mensagens tocaram. Eram do
marido.

Marido: tô aqui no restaurante... tô gastando meus


créditos na internet hehehe.

Marido: tem eu numa mesa de quatro lugares.

Marido: tem uma senhora sozinha numa mesa de


quatro lugares e um senhor de cabelos grisalhos
numa mesa de quatros lugares.

Esposa: afff e porque vocês três não sentam juntos


numa mesa de quatro lugares? rsrsrs

Marido: a mulher tá falando no celular e já tá no café


expresso e a mesa tá cheia de papel e uma
calculadora, o senhor tá igual eu no celular, agora
chegou um casal e sentou numa mesa de quatro
lugares.
179

Esposa: oooo restaurante das mesas de quatro


lugares rsrsrs!

Marido: mas tem mesa de dois lugares com toalha


florida.

Marido: eu tô numa mesa de toalha branca e uma


azul por cima mas tá suja.

Esposa: eca!

Marido: e tem umas mesas que as toalhas são xadrez


vermelha e outras xadrez verde.

Esposa: que carnaval!

Marido: eu e a mulher e o senhor tamos de óculos e o


casal que chegou também.

Marido: o garçom também.

Marido: e o moço do caixa que parece ser o dono


também.

Esposa: rsrsrs!

Marido: a mulher tá indo embora.


180

Marido: tem uma armadura de um samurai.

Esposa: hã? como assim?

Marido: tem uma mesa de madeira redonda com


ombrelone.

Marido: essa não tem toalha.

Esposa: o que você pediu?

Marido: tem uma vestimenta daqueles guerreiros


japoneses antigos... ela fica numa caixa de vidro do
lado do bar que não tem bebida.

Marido: eu pedi o prato de número 23 e um suco de


abacaxi com hortelã.

Esposa: aaa agora entendi, pensei que a mulher tinha


uma armadura... der!

Marido: já veio o prato do senhorzinho... acho que é


um parmegiana, acompanhada de fritas e arroz.

Marido: chegou mais um homem sozinho... ele sentou


numa mesa de dois lugares de toalha florida.
181

Marido: ele tá de camiseta e bermuda... eu tô de blusa


e o casal também o senhorzinho tá de camisa social.

Marido: eu tô na mesa 14.

Esposa: rsrs.

Marido: na TV tá passando os gols mais bonitos dos


últimos 10 anos... mas eu tô longe só escuto e não
vejo direito hehehe.

Marido: no canto é bem escuro.

Esposa: rsrsrs.

Marido: eu tô do lado da cascata e do lago, na minha


mesa é claro.

Marido: tem peixe.

Esposa: quantos?

Marido: num contei os peixe... mas noutra vez que


tava aqui tinha um coelho junto.

Esposa: no aquário? rsrs


182

Marido: não é aquário é lago com cascata.

Marido: o narrador grita na TV gooooooooolllllllllll do


milan...

Marido: e tinha um coelho.

Esposa: tinha?

Marido: agora chegou meu prato tem arroz batata


legumes e... coelho.

O celular parou de apitar mensagens novas. Neste


momento a esposa mudou a opção do toque do celular
para o modo “silencioso”. E relaxada retornou para o
terror clássico dos contos de Edgar Allan Poe.
183

O VELHO BANHA
Coautoria: Anad Bi Kinpilue

Lembro pouco da minha Nona. Minha querida vó


Giuseppina, só soube o nome depois que cresci. E das
poucas lembranças que tenho da Nona a principal é
do seu velório. E a lembrança não é dela, da Nona, da
Vó Giuseppina, e sim do velho Banha: uma mão sobre
a testa, cabeça baixa e lágrimas escorrendo pelo
rosto.

O velório acontecia na casa da Nona, uma casa


amarela com sótão, era de madeira, cercada por um
imenso gramado verde, e um pomar no fundo do
quintal. Na cozinha o fogão a lenha estava
esquentando água para o chimarrão e para o café da
madrugada. O pão caseiro e as cucas de farofa já
estavam assados, trabalho das tias.

Na pequena sala estava eu com minha mãe ao lado


do caixão, o corpo da Nona jazia coberto de flores e
nos castiçais, velas acesas. As mulheres com o terço
na mão puxavam orações e cânticos melódicos,
arrastados e tristes. E juntamente com o cheiro da
vela me deixavam mais triste, e colaboravam junto
184

com o horário da madrugada para que a sonolência


invadisse meu corpo.

Enquanto me segurava nas pernas da minha mãe


para não cair de sono. Na sala ao lado vi de relance a
figura do velho Banha. Ele era o vizinho da Nona, um
senhor bonachão, ele devia ter uns cinquenta anos ou
mais. Ele sempre foi sorridente e simpático com todo
mundo.

O senhor Banha estava sentado numa cadeira, com


uma mão na testa que cobria seus olhos e a outra na
barriga, pelo rosto lágrimas estavam escorrendo. Não
pensei que as pessoas ficassem tão transtornadas
pela morte de outras, ainda mais os vizinhos e nem
parente ele era. Mas quem era eu para analisar os
sentimentos das pessoas naquela época, e hoje muito
menos. De longe eu percebia que ele soluçava, e sua
barriga que era bem grande, era a origem do seu
apelido, balançava para todos os lados.

Fiquei olhando aquela imagem daquele grande


senhor Banha, chorando copiosamente pela morte de
minha Nona, e sua barriga balançando. Fiquei
comovida e feliz em saber que minha Nona era
querida pelas pessoas.
185

A imagem do senhor Banha balançando a barriga era


cômica, e me fez começar a sorrir. Minha mãe me
olhou com cara feia e me mandou ir com o meu pai.

Quando entrei na sala onde estavam todos os homens


reunidos, me deparo com todos eles rindo. O senhor
Banha não estava chorando de tristeza pela morte de
minha Nona, ele estava rindo. Enquanto as mulheres
estavam rezando a maioria dos homens estavam na
sala contando piada.

O senhor Banha ria tanto, ele não se aguentava, sua


risada era sem barulho para não incomodar as
orações, mas não tinha como ninguém ficar ali sem
ficar contagiado pelas risadas e pelo jeito daquele
senhor, aquela figura grande que transbordava da
cadeira, e que balançava a barriga, seus olhos
lacrimejavam de tanto dar risada. Meus tios, primos,
parentes distantes e os vizinhos todos se esbaldando
de tanto dar risada.

Naquele tempo os velórios, ou o “guardamento”, eram


motivos de encontro entre parentes distantes e
vizinhos, que aproveitavam o momento para contar
piadas, e a gurizada também adorava e se divertia à
beça vendo os mais velhos contar causos e histórias.
186

Daqui a pouco outra piada foi contada e mais outra.


As piadas e causos paravam quando começavam a
incomodar as rezas e alguma mulher chegava e
chamava todo mundo para rezar.
187

CAPUT MORTUUM
CABEÇA MORTA
E uma luta constante travada com o seu corpo
o sangue flui sem força
a vida presa
uma máquina sem vida
programação repetida diariamente
falta-lhe energia
mesmice que lhe incomoda
seu corpo não se mexe
quer ser livre
músculos lhe prendem
quer voar
as vértebras lhe seguram
direita, esquerda e para frente
pescoço lhe limita
como retroceder?
começar de novo?
neurônios em polvorosa
o corpo tem o poder
quer garantias
manter as mordomias
quer benesses
está mal acostumado
188

a vida segue nesta disputa da opressão sugerida pelo


corpo
a cabeça quer se libertar
e a alma?
dividida em dilemas
bom ou mau, bandido ou mocinho, anjo ou demônio
o que as pessoas irão pensar?
profecias com o mundo acabarão
cabeça morta
esperará?
ou do corpo se livrará?
as pessoas não se importam
um a mais
um a menos
medo da vida
sangue vermelho
cabeça, corpo e alma presos num dilema sem fim
indecifrável labirinto
intrincado destino
a libertação depende de si
da cabeça
da sua cabeça...
189

DELEGADO CALÇA
CURTA
BOTANDO ORDEM NA CIDADE

João Candido foi Delegado “Calça Curta” e exerceu o


cargo uns dois anos na antiga cidade de Timoneira,
atual Almirante Tamandaré, Paraná. Obs.: Delegado
“Calça Curta” é o cargo exercido sem concurso e sem
necessidade de formação em direito, apenas
indicação política.

João Candido, com uma personalidade forte, exerceu


o cargo nos anos de 1957/58, com esmero. Estava na
flor da juventude, 20 anos de idade, um rebelde em
ebulição, determinado e defensor da ordem e da
justiça, não se deixou influenciar pelo cargo e nem
por quem o indicou, os políticos. Cumpriu seu dever
com responsabilidade seguindo as normas e regras
existentes, ou quase.

CELA TRÊS

Delegacia, quarta feira, 10 horas da manhã o


delegado João chama o cabo Rosa e determina:
190

- Cabo Rosa tá vendo aqueles dois casais ali na


recepção?

- Sim, doutor João! Respondeu o cabo Rosa.

- Trancafia todos na cela três! Disse o delegado.

O cabo Rosa surpreso perguntou:


- As mulheres também na mesma cela?

- Sim. Tranca todos eles na mesma cela, lá na três!


Respondeu.

Cabo Rosa não questionou a ordem dada pelo jovem


delegado, fechou os dois casais na cela três.

Os casais se indignaram. Não entenderem nada e o


cabo Rosa só respondia que era ordens do delegado.

Os dois casais começaram a berrar da cela chamando


pelo delegado.

O delegado apareceu e foi aquela choradeira:


- Doto João, fui eu que dei queixa... mas o soldado
prendeu nóis, era pra prender só o seo Amadeo...
191

- Eu não fiz nada seo delegado, é seu Venceslau que


não conserta a cerca do lado dele...

Na segunda feira seu Venceslau, um polaco nervoso


prestou queixa contra seu vizinho, o Amadeo. O
delegado notificou os dois vizinhos para comparecem
quarta-feira às 10 horas da manhã, e deixou bem
claro uma condição para ocorrer a audiência: o
reclamante e o reclamado deviam comparecer
acompanhados das esposas.

O delegado João Respondeu cortando as reclamações:

- Fui eu que mandei prender vocês... eu tô cansado


de ficar ouvindo briguinha de vizinho. Tenho mais o
que fazer do que ficar escutando picuinha por causa
de porco, galinha, pato, ganso, cabrito ou vaca, que
extrapolam a cerca e comem a horta ou a roça do
outro e vocês não se entendem. Vocês agora vão ter
todo o tempo do mundo para conversar aqui na cela
e tentarem se acertar, quando vocês se resolverem
solto vocês!

- E se não se acertarem, vão passar a noite na cadeia!


Sentenciou o delegado João que voltou para seu
gabinete.
192

Meia hora depois o cabo Rosa chama o delegado:

- O pessoal da sala três tão chamando o senhor.

- Traga eles aqui! Disse o delegado.

Os casais chegaram falando:

- Tudo resolvido seo delegado, já se acertemo e cada


um vai fazer e cuidar do seu lado da cerca e amarrar
os animais!

Depois que os casais foram embora, o Delegado João


fala para o cabo Rosa:
- Aposto com você que quando chegaram nem se
olhavam, agora devem ta marcando o almoço de
domingo junto. Nada que uma boa conversa
reservada para as pessoas resolverem os seus
problemas e picuinhas do dia a dia hein! Vai
aprendendo Rosa, vai aprendendo! Se não trazer as
mulheres, estes cabeças de porungo não resolvem
nada...

TRILHO DO TREM

No bairro Cachoeira o delegado chega na barraca com


o distintivo na mão e ordena para o bodegueiro:
193

- Boa tarde senhor... retire todas estas garrafas de


pinga e encaixote!

O dono da barraca sem entender o que se passava e


vendo aquele monte de policiais começa a retirar
todas as garrafas de cachaça. E pergunta:
- Os potes de paçoca e rolmops eu deixo ou encaixoto?

O delegado João responde seco:


- Sim, guarda tudo! E rápido se não quiser perder
tudo!

A barraca era minúscula, de madeira, tinha uma


porta e uma única janela por onde era servida a
freguesia. Na janela, uma tábua era o balcão, junto
estavam os potes de paçoca e rolmops. A barraca
acomodava somente uma única pessoa, o bodegueiro.
Na parede atrás do bodegueiro ficavam expostas, em
tábuas que serviam de estante, várias garrafas de
bebidas quentes: cachaças, batidas, conhaques e
licores. A barraca não tinha alvará e nenhum tipo de
licença da prefeitura.

A barraca ficava num barranco. Embaixo ficava a


ferrovia e o trilho do trem.
194

As garrafas e os potes estavam amontoados alguns


passos da barraca, o bodegueiro parado do lado delas.

- Me ajudem aqui! Chamou o delegado.

Os policias cercaram a barraca. De um lado o


delegado deu a ordem:

- Eu pego deste lado e vocês cada um numa ponta.


Vamos levar até próximo do barranco!

O bodegueiro observava a cena, sem entender a


intenção do delegado.

Deram três passos carregando a barraca. O delegado


falou:

- No três a gente joga ... 1 ... 2 ... 3...

O bodegueiro arregalou os olhos, e não teve outra


reação, não disse nada.

A barraca foi rolando barranco abaixo. As telhas


quebraram e as tábuas se partiram. Do lado da
ferrovia, do trilho do trem, restou um amontoado de
lixo.
195

O Delegado chamou o bodegueiro, olhou bem firme


nos olhos dele e sentenciou:

- Tá vendo o que sobrou da tua barraca? Toda semana


temos que atender ocorrência porque as pessoas
bebem, depois caem e dormem em cima dos trilhos do
trem ali na frente. E volte e meia tem algum bêbado
atropelado pelo trem! E quem vende esta porcaria é
você!

- Se te pegarmos novamente vendendo cachaça no


lado da ferrovia e dos trilhos de trem, tuas cachaças
vão tá junto com a barraca e você vai preso. Tenha
uma boa tarde!
196

SOBAKA - UMA
LENDA DA FAMÍLIA
CZORNEI
A festa começou cedo com a bênção de Deus para os
noivos na capela da comunidade de Rodeiozinho,
interior do município de Papanduva, e os convidados,
descendentes de polacos e ucranianos, foram
recepcionados no sítio dos pais da noiva.

No cardápio do almoço o tradicional churrasco em


espeto de madeira, assado no brasido da lenha de
guamirim e bracatinga, acompanhado de pierogi,
haluske, maionese, saladas e broa. Para beber
cachaça, cerveja e gasosa vermelha.

O sítio era ao lado da estrada geral que corta a cidade,


em frente uma pedreira. A criançada corria faceira
naquele sábado de sol de final de outono.
- Paiê, paiê, podemos ir com o Geraldo tratar as
galinhas e os porco? A mãe deixou, a mãe deixou!
Falaram eufóricos e ao mesmo tempo Marcos e
Telinho.
197

Seo Líbio, o pai, entretido com a conversa dos


parentes, respondeu:
- Então vão, mas só vocês dois, os pequenos ficam
com a mãe!

Geraldo avisou:
- Nós vamos pela trilha no meio do mato tio, daí
encurtamos um bom trecho do caminho! Mas
primeiro temos que despistar os outros, que eu não
vou ficar carregando os menorzinho depois na volta!

Geraldo com 16 anos de idade, primo do Marcos com


10 e do Telinho com 8 anos, suaram, ou quase, para
tentar despistar os pequenos. Um copo de gasosa
vermelha bastou para os gêmeos Dane e Nana.

Tita com 6 anos não se deixou enganar tão fácil. Virou


um grude. Com uma das mãos agarrou a camiseta do
Marcos e não largou. Nem refrigerante, nem tentar as
brincadeiras de se esconder ou pega-pega. Marcos
incomodado com a situação tirou a mão do Tita de
sua blusa e deu um empurrão no irmão, que caiu
sentado no chão. Tita ficou choramingando enquanto
corriam desesperadamente e embrenharam-se num
carreiro fechado atrás do paiol.
198

Enfim livres, o sol ainda brilhava quando adentraram


a mata. Uma aventura diferente para Marcos e
Telinho. Geraldo tentava mostrar os pássaros que
cantavam protegidos pelas folhas e galhos das árvores
e explicava qual canto era de cada pássaro. Paravam
a todo instante para ver as flores coloridas
penduradas nos cipós, vegetação da mata atlântica e
escutar os sons alegres e divertidos da mata.

Continuavam caminhando animadamente quando


Geraldo olhando ao redor falou:
- Cadê o Telinho???

Olharam para trás não viam sinal dele. Voltaram


alguns metros na mata fechada e densa, encontraram
Telinho parado, olhos vidrados, não se mexia, com
cara de assustado, quieto, quase inconsciente.
Marcos irritado perguntou empurrando-o:
- Por que você parou???

Despertando, Telinho, gaguejou respondendo e


apontando:
- Borboletas...

Uma imagem hipnotizante de várias borboletas


gigantes vermelhas que circundavam em espiral uma
árvore seca, a cena lembrava uma árvore colorida de
199

natal. Marcos quis ir pegar uma, Geraldo que estava


pálido, segurou-o. Pensou, mas não disse para os
primos que isso não era um bom sinal:
- Vamos! Temos que caminhar mais rápido. Tamo na
metade do caminho e se continuar neste ritmo vamos
chegar no escuro lá em casa!

Saíram rapidamente e continuaram caminhando, o


sol não penetrava a mata e a escuridão escondia o
carreiro enquanto as borboletas vermelhas cada vez
mais rápidas circundavam a árvore seca.

Na escuridão, os tropicões nos galhos e os estalar das


folhas secas os assustavam. A conversa parou e um
silêncio perturbador pairou sobre eles. O tempo
parecia não passar.
- Já tô vendo lá no fundo a luz das casas!!! Disse
aliviado Geraldo.

A quietude foi quebrada pela conversa animada de


novo. Saíram da mata entraram na estrada de chão
batido e o sol ainda estava desaparecendo atrás da
montanha. Chegaram na casa. Jogaram milho para
as galinhas e para os porcos. Tomaram água, foram
até a despensa abriram um pote de bolachas pintadas
comemorativas da páscoa e saíram falando e
comendo.
200

O sol não se via mais e a escuridão agora tomava


conta de tudo. Tinham que voltar para o casamento.
Geraldo falou que por segurança iriam voltar pela
estrada.

Na estrada rural não tinha iluminação e eles não


tinham lanterna. Enquanto comiam as últimas
bolachas as poucas luzes das casas ficaram para trás.
O cansaço bateu. Uma quietude dominou. Como
sussurros, alguns esparsos barulhos de animais se
escutavam ao longe. A penumbra da noite trouxe o
frio que indicava a chegada do inverno. Caminhavam
de braços cruzados, acelerando os passos para
aquecer, saíram sem blusa.

No meio da escuridão o som de um caminhar de uma


pessoa de botas despertou Geraldo. Olhando ao redor
só viu Marcos. Parou. Marcos parou também. Os dois
olhando para trás viram uma forte névoa que se
aproximava. Alguns passos atrás deles, Telinho
olhava a névoa.

O barulho dos passos das botas ao encontro dos


pedregulhos na estrada mantinha um padrão
monótono e pesado. Chamaram Telinho, que
permaneceu estático.
201

Geraldo gritou com medo:


- Quem vem lá?

Não houve resposta. Geraldo estremeceu. A névoa


densa começou a formar um redemoinho inverso ao
redor do Telinho, que estava paralisado, braços
abaixados, olhos azuis arregalados, inertes, pálido,
mas suas bochechas estavam vermelhas, sua
respiração lenta. Seu cabelo loiro dançava conforme
o redemoinho.

Marcos olhava aquela cena assustado. Sem pensar


correu, pegou o braço de seu irmão, sentiu aquele
calafrio do braço gelado e o puxou. Telinho não se
moveu. Puxou novamente. Nada. Telinho estava
rígido. A batida da bota na estrada continuava se
aproximando, mesmo ritmo de passos pesados, não
se via ninguém, a névoa ficava mais forte. O
redemoinho ao redor aumentava. Na terceira
tentativa, um puxão forte e Telinho se moveu. O
redemoinho se dissipou na mesma hora.

Marcos correu puxando o braço do irmão,


arrastando-o pela estrada. Quando passaram por
Geraldo, Telinho estava quase desperto. Corriam
desesperados perseguidos pela névoa e pelo som da
bota. A calmaria da noite foi quebrada pelos passos
202

dos três correndo e pelo barulho compassado da bota


nos pedregulhos da estrada.

Após algum tempo de correria desvairada, no meio


daquela escuridão total vislumbraram ao longe uma
leve luz do único poste que iluminava a entrada da
casa onde acontecia o casamento. Ecoava na pedreira
o som de gaita, do triangulo e do bumbo do baile que
acontecia no paiol, mas eles não estavam ouvindo
essa melodia.

Geraldo falou esbaforido:


- Vamos... continuem correndo... falta pouco.

Ofegantes, chegaram ao quintal da casa. Passaram


correndo por entre as pessoas, derrubaram alguns
copos de bebidas. Não escutaram alguém reclamar:
- Eita criançada, vão brincar de se esconder em outro
lugar!!!

Não escutavam a música que animava o batido das


botas no assoalho de madeira do paiol e os berros do
jogo de truco. Agacharam atrás de um monte de lenha
para secar o fumo da estufa. Ninguém deu atenção
para os piás escondidos. Por entre os toco de lenha
conseguiam ver a estrada iluminada pelo poste.
Angustiados olhavam e aguardavam para ver quem
203

era a pessoa que caminhava atrás deles. Quem era o


homem de botas. A névoa chegou. Eles escutavam
somente a batida das botas no chão da estrada.

Tensão. A luz do poste piscou uma única vez. Surge


uma imagem na névoa. Com olhos arregalados
Marcos e Geraldo se olharam. Telinho estava
estagnado novamente, seus olhos azuis
esbugalhados. Com passos pesados e ritmados, o
irritante barulho de botas em contato com as pedras
continuava, enquanto um cachorro preto passava
lentamente na estrada.

Um cachorro grande, magro e ao mesmo tempo com


um corpo robusto e de proporções alongadas. Não
tinha mais ninguém com ele. O cachorro continuou
subindo a estrada olhando para frente, quando
chegou embaixo da luz do poste, virou sua cabeça em
direção ao monte de lenha fixando seus olhos pretos
onde eles estavam. Um olhar penetrante, frio, cheio
de rancor e ódio.

Desespero. Geraldo e Marcos soltaram um grito sem


som, um grito mudo, que perturbou a alma e fez se
contorcerem de dor e angústia. Telinho travado. O
cachorro continuava andando pela estrada e com a
204

cabeça virada olhando fixamente para o monte de


lenha.

No céu espocaram os fogos de artifício do casamento,


o paredão da pedreira ecoava seus estrondos. O
cachorro preto mostrou com raiva seus dentes para
eles e correu desaparecendo na escuridão da estrada.
A névoa se dissipou. Marcos e Geraldo voltaram ao
normal escutando o som do baile e os gritos do jogo
do truco. Marcos ao levantar bateu a cabeça num
pedaço de toco de lenha e deu um grito, o que acordou
Telinho que estava imóvel ainda.

Os três assustados estavam calados. De repente uma


voz grossa e braba perguntou:
- Onde vocês estavam? Demoraram hein!!! Era seo
Líbio.

Dona Miguelina, a mãe, vendo as crianças brancas e


assustadas vinha logo atrás do seo Líbio e perguntou
preocupada:
- Tá tudo bem? Aconteceu alguma coisa???

Marcos e Geraldo se olharam sem saber o que falar,


Telinho resmungou:
- O cachorro... o cachorro preto...
205

Dona Miguelina esmoreceu. Pálida, agarrou Telinho e


abraçando forte disse:
- O cachorro preto te achou de novo!!! Mas eu não vou
deixar ele te levar!!!

... continua ...


206

UM CASAMENTO
CONVITE: ERA UMA VEZ ...

Numa fria selva de pedra, uma linda donzela está


aprisionada no seu castelo, seu nome é Mari. Seus
guardas são grossos livros de cores sóbrias, letras
miúdas e figuras estranhas, que lhe impedem de sair
para ver o sol brilhar no azul do céu. A bruxa malvada
havia escondido a chave do coração da linda donzela
em algum recanto escondido do país.

Enquanto isso noutro lado do mundo, Dane um jovem


aventureiro, escala montanhas, quilômetros percorre
lentamente em seu corcel prateado de duas rodas,
passa por praias desertas, não encontra nada na
cidade abandonada, cachoeiras gigantes aparecem no
meio do seu caminho, mergulha no lago azul e sai em
uma caverna dentro de floresta de árvores milenares,
atravessa mares caudalosos, do barco os peixes não
consegue pegar e com seus braços nada até a praia
atrás de uma água de coco.

- Para salvar a jovem donzela Mari?

Você perguntaria e eu então responderia:


207

- Não! Na verdade ele está aproveitando a vida


enquanto é solteiro!

A fada madrinha apareceu no "retângulo mágico" e


mostrou o herói que poderia libertar a donzela Mari.
A donzela Mari mandou um "scrap" ao aventureiro
Dane.

Depois de cair do cavalo e ser derrubado do gigante


“espinhudo”, o aventureiro Dane encontrou as pistas.
Achou a chave e abriu o coração da donzela Mari.

- E viveram felizes para sempre?

- Bem, ainda não! Você achou que iria ser tão fácil
assim né! Você vai ter que ajudar o aventureiro Dane
e a donzela Mari.

Para Mari & Dane viverem felizes para sempre, dia 17


de março de 2012, você terá que enfrentar a Cascavel,
decifrar o mapa e encontrar a chácara perdida no
meio da floresta.

A história deles continua...


208

CONVITE RECUSADO

Tudo começou bem antes do evento em Cascavel,


quando os noivos Mari e Dane estavam nos
preparativos e nos convites dos futuros padrinhos.
Iniciariam os convites com um jantar na casa do tio
Paulão e tia Telma.

Após jantarem uma deliciosa carne assada no espeto


ao fogo de brasas incandescentes e alguns litros de
cervejas consumidos, Dane e Mari, se preparavam
para fazer o convite.

Estavam emocionados, ou um pouco embriagados e


as lágrimas surgindo de “quietinho” no canto dos
olhos, os dois quase em coro falaram:

- Nós escolhemos vocês... (pausa longa) tia Telma e tio


Paulão (limpa a garganta)... para serem nossos
padrinhos de casamento que acontecerá lá em
Cascavel...

Aquele clima meloso e emocionante dos noivos foi


quebrado de supetão por tia Telma:

- Eu não quero ser madrinha, e não vou em


casamento nenhum... vocês dois estão de
209

brincadeira, ir para Cascavel só por causa de um


casamento, eu não vou não!!!

Tio Paulão arregalou os olhos com a reação da esposa.


Na sala todos se olharam quando tia Telma saiu,
paralisados e atônitos com a reação. Após alguns
minutos Dane e Mari foram tentar argumentar:

- Pô tia, vocês são os únicos tios que vamos chamar


para padrinhos... e a tia vai fazer esta desfeita!!

Tio Paulão, tentava contornar a situação:


- Não! Não! Não!... Acho que a gente vai né Telma?

Tia Telma respondia, aflita:


- Eu não vou, Paulo se você quiser ir... vá sozinho... o
Lucas também não vai!!! e o Fábio só vai se eu
deixar... eu não quero ir e pronto, não tem mais
discussão Paulo!!!

Paulo ainda tentou:


- Mas Telma... é o nosso...

Telma abruptamente cortou:


- Não tem mais e nem menos... não quero ouvir mais
falar disso!!!
210

Mari e Dane ficaram estupefatos, sem palavras,


pálidos, brancos, mais brancos do que já são, com a
negativa de tia Telma em ir ao casamento.

LEVANDO O DJ EMBORA

Após o entrave para escolha dos padrinhos tia Telma


aceitou a incumbência de ser a madrinha dos noivos.
Claro que houve um suborno, alguns agrados
monetários e financeiros e muita lábia. E isto
demorou um bom tempo, mas como vocês não
querem ler esta novela mexicana que levará 187
capítulos, vou direto ao que interessa, como a tia
Telma tentou acabar com a festa de casamento.

No dia do casamento, após a choradeira na entrada


do noivo, da noiva, aquela ladainha igual todos os
casamentos, aquele blá, blá, blá do padre, os
aplausos emocionados dos convidados, aquela pura
beleza, emoção e muita foto que fazem parte de um
esquema ardiloso que leva quase duas horas.

O intuito deste esquema e de toda esta arte


cerimonialística é para que os convidados comentem
de como estava bonito o casamento e principalmente
que quando chegue a hora da comilança, os
211

convidados por estarem morrendo de fome, achem


uma delícia o banquete servido.

Após a valsa dos noivos, foi servido o bolo, e começou


o baile onde todos os presentes foram convidados a
bailar na pista especialmente montada para o evento,
com DJ exclusivamente convidado da capital
Curitibana, DJ Auo - um DJ especialista em poperô
dos países escandinavos e bavários da europa central
e medieval.

Enquanto alguns convidados se mostravam aptos


para a arte da dança, outros já estavam cansados
devido a longa distância percorrida para enfrentar a
Cascavel, e depois ainda mais encontrar a chácara no
meio da floresta... era longe hein... bem longe... e
também devido aos vários copos de bebidas
embriagantes que foram servidas durante o jantar
juntamente com variados tipos de saladas frias, 18
pratos quentes e vários porcos assados inteiros.

Enquanto a pista bombava em alguns momentos,


noutros o DJ escorregava nas músicas e esfriava o
ânimo do público presente. Devido a música que não
agradava nem aos gregos e nem troianos, alguns
convidados irritados com o DJ se deslocavam para o
estacionamento, pegavam seus veículos automotores
212

de última geração e se deslocavam para os hotéis


mais renomados da cidade, e para os que moravam
em Cascavel, acho que voltaram para suas
residências oficiais, e se formos analisar friamente
alguns foram para a esbórnia cascavelense, puteiros,
botecos de quinta categoria, mas isso é com o
colunista social da cidade que vai comentar os
detalhes.

Os convidados que se deslocaram de ônibus, entre


eles, crianças, mulheres não bebedores de bebidas
embriagantes, comunistas evangélicos na sua
maioria, já se encontravam no veículo estacionado.
Entretanto, algumas pessoas que foram de ônibus
queriam aproveitar a festa, encher o piquá, extravasar
as emoções, dançar e rebolar até o chão, soltando a
franga aprisionada no corpo.

Mas estes já informaram antecipadamente que não


voltariam com o ônibus. Sobrou para os oras noivos,
no final da festa, em vez de aproveitarem a primeira
noite de núpcias, foram obrigados a levar estes
convidados embriagados e sem carona, até o centro
da cidade.

Tio Paulão e tia Telma, pais do DJ, estavam se


despedindo dos noivos, agradecendo, aquela melação
213

de final de casamento. A pista estava bombando


naquele momento, o DJ Auo tinha acertado quatro
músicas poperozão daquelas em que o público fica na
maior animação, quando tia Telma falou para Mari e
Dane:

- O Auo vai embora com a gente! Ele veio de ônibus e


vai voltar de ônibus, tá!

Dane e Mari, ainda falaram:


- Mas tia, ele é o DJ, sem ele a festa acaba, agora são
apenas onze da noite tia, como que fica a festa que
está só começando, o pessoal agora que começou
gostar das músicas!

Tia Telma retrucou exaltada:


- Ele veio de ônibus, ele vai voltar de ônibus. Ele veio
comigo e vai voltar comigo. Imaginar meu garoto
sozinho com um bando de desconhecidos no meio do
nada? Nem pensar. Como que ele vai voltar de
madrugada deste fim de mundo, não tem táxi aqui?
E nem vai ter carona, porque todos os carros estão
lotados!

E falou se dirigindo ao tio Paulão:


214

- E Paulo, vá lá pegar o Auo e encaixote aqueles


negócios que ele trouxe. Ele gastou uma fortuna
nestes equipamentos pra deixar jogado por aí.

Tio Paulão não iria mexer com a fera neste momento,


ele que iria ter que escutar a noite toda e na viagem
de retorno também, e começou a se deslocar para o
palco onde estava o DJ. DJ Auo tem somente 25 anos
de idade.

Dane falou:
- Mas tia o Rizada vai ficar, e aí?

Telma falou:
- O Rizada já é experiente, malandro, sabe se virar...
o Auo não... ele é inocente, não conhece a vida ainda,
eu tenho que cuidar dele, e só eu sei o que é melhor
para ele, e ele vai embora comigo no ônibus, não
quero nem saber!

Tia Telma estava esquentada, não queria conversa.


Tio Paulão enquanto se deslocava encontrou o pai da
noiva, sogro do Dane.

E enquanto Dane e Mari tentavam amansar a fera,


chegou o tio Paulão com o sogro e a sogra do Dane.
Eles se comprometeram a levar o DJ AUo, sã e salvo
215

até o hotel no final da festa, ele iria com total


segurança, com veículo apropriado e com todos os
equipamentos juntos.

Após ouvir o pedido e as garantias, e percebendo que


não eram festeiros igual aos noivos, tia Telma falou,
para alívio do tio Paulão:

- Mas vocês me garantem que não vai acontecer nada


com meu filhinho Auo, ele vai chegar bem no hotel?

E todos em coro falaram:


- Sim, nós prometemos!

E convencida pelas garantias dadas, Tia Telma e Tio


Paulão foram embora de ônibus e a festa continuou
com o DJ tocando os maiores sucessos das pistas, ou
quase sucessos.

Auo, após os últimos impertinentes convidados se


retirarem, desmontou sua aparelhagem, acordou sua
namorada que estava dormindo no puf em formato de
bola, e foi para o hotel com o sogro do Dane. Como
um filme com final feliz, na madrugada fria e
estrelada aquela cena romântica: Auo abraçado a sua
namorada, aproveitava o vento frio para refrescar-se,
um sorriso de satisfação estampado no rosto, tinha
216

arrasado na festa com suas músicas. O cheiro dos


estrumes de porcos, carneiros e vacas, que
impregnava a maravalha da carroceria da camionete,
não lhe incomodava.

PREPARATIVOS: A REPRIMENDA DO PAI DO


NOIVO

Nos momentos que antecediam a entrada dos noivos


e o início da cerimônia de casamento, os convidados,
todos serelepes, faceiros e sorridentes em seus mais
novos trajes de festa adquiridos em até cinco vezes
sem juros no cartão de crédito, aguardavam ansiosos
pela entrada triunfal e espetacular do noivo e da
noiva.

Enquanto a conversa rolava e o papo ficava em dia,


surgiam comentários sobre os trajes dos demais
convidados e que chamou a atenção, como todo
casamento, é o estilo dos penteados. Um dos cabelos
mais comentados era do irmão do noivo, o bonitão do
StressTeco.

As más línguas comentavam que antes da cerimônia


o cabelo dele estava uma gadeia, ele tinha cabelo
encaracolado, mas depois de fazer uma chapinha
holandesa, misturada com o relaxamento capilar
217

africano, onde aplicou nos dois tratamentos uma boa


quantia de dinheiro, ele estava com o cabelo liso,
estilo vaca lambeu.

Na viagem até Cascavel ele foi a bola da vez, sofreu e


muito pelos comentários e piadinhas maldosas de
seus melhores amigos. Sorte do pessoal que ele é uma
pessoa calma, tranquila, serena, e não faz jus ao
apelido de StressTeco. Se estes comentários fossem
sobre o Ukas haveria uma tragédia dentro do ônibus
com uns sete corpos estendidos no chão.

StressTeco não ligava para os comentários de he-


man, michel teló, principe do desenho shrek, e vamos
parar por aí. Ele achava que era inveja, pura inveja,
pois os donos dos comentários em breve seriam ou já
eram carecas. Alguns inclusive fazem tratamento há
vários anos, e o pior é que quem banca o tratamento
é a vó Túnica. Pobre vó Túnica desperdiçando
dinheiro à toa, o rapaz vai ficar careca.

No casamento ele surpreendeu todo mundo ao


aparecer com o cabelo certinho, arrumadinho,
bonitinho, nem um fio sobrando, espetado ou
armado. Seus amigos ficaram de queixo caído,
boquiabertos, embasbacados.
218

Dos filmes antigos, agora ele parecia gangster da


máfia ucraniana: cabelo penteado para trás com dois
quilos de gel para fixar e domar os rebeldes,
adversários e inimigos. Só faltou o charuto e os
capangas gordos e carrancudos ao lado. O belo traje
escolhido a dedo e que deve ter custado os olhos da
cara, uma fortuna, dizem as mesmas más línguas,
ajudou compor o figurino.

StressTeco geralmente não se preocupava com


questão de beleza, de se arrumar e se vestir, fazer a
barba, pentear o cabelo e todos concordavam que o
mérito do StressTeco estar apresentável era de sua
esposa, que conseguiu dominar o indivíduo. Utilizou
da arte suave, aprendida no jiu-jitsu para convencer
seu marido:

- Ou você se endireita, me obedece e faz o que peço,


ou vai levar um kanibasami!

Então ele adotou a seguinte filosofia de vida: você


quer ter razão ou quer ser feliz?... Daí vocês vão
perguntar: - Que horas você vai falar sobre a
reprimenda do pai do noivo na esposa do StressTeco?
219

Daí eu respondo: - Vocês não têm paciência, não é?


estou fazendo uma introdução básica para situá-los
no contexto do que ora virá a ser descrito.

Vamos ao que lhes interessa então. Enquanto ainda


aguardavam o início da cerimônia, num dos
encontros casuais entre o padrinho do Auo e a esposa
do StressTeco, (observação o padrinho do Auo é o pai
do noivo e do StressTeco), ele falou para ela:
- Só você e o StressTeco que fizeram fiasqueira!!!

Auo diz que seu padrinho e pai do noivo e do


StressTeco tem um estilo próprio e bretão de cobrar
as coisas:
- Ele responderia palavras inteiras elevando ao
logarítimo eneperiano (e = 2,73), cara, esse meu
padrinho é fera... ele e meu pai, como diria Galvão,
são os gladiadores do terceiro milênio!!!

A esposa do StressTeco, malandra como ela só, disse:


- Hã? Não escutei direito por causa do barulho?

O pai do noivo disse:


- Só você e o StressTeco que fizeram fiasqueira e não
fizeram festa de casamento!!!

O pai do noivo continuou:


220

- Quando é que vocês vão casar na igreja? Tamo


esperando... agora só falta vocês!!! Que que tá
faltando, aumenta a pressão naquele bundão do
StressTeco!!! Queremos festa até o final do ano, senão
a herança pode não sobrar para vocês!!!

Ela sem saber o que responder ou não tendo saída,


calou-se indignada pela cobrança do sogrão. Seus
argumentos, artifícios e ameaças não surtiram o
efeito como desejado no StressTeco, ele sempre
encontrava uma resposta para adiar a festa.

Quando encontrou seu marido StressTeco, comentou


o ocorrido e ainda disse:
- Viu, você fica me enrolando e não quer fazer festa,
agora vem a cobrança pra cima de mim, quando o
culpado é você!!! E como fica a nossa herança, tamo
precisando de dinheiro, lembra?

StressTeco mais uma vez desconversou, e para


mudarem o rumo da conversa, ele foge do assunto
como o ratinho esperto foge da ratoeira com queijo,
disse mentirosamente:
- Olha lá o noivo, tá entrando!

Ela olhou não viu nada e disse rispidamente e com


olhar faiscando:
221

- Não me enrola senhor StressTeco! você sabe muito


bem e sabe que eu sempre fiz pressão para fazermos
a festa para nossos parentes e amigos, e não me
venha com esta estória que vamos fazer uma big,
small festa de bodas de ouro... eu quero festa
enquanto ainda consigo entrar nestes lindos vestidos
de modelo de revista!!!

StressTeco respondeu contrariado:


- Tá, tá, tá... depois nós conversa! e dinheiro faço mais
um empréstimo no banco e depois vemos como pagar
ué!!! Não se preocupe deixa comigo a questão da
grana, dou um jeito!!!

Ela disse ameaçando-o:


- Sei, sei, sei... já conheço esta estória já faz mais de
3 anos... mas se cuida rapazinho, fique dando sopa
pro azar... fique!!!

Após este fato, ela tentou várias vezes falar sobre o


assunto, e StressTeco brilhantemente continua a se
esquivar em dar uma resposta que satisfaça sua
esposa e aos parentes e amigos. Na verdade, a festa
ele quer fazer, mas ele tem medo é da igreja e medo
de chegar tão perto do altar. Por que? você
perguntaria. Eu responderia: - Isto é uma outra
estória!
222

A CERIMÔNIA: O CHORO DESCONTROLADO DO


NOIVO

Todos os presentes viram quando o noivo chorava


copiosamente duramente a cerimônia, e aposto que
todos pensavam que era a emoção “do momento”, não
é? As lágrimas que molhavam sua túnica clara eram
de pura felicidade desta união que até que enfim se
realizaria? De sua bela noiva que estava
deslumbrante naquele vestido branco? Da alegria de
ter seus amigos e parentes nesta bela comemoração?

Mas a estória não é bem essa.

Nos dias que antecederam a cerimônia, Dane, o então


noivo se encontrava na chácara para organizar,
preparar o local para a cerimônia e para receber os
ilustres convidados. Serviços como roçar, capinar,
pintar, cortar a grama, fazer a cerca, organizar o
estacionamento etc e tal, trabalho de qualquer noivo
que quer casar, né!?

E vocês pensam que o aventureiro cansou de tanto


trabalhar nestes dias? Bem, não é de todo uma
inverdade, mas aventureiro é aventureiro, e no calor
dos dias na região de Cascavel, nada mais justo que
um banho no tanque.
223

Mas para um aventureiro, o banho não é só entrar na


água e se refrescar, tem que ter estilo e todos vocês
conhecem o Dane.

Pedreiros trabalhavam na reforma do quiosque no


meio do lago, onde seria a cerimônia, no dia do
casamento estaria tudo pronto, enfeitado com luzes
diversas, flores, vasos, cadeiras. Um dos pedreiros se
deslocava até a chácara de bicicleta.

Numa das tardes que antecederam o casamento, sol


a pino, calor insuportável, Dane e seus parentes
tiveram a brilhante ideia de "emprestar", sem
permissão do pedreiro, a bicicleta barra circular
monark, cor marrom, que estava parada ao lado da
parede da casa.

Pronto!

O serviço parou no período da tarde. Dane foi o


primeiro a sair pedalando a bicicleta com todo o gás,
passava pelo trapiche, transformado naquele
momento numa rampa, e quando chegava no
quiosque, onde sábado todos chorariam, saltava para
dentro do lago. Bicicleta para um lado, corpo para
outro e tchibuuum, água jorrava uns 10 metros junto
224

com alguns peixes, que depois foram aproveitados no


jantar.

E assim, se divertiam no início para se refrescar, mas


todo aventureiro também é um competidor nato,
Dane e seus parentes, começaram a melhorar as
performances, em vez sair pedalando e cair direto no
tanque, começaram a tentar malabarismos e
piruetas, para ver quem fazia jorrar mais água, tudo
isso para a plateia de pedreiros que trabalhavam,
digo, assistiam com aquela vontade de também fazer
a mesma coisa, ou pelo menos entrar na água, mas
como eram contratados para a obra ficaram parados
olhando o espetáculo.

Vai um, vai outro... bicicleta, velocidade a toda,


rampa... e acrobacias aéreas e tchibuuum na água...
Dane Dançado Cara de Choro estava perdendo para
seus parentes nas acrobacias, não tinha conseguido
ganhar em nenhuma das etapas anteriores, já estava
frustrado. Então pensou, calculou, meditou e
resolveu arriscar tudo num salto duplo twist carpado
e disse para ninguém ouvir:

- Quero ver eles me ganhá com essa agora, hihihihi!!!


225

Montou na bicicleta, pedalou como um condenado


fugindo da forca, ganhou velocidade, subiu a rampa
e na hora da pirueta, no momento que tinha que jogar
a bicicleta para o outro lado e ele fazer o salto duplo
twist carpado, o pior aconteceu.

O dedão de batateiro enroscou na bicicleta, ele teve


que dar um chute na bicicleta para poder se
desvencilhar dela, mas ele errou o chute e acertou
com a parte de cima do pé (perto do peito do pé) com
toda sua força no pedal da bicicleta, neste momento
ele gritou horrendamente.

O gritou ecoou pelas montanhas da colônia de São


Roque, e fez o barulho e a algazarra cessar, seus
parentes e pedreiros mudos ficaram naquele
momento, ele conseguiu jogar a bicicleta para o outro
lado e caiu no tanque de costas, fazendo jorrar o
maior volume de água de todos até agora, e a água
entrando pela sua boca, nariz, ouvido, ele agitava os
braços freneticamente, o silêncio sepulcral acabou, só
foi um instante... porque começaram uma gargalhada
geral dos parentes e pedreiros:

- Quaquaquaquaquaquaquaquaqua!

O nosso herói aventureiro saiu da água brabo, e falou:


226

- Porra! Eu quase me afogando e vocês nem pra me


ajudar, “carajos”!

Eles comentaram não se aguentando ainda de tanto


rir:

- É que foi muito divertido ver você cair


quaquaquaquaqua

- Foi sensacional seu tombo! quaquaquaquaqua

- Piá... nóis tinha que te filmado... nóis ia ganhá milão


enviando pro Faustão quaquaquaquaquaqua!

Nisso outro competidor foi fazer sua perfomance e


esqueceram nosso herói aventureiro que jazia deitado
na grama, pálido!

Olhou para seu pé, tinha uma mancha branca na pele


em cima do pé, uns 10 centímetros quadrados.
Pensou: - Ainda bem que não foi nada!

Mas nisso viu começar a escorrer uma gota de sangue


debaixo da pele, e percebeu que a pele estava solta,
ergueu a ponta e teve um calafrio, ficou branco, quase
desmaiou.
227

Por baixo daquela pele branca aparecia a carne viva.


O chute que ele deu com o pé no pedal da bicicleta fez
arrebentar a pele rasgando-a, o berro que ele deu foi
da pele rasgando junto com a carne. Ele arrancou a
pele que estava presa só por um fio, e jorrava sangue.
Para ele a brincadeira acabou.

No dia do casamento o choro compulsivo não foi pela


emoção, foi da ferida viva que lhe ardia, doía, e o tênis
apertado que sua noiva havia lhe dado para o casório,
lhe comprimia ainda mais o pé. A dor era insuportável
e ele não teve como não segurar o choro!

E vocês perceberam que a valsa também foi reduzida


para somente alguns segundos, bem como todas as
outras danças (forró, axé, pop, gauchesca, antigas
etc. e tal, só foram alguns segundos) nenhuma
música dançada completa, vocês acham que era por
quê? porque seu pé estava ardendo, doendo e ele não
conseguia dançar mais.
228

VOVOZÃO

o vovozão larga da minha mão


pisa fundo no motorzão
a viagem é longa
e os noivo não vão esperar
o vovozão larga do meu pé
já chega minha muié
que quer me dá um pontapé
o vovozão não dorme não
temo fio pra criá
sogra pra apurrinhá
e conta pra pagá
o vovozão segura firme no volante
senão o líquido vai derramar
o burg vai chorar
o cascão vai espernear
o Auo não vai ligar
...eita pragaiada grita o tio carlão
chega de bagunça
deixa o vovozão em paz
pra criançada roncá
vamo vovozão...
que a pinga tá acabando
o sono tá chegando
e o sol já tá incomodando...
229
230

Quero gritar e não me deixa, quero levantar e me segura,


não me deixa respirar, me sufoca, me reprime... não me
deixa viver. Preciso vencer meu próprio eu.

Eleutério Czornei

Você também pode gostar