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Renato Noguera1
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Professor de Filosofia do Departamento de Educação e Sociedade, do Programa de Pós-Graduação em Filosofia
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e
Indígenas (LEAFRO) e do Laboratório Práxis Filosófica de Análise e Produção de Recursos Didáticos e
Paradidáticos para o Ensino de Filosofia da UFRRJ. Doutor, mestre e graduado em Filosofia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Investiga o Ensino de Filosofia e os conteúdos obrigatórios de História e Cultura
Afro-Brasileira, Africana e Indígena; Ética, Política e Subjetividade, tratando especificamente de racismo,
biopoder, devir negro e diferença, nas filosofias de Foucault e Deleuze; e Literatura, Musicalização e Relações
Étnico-raciais na Educação Infantil e do 1º ao 5º anos do Ensino Fundamental.
serve à humanidade, tal como um objeto numa gôndola de mercado à disposição do
consumidor.
O problema pode ser descrito de um modo bem simples, o ocidente, aqui entendido
como uma cosmovisão eurocristã – para parafrasear Nego Bispo – interpreta o mundo como
um território que deve atender aos desejos da “humanidade” (leia-se o desejo de alguns
humanos: gente branca dos países desenvolvidos e as elites dos países em desenvolvimento).
No entanto, diversos estudos apontam que nesse ritmo de consumo desenfreado deÁgua
potável para certas áreas de produção, falta de saneamento básico em algumas regiões do
Planeta, descarga de dejetos industriais não tratados nos leitos de Água, contaminação de
aquíferos por conta de produtos químicos agrícolas; além de mudanças climáticas que alteram
ciclos de chuva e seca, a tendência é que a Água se torne escassa mesmo para as elites dos
países desenvolvidos. Num possível mundo distópico futuro isso significa: uma guerra de
todos contra todos pela Água. A raiz está em tomarmos a Água como sujeito, isto é, como um
aspecto da Natureza que não pode ser usado como algo descartável e infinito, mas como uma
pessoa que precisa de cuidados. A Água não é um objeto, uma ferramenta, algo que humanos
podem manipular e usar de acordo com demandas de mercado.
De acordo com Orunmilá, podemos compreender a constituição do Mundo a partir de
quatro elementos Ar, Água, Terra e Fogo, a vida no Planeta depende do equilíbrio de todos.
Mas, o que significa exatamente afirmar que a Água é um sujeito? De modo bastante amplo, a
partir da filosofia e da psicanálise, o sujeito diz respeito ao desejo, interesses e lugar de fala.
Um sujeito tem interesses e desejos. As mais diversas formas de opressão retiram o direito à
condição de sujeito das pessoas, a escravização negra foi o modelo mais perverso e
estruturante do mundo moderno. Em Memórias da plantação: episódios de racismo
cotidiano, Grada Kilomba fala da máscara de silenciamento, um artefato escravocrata que
calava as pessoas escravizadas. A máscara representa o colonialismo, uma mordaça. Se
voltarmos ao filósofo Frantz Fanon, o colonialismo significa, justamente, um processo de
ocupação baseado na violência. A Natureza tem sido ocupada violentamente pela Indústria
neoliberal que prega o desenvolvimento como uma salvação, o seu funcionamento passa por
poluir rios e queimar florestas. A crise hídrica significa que a Água é um sujeito amordaçado.
Se tomarmos a análise de Nego Bispo, existem basicamente duas visões de mundo:
cosmofóbica e cosmofílica. Num contexto cosmofóbico: a colonização é uma regra, o que
permite que seres vivos e toda a Natureza sejam tratados como coisas. Nessa conjuntura, a
Água é entendida como um “recurso”. Já uma realidade cosmofílica e contracolonial permite
interpelar a Água como um sujeito.
A inscrição de a Água na categoria de sujeito implica em falarmos de uma
subjetividade de alguém com necessidades, desejos, uma agenda, um projeto de vida. É essa
noção que precisamos imprimir se quisermos um mundo em que não falte Água. A
humanidade precisa ouvir o que a Água tem a dizer. A filosofia de Orunmilá é decisiva para
compreendermos a Água como um sujeito, uma pessoa cuja personalidade emerge nas
palavras de Pai Paulo de Oxalá: “Grande Mãe, o Sangue da Terra, a Essência da Vida e o Axé
de Todos!”. Olokun, Iemanjá e Oxum são algumas expressões da Água.
A Água é um sujeito feminino com direitos. É preciso uma articulação política que
produza os Direitos da Água. Não se trata mais dos direitos que as pessoas têm à Água; mas,
de considerá-la agente político, o que implicará numa relação amistosa que pode impedir a
escassez, tornando a água potável abundante para todos os seres vivos. O caminho para que os
direitos da Água sejam respeitados começam pelo princípio de implodir a cosmofobia
colonial e permitir a emergência de uma realidade cosmofílica. Num mundo “regulado” por
leis, é o momento de um manifesto pelos direitos da Água. Se essa for uma prioridade da
humanidade, nunca faltará água. Mas, se insistirmos em pensar a Água como uma coisa, seja
com a expressão “recursos hídricos” ou “recursos naturais renováveis”, é bem provável que a
escassez de Água potável se torne crônica.
Referências.
BRASIL, Agência. Mais da metade da população mundial não tem acesso a saneamento
básico, diz ONU. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2017-
07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-nao-tem-acesso-saneamento-basico. Acesso em
03/09/2020
FANON, Frantz.Os Condenados da Terra. 2º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979. FANON, Frantz. 2010
OXALÁ, Pai Paulo. Água o Axé detodos. Jornal Extra. Disponível em:
https://extra.globo.com/noticias/religiao-e-fe/pai-paulo-de-oxala/agua-axe-de-todos-
4380368.html Acesso em 03/09/2020.
SANTOS, de Antônio Bispo dos (Nego Bispo). Saberes orgânicos e saberes sintéticos: um
olhar quilombola sobre o colonialismo. Nossa ciência ao alcance de todos. Revista virtual.
Disponível em: https://nossaciencia.com.br/colunas/saberes-organicos-e-saberes-sinteticos-
um-olhar-quilombola-sobre-a-colonialismo/. Acesso em 03/09/2020