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Slavoj Žižek
In: ZIZEK, S. Nada de sexo, por favor, somos pós-humanos. In: Clique, Revista dos Institutos Brasileiros de Psicanálise do Campo Freudiano, Belo
Foto: Reprodução
Quase quatro décadas atrás, Michel Foucault descartou o ”homem” como uma figura na areia que
agora está sendo lavada, introduzindo o tema (então) na moda da “morte do homem”. Embora
Houellebecq encene esse desaparecimento em termos literais muito mais ingênuos, como a
substituição da humanidade por uma nova espécie pós-humana, há um denominador comum entre
os dois: o desaparecimento da diferença sexual. Em seus últimos trabalhos, Foucault vislumbrou o
espaço dos prazeres liberados do Sexo, e somos tentados a afirmar que a sociedade pós-humana de
clones de Houellebecq é a realização do sonho foucaultiano dos Eus que praticam o “uso dos
prazeres”. Embora essa solução seja a fantasia em sua forma mais pura, o impasse ao qual ela reage
é real: em nosso mundo permissivo e “desencantado” pós-moderno, As partículas — o impasse
constitutivo da relação sexual (il n’y a pas de rapport sexuel [não existe relação sexual], de Jacques
Lacan) — parecem atingir aqui seu ápice devastador.
Todos nós conhecemos o famoso “jogo da imitação” de Alan Turing, que deveria servir como teste
para descobrir se uma máquina pode pensar: nos comunicamos com duas interfaces de computador,
fazendo-lhes qualquer pergunta imaginável; atrás de uma das interfaces, há uma pessoa humana
digitando as respostas, enquanto atrás da outra, há uma máquina. Se, com base nas respostas que
obtemos, não podemos distinguir a máquina inteligente do humano inteligente, então, de acordo
com Turing, nosso fracasso prova que as máquinas podem pensar. O que é um pouco menos
conhecido é que, em sua primeira formulação, a questão não era distinguir o humano da máquina,
mas o homem da mulher. Por que esse estranho deslocamento da diferença sexual para a diferença
entre humano e máquina? Isso foi devido a simples excentricidade de Turing (lembre-se de seus
problemas conhecidos por causa de sua homossexualidade)? Segundo alguns intérpretes, a questão
é opor os dois experimentos: uma imitação bem-sucedida das respostas de uma mulher por um
homem (ou vice-versa) não provaria nada, porque a identidade de gênero não depende das
sequências de símbolos, enquanto uma bem-sucedida imitação do humano por uma máquina
provaria que essa máquina pensa, porque “pensar” é, em última análise, a maneira adequada de
sequenciar símbolos… E se, no entanto, a solução para esse enigma for muito mais simples e
radical? E se a diferença sexual não for simplesmente um fato biológico, mas o Real de um
antagonismo que define a humanidade, de modo que, uma vez abolida a diferença sexual, um ser
humano se torna efetivamente indistinguível de uma máquina? Talvez a melhor maneira de
especificar esse papel do amor sexual seja através da noção de reflexividade como “o movimento
pelo qual aquilo que foi usado para gerar um sistema é feito, através de uma perspectiva
modificada, tornando-se parte do sistema que ele gera”. [1]
Essa aparência do movimento gerador dentro do sistema gerado comumente toma a forma de seu
oposto; digamos, no estágio posterior de um processo revolucionário, quando a Revolução começa
a devorar seus próprios filhos, o agente político que efetivamente pôs em movimento o processo é
renegado ao papel de seu principal obstáculo, dos vacilantes ou traidores declarados que não estão
prontos para seguir a lógica revolucionária à sua conclusão. Na mesma linha, não é como se, uma
vez plenamente estabelecida a ordem sócio-simbólica, a própria dimensão que introduziu a atitude
“transcendente” que define o ser humano, a saber, a sexualidade, a paixão sexual exclusivamente
humana aparece como seu oposto, como principal obstáculo à elevação do ser humano à
espiritualidade pura, como aquilo que o amarra à inércia da existência corporal? Por esta razão, o
fim da sexualidade na tão celebrada entidade de autoclonagem “pós-humana” que deve emergir em
breve, longe de abrir caminho para a espiritualidade pura, sinalizará simultaneamente o fim do que
é tradicionalmente designado como a transcendência espiritual exclusivamente humana. Toda a
celebração das novas possibilidades “aumentadas” de vida sexual que a Realidade Virtual oferece
não pode esconder o fato de que, uma vez que a clonagem suplementa a diferença sexual, o jogo
acabou.
E, aliás, com todo o foco nas novas experiências de prazer que se avizinham com o
desenvolvimento da Realidade Virtual (implantes neuronais diretos, etc.), que tal novas
possibilidades “aprimoradas” de tortura? A biogenética e a Realidade Virtual combinadas não abrem
novos e inéditos horizontes de extensão de nossa capacidade de suportar a dor (ampliando nossa
capacidade sensorial de sustentar a dor, inventando novas formas de infligi-la)? — será que a
imagem sadiana final de um “morto-vivo” vítima de tortura, capaz de suportar dores sem fim sem
ter à sua disposição uma fuga através da morte, também está esperando para se tornar realidade?
Talvez, em uma década ou duas, nossos casos mais horríveis de tortura (digamos, o que eles fizeram
com o chefe do Estado-Maior do Exército dominicano, após o golpe fracassado em que o ditador
Rafael Trujillo foi morto, costurando seus olhos para que ele não pudesse ver seus torturadores, e
depois por quatro meses cortando lentamente partes de seu corpo da maneira mais dolorosa, como
usar uma tesoura desajeitada para separar seus órgãos genitais) serão vistos como jogos infantis
ingênuos.
Essa noção de que estamos entrando em uma nova era na qual a humanidade deixará para trás a
inércia dos corpos materiais foi bem expressa pela observação um tanto ambígua de Konrad Lorenz,
na qual afirma que nós mesmos (a humanidade “realmente existente”) somos o procurado “elo
perdido” entre o animal e o homem. Naturalmente, a primeira associação que se impõe aqui é a
noção de que a humanidade “realmente existente” ainda habita o que Marx designou como “pré-
história”, e que a verdadeira história humana começará com o advento da sociedade comunista; ou,
nos termos de Nietzsche, que o homem é apenas uma ponte, uma passagem entre o animal e o
super-homem. O que Lorenz “significou” situa-se, sem dúvida, nessa linha, embora com um toque
mais humanista: a humanidade ainda é imatura e bárbara, e não atingiu a plena sabedoria. Ainda
assim, uma leitura oposta também se impõe: o ser humano é, em sua própria essência, uma
“passagem”, o finito que se abre em um abismo.
O “fechamento” antecipado pela perspectiva do escaneamento total do cérebro humano não reside
apenas na plena correlação entre a atividade neuronal escaneada em nosso cérebro e nossa
experiência subjetiva (para que um cientista possa dar um impulso ao nosso cérebro e então prever a
que experiência subjetiva esse impulsivo dará origem), mas na noção muito mais radical de
contornar a própria experiência subjetiva: o que será possível identificar através do escaneamento
consistirá diretamente em nossa experiência subjetiva, de modo que o cientista não precisará nos
perguntar o que experimentamos — ele poderá ler imediatamente em sua tela o que
experimentamos. Há mais uma prova que aponta na mesma direção: apenas alguns milissegundos
antes de um sujeito humano tomar uma decisão “livremente” em uma situação de escolha são
suficientes para scanners detectarem a mudança nos processos químicos do cérebro que indicam
que a decisão já foi tomada — mesmo quando tomamos uma decisão livre, nossa consciência
parece apenas registrar um processo químico anterior… A resposta psicanalítica-Schellingiana para
isso é localizar a liberdade (de escolha) no nível inconsciente: os verdadeiros atos de liberdade são
escolhas/decisões que tomamos sem saber — nunca decidimos (no tempo presente); de repente,
apenas tomamos consciência de que já foi decidido. Por outro lado, pode-se argumentar que tal
perspectiva distópica envolve o loop de petitio principii: ela pressupõe silenciosamente que o
mesmo velho Eu que fenomenologicamente se baseia na lacuna entre “eu” e os objetos “lá fora”
continuará aqui após a auto-objetivação for completada.
O paradoxo, é claro, é que essa auto-objetivação total se sobrepõe ao seu oposto: o que paira no
horizonte da “revolução digital” nada mais é do que a perspectiva de que os seres humanos venham
a adquirir a capacidade que Kant e outros idealistas alemães chamaram de intellektuelle
Anschauung [intuição intelectual], o fechamento da lacuna que separa a intuição (passiva) da
produção (ativa), ou seja, a intuição que gera imediatamente o objeto que percebe — a capacidade
até então reservada à mente divina infinita. Por um lado, será possível, através de implantes
neurológicos, passar da nossa realidade “comum” para outra realidade gerada por computador sem
toda a maquinaria desajeitada da Realidade Virtual de hoje (os óculos desajeitados, luvas…), já que
os sinais da realidade virtual chegarão diretamente ao nosso cérebro, ignorando nossos órgãos
sensoriais:
Quanto à óbvia contra-questão, “entretanto, nem tudo pode ser virtualizado — ainda é necessário
uma ‘realidade real’, a do próprio circuito digital ou biogenético que gera a própria multiplicidade
de universos virtuais!”, a resposta é proporcionada pela perspectiva de “baixar” todo o cérebro
humano (uma vez que seja possível escaneá-lo completamente) em uma máquina eletrônica mais
eficiente que nossos cérebros desajeitados. Neste momento crucial, um ser humano mudará
seu status ontológico “de hardware para software”: ele não será mais identificado (preso a) seu
portador material (o cérebro no corpo humano). A identidade do nosso Self é um certo padrão
neuronal, a rede de ondas que, em princípio, pode ser transferida de um suporte material para outro.
Claro, não existe “mente pura”, i.e., sempre tem que haver algum tipo de corporificação — porém,
se nossa mente é um padrão de software, deveria ser em princípio possível para ela mudar de um
para outro suporte material (isso não está acontecendo o tempo todo em um nível diferente: as
“coisas” de que nossas células são feitas não mudam continuamente?). A ideia é que esse corte do
cordão umbilical que nos liga a um só corpo, essa passagem de ter (e estar preso) a um corpo para
flutuar livremente entre diferentes encarnações, marcará o verdadeiro nascimento do ser humano,
relegando toda a história da humanidade ao status de um confuso período de transição do reino
animal para o verdadeiro reino da mente.
Mais radicalmente ainda, o que dizer da óbvia contra-tese heideggeriana de que a noção de “cérebro
na cuba” na qual todo esse cenário se baseia envolve um erro ontológico: o que explica a dimensão
humana específica não é uma propriedade ou padrão do cérebro, mas a forma como o ser humano se
situa em seu mundo e se relaciona ex-estaticamente com as coisas nele; a linguagem não é a relação
entre um objeto (palavra) e outro objeto (coisa ou pensamento) no mundo, mas o lugar da revelação
historicamente determinada do horizonte-mundo como tal… Para isso, somos tentados a dar uma
resposta direta e cínica: O.k., e daí? Com a imersão na Realidade Virtual, seremos efetivamente
privados do ex-estático estar-no-mundo que pertence à finitude humana — mas e se essa perda nos
abrir outra dimensão inédita da espiritualidade?
[1]. N. Katherine Hayles, How We Became Posthuman, Chicago: The University of Chicago Press,
1999, p. 8.
[2]. É, naturalmente, o trabalho de Daniel Dennett que popularizou esta versão da mente “altruísta”
— ver Daniel C. Dennett, Consciousness Explained, New York: Little, Brown and Company, 1991.
[3]. Ver Ray Kurzweil, The Age of Spiritual Machines, Londres: Phoenix, 1999, p. 182. [edição em
português]: A Era das Máquinas Espirituais, São Paulo: Aleph, 2007.
[6]. Maimon Cohen, diretor do Harvey Institute for Human Genetics no Greater Baltimore Medical
Center, citado em International Herald Tribune, 27 de junho de 2000, p. 8.
[7]. Ver Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch, The Embodied Mind, Cambridge: MIT
Press, 1993.
[8]. Ver Steven Pinker, The Language Instinct, Nova York: Harper Books, 1995. [edição em
português]: O Instinto da Linguagem, São Paulo: Martins Fontes, 2002.