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Revista Citica de Ciéncas Socials, 82, Setembro 2008: 85-109 LUCIANA F. M. MENDONCA Culturas populares e identificagdes emergente: Reflexées a partir do manguebeat e de expressdes musicais brasileiras contemporaneas' © artigo analisa a interaccZo de diversos factores que, relacionados com transformagBes socioculturais recentes, contribuern para a centralidade da miisica e de outras formas de expressio estética em processos de rearticulagao das identidades, no 4mbito dos quais se observa um renovado interesse pelas manifestacdes populares tradicionais e a dinamizago de espacos urbanos. Buscando a comparacio com outros contextos, toma-se como ponto de partida o estudo do movimento manguebeat, de Recife, Per- nambuco, cujos elementos permitem a discussio de questdes ligadas as relagdes entre © local eo global, a tradic3o e a modernidade, a criago e a fruicao cultural. A pesquisa confirmou algumas tendéncias da miisica contemporanea, que colocam certas formas musicais regionais em sintonia com as transformagées do campo musical em geral Uma questo chave é a dos processos de ressignificac3o das culturas populares. Introdugo Varias razdes tém sido levantadas, no amplo escopo de pesquisas sobre a cultura contemporanea, para definir a mtisica, vista na totalidade dos seus processos de producio, circulacdo e consumo, como tema frutifero de inves- tigacao empirica: 1) o seu forte apelo como elemento de comunicagao entre e dentro de grupos; 2) o facto de estar frequentemente envolvida com meca- nismos de identificacao social, de redefinigao e criagao de novas identida- des ¢ estilos de vida, em especial juvenis (Connor, 1992; Featherstone, 1995); 3) a sua natureza de produto lucrative ¢ extremamente relevante para a industria cultural (a despeito de/ e considerando as novas formas de frui- do e consumo que se consolidaram com as tecnologias digitais); 4) ser parte constitutiva dos cenarios e paisagens sociais, estando presente em todos os ¥ Uma versio preliminar deste artigo foi publicada nas Oficinas CES n.° 275, dispontvel em hitp:// ‘www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/275/275.php. 2 Sobre a sua importancia geral, pode-se dizer que “Musica é manifestagao de crencas, de identi dades, é universal quanto & sua existéncia c importncia em qualquer que seja a sociedade” (Pinto, 2001: 223), 86 | Luciana F. M. Mendonga ambientes, sobretudo no meio urbano, onde se podem analisar as sonori- dades que marcam a especificidade de um dado local (cf, Fortuna, 1999 ¢ 2001: 5) tratar-se de um dos campos de expressao dos hibridismos,’ que tém sido pensados como caracteristicos dos processos de criagao cultural nas sociedades contemporaneas. A emergéncia do rétulo world music’ e de um mercado musical especifico a ele associado, a partir dos anos 1980, é uma das expressdes deste fenémeno Uma das manifestacdes musicais brasileiras mais significativa em termos do seu forte envolvimento com processos de reelaboracao das identificagies sociais e encenagao de uma producao cultural marcada pelo hibridismo, nos anos 1990, foi o movimento manguebeat, cooperativa cultural cujo marco de criagao estabeleceu-se com a publicagao na imprensa do Recife, em 1991, de um manifesto intitulado “Caranguejos com cérebro”.’ O movi- mento teve como principais expoentes os misicos/bandas Chico Science ago Zumbi, Fred Zero Quatro ¢ Mundo Livre $/A.° A importéncia do manguebeat na dinamizacao do contexto local prende-se ao facto de ter potencializado as possibilidades de expresso de diversos artistas e grupos musicais ao valer-se do mangue’ como metéfora da diversidade cultural local, contribuindo para ressignificar as mais vatiadas manifestagdes da Utiliza-se aqui hibridismo/hibridagao, como faz Canclini (1997), por possibilitar 0 tratamento de diversos tipos de mesclas interculturais, evitando a carga racial do termo “mestigagem” ¢ a religiosa tradicional, associada ao termo “sincretismo”. Outra abordagem interessante do tema encontra-se em Burke (2003) “Van der Lee (1998) elaborou uma interessante tipologia do campo semantico recoberto pela expressio, com definigées correlacionadas e ordenadas hierarquicamente, da forma considerada “mais auténtica” para a mais “misturada” ou “corrompida’, segundo a avaliacio do puiblico médio ocidental, o que demonstra a variedade de formas que se pode encontrar subsumida a este rétulo, A tipologia cobre sete concepgdes de world music, que itiam desde a misica tradicional nio-oci- dental (indigena, indiana, arabe, ete.) ou da miisica popular e nacional (neste caso, incluindo os paises ocidentais), até as assimilacGes de géneros mundializados por paises periféricos ou vice-versa, incluindo a descontextualizacao justaposigio de elementos sonoros de diversas origens. O manifesto foi redigido por Fred Zero Quatro — compositor e voealista da Mundo Livre $/A —com a colaboragao de Renato Lins —jornalista e DJ - ilustrado por Helder Aragio, o DJ Dolo- res, que foi responsivel, junto com seu parceiro Morales, pelo projecto grafico ¢ ilustracdes do encarte do primeiro CD de Chico Science & Nacéo Zumbi, Da lama ao caos, onde também foi publicado o manifesto (Teles, 2000), Referéncias a links para o acesso na Internet a videoclipes dessas bandas e também da Devotos, «que sera mencionada abaixo, podem ser encontrados no final do artigo. A lista, longe de ser exten- siva, serve apenas como indicagio basica pata o leitor que queita conhecer um pouco do trabalho musical das bandas citadas ao longo deste artigo. ‘O mangue ou manguezal é um ecossistema com grande diversidade biolégica, caracteristico de regides costeitas da América do Sul, Asia e Africa, sobretudo nas regides dos deltas dos rios, geralmente lamacentas e alagadas por gua salobra. Nos mangues prolifera uma vegetacao com raizes aéreas ¢ muitas espécies de crustaceos, sobretudo caranguejos. Na Regio Metropolitana do Recife ha muitas ércas de mangue ¢ significativas pattes da cidade foram construidas sobre zonas, de mangue aterradas, Culturas populares identificagses emergentes | 87 cultura popular regional e promovendo, nesse bojo, a valotizagio da cultura tradicional e dos seus produtores. Além disso, o manguebeat faz parte do conjunto de modificagées que tém impacto sobre a misica popular brasileira e fazem com que o rétulo MPB ganhe novos sentidos, ao se relacionar com as formas contemporaneas de criagao musical urbana, suscitando novas formas de hibridismo. A ques- tio nao é apenas de classificacao e definicao de géneros musicais, mas envolve o sentido da produgao contemporanea, que nao pode mais ser caracterizada a partir do tertitétio nacional como referéncia central: ‘MPB pode servir para Edu Lobo, Guinga, Caetano... E para Skank, Chico Science, d Mota, Céssia Eller, Titas, Paralamas ¢ Sepultura? Quais s4o as fronteiras que distinguem claramente uma coisa da outra? MPB serve e nao serve para definir uma produgio de miisica urbana vital, em processo de transformagao, com muita absor- gio de diferentes sons e dotada de diferentes sotaques, que vio se modulando, se combinando ¢ se contrapondo. (Wisnik, 1997: 58-60) Considerando-se esse contexto de absorcao combinacao de diferentes sons, pretende-se reflectir tanto sobre as condigdes colectivas que propi- ciaram a emergéncia do manguebeat no panorama musical, quanto sobre a sua constituicao como objecto de reflexao, sua insergio e especificidade no contexto das paisagens sonoras locais e globais. Discutem-se ainda algumas das consequéncias sobre a rearticulagio das identidades culturais ¢ 0 reposi- cionamento das culturas populates no interior da sociedade contemporaine Manguebeat: um objecto “bom para pensar” Em 1998, quando se iniciou a pesquisa sobre esse tema’, praticamente nio existia bibliografia que tomasse 0 movimento manguebeat como assunto. Em 2004, ja havia diversos artigos publicados em livros e revistas especia- lizadas, comunicagdes em congtessos, mais de uma dezena de dissertagdes de mestrado e teses de doutoramento, além de intimeros artigos em jornais ¢ revistas genéricas ou dedicadas exclusivamente 4 misica, tanto no Brasil como no exterior (sobretudo nos Estados Unidos da América), abrangendo as areas das ciéncias sociais, comunicacio, (etno)musicologia, hist6ria e cri- tica da mtisica popular. Seria o caso de nos perguntarmos: porqué um fené- meno tio recente, com pouco mais de dez anos, de catiz local (embora rela cionado a circuitos transnacionais), com forte relacao com as tradigées populares, mas caracterizado por ser uma forma de produgao cultural “alter- © Esta investigacao foi desenvolvida no imbito do meu doutoramento (Mendonga, 2004). 88 | Luciana F. M. Mendonca nativa” (a margem do mercado mainstream), consumida principalmente por alguns segmentos do piblico jovem, atraiu para si a atengao nao s6 dos media, mas também dos intelectuais? Embora a atencio as praticas culturais populares em geral - analisadas agora com 0 mesmo grau de sofisticagao tedrica antes aplicado a cultura erudita—faca parte das tendéncias contemporéneas (Connor, 1992), a his- toria do manguebeat e dos eventos que lhe deram forma ajuda-nos a com- preender os motivos que levaram este movimento cultural a se tornar um objecto considerado “bom para pensar”, sem minimizar os aspectos esté- ticos, postos em relevo por certos investigadores, sobretudo por se terem constituido como elementos de atraccio inicial que os impulsionou a debru- carem-se sobre o assunto.? Entre os factores que me atrairam para o tema, para além das questdes teéricas discutidas a seguir, a audicao do CD Da lama ao caos,® de Chico Science & Nagao Zumbi, eo contacto com as noticias que circulavam nos meios de comunicacao sobre o desenvolvimento do manguebeat, desde 0 inicio dos anos 1990, no Recife, vieram consolidar o interesse por um estudo de caso especifico. Esse caso parecia ter (e de facto tem) iniimeros elemen- tos interessantes para a reflexao, sobretudo quanto aos desdobramentos das relagdes entre o local e o global no campo da identidade cultural, em imbricacao com os processos de criagio musical Na pesquisa realizada, os dados etnograficos"' foram complementados com pesquisa documental em jornais, revistas e sites da Internet. Foi funda: mental para o desenvolvimento do trabalho colocar em confronto com os dados empiticos a hipétese segundo a qual existe uma relagao dialéctica entre, por um lado, as forcas ao mesmo tempo homogeneizantes e segmentadoras da mundializacéo da cultura e, por outro, a heterogencidade de fontes ¢ * © einomusicdlogo Philip Galinsky (2002) relata que ficou muito impressionado quando viu © show da Nagao Zumbi, em 1995, no Summerstage, Central Park, Nova Torque, sobretudo com a performance de Chico Science e com 0 som propriamente dito, que foram, segundo o autor, 0 ponto de partida para a decisio de investigar 0 manguebeat. © Quanto ao impacto de Da lanra ao caos, pesquisadores ¢ criticos musicais apontam o disco como grande inovagio no conjunto da MPB da tiltima década, Um indicio desse facto foi a sua eleigao, em 2004, como um dos “dez grandes slbuns da historia da misica brasileira”, em votacio organ zada pelo Sesc Pompeia, um dos aparatos culturais mais importantes da cidade de So Paulo, gerido pelo Servigo Social do Comércio (Folha de Sao Paulo, 2005) "A investigagao de terreno no Recife foi feita de maneira mais sistemética em dois periodos de cerca de um més, em Janeiro/Feverciro de 1999 ¢ de 2001, periodos durante os quais se desen- volveu a observagao de concertos e do Carnaval, quando acontece um dos festivais mais impor tantes da cena mangue, o Recbeat. Nesses periodos, realizaram-se também entrevistas e recolhe- ram-se depoimentos de actores-chave naquele cenério (miisicos, produtores, jornalistas). Realizaram-se outras observagdes de concertos, como a do festival Abril Pro Rock, em 2000, de dois concertos no exterior (em Berlim e em Lisboa), além de outros realizados em Sao Paulo, Culturas populares e identificagses emergentes | 89 resultados da produgao cultural local, tanto em termos de contetidos, como das relagdes de poder. Neste sentido, a busca de um estudo de caso teve também motivagées de natureza tedrica, que remetem para os debates sobre os processos de globalizacao e de mundializagao da cultura, onde se encon- travam algumas lacunas, apontadas também por autores como Crane (2002), quanto & comprovagao empirica de alguns postulados tidos como universais. Retomando os motivos que tornaram o manguebeat “bom para pensar”, algumas caracteristicas préprias do movimento devem ser relembradas. Em primeiro lugar, o movimento mangue surgiu, em grande parte, como reacgao a um cenatio de estagnagao econémica e cultural, na “ressaca” dos anos 1980 — no Brasil, a chamada “década perdida”, em fungao da crise econémica que se instalou. Era um contexto de poucas oportunidades de lazer ¢ de trabalho para os jovens, problemas que apresentam uma face ainda mais perversa numa metr6pole periférica como o Recife.” Enquanto reacgdo espontanea, baseada no idedrio punk do “faca vocé mesmo”, o que era um grupo informal de amigos acabou por se transformar na cooperativa cultural mangue. Ou, dito de outro modo, por meio das acgdes de ajuda miitua, da dinamizagao dos espagos de lazer e da criagao cultural na cidade, valorizando os elementos locais, ctiou-se um conjunto de eventos ¢ produ- tos — festas, festivais, discos, filmes, exposigdes, etc. — apreendidos pelo ptiblico e pelos media como um movimento cultural. Esse aspecto informal dé ao movimento um potencial de atrair para a sua esfera de influéncia outros grupos que circulam ao seu redor, compartilhando com eles a sua capacidade de projeccao publica. Quanto a este primeiro ponto, um dos exemplos mais interessantes de bandas associadas ao manguebeat, mas que nao se consideram propriamente parte do movimento, nem se utilizam do mesmo manancial de ideias ¢ mesclas musicais que a Nagao Zumbi e a Mundo Livre $/A, é 0 das bandas do Alto Zé do Pinho, bairro pobre, deficitario no que diz respeito a infraes- trutura e aos servigos publicos, localizado num dos mottos da zona Norte do Recife. Na visao de alguns misicos e criticos musicais, este bairro cons- tituiria mesmo uma cena’ musical & parte, que se caracterizaria pela pre- dominancia do hardcore. Bastante representativos desse contexto sao os Devotos (antes, Devotos do Odio), banda criada em 1988, mas que sé teve ® A Regio Metropolitana do Recife 6 a 9" maior do Brasil ¢ a maior da regito Nordeste, com 3,3 milhies de habitantes. Dela fazem parte 14 mumniefpins, sendo Recife, com cerca de 1,5 milhies de habitantes, a cidade sede da Regio Metropolitana (IBGE, Censo 2000), A metafora da cena tem origem no movimento punt inglés e qualifica um fazer cultural que trabalha com circuitos de producao e consumo interligados, mas nao uniformizadas em termos estéticos go | Luciana F. M. Mendonca o seu primeiro disco langado em 1996, na esteira da projecgdo das principais bandas do mange. Como esta, outras bandas do Alto Zé do Pinho passaram a ter maiores oportunidades, tendo-se implementado um projecto com finalidades educativas, econémicas e de solidariedade social, denominado Alto Falante (cf. Mendonga, 2004, especialmente Capitulo 6). Além disso, a prépria imagem do bairro foi valorizada, deixando, por exemplo, de ser assunto das paginas policiais dos jotnais, para figurar nas secgGes de cultura. Em segundo lugar, é importante ressaltar o caracter social transfronteirigo do movimento, ao colocar em diélogo pessoas de classes sociais, origem geografica (dentro do espago urbano), estilos de vida e perspectivas dife- rentes. O niicleo inicial do manguebeat apoiava-se em duas pedras angula- res: 0 grupo de amigos de Peixinhos/Rio Doce (Olinda), que se aglutinava ao redor de Chico Science, ¢ 0 grupo da praia de Candeias, cujo pedaco’ foi baptizado de “Ilha Grande”, tendo como personalidades centrais 0 mtisico Fred Zero Quatro ¢ o jornalista Renato Lins. Os dois grupos fun- cionavam como circuitos de troca de informacao e como espaco aglutinador de mtisicos, compositores, bandas ¢ gente ligada a criagao cultural, com pontos de contacto entre eles. E interessante notar que os baitros ~ Peixi- nhos/Rio Doce, em Olinda, e, do outro lado, Candeias, em Jaboatao dos Guararapes —situam-se em pontos distanciados, opostos, respectivamente, anorte ea sul da Area Metropolitana do Recife. Também do ponto de vista social, o primeiro grupo caracteriza-se por ser de classe baixa ou média- baixa, e 0 segundo de classe média ou média-alta, Enquanto o segundo grupo era mais nitidamente adepto do rock, o primeiro estava mais clara- mente ligado & chamada miisica negra, sobretudo ao funk e ao rap. Do ponto de vista do puiblico, essa caracteristica aparece mais uma vez, pois 0 mangue conta com fas tanto no conjunto dos universitarios de classe média e alta, quanto entre os jovens de classe baixa, alguns moradotes de favelas.'? Muito contribuiu para esse cardcter transclassista a figura de Chico Science, misico de maior projecgao do movimento, criador do rétulo manguebeat. Sua capacidade de aglutinar pessoas e sons, sua personalidade expansiva e carismatica, sua capacidade criativa e performética, mobilizando simbolos extremamente enraizados na cultura pernambucana, transforma- ¥ Utilizo aqui a nogio de pedago elaborada por José Guilherme Magnani a partir da etnografia urbana e exposta em varios textos do autor. De acordo com ele: “A nocao de pedaco [..] supoe uma referéncia espacial, a presenca regular dos scus membros ¢ um cédigo de reconhecimento ¢ comunicacao entre eles” (Magnani, 2002: 20). © Ao ressaltar o cardcter transclassista do movimento, tanto do ponto de vista da produgio quanto do consumo culturais, nao se pretende afirmar que as fronteiras de classe social tenham sido rom- pidas. Verifica-se apenas que existem certas porosidades que permitem novos arranjos ¢ relagdes com 0s contetidos culturais e com o espago urbano. Culturas populares e identificagdes emergentes | 91 ram-no num idolo da juventude, especialmente a local. A sua morte prema- tara, em Fevereiro de 1997, ajudou a projecté-lo ainda mais. Nas palavras de um critico musical do Recife: Enquanto bandas de rock ¢ outtos artistas do resto do pais falavam de temas mais comuns a uma juventude burguesa, ele falava em urubu, molambo, lama, palavreado que nunca esteve em primeiro plano na misica pop. Ele abordava originalmente temas do quotidiano de uma juventude que necessitava expressar-se e nao tinha os meios para tal, Essa combinagao de necessidade e oferta, conjugada com sua motte, teria desembocado na sua mitificasao. (Santiago, 2001) Em terceiro lugar, o caracter transfronteirico acima referido expressa-se também no plano estético, com a conjugagao de tradigdes ¢ inovagées dis- pares, num processo de recriagdo musical e visual a partir de fontes diversas. No plano visual, misturam-se tendéncias relacionadas a cultura piscatéria do litoral nordestino e/ou a cultura sertaneja com 0 pop mundializado, buscando uma forma de manifestagio estética prépria, tanto na perfor- mance, quanto no videoclipe, na moda, na fotografia e no cinema." No plano sonoro, a interaccao € vivida e intensa, sobretudo quando considera- mos a profundidade hist6rica e a presenga quotidiana simultanea, em disputa ou em convivio harmonioso, das tradicdes pernambucanas/nordestinas ¢ da miisica pop mundializada (do rock em suas mais variadas vertentes, da miisica popular negra, especialmente do funk e do rap), ambas traduzindo, cada qual a seu modo, as condigdes de vida da juventude nas periferias do capitalismo, No entanto, ao combinar essas duas vertentes em criagdes hibridas, o manguebeat produziu formas musicais capazes de seduzir um piiblico mais amplo do que aquele constituido pelos defensores ¢ “deten- tores” da cultura tradicional, contribuindo para a maior aceitagio das sonoridades locais/regionais — antes, desvalorizadas e residuais" — a0 com- biné-las com sonoridades pertencentes a cultura jovem mundializada, ¥ © baile perfumado, Amarelo manga, O rap do pequeno principe contra as almas sebosas ¢, mais recentemente, Arido movie e Baixio das bestas s8o produgdes cinematograficas sintonizadas com essa busca. Para os directores de O baile perfumado, Litio Ferreira ¢ Paulo Caldas, “a mistura inquieta de estilos,linguagens ¢ ritmos € 0 paralelo comum que existe entre a misica (reangue bit) © 0 cinema (énido movte) que se faz no Recife” (Encarte do CD da Trilha Sonora do filme O baile perfumado, Natasha Records, 1997) Usiliza-se, aqui, a nogao de residual no mesmo sentido em que a define Raymond Williams (1979: 125): “Por ‘residual’ quero dizer alguma coisa diferente do ‘arcaico’ ...J chamaria de ‘arcaico’ aquilo que é totalmente reconhecido como um elemento do passado, a ser observado, examinado, ou mesmo, ocasionalmente, a ser ‘revivido' de maneira consciente, de uma forma deliberadamente especializante.[..] O residual, por definicio, foi efetivamente formado no passado, mas ainda esta ativo no processo cultural ...]. Assim, certas experiéncias, significados e valores que no se podem. 92 | Luciana F. M. Mendonga Pode-se dizer que, ao utilizar as paisagens sonoras mundializadas do pop/rock e da misica negra norte-americana sem, no entanto, se fechar em torno de um projecto estético ortodoxo, 0 mangue tornou possivel a agluti- nagao de bandas com varias tendéncias. Além disso, tornou as sonoridades tradicionais mais facilmente audiveis para um conjunto alargado de segmen- tos sociais, nomeadamente: a) cidadaos do Recife, sobretudo os jovens de estratos populares, que tém uma meméria da miisica local; b) parcelas do publico urbano em busca de novidades, nacionalmente, dentro do campo da MPB e, internacionalmente, no campo da world music; c) miisicos em busca de renovacao de seus processos criativos e/ou de expressao de suas identidades especificas (geracionais, étnicas, nacionais, regionais, locais etc.) Além da valorizagao geral da produgao cultural local, ao projectar toda a cena recifense no ambito nacional ¢ em certos circuitos da cultura mun- dializada, o manguebeat fez com que os artistas e outros segmentos sociais do Recife, em especial os jovens de todas as classes sociais, voltassem mais o olhar para as tradigdes regionais, proceso que est em sintonia com a onda de revalotizagao das culturas populares tradicionais, como se discutir abaixo. Este facto contribuiu para reforcar a auto-estima e as identidades sociais vinculadas a essas “herangas” culturais antes residuais. A propria diversidade dessa “heranga” passou a estar em foco e a set valorizada como equivalente & riqueza cultural. Gilmar Bolla 8, percussionista da Nagao Zumbi, afirmou que, embora 6s ritmos locais estejam na meméria de muitos miisicos, para um ptiblico mais amplo “maracatu, coco, citanda,"* hoje é que é conhecido. Hé dez anos ninguém falava””. Esses ritmos s6 tinham uma presenca mais significativa no expressar, ou verificar substancialmente, em termos da cultura dominante, ainda sio vividos praticados a base do residuo [...] de uma instituigio ou formagao social e cultural anterior.” Pelo Tugar que tém vindo a ocupar na vida quotidiana, muitas formas de expressio da cultura popular pernambucana podem ser apropriadamente qualificadas como tendo sido, em determinados momentos, residuais: vividas no cotidiano por cettos segmentos sociais, mas invisibilizadas no quadro da cultura dominante ™ Os maracatus estao entre as mais importantes manifestacdes culturais de Pernambuco. Hé dois tipos de maracatu. O primeito, o maracatu de baque virado ou nacao, € aparentemente, mais aft canizado e tem suas taizes na congada, que representa a coroagao do rei e da rainha Congos, tra- digo africana reinterpretada no Brasil. Documentos histéricos atestam a existéncia do maracatu nacéo desde o inicio do século XIX. O segundo, 0 maracatu rural, de bague solto ou de orquestra vem da Zona da Mata pernambucana e exibe influéncias indigenas, tanto na miisica como nas personagens que se apresentam. O coco parece ter tido origem no Estado de Alagoas, mas se espalhou sobretudo pelas regides Norte Nordeste, incluindo-se na tradicio de cangdes de traba- Iho. Ha vitios tipos de coco, classificados de acordo com os instrumentos utilizados, a regio de origem, 0 tipo de verso, etc. A ciranda & uma danca de roda de origem portuguesa, com trovas, cantadas, por vezes acompanhadas por instrumentos de percussio e/ou de cordas ¢ sopro. Uma referéncia classica sobre os diversos titmos ¢ folguedos brasileiros ¢ Cascudo (1988) » Depoimento concedido a esta autora em Fevereiro de 2001 Culturas populares e identificagses emergentes | 93 Carnaval. A jornalista Michele D’Assumpcio, pertencente a mesma geracio que a maior parte dos mtisicos da cena, também expressou a importancia da meméria sobre as tradigdes locais: “Todo o mundo aqui em Pernam- buco quando crianga ouviu maracatu, frevo, caboclinhos.” Essa galera assimilou isso ai, Essa miisica esta na minha memoria”?! E, vale reiterar, nessa actualizagao da memoria, os criadores e mantenedores das tradigdes foram revalotizados, por terem deixado de set vistos como produtotes de uma cultura “subalterna”, e ganharam maior espaco de circulagao publica. Resumindo os trés pontos levantados acerca do mangue como objecto “bom para pensar”, destacam-se: 1) 0 caracter “espontaneo” de mobilizagao e de reaccio a um contexto de estagnacio social, cultural ¢ econémica; 2) o cardcter transfronteitigo do ponto de vista sécio-geografico no espaco urbano do Recife; 3) caracter hibrido do ponto de vista estético (cruzando fronteiras entre o local ¢ o global, a cultura popular e a industria cultural). Essas caracteristicas foram levadas em conta na construgio do objecto de investiga¢ao, possibilitando empreender reflexdes sobre as identidades, hegemonias ¢ contra-hegemonias, que formaram, pot assim dizer, o nticleo duro das questées abordadas ao longo do trabalho de pesquisa. Pela atencio as dinamicas sociais que podem levar a novas configura- ges sdcio-culturais, foi fundamental ter em conta a reaccao espontanea, as relagdes entre sujeitos de classes sociais e locais de moradia diversos, com gostos ¢ estilos de vida variados, promovendo relagées sociais e estéticas que transcendem fronteiras concretas e simbélicas, animando espagos centrais (entao esvaziados) da cidade, num contexto também de transformagées macroestruturais (no capitalismo global, na esfera do Estado, na indiistria cultural). Mas 0 que me interessava primordialmente era 0 novo equilibrio produzido por esses processos criativos, que sempre so reprodugéo.” Visto que a reprodugao nunca é apenas uma total reposicao do mesmo, eles sao portadores de mudangas, mesmo que pequenas, no equilfbrio de poder no campo cultural. Apesar da forga do policiamento, da regulagio e da cooptacao em relagao a transgressao na cultura popular, interesso-me, como Stuart Hall (2003a: 339), pelas “estratégias culturais capazes de fazer a diferenga”. Nestas, o papel da corporalidade e das sonoridades é funda- mental, inclusive por permitir a transmissao de saberes ¢ experiéncias, cuja “tradugao” em palavras é dificil ou resulta numa sintese de outra ordem. ® 0 frevo € um tipo de marcha sincopada, que tem uma presenga muito importante no Carnaval pemambucano. Caboclinhos & um folguedo reminiscente das dancas apresentadas pelas populages, indigenas durante as procissdes ou paradas militares no Brasil colonial 2 Entrevista concedida a esta autora em Fevereiro de 1999. % Ver, por exemplo, Giddens (1984) 94 | Luciana F. M, Mendonca Paisagens sonoras A utilizagao da metafora da paisagem para descrever os contextos culturais permite analisar continuidades e descontinuidades e pensar o intercruza- mento de elementos diversos para formar conjuntos de referéncias, simbo- los e significados caractetisticos de meios culturais especificos. Uma das formulagées dessa metéfora — soundscape (paisagem sonora) — foi elaborada nos anos 1970 pelo musicélogo canadense Murray Schafer (2001) e aplica- -se mais especificamente aos conjuntos sonoros que marcam os diferentes ambientes humanos. Mais recentemente, Appadurai (2004) formulou, a partir da palavra landscape (paisagem) a definigao dos principais cenatios nos quais se desenrolam os processos de mundializacio, utilizando a nogio de mediascape (paisagem mediatica) para descrever todo 0 universo simbé- ico ctiado pelos media, que se apresenta como um dos meios em que o ima- ginario social se move. Embora a formulagao de Schafer inclua as sonoridades produzidas natural ou culturalmente e, assim, nao se restrinja a misica, permite pen- sar na especificidade (ou nao) das sonoridades que contribuem para marcar fronteiras entre identidades e espagos culturais distintos. Tem relevancia para se compreender a pertinéncia das definigdes de estilos musicais locais ou regionais, bem como as caracteristicas préprias do ambiente sonoro, de um ponto de vista mais amplo, contrariando a “sur: dez” muitas vezes presente (pela auséncia da escuta como método de investigagio) nas ciéncias sociais, fundamentalmente pelo primado de epistemologias racionalistas, inclusive nos estudos sobre as cidades (Fortuna, 1999 ¢ 2001). Num sentido oposto, a nogio de mediascape permite pensar as realidades ¢ contetidos transnacionais, presentes nas relagées sociais em ampla escala, constituindo-se num instrumento para analisar os contetidos divulgados mundialmente pela industria cultural e que formam o que Renato Ortiz denominou de cultura ou meméria internacional-popular® As sonoridades constituem-se também como marcos quotidianos da cultura internacional- ® “Anogio de cultura/meméria internacional popular remete para um conjunto de processos ass0 -encias culturais mundializadas e desenraizadas em relagio aos con- textos nacionais, A desterritorializacao da cultura estéligada & propria deslocalizagao da produgao ro contexto da acumulacao flexivel e conjuga-se com a crescente importincia do consumo na recriagio de lagos sociais esgarcados pela modemnidade. Ortiz refere-se a essa meméria como uma memiéria cibernética, portadora dos tragos da modernidade-mundo, que permite o reconhecimento ow a sensacio de familiatidade de objectos préximos, mesmo em um ambiente estranho. Os con- teridos dessa memaria sio as estrelas de cinema, os carros, as marcas de cigarro, o rack, “persona: gens, imagens, situagdes veiculadas pela publicidade, histérias em quadrinhos, televisio, cinema” (Ortiz, 1994: 125-126) Culturas populares e identificagdes emergentes | 95 -popular, como a “[...] marca sonora do levantamento automatico de dinheiro ou o som universal do pagamento com cartao de crédito, quer estejamos em Coimbra ou em $40 Paulo, em Maputo ou Nova Iorque” (Fortuna, 1999: 116). Dadas as caracteristicas das culturas urbanas nas metrépoles brasileiras (mas nao exclusivamente destas), pode-se dizer que suas paisagens sonoras se encontram matcadas pela cultura internacional-popular, contando, no campo musical, com uma presenga intensa dos géneros mundializados, destacando-se 0 rock, o pop, o funk e outros géneros dai detivados como 0 hip-hop, o ska, o dub. Em sintese, destaca-se um conjunto de géneros musi- cais que valorizam o ritmo, o pulso, a batida e que apresentam suficiente plasticidade para setem adaptados aos contextos locais, seja nas suas verses “canénicas” ou por meio da produgio de novas formas hibridas. Muitos estudos ja tém destacado a plasticidade e as possibilidades de apropriagao do pop/rock em contextos locais, género que veio a se constituir num pano de fundo ou numa linguagem que, por estar no ouvido de todos, permite a comunicagio translocal. Como sintetiza José Miguel Wisnik (1989: 98), o estado da miisica actual é de simultaneidade: “O rock é a superficie de um tempo que se tornou polirritmico. Progresso, regressio, retorno, migra- 40, liquidagao, varios mitos do tempo dancam simultaneamente no ima- gindrio e no gestuétio contemporaneos, numa sobreposi¢io acelerada de fases e defasagens” A dita “universalidade” do rack (e dos géneros seus tributérios) esta ligada ao facto de ele fazer parte da cultura internacional-popular e veicular, junto com a misica, um conjunto de préticas, um repertério de sensibili- dades, de expressdes corporais e de emogGes institucionalizadas. Estes tracos se tornaram parte de um tipo de capital cultural e um habitus domi- nante no campo da miisica popular. Pode-se dizer que “a predominancia global da estética do rock para fazer musica local € uma manifestagao pri- mordial da légica cultural da globalizagao” (Regev, 1997: 137). Assim, faz parte da prépria dinamica do rack a dialéctica entre homogeneizacao/padro- nizagdo ¢ heterogeneizacao/diversificagao, que se da, inclusive, pelo pro- cesso de incorporagao de sonoridades locais ou de “etnicizagao” da misica, como dizem alguns. Se, de alguma maneira, é possivel afirmar que o movimento mangue lidou com as tradig6es locais de forma positiva, isto ocorre porque estas foram tratadas como cultura viva e presente no quotidiano, e nao como folclore, tradigao passada e fossilizada. As ideias de articular um “nicleo de pesquisa e produgao de ideias pop”, conectar “as boas vibragées dos mangues com a rede mundial de circulagao de conceitos pop”, injectar energia nas 96 | Luciana F. M. Mendonga “veias obstruidas” da cidade** precisavam apenas de um pequeno impulso. O manguebeat, com seu aspecto colectivista ¢ com a valorizagao do “faga vocé mesmo”, contribuiu para fazer emergit a produgao cultural que ja se vinha formando na década anterior. Aos jovens do Recife, faltavam apenas os meios para ganhar visibilidade publica, que foram criados pela mobili- zacao de significados profundamente enraizados no imaginério social da cidade. Assim, a relagao que se estabeleceu entre as formas estéticas tradi- cionais e contemporaneas levou a uma maior proximidade entre geragoes, estilos culturais tidos como antagénicos e movimentos socioculturais de diversos matizes, dinamizando todo um sector de produgao e difusao arti tica. Como disse Chico Science, “modernizar 0 passado é uma evolucio musical” > Nas palavras do pesquisador Philip Galinsky (2002: 89): A fusio, pelo mangue, de tragos, instrumentos ¢ mesmo de costumes das tradigdes populares regionais com o pop contemporaneo estrangeiro recaracteriz essas tradigdes populares como modernas ~ ¢ o faz criticamente, sem deixé-las per derem suas identidades. E, a0 mesmo tempo, ao utilizar elementos musicais moder- nos, estrangeitos, no pop brasileiro, os grupos do mangue também reafirmam esses elementos como sendo até mais tradicionais - ou seja, como parte da tradigio brasi- leira. Este processo de interpenctracao, em que a distingéo entre categorias estabe- lecidas é questionada, é um dos principais aspectos do mangue e da cena de Recife. O mangue poderia ser pensado como um retorno paradoxal ao tradicional através da modemizasio . sem diivida, Um aspecto a chamar a atengao nestas consideracées € o que Galinsky chama de incorporagao critica das tradig&es, qualificagao que se justifica pelo facto das diversas bandas ligadas a0 movimento mangue integrarem os elementos tradicionais contextualizando-os no tempo e no espaco (de “Pernambuco falando para o mundo” 2* no alvorecer do 3° milénio). Assim, as formas musicais resultantes da mistura escapam ao pastiche e & parédia, recursos habitualmente utilizados nas manifestacdes da producao cultural dita pés-moderna (cf. Jameson, 1996). Contudo, talvez a definicao do retomo ao tradicional através da moder- nizagio como “paradoxal” seja tributéria de uma concepsio do popular como algo “original” e pouco aberto a transformacao e ao diélogo inter- Fragmentos do manifesto Carangusjos com eérebro, reproduzido no encarte do CD Da lama ® Verso inicial de “Monélogo ao pé do ouvido”, cancao de abertura do CD Da lama ao caos. % Este era o slogan da mais moderna estacao de radio brasileira época de sua inauguragio (1948), a Radio Jornal do Commetcio, situada no Recife. Culturas populares e identficagBes emergentes | 97 cultural, ainda mais se considerarmos uma certa ambiguidade na carac- terizagao do que é€ tradicional. Ao afirmar que a incorporagao de ele- mentos musicais estrangeiros no pop brasileiro é uma “moderna tradi¢a0” — e até se poderia considerar assim no caso de algumas expressées hibri- das, como no caso do Tropicalismo —, utiliza-se um procedimento de inversao do que é normalmente considerado “tradicional” ou “moderno”. A afirmagao é inexacta e nao encontra ressonancia entre os especialistas no campo” da musica popular brasileira. A identificagao entre o estran- geito e o “moderno” pediria uma qualificagéo mais precisa, pois nem todas as influéncias ou géneros estrangeiros (como o bolero e a musica ligeira italiana, para citar apenas dois exemplos) sio considerados pelos criticos e historiadores da MPB como modernizantes. Também em leitu- ras que enfatizam o vinculo entre produgao musical ¢ classe social (na concepgao marxista), a incorporagao de influéncias estrangeiras, quando nio cortespondem as condigdes materiais de existéncia de uma determi- nada classe, pode ser vista como heteronomia. A “modernizagao” — se é que 0 termo se aplica no caso — da “tradigio” promovida pelo mangue nao é tao paradoxal assim, por dois motivos: 1) pelas transformagées recentes nas paisagens sonoras globais; 2) pelas caracteristicas estéticas da misica tradicional nordestina, que se harmonizam facilmente com essas transformagoes. E importante lembrar que os dois processos se desenvolvem simulta- neamente. Quanto ao primeiro ponto, por um lado, h4 uma sobrecarga do sentido de audi¢ao, sobretudo no meio urbano, pela constante presenga da miisica de todos os géneros (junto com os mais diversos ruidos) em todos 0s espacos e com a constante repetigao de cangées de sucesso pelos mais diversos meios. Por outro lado, a prépria musica ocidental tonal (de con- certo) passa, ha varias décadas, por um proceso de esgotamento criativo, dando lugar a uma mtisica pés-tonal; soma-se a isto a difusio do pop/rock, que acaba por trazer o retorno da miisica modal (pré-tonal), caractetizada pelo pulso (Wisnik, 1989). Quanto as caracteristicas da mtisica nordestina, alguns investigadotes j4 apontaram para a sua grande plasticidade, forca e possibilidade de didlogo com as formas contemporaneas (modais), sobre- tudo pelo uso da terga neutra* ® Utiliza-se a nogao de campo aqui no sentido definido por Bourdieu (1983), como espaco de disputa entre agentes e/ou instituigdes pelo monopélio da autoridade, considerando-se um capital {no caso, cultural) especitico % Asescalas utilizadas pela mtisica tonal baseiam-se no sistema temperado, que, ao adoptar “uma afinacao uniforme e homogénea’, contraria “as propriedades acisticas dos intervalos ‘naturais””, igualando os intervalos entre os sons. Assim, 0 espago de uma oitava (de dé a dé, por exemplo), € dividido em 12 notas com iguais distancias entre elas, 12 semitons, as sete teclas brancas ¢ as 98 | Luciana F. M. Mendonga Dafa importancia de escutarmos as paisagens sonoras locais, que, obvia- mente, ndo sao constitufdas apenas pelos contetidos sonoros mundializados. No caso do Recife e do seu contexto regional, a pesquisa etnomusicolégica identifica determinadas caracteristicas que marcam o conjunto de suas sonoridades. Tiago de Oliveira Pinto estudou, entre muitas outras manifes- tagdes musicais, as misicas de pifaros e da pequena gaita dos grupos de caboclinhos de Pernambuco e da Paraiba. Em relato posterior de uma pesquisa realizada nos anos 1980, afirma que verificou: a constancia de um elemento de afinasao destes instrumentos que tém na tersa neutra um recurso bésico, que transcende o puramente estilistico. A remogio das tercas maior ou menor das melodias, ¢ a inserso, ao invés delas, da terga neutra, toma do repertério nordestino das flautas o jugo dos modos maior ou menor, sem os quais, lembre-se, nao existiria a misica do ocidente, baseada na tonalidade harmonia funcional. (Pinto, 2001: 242) E importante lembrar, como faz o investigador, que essa produgéo musi- cal tal como grande parte da misica tradicional nao ocidental, de caracter modal - apresenta aspectos sonoros que vém sendo retomados com o esgo- tamento da miisica tonal. Esta perspectiva permite escapar das concepgoes impregnadas de ecos evolucionistas, que hierarquizam as sonoridades com base nas concepgdes musicais e nogdes de maior ou menor complexidade de acordo com a quantidade de informasio, fixadas pela estética cléssica ocidental. Referindo-se & paradoxal actualidade da miisica modal de varias tradigdes (afticanas, orientais e mesmo europeias), José Miguel Wisnik afirma que: Encontram-se nelas realizagdes vocais, ritmicas, polifénicas, timbristicas similares Aquelas que a linguagem da misica contemporsinea buscou realizar, nem sempre com amesma forga [...]. O impasse da idéia de uma progressdo permanente da linguagem musical como organizagio das alturas melédico-harménicas encurva subitamente a histéria musical, fazendo com que a miisica pés-tonal se encontte [...] em estado de deslocada e estimulante sincronia com as mtisicas pré-tonais. Esse ponto de encon- tro se dé numa concepgao de tempo nao-linear que retorna ao principio do pulso. (Wisnik, 1989: 96-97) cinco pretas de um piano (Wisnik, 1989: 130-151), No sistema tonal, € fundamental a diferencia- 40 entre as escalas/modos menores ¢ maiores, distintas sobretudo pela presenga da terga menor ou maior, sendo a primeira definida por um intervalo de trés semitons ¢ a segunda, de quatro, A tera neutra é um intervalo intermedistio entre a terga maiot ¢ a menor ¢, logo, nao pertence ao sistema temperado, Culturas populares e identificacdes emergentes | 99 Estas percepges acerca dos (des)caminhos da miisica ocidental e da forma como as sonoridades nao ocidentais se tornaram nossas contempordineas per- mitem-nos escutar, com maior atencao, as caracteristicas sonoras especificas que, do ponto de vista da audigao, possibilitam a comunicagao com piiblicos distintos e o deslocamento das fronteiras entre 0 popular, o erudito e 0 “de massa”, Mais uma vez, é importante ressaltar a singularidade das realizagdes musicais nordestinas, que utilizam intervalos nao temperados, de modo a nao demarcar uma tonalidade maior ou menor: Esta caracteristica &, alias, assunto para festivais de msica de vanguarda, atonal e de pouca aceitagio do pitblico de massa. No entanto, as bandas de pifanos do nordeste, os aboios, as trovas dos repentistas, as toadas de caboclinhos, os forrés pé de serra, todo este vasto repert6- tio é caracterizado pela terca neutra. A conclusio que se tira deste fenémeno sugete uma explicagio possivel para a forsa das manifestagies culturais do nordeste, mesmo quando fora de seu contexto. (Pinto, 2001: 242) Esse elemento marcante da paisagem sonora nordestina~ “a terga neutra como aspecto peculiar de afinagéo” ~ esta profundamente relacionado com avisio de mundo da populagéo que a produz ¢ inclui certos procedimentos como a utilizacao conjunta de instrumentos com intervalos diaténicos temperados, como acordeao, e instrumentos ¢ estilos vocais caracterizados pela terca neutra. Como conclui Pinto: Esta simultaneidade, que, aparentemente, nao cria atritos intransponiveis, contradi: zendo assim tudo 0 que pregam as teorias musicais do ocidente, denota a abertura com que estruturas tradicionais da sociedade no Nordeste abarcam elementos da globalizagio, sem por isso destruir ou renegar os conceitos préprios mais genuinos. (Pinto, 2001: 243) A partir dessas afirmagées, pode-se salientar que é infundado o temor, que se manifestou também no contexto do Recife, da descaracterizagao da cultura popular pela influéncia do e/ou mistura com o pop internacional. Digo temor infundado tanto por considerar as caracteristicas especificas da musica do Nordeste brasileiro descritas acima, como pot conceber a cultura (ea miisica) popular como um terreno em constante transformagao (e, portanto, nao conge- lado ou ctistalizado em formas cuja “puteza” deva set mantida a todo 0 custo), onde se realizam disputas sobre a hegemonia cultural. Como define Stuart Hall: A cultura popular nao é, num sentido ‘puro’, nem as tradigdes populares de resis- tGncia a esses processos [de ‘moralizacao’ das classes trabalhadoras, de ‘desmoralizagio’ 100 | Luciana F. M. Mendonca dos pobres ¢ de ‘reeducacao’ do povo], nem as formas que as sobrepdem. E 0 terreno sobre o qual as transformagies sao operadas. (Hall, 2003b: 248-249). Pretende-se concluir estas reflexdes discutindo um pouco a forma como esse terreno de disputa sobre o popular vai sendo atravessado pot diferen- tes estratégias de (re)construgao identitaria, que significam também um reposicionamento das culturas populares no contexto social mais amplo. Avertigem e a busca de um eixo Nao retomarei aqui a vasta discussao que se tem feito nas ciéncias huma- nas sobre a crise das identidades e a mistura de estilos no contexto do pés-moderno global (cf. Connor, 1992; Featherstone, 1995; Hall, 1999; Huyssen, 1991). Relembrarei, apenas, que a presenga avassaladora dos con- tetidos mundializados nos variados contextos locais ou regionais tem levado também a formas de construgao de identidades que vio buscar os seus contetidos em circuitos externos ao mercado cultural global, ou seja, fora do “supermercado de estilos” que se encontra aberto para aqueles que podem escolher. Entendo esse processo, tal como alguns autores, como sendo parte das tensdes entre o local ¢ o global, entre homogeneizacio e heterogeneizagao, inerentes as novas articulagées entre, por um lado, signi- ficados e espacos definidos e, por outro, misturas e (des)localizagdes na cultura contempordnea, mediadas pelas novas tecnologias da informagao. Convém lembrar que essas tensdes ocorrem em contextos sociais profun damente desiguais, o que, no caso dos processos de construgao identitaria ede estilos de vida, impde limites estruturais bastante estreitos para a maio- tia dos individuos. Diante da oferta vertiginosa de simbolos ¢ bens culturais, verifica-se, simultaneamente a adopgio de estilos de vida mundializados e destertito- rializados, a busca de expressdes culturais que religam certos segmentos sociais as tradig6es locais ou, noutros casos, as tradicdes tomadas de emprés- timo a certas “comunidades”, Para reflectirmos sobre os variados sentidos que as relagdes com a cultura popular adquirem para os diversos segmentos sociais, é interessante retomar um dos depoimentos de Chico Science, acerca da sua relagéo com a cultura local, envolvendo a sua prépria historia de vida e vivéncia das manifestacdes populares, que encontra paralelo nas histérias de vida de outros misicos da cena mangue: Quando cu era bem mais novo, lé pelos doze anos, dangava ciranda... Meus pais tinham uma ciranda... cu jé dancei ciranda na praia, no bairro ¢ vi os maracatus também, Assisti na minha infancia aos maracatus fazendo o acorda-povo, que acon- Culturas populares e identificagées emergentes | 101 tece na época do Sao Joao, sempre li pela meia-noite... entao eu vi todas essas coisas que nos ensinaram como folclore, como uma manifestacao jé passada, mas que nao é bem dessa maneita que voed tem que ver. Existem ritmos ali que pode aprender a tocar porque é da sua terra, é do Brasil, é uma coisa que vocé entende ~ & a tua lingua, (apud Teles, 2000: 277) Varios elementos chamam a atengao no depoimento, entre os quais se destacam dois: a vivéncia e a concepgao de cultura popular. Em primeiro lugar, a meméria de sua vivéncia da ciranda e do maracatu mostra que a cultura popular era para ele, assim como € pata outros da mesma geracao, algo palpavel e incorporado de modo involuntatio por meio da experiéncia quotidiana: “éa tua lingua”. Em segundo lugar, salta aos olhos sua concep- cao da cultura popular como manifestacao viva, que contrasta com outras concepgoes que a definiriam como “folclore” ou “manifestagao passada”. E curioso notar, entretanto, que essa forma de relagao com o popular, considerado como manifestacao dinamica e presente, vem aparecendo como recurso identitdrio entre certos segmentos das camadas jovens urbanas, sobretudo os de classe média e mais intelectualizados, pessoas pata as quais as tradigdes populares voluntariamente procuradas so, na maioria das vezes, totalmente alheias 4 sua experiéncia social imediata. Referindo-se ao contexto do Rio de Janeiro, Elizabeth Travassos (2004: 229) salienta que: “Hoje, quando a recriagao urbana de ‘dangas folcléricas’ entusiasma estu- dantes, artistas jovens, militantes de movimentos sociais ¢ até os media, um cetto tipo de umbigada - sensual, delicada, livre de censura moral - reapa- rece nas capitais”” ‘A autora interpreta esse “reaparecimento” da umbigada — associada & miisica e danga populares de origem africana, perpetuadas em varias mani- festacdes da cultura popular brasileira — como parte de um conjunto de processos de construcao identitaria que, actualmente, vém langando mao de manifestagdes antes residuais da cultura popular “como recursos simbé- Ticos na politica das culturas” (Travassos, 2004: 248). Varios ritmos e dangas tradicionais populares brasileiras tiveram um impulso tenovado, principal- mente a partir dos anos 1990, sob efeito de transformagées em dois ambitos: 1) na reorganizagao dos herdeiros dos saberes tradicionais, agora impulsio- nados também pelo sucesso comercial das produgées hibridas e das suas formas préprias de criagdo cultural; 2) na mercantilizago das culturas populares em associacao ao turismo, com a valorizagao do patriménio material ¢ imaterial (ganhando este tiltimo uma importancia anteriormente rara) como elemento de atracgao de turistas, inclusive no caso das cidades que, sem a valorizacao do patriménio imaterial, dificilmente seriam consi- 102 | Luciana F. M. Mendonea deradas sitios turfsticos. Estas foram duas inflexdes fundamentais para trazerem para o primeiro plano as culturas populares como elementos de identificagao de certas parcelas da juventude. Outras manifestagdes culturais com o mesmo caracter das dangas de umbigada (também mencionadas por Travassos) e utilizadas nos mesmos processos de identificagao social sao o samba de roda do Recéncavo Baiano, todo o calendario festivo incluindo bois e tambores no Maranhao, o coco no litoral nordestino, os batuques, jongos e tambores no Rio de Janeiro, em Sao Paulo e em Minas Gerais. Poder-se-iam citar muitas outras express6es ou festas populares que acontecem pelo Brasil afora, Maria Celeste Mira (2006) analisa manifestagdes do mesmo tipo, pro- curando situé-las no contexto das transformagdes econémicas e sociais mais amplas e no citcuito da cultura popular na cidade de Si0 Paulo, incluindo as organizagdes nao governamentais que fazem a mediacao entre as “comu- nidades” populares ¢ 0 publico urbano. Comentando alguns trabalhos académicos, que fazem etnografia e andlises de festas populares e que cons- tatam a adesio da juventude as manifestagées da cultura popular (incluindo tanto a participagao em grupos de danga e musica, como o consumo de artesanato e de outros produtos, como CDs e filmes), a autora aponta para dois motivos primordiais que estariam na base do impulso das classes médias ealtas urbanas, sobretudo as mais intelectualizadas, nesta direccao: 1) “L...]a busca da distingao de classe, nao apenas associada ao luxo, mas a participacao num grupo estético privilegiado, antenado, que ante- cipa a moda” (Mira, 2006: 368); ou seja, a adopgao de estilos de vida que permitem colocar em evidéncia uma certa “originalidade” ao distanciar-se do consumo massificado; 2) abusca de referenciais culturais mais “s6lidos” num contexto social de risco e inseguranca;” ou, dito de outro modo, a busca de “[...] con- vivéncias com as ‘comunidades’, com os seus lideres, senhores e senhoras de cabelos brancos que lhes transmitem ensinamentos que a vida modema nao oferece” (Mira, 2006: 372). Embora a maioria dos grupos de cultura popular ou das organizagdes no governamentais a eles associadas nao possam ser considerados “comuni- ® ‘Aideia de “comunidade” e o discurso comunitério ganharam forga nas itimas décadas justa- mente porque, segundo Bauman, se relacionam com a busca de seguranca frente A ‘vertigem” da modernidade tardia. Nas palavras de Bauman (2003: 128): “Hoje em dia, a comunidade é procurada como abrigo contra as sucessivas correntezas de turbuléncia global ~ correntezas originadas em lugates distantes que nenhuma localidade pode controlar por si s6 Culturas populares e identificagBes emergentes | 103 dades” no sentido sociolégico do termo — como, aliés, nos lembra a autora — © que importa é que representam um ideal de “comunidade” para os “sim- patizantes”, aqueles que se relacionam com estes meios ¢ com actividades por elas proporcionadas. Assim, o envolvimento activo com grupos de cultura popular pode ser bem compreendido no quadro das reacces as pressdes no sentido da homogeneizacao e da padronizacao, relacionadas as estratégias de distingao, bem como com as construges de novas formas de pertenga e solidariedade social. No entanto, é importante ir além dessas constatacdes e compreender que tipo de ligagao com as “comunidades” emerge nas relacdes acima descritas. Com este intuito, Mira retoma a reflexio de Bauman (2003) acerca de dois tipos de comunitarismo presentes no cenario actual: a “comunidade estética” ea “comunidade ética”, Os dois tipos de comunitarismo esto relacionados as realizagdes desiguais das promessas da modernidade quanto a objectiva- io dos direitos individuais. A “comunidade estética” procura conciliar os principios da liberdade com o poder de vinculagao dos individuos. Est fortemente ligada a constituicao dos estilos de vida e ao entretenimento ¢ baseada em idolos de massa ou em preocupacdes comuns, compartilhadas temporariamente. Por evitarem compromissos de longo prazo entre os individuos que delas participam, as “comunidades estéticas” esto em sintonia com 0 descaso em relacao a diferenga social, cultivado pela “nova elite global”, nos termos de Bauman Aadesio as “comunidades estéticas” é uma prerrogativa dos individuos de facto, que podem escolher 0 seu préprio destino, Bauman refere-se a0 cosmopolitismo da “elite global” como sendo selectivo ¢, basicamente, redutor das diferencas a0 minimo de impacto. O hibridismo nao faz parte dos seus procedimentos ou das suas vivéncias quotidianas; sua absor¢io das culturas populares ocorre pelo consumo de produtos que passaram por um “refinamento”, que, por sua vez, é fruto da intervengao de profissionais (designers, produtores musicais, etc.) encarregados de “depurar” os con- tetidos mais abertamente expressivos das diferencas. Nestes casos, a relacio que se cria é, fundamentalmente, baseada na “solidariedade de mercado”. Como pergunta Mira, sera que os produtos derivados das culturas popula- res continuarao a ser vendidos depois de passar a moda do “popular”, ou, dito de outro modo, depois de passar a possibilidade de funcionarem como signos de distingao? Jéas “comunidades éticas” se baseiam em vinculos mais fortes. Implicam 0 estabelecimento de compromissos a longo prazo, direitos inalienaveis ¢ obrigacées inexoraveis, O seu lado positivo ¢ a garantia do amparo colec- tivo diante desse mundo de indiferenga e risco. A construgao deste tipo de 104 | Luciana F. M. Mendonga “comunidade” é a tinica opgao aberta aos individuos de jure, para os quais as promessas de liberdade da modernidade nunca se realizaram, tendo existéncia apenas no plano formal. No caso das organizagées nao gover- namentais dedicadas a divulgacao da cultura popular e da juventude a elas relacionadas, Mira vé a possibilidade de ctiagao de “comunidades éticas”, sobretudo pelo engajamento com os movimentos pela paz. Para além da ctiagao, paira a divida acetta da permanéncia temporal dessas “comuni- dades éticas” baseadas nas identificagdes emergentes com as culturas populares. Na investigacio sobre o contexto do Recife, foi possivel verificar a exis- téncia de outros tipos de construgio de “comunidades éticas” ligadas a cultura popular, que, no caso do manguebeat e das colectividades dinami zadas pelo movimento, envolviam directamente os mestres produtores da cultura popular em processos de reivindicagao dos direitos 4 igualdade (direito a educagao, acesso a cultura, melhoria das condigies de vida, ctia- go de emprego ou de cooperativas, criagao de bases materiais para a produgio cultural e para a perpetuacao das proprias “comunidades”). Essa construgao ocorreu também pela transformagao da cultura popular em produto (desejado), veiculado pela industria cultural. Mas nao s6: as soli- dariedades locais foram mobilizadas para a dinamizacio de projectos que no passaram exclusivamente pela transformacao da cultura em mercadoria, contribuindo para a utilizacao da cultura como instrumento de auto-expres- sho e reivindicagao de direitos, E 0 caso do projecto Alto Falante, mencio- nado paginas atrds, e de alguns outros projectos desenvolvidos na Regiao Metropolitana do Recife (cf. Mendonga, 2004), bem como em outras loca- lidades. Nesse contexto, afirmou-se a cultura popular como campo de luta, dentro do qual nao ha determinagées a priori quanto aos equilfbrios de poder e a projeccao puiblica de significados Concluséo Apontow-se, por meio dos exemplos ¢ da andlise, para o papel sui generis que as culturas populares vém adquirindo no contexto contemporaneo. Sobretudo no caso dos sons, este papel deve-se as proprias caracteristicas de certas expresses populares, quando compreendidas no conjunto da produgao musical ¢ das ressignificagdes dos usos da cultura nas tltimas décadas, como se viu no contexto da miisica do nordeste brasileiro em geral ¢, mais especificamente, de Pernambuco. Do ponto de vista da estética musical e dentro dos processos de reorga- nizacao do campo cultural, sonoridades marcadas pelo pulso fazem encon- trarem-se diferentes vertentes — 0s desenvolvimentos da miisica de concerto, Culturas populares e identficagées emergentes | 105 da cangio ligeira e das cangées tradicionais populares — num campo onde as fronteiras se desvanecem. A observacao das transformagées concretas permite dizer que alguns didlogos se estabelecem para além das fechadas instancias de consagracao e distingao, como definidas por Bourdieu’, em favor da busca de homologias estruturais estético-musicais mais profundas, o que resulta numa reorganizacao das hierarquias culturais. Convém lembrar que as trocas que transcendem fronteiras s6 podem ocorrer em um contexto mais geral de mudangas na esfera das politicas e da economia da cultura, que, entre outros redireccionamentos, passaram a apoiar as expressdes populares tradicionais principalmente como elemento de valorizagao dos lugares e de renovacao da produgao da indéistria cultural. No caso do manguebeat, possibilidades bastante vatiadas de hibridismo foram mobilizadas para a criagao de expresses musicais diversas, em que a conjungao entre o pop eo popular resultou num enriquecimento de ambos os campos. Isto ocorreu porque, por um lado, inovagées foram de facto produzidas com a criagao dessas formas hibridas. Entretanto, as ambigui- dades caracteristicas da relagao entre a industria fonografica e a produgio musical “alternativa” também se manifestaram em relagao ao manguebeat, pois essas formas foram posteriormente apropriadas e transformadas em formulas: 0 que soava novo quando a Nagao Zumbi, a Mundo Livre S/A outras bandas alcangaram projec¢o publica, acabou por se rotinizar por sua utilizagao ad nauseam por outras bandas e artistas. Por outro lado, a boa aceitacao por parte do piiblico dessas formas hibridas criou um ambiente de valorizagao e aceitagao das expresses populares enquanto tais. A gravacio de CDs de mestres populares pernambucanos, como Mestre Salustiano, D. Selma do Coco e Lia de Itamaraca, que passaram a ser vistos também como produtores de uma mercadoria com apelo comer cial, é um dos indicios desse facto. Do mesmo modo, a metéfora do mangue como sinénimo de diversidade cultural foi apropriada pelos drgaos oficiais de promogao do turismo, que passaram a dar visibilidade ampla oferta de manifestagdes tradicionais. Do ponto de vista da reorganizagao e ressignificagio das identidades, verifica-se a existéncia de uma pluralidade de processos associados for- magao de “comunidades estéticas” e de “comunidades éticas”, que, no segundo caso, tem também impacto sobre o plano da cidadania e da soli- % Featherstone (1995), entre outros autores, alerta para a necessidade de reformular algumas concepgées bourdianas & luz das transformagGes sociais mais recentes e da investigacio empitica seu respeito, apesar da importincia da elaboracao teérica em torno da nogao de campo para se iedade e, dentro do campo cultural, compreender a interacgio entre as cliversas instancias da s 106 | Luciana F. M. Mendonca dariedade social. A valotizagao das “comunidades” tradicionais por meio da projec¢ao da cultura que produzem vem reforgar, como ja se afirmou, o sentimento de auto-estima e os lagos internos dessas colectividades, além de propiciar a aproximagao de sujeitos sociais, como alguns segmentos da juventude universitatia e/ou de classe média e alta, que constroem vinculos de solidariedade em relagao a estes grupos. Esses vinculos, motivados num ptimeiro momento pelo desejo de fruigao e de engajamento com a produgo da cultura popular, produzem, por um lado, identificagSes alternativas aos estilos de vida baseados na “solidariedade de mercado” e, por outro, formas de solidariedade social em relagao aos grupos populares. No caso de Recife, foram ressignificadas nao sé as identidades colecti- vas dos grupos populares. As préprias imagens de alguns baitros (como se exemplificou no caso do Alto Zé do Pinho) e da cidade como um todo passaram por um profundo processo de transformagao, que seguiu pari passu a valotizacao da diversidade cultural local ¢ a animagio dos lugares, como 0 Baitro do Recife, centro histérico da cidade e lugar fundamental de referéncia de sua identidade urbana. Por oposigao a sua imagem tradicio- nal (bastante edulcorada), de acordo com a qual Recife é conhecida como a Veneza Brasileira, propagou-se a imagem da Manguetown (“cidade do mangue, incrustrada na lama dos manguezais, onde estao os homens-caran- guejo””), mais préxima da realidade contraditéria da capital pernambucana. Nao se pode prever se a moda do popular vai passat. Mas, por enquanto, vem gerando frutos positivos em termos de reorganizacio das hierarquias culturais, de reconhecimento dos saberes populares, da busca da efectivagao dos direitos de cidadania (mesmo que pontualmente) e da construgao de relagdes transversais entre sujeitos de diferentes classes sociais. Referéncias bibliograficas Appadurai, Arjun (2004), Dimensdes culturais da globalizacio, A modernidade sem peias Lisboa: Teorema Bauman, Zygmunt (2003), Comunidade: a busca por seguranga no mundo atual, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Bourdieu, Pierre (1983), Ligdes de Sociologia. Sao Paulo: Marco Zeto. Burke, Peter (2003), Hibridismo cultural, Sao Leopoldo: Ed, Unisinos. Canelini, Nestor Garcia (1997), Culturas bibridas. So Paulo: Edusp Cascudo, Luis da Camara (1988), Diciondrio do folclore brasileiro, Belo Horizonte: fio Paulo: Edusp. [6* ed.; 1954] Tratiaia; S » ‘Trecho da cangéo “Antene-se”, 9* faixa do CD Da lanza ao caos. 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