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Afro-anarquismo, malandragem e preguiça

Renato Noguera

Renato Noguera é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),


doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador
do Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Infâncias (Afrosin), escritor, ensaísta,
roteirista e dramaturgo. Iniciado nas artes griot pelo avô, criado no tradicional bairro de
Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro. Noguera é autor das aventuras da Turma Nana & Nilo.

O filósofo martinicano Franz Fanon insiste que nós não devemos procurar as
alternativas para as crises na cultura do colonizador, se quisermos sair de todo colapso
iminente, precisamos “Inventar, temos de descobrir. Se queremos corresponder à
expectativa de nossos povos, temos de procurar noutra parte, não na Europa” 1. Seguindo
a mesma linha, temos as declarações da pensadora Mãe Stella de Oxóssi que disse, a
respeito do mundo do candomblé, “Na nossa cultura, não se faz nada sem se tomar
conhecimento de que existem os ancestrais e os orixás mais velhos”2. E do pensador
Ailton Krenak que argumenta no livro O lugar onde a terra descansa que precisamos
pisar devagar na terra, toda pisada deve imitar um voo, ser leve e suave. A orientação da
ancestralidade é importante, porque possui olhares mais longos e sobrevoa nossos
passos, ancestrais e orixás funcionam como o Global Positioning System (GPS -
Sistema de Posicionamento Global). Isto é, um guia que nos ajuda a chegar ao nosso
destino. Vale dizer que o destino não nasce pronto, ele é aberto e compartilhado. Por
isso, sem ajuda nos perdemos. Nós não enxergamos muito bem o caminho enquanto
caminhamos. O caminhar precisa ser devagar para enxergar o que pisamos. Afinal, em
gente não se pisa. Tal como diz a canção imortalizada na voz de Dona Ivone Lara: “Eu
vim de lá, eu vim de lá pequenininho/ Mas eu vim de lá pequenininho/ Alguém me
avisou/ Pra pisar nesse chão devagarinho.”3.
O projeto neoliberal é um caminhar furioso que segue fazendo a fagocitose de
tudo que está à frente, isto é, transformando tudo em mercadoria. É preciso entender que
a vida não pode ficar à venda. A vida é uma experiência extraordinária que não pode ser
submetida aos caprichos da precificação. Com isso, não estou a dizer que devemos
1
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 175.
2
Mãe Stella de Oxossi , Juvany Viana. Expressões de sabedoria: educação, vida e saberes. Nelson De
Luca Pretto e Luiz Felippe Perret Serpa , organizadores. - apresentação Antonio Risério. Salvador :
EDUFBA, 2002, p. 25-26.
3
LARA, D. Ivone. Alguém me avisou. Samba Rio de Janeiro: 1980.
buscar um retorno ao passado, tampouco faço coro com o filósofo Jean-Jacques
Rousseau que pregava a tese do “bom selvagem”. Não, não podemos romantizar e nem
ficar idealizando; não é hora de fantasias utópicas. Porém, não vamos inverter, aceitar
como certo que o futuro do mundo será de uma sociedade global distópica com
governos totalitários, Estado policial digital fiscalizando cada segundo das vidas
sequestradas pelo trabalho intermitente; não podemos vender barato os sonhos de
liberdade aceitando que o futuro vai aprofundar um novo modelo de escravização com
confinamentos sutis e autoexploração. É possível? Sim, ainda mais depois de uma crise
sanitária global que exige algumas mudanças e os interesses do Capital que não cessam
de crescer.
Não existem soluções mágicas, porque diante de grandes questões, as respostas
não podem ser truques de cartola. Mas, podem começar de elementos simples. Existem
tecnologias que podem nos ajudar a enfrentar a crise mundial, as palavras do xamã e
filósofo Yanomami Davi Kopenawa são bem interessantes. Kopenawa critica a visão de
mundo de gente branca. De acordo com o pensador Yanomami, os brancos estão
fazendo o céu desabar – uma expressão que significa colocar toda a vida do planeta em
risco. Não estamos aqui para fazer “futurologia”, o nosso interesse não é apostar que
tudo vai piorar ou que o porvir será melhor. Não se trata de otimismo ou pessimismo,
essas ideias não são boas categorias de análise. A opção entre o pessimismo e o
otimismo só engana. Nós pretendemos fazer um convite (ou uma convocação se
preferirem). O momento da vida no planeta passa por riscos. Albert Camus disse algo
curioso no livro A Peste, o mundo é feito de pragas e de suas vítimas. Nós sempre
devemos escolher um lado. Para Camus devemos recusar o lado das pragas.
É hora de uma convocação simples, um pacto pela vida. Se a escritora
Conceição Evaristo já disse que vamos nos recusar a morrer, mesmo que eles tenham
feito um acordo de nos matar – em referência à face letal do racismo. Logo, a bandeira
contra o racismo é um convênio para celebrar a vida. O que ensinou o grande mestre
Abdias do Nascimento com a tese do Quilombismo? Nós precisamos da arte de
compartilhar para viver. Toda celebração precisa reunir gente. Diante da pandemia e da
crise econômica, nós devemos levantar nossas vozes e nossos corpos, usando nossa
energia para colidir com o racismo. Pode parecer estranho, mas é o combate ao racismo
o início de uma mudança estrutural em todo o planeta. O antirracismo é o caminho mais
curto para a democracia.
Não se enganem. Falar de democracia não é investir na cultura ocidental,
existem outros sotaques do regime democrático. Aqui não fazemos referência ao regime
grego ou àquele sistema erguido pelo projeto burguês moderno. Nós preferimos falar da
“democracia” do antigo Reino do Kongo, aquela que o historiador angolano Patrício
Batsîkama discorre em seu livro Lûmbu, a Democracia no Antigo Kôngo. Uma
democracia em que as vozes conseguiam se misturar, fugindo ao dilema de ser
representativa ou direta. Talvez, por isso, não se trate de propor um “novo” mundo;
tampouco idealizar um “velho” mundo cheio de liberdade. Pode ser o caso de
transformar as cidades em aldeias, de fazer os Estados nacionais se transformarem em
quilombos. Pode ser momento de experimentar as tecnologias como processos além de
usá-las como ferramentas; pode ser momento de submeter os interesses do capital e do
trabalho à vida. A vida em primeiro lugar. Não é somente a vida branca de alguns, mas
todas as vidas humanas. Não se trata exatamente de uma revolução socialista, ainda que
Karl Marx seja indispensável para entender os processos que estamos vivendo. Nós
estamos falando de afro-anarquismo e de política de aldeia, uma combinação bem
específica. Uma ressalva, aqui “anarquismo” não é somente aquele de Mikhail Bakunin.
Nós reivindicamos a anarquia das encruzilhadas de Exu, o orixá que abre os caminhos.
Exu é patrono do afro-anarquismo, a capacidade de abrir caminhos onde tudo parecia
fechado e impossível. Em certa medida, a política de aldeia é um convite a viver como
se todos os vivos fossem nossos parentes. Por isso, o rio Doce é chamado por Ailton
Krenak e seu povo de avô. O afro-anarquismo em parceria com as políticas de aldeia
dos povos originários da América é uma gestão biofílica. O que nos torna amantes da
vida, colocando as pessoas acima do mercado. É um tipo de decreto que nos impede de
medir uma pessoa pelo lucro que ela poderia gerar se matando. Nesse regime, a paz
perpétua não é garantida por uma guerra sem fim que extermina gente, fauna, flora e
escraviza os derrotados e os vencedores com conforto e sem empatia. Nós estamos a
falar que o primeiro passo é submeter o Estado e reinventar o mercado, retirá-los do
trono divino e fazê-los servidores de gente. Não posso dizer que essa especulação é um
novo socialismo, nem um capitalismo reformado, porque quem inspira esse “Novo
mundo” é Mãe Stella de Oxóssi, Lélia González, Abdias do Nascimento, Sueli Carneiro,
Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Conceição Evaristo, Antônio Bispo dos Santos,
Cartola, Dona Ivone Lara, dentre tantas autorias com o mesmo espírito de conversar
com os rios.
As orientações para implementação desse “Novo-Velho Mundo” são bem
simples: misturar malandragem com preguiça. A colonização criminalizou as artes da
malandragem e da preguiça. Nós precisamos reabilitar essas tecnologias divinas, elas
receberam nomes estrangeiros que tentaram inverter seus sentidos. Em geral, as pessoas
criadas com comida industrializada não sabem quase nada a respeito delas. A
malandragem é a arte negra de crescer sem perder a infância, uma pessoa malandra é
alguém que brinca depois de crescida. Quem não sabe brincar precisa colonizar a vida.
A preguiça é uma tecnologia dos povos originários, uma pessoa preguiçosa é alguém
que sabe a extensão da sua força e o tamanho da sua passada, trabalhando justamente o
necessário para que o encanto da vida não se perca. Quem não vivencia o encanto da
vida precisa colonizá-la. O que fazer diante da mutação ecológica que instalou uma
pandemia, de todas as formas de opressão, da necropolítica sistêmica, da depredação
ambiental e todo leque de injustiças? Uma das maneiras mais dignas de enfrentamento
desse cenário está numa combinação entre malandragem e preguiça!

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