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Infâncias plurais e produção cultural “para” crianças

Renato Noguera

O nascimento da minha primeira filha no ano de 2009 trouxe-me minha certidão


de pai. Além disso, comecei a refletir a respeito do que estaria à venda nas prateleiras
dos produtos culturais. Eu recordei que meus bonecos eram brancos, os desenhos
animados eram com personagens brancas, as canções infantis eram feitas por uma
indústria cultural branca. Eu não queria isso para minha filha; mas, não queria somente
que os produtos brancos fossem pintados. Eu comecei a intensificar meus
investimentos intelectuais e artístico-culturais para um debate que fazia uma indagação
simples: “quem é a criança representada pela cultura infantil?”. Essa pergunta trouxe
várias questões, dentre as quais: a infância universal faz sentido? Nós, adultos, podemos
fazer algo “para” as crianças e manter o respeito pela condição de sujeito delas? A
indústria cultural faz coisas “sobre” as crianças? Sem dúvida, diversos estudos já
apontavam desde meados do século XX que o retrato universal da Infância – enquanto
categoria social hegemônica – não passava de uma fotografia racista, sexista e
adultocêntrica das crianças. O que permitiu que o Estado brasileiro inventasse a
categoria “menor de idade” para não permitir que as crianças negras desfrutassem do
direito à infância.
De volta ao questionamento-chave, existe uma criança padrão? A criança-padrão
da indústria cultural, aquela criança “para” quem os roteiros são escritos, “sobre” quem
se faz a história e “de” quem se conta a aventura. O que eu desejo é debater, se podemos
fazer “com” as crianças. Ou seja, produzir cultura de uma maneira que as crianças sejam
realmente convidadas a “fazer junto”. Com isso, não estou dizendo exatamente que as
crianças devem passar a ter assento garantido nas linhas de produção da indústria
cultural, escrevendo roteiros, fazendo canções, criando jogos, organizando museus,
coordenando visitas técnicas e coisas do gênero. Eu aposto, trata-se de uma aposta, que
existem muitas maneiras de fazer junto com as crianças. Uma das mais interessantes
pode ser ouvindo o que elas têm a dizer, o que elas pensam e sentem a respeito do
mundo. Em paralelo, crianças criam produtos culturais, realizam exposições, enfim:
constroem experiências estéticas diversas.
Numa sociedade plural e democrática, nossa tarefa é ampliar os repertórios
artístico-culturais com as crianças. O que implica em infâncias plurais, isto é, não existe
mais espaço para uma ideia única, fechada e “universal” de infância e de ser criança.
Se, durante muito tempo, os estudos da infância e de crianças estavam assentados sobre
a escola, a família, os casos da justiça, enfim instituições em geral e gente adulta para
entender as crianças. A expressão “infâncias plurais” é um convite aos lugares de fala
das crianças. Não se trata de dar voz às crianças; mas, de escutá-las de todas as maneiras
possíveis. A produção cultural precisa escapar das fórmulas fáceis e dos modelos
hegemônicos. Ainda mais, com a mudança de conjuntura provocada por uma pandemia
global que produziu confinamento, mudança de ritmos entre a vida privada e pública,
fazendo da casa e da tela do computador (para alguns) no único lugar habitável do
mundo. O momento é oportuno para a produção cultural escutar as crianças. Aqui
escutar não é sinônimo de pesquisa de mercado, um tipo de ferramenta que ajuda a
manipular as crianças para monetizar e explorar economicamente os desejos fabricados.
O que imagino que podemos construir é um campo de diálogo autêntico, onde as
crianças sejam sujeitos. A produção cultural precisa ser feita com as crianças, com os
seus sonhos e os seus desejos. A produção cultural endereçada para crianças precisa
levar em conta os mundos possíveis, escapar ao desejo de fortalecer uma imagem única
da realidade. Por isso, nada melhor que chamar as crianças para invenção de novos
mundos. Um dos princípios da democracia deve ser achar caminhos para que as vozes
infantis circulem por toda sociedade.

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