Para
Chaim Samuel Katz e
Flávio José de Lima Neces
Os três títulos colocados como alternativas para o presente trabalho correspondem aos
três aspectos focalizados. Em primeiro lugar, partindo-se da experiência clínica, sugere-
se uma concepção das “relações terapêuticas” em que se articulam diversas modalidades
ou dimensões do vínculo: a transferência, a identificação projetiva e o enactment. Em
seguida, propõe-se uma correlação entre as formas dominantes do vínculo e os
adoecimentos psíquicos – o das psiconeuroses (neuroses de transferência), o dos
adoecimentos narcísicos e o dos adoecimentos esquizóides –, acentuando-se a relevância
destes dois últimos para a clínica contemporânea. Finalmente, a esquizoidia e o
artigos> p. 58-81
pulsão de morte.
1> As idéias apresentadas neste trabalho foram sendo elaboradas ao longo de diversas oportunidades
durante o ano de 2002: na palestra de encerramento da Jornada da Formação Freudiana (junho, Rio de
ano XVI, n. 168, abr./2003
>58
The three titles chosen to name this present paper correspond to its main subjects.
First, I suggest that therapeutic relationships include different forms of linking:
transference, projective identification, and enactment. Secondly, I refer to a
relationship between predominant forms of linking and different forms of psychic
pathologies: psychoneuroses (transference neuroses), narcissistic disorders, and
schizoid diseases. Thirdly, schizoid and narcissistic disorders are considered
expressions of the repetition compulsion ruled by the so-called death drive. The theory
of the death drive is discussed in order to reveal its various facets, which include
unbinding and self-extinction, constitution, self-preservation and the recurrent search
for a primary object.
> Key words: Schizoid disorders, narcissistic disorders, transference, projective identification,
enactment, death instinct.
cesso terapêutico, ele não pode, como se tras modalidades de demandas afetivas e
verá logo mais, ser descartado em uma comportamentais profundas e primitivas,
compreensão do psicanalisar. Contudo, vindo a ser um deixar-se afetar e interpe-
pulsional > revista de psicanálise >
infelizmente, este termo também pode lar pelo sofrimento alheio no que tem de
nos levar a um equívoco, o de supor que desmesurado e mesmo de incomensurá-
a posição do analista é apenas da ordem vel, não só desconhecido como incom-
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ção humana de desamparo, o que tanto salva importante que o outro em Laplan-
acarreta uma vulnerabilidade extrema a che padece não tanto de sua mortalidade
toda sorte de abusos e traumatismos como de sua condição de sujeito afetado
como, em contrapartida, é a base da pela própria sexualidade inconsciente e
pulsional > revista de psicanálise >
lósofo Henry Maldiney (1991), por exem- de seus pais, não apenas um objeto de
plo, nos fala da transpassibilidade – uma seus cuidados desinteressados, e de que
afetação pelo impossível, pelo que está é a partir desta condição que uma subje-
fora do campo do que pode ser represen- tividade se organiza, na forma de uma res-
tado e interpretado. Embora ele trabalhe posta à transferência. Assim, a idéia de
quase sempre a partir da experiência es- contratransferência primordial pode ser
tética (mas também das situações extre- mais facilmente inscrita no campo da teo-
>60
ria psicanalítica como um aspecto atinen- nem conveniente interpretar estes cuida-
te à constituição do psiquismo do sujeito. dos como emanando de alguma boa von-
Rigorosamente falando, a contratransfe- tade intrínseca ao ser humano. Não se tra-
rência primordial é não só a condição do ta de samaritanismo, mas de sobrevivên-
psicanalisar, mas do vir-a-ser sujeito, do cia em uma condição de desamparo em
existir como subjetividade. Em contrapar- que a dependência em relação ao ambien-
tida, pode estar na origem dos mais ter- te é extrema e em que a manutenção dos
ríveis sofrimentos psíquicos, bem como, “objetos” em bom estado e em bom fun-
efetivamente, está na base dos sofrimen- cionamento é essencial ao indivíduo.
tos que fazem parte inevitável da consti- Para Searles, os abusos pelos pais desta
tuição e funcionamento do psiquismo. função contratransferencial primária dos
No entanto, no campo da clínica da psi- filhos2 e, principalmente, a incapacidade
canálise, coube a Harold Searles em um de daqueles reconhecerem, admitirem e
seus mais instigantes trabalhos (Searles, aceitarem a condição de serem “cuidados
1973) nos propor a hipótese ousada de que por seus bebês” – o que pode incluir tan-
... entre as forças inatas mais poderosas que
to a educação como a cura de males físi-
empurram o homem na direção de seus seme-
cos e mentais – figuram entre as mais im-
lhantes, há, desde os primeiros anos e mesmo portantes causas dos adoecimentos psí-
desde os primeiros meses de vida, a tendência quicos. Há pais e mães, aliás, que reúnem
essencialmente psicoterapêutica. os dois aspectos: exigem tudo dos filhos
em termos de cuidados, mesmo quando
Se pensarmos em termos winnicottianos, são bebês, mas se mostram não educáveis
seria como um concern pré-original, uma e incuráveis. É o caso da “mãe morta” –
espécie de preocupação com o outro an- vale dizer, deprimida – de que nos fala
terior à própria constituição do aparelho Green (1983). Trata-se, então, de uma for-
mental do indivíduo, anterior, portanto, à ma ou de outra, de uma recusa ou inva-
configuração de um próprio. Recordemos lidação destas “tendências psicoterapêu-
que Lévinas nos remete ao âmbito do ticas”, que ficarão insatisfeitas, o que ali-
pré-original como sendo o do que expõe
artigos
atos, suas intenções e suas defesas. O pré- truída ou teve de ser objeto de algum
original é a exposição traumática à alteri- contra-investimento, seja pelo recalque,
dade, um começo de mim antes de Eu ter seja por outros mecanismos de defesa
ano XVI, n. 168, abr./2003
começado, e essa nos parece ser uma di- mais primitivos e radicais. Assim sendo,
mensão decisiva do que estamos denomi- reunindo as propostas de Searles às de
nando de contratransferência primordial. Winnicott, poderíamos supor que para
Como se verá adiante, não é necessário estes indivíduos estaria dificultado ou in-
2> Por exemplo, mães narcisistas que atrelam seus bebês e filhos pequenos à própria necessidade de se-
rem “cuidadas” por eles, explorando a propensão daqueles tratarem a psicose de suas mães.
>61
terditado o acesso ao concern que é pró- nhum analisando seja propriamente “fá-
prio da passagem da posição esquizopa- cil”, o trabalho analítico, desde que bem
ranóide para a posição depressiva, ou, conduzido, tende a alimentar e a enrique-
em termos winnicottianos, a passagem cer a contratransferência primordial, ou
do amor voraz e cruel (ruthless love) para seja, ele enriquece e consolida a posição
a preocupação (concern) e para a verda- do analista. Como afirma jocosamente
deira capacidade de reparação. No seu Robert Caper em um texto que utilizare-
lugar, as “tendências psicoterapêuticas” mos adiante, “uma das peculiaridades do
precoces ou não operariam (interditadas trabalho de análise é que se o analista o
pelo ódio e pela inveja), ou operariam fizer bem-feito, mesmo que o paciente
muito intensificadas assumindo a forma não melhore, o analista melhorará” (Ca-
de reparações maníacas, pela via das for- per, 1995, p. 74). Creio que esta “melhora”
mações reativas. Nos dois casos estariam do analista corresponda à possibilidade
comprometendo bastante a possibilidade que uma psicanálise lhe oferece de ela-
do paciente, ele mesmo, ser cuidado pelo boração e enriquecimento da sua contra-
analista que, por seu turno, se sentirá amea- transferência primordial, o que é propor-
çado em sua posição. cionado pela condução de uma análise
Voltemos agora a nosso tema. padrão e que se torna tão mais espinho-
Os maiores problemas na condução de so (ou quase impossível) quanto mais
um processo terapêutico surgem justamente perturbado for o paciente.3
quando algo da contratransferência pri- Mas antes de chegarmos a esta tese, cabe
mordial do analista parece ser atacado, na refazer um certo trajeto bem conhecido
situação de análise, pelos chamados “pa- de todos. Tentaremos fazê-lo da forma
cientes difíceis”, indivíduos que, prova- mais rápida e simples possível.
velmente, tiveram eles mesmos sérios
problemas em sua constituição subjetiva Um pouco de história
no que concerne os abusos e desperdícios de Relembremos com a maior brevidade os
sua contratransferência primordial. Quando passos decisivos da descoberta freudiana
artigos
isso ocorre, tais pacientes exigirão do te- que vão desde a percepção da transferên-
rapeuta uma determinação e uma habi- cia como uma “falsa conexão” e como um
lidade excepcionais para se preservar em problema a ser enfrentado e contornado
suas reservas anímicas. Nos casos da aná-
pulsional > revista de psicanálise >
3> Deve ficar claro para o leitor que, ao colocar “melhora” entre aspas e ao acentuar o caráter jocoso da
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frase de Caper, não se está sugerindo que a evolução clínica do paciente não importa, desde que o analista
se sinta satisfeito com o trabalho que realizou. Apenas se diz que em uma análise padrão a contratrans-
ferência primordial não é atacada como ocorre em uma análise difícil; ao contrário, pode ser desenvolvida.
Mas se isso ocorrer, naturalmente, o analista ficará mais, e não menos, sensível ao sofrimento do anali-
sando. Vale dizer, é o contrário do que resultaria de um fortalecimento do narcisismo patológico do tera-
peuta. Aqui, o que se sugere é que o analista seja capaz de se manter na posição de analista apesar da
ferida narcísica que sofre em decorrência da continuidade do sofrimento de seu paciente e da sua própria
incapacidade de salvá-lo deste sofrimento.
>62
jeto essencial da análise (Freud,1912, 1914, Ao longo dos anos da prática clínica freu-
1915, 1916-17). Embora a tendência a “vi- diana, mais importantes que as recorda-
ver” e atuar, em vez de recordar, sempre ções e as narrativas acerca do passado, o
vá ser também entendida como um fenô- que foi se impondo como objeto privile-
meno de resistência – um dispositivo giado de observação e análise são estas
para evitar o sofrimento psíquico e o con- reedições dos velhos padrões impulsivos,
tato com as experiências precoces de e defensivos, tanto no âmbito dos afetos
maior conflito – percebe-se que, além como no das representações. Além dos
dos limites do que pode ser lembrado, limites do rememorável, impõe-se, assim,
está o passado que só poderá de fato o que se repete na relação com o analis-
comparecer na análise sob a forma de ta e se apresenta como objeto vivo e atual
uma revivência e de uma atuação, seja ela de análise e de elaboração.
fora do setting analítico – acting out – ou No entanto, além mesmo destas repeti-
dentro dele – acting in. Ao menos no ções que assumem as formas de reedi-
contexto do setting (mas também, em ções, emergem as repetições ainda mais
grande medida, fora dele, como será en- radicais, as que se produzem além do
fatizado por Melanie Klein [1952] e seus princípio de prazer e sob o império da
seguidores), os sentimentos, as emoções, chamada “pulsão de morte”, nome que
idéias e atuações do paciente terão como dissimula o fato de que estas repetições
alvo a figura do analista ou, mais propriamen- correspondem ao mais pulsional das pul-
te, a figura do analista tal como constituí- sões, à pulsionalidade propriamente dita
da na transferência. A reserva do analis- em seu estado bruto de desligamento e
ta, sua discrição e sua “neutralidade” têm, em sua urgência à descarga (Freud, 1920).4
entre outras funções, a de proporcionar Embora o próprio Freud inclua as repeti-
as condições para que se estabeleçam ao ções transferenciais entre as manifesta-
longo do tratamento estas montagens ções da pulsão de morte, talvez, por ra-
transferenciais, conforme os recursos e zões que se irão expor adiante, não de-
possibilidades de cada analisando. Tanto vêssemos incluir estas repetições no con-
os impulsos, como as representações e os ceito de “transferência”, embora, sem dú-
pulsional > revista de psicanálise > artigos
afetos (amores, ódios, angústias...), como vida, elas incidam sobre os processos re
as defesas que organizam a dimensão do lacionais em uma análise e de alguma
infantil no psiquismo do analisando serão forma se originem na história passada do
mobilizados, acionados e irão se expres- indivíduo. Mais precisamente, se originam
sar de forma mais ou menos óbvia e dire- nas fraturas irremediáveis, nos impasses e
ta na relação com o analista que irá ser nos fracassos desta história, se originem
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configurado segundo os modelos das fi- no que mais tarde denominarei de malo-
guras mais significativas do passado gros na procura e no encontro de obje-
afetivo do paciente. tos primordiais. Ou seja, talvez pudésse-
4> Sobre a conveniência de se incluir a tendência à descarga como uma qualidade essencial da chamada
“pulsão de morte”, ver-se-á adiante (As desordens de caráter...) que isto só é parcialmente verdadeiro.
>63
mos reservar o conceito de “transferên- rando novos objetos que possam ocupar
cia” para as repetições que se mostram os lugares dos que foram vítimas do recal-
sob a forma de reedições dos padrões in- que. Aí se originam, entre outros, os pro-
fantis e inconscientes – libidinais ou cessos de criação de novos objetos e de
agressivos – que, em uma relação terapêu- sublimação.
tica, constituem o analista segundo os mo- Vale aqui uma pequena digressão. Quan-
delos do passado e no âmbito de opera- to mais intenso, radical e ”neurotizante” o
ção do princípio de prazer e do princípio de processo de recalcamento, maior a pro-
realidade. Em contrapartida, procuraría- pensão a transferir, vale dizer, mais o pro-
mos outros nomes para as repetições mo- cesso normal de introjeção será acionado
vidas pela pulsionalidade em estado puro, como forma de dirigir e procurar satisfa-
em um regime de funcionamento que perma- zer pela via das reedições dos objetos ar-
nece além (aquém) do princípio de prazer. caicos a energia libidinal (ou agressiva)
São processos que ainda não contam com sobrante e livre. Nestes casos, não só o
um aparelho psíquico suficientemente indivíduo está efetivamente privado de
estruturado para que nele vigore o prin- inúmeras possibilidades de satisfação le-
cípio de prazer, ou que foi reduzido, pelo gítima para a expressão de seus impulsos
efeito, por exemplo, do trauma a um modo e desejos, barrados pelo excesso de re-
muito mais primitivo de operação que o de um pressão, como boa parte do mundo será
psiquismo bem constituído, como o do neu- constituída como objeto de transferên-
rótico. Repetições desta natureza são, jus- cia, o que acarreta uma sobrecarga de
tamente, as que atacam e põem à prova a afetos e fantasias em objetos que seriam
contratransferência primordial do analista. mais bem considerados em suas proprie-
Mas esta distinção entre repetições trans- dades meramente pragmáticas. Há, por-
ferenciais e repetições de outra ordem tanto, um duplo prejuízo, em termos de
pode ser ajudada pelo recurso a algumas vida afetiva e sexual e em termos de adap-
idéias de Ferenczi. Em um de seus primei- tabilidade.
ros e mais elucidativos textos – “Transfe- Mas retornando ao fio da meada, nos
artigos
rém mais ativa e imperiosa nos neuróti- tas pelo recalcamento a uma mente que
cos. A introjeção é o processo pelo qual os já funciona sob o regime do princípio de
objetos do mundo são incluídos nas esferas prazer e de sua forma modificada, como
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terapêutica” que terá em Balint e em Win- nas elaborações de James Strachey, mais
nicott seus maiores expoentes. Vale dizer, precisamente, no seu texto “The nature of
quanto mais o analista deve se haver com the therapeutic action of the Psycho-
pacientes portadores do que, mais tarde Analysis” de 1933-34. Para estas formula-
o discípulo Balint (1968) denominará de ções, Strachey valia-se de seu bom co-
“falha básica”, mais o trabalho de recupe- nhecimento das obras de Freud e Ferenczi
ração das lembranças recalcadas pela via e de sua apreciação positiva da obra de
>65
Melanie Klein, ainda incipiente mas já muito uma dimensão da temporalidade comple-
inovadora no final da década de 1920. xa e não-consistente marcada pela coin-
Um conceito sugerido por Strachey me cidência e não coincidência simultâneas
parece particularmente esclarecedor entre o passado subjetivo do indivíduo e
para compreendermos a transferência na a atualidade das suas relações de objeto,
relação terapêutica e fora dela. Segundo criando o presente fraturado em que se
ele, o analista na transferência tem o es- pode verificar uma propensão para o
tatuto de um “objeto externo da fantasia”. acontecimento. Neste espaço, tanto o
Uma forma de entendermos o alcance da passado irrompe no atual, como o pre-
proposta é relacionando-a à idéia winni- sente pode incidir sobre o passado, des-
cottiana de paradoxo quando aplicada ao concertando-o e ressignificando-o. Há um
objeto transicional. Este tanto é um ele- verdadeiro acontecimento quando a tra-
mento da fantasia na área da onipotência, ma do tempo domesticado, linear e pro-
como algo que já incorpora a condição gressivo é desfeita e rompida e este rom-
de um objeto “não-eu”. Winnicott (1962) pimento é tão mais provável quanto mais
o afirma claramente: o analista é tanto aquela trama já traz em si mesma as mar-
um objeto subjetivo como um suporte do cas de uma desconstrução. É bem isso o
princípio de realidade, convertendo-se que se passa quando se instalam e culti-
em uma espécie de objeto transicional. vam as transferências, quando se ampliam
Nesta medida, se entrelaçam sem grandes os horizontes para as relações transferen-
dificuldades para nossa compreensão as ciais com sua ambigüidade e não-consis-
experiências de transferência, o brincar, tência características.
o ato criativo e o relato do sonho, pois É a partir destas condições que se pode
todos transitam neste espaço sui generis entender a dinâmica e a eficácia das “in-
em que o subjetivo e o objetivo se aco- terpretações mutativas”, outro conceito
plam sem coincidir, gerando uma realida- fundamental do autor. Segundo Strachey,
de de nova espécie. Nesta realidade, os quando se dá a projeção sobre o analis-
objetos são ao mesmo tempo inventados ta do superego arcaico do paciente, (pro-
artigos
drão no tratamento da neurose. Vale as- tua o golpe da discriminação entre o ana-
sinalar que é neste espaço que se pode lista fantasiado e o novo objeto que ele
constituir o uso da linguagem qua pode vir a ser e, em parte, já está sendo,
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rencial, se o paciente deve projetar seu mo que analista e analisando sejam pre-
superego sobre o analista, este, por seu dominantemente neuróticos.
turno, caso introjete o superego arcaico Um outro passo notável, mas igualmente
do paciente e tenha seu próprio perigoso, no desenvolvimento do pensa-
pulsional > revista de psicanálise >
superego arcaico ativado (processos que mento clínico e técnico sobre a transferên-
são em parte inevitáveis), permitirá que cia deu-se com a proposta de Melanie Klein
se constituam fusões superegóicas, con- de tomar a transferência como situação to-
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5> Vale recordar, contudo, que pode ser um animal e mesmo um aspecto do ambiente inanimado, casos
em que a identificação projetiva tem apenas o status de uma fantasia e só comporta a dimensão defen-
siva.
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uma combinação primitiva de projeção, manu- em alucinose, de que falaremos adiante,
tenção da empatia com o que é projetado, a são características de funcionamentos pre-
necessidade de controlar o objeto e uma ten- dominantemente psicóticos e borderline.
dência inconsciente para induzir o que é pro- Uma outra dimensão do fenômeno trans-
jetado sobre o outro ou dentro dele... E isso ferencial, que veio mais tarde a ser reco-
parece indicar, a meu ver, uma ausência de re- nhecida em termos mais condizentes com
pressão madura. (p. 21) sua especificidade, é a que envolve o de-
Uma distinção desta natureza também sempenho de papéis pelo analista e pelo
está na base da diferença estabelecida paciente. Até onde sei, foi em um belo
por Bion (1965) entre as transformações texto sobre a técnica ainda no final da
em movimentos rígidos e as transforma- década de 1920 que a psicanalista inglesa
ções projetivas. No primeiro caso, os pa- Ella Sharpe (1930) pela primeira vez acen-
drões do passado recalcado modelam as tuou o fato de que, na transferência, o
transformações operadas pelo paciente paciente oferece e exige papéis (roles) a
sobre o material oferecido pelas suas re- serem desempenhados pelo analista em
lações atuais com o analista, configuran- processos de encenação tanto nos planos
do assim, de forma padronizada e regular da realidade como na fantasia, mesclan-
seu campo de experiências e relações de do passado e presente. Na década de
objeto. No segundo, as transformações 1970 Joseph Sandler (1976) chamou a
envolvem a projeção de afetos que o psi- atenção para esta dimensão comporta-
quismo do paciente não pode conter, mental da transferência: a do role
controlar e muito menos simbolizar e enactment do paciente e a da role
pensar sobre a relação com o analista e responsiveness requerida ao analista.
sobre ele, sobre o setting e mesmo sobre os Mesmo que este não chegue efetivamen-
seus arredores. Trata-se de um psiquismo te a responder e a contracenar, a dispo-
cuja capacidade de pensar e simbolizar está nibilidade afetiva para captar e, eventual-
na verdade profundamente atrofiada. Em mente, responder de forma incipiente às
conseqüência, sua capacidade de configu- encenações do paciente, seriam condi-
artigos
rar objetos e diferenciá-los está pouco de- ções para o processo de análise cami-
senvolvida e por isso há como que um es- nhar. A role responsiveness seria uma di-
parrame de afetos sobre o analista, sobre mensão importante da sensibilidade con-
tudo que o cerca e tudo com que ele pode ser tratransferencial que, desde que bem uti-
pulsional > revista de psicanálise >
pelas transformações projetivas sem que, Diga-se de passagem que também na tra-
no entanto, perca sentido a distinção pro- dição kleiniana esta dimensão de role
posta por Bion. Transformações em mo- enactment veio a ser reconhecida como
vimentos rígidos são características de um dos aspectos da identificação
funcionamentos predominantemente neu- projetiva sempre que esta consegue efe-
róticos, enquanto as transformações pro- tivamente induzir no receptor (o analista,
jetivas e, mais ainda, as transformações sujeito a contra-identificações projetivas)
>69
os afetos, a postura e os comportamentos costumem combinar-se nas situações da
correspondentes e complementares. No clínica, acreditamos que a manutenção
entanto, predomina a convicção entre os das diferenças conceituais pode nos ser mui-
kleinianos de que a identificação projetiva to vantajosa.
pode estar ocorrendo sem que se manifestem
estas dimensões de enactment, o que corro- Repondo a questão: Uma proposta
bora a pertinência da distinção que esta- para a discriminação entre tipos e/
mos estabelecendo. É claro, por exemplo, ou dimensões da “relação terapêu-
que se o objeto da identificação projetiva tica”
for um animal de estimação ou uma parte 1) Proponho que se reserve o conceito de
inanimada do ambiente, ou, no caso de um “transferência” ou “transformação em
humano, se este não se sentir de fato in- movimento rígido”, e, correlativamente, o
vadido pela fantasia do paciente, nem por isso de “contratransferência”, às situações em
vamos dizer que a identificação projetiva que, efetivamente, o analista constitui-se
está ausente ou atenuada. Isto implica reco- para o paciente e por ele como objeto ex-
nhecer que a tendência a atuar a fantasia terno da fantasia. Algumas dimensões ou
projetada ou a responder a ela pode ser características desta relação podem ser
freqüente, mas não é essencial na caracteri- realçadas. Nela experimenta-se, de parte
zação da identificação projetiva (Bell, 2001). a parte, a linguagem como linguagem e
A partir destes textos freudianos e klei- abre-se, portanto, um espaço de sonho e
nianos que nos chamaram a atenção para um campo de jogo em que são possíveis
as encenações, e com base na obra de al- as associações livres, as interpretações,
guns autores americanos provenientes da mutativas ou não, os insights, os aconte-
tradição de uma interactional psycho- cimentos, as ressignificações e ressubjeti-
analysis , a literatura sobre enactment vações etc. Apesar dos movimentos de
cresceu muito nas últimas décadas (cf. repetição tenderem à rigidez, há aqui um
Jacobs, 1991; Elman e Moskowitz, 1998). potencial de criação e os “jogos de pala-
Novamente aqui, porém, tal como ocor- vras”, nas relações transferenciais-contra-
artigos
ram seus contornos com a introdução e palavras pode ser bem peculiar. As situa-
com o uso irrestrito do conceito de ções em que predominam a transferência
enactment que, em alguns autores, tende e a fala como fala são aquelas em que se
a confundir-se no plano conceitual com desenrola uma análise padrão – com os
o de transferência e mesmo a subsumir a “pacientes fáceis” – e em que a contratrans-
identificação projetiva. Embora, como se ferência primordial constitutiva do psica-
verá adiante, estes diversos processos nalisar é continuamente realimentada.
>70
2) Já quando dominam, de parte do pacien- fera do discurso (cf. Ogden, 1998 e Figuei-
te, as identificações projetivas ou trans- redo, 1998), bem como de toda a presen-
formações projetivas, do lado do analis- ça do paciente em termos de expressões
ta esperaríamos encontrar identificações faciais e corporais, são elementos decisi-
introjetivas, continência e capacidade de vos nas operações das identificações pro-
rêverie, vale dizer, metabolização simbó- jetivas e na sua recepção. Estas dimen-
lica. Há, porém, é claro, a possibilidade sões conseguem “transmitir” e provocar
das identificações projetivas produzirem afetos de uma forma muito direta, insta-
no analista contra-identificações projeti- lando estados subjetivos nos eventuais
vas, processo no qual o analista se defen- receptores cujas causas e razões dificil-
de devolvendo as projeções que lhe fo- mente podem ser postas em palavras,
ram endereçadas em estado bruto ou en- mesmo quando estão originalmente asso-
viando as suas próprias sobre o paciente. ciadas à fala.
Nas relações marcadas pela forte incidên- Como objeto da fantasia, a diferença do
cia de identificações projetivas, o analis- analista em relação ao paciente é negada
ta não se institui como objeto externo da e ele comparece como objeto narcísico
fantasia, mas pura e simplesmente como (um self -objeto nos termos de Kohut)
objeto da fantasia, destinatário e deposi- sendo, em uma certa medida, vítima de
tário de afetos sem mediação simbólica. O uma verdadeira “desobjetalização”, tal
que se observa predominantemente nes- como sugere Green (2002), o que retoma-
tes casos são as atuações, as evacuações, remos adiante. Quaisquer que sejam as
as alucinações e os delírios que caracte- funções da identificação projetiva, seja na
rizam as transformações projetivas e, em ordem das defesas, seja no plano das co-
estados mais radicais de psicotização, as municações, o que foi tão acentuado por
transformações em alucinose em que a Bion, a sua função primordial, conforme
realidade é construída na medida das ne- sublinha Betty Joseph (1987),6 é a de ne-
cessidades do paciente de forma a que gar a separação, vale dizer, é uma recusa
este não chegue nem a experimentar a radical da diferença, o que efetivamente
artigos
sas. Por isso, aspectos não-verbais da fala ocorre a identificação projetiva maciça
e da voz, como timbre, entonação, melo- nos pacientes narcisistas, verifica-se tam-
dia, ritmo, colorido semântico, estrutura bém uma ausência de transferência stric-
gramatical, estilo retórico, clima e atmos- to sensu, o que confirma, em última aná-
6> “Na raiz mais primitiva da identificação projetiva está a tentativa de retornar ao objeto – tornar-se
como que indiferenciado e sem mente para evitar toda a dor psíquica” (Joseph, 1987, p. 178).
>71
lise, a posição de Freud. Cabe assinalar nhamento destes casos, bem como, é cla-
que muitos analistas kleinianos vieram a ro, os conceitos de “continência” e de
admitir o fato de que “interpretações da “rêverie” criados por Bion para descrever
transferência” com pacientes muito nar- esta instalação primária de um “aparelho
cisistas são contraproducentes e inefica- para pensar”.
zes, irritando-os e não produzindo trans- 3) Finalmente, quando predominam os
formações terapêuticas. Provavelmente, “enactments”, espera-se e requer-se do
isso ocorre porque nestes casos, a rigor, analista alguma disponibilidade para os
não estamos lidando com relações trans- counterenactments, mesmo que toda a
ferenciais, transformações em movimen- prudência seja necessária e, quase sem-
tos rígidos, mas sim com transformações pre, insuficiente, para lidar com estas si-
projetivas e identificações projetivas ma- tuações. Nestes casos também, o analista
ciças ou transformações em alucinose. não é constituído como objeto externo
“Interpretações da transferência”, portan- da fantasia em um espaço de jogo, mas
to, não seriam apenas pouco oportunas existe como objeto externo com o qual
nestas circunstâncias, mas, de fato, um uma parte do paciente “interage” conti-
equívoco técnico decorrente de uma fa- nuamente nos planos inconsciente e
lha na conceituação do que se passa na consciente para produzir efeitos e manter
relação terapêutica. distâncias (controlar), sem mediação sim-
Se empreendermos aqui um breve retor- bólica. Aqui, novamente, o recurso à fala
no a Ferenczi (1909) assumindo que a pri- – e há pacientes que abusam dos
meira relação objetal já implica uma enactments e são extremamente bem ar-
transferência – no caso, a transferência ticulados no plano verbal, como tantos
da experiência auto-erótica sobre o pri- pacientes falso self – não deve nos enga-
meiro objeto de amor e de ódio –, pode- nar quanto ao nível de funcionamento
ríamos sugerir que estes pacientes ainda psíquico do indivíduo.
estão contínua e repetidamente tentando As encenações contínuas e a exigência de
a passagem do auto-erotismo ao amor contra-encenações são características dos
artigos
objetal e nela fracassando. Para tratá-los, pacientes esquizóides afetados pela falha
o analista deve ser capaz de assisti-los no básica (Balint), portadores do falso self
que pode ser concebido como a procura (Winnicott), traumatizados e vítimas do
primordial de um objeto apto a propiciar que Shengold (1999) chamou de soul
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ciente abre a boca. Isso quer dizer tam- cado faltando nos pacientes com adoeci-
bém que nem sempre é a transferência mentos narcisistas e esquizóides significa-
no sentido estrito que teremos como ob- tivos. Neles, encontramos, por assim di-
jeto de análise e manejo. A crise da media- zer, a pulsionalidade ela mesma afloran-
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quico capaz de mediação interna, de liga- pulsão. O que estamos sugerindo é que
ção e diferenciação é o que vai caracte- esta pulsionalidade só se manifesta de
rizar a operação do psiquismo em um re- forma nua e crua (sem ligação e sem re-
gime além ou aquém do princípio de pra- presentação possível), quando a pulsão
zer em que as funções de desligamento e não encontra em seus objetos a capacida-
desobjetalização operam com todo vigor de de exercerem as funções primárias
e são as mais evidentes na compulsão à que são as bases de todos os processos
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de ligação e, portanto, as condições para serem formas de redução da tensão –
a manifestação de Eros e para a vigência sem que a desobjetalização seja a finali-
dos princípios de prazer e de realidade. A dade última do processo. No que pode
pulsionalidade enquanto tal, a rigor, nem aparecer apenas como auto-aniquilamen-
liga nem desliga; as pulsões pulsam, e já é to, há um próprio que se constitui na
o suficiente. São os objetos primários pura repetição do mesmo, sem que algu-
que, interceptando esta pulsionalidade, ma diferença possa ser admitida, pois ela
podem conduzi-la às ligações ou, por sua seria experimentada como desintegração.
ausência ou por suas insuficiências, po- Onde não se admite diferença, nem eu
dem provocar e disparar as forças de nem outro, nem sujeito nem objeto se
descarga e do desligamento. Assim sendo, constituem e o paradoxal é que seja nes-
tendemos a concordar com Fairbairn te nível que o próprio deva se afirmar,
(1958) e também com Green (2000) que uma auto-afirmação no limite, uma vida
vêem na chamada “pulsão de morte” uma in extremis.
espécie de malogro da procura de objeto Finalmente, vamos à terceira hipótese: se
pela pulsão. É só então que a tendência à nas operações da pulsão de morte e nas
descarga e à desobjetalização vem à tona. repetições que se dão além do princípio
No entanto – e esta é nossa segunda hi- de prazer há, certamente, “ataque aos
pótese – não se deve perder de vista o elos de ligação”, aos afetos (-L e -H) e ao
fato de que, mesmo quando, diante das conhecimento (-K), conforme nos ensina
falhas ambientais precoces, o psiquismo Bion (1959), há também aí a insistência da
parece preferir o desligamento, a destrui- vida e mesmo a exacerbação daquela “ten-
ção parcial ou total dos objetos (função dência psicoterapêutica” que Searles iden-
desobjetalizante) e a própria morte tificava em seus pacientes graves e que
(como na “criança mal acolhida” descrita pode ser agora reconhecida em sua ver-
por Ferenczi [1929], que se entrega à não- dadeira natureza: é a repetição como in-
vida com extrema facilidade), nas repeti- sistência (muitas vezes, desesperada) na
ções ainda se encontra uma vitalidade procura de um objeto vivo e saudável e
artigos
também, mesmo quando reduzida à pul- início da vida, mas sempre) – é o que o
sionalidade mais primitiva, a testemunha leva desde muito cedo a precisar cuidar
de uma procura de afirmação do mesmo de seus “objetos – curando-os e mesmo
ano XVI, n. 168, abr./2003
à revelia do outro; pode ser entendida educando-os – para que eles possam as-
como “narcisismo de morte” (Green, sumir as funções decisivas na sua consti-
1983), mas é, ainda assim, narcisismo, tuição psíquica e física”. Bebês, e crianças
constituição do próprio . É claro que “a ajudam os pais a serem pais e mães a se-
afirmação do mesmo à revelia do outro” rem mães, a segurá-los e a contê-los. O
passa pela destruição do outro – e as des- mesmo fazem os pacientes com seus tera-
cargas têm também este sentido, além de peutas. Quando isso não é possível, seja
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porque se trata de objetos incuráveis e tensão, pela via da destruição das dife-
não educáveis, seja porque a capacidade renças e da dissolução de si e do outro,
de cuidado do bebê ou do paciente não como, em vez disso, (2) uma afirmação e
é reconhecida, estes se fixarão patologi- mesmo uma preservação in extremis do
camente nas posições de inveja, ódio ou, próprio; e não apenas isso, como, em vez
por formação reativa, de reparadores disso, (3) uma reiterada procura do obje-
maníacos, três grandes obstáculos ao to primordial, uma procura que passa,
processo terapêutico. Por isso, como su- justamente, pela (1) destruição das dife-
gere Searles, é preciso deixar-se curar por renças e dissolução de si e do outro, e as-
estes pacientes para que eles possam ser sim por diante... De sorte que o termo
minimamente cuidados, pois, antes de “pulsão de morte” acaba se revelando
mais nada, será apenas na condição de bem pouco adequado e muito restritivo
objetos vivificados ou ressuscitados por para dar conta de tudo que está implica-
eles que poderemos tratá-los. Eles nos do – ainda que de forma contraditória –
ensinam e curam para que possamos nos processos de repetição compulsiva.
curá-los, inclusive curá-los, eventualmen- É, aliás, a conclusão a que chegara Fe-
te, de sua fúria curativa. Talvez possamos, renczi em uma nota recentemente desco-
desde este vértice, entender a desobjeta- berta. Dizia ele: “Nada além de instintos de
lização como uma tentativa canhestra de vida. O instinto de morte, um erro (Pessi-
dissolução da “objetalidade” dos objetos mista)”.
para que os aspectos do ambiente capa- E as remissões a Ferenczi não são casuais
zes de proporcionar holding e continên- neste momento. Foi das leituras cruzadas
cia possam ser recuperados em sua di- de Além do princípio de prazer e de Tha-
mensão pré-objetal, condição na qual es- lassa (Figueiredo, 1999), fecundadas pelas
tas funções podem ser efetivamente observações clínicas, que pude chegar a
exercidas.7 Enfim, a desobjetalização pode propor esta concepção da chamada “pul-
ser entendida, ao menos parcialmente, são de morte”. Descobrir a vida pulsante
como a destruição do objeto, no sentido nos estados de quase-morte, reconhecer
artigos
7> É nesta direção que nos parece ir a interpretação de Octavio Souza sobre certos efeitos do consumo
de drogas, focalizando as situações em que elas produzem um movimento regressivo nas relações obje-
tais e favorecem o restabelecimento de formas mais primitivas de relação com o ambiente (Souza, 2002).
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analista às vicissitudes do processo que a Na clínica psicanalítica contemporânea,
análise deflagra e tem como responsabi- vamos encontrar áreas reconhecidas
lidade própria sustentar quando se depa- como de ausência do pleno funciona-
ra com indivíduos que até este momento mento dos dispositivos simb ólicos,
se mantiveram vivos na mais absoluta como no caso dos pacientes com “pensa-
precariedade, seja a do congelamento mento operatório” e psicossomáticos (cf.
afetivo esquizóide, seja a da dissolução e Smadja, 2001, que articula a tradição da
da turbulência narcisista. Encontramos escola psicossomática de Paris com a psi-
tanto em Ferenczi como em Winnicott um canálise de André Green). Talvez sejam
contraponto importante à ênfase na des- estes exemplos radicais de esquizoidia,
trutividade e no ataque aos elos de liga- embora em tais pacientes pareça mesmo
ção que tanto marcam os pensamentos não haver, nem mesmo em estado de dis-
de Klein e Bion. Creio que ao conceber a sociação e enquistada, uma vida afetiva e
chamada “pulsão de morte” pelos três de fantasia. Contudo, sugiro como hipó-
vértices acima mencionados, reconhecen- tese a vantagem de compreendermos es-
do a dimensão da descarga, a do caráter tes casos a partir do paradigma da esqui-
mortífero do narcisismo, mas também a zoidia, posto que se trata, e quanto a isso
insistência da vida, abre-se um horizonte não parece haver dúvidas, de uma pato-
clínico muito mais promissor, sem que se logia do self . Nesta condição, que englo-
caia, por outro lado, em um otimismo fá- ba os adoecimentos narcisistas e os esqui-
cil, pois, não há dúvidas de que se trata de zóides, penso que os psicossomáticos se
pacientes difíceis. aproximam muito mais da descrição do
Por isso, cabe aqui uma pequena obser- paciente esquizóide, com sua mortífera
vação de cautela. Esta concepção menos estabilidade (cf. Bromberg, 1998) do que
“pessimista” da pulsionalidade que aqui do narcisista, com suas fúrias, dores e amo-
estamos elaborando, nas pegadas de Fe- res exaltados.
renczi, não nos deve iludir quanto à real Mas também nos deparamos, com gran-
dificuldade destes processos terapêuti- de freqüência na clínica contemporânea,
artigos
cos. O trágico em certas repetições co- com os “maus usos dos símbolos” nos pa-
mandadas pela chamada “pulsão de mor- cientes narcisistas e esquizóides em geral.
te” é justamente o fato de que os três pó- Bion (1963) com sua Grade nos ensinou a
los ou direções se articulam e podem se distinguir entre o grau de elaboração de
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