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nhecido como o "Homem dos lobos,,, por um sonho, também
famoso, no qual
- segundo o paciente refere se tratava de
"seis ou sete lobos". O paciente desenhou a cena- do sonho, mas
no desenho só apareceram cinco lobos.
E legítimo se perguntar então onde passaram o sexto e o
sétimo lobos. E mais especif icamente, escolhendo o sexto, Íazer
dele o emblema de algo que às vezes possa
prática psicanalítica
- vir a ser desconhecido.
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- De que se trata? ffiN§AMM§

LU§Z TAR§.E! DE ARACÃO


CONTAMNO CALIIGARIS

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Com este livro, que reúne traba-


lhos de um anüropólogo e três psica-
nalistas, tem início urna série deno-
minada O SEXTO LOBO - CLhU-
CA DO SOCIAL. Nela, os seus coor-
denadore,s pretendem publicar textos
que atestem que não oriste uma psi-
canálise do individual e outra "apli-
eada" ao sintoma social, pois o sinto-
ma ê sempre social. O que se deno
rnina de individual, a singularidade, é
sempÍo o efeito de uma rede discursi-
vE que é a rede mesma do coletivo.
Concretamente, O SEXTO LOBO
- CLNICA DO SOCIAL é: um fô.
rurn de trabalho que se reúne perio-
diaamente e uma série de monogra-
Íias (inéditas ou traduzidas) e de en-
saios.
O projeto é criar as condições de
um diálogo pluridisciplinar para quem
tent4 hoje, intervir discursivamente
no sintoma social segundo uma ética
compatível com a ética da psicanálise.
O trabalho que abre o livro, escri-
to por Luiz Tarlei de Aragão, consti-
tui um questionamento das próprias
bases, dos fundamentos estruturais do
modelo social e ético brasileiro. Tra-
t4 de maneira brilhante, da violência
social no Brasil, ligando essa questão
àquela da mãe preta, da ama-de-leite
e da babá - ou seja, uma rclação pre-
sente nos fundamentos mesmos do
processo de socialização particular-
mente das eütes e da classe média
brasileiras.
No segundo ensaio, Jurandir Frei-
re Costa reflcte sobre a psiquiatria
burocrática a partir da hipótese de
que o o<ercício burocrático da pro-
Íissão ou da cidadania insere os sujei-
tos num tipo de "montagern perver-
sa" das relações sociais. Utiliza-se da

I
CLíNICA DO SOCIAL
E NSA IOS

I
O Sexto Lobo Luiz Tarlei de Aragão
Direção de: Contardo Calligaris
Luiz Tarlei de Aragão
Jurandir Freire Costa
Contardo Calligaris
Jurandir Freire Costa
Octavio Souza
Octavio Souza

CLÍNICA DO SOCIAL
E NSAIOS

Equipe de Realização:

Capa: Yvoty Macambira


Reüsão: EIiana Antonioli
Maria Isabel de Almeida
&lição: Manoel Tosta Berlinck
Maria Cristina Rios Magalhães
Editoraçáo: Araide Sanches
ESCLÍA

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@ by os au(orcs
@ by Iilitora Íjscuta Para a ediçáo ent língua portuguesa

I I ctliçiro - abril do 199 I

Dudos de Catalogaçáo na Pubücaçáo (CIP) Internacional


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

( 'lÍrut n thr rucial : ensaios / Luiz Tarlei de


Arag,íro ... tet al.l. -- São Paulo: Escuta, 1991.

li ibliogralia SUMARIO
l. l'sicanálise 2. Psiquiatria I. Aragão, Luiz Tarlei.

cDD-616.8917
-61 6.89
NLM.WM460
llil I ll ll I lll
-wM 740 NOTÍCIA 17

ultututlllulull MÃE PRETA, TRTSTFTA BRANCA. 21,


Índices para catálogo sistemático: Luiz Tarlei de Aragáo
Psicaná[se : Medicina 616.E917 PSIQUIATRIA BUROCRÁTICA: DUAS OU TRÊS
Psiqúaaia : Medicina 616.89
Psiquiatria social : Medicina 616.89
Jurandir Freire Costa
{lniynrsidalle fedrial ds Iiril ih fura REFLEXÃO SOBRE A EXTENSÃO POS CONCEI-
Biblioieca do I. C.ll. L, TOS E DA PRÁTICA.... 75
Octavio Souza
Ikcuta Ltda.
a,sMt*6-U*Jo RESPOSTA A OCTAVIO SOUZA.
l)r. Homem de Mello' 351 - Perdizep*
ua
Sáo Paulo, SP __l_t Jurandir Freire Costa
.: (01l) 6s-8950 A SEDUÇÃO TOTALITÁRIA. 105
Contardo Calligaris

I
L IM INAR

)
O Porquê de um Nome

Um dos pacientes mais famosos de Freud passou a ser co-


úecido como o "Homem dos lobos", por um sorrho, também
famoso, no qual - segundo o paciente refere - se tratava de
"seis ou sete lobos". O paciente desenhou a cena do soúo, mas
no desenho só aparecem cinco lobos.
É tegitimo se perguntar então onde passaram o sexto e o sé-
timo lobos. E mais especificame.nte, escolhendo o sexto, fazer d.e-
le o emblema de algo que às vezes possa - no cotidiano da práti-
ca psicanalítica - vir a ser desconhecido. De que se trata?
A construção de Freud a partir do relato do seu paciente re-
fere o sonho à "cena primitiva", ou seja, ao encontro do paciente
criança com a cópula parental que é a sua origem. Deste ponto de
vista é tentador pensar que a iírvore dos lobos desenha uma espé-
cie de árvore genealógica pÍua o sujeito. E, de repente o lobo a
mais, esquecido no deseúo, poderia servir para lembrar que a
"origem" do sujeito - o campo que o determina e a necessidade
que lhe é imposta - excede o quadro da famflia.
Em suma, a "árvore genealógica", que às vezes a psicanálise
parece limitar ao quadro familiar, conta com um ou dois lobos a
rnais. Digamos, com um "sexto lobo".

INSTITUTO BT CIÊNCIAS
HUíViA{\,IA§ E DE LETRAS
I
12 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS LIMINAR 13

Um equívoco deve ser aqui evitado imediatamente. A mesma a pólis?", a psicanálise só tivesse como resposta a esquiva de uma
metáfora do "sexto lobo" - que poderia ser sétimo, ou oitavo e proposta de formação: "Pois é, úra psicanalista", ou seja: "Pois é,
assim por diante - manifesta que para nós o campo da determi- para você saber, só virando anaüsta".
nação do ser falante se estende sem solução de continuidade dcs- O que é tanto mais problemático que, como se sabe, desdc
de o íntimo da sua experiência familiar até o extremo afastado 19L5, Freud constatava que a transmissão da doutrina não produ-
dos efeitos de línguas perdidas que ele nem fala, mas que atraves- zia efeito psicanalítico nenhum. O único efeito que produz a
sam a sua língua, ou até um passado histórico que ele renegaria, transmissão da doutrina é a constituição do corpo social dos ana-
minimizando-o como "coletivo" ou "esquecido". listas e nada mais do que isso.
Não existe uma psicanálise do individual e outra "aplicada" Para o "SeKo Lobo" não se trata de constituir uma doutrina
ao sintoma social. Pois o sintoma é sempre social. Nesta afir- psicanalítica sobre o sintoma social. Trata-se de inventar uma
mação, aliás, nenhum sociologismor pois o que chamamos de in- prâtica discursiva no social.
dividual, a singularidade, é sempre o efeito de uma rede discursi- O que isso pode querer dizer? Escolhemos duas citações de
va, que é a rede mesma do coletivo. Freud, em Mal-estar na civilização:

... podemos esperar que, um dia, alguém se aventure a se empenhar


na elaboração de uma patologia das comunidades culturais...
... talvez possamos também nos familiarizar com a idéia de existirem
O Projeto dificuldades ligadas à natuÍeza da ciülizaçáo, que não se submeterão
a qualquer tentativa de reforma.

Concretamente, "O SeKo Lobo - clínica do social" é: Estas duas formulações parecem resumir a ética de uma prá-
- Um fórum de trabalho que se reúne periodica- tica discursiva na abordagem do sintoma social. No que ela seria
mente. diferente de um discurso político? Vou tentar responder com
- Uma série de monogrúas (inéditas ou traduzi- uma parábola. De fato, irem é uma parábola, é algo - pelo me-
das) e de ensaios. nos inicialmente - que aconteceu comigo.
O projeto é criar as condições de um diálogo pluridisciplinar Quando cheguei em Paris, comecei a me relacionar com a
para quem tenta hoje intervir discursivamente no sintoma social psicanálise lacaniana, e havia algo que eu entendia como podia,
segundo uma ética compatível com a ética da psicanálise. quer dizer, relativamente mal. Circulava a idéia que o sintoma era
A tarefa essencial de uma liminar é defender e ilustrar as uma forma de constrangimento simbólico, e que este constrangi-
condiçôes básicas desta postura ética. Por isso, talvez o mais sim- mento simbólico era fundado em algo impossível, em algo real,
ples seja propor aqui a breve introdução das jornadas que, em em algo de uma outra ordem. Era o que eu ouvia falar.
maio de 1989, em Porto Alegre,.inauguraram o trabalho do "Sex- A realidade ajudou-me a entender. Quando acabei alugando
to Lobo". o meu primeiro verdadeiro apartamento em Paris, ele tinha um
A psicanálise é uma prática discursiva. Que, eventualmente, defeito: haüa sido o consultório de um dentista, e, no que ia ser
ela se constitua como doutrina é normal, é até necessiário, sobre- para mim a sala, o dentista instalara a sua cadeira. Como se sabe,
tudo à sua reprodução e à formação dos analistas. O estranho e uma cadeira de dentista nesta época era fixada no chão, para que
paradoxal, na verdade, é que a prática discursiva da psicanálise no não se mexesse. Agora, o chão da sala era parquê, um parquô
social pareça ser cada vez mais a exposição da sua doutrina. então com um furo aparente relevante. Eu não tinha condiçóes
É como se, diante de uma demanda social implícita, formula- financeiras de recorrer a um marceneiro competente, nem de
da nos termos de um: "O que é que você tem para dizer sobre acarpetar a sala. Então tomei a única decisão possível: que aí fos-

I
14 CLíNICA DO SOCIAL. ENSAIOS LIMINAR 15

se o lugar da mesa e coloquei a mesa em cima do buraco. Só que, a um constrangimento do horário de circulação, uso do banhei-
uma vez a mesa colocada, de repente a organização toda da peça r'o etc.
estava comprometida, os outros móveis necessários só poderiam Agora, nesta situação assim descrita, a de um sintoma tanto
estar em lugares determinados; a escolha ia se limitanáo de um mais intolerável que se funda numa necessidade desconhecida,
jeito que era tanto mais constrangedor que, a posição da mesa se que tipo de intervenção seria possível? Há várias: desde, por
juntando à circulação de portas que a sala oferecia, automatica- exemplo, mandar todo mundo acreditar num Papai Noel marce-
mente o meu percurso na sala ürara incômodo,. tortuoso. Come- neiro, ou mesmo num corretor que acharla um outro milagroso
cei a entender assim que os meus percursos eram da ordem da apartamento sem buraco (digo um Papai Noel, porque o nosso
repetiçâo do constrangimento simbólico, do sintoma, e que este pressuposto era que o buraco fosse impossível de consertar, um
constrangimento era organizado por um buraco que eu tentava elemento de estrutura próprio a qualquer editício); até, even-
tapar. Cada yez que, neste percurso, ineútavelmente eu batia na tualmente, promover a conflitualidade numa guerra para a ex-
mesa, aí o real insistia, o real do buraco que estava organizando pulsão da facção oposta, ou então, por exemplo, organizar uma
todos os meus percursos entre os móveis e as portas da sala, apc- troca de quartos regulares e em turnos para inserir um mínimo
sar de ser de uma outra ordem (de não ser ncm um móvel ncm de justiça e acalmar um pouco os ânimos.
uma porta). Neste quadro, a originalidade da intervenção do analista seria
Agora empurremos a parábola um pouco mais longe, inven_ só mostrar o buraco embaixo da mesa, com a idéia que o sintoma
tando algo que não aconteceu. Imaginemos primeiro que este bu- não tem saída porque o buraco não tem conserto. E que só é
raco fosse propriamgnle inconsertável, não no sentido de uma possível f.azer algo que valha, algo diferente do pesadelo da co-
impotência (falta de dinheiro), mas de uma impossibilidade, co- habitação do nosso grupo de inquilinos imaginiários, para quem
mo se fosse um elemento de estrutura de qualquer edifício. Ima- consente encÍuar o impossível, quer dizer, o buraco que organiza
ginemos que eu tivesse decidido, por conseqüência, cravar a mesa o sintoma.
em cima do buraco, de tal maneira que ela não pudesse mais ser Querendo uma parábola completa, acrescentaríamos que o
mexida. E, terceiro, imaginemos que eu, saindo para umas férias, buraco, embora parecendo em cada apartamento num lugar dife-
decidisse alugar o apartamento mobiliado a .m grupo de pessoas. rentg, s embora cada grupo de inquilinos se organizando segundo
Estas pessoas estariam na ignorância total da razão desta mesa uma camúlagem diferente do buraco - é interapartamental, por
inamoúvel e extremamente incômoda. Os efeitos disso seriam estaÍ em todos os apartamentos e testemunhar de um impossível
uma verdadeira intolerância ao sintoma, quer dizer, iatolerância arquitetônico próprio a uma cultura e a uma época.
às circulações obrigatórias e logo uma série de conseqüências re- - -
O discurso político como a neurose se alimenta na espe-
lacionais. Pois acontece, por exemplo, que um dos quartos era rança dos consertos que não dão certo. A prática discursiva que
completamente sacrificado, porque a sua porta nem conseguia se interessa ao "Sexto Lobo" se situa no pólo oposto: sem promessa
abrir inteiramente por causa da mesa; então, QUem tivesse que de consertos nem de paciÍicação, apostando que, se um ato for
aceitar este quaÍto, ficaria desfavorecido. Imaginem o qu" poã"- possível - ou seja, algo diferente da eterna repetição dos percur-
ria ser a distribüção das cadeiras ao redor da mesa, e poi co.r- sos tortuosos, algo distinto da nebulosa de paixões que animam os
seqüência a importância da distribuição dos lugares; enfim, um -
privilégios imaginários ao redor da mesa a sua condiçáo préüa
clima coletivo que poderia se tornar perfeitamente infernal. A seja se aventurar nos lugares ocultados das contradiçóes onde a
briga faria do sistema algo cada vez mais intolerável, mais duro nossa organização simbóüca e seus corolários imaginários pare-
e mais pesado: por exemplo, num certo momento, as facçóes dife- cem se originar.
rentes, segundo os quartos, poderiam decidir não se encontrar
mais, e, de repente, o constrangimcnto do percurso se somaria C.C.

I
NOTICIA

)
Nos dias 6 e 7 de maio de L989, em Porto Alegre, RS, houve
o primeiro encontro do "Sexto Lobo", organizado pela Clínica de
Atendimento Psicológico da UFRGS. Agradecemos à pró-reito-
ria de Extensão da Universidade, à Eliana dos Reis Calligaris e à
Marta Pedó, ambas da mesma clínica, bem como a todos os esta-
giários da época que colaboraram ativamente para a realização
do evento, e à Martha Brizio, coordenadora da clínica.
Aos textos apresentados no encontro, se acrescenta uma res-
posta de Jurandir Freire Costa a Octavio Souza, que pareceu es-
sencial e possível estimular e querer por escrito, pois o diálogo
por um lado concerne a questões decisivas sobre o alcance da psi-
canálise no campo social, e por outro Iado interroga e esclarece
as teses de Jurandir no seu trabalho "Narcisismo em tempos
sombrios", cuja publicação em L988 teve uma repercussão que
não é estraúa à constituição mesma do "sexto Lobo".
O texto apresentado por Contardo Calligaris acabou se trans-
formando no primeiro capítulo do liwo Hello Brasil, publicado
simultaneamente nesta sórie. Embora este texto dialogasse com o
tema tratado por Luiz Tarlei de Aragão, pareceu inútil repeti-lo
aqui. Decidimos então publicar do mesmo Calligaris "A sedução
totalitária", texto que por sua vez dialoga com o trabalho de Ju-
randir Freire Costa.
Como regra gcral, os volumes do "Sexto Lobo" reúnem en-

I
20 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS

saios ao redor de um tema ou de um estilo na clínica do social.


Eles não têm por vocação a publicação de atas, embora o "Sexto
Lobo" organize regularmente encontros de trabalho públicos ou
seminários fechados, que certamente alimentarão a série.
O encontro de Porte Alegre constitui o primeiro volume por
ter fundado a comunidade de trabalho do "Sexto Lobo" e por ser,
nessa rnedida, programático do nosso estilo.

,,MAE PRETA, TRISTEZA BRANCy'('-


Processo de socialização
e distância social no Brasil

Aragão
l

Luiz Tarlei de l

INSTITUTü ÜE CIÊNCIAS
HIJMANAS E AE LETRÂS rr i

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O texto que segue situa-se na continuidade de trabalhos que
il publicamos nos últimos anos, e que dizem respeito a padrões cul-
i turais que estruturam as relações sociais da sociedade brasileira,
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e de certa forma embasam seu modelo ético.r
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l), Todas essas publicações anteriores, e certamente a que se se-
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gue, dizem respeito igualmente a articulações à base da üolência
social no Brasil, e, de outro lado, pretendemos que se constituam
em subsídios para uma teoria social do Brasil, distanciando-se,
sob certos ângulos, daquelas formuÍaçóes que temos conhecido,
como do "luso-tropicalismo", da "cordialidade", da "interetnici-
dade", e outras, mais recentes.
Nesse sentido, os estudos sobre a üolência que temos levado
a efeito nestes últimos .rnos serviram-nos mais como uma pista,
um balizamento epistemológico, por assim rlizer, para algo que
no nosso entender poderia se considerar como o questionamento
das próprias bases, dos fundamentos estruturais do modelo social

' Apresentado originalmente em conferência na Maison d'Amérique Lati-


ne em Paris, em maÍço de 1988, em ciclo organizado pela Association Freu-
dienne.
1. Cf. Bibliografia no final do texto.
24 ct-ÍNrca Do socIAL. ENSAIos MÁEPRETA,TRISTEZABRANCA 25

e ético brasileiro. E, neste ponto, gostaríamos de afirmar que o tada já, com tanta propriedade por Antônio Cândido, Guimarães
enfoque que estamos dando à violência, portanto, é relacional, ou Rosa, Bernardo Ellis, Mário Palmério e Cassiano Ricardo, ape-
seja, a violência é sempre uma troca: virtualiza-se, é üsualizada e nas para citar alguns nomes.2
organiza-se, para "cima" e para "baixo", como uma troca. Entre- Em três artigos publicados sucessivamente em 1979, 1981 e
tanto é bom que se lembre, nas sociedades ditas primitivas essas 19833, tratamos da questão das relações entre homem/mulher, na
trocas, mesmo operando instantaneamente, constituem-se no in- sociedade brasileira. Depois de mais de doze anos passados no
terior de um quadro ritual institucionalizado, e não deixam dúü- exterior, nosso primeiro regresso ao Brasil para dar um curso no
das quanto a seu sentido, socialmente produzido, nem à extensão Museu Nacional, no Rio de Janeiro, coincídiu com o auge de uma
de sua eficácia simbólica. série de assassinatos de mulheres da chamada "sociedade", por
Ali se descortina um discurso simbólico eficaz no tratamento seus maridos. A questão que nos colocávamos na ocasião era
de ambigüidades e indefinições surgidas "naturalmente", no bojo aparentemente banal, mas sociologicamente rica, e heuristica-
daquilo que a Antropologia costuma chamar de "imperfeição so- mente interessante, na medida em que nos permitiu a entrada na
cial"; espécie de resíduos dificilmente tratáveis fora do ritual, questão da üolência social no Brasil, e propriamente, hoje o ad-
aderentes às relações sociais, simbólicas e efetivas do cotidiano e mitimos, do Brasil. Ela era formulada por nós na época nos se-
que se resolvem apenas parcialmente (temporariamente) nesses guintes termos: Por que justamente os "machóes" (iá que geral-
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ii rituais, para ressurgirem à frente, onde os rituais, ciclicamente, os mente eram os "machões" que estavam assassinando suas mulhe-
hi aguardam. res), aparentemente tão fortes, matavam suas mulheres quando
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É nosso interesse no texto presente tratar da violência social estas tentavam se liwar de seu domínio e posse, ou seja, de sua
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no Brasil, ügando essa questão àquela da mãe preta, da ama de "propriedade".
leite, e da babá - ou seja, uma reloção presente nos fundamentos Haüa aí uma questão cultural, ainda uma vez, de fundo, en-
mesmos do processo de socialização (modo de introjeção/interio- volvendo inclusive o sentido de propriedade na sociedade brasi-
rização de padrões de comportamento) particularmente das elites leira. Em um dos textos citados, aquele de 1981 - "A dessacrali-
iti

e da classe média brasileiras. Queremos dízer já de início que as zação do sexo e o 'sacrifício' de mulheres" - apontamos para o
jr

dificuldades encontradas na formulação de uma teoria social do fato da existência de um componente sacri-ficial nesses assassina-
Brasil, ao mesmo tempo abrangente e respeitosa dos particula- tos, já que a sociedade aparentemente eúgia a morte dessas mu-
rismos regionais, de passados históricos e de modelos culturais lheres como "condição de retorno à ordem". Isto era dedutível do
específicos, somente tem tido paralelo, aqui e ali, na satisfação fato nada simples, muito menos inocente, de que todos esses as-
pessoal de vermos algumas hipóteses de trabalho irem se confir-
sassinatos eram "absolvidos" ao se invocar o item da legítima de-
mando na realidade, tanto «le uma bibliografia extensa, quanto da fesa da honra, com ressonâncias e apelo a uma ordem social e
observação cotidiana, ultimanrente, em Brasflia e seu entorno, in-
consuetudinfuia; que, estas sim, muitas vezes se vestiram de ou-
cluindo o sertão do noroeste de Minas e nordeste de Goiás (cida- tros paramentos, novos, ao longo de quatro séculos e meio de vi-
des de Formosa, Cabeceiras (Goiás), e Buritis, em Minas). da social no Brasil.
Essa dificuldade tem muito a ver, em nosso entender, com o
fato de que estamos tentando nessa modalidade de reflexão so-
ciológica buscar a intertace entre o Litoral e o Sertão, ou seja, en-
2. O Sul do Brasil poÍ ter traços culturais e étnicos, bem como historicida-
tre uma sociedade e uma cultura do Litoral, nordestina antes de de específica, ficaria aqui na posição de "elemento probador" no qual aplicaía-
tudo, descrita por Gilberto Freyre, Nina Rodrigues, Jorge Ama- mos e verificaíamos, a posterion, os dados teóricos obtidos a partir do Nordeste
do, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, e tantos outros, e e do Centro-Sul.
aquela sociedade "caipira", ou cultura rústica do Centro-Sul, üsi- 3. Ver Bibliografia, no final do texto'

)
26 cLÍNICA Do socrAl. ENsAIos MÁE PRETA, TRISTEZA BRANCA
Em trabalho posterior tcntei mostrar através de resultado de Mas, finalmente, o que se defendia com a perpetração do
uma pesquisa de campo levada a efeito no Norte do país, mais ato? Defendia-se, primordialmente, a não "contaminação" de um
precisamente, em Belém do pará, que o quadro de assaisinato
de conteúdo de significação consubstanciado na figura da mãe, que
mulheres estava ligado, por mais estranho que pudesse parecer no Brasil, e no Mediterrâneo em geral como já apontamos acima,
num primeiro momênto, à mãe. Assim ,,Em nomà da mãá,,
tenta por razões que infelizmente não temos o lazer de considerar mais
mostrar que todo homem brasileiro busca para companheira
uma iongamente aqui, instaura e preside o próprio contexto fundante
mulher que é vista, e em todo caso, afetivamente investida, e pou_
da iamflia e do social. De tal maneira que poderíamos dizer que,
co a pouco transformada por ele, numa réplica, não interdià _
do ponto de üsta político, essas sociedades historicamente apre-
ainda que em parte - como veremoq da mãe. Elabora_se, no
ca_ ."o[u- problemas na sua passagem para formas de governo mais
samento, um novo equivalente estrutural e afetivo da mãe,
en_ democráticos, justamente porque, no nosso entender, o espaço
quanto categoria depositária de varores ligados à pureza,
a renún- entre a famflia e o Estado caracteriza-se por um persistente vazio
cia e à doação, numa contabilidade onde á princÇio da ieciproci-
institucioual. Não há, no espaço que se configuraria esquemati-
dade está ausente, operando-se muito mais nuri plano ,,o qual
camente como sendo aquele da "rua", uma figura de autoridade,
estão em jogo, em predominância, elementos da oràem da
dááiva de registro - nesse caso - "masculino", que contrabalance o pe-
transcendente.
so dimãe no espaço social e político da famflia' Para entender-
Essas três dimensões constitutivas de um simbórico cultural-
mos melhor o esquema, diríamos que, para seguir um dos funda-
mente. constituído (pureza, renúncia e doação), em particular
a dores da Sociologia que gostava de afirmar que o social é o sa-
primeira delas, estâo intimamente fundidas na categoiia ..mãe,,
e grado, neste caso, o social e a família, e a famflia é a mãe, como
caracterizam fortemente, por assim dizer, o complexo mediterrâ-
fulcro orientador da sacralidade. Daí uma compreensão, em parte
neo, e, em particular, para ficar com os países mais próximos
do pelo menos, do problema.
Brasil, a ltália, a Espanha e portugal. No caso desses assassinatos
Mas, no Bràsil, o que é a rude? Podemos dizer que, no Brasil,
mencionados acima, haüa como que a súbita pulverização
de es_ ela se decompõe, em pelo menos dois .segmentos categóricos,
paço que "obrigatoriamente,, (do ponto de vista da ideãlogia
na_ duas figuras epônimas - a mãe biológica, e a ama-de-leite, a mãe
tiva) permeia as figuras de recato, ãbstinência e renúncia dã mãe,
preta, ãu a bãba, ou ambas. Na aristocracia do Nordeste e do
e aquela prostituta, onde o sexo e a sexualida«le não se curvam
bentro-Sul, geralmente estas personagens sociais eram recruta-
aos ditames da domesticação sexual, e escapam por aí do
domínio das na escravagem, na figura de uma negra liberta, ou escolhida
masculino. De um lado, a mãe; no oposto, à p.oitituta. Ao
se jun- entre as muhãres de cor que apresenlnvam bom aspecto, boa
t-*:*, as duas faces agem como pólos que se tocam, provocando saúde e que passavam com o tempo a privar de uma relativa inti-
de forma instantânea um curto-ciicuito ánfte as categôrias
do pu_ midade áa fàmflia senhorial.s Muitos de nossos escritores teste-
ro e do impuro. E a sociedade como um todo, modeiiza.rdo pàn_ muúam da herança afetiva e da impregnaçáo emocional que es-
tualmente o gesto ao armar a mão do justiceiro, pressupôe
u guu_ sas mulheres deixaram sobre eleo mesmos e sobre os personagens
rida consuetudinária ao seu ato, e gerãrmente entronirá
o -"irno por eles descritos, através de lendas, cançóes, contos que o folclo-
no âmbito de uma legalidade jurídica e de uma aprovação moral
ie brasileiro é, por outro lado, pródigo em atestar, bem como
que desce diretamente das configurações da ordem
do-tabu e da através do contato corpo a corpo, prolongado e decisivo' Não es-
I
s acralida de pinitiva s. tamos querendo dizer que o contexto colonial brasileiro persiste
hoje taÍ como era no passado, ou que seja o único no mundo a
4. "Em nome da máe,', inperspectivas Antropológicas da Mulher, no 3, abril
de 1983.
5. Cf. ALBUQUERQUE, Manocl de (Bibliografia)'

I
28 29
CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS MÁEPRETA,TRISTEZABRANCA
contar com esse tipo de disjunção, se assim pudéssemos nos ex_ e do povo,
mentaÍes e de liberdade, existia ao nível dos escravos
pressar, da função materna, mas sim chamar a atenção para o fa_ ciasses médias e as eli-
mas no Brasil ela concerne muito mais as
to da proximidade, da quase simbiose afetiva seu "conteúdos de
que se tes. O povo sempre se organizou e expressou
" "-o.ionàI,
produziu no caso brasileiro entre a ama-de-leite, Nossas elites foram
a babá, e o in_
fante, ou a sinhazinha. Feita essa ressalva, de regra, devernos em ;;i.ã.'lúdica" d" fo.ma Lais significativa'
(cf. meus "Coronéis, Candangos
e são ostentatórias e presunçosas
seguida reafirmar que é nosso ponto, aqui, argtiir de uma dis_ e igualmente, freqüentemente des-
e Doutores", em preparaçaó;,
junção nesse nível, transcrita no âmbito dó simbáüco que Tiata-se, portanto de algo mais essen-
e se se- corrfiadas e macambúzias.
dimentou ao longo de um processo sócio-históri"o, .o*o-u"r"-o.
;i"l á. ponto de üsta cultural e político, já que esseexatamente
fenômeno
Trata-se mais
a seguir.ó
;irg; ; fulcro «io modelo dominante'
Existe no Brasil, como muitos de nós sabemos, uma extensa chamar' da Licença
do exflio do corpo, ou' como gostaríamos de
literatura tratando da tristeza dos brancos, quase como subprodu- ou Corpo Diüdido' que produ-
Ü;;; (numa^única direção),
to, ou resíduo intratável, não resolvido, advinda por ,,transmissão corpo e da afetividade
,"., .ornà quadro imediato, a'alocação do
ou contágio, na freqüentação com os negros,,, que, estes estavam
em espaços comPartimentados'
segue qu€ a
tomados de uma prostração congênita origináriã de sua condição
Nesie sentido, tentaremos mostraÍ no que se
de escravos no exflio. Praticamente todos os autores românticos no caso brasileiro, estão liga-
úolência e a tristeza, essa tristeza'
brasileiros do século passado, naturalmente, mencionam essa tris- gspaço de uma troca não regulada'
das. A violência surge aqui no
outras palaúas, L'o-p"
teza do fundo da alma dos brancos e dos mestiços, que haüam si_ oo âmbito de um "déficit" rela-
ãu,
do contaminados por um íntimo e prolongado contato com os no_ ".
cional, se pudéssemos dizer, não rituaüz'ado'
não tratado social e
gros. Ou então, como afirmavam alguns outros, mais articulados,
institucionalmente.
da situação de exílio em relação à Europa e à sua civilização, ou
mesmo, como chegou a mencionar um autorT, essa tristeza branca
teria vindo do parricídio no advento da República, quando simbo-
licamente, e politicamente, em todo o caso, os filhos bacharéis
haviam "assassinado" seus pais, patriarcas e coronéis, defensores
II. Violência e o Modelo Social
e o Cor-
da Monarquia. À Questáo da Licença, ou das Relaçóes Licenciosas
po Dividido
Para se colocar a questão em termos de ,,exflios,,, como pre_
tendemos mostrar no que se segue, na verdade tratou-se de um
eúio do corpo. Assim, a ,'tristeza branca" se constrói num pano os estudos
de fundo muito mais elementar e, portanto, mais genérico do que
No Brasil, poucos' na verdade, quase nulos' são
média alta e elites'
se acreditou até aqui. Mesmo porque essa tristeza, ao contráiio feitos recentemente sobre famflias de classe
leite' da babá e das re-
;;;;;;;e.oe a existência da ama de
do que poderia se esperar em tanto que efeito de privaçóes ali_ participação na
i"ii* a"u^s com a famflia, tendo em üsta sua es-
d" uma üsão de mundo, de uma emocionalidade
õ&;;
6. O contato com os negÍos em Faulkner, para citar uma figura conhecida, ;;;mà, mesmo de um modelo ético nacional brasileiro'
na
produziu outros efeitos específicos e náo essa Íítristeza macambúzia,': veio como Em "todos os segmentos familiares que temos observado'
leite' fica patente a
produto uma forma mais benigna e doce de "desajuste" indiüduar e poética, se
..Uçaà entre a c.irr'ça e a babá, ou ama de
Por outro
pudéssemos dizer, no lastro de uma embriaguês constante, que ninguém poderia
imputar, aliás, somente à freqüentaçáo de um meio escÍavocrata e foÍemente
;;ür" de licença da primeira em relação à segunda' extrema-
integração
segregacionista, bem diferente do contexto brasileiro. irOo, . de qualquer forma, trata-se de uma
pelo contacto corporal' onde
7. Cf. MARTINS, Luis (Bibtiografia). ã"ri" forte, e igualmente marcada
de
a babá imprime, por assim dizer, tairiança'
suas modalidades

I
30
CLÍNICA Do SoCIAL. ENSAIoS MÁE PRETA, TRISTEZA BRANCA 3l
organização da afetividade, e
suas formas próprias de reagir
emocionalidade ao mundo .ir.rrra"ni". - pela Salvo que, no Brasil, acreditamos que ela apresentou-se du-
Em seu processo a" blada dela mesma. Ao seu conteúdo ontogênico se ajuntou a li-
criança permanece nessa
mesma esfera de construçâo"_."rrir"otà,', cença. Essa prática disjunta consiste no fato cultural fundamental
da manifestaçao áuãr"tiuiil;
forte carga de elementos dessa
ur"tiuiàua" própria
õ; e generalizado no Brasil durante todo esse tempo, de que lá onde
anteriormente escravisados), aos segmentos se encontra a sexualidade, e portanto, o corpo' não se encontra o
f*ii.ufurmente, tendo sua
aprendizagem sexual configu._jo_ir;u"to ", reconhecimento social, mas sua negação, ou a negação deste, e
não junto ao seu próprio. ó qr"
a esses segmentos, e vice-versa. Em outras palawas, o social não sabe o que fazer do
ela lem acesso não tem .,raaonhaaia"nto
q;';;",
que o corpo no qual sexual, e este é expulso para a marginalidade do social para o es-
,o.iul,,, c o corpo mar_ paço onde vai imperar a licença, e não propriamente a troca.
cado pelo reconhecimento social,
primas, produzidas socialmente
a à..", .f, não tem acesso. As Junto ao povo, e particularmente no seio do segmento cabo-
l;;;*
da mãe, não scrvem clo, como lembrava-me uma colega antropóloga, observa-se uma
para a aprendizagem sexual, mas
para o casamento. portanto, sc_ certa reciprocidade entre meninos e meninas nos jogos sexuais na
xo e casâmento vão aparecer por muito
tempo como sendo par_ puberdade e adolescência. Portanto, nesse segmento não se cons-
cialmeals dissociados um do àutro,
vamente. Muitos uiuj-j-.f europeus "rt.utu.ut,
simbólica e afcti_ iata ncm exílio, nem tristeza. Essas crianças, no sentido metafóri-
dos primeiro, ,e.utor-au .o_ co do termo, são lilhos próprios das "mães pretas", ou das babás.
lonização ficaram aturdidos .oÀ
o;t".ã;r" quc os portuguescs Em todas as sociedades onde a Antropologia estudou os
demonstravam pelas. ,,mucamur,,, qu"-faavam
quase debaixo dos leitos das esposas,
por assim dizcr comportamentos de ücença - as 'Joking-relationships" -, que se
deixando _uitu, *rJ. manifestam em lugares muito distintos e culturalmente distantes
ainda jovens, pela companhia áessas
zes temos ouvido os homens no
_rlú... ".trr,
de cor. Muitas ve_ no mundo, constatou-se sempre um contraponto à licença. Esta
fazem o;;;;ú I"*o, não por
Brasil afi,
.J,::t:tffiJ:"T::: última é apenas a manifestação de um tipo de comportamento do
qual se conhece muito bem seu oposto, ou seja, o interdito.
mo tempo que as brancas " uo iazer"^
"",."sexo tem sempre
coisa de certa forma interposta. frutu_.", alguma Se existe a licença do lado do tio materno, como acontece
áo ponto de vista do aa_ com freqüência, há sempre o interdito e a ordem do lado paterno,
tropólogo, de uma questãà real e duplameite
curtnrar: ao interdi- e üce-versa. O quc ocorre com as elites tradicionais brasileiras, e
to' somam-5e naturaimente o significado
deste e ao mesmo tem- com suas altas camadas de classe média, é que em extensos seg-
po suas implicações ao nível do
Ãrpo, propriamente falando.
tlisjeza portuguesa, da qual tanios mentos do comportamento não se visualizam contrapontos à li-
I
características e a generalidade,
autores mencionam as cença. Esta constitui-se ela mesma num polo auto-referido a par-
foi transportada ao Brasil no tir do qual se organiza toda uma üsão de mundo, um etos próprio
momento da colonização, e aqui
que ela tem de interdiio
continuou igual a ela *";; ;; a esta sociedade. Existem senlpre graus consideráveis de licença
!, oi^1"r-"üa"çãq da sexualidade, par_ que se toma em relação à "realidade", aos outros, e à lei' Aliás,
ticularmenre pÍua as muheàs8,
.rú.i;Ã;;;orremente junro jus_ no Brasil pode-se pensar que a lei seria muito mais a exceção à li-
tamente as elites e a classe rrréaiu
,u*"iL. Assim, essa tristeza cença, que o contrário. Como dizia um velho político mineiro: a
que ;i;;;1" mesma o exíio
não é o produto do exírio,.senão
coÍpo, e nesse sentido, do lei existe (somente) paÍa os inimigos. E, mesmo a realidade pare-
muito mais ontogênica que se acreditava
princípio. a ce escâpar à lei, já que ela admite na maioria das vezes o famoso
"jeitinho". Mais ainda, é interessante notar como isto tem res-
sànância em vários planos, e na nossa opinião não poderia ser de
8. Ver, a esse respeito, estudo inteÍessantíssimo outra forma.
da psicanalista portuguesa,
Dt' Maria Belo, cf. Bibliografia. Se, ao nível do corpo e da sexualidade, onde há reconheci-
i mento social e simbólico, o gozo é banido e vice-versa, em outros
I
I

II
t

I
n.
32 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS uÁepRrta,TRIsrEzABRANCA 33

níveis dá-se igualmente um problema de sintaxe social, de disle- dcste do Brasil são famosos os filhos de padre, que tem um fol-
xia, o que faz com que vários autores tenham chamado o Brasil clore próprio divulgado, nesse nível, pelos cantadores da literatu-
de um país "surrealista" (Jorge Amado), ,.não sério,', ,,cordial,,, ra de cordel. Já no Centro-Sul, em Parati, no Sul do Estado do
etc., e, em todo caso contraditório, onde as estratégias não podem Rio, um piároco deixou, ao morrer, o seguinte testâmento, para se
ser claramente enunciadas. ter um exemplo: "à escravâ Isaura, com quem, por uma dessas
Essa disjunção ao nível do corpo, ressoa igualmente em ou_ fraquezas da carne, tive oito filhos, deixo o restante de meus
tros níveis, como o ideológico, o moral, o político e mesmo o fun- bens".
diário. Em um liwo em preparação já há dois anos - ,,Coronéis, Por outro 'ado, essa licença mesclada, ou temperada pela
Candangos e Doutores" - tentamos mostrar como se vive na so_ afetividade - o que mútas vezes levava os observadores a afir-
ciedade brasileira até agora dentro do modelo de Sesmarias, so_ maÍ peremptoriamente a inexistência do racismo no Brasil, o que
ciais e econômicas, e, sobretudo, como a concepção da proprie- é de um equívoco total - era performada igualmente no sentido
dade no Brasil é ela mesma marcada pela disjunção entre dàmí inverso, ou seja do povo para a Igreja, no âmago da religiosidade
nio e posse, se bem que a propriedade, no seu sentido moderno, popular. Basta ler-se as crônicas dos viajantes para se ter idéia de
somente pode dar-se pela junção dos dois. Aqueles, no Brasil, seu espanto ao testemunharem o comportamento dos brasileiros
) que tem o domínio (titulação, documentos), não exercem a posse diante de seus santos.
I
(a apropriação, a prática) do objeto; e aqueles que tem està não Essa afetividade habitada por uma sensualidade difusa, que é
I

I
dispõem do domínio, são os chamados ,,posseiros',. Isto, natural- passada nos brancos pela mãe preta, mas também pelo próprio
I

I
mente, dentro de uma perspectiva histórica, sobre a qual se as- contexto das relações sociais, mÍuca de uma forma geral o brasi-
I senta um modelo ético, um fulcro orientador de prática sociais, e leiro, do nascimento até a morte. A própria instituição do com-
de uma üsão de mundo especfica. padrio é ela mesma carregada dessa sensualidade que pontua to-
Por outro lado, esse comportamento de licença está à base de das as manifestações de uma solidariedade de praxe, generaTizada
nossa impossibilidade de totalirar. A um corpo individual ,,dividi_ e difusa, reforçando ainda mais os laços de parentesco e,/ou, as
do" corresponde, ao nível do social, um córpo social disjunto. relaçóes de amizade. Aliás, uma versão de uma música caipira,
Jamais seria exagerado lembrar que nós não temos no Brasil um muito coúecida no Brasil e ouüda recentemente em nosso cam-
sindicato forte, partidos políticos com um fundo ideológico claro po de pesquisa a 200 quilômetros de Brasflia, nos dá uma idéia
e consistente, e ainda menos uma idéia muito clara do Érasil em aproximada da alusão que fizemos acima. A letra é cantada as-
tanto que Nação. sim: "Minha comadre, si o cumpadre morrê, não esquece que
E, neste ponto, gostaríamos de voltar à questão da afetivida_ nóis tem a preferência" etc. Quando das cerimônias fúnebres os
de, que vemos de uma maneira absolutamente ligada a uma mo- gestos e palawas não são menos carregadas de sensualidade. Nes-
dalidade de investimento emocional e simbólico no interior do se mesmo campo, num povoado, pude ao longo de três anos assis-
social, desembocando naquela incapacidade formal d,e totalizar. tir a cerimônia fúnebres. À medida que as pessoas chegavam se
A afetividade, a sensualidade e a licença que são impressas e davam longos abraços, beijando nas faces, olhando-se longamen-
üvidas pela criança de classe média e das elites, podem ser detec- te, com olhares sensuais e tão doces quanto o chá de erva cidrei-
tadas em praticamente todas as instituições sociais, e mesmo reli- ra, mornamente aquecido no fogão de lenha, na parte traseira da
giosas e políticas no Brasil. Nem mesmo algreja Católica escapa casa.
dessa determinação sócio-cultural ontogênica,por assim dizer. O De toda maneira, a Igreja no Brasil faz corpo com esse esta-
comportamento dos padres, por exemplo, até recentemente esta- do de fusão, de "participação", no sentido técuico do termo, em-
va marcado por essa sensualidade e essa licença, aindn 63ls 1o pregado por Lévy-Bruhl, e, mais tarde, por Roger Bastide. As so-
Brasil que no Portugal de Eça de Queiroz, por exemplo. No nor- luções apresentadas pela Igreja são sempre coletivas, passionais,

)
INSTITTJTO DE CIÊNCIAS
-t4
CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS HUMANAS E LETRAS
MÁE PRETA, TRISTEZA BRANCA
estabelecendo uma estreita intimidade
entre a liturgia, o corpo do
:1.r9
. o-povo (incluindo-se aqui a aristocracia e a classe média).
ciência, em nosso entender, de seus direitos e passa a exigi-los
No Brasil, por assim dizer, algeja foi roru ig."ju cadavez menos timidamente, e certamente dele, muito mais que
a; ;;..;';;;
do domínio, ou seja, *ui, cooã".são e licença,
que interdito e or_
das elites, virá uma proposta articuladora dos pólos "pos-
dem. N.esse sentido, ela trabalhou muito pouco se/domínio". O que acarietará, certamente, uma verdadeira re-
a questão da res_
ponsabilidade pessoal, individualizada,
do cidr.dão em ruu ro.i"- formulação do social, e todo o edifício social e econômico, , da
dade, como o fazem agora as religiões reformadas - questão fundiária à questão âmoÍosâ, poderá ser reordenado.
(.f. aUriroj.
Esse aspecto é extremamente interessante
de ser considíado
porque, na medida em que se instala definitivameot"
uma ideologia do desenvolvimento, a partir
,ro S.;.il
ao, u.ro" .".r"r*";
aristocracia e as altas classes médias váo debandar
Ji."çao'a.
III. Conclusáo
religiões afro-brasileiras; foram ,,habitadas,,,
como se"- dir, pà. u_
novo horizonte, ideológico que surgia. Esses
segmentos sociais,
tributários que são de uma uf"tiuiara" difusa, Estamos diante de uma sociedade, ou de um sistema social,
de uma emociona_
lidade, se pudéssemos dizer, sincrética (amálgama que historicamente tem provado sua incapacidade em produzir
de diversas
fontes), portadores de um corpo dividido,'vâo uma estruturação das diferenças, e, em corolário, uma totalização
o-ptar po, ."_
ligiões na medida em que elas trabalham'o "..u. e a
político, à afetivq do social. Justamente porque tem üüdo historicamente a sepa-
própria dimensão de uma sensualidade dilusa,
dentro a" u-,
ração congênita entre domínio (autoridade, direito) e posse
ternática da construção da pessoa, colocando (imanência, prática).
em cena ,_u Ã_
bientação mítica onde o. o.iráa comandam as ações, À ordem indígena, de uma forma geral primitiva, e à simetria
como os
santos outrora, somente que agora a partir ,.de que existiu em termos, na fase do bandeirantismo, ou do extrati
dentrol, ao, p.ã_
prios sujeitos. Eles optam, porianto po, üsmo que se derivou deste, decadente, veio se enxertar a escra-
u.nu i.racionalidade'(ã
racionalidade, como se queiia) de tipo
antigo, onde a afetiüdade
üdão negra, com uma ordenação rígida das distinções econômi-
e a "participação,, atuam invariavelmente cas e sociais, mas não religosas, e muito menos culturais, no sen-
càmo elemento de fun-
que agora avocando a si um espaço maior tido estrito. Este, em nosso entender, o paradoxo brasileiro, se
{o,.t"-.b:T de definição
da indiüdualidade. em Sociologia se pode falar em paradoxo.
Já,--quanto ao povo, que vivia até há pouco no âmbito da A cortina de um "panculturalismo" de classes opacisa uma
..
"posse",- tanto no que concerne à religiosidà., realidade toda fcita de distância e distinçáo, enganosamente sem
.o_o ,o *.iui"
ao econômico, ele se reveste agora dã reivindicaçõe. diferenças: somos criados juntos, as mesmas palawas, os mesmos
qu" oo _f_ jogos, a mesma afetiüdade, uma proximidade de corpos. Distan-
nimo denotam a introjeção de uma ideologia
moderna, de domí-
nio e posse. No próprio ptano da ,"flgi*iàãà" ciamo-nos, no entanto, elite e povo, pelo corpo dividido na pri-
ete opta pelas reli-
giões reformadas, de racionalidade tõda
nova, e de cunho indivi_
meira, e pela prática econômica que produz lugares sociais e
dualista. simbóücos dramaticamente distanciados. Certamente, foi essa
Resumindo: as elites continrram à espera cle proximidade pela freqüentação sexual, bem distinta dos Estados
soluções mági_
cas, maravilhosas para seus problemu.,
uarli- como para o país, já Unidos, África do Sul, e mesmo da Europa, que levou alguns de
que permanecem no alto de suas posições nossos maiores sociólogos a afrmarem que não haüa racismo no
de domínio,."oôg*jo
a prática da posse, e, ainda Brasil, quando se tratava apenas, no nosso entender, de um álibi
-"oor, diipondo_se a refletir pãfuo_
damente sobre essas questões. O povo,^no sental, que escondia, na freqüentação do corpo e na convivalidade
entanto, está operando
sozinho essa tertativa de juntar oi aoi. pólos, já mestiça, descompromissada, casual e cotidiana, um distanciamen-
que toáa coos_
to hierárquico no plano de fundo: econômico, social e simbólico.

DE CIÊNCIAS
'úuu,n*aqç1ÊT§Âs
INSNTUTO

)
36 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS MAE PRETA, TRISTEZA BRANCA 37

A freqüentação do corpo e a "fusão" nos planos religioso e rantismo-extrativismo. Em segundo lugar, e intimamente ligado a
cultural (no sentido estrito) organizavam e difundiam a afetivida- esse processo de socialização, quetrorxe como marca mais signi-
de e um simbolismo, uma quase mística da participação, identifi- ficativa o fenômeno do corpo dividido, a úolência produzida pela
cação, entre povo e elite, que levou um outro grande sociológo dependência masculina em relação à mãe - a üolência contra as
brasileiroe a falar mesmo de uma "ciülização da cordialidade". mulheres - surge nas camadas socialmente menos favorecidas,
Mas existiria, sociologicamente falando, uma coisa reificada no bojo da dissolução relativamente repentina de uma antiga or-
tal como a "cordialidade"? Existe, como sempre eústiu, um mo- dem econômica, e sobretudo social e cultural, uma üolência so-
delo de relações sociais com princípios culturais e éticos intera- cial difusa. A um corpo dividido na elite e nas classes médias,
gindo e dando como produto essa dimensão de participação-in- acresce-se hoje uma sociedade política e culturalmente diüdida,
clusão, que sempre orientou nosso processo de socialização. Exis- disjunta ao nível do povo e de suas relaçóes com aquelas. Para
te outro país onde os preceptores/mentores dos filhos da elite são lembrar os velhos mestres, fundadores da Escola Sociológica
escravos, como são escravos seus iniciadores sexuais? Francesa, afirmaria encerrando, que, mais uma vez, parece-nos
Quando a ruptura, produto de uma nova ideologia do desen- que em Antropologia tudo está em tudo, e as coisas todas se en-
volvimento, intervém no começo dos anos 60, assistimos ao sur- contram ligadas, em algum lugar.
gimento da violência como começo de resposta a esse processo de
exclusão, agora também cultural e religiosa. O malandro evolui
paÍa o assaltante, como figura central da marginalidade da socie- Bibliografia
dade brasileira. Hoje, diga-se de passagem, essa focalidade do
I
marginalismo está evoluindo para o corrupto e abrangendo toda a ALBUQUERQUE, Manoel Mauricio de. Pequena hktória da fomtação social
brosileira, Rio, Graal, 198L.
I

sociedade, virtualmente. Sinal dos tempos.


I' anaCÁO, Luiz Tarlei de. "O sacrifício de Búzios", in Jornal do Brasit, Caderno
Por outro lado, surge um apelo e uma esperança política no
irl B, nov.1979.
tri povo, de ordenação desse fundo afetivo-emocional e lúdico-social
ARAGÁO, Luiz Tarlei de. "A dessacralização do sexo e o 'sacrifício' de mulhe-
antigo, já que o sistema não produz nnais de maneira eficaz uma
il
res", in lla,ista Religiao e Sociedade, Rio de Janeiro, 1981.
resposta a esse corpo (metaforicamente) diüdido, nem no plano ARAGÃO, Luiz Tarlei de. "Em nome da mãe", in Puspectivas Antropológicas da
da religião, nem naquele do cultural (conüüalidade, freqüen- Mulher, no 3, fuo de Janeiro, 7-ahar, L983.
tação, jogos, linguagem, comensalidade). A tristeza, ünda da di- ARAGÁO, Luiz Tarlei de. "Por uma antropologia do sertâo", in Séie Ántro-
visão, busca-se agora um substituto individualístico, junto às eli- pológica, Universidade de Brasília, Departamento de Antropotogia, 1988.
tes, üa o religioso. BELO, Maria. Comunicação oral no Encontro Franco-brasileiro de Association
A violência no Brasil foi e está sendo uma "resposta" às tro- Freudienne. Paris, julho de 1989.
cas assimétricas que de repente, nos anos 60, viram-se desnuda- CAPELLI, Máno. Brésil, épopée métisse, Gallimard, Paris, 1987.
das dos invólucros que dissimulavam seu estado verdadeiro de FREYRE, Gilberto. Interpretaçõo do Brasil, José Olympio, Rio de Janeiro, 1947,
Anais do Seminário de Tropicologia. Tomos 1 a 14, &litora Massagan, Reci-
usurpação e exclusão, através do que chamamos de álibi sexual, e
fe.
da fusão no cultural. A üolência no Brasil liga-se, portanto, em
FLTRTADO, Celso. Brasil, tempos modemos, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1968.
primeiro lugar, a um processo de socialização próprio, aderente a
MARTINS, Luís. O Patriarca e o Bacharel, Martins Editora, S. Paulo, s/d.
uma historicidade, a um modelo de colonizaçáo, que se caracteri-
PAOLI, Maria Celia e outros.,4 violência brasileira, Brasiliense, São Paulo, 1982.
za sobretudo por mais de duzentos anos de escravidão e bandei-
PORTO, C,osta. O sistema sesmaial no Brasil, &litora da UnB, s/d.
PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil contemporôneo, Brasiliense, Sáo Paulo,
9. Sérgio Buarque de Flolanda. 1957.
i

I
38 CLíNICA DO SOCIAL. ENSAIOS

SCI{WARTZMAN, Simon. Bases do autoitarkmo brasileiro, Editora da UnB,


Brasília, 1982.
TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro, Editora da UnB, Brasília,
't982.

PS rQU TATRTA BUROCRATICA


Duas ou três coisas
que sei dela

Jurandir Freire Costa


ti
ll,

l
H
ri "... os homens, embora devam morrer, não nascem
I
para moiert mas Pafa conteçar."
rri
Hannah Arendt
l'l
,,1]

llill
lll
Em 1987, no Centro Psiquiátrico Pedro II, Rio de Janeiro,
llil
um homem negro, alto e magro acabava de ser hospitalizado'
Acompanhado por atendentes de enfermagem, caminhava pelo
pátio, em direçáo à unidade de internaçáo' Vinha vestido de mu-
lher. A roupa, curta para seu tamanho, era grotesca' O andar de-
sengonçado, de quem está sedado por antipsicóticos, completava
e cúa constrangedora. No asilo, entretanto, quase ninguém pare-
g5llanhamente natu-
cia incomodado com o que üa' Tudo soava
ral. Quando perguntei por que o homem estava vestido daquela
forma, a resposta foi: "Não sei' Acho que não tem roupa para
homem. SO filando com o administrador". Pouco depois, procu-
rei os colegas responsáveis pela direção do Centro' Surpreso, fui
informado de que náo haüa falta de uniformes masculinos. o que
havia era incapacidade da administração de fazer chegar, a tempo
e hora, onde necessário fosse, os estoques de roupa do almoxari-
fado. Interrogado à respeito, o administrador geral disse que a
responsabilidáde pelo acontecido era do administrador da unida-
de que recebera o cliente. Filalmente, a explicação de tudo era o

I
42
CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS psreuIATRIA suRocnÁrtcA: DUAS ou rnÊs coISAS... 43
"pedido" burocráti
burocrata, num certo registro, conhece tudo isto. Como vcremos,
,ãr, ui,do a"
"#1,Í,|;::"
"máquina,,, concluiu_se.
àl-ilH:::: Ê"ll#,Hi:If "; em seguida, ele não é necessariamente um "sádico ou um mons-
óois meses Çi., , ."r;;;?;i"*"1"
"máquina" continuava funcionando tro de insensatez". Mas não pode deixar de agir como age, nem
.àoio qu".iu e bem entendia sentir como sente, porque acredita que' sem a "máquina", não
a despeito dos esforços dos colegas
qu" airigiu_ n".pi,ri."--".
o exemplo é escabroso, po.ern àutros ãira" "pi*Jr-poa".a_ tem como agir, sentir ou, digamos de imediato, ter satisfação ou
ser descritos: mortes p-or negligência gozar.
lizaçio; brutatização firi.u- ãu"nu-ih;;;., "_á;, H;;;;
médica; Por estes motivos, penso que o debate sobre a burocracia,
morais dos internos hoje, ó uma tarefa urgente. Não porque, enquanto psicanalista ou
etc. Se escolhi o caso citado, foi
para .ri,u, o possível efeito de
comiseração.Não é este meu irt*to, po.que não através da psicanálise, tenha a ingênua veleidade de resolver o
problema.
é este o nó do problema, mas porque pode ser o caso de a psicanálise ter algo a
Comenta-se, jocosamente, nos àizer sobre alguma coisa que compromete a üda do psicanalista
meios psiquiátricos que en_
quanto a Itália inventava a. .,psiquiatria enquanto cidadão.
dámocráti.u., o, ã.à'.it
respondia com a ,.psiquiatria buiocrática,,.
Infelizmen,", p1rr"
que o fenômeno burocrático náo
fi.ou corrnoado aos muros do
asilo. A burocracia asilar pode
.", *1u* extremo, e por certo I. Da Burocracia
específico, de infestaçáo pêJa ,,máquina,,,
ãa ,o.i"auá" U..^if.ir"l
Duvido, no entanto, que ela tenhá
se cárte.rtaao em ocupar os
porões .,casas
malcheirosos das de loucos,,. Sua ação
é mais am_
pla e seus efeitos mais daninhos. por MuiLo se disse sobre a burocracia e o fenômeno burocrático,
.**guint", quando abordo nas sociedades antigas e modcrnas. Desde a relação com o "de-
um caso exemplar de funcionamento
da ,.ãaquiou Ur.*ãi.r;i
penso contribuir para a discussão sencantamento do mundo" e a supremacia da "racionalidade",
de um fato social maior, fato
que contagia o país com a virulência --'" passando pelo gigantismo do aparato tecno-industrial do capita-
de uma epidemia g.u*,
Minha hipótese é de que o exercício iirroo uuançudo, até a produção de massas consumidoras, politi-
burocrático da profissão
ou da cidadania inser camente apáticas, nas sociedades de bem-estar, totalmente admi-
versa"das."tuçoorà".i;',j:lH:#T#r:*;ff nistradas, a burocracia foi virada pelo avesso e pelo direito. Desta
do Calligaris (1986-19gg). Esta
montage*làr.ri
ffi;Zl*::- massa de estudos, guardarei apenas aquilo que está próximo de
uma economia e É um ponto de üsta certamente parcial, mas o
dinâmica própria, desvinculada d;-il;;;;ria meu interesse.
gemônica no imaginiáril socig]..
de valores, he- único do qual me atrevo a falar.
idéia de l[-de produtiüdade;
excelência de trabalho; de utiüdade de Hannah Arendt, em seus trabalhos sobre filosofia política,
au. uçãàr; de não desperdício
de recursos etc. Na montagem burocrátià, em especial sobre o totalitarismo, mostra um ângulo da gênese e
estes valores são em_
baralhndss com üstas a dãterminaao" funcionamento da burocracia, fundamental à compreensão do
n"r, qr" ,O em parte sâo
conscientemente aceitos pelos indivíduor. fenômeno, tal como o vejo (Arendt, 1973; 1976; 1979a; 1979b;
óo_o resultado, a prá-
tica crítica.em relação á burocracia 1981). Na origem da burocracia totalitária estariam, de mãos da-
J;; num obstáculo in-
das, a despossessão da cidadania de numerosas multidões de in-
transponível, quando tenta
u ,;*elrina,,
recorrendo a
-desfaz.,
argumentos justos, no quadro
dos valores àeais da *frr.". «i diúduos e a experiência de governo dos Estados imperialistas. A
estes indivíduos, expulsos da sociedade em que üviam, por moti-
apelo ao que é consensuàhente
,d-ú;;;o_o funcional, racio_
nal, útil, legítimo, responsáver,
.o*p.t"ri", solidário ou simpres_ vos históricos ou político-econômicos, ela chamou de "homens
mente como respeito ao elementarÁente supérfluos" (Arendt, 1973; t976; 1979a; 1979b). Supérfluo é o
humano cai no vazio. O
homem desprovido de qualquer direito enquanto cidadão. Sem
i-.1à, ttl ..t,rts17»
|
:l 1â{r-;.7.;rr
l!*§Tlirurü DE CíÉHdíÂs
I'UMAI-{À§ E LETq,ÂS
CLÍNICA Do soCIAL. ENSAIoS PSIQUIATRIA BUROCRÁTICA: DUAS OU TRÉS COISAS...
voz no espaço público ele é privado,
às vezes, do mais trivial direi_ sar. No estado de obediência não consentida, mesmo a promessa
to de pertencer a uma comunidade, da qual
proteção. Em certos casos, sequer
obt""h.;";;";;; de prazer futuro, que normalmente justifica as ações humanas in-
dispôÊ de um t"to, siil,úãiã a" dividuais, passa a segundo plano. A obediência cega pode encon-
um Iugar seu no mundo. A ilustraçãá acabada
encontra-se no campo de concentração.
au ,up".n-riauà" traÍ sua razã,o de ser justamente na encampação da consciência
Nos campos, à i"alriú pela perspectiva do sofrimento. Nestes casos, a antecipação em
é despossuído de tudo: ro-up1s, objeàs,
nome e, o mais grave, do pensamento dos maus-tratos físicos ou morais é a única defesa
direito à üda e ao recoúêci-"rio da sua
morte. Aos olhos do possível contra a nulidade de uma existência reduzida a debater-
mundo o interno não existe, e quando
desaparecer do mundo, é se com o injustificável: 'iForam justamente as privações, as pan-
como se jamais tivesse existido.
cadas, o frio, a sede que, durante a úagem e depois dela, nos im-
DaS respostas humaaas possíveis ao
estado de superfluidade, pediram de mergulhar no vazio de um desespero sem fim. Foi is-
duas são de interesse para meu propósito.
Uma ó , aáfirqiiàr.Jr; so. Não a vontade de üver, nem uma resignação consciente: dela
a reação desordenada e agressivà ium mundo
i_pi.aorà , unii poucos homens são capazes, e nós éramos exemplares comuns da
quilador da identidade inàiviaud. Num
recente estudo sobre o espécie humana" (Levi, L988, p. 15).
tema, pude deter-me na an..ílise deste gênero
de ,eaçao, tendã Do lado do opressor, a obediência vem como uma resposta,
como pano de fundo o indivíduo na situação
social brasileira em outro tom, ao mesmo sentimento de futilidade. A necessidade
(costa, 1988). A outra é a obediência, apenas
insinuada neste es- de pertencer a alguma coisa, pátria, nação, comunidade ou ideal
t-ydo, e que pretendo, agora, e*pro.a.'com
mais detalhes. A obe- ancorado num mundo comum a outros homens, leva o indiú<iuo
diência como resposta á superfluidade envolve
tanto ü;;; supérfluo a imaginar-se um dente de uma grande engrenagem.
aqueles qu" ";
que ocupam o lugar de opressor, quanto
lugar de oprimido. Do lado do op.imido
o.ufu_ ã Fazendo parte da "máquina", o indivíduo encontra seu mundo,
a obediência u"rn'*ÀÀ sob a figura do destino ou de qualquer outra idéia similar.
último rccurso para dar sentido u unru existência
qr" p_"."i"r_ Historicamente, afirma Arendt, esta confluência da super-
temunhar o impossível. primo Levi dizia:,,Cedo
ou'taráe, nu uiãr, fluidade humana com a máquina do destino é bem exemplificada
cada um de nós se dá conta de que a felicidade
bzáuel; poucos, porÍ-,.
completá
^opo.tu,-q* ;1.; pela burocracia imperialista do governo britânico, nas colônias
1t:ltu- para a reflexão
também é ireahzável a infelicidade africanas e asiáticas. A burocracia britâniçn, diz a autora, sobre-
completa. Os motivos que se
opõem à realização de ambos os estados_limite tudo na Africa do Sul, implantou uma forma do governo onde os
ttreza; eles vêm da nossa condição humana,
são au -"rri, ,r_ homens supérfluos, aventureiros, desgarrados e párias de toda
que é contra qual_
quer "infinito". Assim, opôe-se a esta sorte encontraÍam a boa morada. Desprezando profundamente a
realiziçao o irsufrcile.rte
conhecimento do futuro, chamado de gente nativa e o ambiente hostil, os buÍocratas do imperialismo
esperança no primeiro caso
e de dúvida quanto ao amanhã, no ,"gurao,, britânico encaravam a "empresa civthzaÍôria" como participação
(Levi, 19gg, p. 15). num destino maior cujo curso nada deveria obstar. Partindo do
Diante do Mal Total, resta obedecer:",,Logo
vem outro alemão, princípio de que os povos colonizados eram'tncapazes de se go-
diz que devemos colocar os sapatos num
canto, e assim fizemos, vernarem, a burocracia imperialista decidiu que o que era bom
porque tudo já acabou, sentimos que
estamos fo.u ao _und",;;;
só nos resta obedecer,, (Leü, tôgg, p. 21). para a metrópole não valia para a colônia. Para que o Império se
Obedec". ,ignifi.u expandisse e os povos colonizados continuassem subjugados era
ocupar-se de imediato
:?*." imediato. Significa ,á" prd;;;;;;
para pensar nas conseqüências preciso que os colonizadores fizessem da idéia da lei sinônimo de
do que é feito. Obedeclese_ .oo_
sentir é proceder conforme gestos automáticos,
I
regulamento e dos indiúduos, peças da máquina expansionista.
despidos de ún_ Esta foi a receita do pacto burocrático: "A burocracia é sempre
culos com valores sociais ou pessoais, gestos I

estes que seriam um governo de peritos, de uma "minoria expericnte", que tem de
inaceitáveis caso o sujeito dispusesse
au TiU"rara" de àgir ;Ã:
resistir da melhor maneira possível à constante pressão da "maio-
'r,-lr.ii i .,i.j
at..,,
.Á :: . 1_, i j .. r.;
' 'nt.'' ::j lHSTlru TO DE CiÊNCIAS
HU,HA NAS E LÉTRAS

I
46
CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS pSIeUIATRIA sunocnÁrtcA: DUAS ou rRÊs coISAS... 4'7
ria inexperier,.',"lf.lL,: t976,
maiores do Império deviam y
130). Dianre dos desígnios
Só que, governar através de "massacres administrativos" tem
ca.lar_se os administrados,
rambém os administ raao.".. mas um preço, o aumento da üolência: "... o domínis de ninguém é o
r_ogã, a", .rr,i*
renúncia à individuatidaae
prApia'e-liaqrr"rço aos reclamos .
"r;;;,;#:;fr mais tirânico de todos, já que não há sequer alguém a quem se
individualidade dos outros. da possa perguntar o que está sendo feito. E este estado de coisas
Xo pri_"i.o'caso, a obediência
zia-se peto sisrto tradu_ que torna impossível localizar responsabilidades e identificar o
,r;rí^';;;.";1o buro..ucial exigia um
corpo de assjstentes
1^o-el.o
altamente treinadà-s e-.dignos inimigo, que está entre as causas mais poderosas da rebelde in-
de confiança, quietação mundial de hoje, da sua nattrezacaôtica, e de sua peri-
cuja teatdade e patriotismo
vaidade pessoal, e que teriam
;;;;;;; ügados à ambição e à
"ã; d" gosa tendência de escapar do controle e de se radicalizal furio-
ração tãá humana o"-,r"."T
."";;;;?:._::::,:r: "_
samente" (Arendt, ibid., p.118). Ao acréscimo possível da üolên-
suas façanhas. Sua maior paixão
o nome ,""T:.il;il"jffi",TX: cia, como reação ao governo burocrático, a resposta nazista foi a
teria de se, o sigilo (.quanto
mc_ dissuasão pela tortura e pela morte. Com isto, já vimos, obteve-se
b'ita'i'oJ"merho'') e uma runçâo
il: ;:Jffi *::,j:9"'arios a obediência completa e integral dos indiúduos. As burocracias
eporaquere.r,"i;ii;Ê#il:'á".'.ffi
segundo caso, a obedÉncia
rig"fi;u; ;';i;,
ffi :J;'irr1?l;lli;
q m e nb :,.O
dos países ocidentais capitalistas reagiram de forma diversificada
à contestação e à dissidência. Nunca, é claro, com um milésimo
to passou a ser a atitude de alheamc n_ da truculência nazista. Mas isso não importa, no momento. Em
à, o,",,Ur", ;; J#;,;rr"
t"odos
briránica, numa form_a a" gouãr; breve, tentarei ver, no caso concreto da burocracia psiquiátrica
mo e a arbitrariedad., po.qu"
;u;';;.,*o.a que o despotis_ brasileira, de que reação são capazes os funcionários lotados nos
nem ao _ãno, tolerava
último de ligação entre o dÊspota aquele elo scrviços psiquiátricos. Por enquanto, basta notar que em qualquer
rl
bornos e os presenrer,,
, ,.* .,iai,os, que eram os su- variante do fenômeno burocrático um aspecto apresenta-se como
il
1e.*ãf iliu, r. à1. invariável: a adesão cega e obediente do burocrata aos regula-
Obtido este grau de. eficiência
,,|
à".áo,
il pronta para funcionar. Tiúa " u iaá;ua burocracia estava
aniquilado
mentos e a assombrosa anestesia diante das necessidades dos in-
P
lil mundo comum, pondo.no rugu. a" irái"ãr",i"i," diúduos e do "espírito das leis humanas".
u iãããÀ-funcionário obedientc Quando Hannah Arendt presenciou o julgamento de Eich-
aos regulamentos e dedic"g3;
nista. Assim, diz Arendt: .,E. lj{iiu."ça" e à causa expansio- mann, entendeu que não se encontrava frente a nenhum louco
óbüo q* '"rr". agentes secretos sádico, particularmente inclinado a gozaÍ com os abomináveis so-
ou anônimos da forca expansionista
de obediência à leis h*rna;
,ao tint am o menor senso frimentos de suas útimas. Em sua frase mais famosa, "a Banali-
'lei' da expansão, e a única
;;;;,ü,, ,u" seguiam cra a dade do Mal", sintetizou o que üa. Eichman era um homem co-
p.";;;" .;rr"urroua" mum, estúpido, que considerava a vontade de Hitler inquestioná-
(Arendr, 1976, p. r32). urna.v-;ãà;il?,,rorça era o sucesso,,
da hisrória,,, o vel. Mesmo nos bancos de réus, continuava chamando de "eya-
tuncionário, como disse cecil
Rhlãe;;1., ,r" podia fazer cuação" e "emigração" a deportação para os campos de concen-
fizesse ,?;il;;
rado", e, entâo, tudo o que nada er-
ser certo,, (Arendt, tração e extermínio, e admitia que, embora sem odiar todos os
ibid.). Foi esra idéia d. turo..u.i,
ou de "domínio de um intrincaào
;;;ü;_ínio de Ninguém,, judeus, seria capaz de mandá-los, de novo, para a morte, se assim
qual nenhum homem, nem
;;;";" departamentos no a obediência cxigisse (May, 1988, pp. 90-99). Era o perfeito fun-
o único nem o melhor, nem poucos cionário, identificado com um destino que não podia recusar, e
nem muitos, pode ser considerado,"rfã^au"f ., f"l
estava pronta paÍa ser utiriizada ;";;á;;; sempre pronto a abrir mão de pensamentos próprios, em benefí-
p"ror-totãit"'smos nazista cio da máquina. Este mesmo sentimento de perplexidade, diante
talinista' e pera tecnoburo-cracia e es-
ã* p"rr* .rpitaristas ocidentais
----- vd da "banalidade do mal", foi viüdo por Levi, quando encontrou,
(Arendt, t973, p.11g e p. 151). '
pela primeira vez, os SS: "Teríamos esperado algo mais apocalíp-
tico, mas eles pareciam simples guardas. Isso deixava-nos descon-

,l
48 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS psIeurATRIA gunocnÁrtcA: DUAS ou rRÉs coISAS... 49
certados, desarmados, pois os SS agiam ..sempre com a pacata
segurança de quem apenas cumpre com sua tarefa diária,, (Levi,
comporta a burocracia no asilo, precisando que chamarei de "bu-
1988, p. 18). Monstruosidades cometidas por não_monstros,
rocrata" todo profissional da área assistencial ou administrativa
desta cujo perfil aproxime-se daquele desenhado por Hannah Arendt.
forma Arendt finaliza seu diagnóstico de Êichmann e da burocra-
Aos profissionais que não se enquadram neste modelo, reservarei
cia homicida. Não sem antes acrescentar: ,,O fatormais potente o nome de "técnicos". Esta terminologia, grosseira sob certos as-
no apaziguamento da consciência de Eichmann foi não teiconse-
pectos, permite-me, no entanto, distinguir categorias profissionais
guido encontrar ninguém, absolutamente ninguém, que fosse
de que, embora diversificadas, inequivocamente estão -divididas em
fato contra a Solução Final,' (May, 19gg, p. g4r.
campos opostos e bastante visíveis, para quem conhece a realida-
Não tenho a intenção de ser retoricamente irresponsável. O
de asilar.
burocratismo brasileiro, dentro ou fora do asilo, não é o terror
nazista nem a burocracia imperial britânica. Identificar o pequeno
burocrata dos serüços públicos ao nazista seria o rn"r-o q* br_
Burocracia Asilar ou a Loucura no 6'Coraçáo das
nahzar uma tragédia talvez sem paralelo na história da humani_
dade. Do mesmo modo, seria ridiculamente bombástico afirmar
II.
desse funcionário, que ele üsa à expansão de algum império; que
Trevas"
é incorruptível ou que está lear e patrioticamente convertidó a
uma eventual grande causa do país. O efeito de uma incon_
As instituições psiquiátricas brasileiras, nos vinte anos de au-
seqüência intelectual deste tipo seria o de comprometer a serie-
toritarismo, foram loteadas entre políticos inescrupulosos e ad-
I
dade do problema discutido. euestões graves não se resolvem
ministradores de órgãos executivos igualmente irresponsáveis.
com metáforas estéries e grandiloqüentes. por conseguinte, não
trl

Todos cles, simultânea ou sucessivamente, quando no poder, ser-


rl se trata de comparar incomensuráveis. Trata_se de oúservar co_
,'1
viram-se dos hospitais como cabides de emprego para seus apa-
ill mo, submetidos a condições semelhandes de expropriação de
Il drinhados. Em sintonia com o nepotismo e a corrupção do perío-
llr dignidade humana ou de cidadão, o indiúduo pode-chega, ao i*_
pensável e inimaginável. O pequeno funcionáiio brasilúro do ditatorial, nomearam sem concurso ou exigência de qualifi-
não é cação um enorme contingente de pessoas, para os setores admi-
um nazista ensandecido, mas nada garante, e isto é o pior, que
posto em situaçâo de dissolução social e superfluidade iu-ana, nistrativos e assistencial. Muitos destes funcionários entraram no
não possa vir a sê-lo. Ele, aliás, como grande parte de todos nós. hospital para realizar tarefas de limpeza, manutenção ou peque-
Por?nto, espero que o leitor não confunda adáção de parâmstr65 nos serviços administrativos. Com o tempo, a maioria procurou
teóricos para a explicação de certos fatos histórico., .á* identifi- escapar do "serviço pesado", exercido em condições deploráveis,
cação Jestes mesmos fatos. Tomando as análises arendtianas e ascender profissionalmente, assumindo trabalhos mais nobres
do na hierarquia asilar. Devido à carência e sobretudo à má adminis-
totalitarismo como paradigma de estudo das burocracias, procu_
rei,,somente, realçar os traços comuns a todas elas, quá ,ão, tração de recursos, alguns tornaram-se atendentes de enferma-
u gem e outros foram superlotar as salas de chefia, recepções e por-
anulaçâo do indivíduo; a obediência cega a regulamentàs que
fa_
zem as vezes de lei, e, por fim, a construção de mundo ,o.à tarias. Muito em breve, a desqualificação técnica e a negligência
fuo_
tasmagóri,o, regido por ,,forças,, ou ,.ordens,' que emanam das direções criaram no asilo um qua<lro de pessoal inchado,
de
Ninquém, porque são tidas como oriundas da Traàição, da Histó_ ocioso e absolutamente descomprometido com o atenCimento de
ria, da Raça, do Costume, do Estado, ou simplesmente da versão clientes. Grande parte estava ali porque não podia estar em outro
abastardada de destino, que é o ,,não tem jeiio,', ,,sempre foi lugar. Nada em psiquiatria lhes dizia respeito. Mutatis mutandis, o
as_
sim e assim vai continuar sendo,,. Isto dito, vejamoi como mesmo aconteceu com os profissionais da área assistencial' Para
se
alguns, o hospital era a fonte de renda secundária, que garantia

)
50
CLíNICA DO SOCIAL. ENSAIO.S
PSIQUIATRIA BUROCRÁTICA: DUAS OU TRÉS COISAS... 51
exercício da profissão, em condições
dignas, fora do asilo; para
outros, o lugar onde haüam enterrado quulqr.. dor dos internos. Estes eram poucos, pouquíssimos, e se existiam
urpiruçaouá..- era apenas para provar o que de modo geral o burocrata "sabia":
conhecimento, pelos par-es,. d_a competência
[ara faier psiquiatria.
n_ d ,ililr;.;
Com- a.compressão s.al.arial provàcada pêto não adianta, por mais que se faça, tudo é desprezivelmente insufi-
econômico"; com o privilégio ioncedido
vado" (que, diga-se-de pur.ug"*, üve da
à chamado ,...;;;; ciente. Distantes dos centros de produção científica; pouco exigi-
dos pelas direçóes omissas e cúmplices da ineficiente máquina
subvenção prfUfi."j, administrativa, os burocratas da assistência progressivamente fo-
com a crise econômica que seguiu_se ao
dade e ao despreparo tóinico, io*ou_."
regime nrititu., à o.;;i" ram mergulhando numa rotina de cuidados tão árida quanto a de
úatisfação .;;;
a
biente de trabalho. Mal pagos e trabalhando
em hospitui, ";
d;;;
seus pares da administração.Dentro em pouco, só se distinguiam
dentes, estes funcionrários fizeram dos deles pelo diploma obtido na universidade e pela suposta respon-
dono, onde a última preocupação era com
serüços ,_ lrg;r;;;b;;_ sabilidade legal que tiúam de tratar dos internos.
a quaüdade da as_
sistência. O término do regime militar surpreendeu estes funcionários
Do Iado da administração,a, insatisfação refletiu_se na prática
em meio à mais profunda sonolência. O hospital, por seu turno,
burocrática de rotinas e protocoros, d"spachados transformara-se numa trincheira devastada pela incúria de todos.
rastiaiosalreotel
sem o menor empenho ou sentido de produtiüdade. Havia ganho o ar sombrio de um "mundo fantasma materializado
Insatisfeitos
.o.T.ro, trabalho que nunca respeitaram; descontentes num sistema onde existiam todos os dados sensoriais da realida-
com um
salário progressivamente aviltadà, e obrigado. de, mas ao qual faltava a estrutura de conseqüências e responsa-
o .oouiu", .ÀÀ
uma populaçâo de .loucos,, e ,,pobres,,,-pela bilidades, sem o que a realidade não passa de um conjunto de da-
qual sentiam o
mesmo desprezo racista e classistà das dos incompreensíveis" (Arendt, L979a, p. 206). O descomprornis-
eiites, os burocratas ha_
bituaram-se a esperar, ano a ano, que o Estado so com a ética da assistência privou o asilo da única função que
e o. politi.os ,e-
solvessem miraculosamente o qr" ,rão poderia justificar sua utilidade ou existência. Sem isso, nada mais
ia bem. Enquanto espera_
vam, cumpriam morosamente o arremcdo poderia ser, exceto aquilo em que efetivamente se tornara, um
de tarcfà qu" lh"'.-;;_
bia e construíam uma cultura asilar, em que depósito de homens inúteis ou inutilizados. Os clientes cronifica-
os pequenos Íavores
substituíam as ',promoções,, e a ,.melhoriâ dos vagavam pelos pátios ou convertiam-se em agregados, que
de viáa,i que rao .he_
gavam. circulavam como espectros, no meio da burocracia. Alguns ser-
Do lado da assistê"fia, os burocratas, apesar üam de "boys" para burocratas que, na falta do que fazer, con-
de gozarem de
alguns privilégios a mais, particularmentl
os médicos, também tentavam-se em viver a paródia de "ter subordinados à dispo-
mostravam os mesmos sinais de marasmo.
Aqui e ali, aigu.rs téc- sição". Por outro lado, a impunidade com que eram tratadas
nicos tentavam reverter a situação. Mas,
ou eram batidos pcla üolências sexuais e abusos físico-morais contra os internos, além
i,ércia da burocracia ou, como aconteceu no pedro das habituais falcatruas administrativas, teve o aberrante efeito de
II, eram ex_
pulsos do hospital como,,comunistas
e subversivos,,. E;q;;t";-
nivelar por baixo a morzúidade asilar. O certo e o errado; o justo
so, os burocratas assistenciais continuavam
a queixar_se de que e o injusto; o permitido e o proibido perderam a razáo de ser.
não tinham condições de trabalho, para
efetivar"_ u u..irteri.iu Tudo era possível s rm lugar onde os melhores eram levados a
desejada. Conservavam o emprego como
um ,,bico,,, ia_ t.ubul perder a esperÍrnça e os piores a perder o temor. Formou-se uma
lhar, de fato, lá fora, onde o ,,eIpírito do " comunidade de "condenados" da cidade, vivendo num universo
serviço ptblico,,ainÀ
não chegara. Como os funcionários administruiiuô., fechado e promíscuo, onde as distinçóes de papéis e funçõcs di-
buro_
cratas também se acostu*yu- a ver o hospital "ste, luia-se na mesma falta absoluta de sentido do que ali se üvia ou
.";" ,;;;;;
l"ll9:: A assistência, quando prestada, .ru Jb.u de um ou outro fazia.
Separando uns dos outros, havia apenas as grades dos pavi-
rnorvrduo, que não conseguia permanecer
infens«.r à miséria e à
lhões, reservadas aos internos, e o direito de oprimir, que só os

I
52 CI-ÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS PSIQUIATRIA BUROCRÁTICA: DUAS OU TRÉS
COISAS"' 53

serviço público é imobilista. Ele não visa expandir ou


fazer cres-
burocratas possuíam. No mais, todos estavam naquele lugar para
da burocracia lhe é indiferente ou
nada. Os burocratas da assistência sabiam que os colegas da ad- .e, nadà. O próprio aumento
o mesmo e, sempre que possí
ministração eram ociosamente supérfluos e üce-versa. E, juntos, incômodo. Seu újetivo é manter
todos sabiam que estavam no hospital, não para tratarem de lou- vel,voltaraoquecraantes.Omodocomoaburocraciaasilar
reagiu à mudança, através de táticas autopreservativas' mostra'
a
cos ou clientes, mas para sobreüverem. Apartando-se do mundo
e a maestria de sua per-
de fora em troca da "estabiüdade do emprego púbüco", haviam um só tempo, seus traços constitutivos
'versão. Com nuances, icredito, estes traços reproduzem a condu-
perdido o lugar e a habilidade de poder üver neste mundo. Isola-
ta de inúmeros outros funcionários públicos, confrontados com
a
àos dos "valores sociais estabelecidos e jogados à mercê de si
hábitos burocráticos. Rapi-
mesmos" em "nada acreditavam, mas podiam chegar a crer em possibilidade de terem que alterar os
pela
tudo" (Arendt, 1976, p. 99). Tinham perdido todo suporte de suas ãa*erte, vejamos três dentre as várias manobras executadas
identidades de cidadãos, restando-lhes, apenas, a paixão pe'a bu- burocracia, para guardar sua hegemonia no asilo'
rocracia. A indiferença para com a degradação dos internos; a
renúncia a qualquer objetivo pessoal e o anonimato em que vi-
viam, para escapar do trabalho e ocultar a desquaüficação profis- a. O Mito do Perseguidor e a Ciaçdo do Super-Sentido
sional, igualava-os, em superfluidade, aos pacientes crônicos ou
candidatos à cronificação. O que fizessem ou deixassem de fazer;
o que pensassem ou deixassem de pensar, a ninguém interessava. O burocrata, instado a mudar, sente-se lesado em seu "direi-
paÍa
Para se fazerem notar, de pouco dispunham além da maledicên- to" de permanecer quieto. Atemorizado com o futuro, que
Estado"' jam3i5
cia, da intriga ou da üolência que podiam exercer uns contra os ele só pode e só deve ser obra dos "políticos e do
de si mesmo ou de seus companhgirss' procura
perverter' a,todo
outros. Como o Sr. Kurt, de Joseph Conrad, estes indiúduos ti-
custo, o sentido da mudança' Primeiro, busca impor a
qualquer
nham se tornado "ocos por dentro", "cobiçosos sem audácia e
jargões
cruéis sem coragem" (Arendt, L976, p.98). Aprisionando a loucu- p."ço o valor da burocracia. Na teoria, quando repete os
relação
ra no "coração das Trevas", sem querer, também tornaram-se ie.ni.o, sobre a importância das "atiüdades meio" em às

"atividades fins". Esta tática não convence porque todos


sabem
prisioneiros. Pior que isso, habituaram-se a zelar ciumentamente
auto-re-
pela integridade da prisão, expulsando os intrusos que se aventu- que a burocracia só tem uma finalidade: perpetuar-se ou
melhor dos casos' Desfeita a farsa teórica' é avez
ravam a abri-la. produzir-se, no
"prática". A tática, aqui, consiste em multi-
Nesta atmosfera de irrealidade infernalmente real, a perspec- àe mostrar o valor da
e regulamentos, a pretexto de gue
tiva de mudança surgia como penosa e ameaçadora. O toque do flica, p.otocolos, despãchos
feito dentro das "normas legais"'
despertador fez do sono burocrático um pesadelo. Na luz do dia, irao qr" for feito tem que ser
todos os resultados da rotina irresponsável começaram a mostrar Nu. guu"tu. dos burocrãtas, todos os projetos mofam; todas as
ganhs 5ç-
a verdadeira cara. A sujeira familiar tornou-se, subitamente, sór- inicialivas arrefecem e todo entusiasmo desbota. Como
formarem-se nas portas de seus gabine-
dida; o abuso de remédios e eletrochoques, incompetência; o ex- cundário, o burocrata vê
pedir boas gaça! para trabalhar'
cesso de papéis e pessoal, desperdício; o descaso "dispensado" tes, filas dos que vêm
'
suas -
Se mesmã arsim,^que- se interessa pela mudança
não desis-
aos clientes, crueldade, e assim por diante. Para desfazer uma
imagem que haüam fabricado, e que o tempo lhes colara ao ros- te,oburocratalançamãodeoutrotrunfo'PassaaacusaÍosrnsrs-
to, rcstava tentar exterminar o futuro e remanejar falaciosamente tentes de aÍrogantes e incapazes de conviverem harmoniosamente
no trabalho. õria o "mito do perseguidor", no qual se outorga
o
I

o passado.
papel de útima. Com o misto de credulidade e cinismo' carac-
Ao contrário do burocrata nazista ou imperialista, engajados I

na expansão da causa, do império ou moümento, o burocrata do I


i"titti.o de quem vive à margem das "leis humanas" e da socie-
i

L
l
I
I I

I
CLINICA DO SOCIAL. ENSAIOS
PSIQUIATRIA BUROCRÁTICA: DUAS OU TRÉS COISAS... 55
dade ao ar liwe, o burocrata começa realmente a acreditar no
que inventou. Vô sempre um supersentido ou um sentido vencê-los de que não existe nenhum supersentido no que se faz
oculto ou se diz. Proüferam as reuniões e as discussões. De cada uma
nas intençôes dos técnicos. eualquer proposta ünda destes
últi_ delas o burocrata sai cada vez mais conücto de que tem razão:
mos é olhada com desconfiança e rancor. §e se critica o estado
de querem mudar tudo para prejudicá-lo. Para rçbaixá-lo, fazendo-o
coisas existente, isto é interpretado como ataque à sua pessoa.
Se trabalhar com loucos ou suportar a presença de loucos, que de-
é mostrado que, embora não totalmente responsável pelo que
viam estar trancafiados.
!ou-v9 ele foi complacente, reage dizendo que a culia é áos Chega, a55im, o momento previsível e ineütável. Exasperados
"políticos e do Estado". Se tivesse*, oo pu..ido, os reiu.sos do
presente teriam feito o melhor. euando, chegado a este ponto, com o cerco burocrático, que paralisa tudo e todos, alguns técni-
argumenta-se, "por que, então, não fazer agora, o melhor, ja qr" cos desesperarn. Tomam decisões à revelia dos burocratas ou
os recursos estão disponíveis,,, a resposta é: porque nao mals passam a tratá-los de modo ostensivamente insultuoso ou depre-
acredito que alguma coisa possa mudar. ciativo. A burocracia aproveita a ocasião e reage em uníssono,
E um circuito em que a palawa colapsa. lJmavez criado, o clamando por justiça, diante do "desrespeito" a que vem sendo
mito do perseguidor age com a força de todo mito. Se um tócnico submetida. Olhada de fora, a situação é tragicômica. Pessoas ha-
interpõe-se entre um cliente üolentado e um funcionário bituadas a exibirem, sem o menor escrúpulo, o mais caricato ser-
úolen- ülismo, tornam-se, de um momento para outro, hipersensíveis
tador, não é porque quer tratar melhor o cliente, é porque quer
"humilhar" o funcioniírio. Se propôe mudanças nas conàutas aos arranhões em suas identidades prohssionais. Só que, não se
rapêuticas, não é porque as acha obsoletas, é porque quer
te_ trata, por trás desta reação, de defender o indivíduo; trata-se de
des_ fazer sobreviver a burocracia e a identilicação com o papel do bu-
qualificar o saber dos que não pensam como ele. Se exige puniçao
para os que persistem maltratando os internos, não rocrata. E é desta tentativa de reparação da identidade burocráti-
é em nàme-de ca, atingida pelo perscguidor imaginário, que nasce o mito da no-
uma ética de cuidados, é porque é fascista, autoritário
ou desu_ breza das origeus.
mano. Com o jogo da vítima e do perseguidor, o burocrata
ganha
o primeiro lance. Consegue desüar a aienção dos internos,"para
concentrá-la no atendimento às suas reivindicações.
b. A MistiJicaçao do Passado
Simultaneamente ao jogo da útima, o burocrata redobra
o
ataque ao "perseguidor,,, reforçando o método da acusação
anô_
nima. Sentido-se à vontadç no anonimato requerido
e cultivado Não tendo como contrapor-se à mudança por meio da per-
pela burocracia, delata companheiros e espalhi boatos,
com uma suasão fundada cm argumentos aceitáveis, o burocrata recorre ao
perícia inwlgar. Esta tática da conversa em voz baixa,
e da menti_ passado como fonte e justificação de seus pleitos presentes. An-
ra dita em tom de confidência verdadeira, alimenta a fantasia
da tes, diz o burocrata, tudo era perfeito. Como assim, pergunta-se?
perseguição e dá à covardia a aparência de heroísmo.
Forjando Cada um ocupava seu lugar, é a resposta. Os diretores eram assí-
um clima de "resistência à mudança", a burocracia fabrica
tiamas duos e os funcionários também. Os internos eram bem tratados,
cinzentas e prova à si mesma que a impotência pode ter força.
No nos paülhôes em que permaneciam reclusos. Não havia a "iÍres-
lugar da inexistente mobilização profiisional pálo trabalho!uaL_
ponsabilidade" e a "baderna atuais". Novas perguntas: mas se tu-
ficado, surge uma mobilização iniensiva üsando combater
a mu_ do funcionava tão bem, por que o hospital transformou-se no que
dança. Tudo gira em torno da pretensa maldade ou prepotência
do "perseguidor". Dias e horas que deüam ser dedicádoi é? Ou ainda, quais eram estes funcionários e o que foi feito de-
ao tra- les? São os mesmos que no momento nada fazem e nada querem
balho produtivo, são desperdiçados pelos burocratas em complôs
fazer? O que aconteceu, para que um passado tão radioso se tor-
de esquinas, e pelos técnicos, tentanão desativar as int.igas
e coo_ nasse uma atualidade odiosa? A rcsposta do burocrata é sempre

)
56 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS
psreurATRrA euRocnÁrrcA: DUAS ou rnÉs corsAs... s7

burocráticos, baseada na responsabilidade de Ninguém. euanto


a mesma: foram os "políticos e o Estado" que deixaram o hospi-
ao passado recente, é apenas um argumento retórico, usado para
tal morrer à míngua.
revalorizar o passado mistificado e afirmar a não responsabilida-
O refrão da culpa dos "políticos e do Estado" é, em primeiro
de pelo descalabro presente. De qualquer forma, a falácia passa-
lugar, sinal de demissão completa da responsabilidade individual'
dista resulta em mais acusações ao "perseguidor',, desta feita, sob
OI políticos e o Estado, de fato, são Ninguém' E de Ninguém não o modo especioso de crítica em nome da tradição ou dos bons
,e iode cobrar responsabilidades. Em segundo lugar, o refrão hábitos dos velhos tempos.
manifestamente coloca o burocrata numa situação contraditória'
pois foram estes mesmos políticos e este mesmo Estado que lhe
permitiram locupletar-se no cargo que ocupa, através do nepo-
c. A Dissuasao pelo Desdém
iir*o da politiiagem eleitoralista. Em terceiro lugar, o clichê da
"
,,responsabilidade ãe Ninguém" é a maneira encontrada pelo bu-
.o.rãtu de aÍirmar sua inocência, diante da crítica, e sua futura A tcrceira manobra burocrática contra a mudança apóia-se
omissão, diante do projeto de mudança. no desdém. Ao contrário do mito do perseguidor, fundado basi-
O passado da tu.ocracia é sempre um passado cindido em camente na creduüdade, a hierarquia do desdém, sustenta-se
',1 passado remoto e passado próximo. No passado remoto, distan-
predominantemente no cinismo. Na falta de uma hierarquia san-
àiudo do olhar e dã testemunho atuais, o burocrata concretiza
a
cionada por priacípios éticos e de competência específica, surge,
fantasia de uma responsabilidade que nunca teve' Tal
,i passado é
que tenta no asilo, 'ma hierÍüquia da desfaçatez, radicada no oportunismo
um mero expediente empregado para desmoralizar o
se
e no ataque à moralidade do trabalho. Esta manobra é sobretudo
I

eram
fazer no presente. Os diretores, médicos e administradores
rf

flagrante na conduta dos burocratas assistenciais. Em primeiro


I profissionais "competentíssimos", "humanos", "amigos"' e reco- lugar, o desdém manifesta-se em relação a autoridades. Tenta-se,
nhecidos unanimemente pela comunidade especializada como
,i

ilt
por todos os meios, destruir a autoridade dos encarregados das
I raros e irreprÀdutíveis de amor ao trabalho e clari- mudanças, valendo-se ora do fetiche do saber, ora do exercício da
llr
"*".plur",
údêniia científica. Seus nomes e feitos ultrapassavam os muÍos contrafação democrática. Os burocratas assistenciais, pelo fato de
do asilo e chegavam a toda sociedade' A melhor prova' diz
o bu-
era de esperar' serem legalmente habilitados a opinar cientificamente sobre o
rocrata, é que são comemorados até hoje' Como
promo- que é bom ou melhor para os internos, usam desta prerrogativa
u, .or"*o^.uçóes nada mais são que os encontros rituais' para bloquear a mudança. Argumentam que o que se quer fazer
uialt p"fu bu.ocracia, a fim de reconciliar-se com um passado
não é científico ou cienti-ficamente comprovado. Alegam que tal
fictíciq capaz derestituir-lhe uma dignidade nunca tida' ou qual "mestre pcnsador", tal ou qual manual acadêmico, dis-
Na veidade, alguns destes "pais fundadores" foram' de fato' cordam dos métodos de tratamento propostos. Face a este saber
frguras de proa do alienismo. A posteridade soube reconhecer- abstrato, porquanto tncapaz de fazer ver sua excelência prática ou
lh"es o mérito dos que lutam por razôes que
julgam honestas e
teórica, tudo o que se propõe é bobagem ou está fadado ao fra-
verdadeiras. Não é caso, entretanto, da maioria dos personagens
pela burocra- casso. O que é bom e seriamente científico só o burocrata sabe e
heróicos que habitam o passado remoto, cultuado
autores pode fazer. Mas como no asilo (que, en passant, ele ajudou a
cia. Estes foram, muitas vezes, burocratas da assistência'
o hospital' criar) isto é impossível, resta, então, cruzar os braços e ganhar di-
ou cúmplices da rotina de abandono a que foi entregue
nheiro sem trabalhar. Quando se argumenta que, se assim é, por
Valorizando-os, a burocracia, inadvertidamente ou não, reafirma que ele não deixa o emprego, cedendo a yez a outro que queira
seu papel de guarcliã da üolência da superfluidade'
Toda a lin-
trabalhar, o burocrata ri e retruca: "Emprego público não se lar-
;;;g'"; "* qí" ó feito o elogiointernos
do passado
e à
está
rede
permeada
de
de
interesses
ga. Além do que, preciso do dinheiro para financiar minha for-
ã*atiuçao ao àprisionamento dos
Ii'


lll ;
NII

,li
iri 5B CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS PSIQUIATRIA BUROCRÁTICA: DUAS OU TRÉS COISAS... 59

ili mação profissional". Se, ainda assim, replica-se que esta conduta ber-fetiche e à contratação do conúvio democrático. Autoridade
I não éjusta, dado que o dinheiro ganho vem da riqueza produzida que só consegue exercer-se pela força é uma autoridade sem legi-
Íii
pelos trabalhadores que, agora, deveriam ter direito à assistência timidade.
il
ii deüda, porque na vida produtiva pagaram por isso, o burocrata Em segundo lugar, a hierarquia do desdém é montada sobre
ii responde que a culpa não é sua, é do Estado e da sociedade. A a tentativa de inverter imaginariamente os papéis de técnicos e
estâ altura, o interlocutor volta a perguntar: mas que sociedade é burocratas. O burocrata assistencial, acuado pela exigência de
esta? Você não é parte dela? E, mais que isso, não é sua obri: produtividade, passa a acusar os responsáveis pela exigência de
gação ética, enquanto profissional da assistência, fazer o melhor "burocratas". Assimilando burocracia à gestão responsável, inver-
pelo cliente? Tudo recomeça. A culpa é do Estado e da socieda- te o sentido da palawa com o objetivo de intimidar os técnicos.
de, repete o burocrata. Mas isto justifica sua omissão, reinsiste o Um administrador que gere a instituição, em nome de leis ou
interlocutor? Como resposta, o burocrata chama-o de "obtuso" princípios consensualmente aceitos como legítimos, dentro da
ou "moralista". Razões sociais mais amplas, que condicionam hierarquia de valores que define as finalidades de tais instituições,
ações indiücluais, diz ele, não podem ser discutidas com quem não é um burocrata. Mas no mundo fantasmagórico do asilo, tudo
tem o espírito limitado de franciscano ou filantropo. Fim de con- é possível. Fatos e evidências nâo contam. O contestador oportu-
vgrsa, nista facilmente torna-se líder da "resistência", posando dc
,ll

li
Paralelamente a esta tática, uma outra é posta em marcha: o "consciência moral" de uma "burocracia" que ele e seu séquito se
encarregam de fazer sobreviver. 0 resultado mais nocivo da per-
,l

engodo do "respeito à decisão democrática". Sempre que se peclc


ao burocrata que cumpra aquilo que é de seu devcr, a resposta ó versão burocrática é o de levar os técnicos a um impasse: ou con-
I

que ele não aceita esta intromissão "antidemocrática" e abusiva tinuam fiéis aos princípios éticos que uorteiam os projetos de
na intimidade do exercício profissional. O burocrata assistencial, mudança e são congelados pela burocracia, ou sucurnbem à poei-
por princípio, julga-se isento da obrigação de prestar contas a renta discussão burocrática de "como conduzir burocraticamente
seus circunstantes, daquilo que faz. Seu metro é o sabcr-fctiche; a mudança", e também não saem do lugar. Fora disso, os poucos
sua justificativa é o "apreço" que tem pela "democracia". Com is- que suportam a pressão, ou desistem a curto ou médio prazo ou
so, toda negligência ou incompetência acha-se absolvida de an- são neutralizados em suas posições de trabalho.
temão. A regra do "não posso estar errado" ou do "tudo o que fi- Já se disse que o asilo é a fotografia em branco-e-preto da
zer passa a ser certo", observada na prática da burocracia impe- sociedade. Nele, a violência social exercida contra os mais frágeis
rialista ou totalitária, é acionada, no asilo, por outros motivos. À aparece nua, sem maqúagem ou meios-tons. Cada faceta do uni-
diferença destas últimas, a burocracia assistencial não é moüda verso asilar é um eco ampliado do que se passa ao redor dos mu-
pelo fanatismo de quern segue ao pé da letra a "verdade" das ros. Em conseqüência, nada se ganha opondo o asilo à sociedade,
razões do Estado ou da Raça. Ela sabe que o que faznã,o se sus- já que ele é um de seus dispositivos homeostáticos, um dos locais
tenta na ciência. Quando manipula o "saber-fetiche" e a "demo- reservados aos descamisados e aos improdutivos. Quer se veja o
cracia ad hoc" está sendo cínica. Está pondo o interlocutor contra asilo como metáfora materializada do banimento da desrazão,
a parede, porque usa palavras como "saber" e "democracia" co- quer como imagem especular do aleijão que é a sociedade brasi-
mo instrumento na defesa de interesses oportunistas. Seu objetivo leira, é impossível analisá-lo como um abcesso encapsulado num
último é coagir a autoridade a empregar a força para fazer-se organismo sadio. Ou a análise do asilo é,ipso facto, crítica do so-
obedecer. No momento em que isto ocorre, a burocrata obedece. cial ou é uma análise ideológica ou idealista, que exagera o valor
Obedece em primeiro lugar, porque é serül; em segundo lugar, do cisco para ocultar a doença do olho.
porque ganhou a batalha. Obrigando a autoridade a recorrer Não nego a interação permanente do asilo com a sociedade
à violência, o burocrata mostra que ela é impotente face ao sa- que o criou. Mas se é verdade que a burocracia psiquiátrica, co-

)
cr-ÍNrce Do socIAL. ENSAIoS psIeurATRrA sunocnÁrtcA: DUAS ou rRÊs corsAs...

mo as demais burocracias, são o fruto de uma sociedade injusta, III. A Perversáo Subserviente
racista, nepotista e violenta, comandada por uma elite incon-
seqüente, corrupta e sem nenhum sentido do que seja interesse
público ou interesse de um povo, também é verdade que o esta-
A meu ver, uma das formas de entender o jogo burocrático é
compreendê-lo como uma forma de perversão. Perversão, em
mento burocrático cresceu, desenvolveu-se e aprendeu a lucrar
psicaniílise, é um termo sujeito a múltiplas interpretações. Neste
com o estado de desmando. Sem contar que, dissolvendo o pro-
trabalh6, não tenho a intenção de discutir o assunto pelo viés da
blema burocrático no problema maior da sociedade, corremos o
revisão teórica de suas leituras metapsicológicas. Como afumei,
risco de jamais vê-lo no que tem de particular. A dependência da
de início, penso empregar no estudo a noção de perversão, con-
burocracia paÍa com a sociedade é inegável, porém é igualmente
forme a tematiza Contardo Calligaris. Servindo-se da noção laca-
inegável que a parcela de poder que hoje lhe é devolvida tornou-a
niana de "laço", Qalligaris pergunta se a perversão não é um laço
independente, em muitos sentidos. Diante do poder maior do Es-
social; melhor dito, o laço social por excelência (Calligaris, 1986).
tado ou da elite econômica, a burocracia é inquestionavelmente
Na estrutura perversa, o sujeito "encontraria uma maneira de
servil e bajuladora. Todavia, diante do cidadão desprovido de po-
reunir, no fantasma, a posição fáüca do sujeito e a posição obje-
der e no caso da burocracia psiquiátrica, isto chega ao paroxismo
tal" (ibid., p. 11). O que significa isto? A explicação exige uma
il, - ela é insolente, feroz e 5s6 limites. O problema não é, portan-
comparação com a saída neurótica. O neurótico, quando respon-
to, destacar a burocracia de sua matrtz social, como se além dela
de à demanda do Outro que o soücita enquanto objeto, defende-
tudo fosse muito bem no melhor dos mundos. Tampouco, é de
i se "respondendo com palawas ou autorizando-se pelo pai, pelo
rl alrmar que a questão burocrática é um véu ideológico, ou a in- saber do suposto pai, para pagar ao Outro com palawas,, (ibid.).
I
significante ponta de um iceberg, este sim, o verdadeiro responsá-
Esta solicitação do sujeito euquanto objeto, ahrma Calligaris, se-
vel pelo naufrágio da psiquiatria. O véu faz parte da realidade e,
I

guindo Lacan, não é uma solicitação, digamos, opcional. É ne-


sem ponta, iceberg algum faria naufragar naüos'
cessária, na medida em que, para que haja sexualidade tem que
A burocracia, quando olhada sem a complacência do pater-
haver fantasma (pré-requisito freudo-lacaniano), e todo fantasma
nalismo, corrói toda possibilidade de conúüo social solidário, em
funda-se sobre o objeto parcial. Isto é o mesmo que dizer que "o
maior ou menor escala, e transforma os que dela fazem parte em
que faz com que alguém tenha üda sexual é que exista olhar, voz,
indiúduos desprovidos de vontade e poder de agirem socialmen-
esperma etc." (ibid.). Por este motivo, "o gozo que encontra o
te. O burocrata, preso à teia da burocracia, é um bastião, na defe-
neurótico é um gozo fálico", e esta "sua posição de sujeito ligado
sa do sfaÍus quo social. Através da inércia, faz o jogo dos podero-
ao gozo fálico só faz esconder sua posição de objeto, inteiramente
sos, e não hesita em esmagar qualquer tentativa de mudança con-
essencial para o fantasma" (ibid.).
tanto que a imobilidade seja preservada. É este estranho aspecto
De modo oposto ao neurótico, o perverso, como foi dito,
da sedução burocrática que me chamou atenção. Como e por que
conciliaria estas duas posições. A conciliação dá-se pela redução
os indivíduos aderem à burocracia, mesmo quando esta adesão
do objeto a unt falo imagináio. Ou, de outra forma, pela trans-
reverte em prejuízo do que a maioria da coletiüdade julga útil,
formação do objeto em instrumento.Por sua vez, converter o obje-
sensato e desejável, pelos padróes culturalmente hegemônicos? O
to em instrunento sigirjftca apropriar-se do saber atribuído ao pai,
que na üda burocrática, tanto seduz o burocrata?
saber este que implica poder "domar o gozo do Outro" (ibid.,p.
12). Ora, se se tem o saber que permite ter o domínio do gozo do
Outro, entáo, pode-se realizar o fantasma, ou ainda, sabe-se co-
nro utilizar o objeto para fazer o Outro gozar (íbid.). Assim, o
perverso torna-se, ao mesmo tempo, "o objeto que se tornou. ins-

t
I
62 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS l PSIQUIATRIA BUROCRÁTICA: DUAS OU TRÊS COISAS... 63

trumento e o sujeito do saber sobre o bom uso desse instrumen- nas de memórias antes de ser enforcado, nas quais se justificava;
to" (ibid.). Ou seja, ao que entendo, ao invés de sujeito ügado ao I contou como ele era um funcionário exemplar... Eu acho que se
gozo fálico, o perverso converte-se imaginariamente em sujeito tem que acreditar nessas respostas. 0 que ele respondia era isto:
que controla o saber do pai e o gozo do outro. Este controle, 1r
'Vocês estão enganados, o meu gozo não passava por onde vocês
além do mais, dá-se não através da palawa que revela a desconti- pensam, meu gozo não era pelo fato de matar milhões de pes-
I

nuidade do sujeito enquanto sujeito ao gozo fálico, mas da pala- I


soas, meu gozo eÍa de estar numa montagem perversa com ou-
wa que imaginariamente o coloca como falo imaginário, como tros do meu partido, e para ter esse gozo estive pronto a pagar
objeto ou instrumento capaz de responder sem falhas, isto é, de qualquer preço, eüdentemente'. Então, a questão não é a do sa-
modo contínuo, ao gozo do Outro. Ao fim e ao cabo, precisa Cal- dismo do torturador, senão nunca poderíamos sair disso (não po-
ligaris, o perverso busca uma "modalidade mais tranqüila de go- demos conceber que metade da Alemanha tenha sido presa num
zo" (ibid., p. 14). fantasma sádico desse tipo). O gozo era de ser tomado numa
A partir destas considerações, Calligaris deriva o essencial dc montagem, no qual cada um é ao mesmo tempo instrumento e
sua noção de perversão como laço social. O que lhe intercssa, saber, e, numa montagem que nada persegue, como gozo do Ou-
particularmente, não é a estrutura perversa do indivíduo, mas ,.a [ro, senão o scu próprio funcionamento" (ibid., pp. 1a-15).
facilidade com a qual o neurótico entra em formações ou monta- Na concepção de Calligaris, um tópico não me pareceu suli-
gens perversas" (ibid., p. 13). Entrar numa montagem perversa cientemente esclarecido. Como não tenho bastante familiaridade
significa "abandonar sua singularidade" para perseguir exclusi- com a teoria de Lacan, não posso afirmar se a lacuna na compre-
vamente o "gozo do Outro" (ibid., p. 14). E o Outro, na monta- ensão deve-se a esta deficiência ou porque, de fato, o autor não
gem perversa, nada mais é que o artefato da própria montagem. esgotou o tema - o que é mais provável - passando ao largo de
Que artefato é este? Calligaris responde: é o artefato onde os lu- questões secundárias, para seu propósito. Como quer que seja,
gares do saber e do instrumento são intercambiáveis e onde é penso que o tópico merece ser debatido. Na definição da monta-
buscado apenas o gozo da montagem. Para exemplificar o funcio- gem perversa, o lugar do Outro não fica totalmente elucidado.
namento da montagem, o autor menciona o caso do nazismo. E, Não se sabe se o Outro é parte da montagem, na qual entram
como a menção é altamente sugestiva do parentesco entre suas elementos como o sujeito, o saber atribuído ao pai, o objeto etc.,
idéias do funcionamento das burocracias totalitiírias, segundo ou se o Outro é a própria montagem, como é dito ern certa pas-
Hannah Arendt, permito-me citá-la longamsals e na íntegra: ..Se sagem. A primeira possibilidade parece-me mais coerente. Nela,
tomarmos as coisas sob este ângulo, percebemos que a aniílise estaria resguardada a irredutibilidade do outro face aos demais
nos leva a interrogar os fenômenos sociais de maneira bastante elementos, o que tornaria a própria idéia da montagem e de seu
nova. O exemplo que mütas vezes uso, diz respeito a algo que me funcionamento mais plausível e congruente. Na segunda possibi
toca: as defesas dos criminosos de guerra, no processo de Nu- üdade, para que a existência da montagem se justificasse, seria
remberg. É u-a leitura muito interessante e vou lhes dizer preciso imaginar um Outro do Outro, posto que a montagem é
porquê. A pergunta que lhes era colocada, pela acusaçáo, sobre definida como uma resposta possível à demanda do Outro. O Ou-
os crimes de guerra... Finalmente, o que o Ministério Público se tro, logicamente, não poderia ser, ao mesmo tempo aquilo que
perguntava, o que não é diferente do que nesses casos os psicana- solicita a montagem e a própria montagem. Além do que, aÍirmar
Iistas se perguntam habitualmente - como se pôde ter gozado, que o Outro é a montagem, implica dizer que os elementos que a
por exemplo, em exterminar milhões de pessoas. compõem são parte do Outro, o que não me parece aceitável, fa-
Ora, as respostas são totalnente defasadas em relação às ce às premissas estabelecidas.
perguntas: 'eu fui sempre um militar exemplar,. O comandante de Não tendo como decidir metapsicologicamente a questão, op-
Auschwitz, por exemplo, Rudolf }Ioess, escreveu trezentas págS- tei pela primeira possibilidade orientado ürclusive pelo exemplo
64 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS PSTQUTATRTA BUROCRÁTrCA: DUAS OU TRÊS COrSAS... 65

dado pelo autor. No caso do nazismo, paÍeceu-me que a monta- 3.1. Da Tronsgressão à Obediência
gem perversa era uma resposta dada pelos sujeitos às demandas
da Raça ou da História. Melhor dito, Hitler, seu partido e seus
sequíves eram o instrumento ou o saber que, sem falhas, domi- As hipóteses de Calligaris sobre a perversão apresentam vá-
navâm o gozo do Outro, Raça ou História. Obviamente, nada nos rias vantagens teóricas. A primeira é de ordcm histórico-ideológi-
impede de pensar que o Partido ou a Gestapo, em dados momen- ca. Dissociando a idéia de perversão de seu sobrenome familiar,
tos, üessem a representar o Outro para um determinado nazista. qual seja, o sexual, o autor prestou um bom serviço a psicanálise.
Poróm, pensar o inverso é mais difícil. Acredito que nenhum sol- Freud e boa parte dos psicanalistas que o seguiram haüam esta-
dado, alcagüéte ou torturador nazista possa ter funcionado na belecido ligações entre sexualidade e perversão que, no curso da
montagem, como o Outro do Partido ou do Führer. Numa mon- história, mostraram ser, no mínimo, ligações perigosas. A con-
tagem perversa, onde dois indiúduos quaisquer encontram-se cepção psicanalítica da perversão esteve sempre a um passo do
atrelados, isto é plenamente admissível. Cada um dos parceiros julgamento preconceituoso de certas formas de üda sexual não
da relação, digamos sexual, pode funcionar alternadamente como
hegemônicas, e o caso do homossexualismo é o melhor exemplo.
o Outro. Neste caso, ainda seria possível imaginar que o lugar do
Desfazendo um únculo tido como compulsório entre perversão e
Outro fosse sucessivamente ocupado por elementos diferentes,
sem posição fxa, e que, então, a montagem equivalesse à circu-
sexualidade - na acepção corriqueira- o autor consegüu expor
a questão de um ângulo novo, fértil em conseqüências prático-
lação destes elementos no circuito da demanda do Outro. Porém,
teóricas.
mesmo considerando esta possibilidade, perfeitamente compatí-
A segunda vantagem concerne à relação entre perversão e
vel com a clínica da perversão, a montagem não poderia coincidir
vida social. Penso que esta relação tem um quê de escandaloso,
simplesmente com o Outro. Dizer que o pólo do Outro no circui-
no sentido verdadeiramente freudiano. Se o autor afirma o cará-
to da montagem pode ser ocupado por mais de um elemento não
tcr perverso do laço social é por entender que a estabiüdade des-
é o mesmo que afirmar a identidade do pólo com o circuito.
Em fatos sociais, a idéia da coincidência entre os dois termos,
te laço seria incompatível com o que chamaria, para efeito de
elucidação, de "montagem neurótica" ou "montagem psicótica".
Outro e montagem, parece-me ainda mais difícil de ser entendi-
Os laços neuróticos ou psicóticos, embora possâm existir, seriam
da, uma vez que a conversibilidade de posiçóes dos elementos é
incapazes de apresentar a consistência exigida pelas ideologias
bastante improvável. Não vejo como uma alternância do gênero
culturais dominantes. Este pretenso pressuposto do pensamento
da perversão clínica poderia ocorrer em fenômenos como o na-
zismo, o stalinismo, ou o burocratismo brasileiro. Na análise da do autor não está expÍcito no trabalho. É uma irferência extraída
burocracia brasileira que proponho escolhi, portanto, a versão da a partir da natureza de seus argumentos, e é de minha inteira
montagem perversa, onde o Outro não é o idêntico à montagem, responsabilidade. Mas, foi partindo dela que excluí a possibiüda-
e sim parte integrante dela, a título de origem da demanda ao su- de de avaliar o fenômeno burocrático como uma "montagem pa-
jeito. É claro que, deste prisma, a afirmação de que a montagem ranóica", por exemplo. Não obstante a presença de elementos
goza continua a fazeÍ sentido, na medida em que não existe mon- persecutórios na formação burocrática, acredito que estes ele-
tagem sem elementos, e que o gozo aludido é aquele do sujeito e mentos não poderiam sustentar a estabiüdade do laço social exi-
do Outro, e não do Outro enquanto montagem. Feita esta ressal- gido por uma burocracia bem-sucedida.
va, é deste ângulo que procuro entender a posição do burocrata Quanto ao escândalo, deve-se ao fato de Calligaris não traçar
diante da demanda da Burocracia, do Estado, dos Políticos, ou, fronteiras rígidas entre a estrutura de uma laço social que une,
para ser breve, de Ninguém. por exemplo, dois sujeitos numa relação amorosa, e o laço social
que une o nazista ao nazismo. A diferença entre um e outro

I
66
CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS
psreurATRrA sunocRÁrlcA: DUAS ou rRÉs corsAs... 67
fenômeno, que sem dúüda existe, não
depende nem do caráter
intrínseco das diversas organizaçôes sociáis, Dizia, naquele momento, que a falência dos ideais, numa cultura
nem da friplteii.,
aversão estrutural que teria o neurótico de tomada pela descrença nas leis e na justiça, pode levar os sujeitos
tornar_se u., pà*".ro.
O risco da "banalidade do mal,, está inscrito ,u ai.pániUii;a* a reagirem sob a forma da arrogância delinqüente ou da obediên-
de da neurose em deixar-se captar pela ,,montagem cia servil. Ambas as reações exprimem o sentimento da superflu!
perversa,, e
na exigência do sociar, qr" puiu funcionar dade experimentado por quem não mais dispõe de meios para
tende a
"fi"á."rt"aiaroiuio.
reificar "um Outro,,, heterônomo às ,,leis humanas,, agir socialmente, de maneira efrcaz. O burocrata enquadrava-se
Sob este" õ;;;;
da singularidade do sujeito- e de seu desejo. no segundo tipo. Ou melhor, era o modelo social deste tipo.
perversão como laço social renova a equação Comportando-se burocraticamenls, o subserviente manifestava o
do Mal_estar na
Cultura, mostrando que a destruição pasü pLla temor de exprimir seu desejo, e, com isso, comprometer sua se-
ilusao do g;;o ;;
Outro. gurança. Donde "preferir" não-desejar a desejar. Atualmente,
Finalmente, terceira. vantagem, a noção de continuo pensando que esta hipótese faz sentido. Mas descreve
Calligaris põe em
relevo um ponto, mantido no mais das vezes apenas uma dimensão do fenômeno, a dimensão negativa, por as-
em quarentena,
quando se pensa em perversão. Normalmente, sim dizer. Partindo de Freud, só pude entender a economia do
ao falai_se du p.._
versão, pensa-se de imediato na transgressão "ego burocrático", como uma economia do "mínimo eu". Ora, se
t:
da lei. Ora, erte ;;_
I pecto do fenômeno perverso, po, esta economia, de fato, parece existir, náo corresponde, entretan-
ti, que seja, náo esgota
i, sua compreensão. O desafio é a "*úerunte
contrafacá du iubs"rvieíia. to, à neúuma "ascese burocrática". Abrindo mão do prazer im-
il
Quando o Outro, na montagem perversa, por uma ou plicado na realizaçáo dos ideais do Ego, nem por isso o burocrata
outra
razão, é, imagnarizado como tendó faftas, contenta-se apenas em sobreviver ego-narcisicamente. Um outro
Í,i
It como apresentando
em sua estrutura a contrapartida da falta no sujeito, tipo da satisfação vem substituir aquela decorrente das promessas
ireação é dc
contestação. O sujcito. busca refazer a integriáade'da dos ideais. E a natureza desta satisfação que a idéia de Àontagem
montagem
provisoriamente desfeita, inventando ou cicontrando perversa elucida, por meio da noção de"gozo do Outro,,.
um outro
Outro, passível de ocupar o lugar vazio ou esvaziado Entretanto, se o "gozo do Outro", conforme o descreve Cal-
pclo rctorno
da supremacia, digamos uari-, du montagem neurótica. ligaris, aponta para o que chamaria de condições estruturais da
No en-
tanto, reencontrando ponto de equilibrio, é a obediência que possibilidade de gozar, deixa em aberto a questão das formas
passa a predominar. No -o_
laço sociaL perverso, a transgressão só imaginárias que este gozo assume nos diversos laços sociais possí-
salta aos olhos, porquanto avaliada, do exterior, pelã veis. A questão é relevante porque, são os conteúdos imaginiírios
o"u.or".
Como disse Freud, é o ciúme neurótico que idedíá .,überdaãe que fazem a "máquina" perversa funcionar. Sem eles, a perversão
a
fran_sgressora" da. perversâo. Fora das crises, não resistiria ao assédio das outras montagens neuróticas ou per-
o perverso é um
conformista que se acredita ser.,hor, quando é versas, que competem pelo domínio do imaginário social. Dito de
escàvo, pois o se_
úor com quem se identifica e a quem pensa dominu. iá e senhor outro forma, é preciso que a formação ego-narcísica encontre
às custas de sua obediência e subÃissaá. respaldo em pelo menos um outro Ego, a fim de poder gozar da
perversão. Do contrário, o laço social não se estabilizaria. Sem a
cumplicidade partilhada, em torno de um pacto narcísico, a per-
j.2. A Contrapsrtida Nsrcísica
dq perversdo Obediente versão tenderia a enfraquecer-se. Outras montagens üriam dispu-
tar o controle do sujeito, através da apresentação de um modo
imaginiário de gozar mais sedutor, do ponto de vista ego-narcísi-
Como foi notado anteriormente, procurei explicar a postura co. Este fenômeno de legitimação da perversão pelo imaginário
burocrática como uma das estratégias ,a.císi.as social, capaz de impor-se ao Ego como modelo de gozo desejável,
de sobrevivência.
chamo de contrapartida narcísica da perversão subserviente. Ou,

I
68 CLTNICA DO SOCIAL. ENSAIOS
psreuIATRIA nuRocRÁrrcA: DUAS ou rRÉs coIsAS... 69

em outÍas palawas, de ganhos narcísicos obtidos com a servidão go acima do burocrata e como instrumento da encarnação do
burocrática. "ponto de vista do Estado" sobre o corpo social, pareceu-me per-
Em sua discussão do fenômeno burocrático, Lefort (1983) feitamente aplicável ao câso brasileiro.
observa: "Numa sociedade cuja homogeneidade aumenta em O "ponto de üsta do Estado" é essencial à compreensão do
conseqüência da dissoluçáo das antigas hierarquias'naturais', que
burocratismo asilar. Para o burocrata, o "Estado", cujos tentácu-
se encontra cadavez mais às voltas com o problema de sua orga-
los são os "Políticos", é percebido concomitantemente de duas
maneiras. Na primeira, é üsto como uma espécie de emanação da
nização, que não dispõe mais do socorro de uma garantia trans-
cendente da ordem, que não encontra mais na linguagem da reli- sociedade. Seus defeitos são aqueles ideologicamente definidos
gião uma justificação para as suas desigualdades, só o Estado como pertencendo ao "caráter do brasileiro". O "Estado" como o
aparece a todos e se representa a si mesmo como o princípio ins-
"brasileiro" é corrupto, ineficiente e indigno de ser levado a sério.
Se puder lesá-lo, o funcionário o fará, sem a menor sombra de
tituinte, como o grande ator que detém os meios da transfor-
mação social e do conhecimento de todas as coisas. É o advento hesitação. Absenteísmo crônico; atrasos regulares; furtos insigni-
ficantes ou significativos do patrimônio estatal; uso perdulário e
desse 'ponto de üsta do Estado' - de um Estado ürtualmente no
predatório do material de consumo da instituição etc. são provas
centro da potência e da ciência - que torna possível a formidável
expansão das burocracias, cujos membros podem cultivar seu in-
do desrespeito do funcionário para com o "Estado". Para confir-
mar a existência desta representação desvalorizada do "Estado-
teresse próprio, cada um tirar para si o máximo de poder e vanta-
sociedade", basta perguntar ao burocrata por que ele age de uma
gens alegando a sua soberana distância face aos administrados"
maneira que reprova. A resposta está sempre na ponta da língua:
(ibid., p.17). Mais adiante, prossegue Lefort: "Comparando bur-
guesia e burocracia observei que esta oferecia um contraste notá-
"Não sou palmatória do mundo. Se não for eu, será outro. Além
disso, ganho miseravelmente, enquanto os que estão Iá em cima
vel entre a solidez de sua constituição como classe e a fragilidade
roubam sem que nada aconteça, porque são todos da mesma cor-
da posição de seus membros, os quais se mostravam sempre
riola".
ameaçados de aniquilamento fossem quais fossem sua posição e
Deste ponto de üsta, portanto, a posição do burocrata diante
autoridade, em razÁo de sua sujeição ao poder político. Os gran-
do Estado é de desaÍio ou desobediência. Esta atitude, à primeira
des expurgos stalinistas revelavam que a burocracia era idealmen-
vista, contradiz a obediência que lhe foi imputada, já que parece
te tudo e os burocratas nada: a exclusão periódica de milhares ou
mais próxima da atitude do deliqüente arrogante. A discordância,
dezenas de milhares de burocratas, longe de ser contriário aos in-
no entanto, é superficial. Por um lado, o burocrata só contesta o
teresses da burocracia, parecia atestar sua potência, para além da
"Estado", quando este é üsto em sua faceta de espelho da socie-
contingência dos indiúduos" (ibid.,, p. 108).
dade; por outro, se se atreve a contestá-lo é por contar com o
LJma vez mais, não se trata de tornar idênticas as burocracias
apoio do "outro Estado", o "Estado-buÍocracia". Explico melhor.
stalinista e brasileira, seja a partir das análises de Hannú Arendt,
seja a partir do pensamento de Lefort. As diferenças são visíveis.
O delinqüente arrogante, ao desafiar o Estado e seus aparelhos,
corre um risco real, que, em certos casos, pode custar-lhe a üda.
Contudo, se Lefort veio posteriormente a recusÍu todas as impli-
cações de sua anáüse do totalitarismo, cujo epicentro era a buro-
O burocrata, nâo. Seu desafio é uma farsa, porquanto a lei é in-
fringida segundo as regÍas estipuladas pela própria Burocracia. É
cracia "como última forma de alienação de si mesmo do proleta-
porque o "Estado-burocracia" permite a espoliação do "Estado-
riado" (ibid.,p.109); e se a eústência de Stalin, como o Um que,
sociedade", garantindo a impunidade dos infratores, que o buro-
exterior ao Estado e ao mesmo tempo IJno com o Estado, confe-
ria à burocracia stalinista um matiz irredutível a outros burocra- crata ousa delinqúir. Mesmo na delinqüência ele é subserviente.
tismos ou burocracias totalitiírias, isto não invalida a descrição O alcance da infração cometida é previamente permitido e dosa-
que fez da máquina burocrática. A noção da burocracia como al- do pela conivência da Burocracia.

I
70
CLINICA DO SOCIAL. ENSAIOS
Esta cisão na.representação psreulATRrA suRocRÁrtcA: DUAS ou rnÉs corsAs... '71
do ,,Estado,,, experimentada
Io burocrata, explica os u*oÀUo. oe_
á" Io".ote.r.iu que intercalam [es, sobretudo no tocante aos grandes burocratas. No entanto, es-
rotina costumeiramente servil. a
euando percebe o Estado da ori_ tas compensações são irrisórias, diante do poder que o burocrata
L"i:i -*:ira, ou_seja, á" rr.i"aã0";il;#,
comporta_se como o""q"_;;;;;ã
dispõe, frente à sociedade. Este poder realiza-se quando o buro-
no delinqüentJ arrogante; quaudo,
ao cor- crata vê, no dia-a-dia, o resultado das lutas entre a Burocracia e
trário, percebe o Fstads- d"
idêntico à Burocracia, uottu
.%;ã; Iro"ru, ou seja, enquanto os que ousam enfrentá-la. A cada ernbate, a Burocracia sai ven-
uÀ àãservilismo usual. cedora. Nada nem ninguém consegue demovê-la dos lugares em
É enquanro Rurocracia que;;;;o"".tr-JJ
aparece ao burocrara que se encastelou. Governos e homcns perocem; a burocracia
com as características de avalistas
transcendentes da permanece.
mo o definiu Lefort. Numa
-de .o.iea"a" ".1;;;-;" É, facil ver os ganhos narcísicos do burocrata, quando se tor-
n a inj us riça e na
sigualà"d" ;ãt"hX";rT}:t lT?Ti::
"o,
na parte integrante da Burocracia-Poder. De indiúduo social-
composição "princípio au ota"*ll?l apelo mente supérfluo, situado, muitas vezes, no fundo da escala
do Estado' se-doa isto ao autoritarismo
airescentarmos o Jstaao de econômica (como é o caso da massa de pequenos funcioniários
social dos burocratas, que marginalidade
üvem ,o uJu"*o à parte do públicos), o burocrata passâ a detentor de um enorme poder. Em
desprezo
,I pelo rrabalho, O" *j::l-rriüd";" ; ;;;erfl uidade p.on..iorui, suas mãos, saber qualficado, direito dos usuários, ética profissio-
I temos a receita certa para
o culto à Burocracia. nal etc. sáo reduzidos a pó, se ele assim determiaar. Ele sabe,
Na figura da Burocracia, o
rJi*.-r" de sua fraeueza
Estado
e corrupção enouanto ,,Esrado_soci"drd;,1 além do mais, que a "estabilidade" de que goza no emprego, tor-
I

batível e inveocúl. A razão i;;;* ?;"1"ff: na-o verdadeiramente "intocável". Quando, rarissimamente, é
I

I itr: d" *;;;;.f"se


é simples de ser en_
tendida, embora ub:1.1, pu.u_qu"*;;;'|"ra"u flagrado em delito, sabe que conta com a imunidade da "estabili-
I

itti Estado, metamorfoseado em o bom senso. o dade" e a proteção da Burocracia, para escapar ileso. Quando,
I
t,,
B-uro..u.iu,. torna_se sinônimo por acaso, é remanejado de posto, sabe que no próximo posto
poder e da iei' Na rerminorogia do
continuará fazendo exatarnente o que fazia, já que a justiça nos
i
ris, empréstimo à cailiga-
é.o outro imagin"d"
;11
rlli
"mãàl-ã; sem rdta. corredores burocráticos tem fôlego curto. Quando, por fim,
ii ""*;;;;;;;;l
A representação da Burorrorii_iàdir'e é
I

ruptela imaginrária O" coost,ída pela cor_ apanhado em contradições e não tem como defender a ociosidade
do. p;"ài;;'soberanos da democra_
1-
cia: todo poder emana do povoi ou a infração, também sabe que pode recorrer ao "padrinho" ou
i disto, a Burocracia ,n rou'gue
ia"? a""i.guém. Ao contrário ao jogo da útima, para isentar-se de qualquer responsabilidade.
I ; il;;á;Ninguém, ou seja, é Não ó preciso muito esforço para ver que num país onde os
ieguinào nuo,,À Arendt,
iili.iriilJ l?l ::#:.o-, cidadãos são tutelados ou ameaçados de represáüas, cada vez que
.1

o Ninguém
tentam fazer-se respeitar, o lugar da burocracia aparece como
do po<rer
"
.o_ ;; ;f,."rr"*Ílxi;j:"1ixT.1;?rá [*;:,]::*; uma perversa exceção. No Brasil, poucas são as situações sociais
:]: toi gesrado,
Interessa
adquiridá i-,ia-""ã1riâi"r"ot"
" é ..distribuído,,,
apenas a forma como
à Burocracia. em que o indivíduo desfruta de tanto poder, embora tal poder se-
quer dizer, a for_ ja apenas o de oprimir. O burocrata, pela obediência, não só goza
ma como a Burocracia
fazendo imaginariamente gozil o Estado-Burocracia. Também
rocrático,uu**;;i:!i::',,"Jf;;,::'.",r:ff;fl
ou grandes corrupçôes, pequeoos
ou graodes lavores. Mas,
tH[::;
como
goza imaginariamente, encenando o papel de cortesão, no pátio
dos milagres em que se transforma a sociedade brasileira, incapaz
observaram Arendr Lefo.i, .rdu ú;r?;;;ilrràr"r,"ãr1.,
1'1,o.^q*
"
o cargo
seja.
,*;;roo "
tncapazde contro-
irl de destronar uma casta que vegeta em meio ao horror e à deses-
perança dos mais fracos.
"r.!1,eã"
lar a Burocracia. Os benefícios
econômicos ou de prestígio
social Na representação da Burocrscia-Lei, os ingredientes imaginá-
auferidos pela adesão a
"ngr"oug"r..a""*,ir"s vezes importan- rios sáo outros. Aqui, a "monstruosidade perpetrada por não-
monstros" aparece sem disfarces. 0 burocrata identificado com a

I
72 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS PSIQUIATRIA BUROCRÁTICA: DUAS OU TRÉS COISAS..' 73

Burocracia-Lei, faz das leis sinônimo de despachos, protocolos e matéria. Nada, portanto, pode julgá-la. Seu arbítrio é último e cle-
regulamentos. Nelas o que importa não são os princípios que a finitivo. Por esta Í^zão, a Burocracia-Lei ó impermeável à dis-
orientam ou as premissas que lhes deram origem. Importa a for- cussão sobre valores. o humanamente útil ou humanamente ético
ma regulamentar. Assim, toda lei, por mais louca e perversa que são, na linguagem burocrática, o mesmo que aplicar regulamen-
seja, tem que ser cumprida, pois essa é sua finalidade precípua. tos- Como-resultado, atrofia-se, na burocracia, a tarefa humana
Naturalmente, a lei burocrática tem mão única. Quando se trata de peusar. Pensar, ao contrário de obedecer cegamente, é procu-
de voltá-la contra o burocrata ela transforma-se em casuísmo, por rar o impossível.É buscar uma homologia consigo mesmo, esta
obra e graça da Burocracia. Se não é este o caso, segue o curso sim, verdadeiramente votada ao insucesso. Mas é nesta busca
implacável de sua lógica. E é desta lógica que o burocrata extrai constante do "melhor", do "mais justo", do "mais belo" ou do
os elementos imaginários, sem os quais a indiferença ou alheia- "mais verdadeiro", que o mundo humano dos valores é construí-
mento diante das necessidades humanas seriam literalmente in- do. Num universo em que esta tarefa pragmaticamente dispensá-
compreensíveis. vel é desqualficada ou negada em sua importância, tudo corre o
risco de tornar-se igualmente sem valor, e pensar torna-se desne-
cessário. Por isso, o burocrata não pensa, obedece. E ao obede-
Afrieza com que o burocrata trata os mais patéticos sinais cer, ele alcança, não a homologia consigo mesmo' impossível de
das carências e sofrimentos dos outros, torna-se entendível, no ser alcançada, mas a homologia com a Burocracia. Obedecendo,
momento em que percebemos de que lei ele fala. A lei burocráti- ele está imediatamente com a verdade e na verdade. Quando se
ca aparece ao funcionário como um simulacro de lei natural. Co- invoca o regulamento burocrático, toda dúvicla é expurgada e to-
mo uma espécie de Razão absoluta do Estado-Burocracia, que da imprevisibilidade, banida. O novo, o imprevisto, o surpreen-
não precisa do concurso dos homens para legitimar-se ou trans- dente, são o pesadelo do burocrata. Seu sonho é o da sociedade
formar-se. O burocrata que se imagina do lado desta lei observa
totalmente administrada, onde tudo e todos sejam preúsíveis.
os acontecimentos humanos em torno de si como quem presencia
Mesmo numa burocracia inef,rciente, insolvente e parasita, como
um desfile de marionetes. No asilo, esta evidência é incontestável.
a brasileira, é possível ver o apego ao déjà uu e o pânico diante do
Enquanto legiões de infelizes exibem suas misérias; enquanto nunca visto.
técnicos exaurem argumentos e energias, tentando modificar a Não é difícil perceber que, na paixão pela Burocracia, o
penúria asilar, os burocratas, impáüdos, assistem à cena, sem ego-burocrata atinge um grau de satisfação narcísica. extático'
pestanejar. Não porque sejam particularmente sádicos ou cruéis, Pãuco importa a renúncia à sua singularidade, se, na orgia buro-
mas porque nas rotinas e regulamentos da assistência, nenhum crática, o sujeito übera-se do fardo do desejo, cla falta, ou da cas-
capítulo é consagrado à compaixão ou à solidariedade. Os medi- tração. Enquanto objeto de gozo da Burocracia e enquanto sujei-
camentos têm que ser dados; as agitações psicomotoras têm que to que supostamente sabe fazer a Burocracia gozaÍ, o burocrata
ser contidas; os papéis têrn que ser assinados, porque tudo isto encãntra imaginariamente a resposta para o mal-estar do desejo e
está preüsto nos manuais de normas e rotinas. Quanto ao resto, o o mal-estar da cultura. Donde sua repulsa vigorosa a tudo que
burocrata lava as mãos. Não é de sua competência, nem está em evoque o mundo humano da diferença, da falta, do prazer e do
seu poder procurar resolver o que quer que extrapole a lista de sofrimento. No reino fantasmagórico da Burocracia, a quietude
obrigações rotineiras. no Ninguém , do Big-Brother, tem que ser protegida a ferro e fogo'
O aspecto mais truculenÍo da "Lei-burocrática,'está em que Quanto menos ruído, melhor; quanto menos homens e mais
ela se apresenta como um "dado natural". Como um existente, robôs, mais bem sucedido é o "trabalho" do burocrata. Sucesso
cuja naturalidade está acima do bem e do mal. Para o burocrata, insano, é verdade, mas é dele que se alimenta o narcisismo do
a Burocracia possui uma normatiüdade própria, intrínseca à sua ego-burocrata.

)
74
CLíNICA DO SOCIAL. ENSAIOS
É.provável Su".":tl análise pareça,
, a alguns, excessiva ou hi_
perbólica. A esta dúü91 ."rporra".luio1
venham conhecer a realidade asitu.
u_ conüte, para que
U.u.A"ira. Se, depois da üsita,
ainda persistem dúüdas, resta dizer
não.quer-ver. E, por falar nisso, lrã-ã pio. .;*;:-;;;;;;;
,"t"_úÀ. que o vampiro buro_
crático é feito de bocas caladas
r ott or i".iuao..

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CALLIGARIS, Contardo. ,,Bem_estar 1

na ciülizaçâo: A p.*"rsao como


socia l',, Conferê ncia p roferida um laço
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.
".
e;;;;r;. forocopiado.
COSTA, Jurandir Freire.
r,,
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p erc urso s na
nisúria aa p s i a)rÁ;:
flTff:
:"""T,
LEFORT, "à:;::;'fi
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democrática _ Os limites do totatirarkmo,
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LEVI, Primo. É isso um hontem, Rio,
Rocco, 19gg.
MAY, Denvent.ÍIannahArendt _
t)nta biografia. Rio, Casa_Maria,
19gg.

Octavio Souza

I
A proposta de abordar o sintoma social através da ótica da
psicani{lise, antropologia, sociologia etc., dá ao nosso encontro
um caráter, senãó interdisciplinar, pelo menos multidisciplinar'
Acho, portanto, necessário começar por uma expücação do signi-
l,'i ficado do termo "extensão", que se encontra no título do meu
,l'll trabalho.
Lacan introduz a distinção entre psicanálise em intensão e
;ilii
psicanálise em extensão num esforço de explicitação dos deveres
.o- q,r" se defronta o psicanalista. Na psicanálise em intensão o
psicanalista é chamado a dar conta daquilo que o qualifica a ocu-
pu, o ,"u lugar na condução de uma cura' ou seja. a dar conta de
iua própria ãnálise, no que ela lhe propiciou de mudança subjeti-
^questões
uu. À, fundameutais nesse aspecto são as que dizem
respeito ao processo e ao produto de uma aniíüse. Na psicanálise
em extensãó, o psicanalista se depara com o dever de tornar a
psicanálise presente no mundo. Não se trata apenas de uma pers-
pectiva de áivulgaçao da psicanálise, nem da aquisição de dircito
ãe cidadania junto a outras disciplinas "mais respeitáveis"' Tra-
ta-se, sim, do voto de que o que possa vir a ser obtido na psicaná-
lise em intensão não se esgote no âmbito do indiúduo, caso em
que uma análise se resumiria a aquisiçóes pessoais que possibili-
ta.ia. ao "analisado" um maior 'Jogo de cintura" dentro de uma
sociedade inalteracla pelo advento da psicanálise' A ambição é a

)
i
i,l
il

CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS Rrrr-BxÁo soBRE A exreNsÁo oos coNcEtros g, oa pRÁttcA... 79

de que a psicanálise possa vir, ela também _ por


que não? _ a É necessário dizer, no entanto, que não sou de modo algum
fazcr si,torna social, ,,modificando a relação contrário a essa possibilidade. A psicaniálise mesma é useira e vc-
do sujeito .on o ,"u
ato". Ao falarmos da relação do sujeito r"u ato, ingressamos zeira nessa prática, para o horror de alguns teóricos das discipli-
numa dimensão propriamente ética, na "à- medida nas que tiveram por ela seus conceitos "pirateados". Se aceitei,
de uma
forma resumida, podemos compreender todo o "*'quã,
qu"rtioru_"oio com alegria, o convite p.Àra esse encontro multidisciplinar, inicia-
humano expressado em termos éticos como tiva que ao meu ver estava fazend,o falta em nosso cenário, foi
a busca de uma ver-
dade que oriente os sujeitos no seu agir. justamente com a disposição de, pelo menos, piratear e ser pira-
Psicaniílise em intensão e psican,áIise em extensão teado, mantendo a esperança de que os conceitos pirateados da
consti_
tuem-se, assim, como dois círculos articulados psicanálise, por outras perspectivas teóricas, levem consigo o ú-
em continuidade
pela ética da psicanálise. Agora, bem, uma
coisa import;;-; rus psicanalítico, fazendo com que se entortem um pouco mais
realçar, é que a elaboração oferecida por Lacan da ética a, p.i_ paÍa o lado da visada da psicanálise. Retornando à extensão da
caniílise é impossível de ser dissociadi de psicaniílise, parece-me então carecer de interesse para o psicana-
sua concepção do fim
de uma análise, fim esse que se efetua na passagem lista a simples aplicação de conceitos oriundos de sua prática às
do analisando
para o lugar do analista, o produto de uma formações culturais em geral abordadas pelas ciências humanas.
anáüse levada a seu
termo, sendo, deste ponto de üsta,.o próprio psicanalista, É fundamental que seja levado em conta o alcance ético que essa
l/ ou ."1f
al8o, oy alguém, que tem a propriedad. a" io.iai.
particular sobre a relação de um sujeito com
a" * -oáã aplicação acarreta.
/, seu desejo. A in_ Freud, em O mal-estar na civilizaçao, coloca nos seguintes
clusão do desejo na motivação legítima do agir, termos as dificuldades e exigências que a idéia de extensão impli-
t'.
sua con.eituaçao
específica, e o modo particular pelo qual poà"rrto. ca: "No caso de neurose individual, o primeiro ponto de vista útil
t!
.oo."b", u_u
intervenção em seu campo, coostituindo ô .".o" é o contraste entre o doente e seu meio considerado 'normal'.
da postura ética
ih da psicanáüse. Vemos, portanto, que a extensão Semelhante tela de fundo estando ausente no caso de uma doen-
da isicanálise, a
presentilicação no mundo de seus conceitos
ça coletiva, somos forçados a substituí-la por algum outro meio
I'
e de suâ prática, en-
rj,
contra-se na dependência estrita da conceituação de comparação. Quanto à aplicação terapêutica de nossos conhe-
iil dã algo que
ocorre na psicaniílise em intensão, ou seja, na análise
p"rLd'a" cimentos, de que serüria então a análise mais penetrante da neu-
cada um. rose social, na medida em que ninguém teria a autoridade nç-
cessifuia para impor à coletiüdade a terapêutica requerida? Ape-
sar de todas essas dificuldades, podemos esperar que um dia al-
guém se dedique a abordar nesse sentido a patologia das socieda-
I. Psicanálise e Ciências Humanas des civilizadas".
Dessa passagem, enorme pela quantidade de aspectos que
exigem reflexão, quero reter apenas o seguinte: por um lado, fica
Essa peq-uena digrcssão pernite chegar
a um dos pontos que claro que uma anáüse do social é desinteressante se não for
pretendo erÍatizar: a extensão dos conãeitos psicanalítico.
,ao acompaúada por uma perspectiva de mudança. Por outro lado,
pode ser confundida com a apücação de
conce-itos psicanafiticos essa mudança é tributiária de uma "autoridade" que compareça
para a leitura de fenômenos sociais. Não
se trata de ,-u p"..p""- como pólo transferencial capaz de ser o seu agente. Sabemos que
tiva epistemológica, em que conceitos de uma para Freud o futuro da psicanáüse estava vinculado à possibiüda-
determinaàa disci_
plina são importados por outra disciplina,
onde são chamados a de de aumento do seu conhecimento científico e do conseqüente
aDnr novas perspectivas de compreensão para questões aumento de reconhecimento da parte da sociedade. Em outro
próprias
à teoria que os importou.
trabalho, A ertensõo da psicanálise em intensco, abordei essa

)
80 CLíNICA DO SOCIAL. ENSAIOS REFLEXÁO SOBRE A EXTENSÁO DOS CONCEITOS E DA PRÁTICA.., 81

questão, no que sua postura diverge da de Lacan. Por ora é sufi- Um sintoma psíquico pode ser suprimido de várias maneiras.
ciente reparar a exigência de um certo paralelismo entre os pro- Por medicamentos, por choques físicos, por massagens, por pala-
cessos de uma anáüse do indivíduo e da coletividade: ambos re- was. Dizer que a psicanáüse aborda o sintoma pela palawa, ape-
querem uma terapêutica baseada na transferência. sar de correto, ainda é dizer pouco, pois a sugestão, que também
A questão se complica quando dos processos passamos aos opera pela palawa, é um expediente que a psicanálise procura
produtos. Poderíamos continuar eúgindo o mesmo paralelismo? eütar. Além disso, existem várias práticas discursivas distintas da
É claro que sempre podemos responder que, sendo a coletividade psicanálise que também podem ter por efeito colateral a redução
formada de indiúduos, o ponto de incidência afetivo serão sem- de um sintoma, como, por exemplo, a adoção de um credo reli-
pre os indiúduos, e que, portanto, essa questão não necessita se gioso, ou mesmo o ingresso em algum tipo de militância política
colocar de forma tão esquemática. Mas nesse caso, poderíamos ou social. A psicanrílise se propõe a reduzir o sintoma, revelando
radicahzar o argumento e dizer que a psicanálise em extensão se os processos inconscientes que o produzem. Assim, o sintoma é
reduziria a fazer com que todos os cidadãos fossem submetidos à considerado uma formação do inconsciente e, portanto, uma rea-
psicanálise. E o que ontem parecia impossível, sendo psicanálisc lização de desejo, na medida em que o desejo é a única força ca-
coisa de rico, hoje, pelo menos no Brasil, já não se mostra mais paz de motivar o inconsciente. Todo desejo sendo sustentado por
projeto tão trealizável assim, se pensarmos na proletarização da uma fantasia, permitam-me o esquematismo, não há abordagem
classe média, que passou a seÍ a classe de origem dos psicanalis- possível do sintoma pela psicanáise sem que pelo menos um es-
tas, e no modismo da psicanálise, que faz com que os proÍissio- boço de reconstrução da fantasia inconsciente que está por trás
nais da área se contem aos milhares. Embora eu seja extrema- do sintoma seja efetuado pelo sujeito. Na perspectiva lacani412,
mente favorável à possibilidade de acesso ao tratamento psica- levando em conta o desenrolar de sua obra, não podemos pensar
nalítico por todos aqueles que assim o queiram, o que exigiria, en- na elaboração de uma ética para a psicanálise sem que a di-
tre outras coisas, a saída do estado de subnutrição cultural em mensão da fantasia seja levada em consideração. Isso não quer
que se encontra grande parte da população terrestre, não acredito dizer que sua ética seja uma ética da fantasia. A ética da psicaná-
que o que a psicanálise pode vir a produzir em termos de efeito lise é uma ética da castração. A fantasia não pode ser excluída de
social se restrinja a isso. Mesmo porque tem muita gente culta seu bojo por desempenhar uma função mediadora irredutível en-
que não quer nem pensar em fazer análise, e, a meu ver, já está tre sujeito e castração.
ultrapassada a época em que podíamos atribuir esse fato às "re- Peço desculpas por colocar de modo tão abrupto e isento de
sistências contra a psicanálise". argumentos um segmento tão amplo da teoria psicanalítica. Re-
Se o produto da psicanálise em extensão é distinto da simples tomaremos mais adiante essa questão, mas pelo momento é ne-
ampliação numérica, na coletiüdade, dos efeitos produzidos so- cessário continuar na busca da especificidade do produto que po-
bre os sujeitos pela prática psicanalítica, o que se poderia então demos conceber para a psicanálise em extensão.
esperar de uma intervenção efetiva da psicanálise no social? Co- A questão do que seria uma intervenção efetiva da psicanáli-
mo já vimos, Lacan coloca a psicanálise em extensão na de- se no social talvez possa ser abordada se conseguirmos estabele-
pendência da conceituação de algo que ocorreria na psicanálise cer uma diferença entre um sintoma particular a um sujeito e um
em intensão, na medida em que seria a-li que se manifestaria de sintoma social. Eu diria que um sujeito sofre de seu sintoma por
modo mais agudo a especificidade da ética da psicanálise.Talvez não poder alterar a posição face ao Outro à qual o obriga (mo-
pudéssemos nos aproximar um pouco mais do argumento que mentaxeamente) sua fantasia, enquanto que na formação de um
pretendo adiantar, dizendo que a ética da psicanálise implica uma sintoma social, os sujeitos não ocupam todos a mesma posição,
modalidade particular de abordar um sintoma e de produzir sua podendo mesmo alterná-la entre si sem que o sintoma se altere
dissolução. (o que não é possível no caso do sintoma particular, onde, se há
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82
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CLíNICA DO SOCIAL. ENSAIOS pRÁTrcA...


RpplexÁo coNcErros
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I soBRE e ExrpNsÁo Dos E DA 83


troca de lugar, há troca de sintoma, mesmo que isso não queira
I conseguirem inaugurar uma série interpretativa, ou, dito de outro
dizer grande coisa obrigatoriamente - mas dãixemos isso àe la- I
modo, por não serem enc:trados com a deüda seriedade. Uma in-
do). Embora não acrescente nada em termos de diferenciação
para com o sintoma particular, acho oportuno üzer que o sinto_
I terpretação só não f.az verão. Na base do sério, pode-se esperar a
i

ma social não é, como uma epidemia, fruto da inoculação, por um


li liberação da coletividade para a formação de outros sintomas que
grupo de indivíduos, do mesmo agente patógeno, tornandá_os to_
x
não conduzam ao pior, ou seja, que necessitem de um menor
dos afligidos, do mesmo modo, pelo meimo mal. dispêndio de energia para manter a castração à distância.
Um sintoma social é formado por sujeitos que ocupam luga_ Incidentalmente, gostaria de mencionar minha impressão de
res distintos em sua estruturaçáo. como o sintoma particular, que uma abordagem da psicanálise em extensão como venho de
ãlc esboçar, permite mitigar parcialmente a exigência de Freud de
também é sustentado por uma fantasia. podemos concebe. a fan_
tasia, em seus diversos estágios de desenvolvimento, sempre uma autoridade do psicaualista para que uma terapêutica da cole-
passíveis de reatualização por üa do que poderíamos chamar'dc tiüdade pudesse ür a se tornar pensável, sem, contudo, tornar ir-
regressão, como uma construção com diversas portas de entrada. risória sua posição diante do fato social.
A pluralidade de sujeitos que compóem a sociàdade se organiza Continuando, a importância da demarcação do campo sin-
em torno dessa construção, segundo a diversidade das poãsíveis tomático-fantasístico está em que a partir dela podemos pensar
entradas. em estabelecer um princípio de paralelismo entre os produtos
Assim, uma interven$o da psicanálise no social, a interpre- que podemos requerer das terapêuticas individuais e coletivas,
tação de um sintoma social, pode ser concebida, para além da ta_ obtendo, assim, a "tela de fundo" que Freud lastimava estar ,,au-
refa de,sua identilicação, como a indicação da fantasia que o sus_ sente no caso de uma doença coletiva". E, efetivamente, a meu
l
tenta. É de se supor que, conforme o lujar que cada um ocupe na ver, é somente com a perspectiva de um fim que se pode começar
,I
construção, uns estejam mais aptos que outros a servir de ãesti- a pensar em psicanálise em extensão. Senão, como dizíamos no
1l
natários da interpretação. Mas somente isso já seria possível para início, a simples aplicação dos conceitos psicanalíticos ao campo
rl pensarmos em um possível deslocamento da cristalização sin_ social não implica sua orientação pela ética da psicanálise. Tra-
I

tomática que se constituía em torno da fantasia. tar-se-ia, sim, na melhor das hipóteses, de um desenvolvimento a
Nesse ponto, a questão que se coloca é a de quem seria o mais na investigação das ciências humanas.
agente da interpretação. O psicanalista? Talvez, mas certamente Tomemos um caso, na minha opinião, exemplar, onde a utili-
não apenas ele. Qualquer agente social pode vir a ocupar o lugar zação de conceitos psicanalíticos, embora abrindo um leque de
do agente da interpretação, bastando para tal que ,", àto tragã a possibilidades de leitura de fenômenos sociais, impede que se vis-
tona, para um subgrupo dos sujeitos enredados em um sintãma lumbre o estabelecimento de uma série interpretativa que convir-
social, um segmento da fantasia que determina o lugar que ocu_ ja com uma estratégia endossável por uma üsada solidária da éti-
pam. Nesse caso, o papel da psicanálise em extensão seria o de ca da psicanálise. Christopher Lasch, em seus liwos,4 cultura do
apontar o lugar em que houve interpretação, tornando claro o nurcisismo e O mínimo eu, propõe uma abordagem da configu-
campo sintomático-fantasístico em que ela se deu. A partir daí ração mais recente da sociedade americana, na qual os conceitos
torna-se possível pensar na perspectiva de uma série de interpre_ de ideal do ego e narcisismo, principalmente, desempenham um
taçóes que possâm vir a delinear com progressiva nitidez a fanta_ papel preponderante. O nervo de sua tese é o da pulverização
sia que informa o sintoma social, pois, como sabemos, na maioria progressiva dos ideais do ego sociais, que sustentavam um agir
das vezes, tanto os indiúduos quaato as sociedades encontram em individualista voltado para o progresso, perspectivavam um futu-
suas histórias eventos que lhes servem de interpretação, mas que ro, e justificavam o mundo dos americanos desde o tempo da co-
são facihnente perdidos no burburinho de suãs vidas, por rião lonização até a década de 50. Os anos 60 constituiriam um rno-
mento de crise desses ideais e de tentativa de proposta de novos

I
84 cI-ÍNlca Do socIAL. ENsAIos nept,rxÁo soBRE A EXTENSÁo Dos coNCEITos E DA pnÁrtca.,. as

ideais. Esse projeto falha, é recuperado pelo sistema, que no en- exercida às custas da promessa de um estado, narcísico, em que o
tanto não consegue repor ideais de ego sociais que possam provo- sujeito se veria finalmente liwe de todas as impossibilidades de-
car qualquer efeito de coesão ou de busca de progresso social. O correntes do fato da castração.
resultado ó a sociedade americana do final dos anos 70 para cá, Essa promessa, no entanto, não é gratuita, ela é condicional:
onde os indiúduos se encapsulam na única coisa que lhes resta, "Você conseguirá alcançar esse estado se...", variando para cada
seu próprio ego, criando uma cultura do narcisismo -
a estag- sujeito não só o complemento da frase, como também sua moda-
naçãô passa a ser a regra de uma estratégia de sobreüvência e lidade de relação para com ela, o que permite, para alguns, maior
todo o compromisso com a história e com o social é rompido, capacidade criativa, para outros, maior anseio de adaptação.
numa concepção de tempo em que só existe o presente. Além disso, como esse estado jamais é alcançado, o ideal do ego
O exame fenomenológico que Lasch faz da situação é de uma acaba por provocar um movimento pendular entre esperança
riqueza extraordinária. Além disso, podemos afirmar, creio eu, produtiva ou adaptativa e desespero paralisador. De qualquer
que sem o auúio dos conceitos psicanalíticos de que ele lança modo, podemos constatar que o ideal do ego se constitui enquÍrn-
mão, grande parte das nuances que nos aponta teriam-lhe esca- to instância fundamentalmente sociabilizante, na medida em que
pado. A leitura de um texto como esse pode até mesmo ter um coloca o sujeito para trabalhar na busca do ego ideal. Assim sen-
ãf.ito iot"rpretativo, na medida em que aponte para o leitor hábi- do, fica difícil pensar uma coletiüdade que teúa perdido seus
tos por eleidotados sem que se teúa dado conta da rede de sig- ideais de ego sociais, termo que, em última análise, se revela re-
nifiiaçóes sociais que os determinavam. Mas o alcance dessa duntante, pois todo ideal de ego já é em si mesmo agente de so-
possível interpretação tende a ser reduzido pela falta de peÍspec- ciabilização. O que pode ocorrer é, ou a mudança de ideais, ou a
iiva ética, quá podemos derivar do modo pelo qual o autor utüza mudança da relação dos sujeitos com esses ideais.
I
os conceitos psicanÚticos que importa para sua teoria. Por outro lado, temos que constatar que o conceito de narci-
'li Em primeiro lugar, é de se notar que o termo narcisismo, em sismo em psicanálise é muito 6al5 amplo que o de uma instância
itl
psicanáüse, não pode ser oposto, de modo tão pouco argumenta- impeditiva de criação para o sujeito. Freud chega mesmo a co-
rll iiuo, ,o conceito de ideal do ego, a ponto de fazer do primeiro locá-lo expücitamente, em O Ego e o Id, como o motor funda-
uma instância cristalizadora, e do segundo a única instância passí- mental da possibilidade de sublimação. Narcisismo se revela
lt

vel de provocar o agir criativo do sujeito. O narcisismo é muito então uma noçáo muito fluida para caracterizar o traço específico
mais do que aquilo, e o ideal do ego muito menos do que isso' de uma cultura particular, impedindo que um sintoma seja deü-
Longe de serem aspectos opostos da estrutura, constituem-se en- mitado com clareza estrutural, por mais rica que seja a obser-
quaoto dois conceitos dependentes e solidfuios em um trato da vação fenomenológica.
estrutura: o ideal do ego como marca simbólica, por um lado, e o Em segundo lugar, e aqui chegamos ao ponto crucial dos
ego ideal como imagem narcísica, por outro, formam a bipolari- problemas levantados pela análise de Lasch, mesmo que, adotan-
aáde ideat do ego - ego ideal, que não pode ser pensada de.mo- do uma referência teórica distinta, admitíssemos a correção dê
do opositivo, pã, .", ã segundã pólo efeito do primeiro. É na seu diagnóstico quanto ao narcisismo da cultura, referi-lo à perda
tensão narcísica provocada pelo ideal de ego entre o ego efetivo do ideal do ego social nos deixa no impasse de só podermos esta-
do sujeito e o ego ideal que lhe é imposto' que o sujeito vive sua belecer uma estratégia de luta contra o status quo, qtJer na busca
neurose, tanto em seus aspectos criativos quanto em seus aspec- nostálgica do restabelecimento dos ideais de ego perdidos, quer
tos estagnantes. O ideal do ego é uma instâucia simbólica que na ânsia de criar novos ideais, tarefa dificultada em ambos os ca-
produz ãf"ito, narcísicos. Sua função na estrutura é a de permitir sos pela ignorância dos ideais de ego sociais em que estamos eí-
que o sujeito traduza em termos de atiüdade vital tudo o que so- I redados. Não digo que seja essa a intenção do autor, mas sua aná-
fie como passiüdade fundamental na fantasia. Mas essa função ó
I
t lise não permite derivar nada que extravase esses limites, devido à
fr

t
[*

I
CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS REFLEXÁO SOBRE A EXTENSÁO DOS CONCEITOS E DA PRÁTICA... 87
sua carência conceitual. O ideal de ego não pode ser o ponto der- impeditivas de sua efetividade. Essa é a posição de Lacan ao in-
radeiro de uma análise que se queira psicanalítica, na Ãedida em troduzir a diferença entre psicanálise intensiva e extensiva' quan-
que afasta o sujeito da castração que o produz.Em termos so- do indica, ao mesmo tempo, três pontos de fuga, onde a psicanáü-
cietários, ele comparece como fonte de formações ideológicas se permanece em estado de carência teórica e os psicanalistas em
que têm por função viabilizar a vida do grupo às custas do dãsco_ estado cle precariedade ética. O primeiro deles diz respeito à re-
nhecimento da violência que está na sua origem - a referência lação do psicanalista com a instituição; o segundo o interroga so-
aqui é o mito freudiano de Totem e tabu.É chro que um psicana_ bre os efeitos sociais da propagação da ideologia edipiana; e o
Iista não pode sonhar com um estado em que sujeito e sociedade
terceiro o coloca em guarda contra a preüsão de que o futuro
possam üver sem a formação de ideais. Ao pretender ultrapassar
que nos aguarda é o de um segregacionismo crescente, onde o
o ideal do ego na direção da castraçáo, o produto üsado ê o da "campo de concentração" comparecerá como modelo precursor.
possibilidade de relativização de qualquer ideal, permitindo que Com a pertinência que lhe é peculiar, Moustapha Safouan obser-
suas exigências não sejam experimentadas sob a foima de um im_
va que estas indicaçóes de Lacan "testemunham não somente um
perativo inarredável. interesse extraordinário pelas questões sociológicas, mas ainda
Meu objetivo era o de mostrar um exemplo de texto em qus constituem, em si mesmas, um modelo de estudo sociológico,
conceitos psicanalíticos eram empregados produzindo efeitos de fornecendo seu método".
compreensáo, sem, contudo, estarem oricntados pelo que reque- Desses três pontos rsterei o segundo, o da questão edipiana,
remos como condição para pensarmos a psicanálise em extensão. por entender que, antes mesmo de problematizá'lo na passagem
Não pretendo continuar o exame do material aprescntado por a que acabo de me referir, Lacan já tinha adiantado os elementos
Lasch, no sentido de propor uma leitura alternativà que permitis- teóricos e éticos para sua solução, mostrando como um conceito
i
:g 1ma série interpretativa que ultrapassasse as questóes dos aprisionado, por degradação conceitual, no âmbito privado, pode
'l ideais perdidos ou por restabelecer. A meu ve., a basã teórica pa_ ganhar repercussão pública. Retomo o texto de Lacan, para de-
ra tal já está feita na proposta avançada por contardo calligáris pois prosseguir. Ele interpela os psicanalistas sobre até que ponto
sobre a perversão como um possível laço social. Ali encontrimos não estariam sustentando a famflia pequeno-burguesa, benefi-
rlt
I
a fantasia como estruturante de um sintoma social, o modo como ciando-se com a manutenção da ordem social ao fornecer-lhe
os sujeitos controlam os ideais, e o gozo que obtém dessa cons_ uma ideologia: a ideologia edipiana. Efetivamente, os psicanalis-
trução através da manutenção à distância da castração. Isso basta tas em g".ul p-"."m aáotar, ã- tuu concepção do Édipo, a po-
como referência. sição de que todos os problemas ütais com que se defronta o ser
humano teriam sua origem na famflia, sendo, assim, passíveis de
solução com os elementos por ela mesma fornecidos. As relaçóes
sociais posteriores, referidas às figuras do professor, do patrão,
II. Da Família à Cidade do juiz etc., não passariam de uma série contínua, que teria no pai
de famflia seu protótipo. É co-o se a psicanálise concebesse a
origem da civilização na formqção da famflia, enquanto que uma
O trabalho exigido para que a psicanálise possa vir a se fazer üsão panorâmica e superÍicial de seu corpo teórico nos mostra
presente no mundo não se esgota no estabelecimento de sua dife- justamente o contrário. Na origem está o estabelecimento da lei,
rença ética em relação a outras disciplinas. Isso seria supor esta- e, portanto, da civilização, a partir do assassinato do pai da horda
rem os psicanalistas à gltura, tanto em termos teóricos quanto primitiva, que, talvez seja necessiirio lembrar, não tem nenhum
práticos, do seu dever. É necessário que questionem em qu" traço em comum com o pai de família' O pai de famflia compare-
-"-
dida o desenvolvimento da doutrina não apresenta insufiiiências ce enquanto decorrência da tensão irredutível entre a instância

)
CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS nerlgxÁo soBRE a sxteNsÁo Dos coNCEITos E DA pRÁrtca... ag

legal e a figura aterrorizante do pai da horda, esse fora-da-lei. O ação humana jâ é o objeto de reflexão, de um debate interior,
complexo de Édipo nâo pode ser compreendido sem a referência mas que ainda não adquiriu um estatuto autônomo o suficiente
a este horizonte externo à célula familiar. Não posso deixar de me para se bastar por si mesma".
referir aqui à felicidade da escolha da marca do "Sexto Lobo" pa- Esse mesmo questionamento sobre a responsabilidade da
ra servir de égide ao nosso encontro, relembrando-nos que as ce- ação humana está presente em todo pensamento psicanalítico,
nas familiares não bastam para dar conta do campo da prática e não é de espantar que Freud tenha recorrido à tragédiapara aÍ-
freudiana. O que espanta é que essa relembrança seja necessária, ticular dois elementos aparentemente díspares: sobredetermi-
tornando-se, assim, indicação de sintoma. nação e culpa. A noüdade de Lacan é a de trazer à cena u- Édi-
A razÁo do esquecimento dessa dimensão extrafamiliar deve po, ou melhor, um herói, cujo pólo conflitivo já não é mais o
ser buscada em várias esferas, mas no que se refere à constituição drama familiar, mas, sim, o afrontamento propriamente trágico
do edifício teórico da psicanálise, talvez possamos atribuí-la ao com os yalores da Cidade: "A tragédia faz intervir o que a Pólis
próprio modo de abordagem do tema do Édipo por Freud. A re- separa", nos diz ainda Naquet. Nesse sentido, vai tomar como
ferência literária de que lança mão é o texto de Sófocles, Éaipo ponto de referência principal os textos do ciclo tebano rejeitados
Rei. O resto do ciclo tebano, Édipo em Colona e Antígona, é dei- por Freud: Édipo em Colona e Antígona. Os valores da Cidade
xado de lado. Além disso, do Éaipo Àei reteve apenas sua di- são tematizados ao longo de todo o seminário sobre a ética da
mensão mítica, tomando Sófocles quase como informante, no psicanálise sob a rubrica de "serviço de bens". Por serviço de ii

bens podemos compreender tudo que se ordena em torno da


i

sentido antropológico do termo, de uma tradição. Exagerando um


pouco, poderíamos dizer que o que Freud necessitava era de uma idéia de conforto pessoal, numa linha de continuidade que vai I

narrativa mítica onde o personagem principal matasse o pai e se desde as necessidades ütais até os bens culturais. Mesmo a moral
casasse com a mãe, sem o saber. Com isso reduza dimensão trá- citatlina, com seus ideais e suas leis, estaria, em última instância,
l' gtrca da peça de Sófocles a um drama familiar. referida à idéia de um princípio distributivo dos serüços de bens. ,l
i

lt
No seminário sobre a ética da psicanálise, Lacan retoma a A questão que Lacan procura abordar quando lança mão da I

',i

ll questão edipiana, reintroduzindo a dimensão trágica que em tragédia como modelo de percurso subjetivo é a da relação entre
Freud ficava obscurecida. QuaI a especificidade da tragédia? o desejo e o serviço de bens: como fica o desejo quando a aqui- 1

Lendo os helenistas Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, sição de bens permanece em primeiro plalo como condiçáo de
aprendemos que a tragédia, como gênero literiírio, surge num realização pessoal? Mais rrma vez se trata de elucidar o que se
momento especíÍico da história da Grécia, o do início do estabe- pode esperar como produto de uma anáüse, na medida em que
lecimento da Pólis, da Cidade. Antes tínha:nos a época homérica, esta se propõe a facultar ao sujeito o acesso ao legítimo exercício
onde os homens, sempre agidos por deuses, nunca são responsá- do seu desejo. Sua resposta, nesse ponto, é radical: não se pode
veis por seus atos. Responsabilizados por seus atos, tornam-se os de modo algum reduzir o sucesso de 'ma análise a uma posição
homens como nascimento do pensâmento jurídico que acompa- de conforto individual, üabiliz-ada pela obtenção de bens de qual-
úa a instauração da Cidade: o tempo dos homens se autonomiza, quer tipo, sejam eles bens privados, bens de famflia, bens profis-
separando-se do tempo dos deuses. A tragédia comparece como sionais ou bens relativos à respeitabilidade pública. Garantir que
o sujeito possa, através da análise, encontraÍ seu próprio bem, co-
um modo de questionamento do sentido da ação humana, no
loca o psicanalista na posiSo do escroque. A psicanálise não po-
momento de virada de uma organização social para outra. Sua
produção como gênero üterário começa e termina nesse curto de caucionar os soúos da burguesia. Redizer isso, para um psi-
período de transição, exprimindo a tensão existente entre, por um canalista, após Lacan, é fáctl. Difícil é possibiütar a efetiüdade
das conseqüências desse dito em sua própria prática. Embora o
lado, os heróis legendários e os deuses familiares, e, por outro, a
desejo, por se articular em demanda, não deixe de se realizar no
Cidade: "O sentido trágico da responsabilidade surge quando a i,

I
90 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS REFLEXÁO SOBRE A EXTENSÁO DOS CONCEITOS E DA PRÁTICA." 91
acesso a um bem até-então não disponível para
ço de bens proporcionado pela Cidade - Éaipo furando seus
o sujeito, o que
caracter'ua a üsada da psicanálise é apontar, além
reahzação de desejo, para a castração, abordada no
áe qrufqu", próprios olhos e abandonando o seu reinado em Tebas - e, por
âmbito do aceitação da morte numa dimensão que ultrapas-
seminiírio sobre a ética, sob o aspecto da relação fundamental -"o.r-
àutio lado, pela
àã sa o temoi diante da perda da vida: a morte de Édipo é
desejo com a morte. Morte a s"i.oropreendiàa não
como morte uma morte consentida, afumada como o verdadeiro termo do seu
natural, inscrita no ciclo ütal, mas coào morte simbólica;
efeito desejo.
da introdução do simbólico na vida, ao mesmo temDo que
zonte de destruição do próprio simbólico. É na .eiaçãà
hori_ A referência à morte simbólica, no comum velada pelo temor
.o_ u da perda da vida biológica e pelo ódio votado ao pai rncapaz de
morte simbólica, com a .,segunda morte,', como a chama
Lacan, ofeiecet garantias contra esse mesmo temor, é em que consiste,
que_se revela para o sujeito a consistência factícia
de qualquei paÍa a piicanáüse, a experiência da castração à qual pretende
r.ealuaSo de desejo, o que lhe permite liberar_se das
impostas por suas formações ideàs e narcísicas.
exigôncias ionduzir cada sujeito: seu objetivo é o de que o homem comum
encontre sua üa heróica.
Lacan tematiza toda essa questão com a oposição entre
o O ponto que nos interessa realçar é a telaçáo com a Cidade
"herói" (trágico) e o ,.homem comum,,. O homem comum é que se inauguiu .o- a castração. Vimos que Édipo abandona
aquele que despende seu tempo no exercício da culpabilidade,
ü_ Tebas, renunciando ao serviço de bens, mas que' no entanto,
mitado, por um lado, pelo temor da perda de sua vidà natural _ permanece exigindo todas as honras deüdas à sua posição' Po-
o
que lhe impede de afrontar-s" .o* ã segunda morte _
po. ou_ à".or notar que as honras deüdas à sua posição também devem
tro lado, pelo ódio votado a seu pai, acuiado de não lhe ",
tei forne- ser incluídas no que chamamos de serviço de bens, na medida em
cido os instrumentos necessiírioi para que ele se iguale a que fazem parte dos ideais citadinos. Sua posição, no entanto, é
seus
ideais.Dito em outras palawas, o homem comum é totalmente peculiar, na medida em que passa a exigir tudo aquilo que antes,
circunscrito pelo campo da ambivalência, culpabitirurao_re ànquanto Rei, lhe era proporcionado sem maiores problemas' A
odiar um pai insuficiente, que, no entanto, ama para asseguraÍ-se
fo.
relâção que estabelece com a Cidade não é, portanto, a da indife-
da contrapartida de âmor que lhe garantiria iua prOpiiu .".rçu qu" poderíamos esperar de alguém que teria pura e sim-
,uú_
sistência. Podemos constatar com issó que toda sua existência plesmente lhe virado as costas: sua atitude evidencia a preocu-
é
orientada por ideais que o guiam na busóa de bens: a manutenção pação com o destino daquilo mesmo que abandonou. É que, ao
da üda e o cumprimento de ideais delimitando o espectro
d" q;; .ootrario do que se tende a pensÍu, a castração não é a reaü-
chamamos de serviço de bens, a culpa servindo como índice zação, pelo sujeito, de uma falta comum a todo falante, o que a
do
débito em que se encontra em relação a seu desejo. conotaria como resigttação, ou como tomada de consciência dos
Ao contrário, o herói é aquele q_ue exeÍce seu desejo isento limites do desejo. A ética da castração não é uma ética da resig-
de qualquer sentimento de culpa. O Éaipo que Lacan trL para
a nação ou da indiferença. A castração de que se trata não é pro-
boca de cena, encarnando a figura do quô qu.. realçar como priamente a castração do sujeito, mas sim a castração do Outro: a
herói, é o que encontramos em Édipo em-Colona: urn Éàipo ,"* ãxperiência da falta de um significante no simbólico que ensinaria
cõmplexo, sem sentimento de culpã: ,,Eu não sabia qr" à1" ao falante o modo de emprego do seu desejo. Nessa perspectiva,
meu pai, aquela mulher, me deram em casamento sem que ".u eu os ideais não passam de uma tentativa de suprir esta falta, amar-
pedisse, culpados são eles, que quiseram me matar,,. ao
invés de rando, por meio do imaginário, significantes de outro modo dis-
culpado, ele se mostra intransigente, irredutível, exigindo todas as persos pela própria ausência de um significante último que os
honras deüdas à sua posição . Lacan enfaliza qu" dimensão é àrientasse. A partir da realização, pelo sujeito, da castração do
".ru
alcançada pelo herói: a partir, por um lado, da renúncia Outro, seu desejo se sepÍra das exigências impostas pelos ideais.
ao servi_
A morte simbólica compaÍece então como a experiência dos limi-

I
92 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS

tes do próprio simbóüco, ponto onde o ódio pela insuficiência pa-


terna se equaciona na falta estrutural do Outro. O que o sujeito
experimentava como falta se revela faltar ao Outro também, daí a
constatação do irrisório de suas demandas orientadas no sentido
dos ideais.
Se Édipo permanece exigindo as honras deüdas à sua po-
sição, já nã,o o faz do mesmo lugar de antes, ou seja, o da con-
formidade com os ideais. O que ele exige são honras para aquilo
que os próprios ideais excluíram, para o que a Cidade expulsou:
ele mesmo, no caso. Ffonras para a abjeção.
A culpa familiar que Freud depreendeu no Édipo -Rei se
transforma, com o Éaipo em Colona de Lacan, em denúncia pú-
blica da única transgressão inadmissível na ügência daki do de-
sejo: a segregação. Aqui, desembocamos no terceiro ponto da fu-
ga indicado por Lacan, o que necessitaria uma continuação que,
por ora, adiamos. RESPOSTA A OCTAVIO SOUZA

J urandir Freire Costa

)
Por sugestáo de Contardo Calligaris, resolvi comentar o tra-
balho de Oitavio Souza sobre "Extensão dos conceitos e da práti-
ca psicanalítica,'. contardo achou que a crítica feita por octavio
aos^estudos de Lasch, de algum modo, dizia respeito ao meu arti-
go chamado Narcisismo em lempos sombios' Depois de ler aten-
iamente o ensaio, concordei coà a opiniáo de Contardo, e aceitei
discutir a questão por dois motivos. Primeiro, poÍque, em-bora na
incômoda iosição ãe alter-ego de Lasch, já que não sou citado no
texto, penso que não estou para Octaüo como a baleia para o ur-
so poli, do eiemplo de Freud. Partilho com ele um número sufi-
ci"ote de crenças tá.i.u. que tornam esta discussão possível. Afi-
nal, como disse Lacan, Pilâ haver rivalidade é preciso haver
acordo. Segundo, porque a ocasião permite-me elucidar alguns
mal-entendido. quã se sucederam à divulgaçáo do meu artigo'
Octaüo começa ."r, 114[alho dehnindo o que, segundo La-
can, signiÍica psicaniíüse em extensão. Com isso, pretende afrmar
a difeÃnça entre uma pura aplicaçáo de conceitos analíticos a
fa-
tos sociais, e uma psicanálise do sintoma social fundada numa éti-
ca propriamente psicanalítica. Esta última seria a psicanálise em
e"tàrsâo. Em seguida, critica aqueles que buscam entender o
mal-estar da cultura, com base nas noçóes de narcisismo, Ego-
Ideal do Ego; e, por f,tm, propóe a leitura lacaniana da trilogia
96 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS RESPOSTA A OCTAVIO SOUZA

edípica como alternativa para uma interpretação do sintoma so- so do truísmo, seriam construídos previamente o quadro de con-
cial, coerente com a ética da psicanálise. venções e o domínio das individualidades que interessÍun, e, em
No que concerne ao primeiro tópico, confesso que não con- seguida, toda e qualquer inferência válida deveria restringir-se
segui entender claramente a distinção entre psicanálise em ex- aos elementos contidos no câmpo aprioristicamente estabelecido.
tensão e aplicação da psicanálise. Em certa passagem, Octavio diz Neste último caso, não há o que discutir. É pegau. ou largar. Só
que "qualquer agente social pode vir a ocupar o lugar do agente que este tipo de lógica não me paÍece suhcientemente adequada
da interpretação, bastando para tal que seu ato traga à tona, para à abordagem do inconsciente, coisa com a qual penso que Octa-
um subgrupo dos sujeitos enredados em um sintoma social, um vio concordará.
segmento da fantasia que determina o lugar que ocupam. Nesse No segundo tópico, Octaüo vai mais longe. Senti-me particu-
caso, o papel da psicaniílise em extensão seria o de apontar o lu- larmente concernido pelas críticas feitas a Lasch, se bem que, di-
gar em que houve interpretação, tornando claro o campo sin- ga-se de passagem, muitas delas nem de longe poderiam atin-
tomático-fantasístico em que ela se deu". A passagem pareceu- glr-me. Octaüo desmonta, com razão, a noção de "cultura do
me ambígua. Não sabemos se a "psicanálise em extensão,,seria narcisismo" criada por Lasch, e da qual me apropriei no trabalho
aquela que aponta para o lugar ondejá houve interpretação, por- sobre o Narcisismo em tempos sombios. Acontece que, no estudo
tanto, interpretação da interpretação, ou se a primeira interpre- que la sobre 'â geração AI-5", publicado em Wolência e psi-
tação, aquela que foi dada por um agente social qualquer, já era canólise, pude apontar para aquilo que em Lasch parece-me in-
interpretaçâo no quadro da extensâo, porque tiúa revelado, co- sustentável. Dizia, então, que Lasch empregava o termo de "cul-
mo a segunda, o campo sintomático-fantasístico. Se o primeiro tura narcísica" dando a entender que poderia haver uma outra
pólo da alternativa é correto, então a afrmação parece-me despi- cultura em que os indiúduos não fossem regidos pela economia
da de sentido. Ou a interpreta@o é, ipso facto, interpretação do narcísica. Ora, isto é um contrasenso psicanalítico. E, em meu fa-
campo sintomático-fantasístico ou não é interpretação. Se o se- vor, diria que procurei deixar bem claro - e este foi mesmo meu
gundo pólo é o que vale, então ficamos sem entender o que signi- propósito fundamental - Que, segundo Freud, toda cultura que
fica psicanálise em extensão e em que ela se diferencia da psi- não saiba, ou não possa proteger o ego-narcísico da ameaça re-
canálise aplicada. Pois, como pretendo demonstrar, os exemplos presentada pela impotência/desamparo original do sujeito, é uma
que Octavio dá de "interpretação em extensão", QUais sejam o de cultura faüda ou em üas de entrar em falência. Portanto, quanto
Contardo e de Lacan, não me paÍecem ilustrar, a contento, a di- a este ponto, sinto-me absolüdo de qualquer acusação a mim di-
ferença postulada. Ilustram, isto sim, o uso de vocabulários diver- rigida, através de Lasch. Mas insisti em continuar empregando a
sos na abordagem do social. E se estou de acordo com Octavio, expressão de "cultura narcísica" para referir-me à "cultura ou à
que, em certo sentido, os modelos teóricos de Contardo e Lacan ética da sobrevivência", e por isso dou a mão à palmatória. Octa-
avançam mais na interpretaçáo do sintoma social que o modelo vio puxou-me as orelhas e fez ver que este uso equívoco de uma
de Lasch, ou aquele que propus, baseado em Freud, não vejo em expressão equívoca acabou por me f.azer porta-voz, em certos
que esta constatação pode elucidar a diferença entre "aplicação meios, ds rrmx coisa que nunca tive a intenção de dizer, ou seja,
de conceitos psicanalíticos ao social" e "psicanálise em extensão". que a "cultura da espertezz" otJ da "delinqüência" é sinônimo de
A menos que Octavio pretenda dizer, o que não acredito, que só "cultura narcísica", e que uma cultura destas mazelas seria uma
a psicanálise do social feita a partir da teoria de Lacan, é, de jui, "cultura despojada de narcisismo". Em suma, aceito a crítica e
interpretação conforme a ética. Não acredito nisto, porque seria o vou tentar prestar mais atenção no que digo.
môsmo que acreditar no "algumento da força" ou no valor de Porém, ainda não é este o aspecto que mais incomodou Oc-
truísmos lógicos. Isto é, no caso da força, seria dito que as coisas taüo. Seu alvo é a função que concedemos, Lasch e eu, aos ideais
devem ser assim, porque alguém decreta que assim sejam; no ca- na anál-ise do sintoma social. Com Lacan, Octaüo afirma que, co-

)
CLíNICA DO SOCIAL. ENSAIOS
RESPOSTA A OCTAVIO SOUZA
Iocando os ideais em oposição ao narcisismo, incorre-se num du-
o sujeito se veria livre de todas as impossibilidades decorrentes"
plo erro. Primeiro, porque nem o Ideal do Ego é estranho ao nar-
daquela castração, não me leva a rever minha opinião. Desta con-
cisismo se se opõe ao Ego-Ideal, como procurei afirmar; segundo,
cordância, não derivo que os ideais são regidos pela economia
poÍque tratei os ideais com a mesma imprecisão com que haüa
narcísica. Concluo, como já disse em outras ocasiões, que a força
tratado o narcisismo. Explicando melhor, Octavio argumenta que,
de coesáo ego-narcísica é maior do que muitas vezes imaginamos.
dizendo de uma cultura, que ela perdeu ou corre o risco de per-
O Ideal do Ego produz efeitos narcísicos, não porque sua econo-
der seus ideais, assumo dois compromissos teóricos difíceis de
mia interna seja idêntica a do Ego, mas poÍque qualquer remane-
pagar. Primeiro compromisso: afumo, implícita ou explicitamen-
jamento na economia do desejo tem sua contrapattida no narci-
te, que pode existir uma sociedade sem ideais, e, a seu ver, isso é
sismo egóico. Quando o sujeito é submetido às injunçóes ideais,
indefensável. Segundo compromisso: apóio a crítica das ideolo-
representantes, acho eu, das leis do parentesco, do simbólico ou
gias no funcionamento dos ideais, descoúecendo que toda ideo-
da linguagem, submete-se a elas, não obstante o narcisismo. A
logia nada é senão a institucion ahzação social dos ideais. Todo promessa de prazer embutida na obediência à lei da castração
ideal é social e sociaüzante, diz Octaüo. Por conseguinte, como não é produzida pelos ideais porque eles são narcísicos. Esta
explicar ou imaginar uma sociedade sem ideais ou uma crítica,,i- promessa, ou esperança de prazer como a Bettelheim, é criada
deal" das ideologias? No fundo, pensa ele, termino por propor ou pelo Ego, que, para alterar-se, vê-se no futuro como um Ego-
um retorno a ideais históricos ultrapassados, junto com Lasch, ou Ideal. Se é isso que Octaüo quer dizer, ou seja, que toda injunção
invenção de novos ideais, concebidos ninguém sabe como. Ambas
dos ideais só pode ser ehciente quando permite a realizaçâo na
as saídas nâo resolvem o problema da crítica às ideologias, além
fantasia do Ego-Ideal, só posso estar de acordo, clínica e teorica-
de f.azçr da "cultura sem ideais" ,ma noção tão estapafurdia mente. No entanto, ao contrário do que insinua seu exemplo, náo
quanto a noção de "cultura sem narcisismo,,.
penso que obedecer a uma injunção do tipo "seja como o pai que
Esperando ter sido fiel ao que Octaüo disse, começo pelo renunciou à própria mãe para poder ser pai" signifique "ver-se li-
primeiro ponto. Continuo a acreditar que o Ideal de Ego opõà-se
we de todas as impossibfidades da castração". Significa ver-se,
ao Ego-uarcísico ou ao Ego-Ideal narcísico. Embora sabendo que
tal qual o pai, como um sujeito castrado; como um sujeito que
Freud, em alguns de seus textos, fiz dos ideais os depositários do
abriu mão definitivamente de realizar um desejo que nunca foi
narcisismo, penso que esta afumação pode ser lida de viírias ma-
realizado, a náo seÍ na fantasia, e a contentar-se com satisfações
neiras. Na mi"ha leitura, não basta afumar que o Ego e o Ideal
substitutivas. Um ideal paterno que transmitisse ao filho o sinal
são "dependentes e solidários", para desfazer a oposição entre es- verde para que este se liberasse de todas as impossibiüdades de-
tas intâncias. Acho que esta oposição fica clara, tanto na reso- corrente da castração, não corresponderia ao ldeal do Ego freu-
lução do complexo de Édipo, quanto nos teÍos sobre cultura e diano; corresponderia ao que chamei de Ego-Ideal. O Ideal é al-
civilização, que utilizei abundantemente para analisar os tempos guma coisa que nunca se realizou e assinala a existência de uma
sombrios. Freud, é verdade, diz que o Ideal é uma projeçáo do falta no sujeito; o Ego-Ideal é algo que está sempre realizado, e
narcisismo adulto sobre a criança. Isto não significa que o Ideal
que assinala a fantasia de completude, a qual o Ego aspira. Am-
seja narcísico. Mas vejo como um Ideal de Ego narcísico poàeria
bos têm uma dimensão imaginária, mas nem todo imaginário é
funcionar como ameaça a um Ego tambóm narcísico, se por nar-
narcísico.
cisismo entendemos a relação de especularidade que o Ego
Passemos ao segundo ponto. Dada a concepção de Ideal que
mantém com sua imagem. O fato de concordar com Octavio,
defendo, creio que possa existir, sim, sociedade sem ideais. Por
quando ele afirma que "o Ideal do Ego é uma instância simbólica
acaso não é a isto que Freud alude quando se refere ao "pânico
que produz efeitos narcísicos", ou que a ameaça de castração só
narcísico"? Onde estão os ideais de um corpo social formado por
se exercs às custas da "promessa de um estado narcísico, em que
hordas de sujeitos narcisicamente atomizados? Octavio poderia

)
RESPOSTA A OCTAVIO SOUZA
t0l
CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS

responder que os ideais, neste caso, são os "ideais da horda"' antes era impossível imaginar. É isto o grande inventor: artista'
cientista ou isicanalista- iorém, a nova ética fora dos muros
da
Mas aqui, qu" se confundiria lei com ideal' Nem toda lei é
""ho Cidade não me paÍece comprovar o que Octavio pretende'
ou-se-
lei ideal. Lei é simplesmente uma injunção paÍa se seguir regras' isto
ja, que esta é a rinica ética lãgitimamente psicanalítica' Prova'
Portanto, podemos estar submetidos a uma lei louc4, como a do que
superego ireudoJacaniano, ou a do superego arcaico e materno .i-, qo" a discussão do assunto abriu-se para uma dimensão
antes não tinha, quando permanecia algemada ao narcisismo e
tteirriaío, mas isto não quer dizsl qus dispomos de uma lei ideal'
aos ideais. Entretanto, naã na ganho sem risco' Com a ética de
Basta haver regularidade no cumprimento de regÍas para haver
leva-
lei. Lei ideal, no entanto, só existe quando escapamos às in- Colona demos um salto; este é o ganho' Mas podemos ser
é o risco' Como
junçóes do gozo, e, pela castração, formulamos regÍas capazes de dos a crer que não existe ética em Tebas, e este
exemplo de ganho, aproveito a apreciação que Octaüo
fez do
pe.p"tua, i cútu.a, através da diferença dos sexos e das ge-
com o
,uçàr.. Se Octavio ainda assim insistisse em chamar de "lei ideal" trabaiho de Õontardo. Analisando o perfil do burocrata'
üi du gangue ou a de um só sujeito, nada tenho contra a pala- conceito de narcisismo, logo me dei conta que havia criado um
"wa: teúo contra a coisa' úpurr", que Contardo ajudou-me a diagnosticaÍ e a remediar'
Vejamos agora como posso responder a crítica feita, em no- .orn ,uu ieoria sobre a perversão. Faltando-me as noçóes laca-
imaginá-
me da ética, à análise das ideologias, partindo dos ideais' Com nianas de instrumento do gozo de Outro, de apreciação
pai, ou ainda, de gozo da montagem
Lacan, Veruant e Vidal-Naquet, Octavio mostra que a tragédia ria do saber atribuído ao
'tncapaz de gozar-como
edípica foi reduzida por Freud à dimensão imaginária da culpa perversa, criei um ego-burocrata ascético,
famiüar. É preciso, di, ir com Éaipo até Colona e seguir o ã ego_táel delinqüente e lncapaz de explicar sua identificação
"1",
destino de sua Íilha Antígona, para entender verdadeiramente a co.-u bu.o.racia, sem gerar contradiçóes na teoria' A noção de
perversão, conforme Cãntardo/Lacan, solucionou,
pelo menos
ética da psicanálise. Éaipo em Colona despreza os valores da Ci-
que me haüa metido' Mas'
dade, da Pólis ou dos serviços de bens, para denunciálos todos i.ouiro.i.-"nte, o beco sem saída em
jurí- ur.i- co-o a solução de Contardo redimensionou' sem anular' a
como contrafação da verdadeira ética. Estes ideais citadinos,
forma imaginária penso eu' aconteceu com
dicos, políticoi ou religiosos seriam apenas a pertinência do registro narcísico, assim,
pela qual nos defendemos da castração do Outro' Donde a cons- ã-..i i.,à ética ãos ideais feita por Octavio. É este o risco que

iatação do ,.irrisório das demandas orientadas no sentido dos pode correr o pensamento estrutural, ao imaginar que a estrutura
ideais".Ideal é a aspiração do'homem comum' limitado pela cul- ãestitui a história ou funda a história'
pabilidade diante de um pai insuficiente, a quem odeia e pede, ao Em alguns momentos, Octavio deixa entender que a ética da
mesmo tempo, amor e pioteção- Quando ciente da "consistência psicanflisJfunda as outras éticas, na medida em que, só ela, dan-
factícia de qualquer realiza$o do desejo", o sujeito, então, liwa- ão conta da castração do Octavio, explica o surgimento das de-
se das
,.e*i[êr.üs impostas por suas formações ideais e narcísi- mais éticas ancoradas nos ideais sociais. Não aceito isto, porque
cas", e reivindica, contra as leis da pÓüs, a honra que lhe é deüda, seria eqúvalente a aceitar a idéia de que o analista está, como
qual seja, a honra da objeção. Dando adeus às ilusôes e às éticas Édipo, iora da cidade, quando fabrica suas teorias' Esta imagem
mundanas, o sujeito, como o Angelus Noltts, vê com espanto a -" ih"iru a uma forte idealização de nossa comunidade profis-
que
castraçáo do Outro e assume a morte simbólica. Assim nasce a sional, e não é assim que meu olfato sente ' LJma coisa é dizer
valores imaginá-
ética mais que ética. A ética do herói trágico, que nada tem a ver ,ro ,í;"ito em anáIise pode desidentificar-se dos
com os ideais dos fracos, ressentidos e culpados' rios e, passando pela angústia do vazio identificatÓrio, vir a expe-
Inútil dizer que o fôlego mede a força do homem' Reinter- rimentar o que chamamos sua divisão fundamental' Este, a meu
pretando o Édipo desta maneira, Lacân ensinou-nos a redescre- ver, é o Edióo em Colona. Outra coisa ê' dtzet que os analistas, al-
ver coisas e eventos, ou a produzir e solucionar enigmas, como tamente identificados com a tradição intelectual européia, estão

,
IO2 CLíNICA DO SOCIAL. ENSAIOS RESPOSTA A OCTAVIO SOUZA 103

fora dos ideais sociais quando elaboram suas teorias. Um teori- ticas. E, para terminar, ao contrário da análise de Contardo, que
zador da psicanálise, genial ou não, não é um marciano olhando o me remete ao mundo dos homens comuns, afirmando que na ba-
mundo com a üsão trágica que Nietzsche, por exemplo, queria nalidade neurótica de todos nós inscreve-se úrtualmente um
que tivéssemos. É u* praticante de uma disciplina, qu" àp"ru possível burocrata do terror, a análise de Octavio, malgré lui, me
dentro de paradigmas circunscritos, e que escreve ou fala p"riarr- remete a um mundo de cíclopes de um olho só. Este mundo de
do em seu auditório, em seus editores e em seus possíveis ad- gigantes não me evoca em nada a simples triüalidade da üda,
versários intelectuais. Por mais que me esforce, não consigo ver oferecida por Freud, em troca da "miséria da neurose"; evoca um
nada além disto, quando penso na figura do teórico: gosto pelo mundo de eleitos que julgam poder encarar a falta no Outro, sctn
saber, treino no debate de idéias e, aqui e ali, paixáo ou desejo de se ofuscarem. Entre os dois, fico com o primeiro, pois, como dis-
verdade. se Hannsfu Arendt, enquanto existir homem, ele só existirá no
Se insistirmos em ultrapassar o prosaico desta descrição para plural e sua üda só será a "boa-vida" quando vivida em comum,
continuar afirmando nossa posição extramuros, quando falamos com seus outros iguais. Mas faz parte de meus ideais entender
de ética, acho que tal afirmação presta-se a várias objeções. Dei- que esta é apenas uma crença entre outras. E, como toda crença
xo de lado, para não complicar a estória, o pressuposto discutível está inscrita na ordem das palawas e não na ordem das coisas,
de que o psicanalista pode, ao contrário de meio mundo, ceder a nada me autoriza a decretá-la inica e universal. Nas asas do clese-
um conhecimento não-inferencial indubitável e incorrigível de jo, um dia cla me chegou; nas asas do desejo, quem sabe,'rm dia,
coisas ou estado de coisas que, além de tudo, estariam separadas ela me deixará.
em domínios autológicos distintos, cujo segredo de decifração e Resta agradecer a Octavio a oportunidade de aprender o que
clasificação só ele possuiria. Vou deter-me no Édipo, segundo não sabia, e a Contardo pela mediação que tornou este diálogo
Octavio. O que posso dizer é que onde Octaüo vê um pato eu ve- possível. Pondo-me para trabalhar, ambos obrigaram-me a reve-
jo um coelho, como no jogo da gestalt. Onde ele vê a ética do de- lar algo mais de meu desejo, em relação à psicanálise. Funciona-
sejo e da castração do Outro, virando um pouquinho o ângulo, eu ram, portanto, como analistas, no mais estrito sentido ético. Dos
vejo também a "crítica ideal das ideologias". Os sacerdotes e le- dois, não poderia exigir mais.
gisladores que, para ele, são "agentes ideológicos,, dos ,,ideais
ideológicos", sâo para mim burocratas aplicadores de rcgulamen-
tos que, regidos pela economia narcísica, perderam o sentido
ideal do "espírito das leis", para caírem na iiusáo da heteronomia
da razão, da Cidade ou do Direito Diüno. Onde Octaüo vê o
herói trágico, eu vejo o homem comum, ou o herói grego de
Hannú Arendt, que era herói, não pelo fato de fazer coisas ex-
cepcionais, mas pelo fato de dar início a algo de novo, afirmando,
assim, a imprevisibilidade do sujeito. Com isto, quero dizer que a
versâo que Octavio da do Édipo, até segunda ordem, é perfeita-
mente compatível com uma versão narcísico-ideal, do mesmo mi-
to ou tragédia. Não entendo por que sua versão seria em ,,ex-
tensão", enquanto a minha seria pura "aplicação,,; não entenrlo
por que sua versão seria, psicanaliticamente falando, ,,mais ética,'
ou "verdadeiramente ética", enquanto a minha seria uma pífia
tradução ideológica de uma outra ideologia, ambas não psicanalí-

I
A s EDUÇÃo rorALttÁRln'

Contardo Calligaris

I
Vou tratar de perversão, e particularmente de perversão co-
mo sendo essencialmente uma patologia social e não sexual. Não
vou Íetomar aqui preliminarmente o fio do trabalho que venho
desenvolvendo sobre este tema desde L984.2 Importa-me avançar
um pouco.
O nosso guia hoje vai ser um personagem extremamente in-
teressante: o funcionário Albert Speer. Talvez vocês se recordem
que Albert Speer foi o primeiro arquiteto de Hitler e mais tarde
ministro dos armamentos do Reich, tendo dirigido nos últimos
anos de guerra o esforço bélico e industrial alemão. Foi preso no
fim da guerra e condenado a 20 anos de cadeia, que passou em
Spandau. Durante todo este tempo escreveu muito, tentanto
compor uma impossível autobiografia política. A questáo que nos
interessa é central em todos os seus escritos, desde o primeiro,

1. Palestra rcalizada no Instituto Sedes Sapientiae dc São Paulo, por inicia-


tiva <Jomoümento Paz Agora, de São Pauto, em 06/M/1988.
2. Cf. CALLIGARIS, Contardo. Perversão - um laço social?, Cooperativa
Cultural Jacques [:can, Salrador, Bahia.
CALLIGARIS, Contardo. O laço social, sua produção e a psicanálise, in:
"Che woi?", Ano I, no 1, 1986, Cooperativa Cultural Jacques [:can, Porto Ale-
gre. (Estes textos, assim como a conferência aqui apresentada, sáo fragnrentos de
um liwo em preparação, Ensaio sobre a pewersão como patologia social.)

I
A SEDUÇÁO TOTALITÁRIA 109
IO8 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS
reivindica a própria responsabiüdade até para o horror que ele
que é a sua autodefesa no processo de Nuremberg (que aliás é
afirma não ter "sabido".
mais uma auto-acusação do que uma autodefesa): é a questão de
Mas voltemos ao seu primeiro cuidado. A explicação de Speer
como e por que o nazismo prosperou e encontrou nele um adepto
sobre o que aconteceu está no título das entreüstas que citei. O
e cúmpüce. A história do Terceiro Reich por Speer é bem conhe-
que aconteceu teria sido um efeito do desenvolvimento da técnica
cida, assim como o diário de Spandau, mas para o nosso assunto
moderna: sua resposta é esta. E desde sua autodefesa no processo
gostaria de aconselhar particularmente um texto de entrevistas,
de Nuremberg, a sua posição poderia ser resumida assim: a guer-
cujo título misteriosamente, na tradução francesa, acabou sendo
ra era inevitável porque havia os meios técnicos para fazê-la. Um
L'immoralité du pouvoir (A imoralidade do poder), mas no origi-
argumento tanto mais interessante, que poderia ser imediatamen-
nal alemão era Technik und macht, quer dizer Técnica e podef .
te retomado pela posição pacifista hoje; pois se concluiria que, na
Desde o processo de Nuremberg, Albert Speer, que se revela
medida em que existem os meios pÍra uma guerra atômica, então
uma pessoa fundamentalmente honesta, tem dois cuidados. O
ela vai acabar se produzindo. E é certamente bem nesta época
primeiro é explicar o que aconteceu; o segundo, é um cuidado
que se origina algo que vai ser chamado um pouco mais tarde,
ético - e deste ponto de vista honroso. Speer toma a seguinte po-
particularmente nos anos 60, de tecnocracia. Ninguém esquece,
sição: a responsabilidade do nazismo e da guerra é uma respon-
particularmente, que, segundo a confidência de Oppenúeimer,
sabiüdade coletiva dos diigentes do partido nazista dentre os
na primeira experiência atômica americana, antes de Hiroshima,
quais ele se inclui, mas não seria de jeito algum responsabilidade
a equipe cientíÍica não dispunha de uma certezÀ teórica que a
coletiva do povo alemão; trata-se de uma posi$o deliberada rela-
reação atômica desencadeada parasse. E que, apesar disso, a ex-
tiva à preocupação de Speer com o futuro da Alemanha como
periência foi realizada numa decisão onde talvez contasse mais o
povo e nação. Então, ele tenta colocar a responsabilidade do lado
fascínio para o funcionamento da técnica do que o imperativo bé-
dos dirigentes do partido nazista, considerando que, de qualquer
lico. Aliás a expressáo mesma "os técnicos", para designar as pes-
forma, até para os crimes de guerra sobre os quais eventualmente
soas que estavam organizando o genocídio, é uma palawa comum
ele não soubesse nada, qualquer dirigente nazista seria responsá-
no vocabulário nazista.
vel e ele mesmo seria responsável. Neste sentido falei aliás de
uma auto-acusação de Speer ao processo de Nuremberg.
A posição de Speer não é sem relação com muitas posições
Acredito, apesaÍ de tudo (isso pode ser discutido), que u-a filosóÍicas conhecidas, posições contra a técnica, desde os Hei-
deggerianos até Hannú Arendt etc., e já em Jaspers na verdade
parte do horror, particularmente o genocídio, foi-lhe revelado no
próprio processo pelos documentos produzidos pela acusação. existem coisas nesta direção, e coisas ótimas. Mas, apesar disso,
Pelo menos acho que sobre isso ele conseguira uma forma parti- acho que a proposição, segundo a qual a técnica enquanto tal im-
cularmente exitosa de repressão, de modo que podia dizer sem plicaria o seu exercício (porque é disso de que se trata: se eústem
mentir que "não sabia". Mas certamente estava envolvido nos os meios técnicos para fazer a guerra, a guerra é inevitável), é
crimes de guerra, pois, enquanto ministro dos armamentos, por problemática, e mais do que isso, inacreditável. Em outras pala-
exemplo, o dito Programa TOT - progrâma maciço de depor- was, não acho suficiente pensar que o desenvolvimento técnico
tação, a partir dos territórios ocupados, de populaçóes civis como enquanto tal seja alienante. Acho, e vou me deter um momento
trabalhadores para o esforço bélico alemão -
tudo isso estava di- sobre este ponto, que para explicar "o que aconteceu" precisamos
retamente ligado à sua administração. De qualquer forma, Speer in.roduzir algo a mais na concepção de uma certa forma específi-
ca de alienação do suieito, específica porque vou usar o termo de
alienação num sentido que não é nem marxiano, nem marxista,
3. SPEE& Albert. Technik und Macht, Bechtle Verlag, 1979, tradução fran- nem propriamente lacaniano.
cesa [a Table Ronde, Paris, 1981. Tomemos o caso de Speer. Sem tentar esboçar um quadro

)
110 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS
A SEDUÇAOTOTALTTARTA ill
psicológico da pessoa de Speer, há pelo menos algumas indi-
neurótico: a paixdo da instrumentalidade. Entendo por paixão da
cações que são interessantes. Ele era uma pessoa de excelente
instrumentalidade a paixão de "ser instrumento". Trata-se de ex-
família (o que eúdentemente não protege de nada), mas, mais
plicar um pouco o que seria esta paixão da instrumentalidade e
especificamente, do tipo de famíia da aristocracia, da média e al-
qual o seu interesse paÍa os neuróticos que nós somos.
ta burguesia, alemã, francesa e italiana, que freqüentemente se
tornaram antifascistas porque achavam que o nazismo e o fascis-
mo eram negócios de muito mau gosto. Não foram opositores por
razões sociais, mas, apesar de saber eventualmsnte que os inte-
resses servidos pelo fascismo eram os interesses deles, forr- an-
tifascistas por razóes "estéticas", mas antifascistas mfitantes Tomemos duas versões exemplares da infelicidade neurótica
mesmo. banal, que, como se sabe, por ser banal, não é menos dramática:
Speer tinha tudo para ser um antifascista estético, mas náo alncerteza do querer e o fracasso da relação sexual.
foi: foi arquiteto de Hitler primeiro e finalmente ministro dos Muitos pacientes começam uma aná:lise adotando esponta-
armâmsafs5, sabendo o que tudo isso impücava, desde a manipu- neamente uma parte da famosa "regra de abstinência" freudiana:
lação cenográfica das massas até as deportações maciças, e os so- eles decidem suspender todo ato, toda decisão importante até o
úos destrutivos da pesquisa de armamentos. O que pensar sobre fim da sua análise, na esperança de encontrar um saber sobre o
isso? que eles autenticamente querem. Se adiantasse - o que não é o
Parece insuficiente acreditar, sobretudo considerando tudo o -
caso poderia ser-lhcs dito que essa esperança é completamente
que ele escreveu depois, que a sua adesão ao nazismo desde rela- vã, pois o desejo é um exercício no qual o sujeito náo se introduz
tivamsals cedo se justificaria por rma preocupação de carreira. pclo caminho de um saber. Mas, enfim, como se explica esta mais
Ele não precisava disso. Tampouco dá para pensar que Speer te- do que incômoda incerteza do querer neurótico? Muito sinteti-
nha sido um grande sádico, que encontrasse uma forma específica catnente, o neurótico se org:nin ao redor da tentativa de se pro-
de gozo na idéia de que estava produzindo instrumentos pÍua ma- teger desesperadamente de um impossível. Por isso ele precisa
tar. Não paÍece nada disso: ele era um excelente pai de famflia, f.azer da função paterna - que é uma simples referência siguifi-
um homem culto, sensível, teria sido para nós todos um ótimo -
cante uma instância que possa, por exemplo, redobrar o im-
amigo. possível com uma interdição. A inven$o da consistência de uma
À{inha hipótese é a seguinte: quando ele defende a idéia de tal instância passa pela suposição de um saber paterno que valide
qúe o que aconteceu foi a conseqüência do desenvolvimento da e justiÍique a função do pai. Entende-se então que, se constituin-
técnica enquanto tal, está falando num certo sentido a verdade, do como sujeito na relação com o pai, o neurótico só possa per-
mas evidentemente não toda a verdade. Talvez possám6s juntar manecer na interrogação perplexa de um saber que nunca será
algo ao seu enunciado: o que chama triunfo da técnica, aâ ins_ sabido, por ser desde sempre uma suposição. Em outras palawas,
trrrmentalidade, só é triunfo na medida em que os homens mes- se o neurótico é sujeito e deseja graças à referência paterna, por
mos funcionem como pa,rte integrante desta ié"oi"u, quero di7er, isso mesmo ele é condenado a uma ignorância sobre o que quer e
funcionem como instlmentos. Em outras palawas, ood" ful" d" à perplexidade sobre o que fazer. Como se constata cada dia,
efeito da técnica, do desenvolvimento da Écnica, acho que po_ aliás, quando conseguimos algo que pensávamos querer demais e
deríamos falar do efeito do interesse e da paixõo humana em sair descobrimos que náo era bem isso.
do sofrimento neurótico banal, alienando a própia subjetividade, Na relação sexual as coisas náo são mais simples, salvo pro-
ou melhor, reduzindo a própia subjetividade a uma instrumentali- curar o consolo em uma teoria do ,mor genital que nos promete-
dade.Esta paixão me paÍece uma tendência inercial de qualquer ria o harmonioso desenredo do nosso desenvolvimento sexual até
112 CLINICA DO SOCIAL. ENSAIOS A SEDUÇÁO rOtalrrÁRre 113

o encontro com o semelhante. Salvo este recurso exclusivamente mentos deste saber. Isto é o essencial: o "conteúdo" deste sa-
teórico, constatamos que a üda sexual diz respeito a uma singula- ber não tem a mínima importância, pois ele é um artifício que
ridade fantasmática que não promete encontro com os nossos não pode nem pretende corresponder a qualquer saber suposto
semelhantes. O parceiro que encontramos na cama é um puro singular.
pretexto, pois cada um copula através de um fantasma que se or- AIém disto, este semblante de saber, quando está funcionan-
ganiz.a gaças ao mesmo saber do qual falamos antes, ou seja, um do, é necessariamente totalitário, em dois sentidos. Um primeiro,
saber suposto, ignorado, singular e portanto não compartilhável. pelo momento: necessariamente ele tem que se estender. Tem
Sem entrar aqui em mais explicações, nos interessa notar que que se estender, porque sujeitos que não reconheçam o saber que
se o saber suposto ao pai pudesse por milagre ser propriamente estamos compartilhando, que então não aceitem funcionar como
sabido, isso resolveria a nossa incerteza. Mais ainda, se, por ser seus instrumentos, comprometem intoleravelmente o nosso sem-
sabido, pudesse então ser compartilhado, isso pareceria nos abrir blante. Por isso ele só pode se estender num horizonte totalizan-
a porta de uma relação possível com os nossos semelhantes, pois te. O que, por outro lado, não é impossível de se realizar, pois no
de repente poderíamos conseguir praticar juntos um mesmo fan- fundo a prisão ou a morte de quem não estaria topando o sem-
tasma. blante proposto reduz facilmente o oponente à posição de ins-
É este milagre que persegue o que chamo de saída perversa trumento que se queria que ele aceitasse. Vou tomar um exemplo
da neurose. Sendo impossível chegar a conhecer o saber paterno desta necessidade totalizante que é cativante de horror, em um li-
suposto, a opçâo ó abdicar a própria singularidade de sujeito, wo muito comovedor que saiu alguns anos atrás, Treblinka, d,e I.
aliená-la, construindo - de preferência coletivamente - um F. Steiner.4 Os que leram este liwo certamente se lembram que
semblante de saber paterno que por isso mesmo seja sabido e os SS construíram em Treblinka, na chegada dos trens, uma falsa
compartilhado. Que isso nos garanta a certeza nos atos e a práti- estação, que tinha a aparência de uma estação de trem, com tudo,
ca possível de uma fantasia comum é o prêmio da operação. O inclusive portas de toalete (homens/mulheres); não tiúa nada
seu custo é a transformação do sujeito em instrumenÍo do saber atrás das portas, mas tinha toda a aparência de uma estação, ha-
assim estabelecido. via até um relógio, pois não tem estação sem relógio, mas eviden-
A prática de um semblante deste tipo representa urna autên- temente era um relógio de madeira, que marcava sempre a mes-
tica saída do sofrimento neurótico. Ela só não pode ser dita pro- ma hora. Por que construíram esta estação? Poder-se-ia pensar
priamente exitosa por seÍ um semblante. Trata-se de um fracasso, que, efetivamente, isso evitaria uma série de tentativas desespe-
não porque ao semblante de saber e de fantasma assim constituí- radas de revolta no úItimo momento, porque as vítimas pensa-
do faltaria não sei qual dignidade epistemológica, mas porque um ria* s51, chegaado au'n lugar que não fosse um câmpo de ex-
semblante sempre e necessariamente persegue a difícil tarefa de termínio. Mas as razões logísticas -
não ter que mataÍ imprová-
demonstrar que não é um semblante. Por isso o horizonte extre- veis revoltados cujos corpos teriam que ser depois transportados
mo desta saída da neurose é sempre mortífero, pois só a morte - - não parecem justificar o esforço de construção de tamanhs
eventualmente coletiva - pÍrece poder demonstrar em última cenário. Talvez seja mais adequado pensar que se tratasse de fa-
instância que o semblante não era brincadeira. Por isso, em ou- zer com que tudof.rncionosse, que, indo à própria morte, as úti-
tras palawas, o horizonte do universo totalitário é a morte real, a mas já pudessem estar tomadas pela lôgSca instntmental que
guerra por exemplo. triunfaria no suplício final.
Para quem escolhe sú da neurose pelo lado da perversão, o
semblante de saber construído pode ser qualquer: o essencial é
que seja "sabido" e compartilhável e que de repente nós fique- 4. STEINER, J.F. Treblinka: a revolta de um campo de *ermínio, Nowa

mos funcionando, sabendo o que temos que fazer, como instru- Fronteira, Rio de Janeiro, 1967'

)
11,4 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS ASEDUÇÁOTOTALTTÁRrA 115

Voltemos à questão da paixão pela instrumentalidade. por dade recente mais latino-americana. Todo mundo conhece a
que "paixão"? IJma saída da neurose na vertente que chamo de questão do princípio de obediência devida debatida na Argentina.
perversão não tem preço para o neurótico, é, em suma, uma ten-
Acredito que teúa que ser reconhecido o princípio da obediência
tação irresistível.
devida, pois creio que o gozo das pessoas envolvidas estava no
Que, para funcionar numa montagem deste tipo, um sujeito funcionamento, ou seja, na obediência,.e não na matança. Mas de
se transforme em instrumento de um saber que o manda even-
repente também acho que a obediência devida não é uma descul-
tuaLnente matar milhares de pessoas, jogar crianças contra uma pa, pelo contrfuio, é, ou deveria ser, um agravante. Porque é bem
parede, queimar uma casa cheia de gente, este é um preço que
aí que está o inaceitávet que, paÍa conseguir uma saída do sofri-
talvez a maioria dos neuróticos esteja disposta a pagaÍ pu.u ão-
mento neurótico banal através de um semblante perverso, o
contrar o alíüo que à montagem promete. Mais exãtamente, o
neurótico possa considerar que qualquer preço é bom. Em outras
preço, ou seja, as eventuais exigências do saber do qual nós
palawas, que, pÍua conseguir o alíúo que oferece a obediência do
faríamos os instrumentos, é aqui indiferente com respeitô ao be-
funcionário exemplar, ele esteja disposto a servir qualquer
nefício esperado.
ordem.
Rudolf Hoess, comandante do campo de Auschwitz, escreveu
Aqui um parêntese voltando à primeira preocupação de A1-
as suas.memórias5 para se justificar e eventualnente - imagino
bert Speer. Na linha em que estarnos andando, a questão da res-
- se defender durante o processo de Nuremberg. É um textó in- ponsabilidade está colocada bem diferente de como ele queria,
teressaate pela razã,o seguinte: ele tiúa uma idéia precisa das
pois a responsabilidade não pode ser considerada como sendo só
acusaçôes leyantadas contra ele no processo, e, apesar disso, ele
dos dirigentes, mas sim de todos que gozar'm do e no funciona-
aparentemente não responde às acusações. A questão colocada
mento da Alemanha nazista.
aos criminosos de guerra era a mesma que nós ainda seríamos
tentados a colocar, algo como: "Mas como você podia goz.aÍ ma-
tando assim, como este gozo foi possível?,' Nós continuamos in-
terrogando estes eventos na linha do que tradicionalmente se
chamaria uma peryersão, como se a constituição singular dos su-
jeitos determinasse o fato de que eles acabem sendo criminosos Apesar de ter escolhido rm exemplo no fundo do horror,
de guerra. Neste caminho, acho que não encontraremos resposta, considero que a paixão pela intrumentalidade é o ordini.írio da ü-
e, de fato, a resposta aparentemeute inapropriada de Hoess ie re- da social, a sua inércia natural.
sume numa frase: "Eu era um funcionário exemplar',. Mas vejam A paixão pela instn'mentalidade, esta tentativa e tentação de
bem: isso não é uma desculpa fácil, não é uma tentativa de des- saída da neurose, funciona no nosso cotidiano micro e macroas-
caÍregaÍ a sua responsabilidade, ele está respondendo mesmo à sociativo: de fato parece que só conseguimos encontrar um seme-
peÍgunta. Ele está dizendo: 'â pergunta de vocês está mal formu- lhante à condição de sair da neurose pelo lado da referência co-
lada, pois o meu gozo não era matar pessoas, o meu gozo era ser mum a u'rr sabeÍ "sabido", compartilhado, do qual poss2mos ser
um funcionáio exemplar, e, eventualrnente, para ser um funcioná- todos os instrumentos. Isso é patente na üda sexual cada vez que
rio exemplar, eu estava disposto a matar pessoas,,. §e tem 'ma relação sexual que aparentemente seja exitosa, mas é
Isso tem algumas conseqüências interessantes numa atuali- tatbém patente na üda social. Com isso não estou fazendo uma
crítica absurda de qualquer laço associativo.
O problema reside na inércia totalitiária do laço associativo.
5. HOESS, Rudolf. le commandant dAuschwia parte. François Maspero,
Falei antes que o termo "totalitiário" deüa ser entendido em dois
Paris, 1979.
sentidos. Na vertente da eÍensão do laço: quem não se assqcias-

I
116 CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS
A sEDUÇÁo ro'reLt'rÁnIR trz
se, poderia ser reduzido a instrumento, por exemplo na morte.
Mas o laço é inercialmente totalitário também de um outro jeito, produzir conseqüências clínicas. Marx abre o primeiro capítulo
no sentido pelo qual a sua tendência natural está na direção de do Capitat com a definição do capitalismo como uma acumulação
uma alienação total do sujeito à sua posição instrumental. A inér- de mercadorias. Aliás, o tnesmo primeiro capítulo introduz jus-
cia normal do laço social é duplamente totalitária: que Íodos os tamente a questão da teoria do valor. Com efeito o capitalismo
sujeitos acabam sendo nads mais do que instrumentos do funcio- institü a passagem de uma sociedade, digamos assim, com valo-
namento do laço. res do lado do ser p:ra uma sociedade onde o valor está do lado
Isso é algo historicamente eüdente: o princípio básico de um do ter.
regime totalitário é efetivamente uma gestão total da vida coti- Que na nossa modernidade a designação do que preenche a
diana; qualquer tipo de fascismo tem esta ambição, começa com a função de ideal, do que estamos perseguindo enquanto neuróti-
associação dos nenês, segue com a associação das crianças, asso- cos, esteja mais do lado do ter do que do lado do ser, é uma cons-
ciação dos adolescentes, associação dos adultos, associação dos tatação sociológica completamente banai. O que responderia um
aposentados, associações dos mortos. A esfera da üda privada habitante do século XVm à questão: o que é ser um homem?
desaparece progressivamente. Neste sentido, trata-se de reduzir Certamente algo muito diferente do que responderia um homem
cada vez mais o campo neurótico da subjetividade para chegar a do nosso século. E a diferença se situaria entre o ser e o ter. Isso
uma alienação completa na qual o sujeito se sustente só na sua tem uma implicação que nos importa, pois do lado do ser, salvo
função de instrumento. nos alienando para nos tornarmos instrumentos de um saber arti-
Entende-se então que, do meu ponto de üsta, o ideal político ficial, nunca vamos encontrar uma certeza. O que é ser um ho-
nunca é mais do que a procura de um equilíbrio instável entre mem? Imaginemos respostas do lado do ser: brawra, coragem,
honestidade etc., nos movemos num campo de constituições e
uma alienação necessária para a üda social e a resistência à sua
questionamentos constantes de ideais onde uma conformidade
inércia totalitária.
certa nunca será possível. Mas do lado do ter pode haver respos-
tas certas, porJe haver um saber sabido e compartilhado: ser um
homem por exemplo consistiria em ter, possuir um catálogo de
mercadorias, que não seria impossível redigir exaustivamente.
A passagem do ser para o ter é um fenômeno decisivo da
Expressei a idéia que a estrutura neurótica possa ser descrita nossa modernidade pela sua implicação: quanto mais o que esta-
pela referência fundante a um saber paterno sempre suposto e mos perseguindo (o nosso ideal fálicq) se situa do lado do ter,
então pelo fracasso relacional e alncerteza do querer. tanto mais o saber paterno vai poder se apresentar (semblante)
Mas existe uma diferença, sobre a qual vale a pena pensar como saber sabido e compartilhado. Talvez já estejamos numa
um pouco, entre o "querer ser" e o "querer ter". Consideramos transformação do sintoma social dominante - que paÍa Freud é
habitualmente que o "querer ser" esteja mais do lado da mulher, um sintoma social neurótico - num sintoma social perverso.
e o "querer ter" mais do lado do homem. A partir desta diferença Quero dizer, com perverso, um sintoma no qual o saber paterno
e com o auúio das observações que seguem, poderíamos enten- não é mais um saber suposto, mas é culturalmente um saber sa-
der, por exemplo, porque a paixão da vida associativa está mais bido e compartilhado.
com os homens do que com as mulheres - o que é um ponto a Pense, por exemplo, na qüestão, específica não só do nosso
favor das mulheres. Mas não é sobre este aspecto que eu queria tempo, mas das sociedades capitalistas ditas avançadas, da adesão
me deter. à droga como tipo de relaSo a um objeto que possa ser sabido
Há uma mudança histórica tanto mais relevante pois parece como o único bem. O que há de interessante neste tipo de fenô-
meno é que por um lado ele aparece como marginalidade, funda-

I
118
CLÍNICA DO SOCIAL. ENSAIOS
LIVROS PUBLICADOS
da na recusa de uma sociedade na quar os ideais fálicos estariam
do lado do ter e portanto sabidos. por outro lado, no entanto, na P sicanálise, judaísmo: ressonôncias, Renato Mezaa
recusa mesma, a prática adotada yai ser justamente a procura Do gozo criador, Carlos D. Pérez
de
um objeto que possa ser designado, sabido. O marutscrito perdido de Freud, H. Haydt de S. Mello
_ Deixo como hipótese final a idéia de que talvez o horizonte
da nossa úda social já seja um horizonte iotalitário no sentido
O psicanalisa e seu oficio,Conrad Stein
Etzrneiloi da iíteryreaçao, Guy Rosolato
que sustentei, totalitário sem a aparência ditatorial do que cha-
mâmos historicamente de fenômenos totalitfuios. A pulsão de morte, André Green et al.
Um horizonte que introduz a promessa de um gozo satisfató_ Psicanólise de siruomas sociais, Sergio A. Rodriguez e Manoel T. Ber-
.
rio no semblante ao prometer o acesso a um saber comum sobre linck (orgs.)
o que queremos, promessa tanto mais fácil na medida em que o Fanúlia e doença mcnnl,lsidoro Berenstein
que queremos esteja do lado do ter. Se for assim, o ,orro fato Narcisismo de vida, narcisisrmo de nwrte, André Green
polÍtico estaria entre, por um lado, a inércia do fenômeno tota- As Er{nias de urna máe, Conrad Stein
litário, ou seja, a transformação progressiva do sintoma neurótico
Notas de psicologia e psiquiatria social, Armando Bauleo
num sintoma social perverso e, por outro lado, uma marginalida_
de que leva ela mesma a marca justamente do que ela es'tá recu_ Trawna, anor e fantasra, Franklin Goldgrub
sando. Clínica psicanalítica: estudos, Pierre Fédida
É interessante constatar que, se tivéssemos que tomar aqui Psicaruilise da clínica cotidiana,Manoel Tosta Berünck
uma posiçáo, pareceríamos dever tomar a defesá ideológica àa O acalanto e o horror, Ana Lucia C, Jorge
treurose contra a perversão. O problema é que talvez seja ainda A Representação. E nsaio psicanalítico, Nicos Nicolai:dis
mais difícil e fatalmente irrisório tomar a defesa da psicaniílise
O desenvolvimento kleiniano I. Desenvolvimento clínico de Freud,Do-
como alternativa à neurose, e mais propriamsale como alternati_
nald Meltzer
va à saída da neurose do lado da perversão.
Édipo africano, Marie-Cécile e Edmond Ortigues
Comunicaçõo e representação, Pierre Fédida (org.)
Ensaios de psicartilise e semiótica, Miriam Chnaiderman
Freud e o problema do poder, León Rozitchner
Melnnie Klein: evoluções, Elias M. da Rocha Barros (org.)
F igurações do feminino, Daniêle Brun
14 conferências sobre Jacques Lacan, Fani Hisgail (org.)
Introduçõo à psicaruílise, Luis Hornstein
O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro,Piera Aulagnier
O desenvolvimento kleiniano II. Desenvolvimento clínico de Melanie
Klein, Donald Meltzer
Tausk e o aparelho de inlluenciar na psicose,Joel Birman (org.)
A construçõo do espaço arnlítico, Serge Viderman
Um intérprete em busca de sentido - 1, Piera Aulagnier
Um intérprete em busca de sentido - II,Piera Aulagnier
Ter um talento, ter um sinloma, Denise Morel
noção criada por Contardo Calligaris
A dialética freudiana I: Prática do método psicarwlítico, Claude
que é apresentada no último ensaio
Le Guen
do liwo.
O inconsciente: várias leituras, Felicia Knobloch (org') No terceiro ensaio, Odavio Souza
Psicose: uma leitura psicanalítica, Chaim S. Katz (org.) faz uma incursâo sistemática sobre os
Hello Brasil! Notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil, problemas que envolvem a chamada
Contardo Calligaris psicanálise em extensão e aPresenta
críticas que, de algum modo, dizem
respeito ao artigo de Jurandir Freire
Costa "Narcisismo em tempos som-
brios".
Ul':.rÍ . tsrhli,;teca / lCH
Em seguid4 Jurandir reqponde a
lnver:t;irio
Octavio criando, assim, um diálogo
J 1: r:.1 í
sobre a que§tão.
O livro termina com o ensaio de
Contardo Calligaris que trata de per-
versão como sendo essencialmente
uma patologia social e não sexual.
Um liwo que intcressq assim, a
todo aquele que considera que a psi-
canálise não se restringe aos estreitos
timites do consultório.

ESTE LIVBO FOI COMPOSTO POR LAUDA _ COMPOSIÇÁO E ABTES


onÁr|cas, ÊM FoBTIME MED,UM, COBPO 1O; FOÍOLITOS OA OUA-
DRICOLOR E MAGA IMPBESS, IMPBESSO PELA GBÁFICA BISORDI
(R. Sta. Clara, s4) EM PAPEL OFF-SET 759 FORNECIOO PELA T. JA-
NÉR E PAPEL VÊBCÊ IAOg, FOBNÉCIDO PELA MADI.

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