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Carolina P.

Fedatto, Fabíola Farias e Juliana Daher


(Orgs.)

primeiras leituras

arte e cultura na
primeira infância
primeiras leituras
arte e cultura na primeira infância

Carolina P. Fedatto, Fabíola Farias e Juliana Daher (Orgs.)


O projeto PRIMEIRAS LEITURAS: OUVIR, CONTAR E BRINCAR COM HISTÓRIAS NA
PRIMEIRA INFÂNCIA foi realizado com os recursos da Lei Municipal de Incentivo à
Cultura de Belo Horizonte.

Coordenação geral
Juliana Daher

Coordenação editorial
Carolina P. Fedatto, Fabíola Farias e Juliana Daher

Revisão
Carolina P. Fedatto

Capa
Anna Cunha

Projeto gráfico
Samara Coutinho

Consultoria para acessibilidade


Cleide Fernandes e Thais Oliveira

Catalogação na Publicação (CIP)

P953 Primeiras leituras : arte e cultura na primeira infância /


Carolina P. Fedatto ; Fabíola Farias e Juliana Daher (Orgs). -
Belo Horizonte : Ed. das Organizadoras, 2022.
302 p. : il. p&b.

ISBN 978-65-00-53361-3

1. Leitura (Primeira infância) 2. Artes e crianças 3. Cultura –


Crianças I. Fedatto, Carolina P. II. Farias, Fabíola III. Daher,
Juliana

CDD: 370.111

Bibliotecária responsável: Cleide A. Fernandes CRB6/2334


Carolina P. Fedatto, Fabíola Farias e Juliana Daher (Orgs.)

primeiras leituras
arte e cultura na primeira infância

Belo Horizonte 2022


SUMÁRIO
De bons encontros, nasce um livro 7
Carolina P. Fedatto, Fabíola Farias e Juliana Daher

Leitura, arte e cultura na  primeira infância: distintas


vozes de uma aldeia inteira 9
Mônica Correia Baptista

Primeiras leituras: reflexões sobre o encontro com o


humano pela palavra 17
Juliana Daher

Chão das infâncias 33


Gabriela Romeu

Notas sobre a edição de livros impossíveis


51
Jéssica M. Andrade Tolentino

Por que o livro para bebês e crianças pequenas? 69


Carolina P. Fedatto

Bibliotecas para a infância: um projeto de fantasia


87
Fabíola Farias

O direito das pessoas com deficiência à leitura e aos


bens culturais 99
Carla Mauch

As crianças com deficiência visual e seu direito à leitura 113


Cleide Fernandes

Os quartos de crianças como – um dos – espaços de leitura


129
Cibele Carvalho

A caixa de bugigangas e outras histórias da arte na


primeira infância 147
Júlia Félix Azeredo
O universo sonoro musical da criança
161
Isaac Luís de Souza Santos

Da Menina no barco às Meninas no banho:


desaprendendo o teatro para ensinar o teatro 179
Adélia Carvalho

O que é criar um livro para bebês?


195
Rosinha

A edição de livros para bebês: coleção Literatura de Colo


205
Daniela Padilha

A escuta como base da mediação de leitura literária na


primeira infância 215
Pâmela Bastos Machado

Leitura universal, interpretações singulares: relato de


experiência de uma mãe com uma filha com deficiência 225
Mariana Rosa

Práticas antirracistas de leitura literária na Educação Infantil


231
Cristiane Tavares e Luciana Gomes

A tela como um holofote: reflexões sobre a leitura


literária com crianças na pandemia 253
Amanda Ribeiro Barbosa

Ler juntos: sobre histórias, casulos e metamorfoses


265
Roberta Colen

A parte da gente que serve de ponte


277
Mário Alves

Cuidar das crianças é cuidar de toda a sociedade


285
Entrevista com Macaé Evaristo

Sobre as autoras 297


De bons encontros,
nasce um livro

Carolina P. Fedatto,
Fabíola Farias e
Juliana Daher

Em meados de 2020, quando todo o mundo se dobrava à pandemia


do novo coronavírus, decidimos publicar um livro. Naquele
momento, tínhamos apenas o desejo de falar sobre arte e cultura na
primeira infância e algumas pessoas que nos vieram à mente junto
com a ideia, como se estivessem (estavam!) intrinsecamente ligadas
ao que juntas então pensávamos. Em nossos encontros on-line, o
desejo foi se tornando projeto e ganhando novos contornos. Em
tempos de incertezas, medo, angústia e isolamento, conseguimos
começar algo bom, ligado à vida, a uma pequena esperança de dias
melhores. E, principalmente, renovamos nosso compromisso de
celebração da infância como uma experiência plena de descobertas
e de possibilidades de conhecimento do mundo.

Juliana Daher 9
Esse livro, como tantas coisas na vida, nasce de bons
encontros. Fabíola com Juliana com Carolina. E delas com Mônica,
Gabriela, Jéssica, Carla, Cibele, Cleide, Júlia, Isaac, Adélia, Rosinha,
Daniela, Pâmela, Mariana, Cristiane, Amanda, Roberta, Mário, Macaé
– que convidamos a escrever reflexões e experiências de mediação e
criação artística e literária com e para bebês e crianças pequenas. E
ainda com Anna e Samara – que deram forma, beleza, visibilidade e
acessibilidade a todas essas trocas, conversas e escritas.
Todas e todos nós nos colocamos o começo da vida como
uma questão simbólica que merece investigação e produções
interessadas e comprometidas. Seja em bibliotecas, escolas, casas,
livrarias, editoras, casas de acolhimento institucional, universidades
ou ateliês, a leitura do mundo, de si, do outro e das artes na primeira
infância é o tema principal dos artigos e experiências aqui reunidos.
O livro representa o desejo de que esses encontros continuem na
esfera social como espaços de liberdade e cuidado que considerem
as especificidades do ser humano no início da vida. Para isso, a
coletânea de textos a seguir conta com uma diversidade de enfoques
e olhares para as primeiras leituras, suas implicações e consequências
subjetivas, sócio-históricas e políticas.
Esperamos que ele circule em muitos espaços e que alcance
educadoras, bibliotecárias, agentes culturais e comunitárias, pais,
mães, avós, cuidadoras de bebês e crianças pequenas… Enfim, que
seja, também para quem lê, um encontro potente como o que nos
acena sua origem.
Agradecemos à Lei Municipal de Incentivo à Cultura de
Belo Horizonte, que viabilizou a publicação e distribuição gratuita
do livro, reiterando sua relevância na consolidação da política
cultural na cidade.

10 Juliana Daher
Leitura, arte e cultura
na  primeira infância: 
distintas vozes de uma
aldeia inteira

Mônica Correia Baptista

Começo esta apresentação chamando atenção para os termos que


compõem o título deste livro: primeiras, leituras, arte, cultura, infân-
cia. Temos já no título um convite: unir leituras à arte e às expres-
sões culturais que se iniciam no começo da vida.
No começo da vida, iniciam-se também as leituras do mundo
e, mais tarde, da palavra, como nos ensinou Paulo Freire (1985),
para quem uma compreensão crítica do ato de ler não se esgota na
descodificação de palavras escritas, mas “se antecipa e se alonga
na inteligência do mundo” (p. 11). Antes de ler a palavra, lemos o
mundo. E nos apropriamos da leitura de palavras para que possa-
mos dar continuidade à leitura do mundo.
Os que acabam de chegar iniciam imediatamente sua trajetó-
ria como leitores. Não são simplesmente os que não falam, mas, nas

Juliana Daher 11
palavras de Solange Jobim e Souza (2016), os que lutam para criar
a sua própria palavra. E nessa luta, vão instituindo-se a si mesmos
e ao mundo, transformando gestos, sons e silêncios em discurso
humano. Na primeira infância aprende-se, pois, a simbolizar, isto é,
aprende-se a representar, condição essencial para a experiência de
pensamento. Primeiras leituras são, portanto, primeiras tentativas
de significar o mundo. E dessas leituras, nascem os primeiros textos.
O olhar, o gesto ou o balbucio, que respondem à voz ou ao aceno
da mãe ou de outras pessoas responsáveis pelos cuidados basilares,
são expressões da autoria de um bebê, que começa a manifestar
seus desejos, e revelam seu esforço em se fazer entender.
Diante da nossa responsabilidade de acolher as crianças e
apresentar a elas esse emaranhado de símbolos, de signos, de índi-
ces, de ícones, devemos nos perguntar como garantir que essa nova
existência, que traz consigo a inovação, a novidade, a recriação, seja
impelida a gerar também uma nova história e, assim, se constitua
em recomeços para a humanidade? (ARENDT, 1989)
É na busca por responder a essa pergunta que encontramos
o elo entre os dois outros vocábulos que compõem o título desta
obra: arte e cultura. E mais, a arte e a cultura como experiências vivi-
das em um ciclo da vida que vai desde a chegada ao mundo até os
seis anos de idade. Cantar, brincar, dançar, mover-se, ouvir histórias,
imitar, dramatizar são formas de pensar e de agir sobre o mundo.
Voltemos à pergunta: como apresentar às crianças o mundo
sem lhes retirar o desejo, a alegria, o entusiasmo de quem acaba
de chegar? Na história do pequeno Antônio, Bartolomeu Campos de
Queirós (1995, p. 23) oferece pistas:
Era silencioso o amor. Podia-se adivinhá-lo no cuidado da mãe
enxaguando as roupas nas águas de anil. Era silencioso, mas via-
-se o amor entre os seus dedos cortando a couve, desfolhando,
cristalizando figos, bordando flores de caneca sobre o arroz-
-doce nas tigelas. Lia-se o amor no corpo forte do pai, no seu
prazer sobre o trabalho, em sua mansidão para com os longos
domingos. Era silencioso, mas escutava-se o amor murmurando
– noite adentro – no quarto do casal. (...) Experimentava-se o

12 Juliana Daher
amor quando, assentados no calor da cozinha – pai e mãe – fala-
vam distâncias, dos avós, das origens, dos namoros, dos casa-
mentos. E, quando o sono chegava, para cada menino em cada
tempo, era o amor que carregava cada filho nos braços para a
cama, ajeitando o cobertor por sob o queixo.

Penso ser esse o nosso dever como adultos: acolher as crian-


ças, ampará-las, apresentando a elas o belo, o extraordinário, o pro-
digioso, o maravilhamento de estarmos vivos, de sermos humanos
e de podermos continuar a existir nos outros.
Somente a arte e a cultura são capazes desse feito. E entre
as manifestações artísticas, a literatura merece destaque quando
falamos em infâncias. A ficção, como argumenta Jacqueline Held
(1980), é semelhante a um brinquedo e responde a uma necessidade
profunda da criança, a de não se contentar com sua própria vida. No
seu consagrado livro, O imaginário no poder, a autora nos indaga se
não seria papel da ficção abrir todas as portas à criança, permitin-
do-lhe imaginar outras possibilidades de ser “para que possa, final-
mente, escolher-se?” (p. 17).
O brincar, a imitação, a repetição, a imaginação, as intera-
ções, a busca pelo belo constituem, como propõe Gouvêa (2011), a
“gramática da infância” e são também elementos constitutivos da
literatura infantil. Se o texto que se destina às infâncias brinca com
os sentidos, com os sons, com os ritmos das palavras, também a
criança joga com o caráter polissêmico e divertido da linguagem. Se
a imaginação, a imitação, a repetição, o apreço pelo processo e pelo
encantamento mais do que pelo produto final são características
presentes na maneira como a criança experimenta o mundo, tam-
bém são atributos dos contos de fada, das histórias cumulativas,
dos contos circulares, dos poemas, das parlendas.
Acontece que, tristemente, quem está chegando ao nosso
planeta, nestes combalidos e conturbados tempos, encontra adul-
tos desconfiados em relação à ficção, temerosos e ávidos por fechar
portas, por controlar a imaginação e a criatividade. Uma “arte didá-
tica” ou “moralizadora” (se é que a arte pode ser didática e mora-

Juliana Daher 13
lizadora) emerge como resposta às demandas de uma sociedade
adultocêntrica, ávida por controlar e subjugar ao invés de propug-
nar a liberdade da imaginação.
Não por coincidência, é nos momentos em que triunfa, nas
relações sociais, o conservadorismo que mais se aguça a sanha pelo
controle da infância e do seu acesso aos bens culturais. Ao invés de
conferir à palavra o máximo de potência imaginativa, deposita-se
nela o sentido mais literal possível, retira-se a metáfora, o humor, a
ambivalência, a abertura de sentidos. Quando justamente ao con-
trário, a literatura, como arte da palavra, deveria ser para todos, e
em especial para as crianças, a porta para mundos insólitos.
Mas a boa notícia é que há resistência. Este livro é um exem-
plo de que a ciência se une às artes para pensar e incidir sobre a vida,
unindo ciência, arte e vida para construir possibilidades e potências
na educação das infâncias. Neste livro, Primeiras leituras: arte e cul-
tura na primeira infância, vocês encontrarão uma profusão de vozes,
oriundas dos mais distintos lugares. Vozes de artistas da música, do
teatro, das artes visuais, da literatura. Vozes de estudiosos da lin-
guagem, da educação, da biblioteconomia, da literatura, da histo-
riografia. Vozes de jornalistas e de pessoas ligadas à edição de bons
livros para crianças.
Se é verdade, como nos adverte Jacqueline Held (1980, p.
234), que “toda descoberta de beleza nos torna exigentes e, pois,
mais críticos diante do mundo”, nos unimos a essas vozes e con-
clamamos, com elas, uma literatura fantástica e poética, fonte de
maravilhamento, de reflexão e de espírito crítico, capaz de quebrar
estereótipos, de desbloquear e fertilizar o imaginário e, assim, cons-
truir a criança que amanhã saberá inventar o homem.

Conclamamos o imaginário no poder!

Belo Horizonte, 20 de setembro de 2022.

14 Juliana Daher
Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Uni-
versitária, 1989.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se com-
pletam. São Paulo: Cortez, 1985.
GOUVEA, Maria Cristina Soares. Infantia: entre a anterioridade e a
alteridade. Educação e Realidade. Porto Alegre: UFRGS. V.36, nº 2,
maio/agosto, 2011. p. 547-567.
HELD, Jacqueline. O imaginário no poder. As crianças e a literatura
fantástica. São Paulo: Summus, 1980.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Indez. Belo Horizonte: Miguilim, 1995.
SOUZA, Solange Jobim e. Infância e linguagem. In: BRASIL. Ministé-
rio da Educação. Ser criança na Educação Infantil: infância e lingua-
gem. Caderno 2. Coleção Leitura e Escrita na Educação Infantil. Bra-
sília: MEC/SEB, 2016. p. 11-44.

Juliana Daher 15
Primeiras leituras:
reflexões sobre o
encontro com o humano
pela palavra
Juliana Daher

No descomeço era o verbo.


Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.
Manoel de Barros

Juliana Daher 19
Saberes Inaugurais
A chegada de um ser humano neste mundo é antecedida, muitas
vezes, por expectativas, histórias e discursos que tornam o bebê
imaginário presente no dia a dia de muitas famílias. Um bebê real
e um bebê imaginário, portanto, são gestados durante a gravidez.
Concomitantemente o bebê, por sua vez, passa por vivên-
cias intrauterinas permeadas por estímulos sensório-motores que
apenas ali, naquele ambiente, poderá experimentar: os sons dos
seus próprios batimentos cardíacos e os da mãe, das vísceras em
constante movimento, dos gases e líquidos na cavidade uterina,
bem como a pressão que eles exercem no corpo, os balanceios,
o crescimento, que cada vez torna-se mais contido pela limitação
do espaço, e muitos outros estímulos irreproduzíveis no ambiente
externo. Um corpo que habita outro corpo e que a partir do que ali
viveu constitui saberes que, observados amiúde, serão legitimados
como tal e apontarão algumas pistas sobre os cuidados com o bebê
recém-chegado ao mundo.
Não por acaso, o colo e a contenção que ele proporciona
ao corpo do recém-nascido, bem como o balanceio, constituem
ações quase instintivas do adulto nos primeiros cuidados com o
bebê. O colo, de certo modo, reproduz o ambiente restrito do útero,
trazendo para o bebê elementos para a autorregulação a partir de
uma vivência corporal que retoma referenciais de espacialidade já
conhecidos por ele.
Este é apenas um exemplo dos muitos saberes iniciais que
os bebês apresentam em seus tempos iniciais de vida, conforme
afirma Parlato-Oliveira (2019). A autora infere, ainda, que os bebês
tecem suas impressões sobre o mundo a partir de uma capacidade
multimodal de interpretação e que tempo e espaço são elementos
fundamentais na construção dos saberes dos bebês. Ou seja, esta-
mos diante de sujeitos que interagem de muitos modos nas relações
que estabelecem com o outro e com o mundo e que expressam seus
saberes também de variadas maneiras.

20 Juliana Daher
A LINGUAGEM QUE HUMANIZA
O bebê recém-chegado é humanizado pela linguagem a ele
direcionada. É imerso em um verdadeiro banho de palavras, sons e
entoações que muito dizem, ainda que ele ainda não compreenda
o sentido do que lhe é dito. A mãe ou outra pessoa adulta que dele
cuida supõe ali um interlocutor, visto que passa a estabelecer diálo-
gos com ele, a nomear suas expressões corporais, faciais e sonoras.
E o mais interessante é que, ainda segundo Parlato-Oliveira
(2019), pesquisas demonstram que, de fato, o bebê torna-se em
pouco tempo um interlocutor, pois passa a interagir, respondendo
não só por imitação, mas também propondo trocas de acordo com
sua intencionalidade, provocando no outro novas respostas.
Quando analisamos registros de diálogos entre bebês e seus
cuidadores, ficamos surpresos com o ritmo das trocas, quando
um finaliza a frase e o outro inicia imediatamente, sem pausa, ou
seja, o bebê não espera o intervalo, o silêncio, para começar a
sua participação. Assim como os adultos, ele percebe pela ento-
nação que a frase do outro está terminando e se prepara para
começar a sua. (PARLATO-OLIVEIRA, 2019, p. 68)

Nessa mesma direção, Cadermatori (2015) aponta para


narrativas existentes nos primeiros anos de vida, que precedem a
narração verbal e perpassam o corpo por meio de gestos, afetos
e emoções. Para se ler tais narrativas, faz-se necessário um olhar
minucioso para esse corpo comunicante.
Estamos, portanto, diante de sujeitos que não só são cons-
tituídos pela linguagem, mas que se constituem pela linguagem de
forma ativa, atuante e transformadora; que estabelecem interações
comunicativas não apenas pela modalidade sonora; que estão com
todos os sentidos a trabalho para interpretar o mundo e estabelecer
suas primeiras impressões, suas primeiras leituras sobre o entorno,
sobre o outro e sobre si mesmos.

Juliana Daher 21
PRIMEIROS TEXTOS E PRIMEIRAS LEITURAS
Cuidar do surgimento das palavras, da sua afinação com a experi-
ência vivida, de seu vigor e sentido; cuidar do ouvir, do balbuciar,
do murmurar, do falar, do cantar, do contar, do silenciar; cuidar,
enfim, da experiência inicial com a palavra é condição para o
desenvolvimento pleno deste ser de linguagem que é o homem.
Silvia de Ambrosis Pinheiro Machado

Em inúmeras culturas, os bebês recém-chegados ao mundo


vivenciam uma experiência estética diferenciada com a linguagem
por meio de narrativas que lhes são oferecidas em de cantos, decla-
mações e brincadeiras. Esse repertório primeiro faz parte de um
arcabouço cultural que constitui a base das primeiras vivências poé-
ticas do ser humano, além de ser elemento de inscrição na cultura,
no sentido identitário e de pertencimento a um grupo.
Machado (2017) apresenta em seu livro Canção de Ninar Brasi-
leira: aproximações apontamentos sobre a universalidade da arte de
ninar como expressão de diferentes grupos culturais, caracterizando-a
como uma manifestação cultural iniciática para os bebês. A autora
afirma que “(...) a canção de ninar poderá ser reconhecida também
como um dos primeiros objetos culturais, musical e literário, a que o ser
humano é exposto” (MACHADO, 2017, p. 23). Ela identifica ainda ele-
mentos simbólicos e temáticos comumente presentes nos acalantos e
canções de ninar que são marcados não só pelos votos de bom sono
e sonhos, mas também pelo medo, pela opressão, pela escravização
das mulheres e seus impactos objetivos e subjetivos no cuidado com
as crianças. Ou seja, estamos diante de um repertório que muitas vezes
apresenta narrativas obscuras, contudo apresentadas em uma estética
repleta de delicadeza. É um modo muito bonito de apresentar as bele-
zas e as durezas da vida ao recém-chegado, situações que estão postas
a todo ser humano em qualquer tempo de vida. Como afirma Yolanda
Reyes, a materialidade da voz que entoa essas dramaticidades provoca
ressonâncias afetivas “(...) que ligam as palavras com a vida para nos
prover um substrato de nutrição emocional” (REYES, 2010, p. 35).

22 Juliana Daher
Obviamente bebês tão pequeninos não compreenderão o
significado de tais narrativas cantadas. Contudo, conforme López
(2019, p. 19), “(...) o sentido que precede à significação se lê no rosto
(...)”. Tal afirmativa vai ao encontro ao que Reyes (2010) diz sobre
os primeiros textos do ser humano serem constituídos pela voz e
pelo rosto humano, visto que, a partir da interação com o outro, o
bebê aprenderá sobre os elementos verbais e não verbais que cons-
tituem narrativas e diálogos que serão interpretados por eles, possi-
bilitando inúmeras leituras.
Tão importantes quanto as canções de ninar são as brinca-
deiras tradicionais, as rimas, parlendas e brincos da cultura tradicio-
nal da infância. Sobre eles, Lydia Hortélio diz:
Os brinquedos cantados, os brinquedos ritmados, ou seja, a
MÚSICA TRADICIONAL DA INFÂNCIA, a MÚSICA DA CULTURA
INFANTIL, integra fatos culturais que estão na base da cultura de
um povo, portanto, no berço da CULTURA BRASILEIRA, carre-
gando em seu cerne os arquétipos da língua, da música, o movi-
mento próprio de nossa alma ancestral, sua maneira de ser parti-
cular, sua graça e poder diáfano. (HORTÉLIO, 2014, p. 274)

Estamos diante de um repertório que traz tanto a marca iden-


titária de um povo e de suas interfaces com outras culturas, como
também de narrativas comumente passadas de geração em geração
aos bebês recém-chegados naquele grupo sociocultural. Trata-se de
um legado cultural com imensa carga afetiva, os primeiros livros sem
páginas, como diz Reyes (2010), que são escritos na pele, no ritmo do
jogo, no movimento, na troca de olhares.
Outra característica interessante desse repertório são as
narratividades das crianças, uma autoria perceptível pela pre-
sença de corruptelas em várias letras dessas brincadeiras quando
cantadas e brincadas.
Silva (2021) traz a dimensão do brinquedo-palavra tão pre-
sente na cultura da infância brasileira. Tais brincadeiras são mar-
cadas pelo domínio do uso da palavra principalmente a partir de
desafios rítmicos. Quadrinhas, parlendas, histórias, adivinhas, trava-

Juliana Daher 23
-línguas constituem alguns dos exemplos de gêneros textuais desse
repertório. A palavra ganha protagonismo na experiência lúdica e
seu uso (e subversão no uso) torna-se a motivação da criança na
busca pela palavra.
É possível perceber o quanto as primeiras relações do bebê e
da criança bem pequena com a linguagem são permeadas pela intera-
ção com o outro, pela corporeidade e pela qualidade rítmica e meló-
dica que possibilitam experiências estéticas diferenciadas que consti-
tuem os primeiros contatos dos pequenos com a linguagem poética.
Contudo, López (2019, p. 19) alerta para a necessidade de
atentarmos para a qualidade do uso da linguagem com os bebês e
crianças na sociedade contemporânea, que cada vez mais prescinde
das interações humanas presenciais, em um tempo que “(...) separa
a linguagem do jogo, da afetividade, da empatia com o outro”. A
autora afirma ainda que é possível perceber certo esvaziamento
melódico na linguagem, que cada vez mais tem sido usada em
seu sentido apenas informativo, empobrecendo a experiência dos
bebês e das crianças com a linguagem e com a vivência poética. E
essa aprendizagem poética, conforme afirma Reyes (2014), é fun-
damental para que a criança transcenda a realidade, a literalidade e
vivencie uma comunicação não estritamente utilitária e sim criativa,
na qual as palavras adquirem outros sentidos e significações.

TRIÂNGULO AMOROSO E NOVOS TRAJETOS LITERÁRIOS


Os percursos linguageiros dos bebês e das crianças peque-
nas nos tempos iniciais da vida passam pelo encontro com a palavra
vinda do outro que o nomeia, que o supõe um interlocutor e dire-
ciona a ele discursos e intenções, provocando, como dito anterior-
mente, não só a imitação, como também estimulando respostas a
partir da vontade dos bebês.
Estamos diante de sujeitos bastante ativos em seus processos de
interação e que, de forma multimodal, recebem e devolvem ao mundo
exterior suas percepções e interpretações, consolidando saberes pró-
prios e sendo protagonistas em seu processo de constituição psíquica.
24 Juliana Daher
Um aspecto relevante nesses percursos com a linguagem é
a dimensão afetiva, que qualifica a matéria-prima da palavra ofer-
tada nos sentidos, significados e lugares culturais que ela ocupa.
Não estamos diante de um evento qualquer. Trata-se de um investi-
mento potente que o adulto faz nesta relação pela linguagem e pelo
afeto, na qual o bebê passa a ser singularizado, torna-se sujeito.
As canções de ninar, cantigas e brincadeiras tradicionais da
cultura da infância ganham força nos primeiros tempos dessa rela-
ção e a marca da multimodalidade é presente no exercício desse
repertório, que evoca não apenas a voz em si, mas a qualidade do
uso da voz na entoação, na melodia, nos aspectos referentes ao
movimento e ao ritmo, que caracterizam uma forma singular de se
vivenciar a linguagem. A palavra perpassa o corpo por meio dos ges-
tos, das experimentações sonoras, das pequenas subversões feitas
no uso da linguagem e torna-se um importante brinquedo dos tem-
pos inaugurais da vida.
Esse percurso inicial com a palavra faz parte do que Reyes
(2014) identifica como o que é constitutivo do percurso leitor na
primeira infância. Ela nomeia esse primeiro momento do processo
leitor com a frase “Yo no leo; alguien me lee, me decifra y escribe en
mi”.¹ Esse momento consiste no período logo após o nascimento do
bebê, que entra no universo das palavras, dos símbolos e dos signi-
ficados, inicialmente indecifrável e ininteligível e que “(…) começa
a fazer sentido na medida em que aparece alguém que o lê, que o
decifra e que funda nele os primeiros significados.”² (REYES, 2014,
p. 16, tradução nossa). O choro e toda expressão do bebê humano,
assim como acontece com outros animais, são lidos pela mãe, que a
eles vai atribuindo significados.
De modo que nos tornamos participantes da comunicação
humana e entramos no mundo do simbólico, porque existe

1 “Eu não leio; alguém me lê, me decifra e escreve em mim” (tradução nossa).
2 No original: “(…) empieza a cobrar sentido sólo en la medida en que aparece
alguien que lo lee, que lo decifra y que funda en él los primeros significados.”

Juliana Daher 25
alguém que nos lê e escreve em nós nossos primeiros textos,
os primeiros significados. Nessa primeira etapa da vida, temos
contato com muitos textos e muitas leituras, e é importante
esclarecer o sentido amplo das palavras, pois muitos “textos de
leitura” da primeira infância transcendem o alfabético; ou seja,
são escritos além dos livros.³ (REYES, 2014, p. 17, tradução nossa)

Um segundo acontecimento muito importante nesse per-


curso leitor dos bebês e crianças pequenas é o encontro com o livro.
Este é um momento fundamental no desenvolvimento da trajetória
leitora na primeira infância, quando o pequeno leitor acede a uma
nova ordem simbólica em que o objeto livro apresenta algo que se
parece com a realidade, mas não é a realidade, ou seja, uma conven-
ção cultural encontrada no objeto cultural livro (REYES, 2014. p. 19).
Para viabilizar este encontro entre livros e bebês e crianças
pequenas, é de suma importância a disponibilidade do adulto, que,
pela mediação, oferece ao pequeno leitor a vivência da experiência
leitora de forma enriquecida. Adulto, criança e livro constituem os
vértices do que Reyes (2010) conceitua como “triângulo amoroso”.
Nesse triângulo, a criança e o adulto olham conjuntamente para
um terceiro elemento, o livro, sendo que o adulto tem função primordial:
viabiliza o encontro da criança com o livro e deve garanti-lo de forma a
ampliar as possibilidades de a criança vivenciar esta experiência:
O adulto é por excelência o texto da criança, porque empresta
voz, rosto e abrigo para que ela possa se ler. Basta olhar para
os movimentos dos leitores iniciantes: seus olhos oscilam, con-
tinuamente, do livro para o rosto do adulto: a voz, a cara e o
corpo do adulto são o cenário onde a história que a criança
escuta, olha e sente, projeta-se e se atualiza. E enquanto as

3 No original: “ De manera que nos hacemos partícipes de la comunicación humana


y entramos al mundo de lo simbólico, porque hay alguien que nos lee y nos escribe
en nosotros los primeros textos, las primeras claves de significación. En esa primera
atapa de la vida, tenemos contacto com muchos textos y muchas lecturas, y es
importante aclarar el sentido amplio de estos vocablos, pues muchos “textos de
lectura” de la primera infancia transcienden lo alfabético; es decir, están “escritos”
más allá de los libros.”

26 Juliana Daher
palavras fluem, a criança sente a vida fluir nessas páginas,
nessa voz que conta. (REYES, 2017, p. 49)

Trata-se, portanto, de uma experiência de cunho afetivo


e corporal. A vivência literária acontece, então, em um estado de
confiança que se estabelece no momento da partilha da leitura. E
o aspecto mais interessante desse encontro é sua dimensão genui-
namente humana, o encontro entre humanidades que se passa no
campo objetivo e no território simbólico que está posto na leitura
literária. Como afirma Reyes (2017), o trabalho do mediador de lei-
tura vai além da leitura do livro, passa pela leitura dos leitores; neste
caso, os pequenos leitores recém-chegados ao mundo e que carre-
gam suas impressões, emoções, hipóteses e expressam suas narra-
tividades em um constante exercício de autoria.
Na leitura de um livro literário, a criança é introduzida em
uma “outra ordem simbólica”. Ela é convidada pelo adulto que lhe
oferece a possibilidade de manusear o objeto livro e lhe apresenta
novas formas de linguagem: as ilustrações, as letras, os paratextos.
“Certamente esse conjunto de manchas e traços não podia signifi-
car nada para o bebê sem a voz adulta que oficia o trânsito para a
outra ordem simbólica” (REYES, 2010, p. 47).
Dessa forma, estabelece-se um jogo no qual algumas defi-
nições são postas: que as imagens se encadeiam formando histó-
rias, noções temporais (antes e depois) e espaciais (frente e atrás,
da esquerda para a direita, movimentação da página conforme o
modo de leitura nas culturas ocidentais). O jogo não se dá apenas na
materialidade que o objeto livro proporciona pelo manuseio e pela
exploração: “Todas as características do jogo são perfeitamente
aplicáveis à produção e à recepção do texto literário, para as quais
se requer um estado de liberdade coletiva e pessoal que adquire as
formas do desejo e do empenho” (PEREIRA, 2007, p. 32).
Naturalmente o jogo torna-se mais elaborado e o tempo e
o espaço concretos passam a ser convencionados. Eis o jogo simbó-
lico. Trata-se, contudo, de um processo e as experiências de leitura
mais primordiais servem de alicerce para as futuras construções fei-

Juliana Daher 27
tas no “triângulo amoroso”, que inaugura uma concepção de leitura
mediada permeada pela experiência afetiva.
Portanto, nessa perspectiva, a palavra, seja escrita ou falada,
não deve ser compreendida estritamente enquanto signo linguís-
tico. À infância é reconhecido o protagonismo em todo o processo
de construção de habilidades linguísticas, ressaltando a importância
da mediação durante esse processo.

PELO DIREITO À PALAVRA POÉTICA NA PRIMEIRA INFÂNCIA


O direito à palavra poética é tão básico quanto o direito à alimen-
tação, que nos faz humanos. E isso é uma responsabilidade adulta,
que aqueles que trabalham neste campo devem ajudar a susten-
tar. Por isso, produzir uma comunidade ao redor de bebês e crian-
ças pequenas, por meio de livros, músicas, histórias, jogos, é uma
forma de cuidado afetivo, cultural e poético. Quem cuida do que
cria, protege a humanidade.
María Emilia López

As tessituras feitas neste texto se propuseram a trazer para


o cerne das reflexões sobre as primeiras leituras o encontro dos
bebês e das crianças pequenas com a linguagem, especialmente
pela palavra poética, permeada de experiências estéticas e afetivas.
Em tempos de tanta compartimentalização das experiên-
cias humanas, do pensar e do sentir, do intelectual e do artístico, do
funcional e da fruição, os bebês e as crianças têm sofrido os impac-
tos na oferta da palavra poética em suas diferentes manifestações.
As temporalidades, atravessadas pela lógica capitalista de
estrutura do trabalho marcado pela produtividade, afetam adul-
tos que vivem imersos em jornadas exaustivas e muito demarca-
das pelas questões de gênero (é comprovada a sobrecarga das
mulheres no que tange às tarefas de cuidados domésticos e com
os filhos, caracterizando uma segunda ou até uma terceira jornada
de trabalho). Afetam também as crianças, que desde muito cedo
experimentam, nos tempos escolares, certa rigidez nas rotinas
permitindo poucos escapes para os tempos mais orgânicos e natu-

28 Juliana Daher
rais que os pequenos demandam para estabelecerem suas intera-
ções, suas experiências de fruição.
Além disso, enfrentamos em parte de nossa sociedade
um obscurantismo que atravessa as liberdades de expressão,
que persegue as artes e que, numa tentativa de controle, busca
modos de censurar e boicotar artistas e suas produções, difun-
dindo produtos culturais de qualidade duvidosa, de caráter mora-
lista, que vão na contramão da liberdade que a experiência artís-
tica proporciona.
Assim, destacar um tempo, mesmo que não seja dilatado
em quantidade, mas intenso na qualidade, para ofertar a palavra
poética aos bebês e às crianças por meio dos primeiros textos – can-
tigas, brincadeiras, histórias, brinquedos com a palavra (como os
trava-línguas), leituras de livros – constitui um ato de resistência em
tempos que não favorecem essas vivências tão preciosas nas dimen-
sões afetivas, de inscrição cultural, de ampliação de repertório, de
humanização das relações.
A oferta dos primeiros textos e das primeiras leituras aos
pequenos, permeada pelo afeto e pela palavra poética, consti-
tui sistema de proteção simbólica na primeira infância, conforme
afirma López (2019). E, para além de iniciativas pontuais de famílias,
escolas e equipamentos culturais, deveria ser pauta estruturante
de políticas públicas como parte do amplo sistema de garantia de
direitos desde o nascimento. Considerando as especificidades nas
interações dos bebês e crianças pequenas, suas corporeidades e
suas demandas de tempo e espaço para a consolidação de saberes,
é urgente sensibilizar gestores públicos para a implementação de
ações que garantam o acesso a bens culturais e ao bem-estar desde
os tempos iniciais da vida.
É necessário sensibilizar mães, pais e cuidadores sobre a
importância da palavra em suas diferentes expressões nas intera-
ções com os bebês. A qualidade do uso da palavra, considerando
também os aspectos estéticos da oferta que fazemos aos bebês e às
crianças pequenas, constitui as primeiras experiências literárias na

Juliana Daher 29
primeira infância, que possibilitarão aos pequenos leitores aprofun-
dar seu acesso a muitas camadas de sentidos e significados, tecer
novas realidades simbólicas e, por que não, ser agentes transforma-
dores de realidades.
Por mais começos de vida repletos de palavras poéticas!

REFERÊNCIAS
CADEMARTORI, Ligia. As narratividades. In: BAPTISTA, Mônica Cor-
reia et al. (org.). Literatura na Educação Infantil: acervos, espaços e
mediações. Brasília: MEC, 2015, p. 31-38.
HORTÉLIO, Lydia. Especial: a importância do brincar. [Entrevista
concedida a] Familiarte. São Paulo: Melhoramentos, out. 2014, p. 1-4.
LÓPEZ, María Emilia. Breve ensaio sobre a palavra poética e a prote-
ção simbólica na infância. In: PRADES, Dolores; MEDRANO, Sandra
(coord.). Seminário Internacional Arte, palavra e leitura na primeira
infância - 2018. São Paulo: Instituto Emília, 2019, p. 17-22.
MACHADO, Regina. A arte da palavra e da escuta. São Paulo: Editora
Reviravolta, 2015.
MACHADO, Silvia de Ambrosis Pinheiro. Canção de ninar brasileira:
aproximações. São Paulo: Edusp, 2017. 312 p.
PARLATO-OLIVEIRA, Érika. Saberes do bebê. São Paulo: Instituto
Langage, 2019.
PEREIRA, Maria Antonieta. A criança e a linguagem: entre palavras
e coisas. In: PAIVA, Aparecida et al. (org.). Literatura: saberes em
movimento. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p 111-136.
REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira
infância. São Paulo: Global, 2010.
REYES, Yolanda. Como e por que ler na primeira infância? Revista Letra
A: O jornal do alfabetizador, Belo Horizonte, nº 31, p.12-14, ago/set 2012.

30 Juliana Daher
REYES, Yolanda. O triângulo amoroso. In: LIMA Erica; FARIAS Fabí-
ola; LOPES Raquel (org.). As crianças e os livros: reflexões sobre a
leitura na primeira infância. Belo Horizonte: Fundação Municipal de
Cultura, 2017, p 46-51.
REYES, Yolanda. Secretos que no sabemos que saben. Cidade do
México: Conaculta, 2014.
SILVA, Lucilene. Introdução à cultura da infância. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=7B6JBLPLMe8

Juliana Daher 31
Chão das infâncias
Gabriela Romeu

A paisagem da infância socializa sem aviso prévio. Ela se esgueira


para dentro. Paisagens da infância são as primeiras grandes
imagens que nos confrontam com nosso corpo. (...) Sozinha na
paisagem, senti medo muitas vezes. A paisagem é o primeiro
grande impasse, sem motivo, do qual não consigo me lembrar.
Eu achava que precisava virar planta para saber como viver. O rio
verde do vale atrás dos milharais foi o primeiro espelho exterior
do meu desamparo.
Herta Müller

Lugar, chão, terra, território ou quintal: palavras-paisagens que


vamos percorrer ao longo deste texto que se inicia pela vastidão
da cena de uma infância em fronteiras distantes, no norte da penín-

Juliana Daher 35
sula dos Bálcãs, evocada pela premiada escritora de origem romena
Herta Müller, Nobel de literatura, autora de uma obra cuja poética
desestabiliza o campo leitor, surpreendido com sua escrita de can-
tos inesperados, insólitos por vezes. Müller não se dedica a escrever
sobre infância em seus livros, é verdade. Escreveu sobre universos
imersos em ditaduras, perseguições políticas e outras opressões que
não as infantis. No entanto, ao falar de um dos personagens de seus
livros, o poeta Oskar Pastior, protagonista do romance Tudo o que
tenho levo comigo, ela ensaia que a paisagem delineia em seu país
natal ao menos duas experiências de infâncias, ambas bem diversas,
a das crianças da montanha e a das crianças planície, onde, em seu
tempo de menina, “milharais envolviam o horizonte”.
Para Pastior, seu amigo e personagem do romance, o
vocabulário das montanhas onde viveu quando criança era usado
sempre para descrever os arredores do campo de trabalho for-
çado na ex-União Soviética, onde passou cinco anos da vida
adulta, como se aquelas imagens nunca o tivessem abandonado,
apesar de todo o desamparo naquele lugar nada parecido com
o chão de seu tempo de menino. “Aprendi que a paisagem da
infância deixa marcas para o olhar da paisagem de todos os anos
seguintes” (MÜLLER, 2012, p. 126). E talvez por toda a vida, já
que filósofos da imaginação contam que “ (...) a infância está na
origem das maiores paisagens” (BACHELARD, 1988, p. 97).
Dos milharais da distante Romênia reinventada na obra de
Müller aos muitos rincões deste país de dimensão continental, são
muitas as paisagens das infâncias brasileiras, as dos grandes centros
urbanos, das comunidades de agricultores e em terras indígenas,
das beiradas de rios e das imensidões das florestas, dos quilombos
rurais ou urbanos, dos litorais, dos sertões, das áreas serranas, das
chapadas e dos vales. E para seguirmos por rotas literárias, também
as dos Mutuns em meio aos Campos Gerais, “covão em trecho de
mata, terra preta, pé de serra”, lugar entre morros, “distante de
qualquer parte”, onde cresceu “um certo Miguilim” (ROSA, 1984, p.
13), marcado por sua paisagem-natal, assim como versa Manoel de

36 Juliana Daher
Barros: “O abandono do lugar me abraçou de com / força. / E atingiu
meu olhar para toda a vida” (BARROS, 2015, p. 83).
São muitas as impressões da paisagem no imaginário das
infâncias, as que têm suas narrativas nos livros e as que as narram o
cotidiano em seus quintais, espalhados por diferentes regiões, terri-
tórios ou comunidades muitos Brasis afora. Dos chãos enredados de
mangue aos céus de emaranhados fios, são muitos os jeitos de ser
criança ou de exercitar a infância. Ou melhor, viver as infâncias, no
plural, entendendo a diversidade de paisagens e geografias, saberes
e fazeres, contares e brincares, vivências e experiências. Sim, experi-
ência, um vocábulo caro às infâncias, ainda mais se entendido no sen-
tido apresentado pelo filósofo e educador espanhol Jorge Larrosa:
A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de
exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência
é a passagem da existência, a passagem de um ser que (...) sim-
plesmente ‘ex-iste’ de uma forma singular, finita, imanente, con-
tingente. (LARROSA, 2019, p. 27)

As infâncias, muitas vezes carregadas de certo estrangei-


rismo, como algo distante, exterior, têm suas experiências-existên-
cias singulares. Só num pedaço de Brasil, a região do Médio Xingu,
no Pará, por exemplo, podemos adentrar diferentes paragens com as
mais variadas experiências infantis: a das meninas Xikrin esculpindo
suas bonecas de barro na beira do rio Bakajá, a dos ribeirinhos da
comunidade Vila Nova construindo jangadas de aninga (uma planta
amazônica que boia na água), a das crianças da periferia de Altamira
fazendo barquinhos com restos de sucata do cotidiano e brincando
nos fios de água das palafitas, intrincados em cotidianos bastante
únicos, onde meninas e meninos vivem sob o “império da água”, nas
palavras do poeta Thiago de Mello. Nesse reino aquático, de longos
períodos de cheias, em que canoa vira perna de criança ribeirinha, um
menino certa vez disse sentir “saudade de pé no chão”, indicando
nesse sentimento o quanto a paisagem submersa o afeta.
Assim como a experiência, as infâncias são jeitos pulsantes
de ser e estar: “A experiência seria o modo de habitar o mundo de

Juliana Daher 37
um ser que existe, de um ser que não tem outro ser, outra essência,
além da sua própria existência corporal, finita, encarnada, no tempo
e no espaço, com outros” (LARROSA, 2019, p. 43).
Na Filosofia, essa disciplina tão cheia de indagações quanto
as crianças, uma das acepções de infância a considera uma expe-
riência fundante, a qual carregamos para sempre. A infância – um
mistério, um enigma, uma pergunta, um jeito afirmativo do pensar
– é uma condição de possibilidade da existência humana, segundo
o filósofo e educador argentino Walter Kohan, em diálogo com o
pensador italiano Giorgio Agamben. Não abandonamos a infância
ao transpor o seu tempo cronológico, ampliamos o seu sentido, pois
ela “é uma condição que nos habita” (KOHAN, 2015, p. 217) e por-
tanto “somos habitados de infância para além de uma fase cronoló-
gica da vida” (KOHAN, 2015, p. 223).
E ser habitado de infância é o mesmo que habitar a vida
com espanto, completa outro filósofo, o educador brasileiro Renato
Noguera. É ter a prontidão da primeira vez, olhos de ver as coisas
invisíveis e cotidianas, mecanismos interiores ágeis de se admi-
rar com o pequeno, o nada. As lentes infantis têm a habilidade de
mirar o extraordinário no ordinário. A infância inaugura a existên-
cia de forma inédita e, principalmente, genuína, pois é “um modo
de lançar olhares inéditos sobre o mundo em busca de percursos
que estão por fazer” (NOGUERA; ALVES, 2019, p. 18). E esse ver da
criança abarca todos os outros sentidos, extrapolando a ideia de
visão de mundo para audição de mundo, olfato de mundo, tato de
mundo, paladar de mundo, como define Noguera a partir da ima-
gem de um Exu que representa em infância a sua fome de vida.
Habitar a vivência com espanto é o que se revela no coti-
diano dos quintais dos muitos recônditos deste país, entre os brin-
cares com a natureza e as sucatas do entorno, sempre a fazer do
ócio puro ofício. O brincar com o próprio corpo-brinquedo, a fle-
char as águas, a escalar árvores, a virar um aviador ao saber dos
ventos, a girar feito pião, a vibrar com um frio na barriga no voo de
balanço, entre muitos outros gestos lúdicos exercitados por meni-

38 Juliana Daher
nas e meninos ludens. E também o brincar com o outro, em dupla,
em roda, em bando.
O quintal não é lugar designado somente ao crescer ou vir
a ser, mas é verdadeiro laboratório de ser, um território de quando
já se é intensamente. Onde (se) cria. É local de descobertas, confli-
tos, invencionices. Tal espaço, a depender da geografia e da oferta de
materialidades, possibilita muitas (ou ainda mais) investigações infan-
tis. No quintal, as crianças aprendem nas trocas e troças com seus
pares, ao compartilhar habilidades diversas, e há também ali convites
para intercâmbios de experiências entre gerações. De novo, é válido
convocar Larrosa e seus inspiradores escritos sobre a experiência:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos
toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase
impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar,
parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, e escu-
tar mais devagar, parar para sentir, sentir mais devagar, demo-
rar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, sus-
pender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
ação e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que
nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar
a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e
espaço. (LARROSA, 2019, p. 25)

Esse território das infâncias, o quintal, é aqui entendido de


modo alargado, como o universo de vivências das crianças de um
dado lugar, que pode ser o rio, a rua, a floresta, os arredores de uma
comunidade, o bairro, o campinho de terra batida, o condomínio
cimentado, a praça e também o espaço no fundo das casas, onde
comumente se guardam coisas já sem serventia muitas vezes para
os adultos – e não para as crianças, sempre ávidas em matéria de
invenção e transformação. A criança quer brincar num desmanche
do mundo, num imenso e fértil terreno baldio, para criar um mundo
todo novo, e de novo e de novo.
Em tal espaço geográfico e também simbólico, interior, se
revela de maneira especial um certo “estado de infância”, segundo
Noguera, este filósofo com o qual muito nos identificamos, pois se

Juliana Daher 39
assume “criancista”, gente adulta que aprende com criança, ou que
se propõe a “entender a criança e seu mundo a partir de seu próprio
ponto de vista” (COHN, 2005, p. 8), o que não é pouco e também é
ainda raro. O estado de infância, que experimenta e busca o mundo
pelos sentidos e aprende de forma interrogante, aproxima-se de
uma dimensão brincante e narrativa da vida. E é o que torna viável a
manutenção do viver, aponta esse pensador:
Não se trata de uma instrumentalização do brincar para uma
ação pedagógica, do narrar como entretenimento. Porém, da
vitalidade própria de existir. A vida é fundamentalmente brin-
cada e narrada. (...) Brincar e narrar tornam a vida abundante
(NOGUERA; ALVES, 2020, p. 542).

É essa abundância do viver que se encontra por muitos terrei-


ros do país, nas infâncias das águas grandes, das terras vermelhas, dos
chapadões de pedras, dos campos de muitas batalhas deste país em
que há escassez de chão para muitas infâncias. As crianças da Amazô-
nia flecham os rios e se reinventam peixes e outras criaturas aquáti-
cas. Nas serras do Ceará, para dar outro exemplo, meninos se narram
boiadeiros com uma coleção de pedras-bois. As ervinhas do quintal
alimentam as brincadeiras e as narrativas das crianças em terras sulis-
tas (e não só lá, evidentemente). Enfim, em um pedaço de chão ao
criar brinquedos com o que adultos chamam de cacarecos, riscar uma
calçada acanhada ou rascunhar estradas imaginárias no tapete da
sala de um minúsculo apartamento, meninas e meninos constroem e
ampliam moradas simbólicas, (re)inventam (suas próprias) histórias –
pensando o “inventar” a partir de sua origem no latim, invenire, que
quer dizer encontrar relíquias ou restos arqueológicos, a invenção
como uma “prática de tateio, de experimentação, de conexão entre
fragmentos”, como explica Virginia Kastrup num dos verbetes de Pes-
quisar na diferença, um abecedário (FONSECA; NASCIMENTO; MARAS-
CHIN, 2015, p. 141). As invenções infantis nos quintais são feitas de
pedaços do que são, encontram, vivem, compartilham.
É ali que a criança também demarca territórios. Seu próprio
território. Para seguirmos ampliando estas palavras com imagens

40 Juliana Daher
colhidas nos muitos quintais do Brasil ao longo dos últimos anos,
poderíamos enfatizar que é o que facilmente registramos em diver-
sos bairros das cidades grandes, onde as crianças desafiam carros
e avenidas, fios e postes, para empinar pipas, peixinhos ou papa-
gaios (entre outros nomes que os brinquedos ganham céus Brasis
afora). O desejo de dominar um artefato lúdico milenar nos ares,
já pouco visto em muitos cantos pela proliferação de arranha-céus,
supera essa aridez urbana. Pela brincadeira, as crianças transgridem
as fronteiras do próprio viver.
E ao exercitarem o brincar, exercitam também o narrar, reto-
mando essas duas ações tão próprias das infâncias. Quando narram,
também brincam. Contam uma história enquanto entoam os versos
do pular corda, trocam diálogos imaginativos nos brincares simbóli-
cos (de casinhas, por exemplo), fazem trocadilhos nos jogos de pal-
mas. A escritora e pesquisadora colombiana Yolanda Reyes, sempre
atenta ao narrar e brincar em suas reflexões acerca da leitura e da
infância, é citada pela argentina María Teresa Andruetto em obra que
tece certeiras conexões entre as efabulações e as brincadeiras:
Se é certo que somos o que falamos, se é verdade que somos
feitos não só de carne e osso, e sim de símbolos, valeria a pena
abrir o mundo das crianças e todos os sotaques que transportam
a infinita diversidade do que somos (...). Como nas brincadeiras
infantis, as palavras eram essas comidas invisíveis de que me ser-
via em xicarazinhas de mentira para saciar a sede de imaginar.
(ANDRUETTO, 2017, p. 42-43)

Xícaras de mentira, vale completar, transbordando de ingre-


dientes da mais pura verdade, assim como ficções são “mentiras
que abrem caminhos para novas verdades” (ANDRUETTO, 2017, p.
149). As crianças não fingem, ou imitam ou arremedam enquanto
brincam, como é costumeiro e errôneo dizer. Transpõem limites da
fantasia e da realidade. “A criança, com sua capacidade de fabular, é
impulsionada a recriar o real no irreal” (PIORSKI, 2016, p. 31).
E elas infinitamente exercitam o próprio ser, e assim são,
a partir de suas criações autenticamente poéticas. Sim, poéticas.

Juliana Daher 41
Qual a poesia da criança em seu brincar? Tal qual o poeta faz com
as palavras, ela vê a ambivalência dos seres, inanimados ou não,
tijolo, lágrima, bacia, cotovelo, andorinha. Tijolo é tijolo, mas
também cavalo e cavalgada. Aí reside o exercício poético das
infâncias. A criança opera como o poeta, que “põe em liberdade
sua matéria” (PAZ, 1982, p. 26). É que “o artista” (e também a
criança) “não se serve de seus instrumentos – pedra, som, cor ou
palavra – como o artesão; ao contrário, serve-se deles para que
recuperem sua natureza original.” (PAZ, 1982, p. 27). Meninas
e meninos não somente esculpem o entorno, eles o poetizam
intensamente e, para isso, mergulham na verdade de seu ser
abertamente (ao) poético.
E para poetizar o mundo e a vida, narram e brincam. Nar-
rar e brincar são verbos conjugados nas infâncias, independen-
temente do tempo e do lugar, mas, sim, variando conforme as
ofertas locais e também temporais. E vale sempre ressaltar, prin-
cipalmente àqueles que insistem no discurso de que “hoje não se
brinca mais”, é possível observar nas cinco regiões que a criança
brinca em todo território e em toda época, pois essa é uma ativi-
dade tão vital como respirar. A questão é que, conforme as possi-
bilidades do seu entorno e a qualidade do tempo disponível, esse
brincar pode obter variações e matérias-primas mais ou menos
pulsantes. Aos adultos, no entanto, cabe garantir firmemente às
crianças um tempo alargado e um chão permissivo (para pular,
se arrastar, riscar, cavar... entre outras ações tão simples quanto
raras para muitas infâncias de espaços diminutos, confinados e/ou
marcados por assepsias). Ou como afirma quem bem pesquisa as
relações da rica tríade infância, imaginário e natureza:
(...) a materialidade do brincar, quando se constitui de subs-
tâncias materiais pouco científicas, decompostas, desmancha-
das pelo tempo, ou provenientes da natureza, tem o poder de
desemoldurar a imaginação. Permite que a criança crie, com
maior liberdade, sua experiência. Devolve seu ritmo, ecoa e
realiza seu destino natural: pulsar, reunir e expandir, abrir-se
para o mundo. (PIORSKI, 2016, p. 30-31)

42 Juliana Daher
A natureza está na origem da poesia que em muitas paisa-
gens de infâncias bem se reconhece e exercita, pois “O mundo não
foi feito em alfabeto. Senão que primeiro em água e luz. Depois
árvore. Depois lagartixa.” (BARROS, 2001, p. 95). Em diálogo com
diversos poetas, entre eles o já e sempre lembrado Manoel de Bar-
ros, a escritora Gloria Kirinus nos conta que a natureza (manifesta
nas “danças da chuva”, na “escuta do canto dos rios e do barulho do
vento”, por exemplo) são as nossas “primeiras escutas em estado
de poesia” (KIRINUS, 2011, p. 25). É assim, em estado de poesia, que
o menino ribeirinho faz do corpo brinquedo poético a delirar com
o vento solto enquanto percorre maneirinho o extenso trapiche de
sua comunidade durante o tempo das águas grandes, as cheias, que
inundam os chãos e seu vasto imaginário.
Em sintonia com o léxico brincante percorrido até aqui,
damos então um salto na amarelinha ou até mesmo um giro de pião,
para estabelecemos algumas pontes entre a brincadeira e a narrativa,
entre o narrar e o brincar, esses verbos que permitem expressões
genuínas de existência. Ou seja, o desejo é criarmos conexões entre o
quintal e o livro, entendidos nos âmbitos físico e também simbólico.
O quintal, assim como o livro, dá corpo às narrativas infantis e, prin-
cipalmente, ao seu estar no mundo. Ou incorpora as narrativas mais
autorais das infâncias. E o livro, assim como o quintal, é um possível
lugar para que a criança apreenda o mundo brincando-narrando.
Tanto o quintal quanto o livro são lugar onde a criança
pode desenvolver autonomia e autoria, como já apontado em
texto escrito anteriormente:
No quintal, a criança é autora e cria suas primeiras narrativas. É ali
narradora de mundos. Vasto universo da infância que convida a
múltiplas linguagens, onde o narrar se dá contando, cantando, brin-
cando, jogando, fazendo de conta na mais pura verdade. Ou empi-
lhando pedras, classificando tampas e tampinhas, desenhando no
chão (ou nas paredes), inventando brinquedos, entre outras brinca-
deiras-narrativas que se desenrolam de modo palimpsesto, em que
muitas histórias são (re)escritas. (ROMEU, 2020, s.p.)

Juliana Daher 43
As crianças nos ensinam que tanto brincamos quanto nar-
ramos (e ouvimos e lemos histórias) para nos conhecer, rastrear
nossas origens, descobrir quem somos. A criança não só descobre
o mundo exterior, mas seu próprio universo interior nas operações
dos muitos brincares e narrares possíveis que permeiam o viver num
determinado pedaço de chão. Sim, o chão é sustentação, ou melhor,
sustento das infâncias.
A escritora argentina María Teresa Andruetto, ao citar
a poeta e ensaísta uruguaia Circe Maia, dialoga com essa ideia
do livro e do quintal como suportes ou chãos fundamentais às
infâncias ao tratar as histórias impressas nas páginas como “pon-
tes para ‘aprender a pisar, a se sustentar’” (ANDRUETTO, 2017,
p. 109). E afirma: “Boa parte da riqueza de um povo reside no
desenvolvimento de uma consciência sobre si e sobre o lugar que
se ocupa no mundo” (ANDRUETTO, 2017, p. 40). Essa consciência
sobre si e também sobre o mundo, podemos adicionar, tem suas
raízes no próprio chão da infância, lugar sabedor de origens, de
desvendar quem se é.
Dois antropólogos europeus, Tim Ingold e David Le Breton,
abrem mais caminhos teóricos para pensarmos a relação do chão e
da infância – e então com outros espaços físicos, tais como o livro.
Ingold que tão bem aproxima o campo da antropologia aos das
artes, da filosofia e da educação, nos apresenta a importância (e a
contemporânea escassez) da cultura do chão, em que os pés nos
possibilitam contato com nosso entorno (e com o nosso próprio
ser), e questiona a forma como na atualidade se apreende o mundo,
sempre a partir de uma plataforma fixa (caso das sociedades oci-
dentais sedentárias), num corpo em que se prevalece a soberania da
cabeça sobre os calcanhares, os pés, e pouco conectado com outros
mestres e mestras da vida:
Por que reconhecemos apenas nossas fontes textuais, mas não
o chão em que pisamos, os céus em constante mudança, monta-
nhas e rios, rochas e árvores, as casas nas quais habitamos e as
ferramentas que usamos (...)? (INGOLD, 2015, p. 12)

44 Juliana Daher
Em muitos quintais dos Brasis, o chão ensina e é local que
possibilita aprender uma educação dos sentidos, pois “não existem
alternativas senão experimentar o mundo, ser atravessado e trans-
formado permanentemente por ele. (...) Antes do pensamento, há
os sentidos” (BRETON, 2016, p. 11). Uma imagem significativa, a de
uma floresta e quem a frequenta, é evocada por esse pensador para
ampliar a ideia de como, até mesmo num mesmo lugar e tempo, o
ser humano vive sensorialidades distintas:
Percorrendo a mesma floresta, indivíduos diferentes não são
sensíveis aos mesmos dados. Existe a floresta do coletor de
champignons, do passeante, do fugitivo; a floresta do índio, do
caçador, do guarda-florestal, ou do caçador ilegal, a dos apaixo-
nados, dos extraviados, dos ornitólogos; a floresta igualmente
dos animais ou da árvore, a do dia e a da noite. Mil florestas na
mesma, mil verdades de um mesmo mistério que se esquiva e
que jamais se dá senão em fragmentos. Não existe a verdade
da floresta, mas uma infinidade de percepções a seu respeito
segundo os ângulos de aproximações, de expectativas, de per-
tenças sociais e culturais. (BRETON, 2016, p. 12)

O indivíduo toma consciência de si e do entorno pelo sentir,


que singulariza sua existência-experiência. Sim, no caso das infân-
cias, isso se amplifica e se dá tateando tocos ou cantos, decifrando
os sons das cigarras ou dos automóveis, roçando os pés na grama
ou no asfalto, salivando frutos e muitos ingredientes. Quintal é uma
verdadeira escola multissensorial, e o corpo todo é o filtro pelo qual
a criança se apropria das substâncias do mundo.
É nesse chão seminal que a criança se faz e se entende nar-
radora de mundos, a começar pelo seu próprio mundo. É um narrar
que não se faz só pelo verbal, mas por meio de muitas linguagens
e dos muitos sentidos: ao construir ou desmanchar um brinquedo,
caminhar na mata ou cruzar o bairro, colher um fruto ou restos do
terreiro, desmontar coisas, classificar e contar estrelas, sentir a brisa
e os odores da mata, entre outras acontecências possíveis de seu
universo-quintal. A criança narra com o corpo todo, em muitos ges-
tos. Todas e todos temos o “vício e o ofício de narrar histórias, cada

Juliana Daher 45
um de nós constrói (para si e para os outros), ao longo da vida, um
relato que constitui nossa identidade, uma narração que nos torna
únicos” (ANDRUETTO, 2017, p. 151). E esse narrar tem seu início já
na infância, nas culturas produzidas pelas infâncias, em seus territó-
rios, paisagens e chãos.
Aprendemos a ler e escrever mundos não só com a articu-
lação de letras e palavras, já nos contou o mestre Paulo Freire. O
pedagogo do esperançar, defensor da urgência de não só associar
a alfabetização à leitura do texto e à leitura da palavra, mas à lei-
tura de contexto, à leitura de mundo, aprendeu as palavras de seu
mundo-menino no quintal da casa em Recife, à sombra de árvores
frondosas, onde foi alfabetizado pela mãe e pelo pai. Com galhos
que faziam as vezes de giz riscando o chão-lousa, ele conta em À
sombra desta mangueira que aprendeu a escrever (sem cartilha)
os nomes do seu entorno afetivo, como os dos pássaros (sanhaçu,
sabiá, olha-pro-caminho-quem-vem), dos acidentes geográficos, das
cores das mangas e seu “amolegar”. O chão daquela primeira escola
“representa o mais próprio da identidade do educador, suas raízes”
(KOHAN, 2019, p. 168). Numa tarde do exílio, em Genebra, escreve
sobre seu primeiro mundo, o quintal, de modo saudoso:
O Brasil dificilmente existiria para mim, na forma como existe,
sem o meu quintal (...). A terra que a gente ama, de que a gente
sente falta e a que se refere, tem sempre um quintal, uma rua,
uma esquina, um cheiro de chão (...) (FREIRE, 2015 [1995], p. 41).

A obra de Freire começou a ser escrita já naquele quintal


de mangueiras, cajueiros, jaqueiras, barrigudeiras e sumaúmas. Ao
se aproximar de biografias significativas como essas, assim como
de outras narrativas e brincadeiras das crianças em seus quintais-
-mundos, ousamos dizer que talvez seja nesse lugar onde escre-
vemos nosso primeiro livro, feito de um alfabeto especial, com
fragmentos da natureza, sobras cotidianas, coisas desimportantes
e outros elementos feitos de palavras que “vivem de barriga no
chão”, “tipo água pedra sapo”, nos versos de Manoel de Barros.
O quintal, lugar que convida a brincar e também a contar histórias,
46 Juliana Daher
é um livro de muitas raízes que se vive dia a dia, página a página,
numa escritura constante de reinvenção.
É nesse lugar onde a criança pode exercitar a máxima “eu cons-
truo o mundo” por meio dos verbos brincar e narrar. E um quintal que
permita tal exercício não é local dado à assepsia, com cantos arredon-
dados, sem quinas, topografia pouco expressiva ou afofado com placas
de EVA, material que tanto se prolifera nas instituições formais e infor-
mais de educação. Tal espaço mais se aproxima das oficinas dos avôs,
das bicicletarias e suas sobras que valem ouro nas mãos infantis, dos
terrenos baldios com esconderijos e muitos achados.
Se a frase das crianças nos quintais é “eu construo o mundo”,
a dos adultos que as rodeiam deveria ser:
eu lhe apresento o mundo que outros me transmitiram e do
qual me apropriei, ou lhe apresento o mundo que eu descobri,
construí, amei. Eu lhe apresento o que nos rodeia e o que você
olha, espantado, apontando um pássaro, um avião, uma estrela.
(PETIT, 2019, p. 17).

Sim, é também fundamental o papel de pais, mães, educado-


ras e educadores e tantos outros mediadores na transmissão cultural
por meio de bens culturais diversos, materiais e imateriais (narrativas
orais, lembranças e causos familiares, festividades vividas nas comu-
nidades, brinquedos cantados, parlendas e adivinhas, brincadeiras
diversas e muitas partilhas lúdicas e poéticas e, sim, o rico legado de
histórias da cultura escrita, registradas em livros e outros suportes,
sem dar conta aqui de esgotar os muitos exemplos possíveis).
Eu lhe entrego fiapos de ficção para que você seja capaz de
simbolizar a ausência e enfrentar, tanto quanto possível, as
grandes questões humanas, os mistérios da vida e da morte, da
diferença entre os sexos, o medo do abandono, do desconhe-
cido, o amor, a rivalidade. Para que escreva sua própria história
entre as linhas lidas. (PETIT, 2019, p. 22)

As narrativas (e também as brincadeiras, não vamos deixar de


sempre lembrar), nos ajudam a ocupar mundos (exterior e interior):

Juliana Daher 47
Para que o espaço seja habitável e representável, para que pos-
samos nos situar, nos inscrever nele, ele deve contar histórias,
ter toda uma espessura simbólica, imaginária. Sem narrativas –
nem que seja uma mitologia familiar, umas poucas lembranças –,
o mundo permaneceria lá como está, indiferenciado; ele não nos
seria de nenhuma ajuda para habitar os lugares em que vivemos
e construir nossa morada interior. (PETIT, 2019, p. 19-20)

O pensamento filosófico nos ajuda a enlaçar este escrito que


parte por uma incursão por muitos quintais Brasis afora e conclui que:
brincar e narrar são originalmente formas de resistir às opres-
sões mais cruéis e estabelecer que a vida deve ser livre e desim-
pedida. A criança – o ser revestido de infância – está em busca
dessa liberdade radical” (NOGUERA; ALVES, 2020, p. 548).

Liberdade radical que se dá em estado de jogo, na esfera


lúdica, num corpo brincante – o jogo, o brincar, é “ele próprio
liberdade” (HUIZINGA, 2005). E como a literatura segue abrindo
muitos atalhos no campo aqui trilhado (narrado e brincado), de
novo convocamos aqueles e aquelas que vivem a ânsia de trans-
por o próprio viver por meio da arte das palavras, caso da já citada
escritora romeno-alemã Herta Müller. Em seu livro de ensaios
sobre escrita, vida e, sim, liberdade, tema presente em sua obra,
ela afirma: “De quanto mais palavras pudermos nos servir, mais
livres seremos” (MÜLLER, 2012, p. 19).
Revestidos com as peles das infâncias, envoltas nas mais
intensas experiências, que, mais do que substantivos, são substâncias
essenciais do viver, vamos descobrimos quem somos desde os primei-
ros anos de vida e também nos aproximamos do outro, ampliamos
sentidos de alteridade, exercitando todo o sentir, de corpo inteiro,
pés sabedores do chão, e nos fazemos libertos, o que não é nada sim-
ples nem pouco em tempos “hostis a uma infância afirmativa, resis-
tente, duradoura” (KOHAN, 2011, p. 240).

48 Juliana Daher
REFERÊNCIAS
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Sesc São Paulo, 2017.
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. Antonio de Padua
Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
BARROS, Manoel de. Menino do mato. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 2001.
COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2005.
FONSECA, Tania Mara Galli; NASCIMENTO, Maria Livia do; MARAS-
CHIN, Cleci (orgs.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Ale-
gre: Sulina, 2015.
FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. Organização e notas de
Ana Maria Araújo Freire. 11. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015 [1995].
HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2005.
INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e
descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.
KIRINUS, Gloria. Synthomas de poesia na infância. São Paulo, Pauli-
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KOHAN, Walter O. Infância. Entre educação e filosofia. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2011.
KOHAN, Walter O. Paulo Freire mais do que nunca – Uma biografia
filosófica. Belo Horizonte: Vestígio, 2019.
LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2019.
LE BRETON, David. Antropologia dos sentidos. Petrópolis: Vozes, 2016.

Juliana Daher 49
MÜLLER, Herta. Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio. São
Paulo, Globo, 2012.
NOGUERA, Renato. O poder da infância: espiritualidade e política
em afroperspectiva. Momento: diálogo em educação, E-ISSN 2316-
3100, vol. 28, n. 1, p. 127-142, jan/abr, 2019.
NOGUERA, Renato; ALVES, Luciana Pires. Exu, a infância e o tempo:
Zonas de Emergência de Infância (ZEI). Revista Educação e Cultura
Contemporânea, PPGE/UNESA, ISSN ONLINE 2238-1279, volume 17,
número 48, p. 533-554, 2020.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
PETIT, Michèle. Ler o mundo: experiências de transmissão cultural
nos dias de hoje. São Paulo: Editora 34, 2019.
PIORSKI, Gandhy. Brinquedos do chão: a natureza, o imaginário e o
brincar. São Paulo: Peirópolis, 2016.
ROMEU, Gabriela. Para habitar o quintal (e o mundo). Blog da Letri-
nhas, São Paulo, 24 ago. 2020. Disponível em: shorturl.at/dBCNU
Acesso em: 24 jan 2021.
ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1984.

50 Juliana Daher
Notas sobre a edição de
livros impossíveis
Jéssica M. Andrade Tolentino

Quando, em 1984, a pesquisadora britânica Jacqueline Rose publi-


cou o livro The case of Peter Pan, or the impossibility of children’s
fiction [em tradução livre: O caso de Peter Pan ou a impossibili-
dade da ficção infantil], a emergente crítica literária infantil se viu
profundamente desafiada. Ancorando-se nos estudos psicanalíti-
cos e tomando como único objeto a história de Peter e Wendy,
Rose argumenta que os livros publicados para crianças obedecem
tão somente aos desejos e fantasias dos adultos que os escrevem
(e os publicam, comercializam, pesquisam e discutem). Em seu
entendimento, os fundamentos da psicanálise freudiana inviabili-
zam a ficção infantil, uma vez que questionam a existência de uma
identidade estável ou unitária, tal como a categoria infância, a ser
endereçada. Dito de outro modo, como pode haver uma literatura

Juliana Daher 53
cuja razão de ser é dirigir-se a um público que só existe virtual-
mente como projeção de seus autores?
Neste ensaio, tomo emprestada da autora a ideia de impos-
sibilidade, embora com pretensões francamente mais modestas.
Sem fidelidade a uma única teoria ou escola de pensamento, nas
páginas que se seguem discorro sobre nossas perspectivas em rela-
ção às crianças (com atenção especial aos bebês) e à literatura que
produzimos e oferecemos a elas, ponderando sobre os desafios de
sua publicação. Escrevo, portanto, a partir do lugar de leitora, pes-
quisadora e eventual editora de livros que ocupo.

Infância, infâncias
A ideia de infância universal, com características essen-
ciais identificáveis, há muito vem sendo questionada. Mais do que
nunca, hoje sabemos que as crianças, tanto quanto os adultos, são
atravessadas por questões culturais, sociais e históricas que as tor-
nam um coletivo amplo e heterogêneo. Como ignorar, por exem-
plo, os contextos econômicos que estruturam a vida de crianças
e tornam suas experiências e oportunidades profundamente desi-
guais? Ou ainda, é factível tomar como análogas as vivências infan-
tis de hoje e as de 2 mil anos atrás? Por tudo isso, muitos de nós
preferimos usar o termo infâncias.
Embora o plural possa resolver parcialmente o dilema, espe-
cialmente dos pontos de vista sociológico e antropológico, outras
questões se impõem. Ora, sabemos que as noções de infância não
se resumem a uma classificação cronológica ou biológica (ainda que
necessariamente passem por aí) e que seu entendimento varia con-
forme variam os tempos e espaços. Ainda assim, afirmamos com
convicção que crianças e adultos pertencem a categorias antagô-
nicas. Não há dúvidas de que ocupamos posições diametralmente
opostas, muito embora dificilmente saberíamos dizer quando ter-
mina uma e começa a outra. Melhor, talvez, seria afirmar que as
crianças são aquilo que nós, adultos, não somos. As infâncias se
definiriam, assim, por oposição, na qualidade de diferentes.

54 Juliana Daher
Implícita nesse pensamento, no entanto, está a centrali-
dade adulta. Ao nos colocarmos como referência, outorgamos às
crianças a condição de “vir a ser”. A criança ainda não é; criança
é promessa, projeção, porvir. Trata-se de uma etapa cujo valor se
volta ao horizonte de suas potencialidades e de nossas expectati-
vas. Mais comuns do que nos damos conta são os discursos que
validam tal premissa. Ouvimos e repetimos como mantra frases
como “as crianças são o futuro” e as usamos para justificar nossas
ações sempre bem-intencionadas.
Infância, etapa inicial de uma linha crescente de desenvol-
vimento que culmina na vida adulta. A ideia de progressão, que não
deixa de ter sua quota de razão, esconde outras problemáticas. Se em
um extremo da vida encontra-se o adulto – sábio, racional, completo
–, por oposição, a criança, no outro extremo, estaria ligada ao irracio-
nal, inconcluso, primitivo. Ser quase humano. Selvagem? Não à toa, fre-
quentemente as conversas sobre infâncias vêm acompanhadas de um
vocabulário cheio de conceitos como controle, disciplina, autoridade e
limite. Com isso, além de ignorar seu valor no presente, legitimamos a
ideia de dominação: por sua natureza, a criança requer de nós uma atu-
ação no sentido de educar que, em muitos casos, se torna sinônimo de
domar, domesticar ou subjugar. Felizmente, outros caminhos existem.
Definida, classificada, colonizada pelo olhar adulto, a criança
ainda nos escapa. Apelamos para o plural, para a relativização, para a
alteridade e para o controle, e mesmo assim falhamos em entender
as infâncias ou ao menos delinear os seus contornos. Já dizia Cecília
Meireles, “Tudo é misterioso, nesse reino que o homem começa a
desconhecer desde que o começa a abandonar” (1985, p. 30).

O bebê, esse desconhecido


No extremo desse mistério encontram-se os bebês. Acon-
tecimento inaugural, o recém-nascido nos põe frente a frente ao
mais indeterminado e desconhecido de nós. Quando começamos?
Quando sabemos que existimos e que somos? Quando tomamos
consciência do eu e do outro? Nem é preciso ir muito longe nas

Juliana Daher 55
perguntas. Mesmo o mais banal em nós se faz abismo nos nossos
pequenos. O bebê chorou, o que quer? Tem fome ou sede? Sente
dores? Se contorce, o que quer expressar? Ouve uma voz conhe-
cida, ri, mexe as mãozinhas, pede colo. Será que sente saudades?
Incógnita. Lemos as pistas, inferimos, tentamos adivinhar e muitas
vezes acertamos. Mas ainda há tanto que insiste em nos escapar…
Mesmo assim, porque bebês existem e habitam entre nós,
nos esforçamos para decifrá-los como a um enigma. Desde os
conhecimentos forjados na observação empírica e intuitiva de pais
e cuidadores até as conclusões mais sistemáticas de pesquisadores
e cientistas, contamos hoje com o auxílio de um imenso arcabouço
de informações que, se não solucionam nosso mistério original, ao
menos nos amparam em nossas lidas com bebês e crianças bem
pequenas. Os discursos são os mais variados: vão da pediatria à psi-
cologia, psicanálise, pedagogia e até o direito.
Esse boom de interesse pelos bebês tem origem recente.
Até a primeira metade do século XX, pouco se falava sobre a pri-
meiríssima infância. Conforme o psiquiatra e psicanalista francês
Bernard Golse (2014), os bebês poderiam facilmente ser reduzidos
a “tubos digestivos”, já que a grande preocupação dos estudiosos
limitava-se às suas atividades alimentares. A mudança de paradigma
– da alimentação para o sujeito – só teve início com o fim da Segunda
Guerra Mundial. De seres passivos, os bebês passaram a ser vistos
como atores de seu próprio desenvolvimento. Como contrapartida,
a imagem desvalorizada cedeu lugar à idealização. Golse explica:
Contra o pano de fundo de uma certa culpa por parte dos adultos
em relação aos bebês, eles foram então descritos como autên-
ticos “super-homens”, já sabendo fazer tudo e entender tudo,
novos heróis dos tempos modernos e os principais depositários
de nossas últimas utopias...¹ (GOLSE, 2014, p. 2)

1 No original: Sur le fond d’une certaine culpabilité des adultes à l’égard des bébés,
ceux-ci ont alors été décrits comme d’authentiques « supermen », sachant déjà tout
faire et tout comprendre, nouveaux héros des temps modernes et dépositaires
principaux de nos dernières utopies…

56 Juliana Daher
Onde residiria, então, a “verdade” dos bebês? Para o pesqui-
sador francês, o mais adequado seria falar em competências poten-
ciais, as quais permanecem adormecidas até que situações específi-
cas forcem sua manifestação. Todavia, a natureza e a funcionalidade
dessas competências permanecem indecifráveis. Alternativamente,
Golse propõe outra explicação: em algum lugar entre o tubo diges-
tivo e o super-homem devem se encontrar os bebês, embora a loca-
lização exata seja difícil precisar.

A linguagem dos bebês


Parte de nossas incertezas em relação à primeira infância
provém de determinantes linguísticos. Olhamos para os infantes –
aqueles que ainda não falam – e enxergamos uma fenda. Escutamos
seus balbucios e identificamos neles o apetite por palavras, mas
aceitamos que essa é uma fome para a qual não há pressa. Porque
entendemos que a linguagem não se realiza plenamente nos pri-
meiros meses de vida e este período se torna uma espécie de hiato
entre o que não existe e o que está para existir. Sujeitos de lingua-
gem que somos, nos perguntamos: os bebês são?
Esse questionamento parece perder lugar à medida que novos
debates se fazem prementes. Pouco a pouco nos abrimos para a sur-
preendente sensibilidade linguística das crianças desde seus primeiros
dias de vida. Ora, que os bebês sejam sensíveis a estímulos verbais não
é exatamente uma novidade. É fácil notar, por exemplo, como a voz
da mãe (tanto por seu ritmo e entonação, quanto por suas palavras) é
capaz de confortar o bebê que chora e fazê-lo sorrir. Os comentários
afetuosos que lhes são dirigidos, as brincadeiras de linguagem (mui-
tas vezes desprovidas de sentido), as confidências murmuradas pelas
mães na intimidade com suas crias, os acalantos acompanhados de ges-
tos e afagos… Todas as trocas linguísticas espontâneas entre bebês e
seus cuidadores lhes afetam e tocam no mais íntimo.
O que as últimas décadas trouxeram de novo para a discus-
são é que esses estímulos são fundamentais para o desenvolvimento
sociocognitivo. Em outras palavras, constatamos recentemente que

Juliana Daher 57
a linguagem é capaz de estimular a vida mental das crianças, influen-
ciando sua cognição e subjetividade, assim como suas percepções do
ambiente social, das pessoas e de si mesmas.² Como escreve Miller, “a
linguagem transforma o indivíduo humano até em seu corpo, no mais
profundo de si mesmo, transforma suas necessidades, transforma
seus afetos” (MILLER, 1998, p. 34 apud LIMA, 2017, p. 57).
Em contrapartida a essa extraordinária constatação, o que
se segue é uma verdadeira corrida para encorajar a (inseparável)
relação entre bebês e sua língua materna. Cuidadores, educadores
e demais especialistas em infância, amparados principalmente por
estudos linguísticos e cognitivos, vêm arquitetando estratégias des-
tinadas a potencializar essa relação, na esperança de que, ao fazê-lo,
estaremos favorecendo o desenvolvimento dos pequenos. Obvia-
mente, quanto mais estímulos produzimos, mais nos impressiona-
mos com as respostas dos bebês, o que, por sua vez, serve como
confirmação de sua prodigiosa aptidão linguística, bem como da efi-
cácia de nossas ações.
Como efeito colateral, presenciamos (provocamos?) o cres-
cimento de uma certa ansiedade em torno da ligação bebê/lingua-
gem. O recente fenômeno midiático das crianças com articulação
de fala precoce ilustra bem o argumento. Nos maravilhamos com a
“super-habilidade” alheia ao mesmo tempo que esperamos (exigi-
mos?) dos nossos ligeireza semelhante. Trocamos o “vir a ser” pelo
“ainda não”. Mudam-se os parâmetros e a urgência se faz regra.
Não apenas necessitamos agora de estratégias mais elaboradas,
como também de ações cada vez mais prematuras.
E é assim que, na esteira do movimento descrito por Golse
(2014), vemos os bebês passarem de seres “pré-linguísticos” a verda-
deiros sujeitos da palavra. Celebramos sua aptidão natural ao mesmo
tempo que, condescendentes, admitimos que somente o incentivo
sistemático e rigoroso pode fazê-la desabrochar. Despertar a lingua-

2 Em Los libros, eso es bueno para los bebés (2008), Marie Bonnafé descreve sua
experiência à frente da associação francesa ACCESS, por meio da qual pôde atestar
a validade e a extensão dessas descobertas.
58 Juliana Daher
gem neles adormecida é a nova missão dos adultos, sob ameaça de
prejudicar seu desenvolvimento intelectual e psíquico. Já não se trata
mais de acompanhar sua entrada nesse mundo de linguagem que os
precede e de assisti-los na apropriação de estratégias – as reconheci-
das por nós e as inventadas por eles – de interpretação, significação e,
naturalmente, de subjetivação. Trata-se agora de engendrar circuns-
tâncias propícias para que bebês e crianças bem pequenas manifes-
tem, irremediavelmente, suas competências potenciais.
O risco que se corre com a pressa da produtividade é trans-
formar os bebês não em sujeitos de linguagem, mas em sujeitados.

A literatura e os bebês
Se é verdade (e as pesquisas nos dizem que sim) que a lin-
guagem é elemento fundamental para o desenvolvimento psíquico
e cognitivo das crianças, é mais do que natural que queiramos enco-
rajar essa potente relação, explorando-a de maneiras variadas e
fecundas. De um jeito ou de outro, desconfio, tal desejo nos levaria
à literatura, arte em que a palavra se faz mais humana: imprecisa,
ambivalente, plural, indômita. Assim, no afã dos debates sobre lin-
guagem e primeira infância, redescobrimos a literatura. Chamo de
redescobrimento o movimento de reencontro com suas potenciali-
dades e com tudo aquilo que ela pode despertar nos leitores.
Como arte que se constrói na e pela linguagem, a literatura
nos convida a acessar mundos alheios feitos de signos; construir e
partilhar sentidos é a possibilidade que nos oferece. A experiência
da fabulação nos desloca à posição de forasteiros, exploradores de
terras por conhecer. Como descreve Michel de Certeau, “ler é pere-
grinar por um sistema imposto (o do texto, análogo à ordem cons-
truída de uma cidade ou de um supermercado)” cuja pluralidade
indefinida nos permite criar estratégias para explorar e negociar
suas significações (1998, p. 264).
A condição de leitor é também análoga à dos bebês que,
chegando a um mundo de linguagem preexistente, são convoca-
dos a decifrá-lo. Espera-se que a criança, assim como o leitor, seja

Juliana Daher 59
capaz de reconhecer o sistema de signos que a cerca, de apreen-
dê-lo, interpretá-lo e, quem sabe, interrogá-lo. Significar a lingua-
gem ao mesmo tempo que ela nos significa, essa é a promessa
da literatura e é também o chamado dos bebês. Dessa maneira,
quando voltamos os olhos para nossa própria experiência como
leitores, somos surpreendidos pelas arestas que unem o universo
literário às infâncias.
Fascinados por essa constatação (e talvez um pouco culpa-
dos de tê-la ignorado por tanto tempo), somos uma vez mais captu-
rados pela ansiedade do produtivismo. A leitura literária se converte
em catalisador do contato, engajamento e, principalmente, da apro-
priação da linguagem pelos bebês. Literatura como caminho vanta-
joso para se chegar ao letramento. Ler com crianças bem pequenas
para que desenvolvam habilidades linguísticas precocemente, para
acelerar o aprendizado da língua (oral e escrita), para que se tornem
leitoras competentes e escritoras habilidosas, para que se conver-
tam em adultos criativos, para que adquiram prontamente uma ou
outra aptidão considerada justa e necessária, para que desenvolvam
competências psicossociais sem demora, para que se tornem mais
empáticas, compassivas, humanas, melhores.
Na era da tecnocracia, não surpreende que até os bebês
sejam atormentados pela exigência da produtividade. “Os demô-
nios da rentabilidade”, assim descreve Marie Bonnafé (2008) a
nossa inclinação ao utilitarismo. Embora em seu livro ela se con-
centre nas pressões do aprendizado precoce e no uso instrutivo
da literatura, seu argumento pode ser estendido a outras faces da
rentabilidade. No que toca à produção editorial, por exemplo, a
promessa de aquisições aceleradas se converte em oportunidade
de ganhos econômicos. Não há dúvidas de que monetizar qualquer
coisa que não se preste à quantificação produtivista seja tarefa
mais exigente. Mas a que custo?
Creio que escapar à lógica da lucratividade a qualquer
preço seja imperativo, se não quisermos sujeitar os bebês a um
sistema que já não se sustenta. No âmbito da mediação, isso possi-

60 Juliana Daher
velmente passa pela substituição do pragmatismo pela ordem dos
afetos. Ler com crianças bem pequenas para criar circunstâncias
que sejam propícias à partilha desmedida. Possibilidade de encon-
tro que não busca resultados nem mensura. Ao invés de acelerar
o tempo, fantasiar sua suspensão, subvertê-lo. Ler como quem
brinca. Luiz Percival L. Britto explica:
Brincar aqui é projetar-se livremente em direção ao nada, ima-
ginar, transformar, criar formas – sons e sentidos – com o puro
prazer de fazer, sem fim ou finalidade – o lúdico. O inusitado se
aparece diante do leitor, que mastiga sons, que tateia imagens,
que escuta cores – tudo isso instado pelas palavras que se enun-
ciam, pelo imaginário que corrompe o tempo e inverte aconteci-
mentos imaginários em reais. (BRITTO, 2018, p. 25)

Já no âmbito da produção editorial, em que o dinheiro é


a língua mais falada (e como não, em um mundo como o nosso?),
a saída se complexifica. Não basta apelar para um certo compro-
misso moral ou ético, isto é, exigir que a indústria editorial assuma
a sua fatia de responsabilidade no que cabe à preservação da dig-
nidade das infâncias. Para isso, antes de mais nada, seria necessá-
rio admitir os danos do produtivismo. Quantificar os prejuízos, se
quisermos usar expressões mais condizentes com esse universo.
Tarefa igualmente exigente.
E, quem sabe, apostar na ordem dos afetos com a espe-
rança de propiciar experiências mais orgânicas e, por isso mesmo,
mais sólidas e duradouras? Como sugere Daniel Goldin, talvez “aqui,
como no amor, quem mais dá mais recebe” (2012, p. 118). Na raiz
dessa conversa está também nosso compromisso com a formação
de leitores, condição primordial para nossa sobrevivência – como
editores e como sociedade.
Em lugar de respostas definitivas, permanecem as interrogações.

Esses livros impossíveis


Espaço privilegiado da literatura em nossa cultura, os livros
vêm sendo deslocados ao centro dos debates sobre a primeira infân-
Juliana Daher 61
cia. Nos voltamos a eles com o espanto da descoberta, como o leitor
que, diante de uma leitura arrebatadora, deseja compartilhar suas
impressões. Apreciamos, defendemos, propagandeamos ao ponto
de transformar os livros para bebês em novo imperativo do nosso
tempo. Penso na minha própria infância, na escassez de livros em
meu entorno (especialmente os literários), e inevitavelmente me
pergunto: como cheguei até aqui?
Sejamos realistas, os livros não fazem parte das necessida-
des primárias dos bebês. A palavra, sim, palavra falada, cantada,
compartilhada no regime dos afetos, é primordial, já sabemos.
Quanto a isso, Britto (2018) é taxativo: as crianças podem prescindir
do texto escrito por um bom tempo (mais ou menos até os quatro
anos de idade) sem que tenham prejuízos afetivos ou mesmo cog-
nitivos. Mais do que da palavra escrita, o bebê necessita das intera-
ções com o outro. A voz humana é o texto que ele significa.
É Britto também quem admite que os livros, mesmo que não
sejam uma necessidade, são para a primeira infância uma extraor-
dinária possibilidade. Porque guardam um registro da palavra que
difere de seus usos cotidianos; estruturas, vocabulário, gêneros,
tempos outros. Ao contrário da linguagem da comunicação que nos
leva a referenciais conhecidos, a língua da fabulação abre espaço
para o que não é familiar e instaura uma organização simbólica que
só existe na ficção. Além disso, a leitura compartilhada pressupõe
uma espécie de performance que vai desde a preparação do espaço
até a entonação da voz e o manuseio das obras. A circunstância que
os livros oferecem é única. Volto uma vez mais à minha infância e
não deixo de imaginar como teria sido contar com eles como (mais
uma) possibilidade de partilha entre mim e os meus.
Diante de tantas promessas, os profissionais ligados ao cir-
cuito editorial – escritores, ilustradores, designers, editores, livrei-
ros e mediadores – são convocados a olhar para esse público antes
tão negligenciado e a se reformularem, seja por um genuíno senso
de responsabilidade com o novo leitorado e/ou por motivações
econômicas. Como estratégia, muitos de nós nos voltamos para as

62 Juliana Daher
discussões e pesquisas sobre a primeira infância em busca de parâ-
metro ou norte. À medida que novos estudos são conduzidos e suas
conclusões se tornam públicas, vamos nos adaptando, refinando os
critérios de qualidade e aprimorando nossos ofícios.
É fácil notar como as discussões sobre o tema impactaram
o mercado editorial. A começar pela própria oferta de livros para
bebês e crianças bem pequenas que, até pouco tempo, era limitada
em termos de qualidade e numericamente irrelevante. Acreditava-
-se então que a leitura na primeiríssima infância era exclusivamente
sensorial e motora, por isso as experimentações se restringiam à
materialidade. Predominavam obras que estimulam o manuseio
(por exemplo, com botões, partes destacáveis, superfícies com
relevo, aplicação de pelúcia ou outras texturas, livros com fantoche,
chocalho e mordedor), produzidas com materiais os mais diversos
(plástico, tecido, papel cartonado, emborrachado) e que contam
com recursos sonoros. Via de regra, os textos eram secundarizados
e as ilustrações reduzidas a uma função principalmente referencial.
Objetos lúdicos, sem dúvida; literários, talvez.
À medida que os debates foram se aprofundando, pudemos
notar uma progressiva mudança na oferta editorial, seja pela multipli-
cação de títulos ou por sua diversificação. São incontáveis os estudos
que apontam para a importância de se explorar textos e ilustrações
tanto quanto a materialidade dos livros. Já se sabe, por exemplo,
que a palavra pode se complexificar e que outros gêneros, incluindo
poemas e narrativas, devem fazer parte do repertório do bebê. Há
também reflexões sem fim sobre o papel das ilustrações nos livros
infantis, as quais convergem para um argumento comum: as imagens,
mais do que mera repetição, podem adquirir funções diversas, sendo
capazes de acrescentar profundidade simbólica às obras.
Outras áreas além da pedagogia e da literatura também
colaboraram significativamente para o debate, tais como a psicolo-
gia cognitiva e a neurociência. Além de prover evidências científicas
sobre os benefícios da leitura, as pesquisas auxiliaram na compreen-
são dos estágios de desenvolvimento das crianças desde os primei-

Juliana Daher 63
ros dias de vida. A classificação das etapas de competência leitora,
uma prática bastante comum nos meios editorial e pedagógico, é
em grande medida amparada por tal arcabouço científico.
Todas essas discussões têm nos servido de norte para a
criação e a escolha de livros. Um exemplo disso é o trabalho desen-
volvido por Teresa Colomer e Cristina Correro (2015). Segundo as
autoras, a qualidade dos livros para bebês deve ser medida tanto
em termos estéticos quanto em sua adaptação aos estágios de
desenvolvimento psicológico dos leitores. Questões como número
de palavras, gênero literário, relação texto/imagem, quantidade de
personagens, foco narrativo, sequenciamento, ambientação e tem-
poralidade devem apresentar complexidade progressiva de acordo
com a idade e a capacidade de compreensão das crianças.
É inegável que as pesquisas tenham favorecido nossa rela-
ção com os bebês e tudo o que envolve esse universo, incluindo a
leitura. Todavia, ainda que os esforços nos levem mais e mais pró-
ximos daquilo que chamo de “a verdade dos bebês”, estaremos
sempre tangenciando-a. Penso que sua força de indeterminação
se impõe como obstáculo. Conforme Rose (1993), a ideia de que
podemos conhecer o Outro (nesse caso, os bebês) objetivamente e
à parte de nós mesmos, de nossas projeções e desejos, é falaciosa.
Para atravessar a distância – quase ruptura – que separa adultos de
crianças, seria preciso derrotar o inconsciente e sua face materia-
lizada na linguagem. Para Rose, nossas tentativas não passam de
perseguição, busca ou mesmo sedução.
Tampouco se pode desconsiderar a diversidade daquilo que
chamamos de infância, com todos os seus atravessamentos bioló-
gicos, socioculturais e até políticos. Mesmo as questões mais cien-
tíficas (e por isso consideradas mais objetivas), como a progressão
do desenvolvimento cognitivo e psíquico, podem ser relativizadas
quando acrescentamos à equação outros elementos. Se a categori-
zação nos ajuda a ordenar o mundo e a sistematizar nossas ações, ela
também nos confunde ao mascarar sua artificialidade frente a nossa
natureza caótica. Pluralidade é o que nos define, adultos e crianças.

64 Juliana Daher
Eis, portanto, o que chamo de impossibilidade: identificar,
editar e publicar livros feitos sob medida para os desejos (que infe-
rimos), necessidades (que estabelecemos) e competências (as que
logramos detectar) dos bebês. Mais do que um desafio, considero
a tarefa impraticável. Não porque a leitura com a primeira infân-
cia seja impossível ou desaconselhada, mas porque a incumbên-
cia outorgada a editores se assenta em uma premissa improvável.
Isto é, que somos capazes de acessar as demandas de cada sujei-
to-bebê e de unificá-las em um conjunto mais ou menos estável de
características. E mais, que se considere plausível precisar o que é
melhor para eles.
Por isso, argumento que o livro ideal, criado na medida
exata das competências, desejos e necessidades dos bebês,
é uma ficção. Seja porque as crianças são diversas (mesmo as
mais novas!) e seus gostos e preferências mudam de sujeito para
sujeito, seja porque nunca acessaremos completamente os seus
pensamentos. Como bem observa Agamben (2017, p. 15), “deve-
mos parar de fingir que sabemos o que é uma criança. (...) Tudo
o que sabemos da criança é que ela torna inútil tudo aquilo que
acreditamos saber sobre o homem”.
Isso não nos exime de continuar experimentando. A cons-
ciência de nossa limitação serve apenas como lembrança de que
preservar as alteridades pode ser desafio mais interessante que o
empenho em cercá-las a todo custo. Talvez porque minha condição
de editora literária me desvencilhe (ao menos em parte) da obediên-
cia à ciência, à pediatria e à psicologia infantil, tomo a liberdade de
aceitar o acontecimento infância como mistério original.
Livre de tal obrigação, posso passar a outras questões.
Sendo a literatura uma arte do estranhamento, por que negar aos
bebês a experiência da incompreensão, do susto diante do desco-
nhecido? Especialmente nessa etapa em que o mundo é floresta a
desbravar! Nem tudo é compreensão no reino da leitura. Além disso,
em um mundo obcecado pela transparência, abrir espaço para as
sombras não parece má ideia. Assim, se não queremos que os impe-

Juliana Daher 65
rativos da clareza limitem a experiência leitora (em qualquer idade),
precisamos acolher as interrogações.
Sigo acreditando que a saída passa pela diversidade. Editar e
mediar livros para bebês que deem conta do seu entorno, que falem
do que é familiar, mas também daquilo que é estrangeiro. Obras do
tipo “primeiras palavras”, que ajudem as crianças a nomear o mundo
material, e aquelas que lhes dizem do que não se toca nem se vê,
oferecer-lhes abstrações. Poemas, narrativas mais ou menos com-
plexas, com ou sem palavras, personagens de todo tipo, narradores
de toda ordem… Livros publicados por editoras grandes, médias,
pequenas e minúsculas, cujas perspectivas sejam as mais variadas.
Livros-brinquedo, livros-objeto, livros de imagem, livros ilustrados e
sem ilustração, que não percam de vista a dimensão artística e lite-
rária. Obras pequeninas que caibam nas mãos dos bebês e também
as maiores, em cujas páginas eles possam mergulhar.
Publicar livros que cresçam junto com os bebês, essa sim
me parece uma missão justa para os editores de literatura. Obras
que não almejem a compreensão imediata e que, por seu enigma,
convoquem as crianças a novas leituras. Que acolham a pluralidade
e celebrem nossa existência sinuosa e pouco linear; que não deem
conta de tudo o que somos e, por isso mesmo, nos permitam fanta-
siar o que poderíamos ser. Por tudo isso, faço minhas as palavras de
Érica Lima, “insisto na diversidade e aposto na criança” (2017, p. 60).

66 Juliana Daher
Referências
AGAMBEN, Giorgio. [Sem título]. In: FENATI, Maria C. (org). Revista
Gratuita, vol. III, 2017, pp. 14-15.
BRITTO, Luiz Percival L. Ler com crianças. Revista Exitus, 8(3), 17-31, 2018.
BONNAFÉ, Marie. Los libros, eso es bueno para los bebés. Trad. por
Lirio Garduno e Jean Pierre Buono. Barcelona/Cidade do México:
Océano, 2008.
CERTEAU, Michel de. Ler, uma operação de caça. In: A invenção do
cotidiano: artes de fazer. Trad. por Ephraim Ferreira Alves. Petrópo-
lis: Editora Vozes, pp. 259-275, 1998.
CORRERO, Cristina; COLOMER, Teresa. Elecciones y constitución de
acervos en la Educación Infantil. Criterios y condiciones de selección
de Libros’. In: BAPTISTA, M. C. et al. Literatura na Educação Infantil:
acervos, espaços e mediações. Belo Horizonte: Universidade Fede-
ral de Minas Gerais/ Ministério da Educação, pp. 59-80, 2015.
GOLDIN, Daniel. Os dias e os livros: divagações sobre a hospitalidade
da leitura. São Paulo: Pulo do Gato, 2012.
GOLSE, Bernard. Le développement psychique précoce: de la concep-
tion au langage. Issy-les-Moulineaux: Elsevier Masson, 2014.
MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3a edição. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
LIMA, Érica. Por que ler para crianças tão pequenas - ou o que pode
uma criança? In: LIMA, É; FARIAS, F.; LOPES, R. As crianças e os livros:
reflexões sobre a leitura na primeira infância. Belo Horizonte: Fun-
dação Municipal de Cultura, pp. 52-61, 2017.
ROSE, Jacqueline. The Case of Peter Pan, or the impossibility of chil-
dren’s fiction. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1993.

Juliana Daher 67
Por que o livro
para bebês e crianças
pequenas?
Carolina P. Fedatto

Tudo isso para dizer que no princípio não era o verbo, e sim a voz.
E o espanto, a intriga.
Michèle Petit

Os começos
Começar. Primeiros contatos, primeiras sensações, primeiros
gestos, primeiros movimentos. Fora e dentro. Contorno. Algo se
imprime nos começos do corpo. Pelos poros, pela pele, pela boca,
pelos olhos e ouvidos. No início da vida, vive-se de primeiras vezes.
De surpresa, de espanto, de enigma. Tudo é sentido e dito de fora,
ouvido. O mundo entra! Mas o que ele significa?

Juliana Daher 71
A infância, que etimologicamente carrega a negação, a falta,
a ausência – infans, aquele que não fala –, para além do foco na
capacidade de falar, pode ser entendida como condição da lingua-
gem (AGAMBEN, 2005, p. 67). Para falar é preciso... hiato, vazio, não
correspondência entre a percepção e a coisa, entre a imaginação
e o objeto. Isso não se ensina, mas se transmite, se vive e se expe-
rimenta. Daí vêm as palavras, os símbolos: no lugar do objeto. E,
embora os objetos existam apesar da nossa vontade ou condição
de nomeá-los, nossa relação com eles se dá sempre e somente pela
linguagem, via simbólico e imaginário.
A experiência da infância evidencia essa condição humana –
de não ter acesso direto ao real –, mas ela vai se decantando ao longo
da vida e produzindo a ilusão de que algumas palavras são adequadas
a determinadas coisas, de que elas sempre existiram ou sempre sig-
nificaram o que sabemos que significam. Isso acontece com a pala-
vra livro. Na etimologia, ela vem de liber, designando uma camada
fibrosa entre a casca e o tronco da árvore. Antes do latim, o termo
indo-europeu leubh significava ‘tirar uma camada, descascar’. Essa
ação nomeou um lugar, que poderia não ter tido nome... Esse lugar,
por sua vez, foi transformado em objeto (papiro, pergaminho, papel)
e assumiu uma função, um uso: o de ser suporte para a escrita.
Vamos nos esquecendo dessa lenta e ininterrupta constru-
ção histórica, social, política e cotidiana que é a linguagem. E que
ela participa da integração dos objetos e suas interpretações no uni-
verso humano. No caso da escrita e do livro, sabemos muitas coisas
interessantes. Sabemos que o livro existiu de várias formas: como
rolos de pergaminhos, como códice, caderno de folhas costuradas,
como página eletrônica que se rola para baixo ou se arrasta para o
lado (HANSEN, 2019). A história é longa e ainda não terminou! Sabe-
mos que a escrita surgiu como uma necessidade de registrar e admi-
nistrar a vida pública nas grandes cidades antigas, mas que ela dá
existência, forma e destino a muitas outras necessidades humanas,
como a de informação, de descobertas, conhecimentos, percepções
e de literatura. Esta última belamente entendida como

72 Juliana Daher
o lugar onde se pensam as palavras; as palavras coletivas e,
portanto, e também, as palavras privadas. A literatura é o lugar
onde se constrói o sentido e o significado da existência, ou seja,
o lugar onde se dá nome a isso que chamamos de realidade. Uma
árvore existe. A realidade árvore é algo que o homem constrói.
A realidade é a forma humana de relacionar-se com o existente.
Quando pensamos ou dizemos uma palavra construímos uma
realidade. Quando pensamos ou dizemos uma frase construímos
o sentido de uma realidade, ordenamos a existência, a tornamos
humana, a tornamos acessível, criamos uma ordem de relação
com ela. (BÉRTOLO, 2014, p. 127)

As palavras são de todos, mas é preciso se apoderar delas,


é necessário que elas nos dêem corpo, que signifiquem a vida, que
passem pela nossa voz. Falar é, portanto, dar contorno ao mundo.
Falar é ler o mundo, ler os outros para, depois e simultaneamente, ler
e produzir palavras, símbolos, sons, imagens. Essa é uma maneira de
compreender como começa a história do leitor, uma pergunta que se
faz Yolanda Reyes (2010) no prefácio de sua Casa Imaginária. A história
do leitor começa justamente no fato de que somos lidos, interpreta-
dos, escritos. E é por isso que, no livro, podemos ser acolhidos em
nossa sede de encantamento, de significação e de reencontro.
Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espeta-
cular é sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo.
O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone
é a extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada,
extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é
uma extensão da memória e da imaginação. (BORGES, 2002, p. 13)

Tendo tudo isso em vista, busco elementos que possam nos


ajudar na compreensão das relações possíveis entre os bebês e os
livros como ferramentas da fantasia, da significação, da ausência.

O bebê e suas leituras


Aprendemos com os psicanalistas que o bebê precisa do outro,
é no outro, se conecta com o corpo do cuidador, se faz extensão desse

Juliana Daher 73
corpo, nele encontrando a si mesmo e o mundo. Nesse gesto, o bebê
interpreta quem o materna, lê seu rosto, suas expressões, reações, rit-
mos, sensações. O simbólico encontra aí lugar e passagem.
Pelos estudos de Spinoza, Nietzsche, Freud, Winnicott e
tantos outros, sabemos que o cuidado com os aspectos físicos e
cognitivos do desenvolvimento infantil não basta, é preciso tam-
bém considerar a esfera afetiva e sensível do permanente processo
de maturação humano. Na trilha de Vygotsky, o filósofo, educador
e psicólogo espanhol Angel Pino (2005), por exemplo, fala sobre
a indissociação e simultaneidade do duplo nascimento humano: o
natural e o cultural são articulados. O mundo é estranho porque
nossos recursos de percepção são sempre insuficientes para apre-
ender a diversidade cultural humana (PINO, 2005, p. 55). O mundo
sempre será estranho – não só para quem acaba de chegar –, por-
que o desencontro entre a realidade e suas interpretações é perma-
nente, complexo, reatualizado. E é justamente isso que nos impele
a falar, formular, inventar, redizer, de novo e com outras palavras,
outros traços, cores, gestos e arranjos: nossos, próprios, singulares
e históricos, coletivos, sociais.
Sabemos que, para acederem ao universo humano, os
bebês precisam ser envolvidos pela voz do outro em todas as suas
dimensões: conversas, relatos, descrições, narrações, canto – para
eles, com eles e deles. Pergunto, assim, quando e como o livro pode
chegar na vida do bebê? Evélio Cabrejo-Parra (2011), renomado psi-
colinguista colombiano radicado na França, diz que primeiro o bebê
aprende a musicalidade da língua, sua prosódia. Aos poucos, ele
percebe que esse canto da linguagem também serve para particula-
rizar e nomear as coisas. Falamos com o bebê do que se apresenta,
do que se aponta e do que está ausente, do que já foi ou será.
Por trás de tudo isso está um problema de linguagem, e o destino
do ser humano, de todo menino e toda menina, depende da lin-
guagem, da língua. Quando a língua anda bem, as coisas andam
bem, se a linguagem está unicamente na língua cotidiana e não
está na língua da literatura que permite organizar um imaginário
muito mais rico, mais complexo, o destino deste ser humano não
74 Juliana Daher
será o mesmo. Todo bebê sai do ventre da mãe para cair no ventre
da língua, e desse ventre não sai nunca, esse ventre tem muitas ou
poucas possibilidades, muitas alegrias e muito sofrimento. A lín-
gua é generosa, ainda quando não fazemos absolutamente nada,
pelo menos temos nosso nome e sobrenome, nossa data de nasci-
mento e de morte, e esse é o romance mais curto que a língua nos
permite. Entramos em algo que finalmente existia antes de vir ao
mundo, entramos na língua, nós vamos, e a língua continua, e ela
nos contém para sempre. (CABREJO-PARRA, 2011, p. 43)

Nesse sentido, o autor assinala que oferecer histórias aos


bebês e às crianças é colocá-los em posição de escuta. E escutar é
compreender algo à sua maneira – passo importante para a elabo-
ração de si e dos acontecimentos. Ele afirma ainda que o rosto e a
voz são nossa primeira leitura. O bebê lê... um livro sem páginas: a
história de quando nasceu, o que acontece naquele dia, adultos que
contam casos, cantam, riem, choram, se espantam... Ele lê a voz,
que deixa uma primeira marca literária no bebê, uma marca poé-
tica. Não se trata do que as palavras dizem, mas de como soam. E
as crianças pequenas são ouvintes poéticos: canções de ninar são
dramáticas, como a literatura e as histórias de tradição popular. Elas
dizem coisas terríveis, mas com linguagem cuidada, ritmada, lúdica,
o que as faz suportáveis, transponíveis, reinventáveis. Cabrejo-Parra
diz que as histórias são usos mágicos da palavra: lembrar o que não
está, curar, ensaiar uma voz, inventar, pensar, operar com signos
e com o invisível. Na voz que conta está a presença simbólica do
outro, daquele que nos deu a sonoridade da linguagem. Esse outro
se transforma em companheiro interno: é o que permite falar con-
sigo mesmo, olhar a vida como uma história que se conta, um livro
que se lê e se escreve...
O psicolinguista entende, assim, que o psiquismo se realiza
em três movimentos que fazem parte de uma atividade de leitura.
Primeiro, lemos informações que vêm do outro, do mundo dos afe-
tos: do amor, da raiva, do reconhecimento, da mentira. Em segundo
lugar, usando nossos sentidos, lemos informações do mundo físico,
externo. E, como consequência dessa relação outro-mundo, um eu

Juliana Daher 75
advém e podemos ler algo do mundo interno, aquilo que cada um
experimenta por si só. Para ele, a intersubjetividade participa da
criação do nosso livro interno, metáfora que entende o objeto livro
como um espelho, um eco (ou uma ponte) de necessidades e vivên-
cias interiores (CABREJO-PARRA, 2012, p. 32).

Quando o livro chega


Acalantos e histórias sobre separação e medo, sobre a
dureza do início da vida de mães e bebês são recorrentes em todas as
culturas. Observamos que em diversos lugares e tempos a humani-
dade inventou jogos de triangulação, que favorecem a organização
psíquica do bebê, como chocalhos, brinquedos e livros. O livro pode
chegar, portanto, como um objeto que permitirá não mais apenas o
olhar face a face, mas o olhar conjunto para um mesmo objeto da
cultura que simboliza e dá acesso a grandes questões humanas.
Sabemos que nas brincadeiras de vai-e-vem e de esconder
um objeto ou o rosto, os bebês encenam a dor pela separação da
mãe e a alegria por reencontrá-la. Freud (1920/2010), em Além do
princípio do prazer, analisa com grande sensibilidade o comporta-
mento das crianças nessas brincadeiras e a ambivalência de seus
sentidos. Talvez essa análise freudiana seja uma das precursoras da
compreensão do brincar como uma atividade fundamental para a
constituição do sujeito, como uma forma de linguagem e como um
modo de elaborar o desamparo, as angústias, as perdas e os sofri-
mentos da vida. Ora, encontramos nos livros destinados a bebês e
crianças diversas formas de lidar com esses sentimentos, seja pela
temática diretamente, seja pelas relações com a imagem (estética,
técnica, cores) ou pelo modo mesmo de construção do objeto livro
(virada de página, formato, direção de leitura, dobras).
Um pequeno retângulo amarelo com um pássaro lilás de
grandes olhos. O que tem aí? é a pergunta que intitula o livro de
Rosinha lançado em 2018 na Coleção Literatura de Colo da editora
Jujuba. Curioso como essa questão se coloca diante de todos os
livros: abrimos um livro porque queremos saber o que ele guarda, o

76 Juliana Daher
que nele se esconde... E essa pergunta se repete, a cada virada de
página, vinda de personagens diferentes que descobrimos escon-
didos atrás de grandes abas. Um livro que propõe diversas brinca-
deiras de esconder e achar, de contar, de acumular, de adivinhar.
Ele permite que crianças pequenas vivenciem as emoções do ines-
perado, do não-sabido, da surpresa, tanto na concretude do objeto
quanto na fantasia da narrativa.
Michel Melot, grande bibliotecário francês, diz que o livro é um
objeto que “nasce da dobra”. É ao dobrar uma folha de papel ao meio
que o livro instaura a possibilidade de conter o tempo; nasce, assim, um
antes e um depois, uma possibilidade de ir e voltar – o que não acon-
tecia com os textos em forma de rolo que exigia a leitura sempre no
mesmo sentido. Nesse livro de Rosinha, a dobra esconde e surpreende,
encadeia a história e amplia saberes estéticos. Melot entende ainda que
a encadernação circunscreve o pensamento, produzindo um efeito de
totalidade e unidade. Ainda segundo ele, “o livro não só guarda ideias e
sonhos, ele faz reinar a ordem no mundo das ideias e dos sonhos. Início,
continuação e fim” (MELOT, 2019, p. 63).
Um livro começa e acaba, abre-se e fecha-se, de forma linear e
orientada, em seu princípio irreversível como o tempo, ainda que
nada impeça que o leitor comece a lê-lo pelo fim ou interpolando
os capítulos. Fechar o livro não é menos emocionante do que
abri-lo. (MELOT, 2019, p. 60)

Para as crianças, todo livro faz isso materialmente, no gesto e


em suas próprias mãos. É muito comum assistirmos a bebês fechando
livros e dizendo bô, como um fim em si e como uma encenação de
todo fim. O objeto livro – por seu próprio formato e pelas ações a que
convida: o abrir, o folhear e o fechar – é uma metáfora da vida.
Assim, o livro, como artefato, como brinquedo, entra na
categoria dos objetos e fenômenos transicionais, isto é, como um
possível representante para o bebê da “transição de um estado em
que ele está fundido com a mãe para um estado em que ele está em
relação com ela como algo externo e separado” (PARREIRAS, 2008,
p. 89). E o que permite essa representação da ausência e da sepa-

Juliana Daher 77
ração é o objeto em si e também o eco da voz que lê, o reencontro
com a mesma melodia, as mesmas imagens, as mesmas texturas e
pesos. Esse repertório de leituras e histórias permite que se leia o
mundo e a si mesmo de modo plural: simbólico e político.

O que pode um livro?


Um livro. Um quadrado que cabe nas mãos. Texturas. Cores
fortes, marrons e azuis. Letras. Um bebê negro que se pendura num
O. O leitor o abre. Ele fica maior. Uma coisa vem depois da outra.
São páginas. Duplas. De um lado, há uma palavra-imagem: sempre a
mesma. De outro, um bebê negro: sempre o mesmo. Cenas, contex-
tos. Corpo e voz. Movimentos e letras. O menino encontra um livro.
O menino está naquele livro. Vira, revira. O objeto acaba. O leitor o
fecha. Para onde vai o menino? E o livro?
Ops, de Marilda Castanha, foi um dos primeiros livros bra-
sileiros endereçados aos bebês. É a narrativa corporal de um bebê
acompanhada por diferentes representações pictóricas das letras
que formam a interjeição ops. O livro foi lançado em 2011 pela
extinta Cosac Naify em formato cartonado. Esta edição passou anos
esgotada e a obra foi reeditada, em novo formato e com revisões na
narrativa, em 2020, pela Jujuba.
O que um livro como esse faz? Para onde ele nos leva? A
mim, leva a investigar essa pergunta: por que o livro para bebês
e crianças pequenas? Lanço-a e relanço-a como quem joga dados:
sabendo que há um universo de respostas possíveis, mas desejando
a surpresa e o enigma dos arranjos de cada modo de respondê-la.
Minha pergunta é interessada, comovida. Uma pergunta de quem,
assim como as crianças, não está indiferente e não aceita que o
óbvio seja resposta. Deixo-me habitar pela simplicidade, pela curio-
sidade genuína dessa pergunta.
Busco, assim, a singularidade do papel do livro na primeira
infância. Penso no objeto, na materialidade, no formato, nas páginas,
no papel, no tamanho, nas palavras e nas imagens, na autoria. Penso
na permanência e no reencontro com o objeto livro. Penso no vínculo

78 Juliana Daher
que esse objeto estabelece entre o bebê e o outro. Penso em seu con-
tato com a escrita, com a cultura, com a diversidade, com a fantasia.
Um livro pode muitas coisas. O livro diverte, encanta, emo-
ciona. O livro mostra mundos, transporta, transmite. O livro faz
pensar, questiona, intriga. O livro cansa, exige, absorve. O livro traz
visões, versões, saberes. Por mais abrangentes que essas percep-
ções possam soar, acredito na força de metáforas que carregam
contradições, desafios, conflitos e espessuras. Em nossa sociedade,
ora o livro é sacralizado, idealizado, museificado. Ora supervalori-
zado, onipresente, ordinário. Quase sempre é elitizado, pouco aces-
sível e distante. É baú, cofre, relicário. Passaporte, ponte, dádiva.
Morada, cabana, caminho. Muitas são as metáforas: uma palavra
por outra, que leva a outras ainda.

O livro é um direito
Ao longo da vida – e de um dia de vida – nos relacionamos de
diferentes formas com a linguagem. Ouvindo sons, palavras, nomes,
comandos. Ouvindo causos, histórias de improviso contadas no calor
da emoção, do acontecimento, da tradição ou da memória. Ouvindo
alguém ler uma narrativa escrita e observá-la se repetir, sempre a
mesma, na presença daquele objeto específico: poder reencontrar
aquela sequência de palavras e imagens, nome de autor, traços,
estilos. Relações com a linguagem que são indispensáveis a todos.
Pluralidade que está na voz e está também no livro.
Essa compreensão de Antonio Candido (2011) ao anunciar,
em 1988, que a literatura é um Direito Humano exige uma luta per-
manente por seu acesso. Literatura entendida em sentido lato como
capacidade e necessidade humana de narrar, fabular, imaginar nas
diversas formas da música, da oralidade e da escrita. E sabemos da
importância atribuída à escrita e da possibilidade de aceder a diver-
sos lugares sociais quando se tem acesso à leitura crítica e autô-
noma do mundo e das palavras. Por isso, ler imagens e letras é algo
que precisa fazer parte da vida de todos os bebês e crianças. Brincar
de livro, brincar com o livro, o livro como brincadeira!

Juliana Daher 79
Um grande retângulo com desenhos de folhagens azuis e
animais encobertos por elas. Achou?, de Aline Abreu, editado pela
Companhia das Letrinhas em 2021, é um convite. Ao abri-lo, encon-
tramos uma trilha de formigas que, ora bem evidentes, ora camu-
fladas, irão acompanhar a leitura de todas as páginas desse jogo de
achar e recomeçar. Yolanda Reyes (2010) fala sobre o importante
papel da leitura na construção de saberes sobre a língua escrita,
como crianças por volta de 3 ou 4 anos costumam perguntar por
aquelas “formiguinhas negras dispostas nas linhas dos livros” (p.
67). É interessante como esse livro de Aline Abreu condensa a ques-
tão infantil sobre a letra e a representação imagética da formiga
que, de fato, guia o olhar e costura a narrativa. O texto verbal per-
gunta pelos filhotes dispersos na imagem e o texto imagético coloca
o enigma da letra simbolizado pela trilha de formigas. O livro con-
vida a um jogo de leituras de imagens e letras. Até que as formigas
se reúnem para formar a palavra “fim” e se dispersam novamente,
recomeçando a trilha.
Entender, portanto, que a linguagem apresentada nos livros
é diferente da linguagem do cotidiano é um direito: o de aceder aos
ritos e ritmos da cultura escrita. Ter contato com o campo da represen-
tação por meio de diversas linguagens artísticas é um direito: bebês,
formigas, letras... ser um bebê, encontrar outros bebês, ver um bebê
desenhado no livro, ver o livro na mão do bebê do livro, reconhecer-
-se como um bebê etc. Direito à diferença, direito à experiência. Os
diversos modos de representar o mundo e as coisas, pela língua e pela
imagem, vão se apresentando, assim, por meio dos livros.
Um quadrado amarelo com detalhes em azul e um patinho.
Ou um quadrado azul com detalhes em amarelo e um menino? Ou
ainda um enorme retângulo cartonado predominantemente azul de
um lado e majoritariamente amarelo de outro com as mesmas cenas?
Nas mãos das crianças, uma sanfona abre e fecha ou uma cerca, uma
cabana, um muro... Ter um patinho é útil, da argentina Isol Misenta,
foi publicado no Brasil em 2013 pela Cosac Naify e reeditado em 2018
pela Sesi-SP. É um livro com duas capas, dois títulos, dois começos,

80 Juliana Daher
duas narrativas. Esse objeto representa na própria materialidade os
diferentes pontos de vista sobre uma mesma relação: é o menino que
tem o patinho ou o patinho que tem o menino? A relação de posse é a
mais adequada para nomear o que se passa entre eles? As imagens de
contornos pretos são idênticas dos dois lados, o que se alternam são
a referência dos pronomes de primeira e segunda pessoa e os sujei-
tos e objetos dos verbos em questão. Um livro que mostra como o
mundo é o mesmo e é diferente, que a contradição faz parte da nossa
história e que existem muitos modos de olhar e de contar. Um livro
que não resolve a dúvida, mas coloca essas questões pela narrativa e
também por diversos aspectos da materialidade.
Perguntar-se, portanto, pela diversidade de linguagens e de
existências é um processo e um direito que pode se iniciar cedo e de
variadas formas. Quando um bebê tem contato com livros, ele pega,
morde, lambe, cheira, joga. Descobre texturas, cores, pesos, vozes.
Ele olha simultaneamente o livro e o rosto de quem lê. Ele investiga
de onde saem aquelas palavras, onde elas estão: na voz ou no livro?
Ele observa cores e ilustrações no livro e as reencontra no mundo,
na vida. E assim aprende coisas muito complexas e importantes para
sua construção subjetiva e social.
Mas as desigualdades também começam cedo. Há bebês e
crianças que convivem com a linguagem escrita em casa, mas outros a
descobrirão apenas na escola. O livro é, portanto, um objeto político.
E sua circulação precisa ser garantida desde sempre para que todos
possam construir saberes sobre a existência e o funcionamento da
escrita e da arte, inscrevendo-se subjetivamente no mundo no con-
texto da linguagem (língua, imagem e objeto), isto é, da simbolização,
da representação, dos dizeres sobre o mundo e sobre si.
O livro é também um objeto da cultura no qual se pode
reconhecer pertencimentos, identidades e alteridades. Quando a
relação com o livro é social e historicamente situada, ela pode ser
um antídoto contra o confinamento cultural (PERROTTI, 1990), pois
amplia o universo das histórias e das vivências do bebê, da criança
e dos adultos-cuidadores. Outros tempos, outros espaços e outras

Juliana Daher 81
pessoas, para além do universo familiar e geográfico imediato, pas-
sam a integrar o campo de experiências dos bebês e das crianças
quando eles têm acesso aos livros.
O livro é ainda um importante objeto simbólico que contri-
bui para a inscrição dos pequenos na esfera do imaginário. O livro
permite expandir nossa capacidade de sonho, de invenção, de fan-
tasia, de vivenciar outras vidas, de compreender e elaborar o que
se passa conosco e com o outro, as contradições, conflitos e dife-
renças. Antonio Candido (2011, p. 181) diz que a organização da lin-
guagem literária permite que “os sentimentos passem do estado da
mera emoção para o da forma construída, que assegura a generali-
dade e a permanência”, características do livro que constituem sub-
jetividades e sociabilidades na primeira infância.
Afirmar que o encontro com o livro é um direito de bebês
e crianças traz também a questão de como as infâncias passam a
interrogar a existência, a forma, o lugar e a função do livro. Há espe-
cificidades no livro para os pequeninos? O que desejamos que haja
nesses livros endereçados aos bebês e às crianças?
O livro é, portanto, um objeto político, cultural e simbólico
produzido por adultos. É o adulto que escreve, ilustra e publica. É
o adulto que vende, compra, empresta, adota. É o adulto que sele-
ciona, coloca à disposição ou tira o livro do alcance das crianças. É o
adulto que dá voz à narrativa, confere entonação, pula trechos. É o
adulto que aponta elementos e conversa sobre a história. Enfim, é
o adulto que medeia a relação entre os livros e os bebês e as crian-
ças pequenas em diversas esferas. Por isso, é preciso refletir sobre
essas intervenções e sobre a ética do (re)encontro com a infância,
sobre a experimentação desse território, mesmo que na condição
de exílio (PELIZZONI, 2017), de alguém que já habitou, mas não tem
mais acesso pleno ao universo infantil. Como a consideração dos
pequenos leitores produz efeitos na forma como os livros circulam e
são produzidos? Os livros citados acima são bons exemplos de con-
fiança na subjetividade do bebê e da criança pequena, eles praticam
formas de emancipação do pequeno leitor (LÓPEZ, 2018).

82 Juliana Daher
As mãos do leitor
Com essa compreensão, chegamos talvez a uma ideia do
papel do livro para bebês e crianças. O livro não é somente texto,
história, informação ou conteúdo. Assim como a vida, os livros são
frágeis e corruptíveis: “o papel se desgasta, seu conteúdo também”
(MELOT, 2019, p. 54). Para os pequenos, a materialidade importa!
Ela transmite algo, assim como a palavra e a imagem.
O livro é um objeto espacial que representa uma relação
com o tempo nas próprias páginas e suas viradas. Mas diferente-
mente da fala, que se faz pela sequência um-depois-do-outro e,
assim, narrativiza singularmente a cada emissão, o texto inscrito no
livro é sempre o mesmo – letras e imagens aparecem como um mis-
tério que permite a permanência e o reencontro. Com o quê?
O livro é um objeto social e político, inventado para conter,
de uma forma específica, lampejos da cultura: narrativas, informa-
ções, visões inscritas em palavras e imagens que permanecem e
ultrapassam, até certo ponto, tempo e espaço – ou que circulam
de forma diferente da oralidade e de outras artes. Assim, entendo
que quando um bebê manipula um livro e encontra, por intermédio
do adulto, imagens e palavras nesse objeto, ele começa a elaborar
por si mesmo uma relação com o tempo, com a ausência, com a fic-
ção, com a interpretação. O livro pode materializar essas abstrações
para uma criança pequena, é um objeto complexo da cultura que
está - ou deveria estar - ao alcance das mãos.
A autora e artista sul-coreana Suzy Lee (2012), em seu famoso
Trilogia da margem, vê o livro impresso como forma de arte capaz de
“conter uma história íntima, acessível, direta, portátil, viável, repro-
duzível, produzível em massa e universal”. Ela se pergunta o que
faz de um livro um livro: basicamente são folhas de papel com qua-
tro cantos, uma capa mais espessa, uma linha de encadernação (a
dobra central). Em sua compreensão, o livro é uma tela que projeta
histórias e o leitor sente o livro fisicamente de diversas formas, pela
posição, abertura, giro, sequência, formato. Ela considera, assim,
que os dedos do leitor fazem parte do livro. A ideia de tempo difere
Juliana Daher 83
a cada página porque o leitor pode, justamente, ajustar o tempo ao
virá-las. E o significado ocorre justamente entre elas, é dado pelo
ato de virá-las (LEE, 2012, p. 120).
A última página é virada. A história chegou ao fim. O livro é
fechado. O mundo também é fechado. E então ele é rapida-
mente colocado no canto de uma estante. Arte que pode ser
posta em uma estante. Arte do tamanho da estante. Bem, isso
não é maravilhoso? (LEE, 2012, p. 177)

O autor brasileiro Odilon Moraes entende também que todo


livro é um objeto, mas frequentemente sua condição hegemônica
de suporte para um texto ofusca essa sua qualidade. É isso que os
adultos fazem: desprezam a qualidade de objeto de um livro. E, ao
contrário, é ela que os bebês enfatizam. Ao ler, os pequenos viram e
reviram um objeto. Exploram-no por diversos lados, em várias dire-
ções. Atentos ao objeto livro, autores como a venezuelana Menena
Cottin, no livro Duplo duplo (Pallas, 2013), criam obras em que um
desenho contrastante pode ser lido em diferentes direções com
sentidos diversos. Uma mão puxando um zíper pode ser lida como
abrir ou como fechar, dependendo do ângulo de que se olha, assim
como um pé com o sapato desencaixado, uma mão com uma boli-
nha perto, um dedo apontado, uma bola branca em fundo preto
têm significados opostos dados apenas pela diferença na forma de
olhar. Um livro como esse permite que o adulto revisite suas certe-
zas sobre o funcionamento da leitura e que a criança seja ativa na
exploração do objeto livro com a anuência e a surpresa do adulto.
Em muitos momentos da história da literatura e da escrita,
a utilização do livro como suporte desprezou a dimensão poética do
objeto, nos diz Odilon Moraes (2013, p. 160). E a falta de familiari-
dade das crianças pequenas com o livro abre possibilidades infinitas
de sua exploração como objeto, tanto pela própria criança – que
irá elaborar suas relações com a vida e a cultura na e pela materiali-
dade – quanto por autores e mediadores – que aprenderão a explo-
rar muitas formas de contar histórias e provocar conversas sobre o
mundo e a existência. Desde sempre.
84 Juliana Daher
Referências
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BORGES, Jorge Luis. Cinco visões pessoais. 4. ed. Trad. de Maria
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Spirale, n° 63, 2012/3, p. 31-38. Disponível em: https://www.cairn.info/
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Conversas ao Pé da Página, Comunidade Emília, 2011.
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LÓPEZ, María Emília. A emancipação dos bebês leitores. Caderno
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Juliana Daher 85
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Jujuba, 2018.

86 Juliana Daher
Bibliotecas para a
infância: um projeto
de fantasia
Fabíola Farias

Em um pequeno texto de difícil classificação, o escritor uruguaio


Eduardo Galeano narra o episódio em que, durante uma visita turís-
tica a Ollataytambo, no Peru, um menino aparentemente muito
pobre se aproxima e pede a ele que o presenteie com uma caneta.
Justificando não poder se desfazer da única caneta que possuía
naquele momento, o escritor se oferece para desenhar um porqui-
nho na mão do menino. A notícia logo se espalha e muitas crianças,
todas muito pobres, se apresentam para ganhar também um dese-
nho. Entre elas, um menino bem pequeno, esfarrapado, mostra ao
escritor um relógio desenhado no pulso, dizendo que foi presente
de um tio que vive em Lima, capital do país. Comovido, o escritor se
dispõe à imaginação do pequeno e o pergunta se o relógio funciona
bem. A resposta do menino, que encerra o texto, é absolutamente

Juliana Daher 89
surpreendente: “Atrasa um pouco”. Não há o que dizer diante de
tal resposta. Não, pelo menos, com a rapidez que o momento exige.
Por isso, a narrativa termina abruptamente, em um susto.
O pequeno texto tem como título Celebração da fantasia e
anuncia a beleza e a potência da história contada. Mais que a alegria
passageira das crianças que ganharam desenhos e brincaram com
eles em suas mãozinhas, o menino do relógio fez de sua vivência da
fantasia uma experiência, tomando a existência do objeto desenhado
como absoluta realidade, até mesmo nos lamentáveis atrasos.
A ideia de fantasia consignada por Galeano está presente
nas reflexões do escritor Bartolomeu Campos de Queirós, apre-
sentada como ancoragem para sua escrita e também nas ativida-
des de formação que ao longo de décadas ofereceu a educadoras
no Brasil e no exterior.
Ao fantasiar, experimento a liberdade. Não há preconceitos, limi-
tes ou paredes nesse ato fundador do humano de buscar (em vão)
decifrar o absoluto. Fantasiar é o exercício de indagar sobre o meu
tamanho para concluir, sempre, que minha inquietação diante da
finitude não resiste a horizontes. Há sempre um depois do depois.
E só no trabalho criador encontro lugar para fazer da fantasia
matéria primordial de meu ofício. (QUEIRÓS, 2014, p. 69)

O entendimento da fantasia como algo que não existia e


que a partir de nossas demandas, desejos e indagações rompe nos-
sos horizontes individuais e coletivos e se torna realidade é o eixo
que proponho para pensar bibliotecas para a infância.

As bibliotecas hoje
As bibliotecas podem ser definidas de várias maneiras e
encontram, na bibliografia sobre o tema e no entendimento do
senso comum sobre suas funções, pontos de consenso. Indepen-
dentemente de sua ênfase, as concepções estão ancoradas em
aspectos que podem ser considerados eixos de suas formas de reali-
zação no Brasil: organização, guarda e disponibilização de materiais
bibliográficos e documentais; preservação da memória local; pres-
90 Juliana Daher
tação de serviços de informação à comunidade na qual está inse-
rida; realização de atividades de promoção da leitura e de inclusão
digital; oferta de programação cultural; apoio a pesquisas escolares
e de interesse geral.
Com algumas variações, estes são os eixos mais comuns de
atuação de bibliotecas de acesso público no Brasil, como as públi-
cas e as comunitárias. Preservadas as especificidades do ambiente
escolar e seu compromisso com projetos pedagógicos, até mesmo
as escolares partilham de alguns desses eixos de atuação, especial-
mente no que toca aos empréstimos de livros, ao apoio a pesquisas
e à realização de atividades para a promoção da leitura.
O advento e a massificação do acesso à internet e às muitas
possibilidades que ela abarca provocaram, na última década, questiona-
mentos em relação às bibliotecas. A oferta de informações e materiais
de leitura – livros, revistas, jornais – em computadores, smartphones e
tablets ligados à internet sugeriu a muitas pessoas, não sem razão, que
as bibliotecas estavam perdendo parte de sua razão de ser.
Porém, para quem se dedica a refletir sobre a questão, há
aspectos sobre o tema que precisam ser considerados. Os mais sim-
ples e óbvios são os que nos dizem que apesar da grande expan-
são do acesso à internet, especialmente em função da populariza-
ção dos smartphones, tal cobertura ainda não alcança boa parte da
população brasileira. Aliás, ainda é considerável no país o número
de pessoas que sequer contam com energia elétrica (e com sanea-
mento básico, habitação, segurança alimentar...).
Se o principal problema fosse esse, haveria solução relativa-
mente fácil e rápida para a garantia do direito à leitura no Brasil. Bas-
taria um investimento robusto para a aquisição e a distribuição de
equipamentos de acesso à internet e para a ampliação do serviço de
oferta de rede em todo o país – não faltariam autoridades e empre-
sas empenhadas em levar a proposta a cabo, interessadas nos gran-
des lucros que tal empreitada vislumbraria. Para quem entende que
as bibliotecas existem para disponibilizar livros e outros materiais
de leitura para a população, a questão estaria resolvida.

Juliana Daher 91
Mas há quem entenda que as bibliotecas são mais potentes
e que devem se oferecer como espaço de formação, para além da
oferta de serviços pela qual mais comumente são conhecidas. Obvia-
mente, está em seu campo de atuação, no centro dele, a disponibi-
lização de acervos bibliográficos para a pesquisa e a leitura de seus
usuários, principalmente em um país cuja renda média não permite
que livros façam parte da cesta básica das famílias. Mas a ação biblio-
tecária, que justifica e torna fundamental a existência de bibliotecas,
extrapola a simples oferta de livros. Mais que garantir o acesso a con-
teúdos, sejam eles quais forem, as bibliotecas que se comprometem
com um projeto democrático e emancipador trabalham para que
as leituras a que convidam seus leitores contribuam para que eles
ampliem sua compreensão do mundo, do tempo e do espaço em que
vivem, das relações de que participam, orientando projetos individu-
ais e coletivos. Nessa concepção de biblioteca, tudo converge, entre
erros e acertos, para o fortalecimento de tal projeto:
Por sua arquitetura, definição de seu público, princípios que
ordenam suas coleções, pelas opções tecnológicas que determi-
nam a acessibilidade e a materialidade dos textos, assim como
pela visibilidade das escolhas intelectuais que organizam sua
classificação, toda biblioteca dissimula uma concepção implícita
da cultura, do saber e da memória, bem como da função que lhes
cabe na sociedade de seu tempo. (JACOB, 2008, p. 10)

A escolha de cada livro na composição do acervo, o desenho


das regras de funcionamento (o que pode, o que não pode, dias e
horários de funcionamento, prazos de empréstimos, dentre outros),
a proposição de atividades, o acolhimento a distintos públicos, a cons-
trução de estratégias de acessibilidade para pessoas com deficiências
e necessidades específicas e a organização do ambiente sustentam
projetos de ação bibliotecária e apontam para horizontes almejados.
Assim, mais que garantir a oferta de livros e materiais de lei-
tura, bibliotecas com projetos democráticos e emancipadores acolhem
em suas formas de realização a criação de condições objetivas e subjeti-
vas para que as pessoas – todas as pessoas – possam delas se apropriar.

92 Juliana Daher
Nessa perspectiva, podemos dizer que as bibliotecas, prin-
cipalmente as de acesso público, continuam sendo muito importan-
tes hoje. Ainda que pareça contraditório, se pensarmos que vivemos
imersos em todo tipo de informação e até mesmo sufocados por
avalanches de conteúdos que nos alcançam a cada minuto, a ação
bibliotecária pode nos ajudar a organizar o excesso, sem dispensar a
diversidade e as contradições. Especialmente, pode criar caminhos,
sem evitar desvios e voltas, necessários para nossa formação e ama-
durecimento, para o conhecimento do que ao longo do tempo e do
espaço a humanidade produziu e registrou com a escrita: as narrati-
vas literárias, as artes, a história, as memórias, as ciências.
Aparentemente, isso parece dizer pouco às crianças. Como
pensar bibliotecas para as crianças, incluindo os bebês e as muito
pequenas, nessa perspectiva?

Um projeto de biblioteca para as crianças


São muitas as perspectivas para o estudo e a observação
da infância e do que pode ser tomado como infantil. As crianças
são sujeitos biológicos, sociais, históricos, econômicos, geográfi-
cos, religiosos e culturais e nossas tentativas de compreender de
maneira homogênea tantas existências em suas concretudes nave-
garão, invariavelmente e como tudo o mais na vida, em incertezas
e incompletudes. A ciência da impossibilidade de alcançar inte-
gralmente e com segurança a infância nos impõe cuidados e exige
de nós olhares e escutas mais atentos às crianças que chegam às
bibliotecas e também àquelas que, por algum motivo, não se apre-
sentam. Esta é, indiscutivelmente, a primeira condição para que
as bibliotecas estejam, efetivamente, abertas à infância, descons-
truindo ideais de crianças e se abrindo para as muitas realidades
existentes: famílias com pouco ou nenhum acesso a bens culturais
de prestígio, mas com intensas vivências em tradições populares;
crianças marcadas por situações de vulnerabilidade social; famílias
aparentemente bem estruturadas, mas com pouco tempo dedi-
cado aos pequenos, incluindo momentos de leitura; famílias que

Juliana Daher 93
demonstram intimidade com os livros e com o ambiente da biblio-
teca; crianças que demandam atenção e recursos específicos em
função de alguma deficiência...
A compreensão da diversidade da infância traz em si desdo-
bramentos e sustentação para toda a ação bibliotecária, incluindo o
horizonte da fantasia, celebrado por Eduardo Galeano e Bartolomeu
Campos de Queirós, como instrumento de elaboração de percepções
mais agudas sobre o mundo e a vida e de construção de caminhos até
então não imaginados ou interditados para alguns grupos sociais.
Uma boa coleção de livros, com diversidade de autorias e de
experimentações estéticas, convida as crianças, desde muito peque-
nas, a se apropriarem da língua de maneira mais potente, compreen-
dendo que as mesmas palavras que comunicam e organizam a rotina
também brincam, rimam, contam e silenciam histórias, ampliando a
percepção do espaço e do tempo vivido. Vinculadas à materialidade
do livro – papel, formato, peso –, as narrativas, em verso, prosa e ima-
gens, dilatam o momento da leitura, criando um universo paralelo de
experiências, mas objetivamente marcado pelo passar das páginas.
Quanto mais diversa a coleção de livros para as crianças, mais inventi-
vos e generosos serão os convites feitos aos pequenos, mostrando a
eles as coisas que existem e as que poderiam existir.
São muito comuns os discursos que professam as preferên-
cias das crianças, orientando que elas gostam disso e daquilo, que
seus livros preferidos são os que tratam de temas conhecidos, como
os animais, o ambiente doméstico, o corpo, dentre outros. Não há
dúvidas de que os pequenos demonstram grande interesse no reco-
nhecimento de sua existência nas páginas dos livros, mas isso não
significa que as ofertas para as crianças devam se restringir a esses
contornos. O importante é que palavras, ilustrações, materiais e for-
matos sejam convites a experiências mediatas, que extrapolam a
vida comum e o cotidiano, ainda que seja em sua reinvenção.
A escritora argentina Graciela Montes nomeia os percursos
leitores menos previsíveis e seguros como “jogo do explorador”,
marcado por incertezas e ambiguidades, por enigmas e desafios,

94 Juliana Daher
em contraponto ao que considera “jogos do poder”, que validam
certezas e esvaziam incômodos:
Certo é que também houve – e há – muitas histórias para crian-
ças que escondem lições de bom comportamento, histórias que
talvez finjam explorar, mas que, na realidade, jogam o jogo do
poder, já que se dedicam a “insuflar” certezas e de modo algum
a dialogar com as incertezas. Essas histórias procuram mais
domesticar o leitor – ou tutelá-lo – do que levá-lo para passear
por lugares incertos, perigosos. (MONTES, 2020, p. 112-113)

As diferenças entre livros mais potentes aos “jogos do


explorador” e mais propícios aos “jogos de poder” podem ser
muito tênues e não são estáveis. As possibilidades de leitura sempre
podem ser reduzidas ou ampliadas pelo repertório de cada leitor e
por suas condições para ler, contribuindo bastante para suas traje-
tórias leitoras. Mas não há dúvidas de que narrativas esteticamente
mais elaboradas, realizadas na ordem das melhores práticas edito-
riais, se dispõem mais às descobertas.
Assim como a constituição do acervo bibliográfico, o
espaço físico da biblioteca é algo a ser observado com atenção.
Para que os bons livros estejam disponíveis para as crianças, para
além das portas abertas e da gratuidade dos serviços bibliotecá-
rios, é necessário que o espaço físico da biblioteca seja o mais
acessível possível para os pequenos leitores, que devem poder
circular pelas estantes e encontrar um jeito confortável para se
acomodar e folhear os exemplares escolhidos, incluindo, claro, a
existência de infraestrutura que permita seus cuidados: banheiros
adequados, fraldário, mobiliário seguro e acolhedor, dentre outros
aspectos. Isso implica, naturalmente, o acolhimento dos adultos
que acompanham as crianças, que não costumam estar sozinhas
em espaços públicos. Em estruturas simples ou sofisticadas, com
recursos menos ou mais confortáveis, o importante é que as pes-
soas se sintam bem-vindas, seguras e à vontade para explorar o
espaço e as estantes, com os cuidados específicos que cada faixa
etária, no caso das crianças, exige.

Juliana Daher 95
O atendimento atencioso da bibliotecária e de outras profis-
sionais deve orientar os leitores de todas as idades, desde os mais
pequenos, sobre o funcionamento da biblioteca, de maneira a aju-
dá-los a compreender as regras e seus fundamentos de organização
para seu melhor uso coletivo e comum. É importante observar que
não se trata de ensinar regras apenas para que elas sejam cumpridas,
mas sim para que possam ser compreendidas na ordem da biblioteca
como instituição que guarda, sistematiza, organiza e disponibiliza a
cultura escrita materializada em livros para muitas pessoas.
Concertados por bibliotecárias e demais profissionais que
atuam nas bibliotecas, os serviços e atividades oferecidos às crianças
devem vislumbrar os “jogos de exploração”, professados por Gra-
ciela Montes e íntimos do horizonte de fantasia de Eduardo Galeano e
Bartolomeu Campos de Queirós. Isso significa que toda a rotina deve
convergir para a apropriação do espaço e para a aproximação das
crianças e suas famílias com os livros, em um exercício de valorização
da infância e das experiências que podem ser realizadas nas leituras.
Mais que a preocupação com a formação de crianças leitoras,
que segue sua marcha perene se existentes as condições para tal e
na exigência constante de políticas públicas que as garantam, nossa
atenção deve se voltar à experiência dos pequenos de ter um livro em
mãos, de poder manuseá-lo, de ouvir e contar suas histórias, de ver
suas ilustrações e também de abandoná-lo por algo que momentane-
amente pareça mais interessante e promissor. Dito de outra maneira:
que crie condições para que as crianças, desde muito pequenas, pos-
sam participar da cultura da biblioteca e produzir suas formas de par-
ticipação na instituição. Tudo isso deve ser acolhido pelas bibliotecas,
que aos poucos podem se mostrar como espaço de formação e de
liberdade, onde as crianças aprendem a estar e a partilhar livros, aten-
ções, silêncios e, principalmente, o desejo de conhecer.
Por fim, mas não menos relevante, é preciso reafirmar e prote-
ger, intransigentemente, o caráter público das bibliotecas de que aqui
tratamos, entendido como o que é de todas as pessoas e para todas as
pessoas, sem segmentações ou perspectivas assistencialistas. As defi-

96 Juliana Daher
ciências e singularidades devem ser consideradas partes constitutivas
de suas existências individuais e coletivas, de quem juntos somos como
sociedade, e contempladas na construção da ação bibliotecária, e não
como atendimentos complementares a algo que se considera principal.
As bibliotecas devem ser pensadas e realizadas, cotidianamente, para
todas as pessoas, garantindo a cada uma delas as condições para par-
ticipação em seus serviços e suas atividades, como consignado pelas
reflexões do Laboratório Mais Diferenças:
(...) no convencimento de que esse para todos, esse para todos
em geral e para ninguém em particular, esse para qualquer um,
exige conjugar a igualdade e a diferença de outro modo, e não
somente fazer políticas especiais de inclusão para grupos especí-
ficos e diferenciados de população. (MAUCH, 2017, p. 16)

Para isso, são necessários, em muitos casos, recursos que


garantam o acesso seguro ao espaço físico e que permitam a expe-
rimentação dos livros, como arquitetura inclusiva, sinalizações efi-
cientes, equipamentos de leitura para pessoas com distintas defici-
ências, livros acessíveis... O importante é a compreensão de que tais
recursos são meios, e não fins em si mesmos.
Não parece tarefa fácil pensar e construir bibliotecas que
contemplem tanta diversidade, especialmente em um campo de
infindáveis disputas como se mostra a infância, sempre alvo de mui-
tas tutelas. No Brasil de 2022, quando publicamos este livro, vive-
mos o recrudescimento do conservadorismo de costumes que com-
põe o governo de extrema direita no poder desde 2019. Isso afeta,
indiscutivelmente, as crianças e as políticas a elas dedicadas, como
na Educação, na Saúde e na Cultura.
No que toca à leitura e às políticas educacionais e culturais,
a atenção à primeira infância é algo relativamente recente. Embora
presente em pesquisas acadêmicas em todo o país nas últimas duas
décadas, o tema ganha visibilidade entre educadoras brasileiras,
para além do ambiente acadêmico, em 2010, com a publicação e
o lançamento do livro A casa imaginária: leitura e literatura na pri-
meira infância, da colombiana Yolanda Reyes, no 12º Salão do Livro

Juliana Daher 97
para Crianças e Jovens, realizado pela Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil no Rio de Janeiro, com a presença da autora. Desde
então, as publicações, os eventos e os projetos para leituras com
crianças muito pequenas vêm ganhando espaço no Brasil.
Entre erros e acertos, movidas pelo entendimento da rele-
vância da leitura na primeira infância e das bibliotecas de acesso
público como principais possibilidades de acesso a livros para a
grande maioria das famílias brasileiras, seguimos nos dedicando a
pensar caminhos para que a infância seja mais promissora e que os
tempos sejam mais justos, em futuros que, ininterruptamente, se
anunciam em cada minuto vivido no presente.

Referências
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2007.
JACOB, Christian. Prefácio. In: BARATIN, Marc; JACOB, Christian
(orgs.). O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidentes.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
MAUCH, Carla S. da S. (org.). Cadernos do Laboratório Mais Diferen-
ças de arte, cultura e educação inclusivas. O público e o comum: expe-
riências em acessibilidade cultural. São Paulo: Mais Diferenças, 2017.
MONTES, Graciela. Buscar indícios, construir sentidos. Salvador: Selo
Emília e Solisluna Editora, 2020.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Contos e poemas para ler na
escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira
infância. São Paulo: Global, 2010.

98 Juliana Daher
O direito das pessoas
com deficiência à leitura
e aos bens culturais¹
Carla Mauch

Este texto tem como tema o direito das pessoas com deficiência,
um coletivo múltiplo, plural, que tem muitas histórias, mas histórias
invisíveis, que ficam reduzidas a espaços muito pequenos. No Bra-
sil, de maneira geral, não nos dedicamos a entender o direito, os
marcos legais, talvez em função de um texto duro, que não dialoga
com a maioria das pessoas, que parece se orientar por outra gramá-
tica. Muitas vezes penso que esse texto duro seja intencionalmente
feito para nos afastar de sua leitura, para nos impedir de conhecer

1 Texto baseado na conferência O direito das pessoas com deficiência à leitura e a


bens culturais, apresentado no Seminário As histórias de muitas pessoas, no hori-
zonte de todas, na programação do Festival Minas no Plural Literária, na Biblioteca
Pública Estadual de Minas Gerais, em 12 de agosto de 2022. O evento foi realizado
pelo Instituto Periférico.

Juliana Daher 101


os nossos direitos. Mas se subvertermos essa lógica, podemos com-
preender que os marcos legais dizem respeito a vidas, a histórias,
a pessoas, a grupos, a coletivos, a viver em comunidade, e talvez
consigamos lutar por esses direitos de forma mais amorosa. Este é o
meu objetivo: articular os direitos aos fazeres, à vida se construindo.
E a vida se constrói com histórias.
Pensando nos direitos das pessoas com deficiência à leitura
e aos bens culturais, eu resgato Paulo Freire, nosso mestre. Sabemos
que a leitura do mundo precede a leitura da palavra, mas às vezes nos
esquecemos disso. Para pensar nos processos de letramento, preci-
samos ler os mundos, mas historicamente oferecemos mundos muito
limitados às pessoas com deficiência e a nós mesmos. Defender os
direitos das pessoas com deficiência ou de outros coletivos é uma
responsabilidade ética, nossa, de todas as pessoas, mesmo que não
tenhamos deficiência. Há, antes de tudo, um compromisso ético com
os outros, mas também, de forma quiçá um pouco egoísta, há um
compromisso conosco. Quando nos tiraram o direito de conviver com
as pessoas com deficiência, fomos significativamente limitados nas
possibilidades de ler o mundo, as palavras. Quando fazemos a defesa
radical da inclusão, do encontro e de que todas as pessoas precisam
do espaço comum... Neste momento, enquanto estamos aqui, dois
grupos escolares estão na Biblioteca Braille, no segundo andar deste
prédio. Um com crianças cegas, de várias idades; e outro com crianças
videntes de uma escola inclusiva, que deve ter crianças com deficiên-
cia. Provavelmente, muitos de nós não tivemos, em nossa infância, o
direito de estar em uma biblioteca com crianças cegas e videntes jun-
tas. As crianças de hoje têm esse direito e seu repertório será muito
diferente do nosso. Elas estão imersas, desde bebês, em um mundo
mais heterogêneo, que nos permite sonhar e fabular outros mundos,
distinto desse ainda muito desigual.
Volto à citação de Paulo Freire:
Meu gosto de ler e de escrever se dirige a uma certa utopia que
envolve uma certa causa, um certo tipo de gente nossa. É um gosto
que tem a ver com a criação de uma sociedade menos perversa,

102 Juliana Daher


menos discriminatória, menos racista, menos machista que esta –
e eu acrescento: menos capacitista que esta. Uma sociedade mais
aberta, que sirva aos interesses das sempre desprotegidas e minimi-
zadas classes populares e não apenas aos interesses dos ricos, dos
afortunados, dos chamados bem-nascidos. (FREIRE, 2001)

É sempre bom voltar a Paulo Freire, que não estava falando


da nossa pauta, objetivamente. O termo capacitismo ainda não exis-
tia quando Paulo Freire escreveu esse texto. No entanto, ele está
falando absolutamente de direitos. Eu acho muito bonito pensar o
direito a partir de Paulo Freire e escutando Paulo Freire.
Para falar dos direitos das pessoas com deficiência, precisa-
mos criar interfaces, fazer uma composição considerando direitos,
cultura, leitura e literatura. No Brasil, nós temos um marco legal muito
avançado em relação aos direitos das pessoas com deficiência, apesar
do retrocesso percebido em 2020, sobre o qual logo vou falar. Mesmo
assim, temos um marco muito avançado, pautado na perspectiva de
direitos humanos, e isso constitui uma mudança radical, pois histo-
ricamente os direitos das pessoas com deficiência estavam em uma
lógica de assistência e caridade, de nós, ditos normais, ajudando as
pobres pessoas com deficiência, que são diferentes, que têm uma
incapacidade. Usávamos, muitas vezes, a palavra “deficiente” e sabe-
mos que as palavras têm muita força. Ao dizer que uma pessoa é defi-
ciente, estamos dizendo que aquele sujeito, em sua integralidade,
todo ele, é deficiente. E as pessoas com deficiência têm, além da defi-
ciência, múltiplas características. A deficiência é uma delas.
Infelizmente ainda precisamos de marcos legais específicos.
Se vivêssemos em uma sociedade igualitária, nós poderíamos ter
apenas a Constituição. E quando falássemos que todas as pessoas
têm direitos iguais, estaríamos falando de todos. No entanto, nosso
todos é bastante reduzido; quando falamos de todos, contempla-
mos apenas alguns. Esquecemos de muitos grupos, e as pessoas
com deficiências estão entre os grupos mais esquecidos.
Quando estamos com outros coletivos, por exemplo um
coletivo das mulheres, que defende os direitos das mulheres, escu-

Juliana Daher 103


tamos muito pouco as pessoas tratando da questão das mulheres
com deficiência. Se observarmos cada um dos grupos que traba-
lha com a pauta de direitos humanos, todas elas importantes, não
podemos ignorar que todos somos sujeitos múltiplos e temos que
entender que são muito diferentes um homem branco com defi-
ciência que mora em uma região economicamente privilegiada da
cidade e uma mulher preta com deficiência que mora na periferia.
Nós tomamos como premissa a igualdade, mas ela precisa ser com-
preendida como ponto de partida. Mas sabemos que as pessoas não
têm os mesmos direitos.
Desde a Constituição de 1988, as pessoas com deficiência
começam a ser vistas. A partir de 2000, mais especificamente, con-
quistamos a Lei de Acessibilidade.² Nós estamos em 2022. A Lei trata
de todas as dimensões da acessibilidade da vida. Se observarmos os
espaços da cidade, vamos ver muitas situações em que a acessibili-
dade ainda não está presente. E o marco legal é de 2000. Para que
ele existisse, muitas pessoas lutaram.
Na perspectiva de direitos, fizemos duas caminhadas. A pri-
meira é o marco legal e o empenho para que ele faça parte do nosso
arcabouço teórico e sustente nossas reivindicações. A outra é a Con-
venção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, que
começou a ser elaborada em 2005, em Nova York, envolvendo pes-
soas com deficiência e governos de mais de cento e cinquenta países,
promulgada no Brasil em 2009.³ A sociedade e os movimentos sociais
trabalharam muito, coletivamente, no Brasil por esse documento,
que foi ratificado com quórum qualificado, o que significa que a nossa
Convenção vale o mesmo que a Constituição brasileira. Isso é um
grande avanço. Os dois documentos valem e têm o mesmo peso.

2 Lei 10.098 de 19 de dezembro de 2000. Estabelece normas gerais e critérios bási-


cos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou
com mobilidade reduzida, e dá outras providências.
3 Decreto 6.949 de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assina-
dos em Nova York, em 30 de março de 2007.

104 Juliana Daher


Nesta Convenção uma questão é muito importante: o con-
ceito de deficiência. Pela primeira vez, as pessoas com deficiência
são compreendidas em sua relação com a sociedade e, por óbvio,
com as barreiras que a sociedade impõe a elas. Isso é muito impor-
tante para pensarmos as políticas públicas, nossas práticas, os pro-
jetos, fazendo nossa a responsabilidade que historicamente não
assumimos. A inclusão sempre foi, dessa maneira, uma questão
“deles”. Nós lidávamos com uma relação de pena e de caridade, o
que é preconceito. Essa conta custa muito e é extremamente preju-
dicial para as pessoas com deficiência.
A Convenção abarca os direitos culturais. Seu Artigo 9 é
destinado à acessibilidade; o 24 trata da educação inclusiva; e o 30
defende o direito à Cultura, ao Esporte e ao Lazer. Este marco legal,
que é específico das pessoas com deficiências, apresenta questões
vinculadas ao direito a bens culturais, e também à leitura e à litera-
tura. Mas isso está posto de maneira ampla e cabe a cada um dos
países normatizar e detalhar como esse direito vai se efetivar. Em
paralelo e fomentada pela Convenção, temos a Política Nacional de
Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2007,
que pela primeira vez estabelece uma política com recursos orça-
mentários e estratégias para garantir o direito à educação de bebês,
crianças, adolescentes e adultos na escola comum.
Eu trabalho com Educação, sou professora. Eu defendo
e elogio a escola e a Educação, assim como faço com a Cultura. É
na escola que temos garantido o direito de conviver e de aprender
com as diferenças. A escola é o primeiro núcleo onde, para além da
família, conhecemos outros mundos, podemos ser outros sujeitos,
deixamos de ser apenas a filha da Maria ou do Pedro. Vamos cons-
truindo nossa identidade, a nossa identidade plural.
Até 2007, um número enorme de crianças e adolescen-
tes, que tinham o direito fundamental à Educação, estava fora da
escola ou em escolas especiais, em espaços segregados. Quem não
está muito perto disso, nunca se pergunta por que as crianças com
deficiência não estão na escola. Há muitas desculpas e justificati-

Juliana Daher 105


vas para elas não estarem lá. Algumas dizem da estrutura, outras
da falta de formação dos educadores. Há também as questões de
acessibilidade e de preconceitos. Alguns dizem que as crianças com
deficiência vão ser discriminadas e, por isso, é melhor para elas pró-
prias ficarem protegidas em um espaço só delas. Fala-se muito do
especialismo, fazendo parecer que para ser professor ou bibliote-
cário ou mediador de pessoas com deficiência o profissional pre-
cisa ser quase de outro planeta. A palavra “deficiente” faz parecer
que essas pessoas não são gente como nós, que não são sujeitos
e que, portanto, apenas um ser muito iluminado pode ser profes-
sor ou bibliotecário de estudantes com deficiência. Mas precisamos
ser seres iluminados para sermos educadores, professores, biblio-
tecários, com o compromisso de estudar e de aprender para estar
em contato com crianças e adolescentes. Como diz Caetano Veloso,
gente como a gente. Quem é professor tem que gostar de gente.
Precisamos amar, como afirma Hannah Arendt, o mundo e as pes-
soas. E a escola se dá nessa relação entre o mundo e as pessoas.
Por muito tempo nós aceitamos calmamente, passivamente e
às vezes até com certo alívio – Ufa! Na minha sala ainda não tem uma
criança com deficiência... No entanto, para ser uma professora, tenho
que ser professora de todas as crianças. Eu tenho que estudar, sim, mas
eu preciso pensar muito mais na didática, em estratégias para ensinar,
do que me tornar uma médica. Porque não se trata disso. O professor
não é fisioterapeuta, terapeuta ocupacional. Todos esses saberes são
muito importantes, mas na escola nós somos professores e na biblio-
teca nós somos bibliotecários. E quando somos mediadores de leitura,
não precisamos ser especialistas em deficiência visual. O que eu preciso
é conhecer as especificidades, as singularidades e, mais que tudo, os
recursos e as estratégias para que eu faça uma mediação para grupos
diferentes. Se eu sou uma mediadora de leitura, muito mais que saber
sobre a deficiência visual, suas causas e sintomas, eu preciso conhecer
sobre mediação de leitura diversificada, para acolher todas as pessoas.
Preciso criar mediações e modos de ser hospitaleira, formas de tirar a
hostilidade que está posta, muitas vezes, nessa relação.

106 Juliana Daher


Assim, mais do que nos preocuparmos com as patologias,
com as deficiências, que não nos dizem respeito, não fazem parte de
nosso ofício, devemos nos dedicar às pessoas. Como pensar uma ses-
são de cinema, uma exposição que seja para todas as pessoas, e não
especificamente para este ou aquele grupo? A Cultura é um bem a que
todos têm direito, que diz respeito a muitas manifestações e formas
de expressão e de simbolização, por meio de diferentes linguagens
artísticas. Ela não pode ter forma única ou ser homogeneizadora.
O direito à Cultura não deveria ser uma questão porque
existe o marco legal. Precisamos do marco legal porque, como socie-
dade, ainda não entendemos que a Cultura é de todos, com todos e
para todos. Mas o marco legal, por si só, não garante que todos res-
peitem as diferenças. Precisamos aprender a nos disponibilizar e a
estar com o outro, assumindo os nossos não saberes. Precisamos do
outro. E quem pode mais e nos ensina muito são as próprias pessoas
com deficiência. Não existem blocos de pessoas homogêneas. Em
um grupo de pessoas cegas, cada uma tem uma história, uma expe-
riência, um desejo, uma vontade. É na convivência, no estar juntos,
que vamos conseguir avançar.
As políticas públicas possibilitaram muitas conquistas sociais,
como a ampliação da escolaridade, a presença de pessoas com defi-
ciência na universidade, formando-se e podendo ter o direito a uma
profissão. Mas em 2020 vivemos uma tentativa de retrocesso, quando
o presidente da República criou uma nova política nacional de educa-
ção especial, que pelo “bem das crianças e pelo direito de suas famí-
lias” retoma o modelo de escola e classe especial. Mesmo sabendo
que a gestão desse governo seria difícil para nossa pauta, não imagi-
namos que poderíamos voltar a esse cenário de segregação em pleno
século XXI. Isso foi o maior retrocesso. Não podemos aceitar que as
crianças com deficiência, mais uma vez, não possam conviver com as
outras. Estamos falando de atos de discriminação, de atos criminosos.
Não por sorte, mas sim em função de muito trabalho e mili-
tância de muitas pessoas, este decreto está suspenso pelo Supremo
Tribunal Federal. Estamos aguardando a decisão do Supremo Tri-

Juliana Daher 107


bunal Federal. Participamos de um longo processo junto ao STF,
chamado amicus curiae, que significa “amigos da corte”, em que
pessoas e organizações fazem a defesa de uma pauta, neste caso o
modelo de escola inclusiva ou de escola especial.
E muitos grupos defenderam a volta da escola especial.
Estamos falando também de interesses econômicos. Guardar
pessoas com deficiência e pessoas com sofrimento mental, assim
como o sistema carcerário, gera muito dinheiro para alguns gru-
pos. Escolas especiais, onde tutelamos crianças e famílias, desde
o nascimento até a morte, significam muito poder sobre as almas
e sobre as vidas, o que, em última instância, significam poder de
decisão e votos. É disso que estamos falando: de uma sociedade
que fica tranquila em continuar como está. E de interesses econô-
micos de determinados grupos que ganham muito com a exclusão
e com a separação das pessoas.
Quero falar também do Plano Nacional de Cultura, que tem
muitas metas atinentes ao livro e à leitura. E especialmente da meta
29, que dizia que até 2020 todos os espaços de Cultura – bibliote-
cas, museus, cinemas, teatros – estariam acessíveis e com progra-
mação inclusiva. O Plano Nacional de Cultura foi prorrogado e ainda
está em vigor, mas isso é quase uma piada, uma vez que não temos
sequer Ministério da Cultura. Vale destacar, ainda, o Plano Nacional
do Livro e Leitura, que pauta as pessoas com deficiência em seus
quatro eixos, e a Política Nacional de Leitura e Escrita, também
conhecida como Lei Castilho,4 mas que seguem estagnadas como
tudo o mais no país.
E temos ainda a Lei Brasileira de Inclusão, conhecida como
Estatuto da Pessoa com Deficiência,5 cujos conceitos, princípios e
perspectivas estão pautados na Convenção Internacional dos Direi-
tos das Pessoas com Deficiência. Essa Lei detalha e regulamenta as
diretrizes e orientações para sua devida execução no país.

4 Lei 13.696 de 12 de julho de 2018. Institui a Política Nacional de Leitura e Escrita.


5 Lei 13.146 de 15 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência)
108 Juliana Daher
Falamos sobre vários marcos legais. Precisamos conhecer a
legislação e saber fazer cruzamentos. Queremos políticas e projetos
que sejam transversais. Somos minoria e para avançarmos precisa-
mos falar dez vezes. Essa pauta não pode ser apenas de quem traba-
lha pela promoção dos direitos das pessoas com deficiência. Ela tem
que ser de todo mundo.
Eu quero voltar à questão da leitura, da literatura e das pes-
soas com deficiência, trazendo uma citação da María Emilia López,
uma pesquisadora argentina, que me parece tão importante quanto
um artigo da Constituição:
o lugar que conferimos à palavra lúdica e poética, à leitura e à pre-
sença dos livros na vida das crianças é uma questão sobre a capa-
cidade de pensamento de uma sociedade, por sua habilidade para
inventar e reinventar o estado das coisas. (LÓPEZ, 2018, p. 78)

Muitas vezes o livro, a leitura e a literatura são minoritários.


A questão não é nem secundária. Ninguém entende o que signifi-
cam o livro e a leitura, o que significa ter acesso e poder produzir,
escrever a sua história, mas, especialmente em relação às pessoas
com deficiência, a importância de poder simbolizar, de poder fabu-
lar, de poder significar, criar e inventar. Para todas as pessoas, mas
para as pessoas com deficiência ainda é mais importante porque his-
toricamente não acreditamos e nunca criamos possibilidades para
elas significarem, simbolizarem, criarem. Tiramos delas o direito à
Educação e ainda tiramos o direito à leitura e à literatura. E isso por
conta da compreensão da deficiência naquele modelo do olhar, do
saber e da concepção médica.
Muitas de nós já escutamos coisas como “fulano tem a
idade mental de quatro anos e cronológica de dezessete”. Quando
nos pautamos por essa lógica, estamos dizendo e repetindo coisas
muito sérias. O QI é uma medida, é apenas uma forma de ler esse
sujeito. Quando eu digo que alguém tem a idade mental de quatro
anos, eu vou oferecer a ele apenas coisas que imagino serem para
crianças dessa idade. É uma delícia ser criança, seguir com alma de
criança, seguir crianceiro. Mas impingir a um sujeito experiências
Juliana Daher 109
como se ele pudesse responder apenas à capacidade de desenvolvi-
mento de uma criança de quatro anos é tirar dele o direito de poder
ser adolescente, adulto, idoso. Sonhar como adolescentes, ter expe-
riências e repertórios de adolescentes. Essa régua e essa medida
geram outras questões, pois uma criança de quatro anos também
não lê e não escreve. Não investimos nada nesses sujeitos porque,
de antemão, pensamos que eles não serão leitores, não serão escri-
tores. E aí não há livros, não há mediação, não há experiências. Esse
mundo inteiro não está presente na vida deles.
Com os outros grupos acontece algo semelhante. As pessoas
cegas têm outra relação com a leitura porque tiveram o braille. Mas qual
é o acervo que está disponível para elas? É o mesmo que nós temos?
As pessoas surdas têm a língua de sinais como primeira lín-
gua, aprendida tardiamente, e contam com pouquíssimos espaços
onde essa língua se faz presente, onde essas culturas interagem
e dialogam. Essa é uma língua gestual e visual, não é uma língua
escrita. Ela constrói outra lógica de pensamento, outra lógica de
ler o mundo. As pessoas surdas leem o mundo muito visualmente.
Faço uma defesa radical de escolas bilíngues inclusivas, onde as
crianças possam aprender português e libras. A relação da comuni-
dade surda com o português como segunda língua é meio distante
não em função da deficiência, mas sim porque não disponibilizamos
materiais de leitura, pouca literatura surda é publicada. Quem já leu
visualmente alguma produção surda? Qual é nossa relação com as
manifestações da cultura surda? Eu falo libras, estudo a língua há
muito tempo e sou apaixonada por ela. Existem muitas coisas para
serem estudadas, pesquisadas, aprendidas, produzidas e inventa-
das nas artes e na cultura. Precisamos aproximar os mundos.
Podemos nos posicionar de duas maneiras. Podemos dizer
“como é difícil, tem muito trabalho, é ruim, eu não sou boa de
expressão...”. Ou podemos pensar “quanta coisa para aprender,
quanta coisa para inventar, quanto coisa ainda não está posta...”.
Eu amo lidar com essa segunda forma de pensar. Sou muito feliz
e muito agradecida por trabalhar com pessoas com deficiência

110 Juliana Daher


desde os meus quinze anos de idade. Eu não tenho um dia igual, eu
aprendo todos os dias. Uma coisa é você aprender com uma pessoa
cega, o que já é incrível. Outra é conviver com uma pessoa surda,
também incrível. E o melhor é conviver com muitas pessoas – cegas,
surdas, com deficiência intelectual, autistas. O que gera, o que brota
e o que nasce quando estamos todos juntos é muito interessante. É
uma grande potência. Imaginem uma pessoa cega com uma pessoa
surda com pessoas ouvintes. Para a pessoa cega se relacionar com
a pessoa surda ou teremos libras tátil ou uma mediação. Estamos
falando de muitas possibilidades de tradução, de uma perspectiva
intersemiótica que se coloca. E quando falamos de leitura, falamos
de traduzir mundos. Quanto mais diferenças e diversidade houver,
mais possibilidades de ler e traduzir vamos ter.
Eu quero retomar a questão da leitura, da literatura, dos bens
culturais e da Educação como direitos humanos fundamentais e ine-
gociáveis. Não podemos mais negociar. Faço um chamamento para
que observemos como Educação e Cultura precisam estar juntas. A
literatura e os bens culturais produzem sentidos. Para que elas sejam
para todas as pessoas precisamos possibilitar muitas formas de sua
oferta, ressignificação e subversão. Uma Cultura que seja de todos,
construída por todos e para todos amplia o repertório de todos nós.
Existem muitas formas, diferentes formas, de ver, de pensar, de ler,
de escrever, de sentir, de escutar e de habitar o mundo. Educação e
Cultura precisam ser entendidas como bens públicos, comuns e dis-
poníveis para todos, e não como privilégio de alguns.

Referências
FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 2001.
LÓPEZ, María Emilia. Um mundo aberto. Cultura e primeira infância.
Trad. Cícero Oliveira. São Paulo: Instituto Emília, 2018.

Juliana Daher 111


As crianças com
deficiência visual e
seu direito à leitura
Cleide Fernandes

— Quer saber de verdade?


— Então… fecha os olhos!
Victoria Pérez Escrivá e Claudia Ranucci

É assim que termina o instigante Fecha os olhos publicado no Brasil


pela editora Comboio de Corda (2011). Na história, dois irmãos conver-
sam sobre sua percepção a respeito de seres e objetos. Cada um des-
creve como percebe uma árvore, uma cobra, um relógio, um sabão,
uma lâmpada, a lua, o pai e a noite. Entretanto, um dos irmãos não
concorda com o jeito que o outro vê as coisas. Por fim, a mãe dos
meninos convida o primeiro irmão a fechar os olhos para imaginar
como o outro vê o mundo. Então, nós, os leitores, entendemos que o
menino que tem uma visão “diferente” das coisas é cego.

Juliana Daher 115


Gosto muito deste livro porque ele apresenta, de forma
simples e poética, como uma criança com deficiência visual pode
perceber a vida ao seu redor, usando seus outros sentidos. Para as
pessoas enxergantes o mundo é visual, pois somos bombardeados
por estímulos visuais o tempo todo. Podemos, equivocadamente,
até acreditar que a visão é o principal sentido humano, tamanha é
sua prevalência sobre os demais. Entretanto, o mundo pode e deve
ser percebido de diferentes maneiras.
Meu interesse pelos estudos sobre acessibilidade e inclusão
começou em 2014, quando assumi a coordenação do Setor Braille da
Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais. Ser bibliotecária me pro-
porciona a oportunidade de aprender sempre e confesso que isso
aconteceu nos doze meses em que estive no Setor. A aproximação
com esse universo, que é também de todos nós como sociedade,
tem sido uma experiência de muita aprendizagem para mim. Este
texto é um convite à partilha do caminho percorrido desde então,
que tem se desdobrado em muitos projetos e, especialmente, em
um desejo de aprofundamento no tema.
Por ser ainda pouco conhecida para além dos limites das pes-
soas e instituições diretamente envolvidas com a área, é muito impor-
tante nos estudos sobre e nas práticas com pessoas com deficiência a
reafirmação da Lei Brasileira de Inclusão, que no seu Art. 2º estabelece
a base conceitual para a definição da pessoa com deficiência:
Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedi-
mento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igual-
dade de condições com as demais pessoas. (BRASIL, 2015, p. 8-9)

O marco legal, imprescindível na construção de direitos, nos


traz a ideia de que barreiras podem impedir uma pessoa com deter-
minadas características de participar plenamente da vida em socie-
dade. Isso significa que o problema não está na pessoa que tem
deficiência, uma vez que eliminadas as barreiras, ela poderá viver
em igualdade de condições com as demais. Esse aspecto é muito

116 Juliana Daher


importante porque desloca a questão do acesso das pessoas com
deficiência para os obstáculos que elas encontram para participar
da vida comum em sociedade. Dito de outra maneira, a questão está
nas coisas que não foram pensadas de forma inclusiva, para todas as
pessoas, mas sim para um padrão excludente.
A legislação aponta essa mudança histórica no modo de
lidar com as pessoas com deficiência. Ao longo do tempo, essas
pessoas foram exterminadas, maltratadas, exiladas, encarceradas
e sofreram com a indiferença de um mundo que valoriza o que é
“padrão”, “normal’’. Devemos às famílias, aos movimentos sociais
e às instituições dedicadas a reivindicações dos direitos das pessoas
com deficiência a possibilidade de construir uma sociedade em que,
nas palavras de Charles Gardou (2018, p. 16), “não há vida minúscula,
nem vida maiúscula”.
São muitos e diversos os obstáculos que limitam a vida social
da pessoa com deficiência. Ao trabalhar diariamente com esse público
no ambiente da biblioteca pude identificar muitas barreiras, já aponta-
das na legislação, que impactam em demandas simples do cotidiano:
a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços
públicos e privados abertos ao público ou de uso coletivo;

b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públi-


cos e privados;

c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e


meios de transportes;

d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer


entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou
impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de
informações por intermédio de sistemas de comunicação e de
tecnologia da informação;

e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que


impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com
deficiência em igualdade de condições e oportunidades com
as demais pessoas;

Juliana Daher 117


f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso
da pessoa com deficiência às tecnologias (BRASIL, 2015, p. 10)

Como educadoras/es e agentes culturais, é urgente que tra-


balhemos para a redução ou até mesmo a destruição dessas bar-
reiras. As primeiras a cair devem ser as atitudinais, que podem nos
impedir de considerar as pessoas com deficiência como sujeitos ple-
nos de direitos. Por isso, a inclusão não acontece sem acessibilidade.
De acordo com Romeu Sassaki (2019, p. 10), a acessibilidade
apresenta seis dimensões que facilitam a vida e a inclusão das pes-
soas com deficiência: arquitetônica, que elimina as barreiras físicas;
comunicacional, em que não há barreiras na comunicação; metodo-
lógica, em que não há barreiras nas técnicas e métodos; programá-
tica, em que não há barreiras nas políticas públicas, normas e legis-
lações; instrumental, em que não há barreiras nos instrumentos, nas
ferramentas, nos utensílios etc.; e atitudinal, em que não há precon-
ceitos, estereótipos, estigmas e discriminações contra as pessoas
com deficiência. É a partir dessas dimensões que devemos pensar
os recursos de acessibilidade que melhor atenderão às pessoas com
deficiência em diferentes contextos: no trabalho, na educação, no
lazer, na cultura etc.
Meu interesse pela promoção dos direitos das pessoas
com deficiência vem se mostrando afim ao gosto pelos livros
para crianças e jovens. Neste texto gostaria de abordar especial-
mente os recursos de acessibilidade para a leitura das crianças
com deficiência visual no contexto da Educação e da Cultura,
áreas de minha atuação.
De acordo com Antonio Candido,
(...) a literatura aparece claramente como manifestação univer-
sal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não
há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade
de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim
como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar
as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega
ao universo fabulado. (CANDIDO, 1989, p. 176)

118 Juliana Daher


Assim, consideramos que as crianças com deficiência têm
direito aos bens de leitura, como todas as pessoas. As barreiras para
essas crianças em geral, e para as cegas, em particular, podem ser
eliminadas com a adoção de recursos de acessibilidade que promo-
vam o acesso à leitura. Rompidas as barreiras atitudinais, que mui-
tas vezes impedem que os direitos sejam compreendidos efetiva-
mente como direitos, e não como assistencialismo, novos recursos
de acessibilidade podem ser desenvolvidos e os existentes serem
oferecidos para que todas as crianças possam ter acesso ao conhe-
cimento e às narrativas guardados pelos livros. A garantia de direi-
tos tem como exigência o conhecimento das conquistas, dentre as
quais estão, indiscutivelmente, os recursos de acessibilidade para a
leitura por pessoas com deficiência:
a) livros em braile: impressos em relevo a partir do sistema
de leitura e escrita, desenvolvido por Louis Braille no século
XIX, e destinado a pessoas cegas por meio do tato. Sua escrita
é baseada na combinação de 6 pontos, dispostos em duas
colunas de 3 pontos, que permite a formação de 63 caracte-
res diferentes, que representam letras, números, símbolos
aritméticos, fonéticos e musicográficos. São extremamente
importantes para o acesso autônomo da pessoa cega ao
mundo escrito. A Fundação Dorina Nowill para Cegos é a prin-
cipal produtora de materiais em braile no Brasil;
b) audiolivros: livros em formato de áudio, que também são
chamados de livros falados ou audiobooks. Normalmente são
gravados em estúdio, lidos de forma pausada e com interpre-
tação, buscando considerar o gênero literário e a faixa etária
do público a que se destinam. Podem contar com a utilização
de efeitos sonoros e trilhas musicais que ajudem o ouvinte a
se aproximar da atmosfera do que está sendo narrado;
c) livros em duas escritas - braile e tinta: são livros que apre-
sentam texto em tinta, também transcrito para o braile. É bas-
tante utilizado em textos para crianças cegas ou com baixa
visão. A fonte costuma ser ampliada e com alto contraste;

Juliana Daher 119


d) livros digitais em texto: estão disponíveis em arquivos digi-
tais, em formato reconhecido por software leitor de tela (tais
como Jaws, NVDA etc.), devendo todo o conteúdo gráfico e
imagético ser descrito para que possa ser realmente acessí-
vel. Normalmente é produzido nos formatos .pdf e .txt;
e) livros audiovisuais bilíngues português-Libras: produzidos
em português e Libras, visando a fortalecer o bilinguismo, a
identidade linguística da comunidade surda, a disseminação
da Libras para diferentes públicos e a equiparação de opor-
tunidades. O conteúdo em português pode ter a legenda do
texto original e a narração em áudio. O conteúdo em Libras é
apresentado em vídeo por um surdo ou intérprete. Este for-
mato de livro audiovisual pode ser disponibilizado em DVD,
internet, QR Code etc.;
f) livros em leitura fácil: publicações que seguem diretrizes da
International Federation of Library Associations and Institutions
(IFLA) em relação à linguagem, ao conteúdo e à forma. Ima-
gens, pictogramas e glossários apoiam o texto para ampliar a
compreensão. A leitura fácil, que se apoia na simplificação da
linguagem, foi inicialmente desenvolvida para pessoas com
deficiência intelectual, mas tem sido utilizada também por
pessoas com baixo letramento e neoleitores de diferentes ida-
des. Infelizmente, ainda há poucos títulos nesse formato no
Brasil. A proposta tem gerado muita polêmica, especialmente
em textos literários, por causa da simplificação da linguagem
que, no entendimento de alguns, compromete a construção
estética original da narrativa;
g) livros audiovisuais acessíveis: combinação de vários forma-
tos em um mesmo suporte contendo, por exemplo, o texto
em língua portuguesa, animações, narração, descrição de ima-
gens (audiodescrição), glossário com palavras pouco comuns
e janela de Libras. Este formato aproxima-se dos princípios
do Desenho Universal, segundo o qual os espaços, artefatos,
produtos e serviços devem atender simultaneamente a todas
120 Juliana Daher
as pessoas, com diferentes características antropométricas e
sensoriais, de forma autônoma, segura e confortável.¹
h) livros táteis: publicações ilustradas com diferentes mate-
riais e texturas destinadas originalmente a crianças com defi-
ciência visual. Há indícios de que os primeiros livros desse
tipo surgiram na Itália, no início dos anos 1970, para auxiliar a
aprendizagem de crianças com deficiência visual. Eles atuam
ainda como elemento de inclusão infantil, promovendo inte-
rações sociais entre os colegas (FREITAS et al., 2020, p.118),
porque podem ser lidos também por crianças com visão regu-
lar. No Brasil, o Instituto Benjamin Constant produz alguns
materiais nesse formato, realiza concursos nacionais de cria-
ção de livros táteis e representa o país em competições inter-
nacionais. Um dos mais importantes concursos do mundo,
que estimula a produção e dá visibilidade ao livro tátil, é o
Typhlo & Tactus, organizado pela associação editorial francesa
Les Doigts Qui Rêvent.

Não foi minha intenção ser exaustiva na lista de recursos apre-


sentada, pois cada um deles tem suas especificidades, que deman-
dam atenção e tempo para serem compreendidas. Pretendi apenas
listar alguns formatos de livros existentes, infelizmente ainda desco-
nhecidos de muitas pessoas, incluindo muitas das que se dedicam ao
atendimento de crianças em escolas e espaços culturais. É importante
que os profissionais conheçam esses recursos e contribuam, em suas
áreas de atuação, para sua disponibilização às pessoas com deficiên-
cia. Além de demandar, sempre que possível, que instituições públi-
cas e privadas cumpram a legislação no que se refere à acessibilidade.
Nos últimos seis anos, pautei e discuti o tema com equipes
de bibliotecas públicas e comunitárias, refletindo sobre o trabalho
nesses equipamentos culturais. Bibliotecas acessíveis ainda não são
realidade no nosso país. Em 2021, iniciei um curso de especialização

1 A OSCIP Mais Diferenças, de São Paulo, tem produzido alguns títulos nesse for-
mato: https://maisdiferencas.org.br/biblioteca/livros/

Juliana Daher 121


em Audiodescrição (AD) pela PUC Minas, com o intuito de ampliar
meus conhecimentos na área. Assim, gostaria de abordar, a partir
de agora, esse recurso, que não carece de grandes investimentos
para ser aplicado e tem potencial para ampliar os horizontes das
crianças com deficiência visual, foco deste texto.
De acordo com Eliana Franco e Manoela Silva (2010, p. 24),
“enquanto atividade técnica e profissional, a AD nasceu em meados
da década de 70 [1975] nos Estados Unidos, a partir das ideias desen-
volvidas por Gregory Frazier.” No Brasil, foi utilizada em público pela
primeira vez em 2003. Ou seja, a AD é ainda um campo de estudo e
de atuação extremamente novo.
Considerada um tipo de tradução intersemiótica, a AD, nas
palavras de Lívia Motta,
é um recurso de acessibilidade comunicacional que amplia o
entendimento das pessoas com deficiência visual em todos os
tipos de eventos, sejam eles acadêmicos, científicos, sociais ou
religiosos, por meio de informação sonora. Transforma o visual
em verbal, abrindo possibilidades maiores de acesso à cultura
e à informação, contribuindo para a inclusão cultural, social e
escolar. Além das pessoas com deficiência visual, a audiodescri-
ção amplia também o entendimento de pessoas com deficiência
intelectual, idosos, pessoas com déficit de atenção, autistas, dis-
léxicos e outros. (MOTTA, 2016, p. 15-16)

Nesta perspectiva, a AD pode auxiliar as pessoas a compre-


enderem informações visuais em diversas situações. Mas é para as
pessoas cegas ou com baixa visão que ela se apresenta como uma
possibilidade para o acesso ao mundo visual, junto com o tato. É
importante destacar que na ausência da visão, o sentido do tato,
por meio do toque ativo, passa a ser uma das formas, talvez a mais
significativa, pela qual a pessoa cega apreende o mundo ao seu
redor. J.J. Gibson (1962), citado e traduzido por Sérgio Honorato e
Gilson Braviano (2012), explica o toque ativo:
toque ativo é um estudo exploratório ao invés de um sentido
meramente receptivo. A este respeito, esses movimentos de

122 Juliana Daher


tocar dos dedos são como os movimentos dos olhos. Na ver-
dade, o toque ativo pode ser denominado digitalização táctil,
por analogia com a digitalização ocular. Por meio do tato ativo
muitas propriedades do ambiente adjacente pode ser percebido
(sic) na ausência da visão. O cego depende dela para a maioria
das suas informações sobre o mundo. (GIBSON, 1962, p. 477
apud HONORATO; BRAVIANO, 2012, p. 76)

Assim, algumas possibilidades se apresentam para que a


criança cega descubra o mundo: toque, descrição de imagens feita
por quem a cerca, exploração tátil de miniaturas de grandes objetos
(monumentos, aviões, navios, animais etc.), dentre outras. Dessa
maneira, seu repertório imagético vai sendo formado, e será mais
ou menos rico de acordo com a qualidade dos estímulos recebidos.
Toda a comunidade que circunda uma criança cega passa a contri-
buir para a construção de seu mundo imagético.
As possibilidades tecnológicas de reprodução de conteúdos,
como os audiolivros e os leitores de tela, por exemplo, não substi-
tuem a alfabetização em braile. No ambiente escolar, a criança cega
deve ter acesso à cultura escrita, assim como as enxergantes. Vítor
Reino (2000) destaca a importância da alfabetização em braile:
o Braille é reconhecidamente o único meio “natural”, “universal” e
indispensável de leitura para as pessoas privadas de visão, e confere
àqueles que o usam como sistema original de leitura/escrita e o uti-
lizam intensivamente, maior capacidade para desenvolver hábitos
de leitura estáveis, ascender a graus superiores de formação acadê-
mica e obter maior sucesso profissional. (REINO, 2000, s.p.)

Assim como o aprendizado do sistema Braille é um direito


da pessoa cega, a audiodescrição também o é enquanto recurso
de acessibilidade comunicacional, que possibilita o acesso à
informação, à educação, à cultura e ao lazer, que não podem ser
percebidos apenas pelo toque.
No decorrer dos estudos do curso de audiodescrição, me
deparei com a inexistência de trabalhos sobre a audiodescrição de
livros ilustrados. Este tipo de material, bastante utilizado na educa-

Juliana Daher 123


ção infantil, apresenta ilustração, texto e materialidade do próprio
livro como um todo indissociável, conforme define Sophie Van der
Linden (2011) em seu já clássico Para ler o livro ilustrado. Atualmente
há vasta produção deste tipo de material no Brasil, com publicações
primorosas. As crianças com deficiência devem ter acesso, mesmo
que com certas limitações, a esses livros.
Como parte do trabalho final de uma das disciplinas do curso
de especialização, me propus a escrever um roteiro de AD para um
livro ilustrado, como uma experimentação. Para se elaborar um roteiro
de AD há vários princípios a serem seguidos, de acordo com o tipo de
material a ser audiodescrito. Não há ainda, como já mencionei, estudos
que norteiam a elaboração de roteiros para esse tipo de material, talvez
em função da AD ser um campo relativamente novo. Assim, comecei a
trabalhar no roteiro a partir de minha experiência como bibliotecária
e pesquisadora dos livros para crianças e de algumas diretrizes de AD
para imagens estáticas, apresentadas por Lívia Motta (2016):

– os orientadores de uma descrição são: o que/quem,


onde, como, faz o que, quando;
– quando possível, é interessante identificar o tipo de téc-
nica utilizada nas ilustrações;
– em ilustrações isoladas, dar uma ideia geral do que está
representado na imagem para depois se ater aos detalhes;
– organizar os elementos descritivos em um todo signifi-
cativo. Quando houver pessoas na ilustração, o texto deve
ser organizado a partir do sujeito da ação, o que facilita o
encadeamento dos elementos imagéticos.
– mencionar cores e outros detalhes importantes;
– usar artigos indefinidos quando é a primeira vez que apa-
rece determinado elemento ou pessoa. Usar artigos defini-
dos quando já forem conhecidos;
– o tempo verbal deve estar sempre no presente;

124 Juliana Daher


– mencionar as imagens de fundo e outros recursos gráfi-
cos utilizados que podem completar o significado e tradu-
zir a intenção do escritor/ilustrador.

Essas são diretrizes básicas que auxiliam na organização


das informações e podem ser aplicadas a vários tipos de materiais,
como fotografias e obras de arte, por exemplo. O livro escolhido
para o experimento foi Eu falo como um rio, escrito por Jordan
Scott e ilustrado por Sydney Smith, publicado no Brasil pela editora
Pequena Zahar (2021). O resultado foi um roteiro bastante enxuto e
mais fluido, buscando um diálogo entre a audiodescrição, o texto e
a materialidade do próprio objeto. A título de exemplo, apresento
duas páginas do livro, com o roteiro de audiodescrição:

Figura 1 - Eu falo como um rio (SCOTT; SMITH, 2021, p.14-15)

Audiodescrição: Ilustração grande do rosto do menino, que está


com os olhos bem abertos. Riscos amarelos parecidos com as folhas
e galhos do pinheiro cobrem o rosto do menino. Esses riscos for-
mam a imagem do corvo, da lua crescente e algo que parece um
rio estreito. (Roteiro: Cleide Fernandes. Consultoria: Gabriel Aquino)

Juliana Daher 125


Figura 2 - Eu falo como um rio (SCOTT; SMITH, 2021, p.20-21)

Audiodescrição: Paisagem exuberante com árvores grandes, o pai,


o menino e um rio. O rio está com as águas calmas, refletindo as
árvores escuras. Um pato nada tranquilamente. (Roteiro: Cleide Fer-
nandes. Consultoria: Gabriel Aquino)

O livro ilustrado é desafiador por promover possibilidades


de leitura que envolvem os aspectos visual e o texto escrito (ou
roteiro, no caso de livro sem texto). Algumas vezes é no virar de
uma página que se dá sentido à narrativa, há uma surpresa que salta
aos olhos, nem sempre possível de ser traduzida para a pessoa cega.
O livro Eu falo como um rio não apresentou esse desafio em particu-
lar, mas tem uma página que se desdobra em quatro, formando um
grande rio. Esse recurso gráfico entrou no roteiro da AD para que a
criança pudesse ter acesso a essa possibilidade de leitura.
Vale destacar que no processo de audiodescrição, além do/a
audiodescritor/a roteirista, é muito importante a avaliação do texto
por um/a audiodescritor/a consultor/a. Conforme explica Felipe
Mianes (2018, p. 145) este “é o membro da equipe que representa
o usuário e que ao mesmo tempo tem qualificação profissional para
aliar suas experiências e vivências de pessoa com deficiência visual
126 Juliana Daher
ao conhecimento técnico sobre audiodescrição”. Assim, idealmente,
o trabalho de audiodescrição é feito em equipe. E, com a parceria de
Gabriel Aquino, o roteiro de Eu falo como um rio continua sendo apri-
morado para que possibilite o acesso das pessoas cegas à obra.
A título de breve conclusão, posso afirmar que ainda há
muito a ser feito para que nossas crianças com deficiência sejam
reconhecidas como sujeitos de direitos e tenham amplo acesso
à educação e à cultura. Deixo o convite a todos e todas para que
incluam este público em suas reflexões e em seus percursos pro-
fissionais, considerando a contribuição que cada um/a pode dar à
construção de uma sociedade mais inclusiva.

Referências
BRASIL. Estatuto da pessoa com deficiência. Brasília: Senado Federal,
Coordenação de Edições Técnicas, 2015.
FRANCO, Eliana Paes Cardoso; SILVA, Manoela Cristina Correia Car-
valho da. Audiodescrição: breve passeio histórico. In: MOTTA, Lívia
Maria Villela de Mello; ROMEU FILHO, Paulo (Org.). Audiodescri-
ção: transformando imagens em palavras. São Paulo: Secretaria de
Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010. p. 23-42.
FREITAS, Cláudia Rodrigues de et al. Livros ilustrados táteis: uma
possibilidade de acesso à literatura para crianças com deficiência
visual em fase de letramento. Revista Electrónica de Investigación y
Docencia (REID), n. 24, p. 115-129, 2020. Disponível em: https://revis-
taselectronicas.ujaen.es/index.php/reid/article/view/4989. Acesso
em: 13 mar. 2022.
FUNDAÇÃO Dorina Nowill para Cegos. São Paulo, [2022?]. Apresenta
a associação sem fins lucrativos e de caráter filantrópico. Disponível
em: <http://fundacaodorina.org.br/>. Acesso em: 31 mar. 2022.
GARDOU, Charles. A sociedade inclusiva: falemos dela!: não há vida
minúscula. Belo Horizonte: Fino Traço, Ed. UFMG 2018.

Juliana Daher 127


HONORATO, Sérgio; BRAVIANO, Gilson. A formação da imagem
mental em deficientes visuais. Educação Gráfica, v. 16, n. 3, 2012.
LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac
Naify, 2011.
MAIS Diferenças. São Paulo, [2022?]. Biblioteca de livros acessíveis.
Disponível em: <https://maisdiferencas.org.br/biblioteca/livros/>.
Acesso em: 31 mar. 2022.
MIANES, Felipe Leão. Consultoria em audiodescrição: da técnica à
participação social da pessoa com deficiência. In: MAYER, Flávia;
PINTO, Júlio (org). Perspectivas contemporâneas em audiodescrição.
Curitiba: Editora CRV, 2018. p.143-159.
MOTTA, Lívia Maria Villela de Mello. Audiodescrição na escola: abrindo
caminhos para leitura de mundo. Pontes Editora: Campinas, 2016.
PÉREZ ESCRIVÁ, Victoria; RANUCCI, Claudia. Fecha os olhos. São
Paulo: Comboio de Corda, 2011.
REINO, Vítor. Ensino/Aprendizagem do Braille. Actas do Colóquio “O
Braille que Temos, o Braille que Queremos”. Lisboa: Biblioteca Nacio-
nal, 2000. Disponível em http://www.deficienciavisual.pt/txt-ensino-
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SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: acessibilidade no lazer, trabalho e
educação. Revista Nacional de Reabilitação (Reação), São Paulo, Ano
XII, mar./abr. 2009, p. 10-16. Disponível em: <https://files.cercomp.
ufg.br/weby/up/211/o/SASSAKI_-_Acessibilidade.pdf?1473203319>.
Acesso em: 03 mar. 2022.
SCOTT, Jordan; SMITH, Sydney. Eu falo como um rio. São Paulo:
Pequena Zahar, 2021.
TYPHLO & Tactus. Talant (France), [2022?]. Disponível em: <http://tac-
tus.org/typhlo-tactus/what-is-tt/?lang=en>. Acesso em: 31 mar. 2022.

128 Juliana Daher


Os quartos de crianças
como - um dos -
espaços de leitura
Cibele Carvalho

Um quarto para si¹


Em Sobre a leitura (2020), Marcel Proust busca rebater o argumento
do crítico de arte John Ruskin, para quem a leitura seria uma con-
versa com pessoas virtuosas de tempos passados, tendo por princi-
pal função a formação para a vida. Nas palavras de Proust, gostaría-
mos que o livro nos desse respostas “quando tudo o que pode fazer
é nos dar desejos” (2020, p. 30).
Antes de desenvolver esse contra-argumento, no entanto, o
romancista francês faz uma pequena ressalva que, por se tratar de
uma digressão proustiana, nem é tão pequena, nem deve ser des-

1 Este texto é parte de uma pesquisa de pós-doutorado realizada com apoio da Coor-
denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).

Juliana Daher 131


prezada. Apesar de relativizar a importância conferida por Ruskin
aos livros, Proust observa que as leituras de infância seriam as úni-
cas verdadeiramente memoráveis. No entanto, prossegue, o que
elas deixariam para nós seria, sobretudo, “a imagem dos lugares e
dos dias que as fizemos” (2020, p. 23).
O argumento é interessante porque contraria a ideia do
senso comum de que as leituras realizadas nos primeiros anos de
vida transportariam as crianças para outro tempo e lugar, um mundo
de imaginação e fantasia que seria aberto por expressões como: “há
muitos anos atrás”, “no tempo em que os bichos falavam” ou “em
um reino muito distante”. Ao contrário, o que Proust parece propor
é a leitura na infância como uma espécie de ancoragem.
Contudo, assim como são múltiplas as infâncias, os tem-
pos e os espaços de ler também o são. De modo que o espaço de
leitura rememorado pode ser a mesa alta da biblioteca da escola,
onde a criança se entrega ao empuxo do texto e de onde se levanta
“coberta pela neve do lido”, como descreve Benjamin (2009). Ou
pode ser um espaço ao ar livre, como nas cenas de leitura pintadas
por Eliseu Visconti (ver a seguir) que têm por cenário praças e jar-
dins. Muito frequentemente, porém, o espaço que abriga o corpo
da criança leitora e o objeto livro é seu próprio quarto.

Figura 1. Reprodução da tela Sob Folhagens de Eliseu Visconti, 1915


Fonte: projeto Eliseu Visconti

132 Juliana Daher


Figura 2. Reprodução da tela A Família do Artista de Eliseu Visconti, 1918
Fonte: projeto Eliseu Visconti

Lugar de dormir, de brincar, de estudar, mas também


espaço privilegiado para a fruição da leitura, esse cômodo consi-
derado imprescindível nas moradias urbanas das classes favoreci-
das, nem sempre existiu nas configurações espaciais domiciliares.
Grosso modo, pode-se dizer que só no século XIX o quarto surgiu
nas plantas arquitetônicas residenciais (PERROT, 2011), fruto do
reconhecimento crescente da criança como sujeito social ao longo
da modernidade (ARIÈS, 1981), mas também decorrente da espe-
cialização dos ambientes domésticos (DIBIE, 1988; RYBCZYNSKI,
1996) que determinou para cada cômodo uma função específica.²
A partir de 1950, observa-se uma crescente importância atri-
buída aos quartos de criança: os móveis passam a ser produzidos

2 Rybczynski (1996) mostra, por exemplo, como na França do século XVII, não
havia salas de jantar. As mesas, assim como os leitos e outros móveis, eram des-
montáveis, de forma que as refeições poderiam acontecer em qualquer espaço
da casa. Os quartos, por sua vez, eram espaços para se dormir, mas neles também
ocorriam encontros sociais.

Juliana Daher 133


em escala industrial, o consumismo emerge como estilo de vida das
famílias burguesas e é difundida na sociedade uma crescente preo-
cupação com a educação das crianças. Nesse contexto, os quartos
infantis passam a ter espaço garantido nas revistas de decoração
(DANTAS, 2012, 2014).
Além disso, essa transformação na configuração do
ambiente doméstico está também relacionada a uma crescente
individualização percebida a partir da segunda metade do século
XX, que permitiu, a cada membro da família, inclusive em alguma
medida às crianças, exercer a sua privacidade (DE SINGLY, 2006).
O processo de urbanização, o aumento da violência urbana
e o surgimento das novas tecnologias digitais também contribuíram
para a retração da sociabilidade das crianças, deslocando o lazer desse
grupo geracional do espaço público para o privado e daí para os espa-
ços individualizados dos quartos (BUCKINGHAN, 2007), fenômeno
que vem sendo denominado cultura do quarto (GLEVAREC, 2010).
Evidentemente, esse modelo não pode ser universalizado,
uma vez que coexistem outras dinâmicas espaciais e diferentes con-
figurações de espaços públicos e privados em culturas diversas. No
entanto, nas camadas socialmente favorecidas dos meios urbanos,
a reserva de um quarto para cada filho tem se tornado padrão.³ O
que conta aqui não é somente a posse de recursos econômicos e as
transformações anteriormente descritas, mas também alterações
demográficas que fizeram reduzir o tamanho da família brasileira4
nos últimos 50 anos. Tanto é que mesmo nas famílias abastadas da
segunda metade do século XX, em geral, somente o primogênito
teria a chance de usufruir de um espaço só seu até o nascimento do

3 Entre 2016-2017, realizei uma pesquisa sobre os quartos de crianças de famílias


socialmente favorecidas, que incluiu entrevistas com um dos responsáveis. Todos os
pais respondentes da pesquisa (n=20) afirmam ter dividido o quarto com os irmãos
na infância, enquanto que, entre as 31 crianças participantes da pesquisa, 25 possuem
um quarto exclusivamente para si e apenas 6 partilham o quarto com um irmão ou
irmã (CARVALHO, 2018).
4 A família brasileira passou de 5,8 filhos por casal em 1970 para uma média de 2 filhos
por casal (IBGE, 2015)

134 Juliana Daher


primeiro irmão, ou o caçula poderia conhecer essa realidade depois
do casamento do irmão imediatamente mais velho.
Por fim, a “cultura do quarto” decorre ainda de um qua-
dro de maior autonomização cultural da infância, que possibilitou
o surgimento dos brinquedos e dos livros infantis. Sobre a relação
entre a produção cultural para crianças e os quartos infantis, em seu
livro História dos quartos, Michelle Perrot (2011, p. 113) afirma que
é “graças ao brinquedo que aparece a necessidade de um espaço
específico para as crianças”. Essa hipótese também já havia sido for-
mulada por Benjamin (2010) quando o autor sugere que a amplia-
ção da dimensão dos livros e os brinquedos, fato verificado a partir
da segunda metade do século XIX, seriam responsáveis pelo surgi-
mento dos quartos infantis. Sem esses cômodos, os filhos pequenos
espalhariam seus pertences por toda a casa, perturbando com isso
a ordem adulta. Assim, não deixa de ser interessante imaginar que o
livro infantil possa, ele também, ter dado a sua parcela de contribui-
ção na configuração do espaço das crianças no ambiente doméstico,
propiciando a individualidade das crianças, mas também garantindo
a privacidade dos adultos.

Um livro todo seu


O processo de individuação dos espaços domésticos é correlato ao
da leitura. Antes da Europa moderna, os textos eram escassos e o
número de alfabetizados reduzido, sendo a leitura uma atividade
social quase sempre praticada em voz alta.
A invenção do tipo móvel por Johannes Gutenberg no
século XV possibilitou a produção em massa de materiais escritos e
a ampliação do público leitor. A partir da revolução cultural operada
pela difusão dos textos (CHARTIER, 1999; CHARTIER e CAVALLO,
1999), cada leitor passa a ter contato com uma quantidade maior
de obras, sendo possível, a partir de então, possuir seus próprios
livros e até mesmo constituir uma biblioteca pessoal. Descrito por
Chartier (1999) como a passagem de uma leitura intensiva a uma
leitura extensiva, essa transformação e a autonomização cultural

Juliana Daher 135


da infância foram fatores que possibilitaram também às crianças de
famílias social e culturalmente favorecidas obterem seus próprios
exemplares e constituírem suas bibliotecas pessoais.
Quais seriam, porém, as implicações de ter um livro “para se
ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o” como narra a per-
sonagem do conto Felicidade Clandestina de Clarice Lispector (1985,
p.10)? Em que diferem as experiências de ler em uma mesa de biblio-
teca compartilhada com leitores desconhecidos, ler com o corpo
estirado na areia da praia ou ler um livro da sua biblioteca pessoal na
sua própria cama?

Leitura no quarto: uma criação familiar


Antes de responder essas perguntas, talvez seja interessante
questionar até que ponto podemos pensar que são pessoais as biblio-
tecas infantis, compostas quase sempre por exemplares comprados e
organizados por adultos, ainda que, no melhor dos casos, esses adul-
tos sejam sensíveis aos gostos e demandas das crianças.
Talvez ajude considerar que, assim como os quartos, as
bibliotecas domésticas infantis são, em alguma medida, criações
familiares (SEGALEN; LE WITA, 1993). Isso quer dizer que, quase
sempre, são os pais que escolhem o acervo, levando em considera-
ção as possibilidades e os limites da oferta do mercado, os critérios
literários subjetivos mais ou menos refletidos e uma dimensão afe-
tiva que não subtrai, evidentemente, o próprio interesse da criança.
Assim, entre outras coisas, a biblioteca do quarto das crianças
comunica as expectativas parentais no que diz respeito à relação
entre a criança e o saber de uma forma mais ampla, mas também em
relação à literatura e às histórias, mais especificamente.
Da mesma forma que a indústria do brinquedo, o mercado
editorial também não desconhece o comportamento dos pais em
relação aos livros infantis, relançando constantemente títulos que
marcaram gerações anteriores como estratégia para atraí-los. Assim,
reunindo livros adquiridos ou herdados de gerações anteriores, a
biblioteca pessoal revela o capital cultural familiar (BOURDIEU, 1998),

136 Juliana Daher


ou seja, um conjunto de recursos e habilidades relativos à cultura, no
caso deste texto, relativos à cultura literária, que é valorizado em mui-
tos espaços sociais e, principalmente, na escola. O capital cultural lite-
rário pode se apresentar tanto em seu estado objetificado - ou seja,
como um bem material que é o livro, principalmente no que diz res-
peito às edições raras e às traduções consideradas mais adequadas
-, como também ele pode estar em sua forma incorporada, relativa
às formas consideradas legítimas de experimentar a leitura. Assim,
ao ganhar ou herdar o objeto-livro, as crianças herdam também for-
mas mais ou menos legítimas de se relacionar com a literatura, em
um aprendizado que deve sua eficiência ao seu caráter precoce, coti-
diano e, por isso mesmo, pouco consciente.
Carregada de afeto, essa transmissão é também poten-
cializada pela ação do tempo, de forma que, tão maior tende a
ser a familiaridade com a leitura quanto mais antiga é a relação
com os livros nas gerações anteriores. Evidentemente, não se
trata de um destino e nem de uma herança compulsória - há pes-
soas que nasceram em casas repletas de livros, mas que se desfi-
liam desta prática familiar. São, no entanto, considerados casos
improváveis (LAHIRE, 1995). Além do mais, no que diz respeito
à herança do gosto leitura, sua transmissão é incompatível com
qualquer obrigatoriedade ou imposição (SINGLY, 2009), sendo
mais eficaz quanto mais encoberta pelo prazer, pela gratuidade
e pela autonomia (PENNAC, 1992).
Sobre esse incentivo tão silencioso quanto eloquente à lei-
tura, que é a coabitação na infância com livros de outras gerações e
a partilha das palavras, Benjamin (1987, p. 235) cria mais uma de suas
imagens que condensam ideias. Diz ele que um livro antigo, herdado
da mãe ou da avó, poderá servir de solo “[...] no qual esse impulso
lançará suas primeiras e delicadas raízes”.
Isso não quer dizer, que os filhos de adultos não leitores
estão impedidos do encontro com a literatura. Evidentemente, são
muitos os caminhos possíveis para esse encontro, de todo modo,
explorar o que há de familiar, mas também de autônomo, na rela-

Juliana Daher 137


ção com a leitura das crianças, pode ajudar a compreender também
outras formas de se relacionar com os livros.

A leitura no quarto: uma experiência individual


O aspecto familiar da leitura das crianças em seus quartos
não suprime, no entanto, sua dimensão de experiência autônoma.
Como descreve Benjamin:
Não resta dúvida de que os velhos livros em seu pequeno for-
mato exigiam de modo muito mais íntimo a presença da mãe, ao
passo que os modernos livros in quarto, com sua ternura vaga e
ríspida, parecem ter como função manifestar seu desprezo pela
ausência materna. O brinquedo começa a emancipar-se: quanto
mais avança a industrialização, mais ele se esquiva ao controle
da família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crian-
ças, como também aos pais. (BENJAMIN, 2010, p. 246)

A autonomização da cultura produzida para as crianças, que


possibilita o surgimento do quarto infantil e dos livros para crianças,
não ocorreu sem consequências. Dormir sozinho, por exemplo, impõe-
-se como uma técnica corporal mais ou menos racionalizada a ser
aprendida pelas crianças desde bem cedo, em um ritual de separação
que muitas vezes inclui a leitura — assim como as canções de ninar.5
O que está por trás dessas transformações sociais é a emer-
gência de um ideal de individualização (GIDDENS, 1991, 2002) que con-
vida a nos tornarmos nós mesmos por uma jornada individual. Aqui,
mais do que um encontro consigo mesmo, parece mais adequado pen-
sar em uma invenção de si mesmo, conformando uma identidade dis-
tinta, em alguma medida, da tradição familiar. Nesse sentido, há algo
que se cria no quarto das crianças, um cômodo que não se encerra na
funcionalidade de seus móveis e objetos, como nos lembra Proust,
mas que se converte, segundo as palavras do autor, em

5 A racionalização desta técnica é evidenciada pelo grande número de publicações


que se dedicam a auxiliar os pais nessa empreitada, como, por exemplo: Estivill e Béjar
(2000) e Pantlet (2003).

138 Juliana Daher


um lugar onde tudo é criação e linguagem de vidas profunda-
mente diferentes da minha, de um gosto oposto ao meu, onde
eu não encontre nada do meu pensamento consciente, onde
minha imaginação se solte e sinta mergulhada no seio do não-eu.
(PROUST, 2020, p. 15)

Essa propriedade criadora é análoga à visão anímica da


criança, que empresta vida e movimento aos móveis e objetos de
seu quarto. São incontáveis os exemplos da literatura infantil que
ilustram essa ideia: a cama do personagem Little Nemo (BRAUN;
MCCAY, 2017), que com suas pernas alongadas caminha acima dos
telhados da cidade ou o quarto do personagem Max, de Maurice
Sendak (2009), onde nasce e cresce uma floresta, transformando as
paredes “no mundo inteiro”.

Figura 03: Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay; Tira publicada


originalmente no dia 26 de julho de 1908 no New York Herald.
Créditos: Domínio público.
Fonte: página na internet Little Nemo in Slumberland

A transmissão do hábito de leitura (assim como outras


transmissões) não invalida esse processo de individualização, mas

Juliana Daher 139


instaura aqui uma tensão. Aquele que herda o gosto pela leitura ten-
derá a inserir nesse hábito algo de pessoal, podendo, por exemplo,
se opor ao gosto literário dos pais (DE SINGLY, 2009). Ainda assim,
a apropriação cultural não impede que haja experiências em que
a leitura se assemelhe mais ao conforto do familiar do que a uma
aventura. Em Uma história da leitura, Alberto Manguel (1997) conta
sobre uma relação desta natureza com os livros. Para o escritor e
tradutor argentino, a leitura na infância ofereceu a oportunidade
de usufruir de estar sozinho, ou, complementa em seguida, ela “tal-
vez tenha dado sentido à privacidade que me foi imposta, uma vez
que durante a infância, depois de voltarmos para a Argentina em
1955, vivi separado do resto da família, cuidado por uma babá, numa
seção separada da casa” (p. 23).
Filho de diplomata, sua família viajava bastante e eram os
livros que compensavam a vida em quartos de passagem, ofere-
cendo ao jovem leitor um lar permanente, “um lar que eu podia
habitar exatamente como queria, a qualquer momento, por mais
estranho que fosse o quarto em que tivesse de dormir ou por
mais ininteligíveis que fossem as vozes do lado de fora da minha
porta” (p. 24). Na condição de criança estrangeira, possivelmente
era nos livros que o pequeno Manguel encontrava o conforto da
língua materna. Sem ignorar o convite à exploração de universos
desconhecidos que é a leitura; é o reencontro com o familiar o
que mais fortemente caracteriza a experiência de leitura descrita
pelo autor. Não é de se estranhar que, na história por ele escrita,
o aprendizado da leitura se apresente como o ingresso em uma
comunidade de amantes de livros. “Não me lembro de jamais ter
me sentido sozinho” (p.23) – conta.

A leitura in quarto como um limiar


Esses elementos já nos permitem buscar responder à per-
gunta sobre a especificidade da leitura realizada pelas crianças em
seus quartos, além de nos convidar a pensar sobre outras formas de
leitura. Entre o chamado para aventuras por terras desconhecidas

140 Juliana Daher


e a possibilidade de reencontro com o familiar, a leitura in quarto
pode ser entendida como uma experiência da ordem do limiar, tal
como é colocada por Benjamin.
Para o autor, o limiar (schwelle) não é o mesmo que fronteira
(grenze), pois, enquanto a fronteira distingue territórios e diferencia
os domínios que não podem ser transpostos sem consequência, o
limiar é uma metáfora espacial que designa justamente as expe-
riências de transição. Sinônimo de soleira da porta e tratando-se,
portanto, de uma metáfora espacial, o limiar possui também uma
dimensão temporal, pois sua duração é flexível (GAGNEBIN, 2014).
A leitura das crianças realizada em seus quartos estaria jus-
tamente nesse espaço/tempo entre o dia e a noite, entre o aqui e o
tão distante, entre a presença e a ausência, entre o sono e a vigília,
entre o familiar e o individual. No entanto, para Benjamin (2007),
no assoberbamento da vida moderna, tornamo-nos cada vez mais
pobres de experiências limiares. Isso porque, sendo escasso, o
tempo no capitalismo se configura como uma série de momentos
distintos, fazendo reduzir os períodos de transição e os ritos de pas-
sagem. Assim, podemos nos perguntar, se ainda temos, adultos e
crianças, tempo para fruir da leitura?
Por outro lado, a partir da literatura kafkiana, Benjamin mos-
tra como a modernidade opera não apenas estreitando os liminares
como também dilatando infinitamente essas experiências de tran-
sição. Na condição de uma passagem ininterrupta e que não leva
a lugar nenhum, a travessia seria, então, esvaziada de seu sentido.
As crianças contemporâneas que vivem suas infâncias fechadas em
seus quartos, tendo à mão equipamentos eletrônicos, teriam expe-
riências desta natureza?
Por fim, como dito na introdução deste texto, se a infância
urbana ocidental de determinados estratos sociais é tomada por uni-
versal, sabemos que são muitas e diversas as infâncias. Após cinco
anos retratando o lugar onde dormem as crianças pelo mundo, o
fotógrafo James Mollison publicou seu trabalho Where children
sleep (2010). No prefácio da versão impressa original, o autor relata

Juliana Daher 141


que teria cogitado atribuir o título Quartos de criança ao redor do
mundo, mas que se deu conta de que a ideia de um quarto infantil
derivava de sua própria experiência e cultura, não sendo, portanto,
adequada para compreender outras realidades.
Essa observação é especialmente importante quando pen-
samos na leitura das crianças que vivem em um país de dimensão
continental como o Brasil. Embora a provisão de um ou mais quar-
tos de criança no arranjo doméstico seja uma prática cultural – aqui,
como em muitos outros países ocidentais - quase naturalizada, ela
geralmente não faz parte das formas de habitar das crianças das cul-
turas indígenas, é relativamente recente na história da arquitetura
doméstica e continua não sendo realidade para parcelas socioeco-
nomicamente desfavorecidas da população, que lidam com a preca-
riedade residencial6 e diversas outras privações.
Daí que a experiência literária das crianças brasileiras não
possa ser reduzida a uma leitura no quarto compartilhada por pais
leitores, tampouco deva ser pensada unicamente como uma via-
gem para um lugar distante, principalmente porque, na literatura
clássica, esse outro mundo tantas vezes foi ambientado no mundo
colonial, descrito como selvagem ou exótico.
Nesse sentido, talvez Proust tenha razão em desconfiar do
livro como uma conversa sobre um saber supostamente universal.
Antes, valeria tomá-lo como uma ancoragem no espaço e no tempo
onde o leitor criança vive a sua cultura, único lugar a partir do qual
ele poderá conhecer outros mundos.

6 Cerca de 19% das crianças brasileiras até 14 anos vivem em adensamento exces-
sivo (domicílio com 3 ou mais moradores por dormitório), 8,4% vivem em domicílios
sem banheiro e 3% delas vivem em casas cujas paredes são de material inadequado
(CINTRA et al., 2021).

142 Juliana Daher


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Juliana Daher 145


A caixa de bugigangas e
outras histórias da arte
na primeira infância
Júlia Félix Azeredo

A sala de arte é um navio que leva dentro dinossauros, âncoras, mari-


nheiros e varinhas de fazer mágica de todo tipo. Na sala de arte, não
tem capitão, mas tem motorista que sabe guiar foguete e lambreta.
Tem fada que coleciona ponta de lápis perdida. Tem pesquisadora
que descobriu que a textura do jacaré é crocante, que Kandinsky pin-
tou com música e que a melhor maneira de fazer arte é com o corpo.
Deixo-me impregnar dessas verdades, uma maneira de rea-
prender o mundo que se despede da gente junto com a infância. O
ritmo, a temperatura, o volume mudam depressa, conforme a maré.
Quanto menor a criança, mais rápido se navega. Um monte de bloqui-
nhos se espalha pela sala e vira monstro, cogumelo, astronauta ou só
casa, o uso imaginado pelo adulto. Quanto mais habito esse espaço
junto das minhas crianças, mais gosto do mundo imaginado por elas.

Juliana Daher 149


Imagem 1 - Casas monstro, exercício de “escultura imaginada”, 2022.
Ilustração a partir de foto (Lucas Alves, 2022).

Para Ferreira Gullar: “uma das coisas que a arte é, parece,


é a transformação simbólica no mundo. Quer dizer: o artista cria
um mundo outro – mais bonito, ou mais intenso, ou mais significa-
tivo ou mais ordenado – a partir da realidade imediata” (FERREIRA
GULLAR, apud NICOLA, 1998, p. 11). Será, então, o artista um adulto
que se deixou ficar embebido de infância?
Em 2018 me foi dado o maior e mais bonito presente de toda
a vida: dezoito turmas da educação infantil. Dos dois aos cinco anos,
uma revolução acontece e eu tive que aprender a ser muitas profes-
soras de arte para acompanhá-las nesse processo. Ao longo desses
anos, instintivamente, construímos o que chamo de caixa de bugigan-
gas, “horinhas de descuido” que fizeram da nossa sala um lugar para
ser tudo e qualquer coisa. É sobre esse processo que quero falar.

Horinhas de descuido, isto é arte?


“Arte não se ensina, contamina-se pela arte”, Ana Mae Bar-
bosa traduz em palavras uma sensação que me move e inquieta
como professora de arte. Ora, se arte não se ensina, qual será o
meu papel? Lembro-me da primeira vez que senti verdadeiramente
que estávamos fazendo arte. Trabalhava com as crianças a música
Sítio do pica-pau amarelo, escutamos a música primeiro com os ouvi-
150 Juliana Daher
dos, depois com o corpo inteiro (será possível?). Fizemos coleções
de desenhos e pinturas dos nossos elementos preferidos e depois
expusemos as coleções: das bonecas de pano, dos sabugos de
milho-gente, dos sóis nascentes (sempre com arco-íris). Produzimos
os personagens em argila. Dançamos a música. Mas senti que ainda
faltava alguma coisa, faltava o sítio!
Como seria o sítio na imaginação das crianças? Pequeno? Grande?
De que tipo de material é construído o sítio do pica-pau amarelo? Come-
cei a colecionar em uma caixa grande todo tipo de material disponível em
sala, na minha casa e nos caminhos que passava. Pedras, tecidos, linhas,
pedaços de papel, canos, canudos, palitos, botões, caixas, bacias.
— Pequenininhos, hoje nós vamos construir o sítio.
Dei a notícia temendo a reação deles, seria uma proposta
abstrata demais? Para a minha surpresa, as crianças se levantaram
da roda imediatamente e começaram a construção do sítio, que
virou vários; pequenos, grandes, molengas, arquitetônicos, abstra-
tos. Sítios onde “moram dragões também”, sítio de “fazer comidi-
nha”, sítio “das princesas”.

Imagem 2 - Crianças do primeiro período no processo de construção


do sítio, 2019. Ilustração a partir de foto (Lucas Alves, 2022).

As crianças “dão conta” do mundo melhor do que nós e esta-


vam fazendo arte sem precisar de nenhuma interferência minha. Par-
Juliana Daher 151
ticipei da construção de vários sítios e aprendi mais nesses dias do que
em qualquer momento da minha formação pedagógica. Nesses dias,
compreendi meu lugar dentro da sala de arte, minha voz ficou cada
vez menos presente, os materiais falaram cada vez mais por mim.
Entendi que as crianças, autônomas e sabedoras de seus
desejos, só precisavam de uma caixa de bugigangas, que ora con-
terá materiais ditos artísticos, ora conterá areia e pedras, ora con-
terá histórias ou novelos de lã.

Imagem 3 - Exercício de construção de “esculturas involuntárias”


baseado na obra da artista Rivane Neuenschwander, 2019.
Ilustração a partir de foto (Lucas Alves, 2022).

A arte contemporânea cabe dentro da caixa de bugigangas


Nos primeiros dias de aula, ao receber as crianças, algumas
pela primeira vez em minha sala, conversamos sobre o espaço, os
materiais, os elementos que compõem nossa oficina. Quando me
apresento digo que sou professora de arte e isso quer dizer que
nesse espaço faremos arte. E arte é o quê? Pergunto.
— É pintura!
— É desenho!
— É argila!

152 Juliana Daher


Ao longo do ano tento oferecer experiências e vivências que
saiam desse lugar comum estabelecido para arte, procuro abraçar as
práticas, métodos, maneiras de pensar que com frequência apare-
cem nas produções artísticas contemporâneas e que se aproximam
muito das experiências de descoberta de mundo que as crianças
já vivenciam e partilham naturalmente. Práticas que ultrapassem a
materialidade, ampliem repertório, tragam o corpo para a ação, da
feitura e construção da obra. Para a pesquisadora Julia Rocha,
As intenções dentro de um posicionamento contemporâneo em
relação ao ensino da arte são diferentes do que se desenvolvia
na educação tradicional. De uma educação e vivência no campo
da arte que era fragmentada, compartimentada, rígida, busca-se
percorrer uma direção que considera o campo de incertezas que
vivemos, onde se percebe uma cronologia, no qual os valores
não são fechados, são relativos, onde a natureza do conheci-
mento é processual e a interatividade se faz presente tanto na
arte, quanto na educação. (ROCHA, 2018, p. 2210)

Acho bonito pensar o território da arte como o grande


campo da incerteza. Mutável e inconstante e, por isso mesmo,
fértil como nenhum outro. Se desenhamos com nosso corpo no
espaço enquanto brincamos ou performamos parangolés, se
transformamos um punhado de fitas coloridas em ninho para
um passarinho imaginado, se fazemos da hora da roda tempo de
invenção de história, estamos fazendo arte? “Não são o brincar e
a arte as formas básicas de – na medida em que são fundantes –
da experiência da infância?” indaga María Emilia López (2018, p.
39). A autora ainda afirma que
As crianças podem ser grandes inventoras; a relação com as pala-
vras, com os brinquedos, com a natureza, com os outros, é uma
relação de descoberta e criação. Assim, criança e artista cons-
troem uma relação de estreita fraternidade. (LÓPEZ, 2018, p. 38)

Creio que para trabalhar com crianças muito pequenas é


preciso reconhecer e confiar em sua capacidade inventiva, é preciso
estar disposta a acolher essa capacidade em todas as suas formas.

Juliana Daher 153


Quando quieta e silenciosa, quando vibrante e expansiva. Sobre
esse processo, elabora López:
O trabalho com bebês e crianças pequenas exige que as pessoas res-
ponsáveis aprendam a ler crianças, uma das tarefas mais complexas
que podemos imaginar. Ler entre linhas, ler gestos, ler marcas do
tempo ou ler sem palavras. A tarefa de interpretar seus sentimentos
e suas necessidades, seus modos de pensar, requer uma sensibili-
dade e uma disponibilidade particular, além de certos conhecimentos
específicos acerca do desenvolvimento infantil. (LÓPEZ, 2018, p. 110)

Sou uma ávida leitora de crianças e é justamente por me


entregar inteira a essa tarefa que me permito experimentar ainda
que, por vezes, com medo. Desde 2018, construímos juntos: sítios,
florestas, coleções e labirintos. Sobre o último acontecimento, do
labirinto, me debruçarei com mais afinco.

Os labirintos de Lygia
No início de 2020, participei de uma oficina de criação chamada
Performar saberes do corpo que transformou em definitivo minha maneira
de pensar o mundo e meu papel como mulher e professora. A proposta
da oficina, guiada por duas pesquisadoras da UFSC, era fazer germinar as
afinidades entre o corpo e a escrita tomando a exposição Mulheres radicais,
arte latino-americana entre 1960-1985 como ponto de partida.
Pela primeira vez tive acesso com profundidade à obra de
Lygia Clark a partir de sua abordagem terapêutica, da experiência
sensorial e do “não objeto”, termo cunhado pelos neoconcretistas.
Associei seu método e propostas às vivências mais sig-
nificativas com as crianças, as quais nomeio “experiências com
a caixa de bugigangas”. A presença constante do corpo como
parte do acontecimento artístico, a mão que segura o pincel e o
lápis, mas que tem o impulso quase irresistível de tocar a tinta,
o resquício do pó de grafite, um farelinho brilhante no canto da
sala. A ação de moldar a argila acompanhada da dança que o
avental nos obriga a fazer entre as cadeiras. A contação de histó-
ria entrecortada por muitas vozes e corpos ansiosos por saber ou
154 Juliana Daher
participar. A roda, grande casulo em que nos tocamos e acessa-
mos olhares e outras histórias.
Em 2020, desenvolvi pela primeira vez nossa versão dos
objetos relacionais de Lygia. Acabávamos de voltar do período de
isolamento no contexto da pandemia de Covid-19, estávamos todos
afoitos pela troca, pela presença, uma vida possível depois de tanto
tempo tendo encontros online.
Apresentei Lygia para as crianças como de fato a enxergo, uma
artista cheia de imaginação, que gostava muito de experimentar...
— Igual a vocês!
Trouxe para a roda alguns “objetos relacionais” de Lygia que
construí. Essa obra foi desenvolvida por ela a partir de 1976, com inten-
ção de promover um trabalho curativo em suas sessões terapêuticas.
Os objetos tinham materialidades diversas: bolinhas de iso-
por, tecidos, pedras e, dentre todos, o meu favorito, Pedra e ar, obra
constituída por uma pedra e saco plástico.

Imagem 4 - Crianças experimentando Pedra e ar de Lygia Clark, 2021.


Ilustração a partir de foto (Lucas Alves, 2022).

As crianças se envolveram profundamente com a experiência.


— Não sobrou tempo pra mais nada!
Na aula seguinte, conversamos sobre os objetos sensoriais
produzidos por mim e as crianças construíram os seus próprios,

Juliana Daher 155


usando o conteúdo da caixa de bugiganga que um dia já tinha sido
sítio, carro, fogueira, zoológico, um inesgotável de possibilidades.
No total este projeto durou seis semanas, seis aulas para cada
turma. No último dia fizemos uma versão do labirinto de Lygia, uma
mistura de suas teias de elástico, de sua baba antropofágica e de suas
redes. Em roda, dei a cada criança um grande pedaço de lã e ditei o
desafio: todas as crianças deveriam construir juntas um labirinto.

Imagem 5 - Crianças do 2° período construindo o labirinto de Lygia,


2021. Ilustração a partir de foto (Lucas Alves, 2022).

Algumas crianças se demoraram no desenho que imagina-


vam para aquele labirinto, algumas turmas construíram vários labi-
rintos ao mesmo tempo, outras planejaram a forma do labirinto, seu
começo, seu fim. Todas as crianças, a seu modo, desenvolvendo um
exercício de percepção da experiência, do entorno, do outro, do
olhar da artista e sua obra. Sobre a percepção infantil, que percebi
tão presente nesse projeto, pensa María Emilia López:
Falamos da percepção infantil, tão aguda e em construção desde
o princípio da vida. Perceber não é apenas coletar impressões
sensoriais, mas tomar algo como verdadeiro, e para isso é neces-
sário esse singular exercício da subjetividade que entrelaça ele-
mentos da própria sensibilidade e experiência. A percepção é um
exercício hermenêutico. (LÓPEZ, 2018, p. 60)

156 Juliana Daher


Os labirintos, cheios de verdade, sensibilidade e voz das
crianças foram lidos como “mapas no chão”, “pé de gigante”,
“casulo” dependendo da sua forma e da elaboração que a turma
criou junto. Vivenciamos esses labirintos com nosso corpo, ora
com cuidado para não desfazer os contornos, ora “mais rápido”,
“quem consegue chegar primeiro?”, todo o processo dependeu da
decisão dos grupos.
Terminado o projeto, ainda restaram objetos sensoriais para
serem revisitados dentro da caixa, as linhas deixaram de ser labirin-
tos para virarem pulseira de fada, teias do homem aranha, ninho de
gavião e outra vez labirintos:
— Vamos brincar de labirinto!
Lygia continua nossa parceira de oficina e outras histórias.

A caixa de bugigangas não tem fundo


Há alguns anos me tornei a “Juju do Abaporu”, ainda que
já faça tempo desde a última vez que conversamos sobre Tarsila.
A memória das crianças é curta mas não é rasa. Mergulhamos
mais fundo quando juntos descobrimos sentido para as palavras,
imagens, objetos, texturas. Quando criamos um novo sentido
para o mundo.
Depois da descoberta da caixa de bugigangas, os projetos
deixaram de acabar quando terminados, eles continuam morando lá
dentro. Continuamos criando coleções como Arthur Bispo do Rosá-
rio, escrevendo, desenhando e imaginando com linhas, como Lygia.
Os artistas estão vivos dentro daqueles objetos.
A sala de arte deixou de ser só um lugar de pintar, esculpir e
desenhar para ser um lugar de imaginar mais significados para essas
ações e objetos, ir além no nosso “exercício de ser criança”, exercí-
cio de ser Bernardo de Manoel de Barros (2016):
Bernardo é quase uma árvore
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
de longe
E vêm pousar em seu ombro.
Juliana Daher 157
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho;
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios – e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três
Fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
Incompletude?)

Referências
BARBOSA, Ana Mae. Arte não se ensina; contamina-se pela arte.
Youtube, 17/06/2019. Disponível em: Ana Mae Barbosa: Arte não se
ensina; contamina-se pela arte - YouTube Acesso em: 07/02/2022
BARROS, Manoel de. Livro das Ignorãças. – Rio de Janeiro, Alfaguara, 2016.
LÓPEZ, María Emília. Um mundo aberto: cultura e primeira infância.
I.ed. – São Paulo: Instituto Emília, 2018.
NICOLA, José de. Literatura Brasileira das origens aos nossos dias. 15ª.
ed. São Paulo: Scipione, 1998.
ROCHA, Julia. Ensino (contemporâneo) da arte contemporânea –
Similitudes e enfrentamento entre metodologia e conteúdo. Encon-
tro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27,
2018. Anais do 27˚º Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Esta-
dual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.2208-2223.

158 Juliana Daher


O Universo Sonoro
Musical Da Criança
Isaac Luís de Souza Santos

Queria que a minha voz tivesse um formato


de canto. Porque eu não sou da informática: eu
sou da invencionática. Só uso a palavra para
compor meus silêncios.
Manoel de Barros

Partindo da premissa de que o encontro entre as linguagens musi-


cal e do brincar, com a genuína legitimação da autoria das crian-
ças, é fundamental para propiciar vivências musicais significativas
para os pequenos, busco traçar um breve trajeto teórico que ilu-
mine a compreensão sobre os começos, as primeiras experiências
das crianças com o universo sonoro musical, bem como apresen-

Juliana Daher 161


tar algumas reflexões sobre a minha prática musicalizadora com
bebês e crianças pequenas.¹
Meu objetivo é contribuir para que nós adultos, professo-
ras e professores, pais, mães, cuidadoras e cuidadores, possamos
qualificar nosso entendimento sobre as vivências musicais na pri-
meira infância, nos comprometendo com uma oferta cuidadosa de
possibilidades e experiências para estes que são recém-chegados
ao nosso mundo.

Os bebês, os sons e a linguagem


Nosso olhar sobre e para os bebês vem se modificando
com o passar do tempo, especialmente nas últimas décadas,
com as avançadas pesquisas em diferentes campos de saberes,
tais como o neurodesenvolvimento, a psicologia do desenvolvi-
mento e a psicanálise. Esta última reconhece os bebês enquanto
sujeitos de linguagem.
Os bebês, que antes tinham como habilidades identifica-
das apenas as circunscritas aos marcos do desenvolvimento, atual-
mente têm seu potencial reconhecido para além do que destacam
os manuais desse campo de conhecimento, que os colocam muitas
vezes em uma posição de passividade e dependência em relação aos
adultos, que se sobrepõem à atuação deles. Nesse caso, os bebês
ficam quase invisibilizados diante da vontade do outro.
Conforme afirma Parlato-Oliveira (2019), historicamente
as habilidades e potencialidades dos bebês foram subestimadas,
tendo como referencial as suas limitadas capacidades motoras.
Porém, segundo afirma a autora, pesquisas recentes demons-
tram que bebês de seis meses já são capazes de fazer escolhas,
por exemplo. Outra descoberta é referente ao reconhecimento

1 Este texto foi elaborado a partir da minha dissertação de mestrado, intitulada Edu-
cação musical para crianças de zero a três anos de idade em tempos de pandemia e iso-
lamento social: um estudo sobre práticas docentes de professores de música, defendida
em dezembro de 2021 no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade
Federal de Minas Gerais.

162 Juliana Daher


do próprio nome: bebês de quatro meses já o fazem, e não ape-
nas a partir dos doze meses como descreve o marco do desenvol-
vimento vigente.
Ainda segundo a autora, a estratificação rígida e etapista do
desenvolvimento dentro do critério etarista está diretamente ligada
às limitações da capacidade de análise e percepção instrumental dos
adultos pesquisadores. Por consequência, com a padronização dos
parâmetros de desenvolvimento, escapam a alguns estudos sinais
sociocomunicativos muito sutis e por vezes singulares. Muitos dos
saberes dos bebês, portanto, não são identificados ou sequer reco-
nhecidos nas investigações sobre eles.
Sobre esses saberes, o bebê os constrói, conforme afirma
Parlato-Oliveira (2019), a partir de um elaborado sistema de percep-
ção que o permite interpretar informações e tecer suas impressões.
Dois fatores são fundamentais nesse processo e na qualidade da
relação que o bebê estabelece com aquilo que ele percebe: o tempo
e o espaço. E tudo isso acontece desde a vida intrauterina:
A vida de um bebê é ritmada desde o útero. Ele constrói um
saber sobre os eventos que sucedem, e também, um saber sobre
a discriminação fina dos movimentos do corpo, da face, dos sons
que nos envelopam. (PARLATO-OLIVEIRA, 2019, p. 51-52)

O ritmo está ligado à dimensão do tempo, repertório que o


bebê adquire desde o ventre e serve de base para outras experiên-
cias de percepção e aprendizado, como, por exemplo, o ritmo da
língua dos interlocutores. Nesse processo, o bebê dá devolutivas de
sua singularidade, por exemplo, expressando seu próprio ritmo por
meio de seus ciclos de sono e vigília.
Simultaneamente, o bebê tem seus gestos e outros sinais
sociocomunicativos nomeados pelo adulto que dele cuida. Ele é
imerso em um banho de linguagem no encontro com o outro, nos
processos de interação. Nesta comunicação, comumente o adulto
altera sua forma de se expressar vocalmente para um padrão que
Parlato-Oliveira (2019) chama de “manhês”:

Juliana Daher 163


O Manhês consiste, portanto, numa prosódia específica que uti-
lizamos espontaneamente ao falar com os bebês, caracterizada
por aspectos psicolinguísticos: faixa de frequência mais aguda,
aumento da duração das vogais e variações regulares de entoa-
ção. (PARLATO-OLIVEIRA, 2019, p. 56)

O bebê, por sua vez, já nasce pronto para interagir com as


pessoas de seu contexto social. Segundo Fonseca e Parizzi,
(...) os bebês humanos nascem com o que pode ser descrito
como uma obstinação para interagir com o outro. Essa ‘obstina-
ção’, compartilhada inconscientemente por pais e cuidadores, se
expressa por um comportamento inato e complexo chamado de
‘parentalidade intuitiva’. Trata-se de “um comportamento instin-
tivo dos adultos que os habilita proteger, alimentar, estimular
e ensinar a seus bebês sua língua e sua cultura”. (PAPOUSEK,
1996; SHIFRES, 2007 apud FONSECA; PARIZZI, 2020, p. 40)

Ainda segundo Fonseca e Parizzi (2020, p. 40), “a principal fer-


ramenta operacional da parentalidade intuitiva é a musicalidade comuni-
cativa”. Trata-se, pois, de outra “habilidade inata de combinar vocaliza-
ções e gestos que permitem a comunicação dos adultos com os bebês”
(MALLOCH e TREVARTHEN, 2009 apud FONSECA; PARIZZI, 2020, p. 40).
Esta interação constitui uma espécie de “alfabeto pré-lin-
guístico” para os bebês. E tanto os sons emitidos por eles, quanto
os emitidos pelos adultos, apresentam características que serão a
base das experiências dos bebês com a música e com a palavra, bem
como introduzem o bebê no universo simbólico dos sons (das músi-
cas, das palavras), ou seja, da linguagem (FONSECA; PARIZZI, 2020).
Contudo, é importante ressaltar, conforme destaca Parlato-
-Oliveira (2019), que as trocas comunicativas dos bebês não se res-
tringem à modalidade sonora. A experiência comunicativa do bebê
é multimodal, visto que o bebê ao mesmo tempo que escuta, vê,
sente o cheiro, o gosto, os estímulos táteis, e a partir de todas essas
informações, ele realiza um complexo trabalho de interpretação e
propõe trocas, de acordo com seu interesse. Portanto, o bebê não
aprende e interage apenas por imitação:

164 Juliana Daher


Podemos afirmar que o bebê sabe participar de uma troca de
turno, de um diálogo, tanto respondendo, quanto iniciando. […]
Ele percebe pela entonação que a frase do outro está terminando
e se prepara para começar a sua. (PARLATO-OLIVEIRA, 2019, p. 58)

Neste percurso, o bebê é iniciado com banhos de linguagens


dados pelo outro que nomeia, canta, apresenta o mundo em pala-
vras e entonações melódicas em uma modalidade da língua extre-
mamente instintiva e afetiva, o manhês. Assim, ele passa pelas expe-
riências subjetivas com a linguagem, bem como pela incorporação
de padrões culturais nos quais está inserido. Até que chega o tempo
em que o bebê consegue emitir suas primeiras palavras, é quando
ele entra oficialmente no universo simbólico. Sobre esse itinerário,
Fonseca e Parizzi (2020) afirmam que:
Com as palavras primordiais pronunciadas, a criança entra definiti-
vamente no mundo simbólico das grandes linguagens humanas: a
mímica facial, a gestualidade, a palavra, a música e os números - a
musicalidade comunicativa originária (dos sons e dos gestos) desa-
guou nos símbolos. Isso nos permite afirmar que o ‘musical’ é um
dos fundantes da vida humana. (FONSECA; PARIZZI, 2020, p. 43)

A experiência musical está, portanto, na matriz da experi-


ência do ser humano, não apenas pelos processos acima descritos,
mas também pelas transmissões culturais feitas aos bebês recém-
-chegados por meio das canções de ninar. Este é outro campo que
se abre na compreensão do processo de inscrição cultural de uma
criança, considerando também as dimensões afetivo-relacionais
implicadas no ato de embalar o bebê ao som dessas cantigas.
Sobre os aspectos estéticos relacionados às canções de
ninar, Machado (2012) afirma que elas constituem um dos primeiros
objetos culturais, musicais e literários ofertados ao ser humano. A
autora defende seu caráter literário e seu potencial humanizador, a
partir das prerrogativas de Antonio Candido (2004), que afirma:
[…] verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade
universal que deve ser satisfeita sob a pena de mutilar a persona-

Juliana Daher 165


lidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão
do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos
humaniza. (CANDIDO, 2004, apud MACHADO, 2012, p. 19)

Isto significa que estamos diante de um repertório reco-


nhecido como literário advindo da tradição oral (literatura oral). Ele
apresenta uma gama de conteúdos, significados, símbolos, aspectos
sonoros e fônicos (rimas, ritmos, versos) que são oferecidos ao bebê,
reconhecidamente um sujeito cultural. Um repertório que extrapola
o ambiente familiar, que insere o bebê nos universos social, histórico
e cultural dos quais faz parte. Machado (2012) afirma ainda que ofere-
cer canções de ninar aos bebês é um ato de cuidado:
Cuidar do surgimento das palavras, da sua afinação com a experi-
ência vivida, de seu vigor e sentido; cuidar do ouvir, do balbuciar,
do murmurar, do falar, do cantar, do contar, do silenciar; cuidar,
enfim, da experiência inicial com a palavra é condição para o
desenvolvimento pleno deste ser de linguagem que é o homem.
(MACHADO, 2012, p. 22)

Com o primeiro repertório musical ofertado com as canções


de ninar, ocorre uma experiência de âmbito familiar fundamental
para o encontro do bebê com a música em outros contextos. E ela
acontece no percurso com os sons e a música desde a vida intraute-
rina, passando pelas memórias de experiências sonoras registradas,
pela musicalidade presente na “parentalidade intuitiva” e na “musi-
calidade comunicativa”.
Em aulas de música para bebês, por exemplo, o modo como
o adulto se posiciona nessa experiência irá interferir consideravel-
mente no modo como o bebê vivencia o processo. Por esta razão,
Ilari (2002) afirma a necessidade de se conscientizar a família sobre
sua importância na educação musical dos bebês. A autora apre-
senta uma revisão de literatura, cujos estudos relatados destacam
as capacidades dos bebês e descrevem:
O bebê como um ouvinte sofisticado, capaz de discriminar entre
propriedades isoladas contrastantes da música tais como altura,

166 Juliana Daher


contorno melódico, timbre, ritmo e frases musicais. Mais do que
isso, durante o primeiro ano de vida, os bebês já exibem prefe-
rência e memória musical de longo prazo. (ILARI, 2002, p. 88)

Eis um percurso potente, que se inicia com experiências


sonoras desde o ventre. O processo de imersão na linguagem, a par-
tir do encontro com o outro, com a cultura e da subjetividade do
bebê, culmina na entrada no universo simbólico, pela palavra e pela
música, ambas fundantes do humano.

Musicalização na primeira infância: princípios e


referenciais teóricos
Para se discutir a musicalização na primeira infância, seus
princípios e referenciais teóricos, faz-se necessário um passo ante-
rior: explanar sobre as concepções de infância e de criança que sus-
tentam a prática musicalizadora. A partir disso é que serão definidos
os conceitos teóricos que subsidiarão a prática profissional do pro-
fessor de música.
Um primeiro aspecto, de suma relevância, é o reconheci-
mento de quanto o bebê e a criança pequena são receptivos aos sons,
à canção, ao movimento, conforme afirma Rodrigues (2005). Como
já explicado, os bebês apresentam uma relação biológica e relacional
com os estímulos sonoros e musicais. As diferentes culturas guardam
em seu arcabouço a linguagem musical como manifestação biográ-
fica de diferentes comunidades e povos. A autora afirma ainda que
a aprendizagem musical é uma das primeiras a ter lugar na vida dos
bebês, de modo informal e sensorial. Segundo ela, os seres humanos
estão expostos a este aprendizado em maior ou menor grau, con-
forme a riqueza do meio cultural em que estão inseridos.
Outro aspecto a ser observado é como acontecem esses pro-
cessos sensoriais de aprendizagem, independentemente de serem
musicais ou não. Na infância, especialmente na primeira infância, o
brincar torna-se linguagem de expressão comunicativa e relacional,
consigo, com o outro e com o mundo. O jogo ou brincar simbólico

Juliana Daher 167


inauguram uma nova ordem na qual a criança consegue pensar por
imagens e símbolos e realizar construções metafóricas decorrentes de
seus processos de elaboração da realidade ou de interferência nesta.
Girardello (2011) define a imaginação como um espaço de
liberdade para a criança, no qual ela lida com a realidade dentro das
possibilidades do que é ou não realizável. Para a autora, alguns ele-
mentos são favoráveis ao desenvolvimento da imaginação: a arte, o
tempo e a mediação. Ela afirma que a possibilidade da fruição esté-
tica é fundamental no processo de desenvolvimento da imaginação
e que, para tanto, a criança necessita de tempo para apreciação e
contemplação. O contato com a natureza é uma das matérias-pri-
mas para a imaginação em função dos elementos desestruturados
nela presentes, variabilidade de experiências sensoriais e do cons-
tante estado de construção de hipóteses que possibilita à criança.
Já a mediação do adulto é outro fator considerado por sua
relevância no fomento à imaginação infantil. Ela pode qualificar e
ampliar a construção de novos sentidos juntos aos pequenos. Para a
autora, “uma educação da infância que enfatize a imaginação pode
contribuir para desmanchar o preconceito dualista que em nossa
cultura ainda separa radicalmente a razão da emoção, a sensibili-
dade do intelecto” (GIRARDELLO, 2011, p. 13).
Outro ponto importante refere-se ao reconhecimento das
crianças como sujeitos de cultura e que produzem cultura. As produ-
ções culturais das crianças tornam-se expressões de tanta relevância
quanto as realizadas pelo ser humano em qualquer outro tempo da
vida. Exprimem a singularidade da compreensão e expressão do mundo
interno e externo, em um discurso de autoria das próprias crianças, o
que é extremamente importante, uma vez que comumente a criança é
silenciada ou não convidada a dizer sobre si. Ainda sobre essa produção
cultural feita pelas crianças, Sarmento (2002) afirma que
Entre as formas culturais produzidas e fruídas pelas crianças, con-
sideraremos fundamentalmente os jogos infantis, cuja memória
histórica da sua construção se perde no tempo que são hoje um
patrimônio preservado e transmitido pelas crianças, numa comu-

168 Juliana Daher


nicação intrageracional que escapa em larga medida à interven-
ção adulta. Referimo-nos, por exemplo, a jogos como a macaca
(assim designada em Portugal, mas como uma expressão quase
universal, conhecida pela “amarelinha” no Brasil, por exemplo),
os berlindes, os jogos de laço; os brinquedos como pião, os papa-
gaios de papel […]. Mas integram também nas culturas da infân-
cia modos específicos de significação e de uso da linguagem que
se desenvolvem especialmente no âmbito das relações de pares e
que são distintos dos processos adultos. (SARMENTO, 2002, p. 7)

Reconhecer o bebê e a criança como sujeitos que apresen-


tam um percurso de imersão no universo da linguagem e do simbó-
lico a partir da palavra e da musicalidade fundamenta teoricamente
nossas práticas musicalizadoras. Outro aspecto que norteou essa
trajetória de pesquisas, foi o brincar e a imaginação como expressão
genuína das crianças e os brinquedos por elas construídos como a
legítima cultura da infância.
Neste sentido, recorremos inicialmente a Delalande (2019),
que aponta para a sensatez de despertar interesse e desejo pelo uni-
verso sonoro antes de ensinar música. Para tanto, o autor propõe
uma “pedagogia musical do despertar”, que visa ampliar a escuta
das crianças para músicas não européias e músicas contemporâ-
neas. Nesse sentido, sua intenção é “propiciar às crianças, mais pre-
cisamente, experiências que precedam as técnicas” (DELALANDE,
2019, p. 21). Entendemos que, de certa maneira, este movimento é
mais orgânico e próximo do percurso que a criança naturalmente
faz em seu encontro com a linguagem e com o simbólico, no qual a
musicalidade está presente. A proposta apresentada por Delalande
(BRITO, 2019) é que seja ofertada vasta experiência de pesquisa e
criação sonoras, especialmente a partir do jogo musical, a partir do
qual o autor organiza uma tipologia da produção sonora infantil,
definindo-a conforme os estágios de desenvolvimento cognitivo
infantil propostos por Jean Piaget.
A pesquisa do som e do gesto não é senão um jogo sensório-
-motor; a expressão e a significação da música se unem ao jogo
simbólico; e a organização é um jogo de regra. Eis então porque

Juliana Daher 169


esta análise é uma idéia chave na abordagem do despertar musi-
cal. Para situar aproximadamente, segundo Piaget, o jogo sen-
sório-motor predomina antes dos dois anos. Em seguida, o jogo
simbólico se desenvolve mais ou menos na etapa da educação
infantil e, posteriormente, uma vez que as crianças estão mais
socializadas, ou seja, às vezes no último ano da educação infan-
til, porém mais recorrentemente na etapa do ensino fundamen-
tal, o jogo toma, sobretudo, um aspecto de jogo de regra. Então,
vemos na criança, um terreno favorável para desenvolver dife-
rentes aspectos da prática musical. Com as crianças mais novas
centraremos preferivelmente a atividade sobre o som e o gesto,
com as crianças do ensino fundamental desenvolveremos o cará-
ter simbólico e, em seguida, com os maiores, o jogo musical terá
regras. (DELALANDE, 2019, p. 29)

Para Delalande (2019), no jogo sensório-motor, o gesto, o


efeito sensorial e a ação devem ser a tônica, como por exemplo,
em algumas brincadeiras musicais tradicionais que apresentam ges-
tual associado ao canto. Já no jogo de regras, as culturas musicais
regradas devem ser apresentadas, incluindo a notação musical. Mas
aqui cabe uma ressalva no que concerne ao desenvolvimento lúdico
da criança. Percebemos as diferenças dos jogos estabelecidos pelas
crianças, contudo, não em uma perspectiva desenvolvimentista, con-
forme a abordagem construtivista de Piaget. Apesar de os marcos
de desenvolvimento servirem para uma observação dirigida sobre o
desenvolvimento infantil, entendemos que os aspectos subjetivos
e a cultura são fatores que podem propiciar diferentes tempos de
desenvolvimento e experiências. Estes tempos não são estanques
no que se refere aos jogos, e as faixas etárias não são, necessaria-
mente, definidoras do desenvolvimento lúdico da criança. Portanto,
torna-se necessário o olhar atento e sensível para as crianças, alunas
e alunos de música na infância, de modo a perceber as singularida-
des individuais e dos grupos, no sentido de construir uma proposta
com jogos conforme as suas realidades.
Outro aspecto importante a ser considerado é a experiência
da aprendizagem pelo brincar, pelo jogo. Torna-se necessária a aten-
ção para uma experiência não didatizada do brincar, conforme afir-
170 Juliana Daher
mam Portilho e Tosatto (2014). E para que isso aconteça, segundo
as autoras, o ponto inicial é reconhecer que entre adultos e crianças
está estabelecida uma relação de poder. No que concerne ao brin-
car, mesmo que em um contexto pedagógico, o adulto deve abrir
mão de controlar excessivamente e abrir espaço para “[…] as des-
cobertas, hipóteses, criações e invenções das crianças” (PORTILHO;
TOSATTO, 2014, p. 756). Assim, possibilitamos o emergir da “cultura
das infâncias”, conforme define Sarmento (2002).
Neste sentido, Delalande (2019) afirma que é necessário
descobrir o que é “não-direcionamento” da criança na experiência
do jogo. Para ele, trata-se de não tentar conduzir a criança para um
resultado pré-determinado, respeitando a “tendência” da criança
em relação a uma atividade, encorajando-a. Sobre a abordagem de
Delalande, Brito (2019) afirma que, nas condutas musicais de bebês
e crianças, deve haver um respeito aos seus processos de pesquisa,
à transformação do gesto sonoro e do pensamento musical.
Ao invés de compartilhar apenas o que já vem pronto (canti-
gas, brincadeiras, jogos…), bem como “informar” previamente
como tocar um instrumento, rotulando, de certo modo, o que
é ou não é música, ele orienta a deixar que os bebês e crianças
explorem gestos e possibilidades para produzir sons,descobrir
caminhos e, assim, ‘reinventar a música, o acontecimento musi-
cal’ em si mesmo! (BRITO, 2019, p. 45)

Brito (2003) aponta para entendimento de uma trajetória da


expressão musical da criança, que vai do “impreciso ao preciso”. Tra-
ta-se de um percurso que nada tem a ver com uma conotação de valor
ou julgamento, mas sim, com as condutas infantis de exploração e
produção sonoras. Ela discorre sobre esse processo, que se inicia nos
experimentos diversos que os bebês fazem com suas vocalizações,
emitindo movimentos sonoros ascendentes e descendentes.
Posteriormente, na livre exploração de instrumentos sono-
ros e musicais, a criança produz sua própria música a partir dos ges-
tos necessários para esse feito, seja experimentando, reproduzindo
ou criando. Culmina-se com o interesse pelas regras da linguagem

Juliana Daher 171


musical, advindo das aquisições de outros códigos, como o progres-
sivo domínio do sistema alfabético que instaura uma nova ordem
relativa às regras, à organização, seriação e concentração. Do
impreciso ao preciso, a trajetória da criança acontece respeitando
seu desenvolvimento, contudo Brito (2003) chama a atenção para a
importância das intervenções educativas nesse processo:
Obviamente, respeitar o processo de desenvolvimento da expres-
são musical infantil não deve se confundir com a ausência de
intervenções educativas. Nesse sentido, o professor deve atuar
sempre como animador, estimulador, provedor de informações e
vivências que irão enriquecer e ampliar a experiência e o conhe-
cimento das crianças, não apenas do ponto de vista musical, mas
integralmente, o que deve ser objetivo prioritário de toda pro-
posta pedagógica, especialmente na etapa da educação infantil.
Entretanto, é importante considerar legítimo o modo como as
crianças se relacionam com os sons e silêncios, para que a cons-
trução do conhecimento ocorra em contextos significativos, que
incluam criação, elaboração de hipóteses, descobertas, questio-
namentos, experimentos, etc. (BRITO, 2003, p. 45)

Portanto, o papel do professor vai ao encontro do papel do


adulto mediador anteriormente descrito por Girardello (2011). Para
Brito, o adulto mediador qualifica os movimentos investigativos e
as construções de hipóteses das crianças em seu processo de cons-
trução do conhecimento. Isso amplia o olhar e atribui novos senti-
dos ao processo, o que se dá pela oferta de novas informações e
do convite a outras possibilidades. Neste sentido, Brito afirma que
no processo de Educação Musical, o sujeito prioritário é a criança,
não a música. Ela assegura que “a educação musical não deve visar
à formação de possíveis músicos do amanhã, mas sim à formação
integral das crianças hoje” (BRITO, 2003, p. 46).
Outro ponto relevante acrescentado por Brito (2019) em
sua experiência como professora de música é o redimensionamento
que ela dá para a relação professor-aluno:
Há muitos anos repito que, para além de ouvir o que as crian-
ças cantam ou tocam, interessam-me suas ideias, suas opiniões,
172 Juliana Daher
percepções e, enfim, o todo que integra não só as relações com
o sonoro e musical, mas, com o mundo, com o viver… É muito
importante abrir espaço para conversar com elas e, assim, acercar-
-se do que pensam, escutando as ideias e sugestões que emergem
e que fazem, do espaço da Educação, planos de efetivas trocas, de
descobertas e processos criativos. (BRITO, 2019, p. 44)

Essa relação dialógica, que legitima o discurso infantil e o


protagonismo da criança em seu processo de aprendizado e de
construção do conhecimento, ainda é muito desafiadora, especial-
mente porque os profissionais da educação são formados ainda sob
a égide de concepções muito cristalizadas sobre o desenvolvimento
infantil e com uma compreensão equivocada do seu papel forma-
tivo, comumente entendido como meramente informativo. O con-
vite que Brito (2019) faz, portanto, é de nos deslocarmos do lugar
do suposto saber para estabelecer relações mais horizontais com as
crianças em um processo que é para elas, com elas.
No sentido do protagonismo das crianças, Lino (2008) sis-
tematiza as observações que fez do processo de criação musical
genuinamente feito pelas crianças, que a autora nomeia como
“barulhar”. Esse processo ocorre espontaneamente, nos momen-
tos de brincadeira e interação entre as crianças, e foi observado
e analisado pela autora. Ela constatou que as crianças detêm um
saber e realizam suas produções a partir dele e das relações que
estabelecem entre si. A autora parte da perspectiva da Sociolo-
gia da Infância, que não generaliza a experiência da infância, com
variações entre as sociedades, culturas, até mesmo dentro de
uma mesma família.
Tendo como referencial a criança e reconhecendo que seu
modo genuíno de expressão, de investigação e de construção de
hipóteses é o brincar, Lino (2010) descreve em seu estudo que para
as crianças observadas por ela durante sua pesquisa (crianças do
maternal II, com idades entre três e quatro anos):
os tempos de brincar sempre foram encontros para fazer música.
Nesses encontros, a música não ignora o ruído, não idolatra a

Juliana Daher 173


canção, nem um tipo específico de construção sonora, mas cria
relações no risco e no excesso de experimentar a ludicidade do
corpo e das paisagens sonoras do entorno. […] Nessa ação, a
música como substantivo plural não prescreve, mas emerge na
infância como brincadeira, acolhendo e se nutrindo de vários
repertórios que lhe conferem identidade, servem à diversão e à
alegria para expressar a necessidade de lançar o corpo à sensibi-
lidade de soar. (LINO, 2010, p. 82)

Portanto, é de fundamental importância que o professor dê


abertura para que a criança apresente seus saberes a partir de suas
convivências, contextos e interações, e os valorize. É a partir do pro-
tagonismo da criança que o aprendizado e a construção de habili-
dades musicais acontecerão de modo significativo e orgânico para
a criança. A criança traz um saber oriundo de seu percurso no uni-
verso sonoro, desde o ventre, passando pelo encontro com o outro
pela linguagem e pelos repertórios que recebe dos grupos culturais
nos quais está inserida e das interações que estabelece consigo,
com o outro e com o mundo.

REFERÊNCIAS
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criação, educação. São Paulo: Peirópolis, 2019. 200p.
BRITO, Teca Alencar. Música na Educação Infantil: propostas para a
formação integral da criança. São Paulo: Peirópolis, 2003.
FONSECA, João Gabriel M.; PARIZZI, Betânia. A música (muito) além
da música. Pista: Periódico Interdisciplinar. Belo Horizonte, v.2, n.1,
p. 38-46, fev./jun. 2020.
GIRARDELLO, Gilka. Imaginação: arte e ciência na infância. Pro-Posi-
ções [online]. 2011, vol.22, n.2, pp.72-92. ISSN 1980-6248.
HORTÉLIO, Lydia. Especial: a importância do brincar. [Entrevista con-
cedida a] Familiarte. São Paulo: Melhoramentos, out. 2009, p. 1-4.

174 Juliana Daher


HORTÉLIO, Lydia. Música Tradicional da Infância. Reflexão & Ação.
Vol. 22. No 1. 2014.
ILARI, Beatriz. Bebês também entendem de música: a percepção e
a cognição musical no primeiro ano de vida. Revista da ABEM. Porto
Alegre, 2002, p. 83-90.
LINO, Dulcimarta Lemos. Barulhar: a música das culturas infantis.
Revista da ABEM. Porto Alegre, v.24, 81-88, set. 2010.
MACHADO, Silvia de Ambrosis Pinheiro. Canção de ninar brasileira:
aproximações. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo. Facul-
dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Programa de Pós Gra-
duação em Teoria Literária e Literatura Comparada. São Paulo, 2012.
PARLATO-OLIVEIRA, Érika. Saberes do bebê. São Paulo: Instituto
Langage, 2019.
PEREIRA, Eugênio. Brincar e Criança. In: CARVALHO, Alysson et al.
Brincar (es). 1ª edição atualizada. Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 18-27.
PIORSKI, Gandhy. Brinquedos do chão: a natureza, o imaginário e o
brincar. 3. ed. São Paulo: Peirópolis, 2016.
SARMENTO, Manuel. Imaginários e culturas da infância. Portugal,
Minho, 2002.

Juliana Daher 175


Da Menina no barco
às Meninas no banho
– desaprendendo o
teatro para
ensinar o teatro
Adélia Carvalho

Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio,


pois quando nele se entra novamente, não se
encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se
modificou. Assim, tudo é regido pela dialética, a
tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o
real é sempre fruto da mudança, ou seja, do
combate entre os contrários.
Heráclito de Éfeso VI a.c.

Primeiro Mergulho
Falar de cultura, arte e infância sempre esteve em minha trajetória
profissional e artística de maneira intensa, mas a maior transforma-

Juliana Daher 179


ção ocorreu quando me tornei mãe, quando minha observação da
infância se tornou cotidiana e afetou, de forma ainda mais abran-
gente, o meu fazer teatral.
Ser mãe me levou aos mergulhos mais profundos e surpreen-
dentes em todas as instâncias da minha vida. E cada mergulho nessa
experiência é único, pois a água do rio nunca será a mesma, sempre
se modifica e também porque cada um de nós se transforma a cada
instante e, quando voltamos a mergulhar, a água que por ali passa já
não é a mesma e nós já não somos os mesmos e nossos filhos já não
são os mesmos. As crianças nos lembram disso o tempo todo, são
elas que nos mostram de forma muito concreta a mudança dessas
águas e o exercício de não apenas olhar, mas de enxergar esse movi-
mento, verdadeiramente. É o que me move a escrever esse texto
em formato de depoimento, descrevendo algumas experiências e
refletindo a partir delas sobre o fazer teatral com crianças.
Convido você, leitor, a nadar comigo, desde o início desse
texto, em um rio desconexo das convencionalidades.
Sou mãe de dois meninos, Francisco e Miguel, que chega-
ram em nossa família por meio da adoção aos 7 meses de idade. Em
nossa configuração familiar somos duas mães: eu e minha esposa
Ana Jardim. Nos tornamos mães com 39 e 45 anos. Nossos filhos são
dois meninos negros, filhos de uma mãe negra e uma mãe branca.
Eu sou dramaturga, diretora, atriz e professora de teatro. A Ana é
historiadora, produtora de teatro, professora. Duas mães artistas,
escritoras, pesquisadoras. Duas mulheres e dois meninos.
A experiência de sermos uma família com tanta diversidade
na sua configuração nos coloca diante de muitos desafios, mas tam-
bém já apresenta em sua formação a possibilidade de ler o mundo de
forma mais ampla e diversa, acolhedora e aberta às diferenças. Por
isso, nosso primeiro mergulho se dá em nossas leituras sobre esse
mundo em que estamos inseridos num sentido mais amplo, não só
para as crianças, mas para nós mães também, que seguimos nos for-
mando no aprendizado diário que é o convívio com as crianças.

180 Juliana Daher


Segundo Mergulho
Para nós, eu e Ana, enquanto artistas, sempre foi impor-
tante proporcionar aos nossos filhos experiências de fruição da
arte. Desde os 7 meses levamos nossos filhos ao teatro. Eles esta-
vam nas plateias dos mais diversos trabalhos e nos bastidores dos
nossos espetáculos. A possibilidade de ter contato com trabalhos
tão diferentes permitia que eles começassem a apresentar suas
preferências, reagindo de forma entusiasmada, desconfiada ou
desinteressada diante de cada um. Eles já pediam para ir aos espe-
táculos, reconheciam os teatros quando estávamos nas proximi-
dades, comentavam as peças assistidas. Havia uma curiosidade
por esse fazer, que nos fazia olhar de forma diferente para os
espetáculos para a infância.
Mas então:
Veio a pandemia.
Máscaras.
Isolamento.
Aulas on-line.
Nós quatro, ou nós cinco (com o nosso cãozinho Frodo), em
um apartamento pequeno.
Sem contato com a natureza.
Sem escola e amigos.
Sem vovós, tias, tios e primos.
Sem teatro.
Eles acabavam de completar cinco anos.
A incerteza dos caminhos, os medos e a falta de perspec-
tiva nos frustravam. O que seria dessas infâncias enclausuradas pelo
medo de um vírus devastador? Esse mergulho foi um dos mais sufo-
cantes, mas ao mesmo tempo havia em suas profundezas algo a ser
desvendado, não romantizando as angústias desse período, o des-
gaste, as inseguranças, mas reconhecendo que em toda experiência
há algo a ser apreendido e vivenciado.

Juliana Daher 181


Terceiro Mergulho
Nesse período eu e Ana estávamos em finalização do doutorado
e em trabalho remoto. A falta de tempo para brincar nos fez começar a
buscar caminhos entre os trabalhos para que as crianças pudessem fazer
parte daqueles instantes. Ou será que foram elas que encontraram em
nosso fazer as brechas para ser parte? Talvez seja, realmente, muito mais
isso. Com sua energia fluida e contaminante, elas foram encontrando for-
mas de brincar com nossos momentos de trabalho.
Em um desses momentos, eu precisei gravar um vídeo para
um exercício com meus alunos para uma disciplina de criação. Eu
precisava de uma luz específica que só entrava na janela da sala
no meio da tarde. Levei para lá, então, uma vasilha de água e um
pequeno barco de papel. Eu só precisava que, por alguns instan-
tes, os meninos fizessem silêncio. Mas a verdade é que elas fizeram
muito, muito mais.
Elas se aproximaram curiosas de todo aquele aparato e
começaram a observar e perguntar. Na pequena cena que precisava
gravar, eu lia um poema enquanto um barco de papel corria pela
pequena vasilha de água banhada de sol.
— Mamãe, posso soprar o barco?
A interferência inesperada me trouxe o impulso de negar,
mas, ao mesmo tempo, me instigava de alguma forma.
— E por que não? Pensei. Isso pode mesmo dar um movi-
mento interessante. Vamos lá, então. Sopro, barulho e risos.
— Mamãe, posso soprar bolinhas de sabão no seu barco?
Vai ser muito legal.
E por que não? Quem sabe isso dá outras camadas ao texto
que tem algo de melancólico?
A menina no barco
Ela seguia pequena e assustada
Fugia de quê?
Tinha medo e certa rebeldia
Porque algumas marcas não desaparecem assim

182 Juliana Daher


A menina no barco
Balançava mais por dentro do que por fora
O coração chegava a pular no peito
Como se em pouco tempo
Fosse saltar do barco-boca.
Os olhos da menina ribeirinha
Queriam se afastar de uma margem
Que havia cerceado a liberdade
Da menina no barco.
Agora ela só queria alcançar a outra margem,
O que viria depois ela nem sabia,
Mas, precisava de tão pouco,
Precisava menos do que antes.
A menina no barco,
Naquele momento,
Pensava apenas no agora,
No meio do rio
Entre uma margem-lembrança
E outra margem-esperança.
Agora ela só queria estar ali
No entre
No meio do rio
No barco
Menina.¹

E a cena foi ganhando corpo, a participação deles transfor-


mou completamente a proposta de criação, tornando-a não mais
uma criação minha para um exercício do trabalho, mas uma criação
compartilhada. De alguma forma, ali eles apreciaram e participaram
de um fazer artístico, não como simples espectadores, mas como
criadores ativos e propondo transformações.

1 Texto de Adélia Carvalho usado na cena realizada com os filhos.

Juliana Daher 183


Nessa experiência inesperada, eu desvendava, onde não
procurava, um desejo pelo fazer artístico. Do jeitinho deles, inven-
tando e criando, brincando de fazer, mas me convidando a olhar
para o brincar como coisa séria, coisa que a nossa “adultice” às vezes
tende a menosprezar. A possibilidade de criação, que eu temia estar
distante das minhas crianças nesse período de pandemia, começava
a ser desvendada ali, dentro de casa, no isolamento, mas, ao mesmo
tempo, no encontro criativo entre nós, no brincar que eles traziam
para invadir o meu fazer/ensinar artístico, quando se colocavam ali
também como criadores, para performar, usando as palavras da pes-
quisadora Marina Marcondes Machado.
Pensar a criança como performer não seria dar destaque apenas
ao processo de pesquisa artística subjetivo e individual, seja do
professor ou do aluno – o que incorreria no erro que os feno-
menólogos chamam de “psicologismo” – mas sim fazer foco
nas inúmeras possibilidades intersubjetivas dos contextos e das
situações expressivas. A educação e a iniciação nas artes, neste
prisma, se definem como campo relacional, e todas as experiên-
cias, por mais íntimas e singulares, brotam de situações coleti-
vas e compartilhadas – portanto também exteriores –, aconte-
cimentos nos quais cada um e todos mergulham, à sua maneira,
a partir de suas possibilidades. Aos educadores, caberá rabiscar,
inventar, delinear e propor situações de mergulho. No entanto,
não sabemos de antemão o que vai acontecer na piscina depois!
(MACHADO, 2020, p. 350)

E no compartilhamento daquela experiência, mesmo que


não tenha sido previsto antecipadamente, nem tenha sido pla-
nejado conscientemente, descobri que nossos caminhos de criar
eram diferentes, mas, ao nosso modo, estávamos criando juntos.
Eu estava propondo situações para o mergulho mesmo sem saber
aonde aquele mergulho nos levaria, e sem imaginar que novas águas
passariam naquele rio a partir dali.
A menina no barco se tornou, a partir dali, nosso código de
criação. Autorização para brincar de bolhas e de barquinho de papel
dentro de casa, mas também um exercício do fazer artístico que

184 Juliana Daher


trazia uma união de elementos inerentes às infâncias: o brincar e o
criar, que se atravessam, se misturam e potencializam um ao outro.
O pedido se tornou constante:
— Mamãe, vamos fazer a menina no barco?

Figura 1 A menina no Barco - Fonte: Arquivo Pessoal

E a minha profissão se tornou, a partir dessa experiência,


mais concreta para eles e, ao mesmo tempo, acessível e interes-
sante. Dessa criação, outras surgiram já sem a intervenção de nós,
adultas: canções, desenhos e até mesmo uma nova cena, sinali-
zando ali um mergulho em novas águas.

Quarto Mergulho
Em diversos momentos e de variadas formas a curiosidade
pela repetição da experiência da menina no barco se mostrava ainda
pulsante na vontade das crianças. Até que um dia, Francisco pediu:
— Mamãe, eu quero fazer hoje outro vídeo, já tenho o
nome: a menina no banho.
Havia ali um código adquirido na proposta anterior, mas
havia também algo de novo e autônomo. A dramaturgia dele come-
Juliana Daher 185
çava a se configurar e ele se sentia à vontade para propor sua cons-
trução própria, como um jogo cujas regras já conhece e pode recriar
de forma livre para que fique ainda mais interessante.
Claro que teria que ter água novamente. E claro que a boli-
nha de sabão era presença essencial. Mas, embora o rio fosse o
mesmo, as águas já eram outras: começaram a chegar, então, outros
objetos, como os pequenos bonequinhos de plástico que iriam ser
os personagens dessa história. As meninas no banho, que a princípio
seriam duas (por uma lógica estabelecida por eles mesmos):
— Tem que ser duas mamães, igual eu e Francisco que
somos dois.
De repente, tornaram-se uma “multidão” que invadia as
águas. Trazer os bonequinhos para a cena também traduz, de
certa forma, a inquietação que traziam com A menina no barco,
quando usávamos apenas um barquinho de papel e a todo
momento eles me perguntavam:
— Mamãe, por que não tem a menina? Da próxima vez
vamos colocar uma bonequinha pra ser ela?
O que permaneceu abstrato na cena anterior, eles quiseram
concretizar agora, não pelo realismo – que não era um fator tão pre-
sente na cena deles –, mas, principalmente, pelas possibilidades que
esse novo elemento podia trazer para a brincadeira.
As referências da vida deles e das experiências que os afe-
tavam invadiam a criação. Ao mesmo tempo, Francisco se apegava,
de alguma forma, inicialmente à sonoridade do texto anterior para
criar suas falas, tanto pela escolha de palavras, quanto pelo tom de
voz que assumia e que trazia algo da forma poética:
As meninas no banho
Elas ouviam cada gota “se” caindo
Elas ouviam cada passo do chuveiro
E as gotas caindo
Mas, quem se importa?²

2 Trecho falado pelo Francisco em uma das gravações de As meninas no banho.


186 Juliana Daher
Já Miguel, navegava mais livremente, trazendo referências
próprias, fantasiando, reinventando a realidade e sua paixão pela
água, suas sensações e seus desejos:
As meninas no banho
elas adoravam a água
Mas um dia ela voou
(retirando uma bonequinha da água)
E ela voou
E ela estava com uma dor de bolha de barriga.
E o amigo dela falou que ela tem que entrar,
mas, ela não pode porque ela tá espirrando.
Mas a gripe dela passou e ela deu um pulo.
(...)
E daí ela jogou um monte de gente
E depois foi todo mundo para suas casas.³

O espirro, a gripe, são elementos que emergem desse


último texto e que me levam a relacionar com algo que limita o pra-
zer, àquilo que causa o isolamento e nos impede de estar com os
outros. Esse elemento, aliado ao desejo do voo e mesmo a se jogar
em meio a um “monte de gente”, traz para aquela pequena cena
elementos sobre os quais eles não falavam cotidianamente e nem
pareciam perceber, mas que, de alguma forma, emergem do exercí-
cio de criar e de falar de si por meio do outro (personagem).

3 Trecho falado pelo Miguel em uma das gravações de As meninas no banho.

Juliana Daher 187


Figura 2 As meninas no Banho - Fonte: Arquivo Pessoal

Das várias vezes que fizeram a cena, cada gravação foi única;
em cada uma delas, como em um espetáculo irrepetível, mesmo
que alguma frase ou palavra retornasse, a condução era inesperada.
Sem um comprometimento sequencial, ou de causa e efeito, eles
brincavam com as sonoridades, com a sensação da mão na água,
com o jogo com as bolhas e com o tirar e colocar bonecos na água,
na mesa, nas beiras da bacia e no espaço. Criaram um código de iní-
cio e fim para “conduzir” minha gravação ao dizerem: “gravando”,
no início, e “corta”, ao final, código esse que não existia no meu
exercício anterior, mas que trazia referências do audiovisual, certa-
mente apreendidos em algum filme ou desenho.
Em tempos de pandemia, o teatro feito on-line, uma das for-
mas encontradas para tornar possível sua existência, se apropriou
de muitos códigos do audiovisual, dialogou com eles, embora na
maioria das vezes mantivesse sua certeza de que não pretendia se
fundir àquela outra linguagem, mas entendendo que ali havia algo
que possibilitava sua sobrevivência em tempos de teatros fechados,
palcos vazios e cortinas cerradas. Essa compreensão que eu, como
professora de um curso de teatro, tateava, ora negando, ora reco-

188 Juliana Daher


nhecendo a necessidade de se abrir para esses diálogos, neles surge
lógica e sem questionamentos. A facilidade com que transitavam
entre os códigos para experimentar as possibilidades do fazer era
contagiante e me ensinava mais do que eu poderia imaginar.
Essas criações que não foram planejadas invadiram o meu dia
a dia e me ajudaram a lidar com a minha ansiedade em tê-los inseri-
dos no fazer artístico. A fruição é importante, sim, obviamente, não
duvido disso; mas o fazer artístico vai ocorrer nos mais diversos espa-
ços, ele vai encontrar brechas, pois um ambiente artístico se configura
das mais variadas formas e, muitas vezes, está no inesperado. Apro-
veitar o momento, escutar e acolher o desejo de criação é o melhor
estímulo que podemos dar. A criação não é um processo isolado, mas
se dá em diversas instâncias de relação da criança com o outro, com
seu corpo, com a fala, com o tempo, o espaço e o mundo no qual está
inserida. Esse compartilhamento com o mundo é discutido de forma
aprofundada nos estudos de Marina Marcondes Machado em seu
livro Merleau-Ponty e a educação, em que a autora
desenha uma fenomenologia da infância. Para isso, criou uma
imagem e nomeou-a de “flor da vida”. Essa flor possui cinco
pétalas e um cabo que a conecta ao chão (ao mundo). As cinco
pétalas e o cabo são âmbitos existenciais que conversam com
a obra de Merleau-Ponty sobre a infância. São elas: outridade
(criança-outro); corporalidade (criança-corpo); linguisticidade
(criança-língua); temporalidade (criança-tempo) e espacialidade
(criança-espaço). O cabo é a mundaneidade (criança-mundo):
enraíza a criança no mundo, na cultura compartilhada. Os estu-
dos da fenomenologia da criança contribuem para sensibilizar o
olhar adulto ao modo de vida infantil. (ARAÚJO, 2019, p. 37)

Pela capacidade de sensibilizar o meu olhar adulto sobre


a experiência da criança, os estudos da fenomenologia da criança
me pareceram os mais interessantes para nortear minha descrição
sobre essa pequena experiência compartilhada com meus filhos,
momentos nos quais criamos dramaturgia, teatro, vídeo, música e
desenho, borrando as fronteiras e desvendando possibilidades.

Juliana Daher 189


Qual O Próximo Mergulho?
Ao iniciar esse texto com a célebre frase do filósofo pre-socrá-
tico Heráclito de Éfeso, quis fazer um breve convite a olhar esses mer-
gulhos que são sempre singulares, por mais intimidade que tenhamos
com um determinado rio, ou seja, com uma determinada experiência.
Ao descrever e narrar essa experiência com meus filhos, arrisco inves-
tigar aqui uma fenomenologia de um processo de criação em tempos
de isolamento, tentando compreender esse tempo e essa experiência
nova que se configuraram e que, ao mesmo tempo, são parte mar-
cante da infância não apenas dos meus filhos, mas de todas as crian-
ças que viveram essa experiência tão singular. Esses dois anos não
poderão ser apagados de suas vidas, eles fazem parte da formação
deles em um momento essencial de desenvolvimento e isso é trans-
formador. Por isso, é preciso determos nosso olhar sobre ele.
A fenomenologia como método filosófico revela um modo de
pensar com foco no outro, pautada na observação e descrição
densa, mergulhada no cotidiano. A fenomenologia nos convida
a “reaprender a ver o mundo, e nesse sentido uma história nar-
rada pode significar o mundo com tanta “profundidade” quanto
um tratado de filosofia” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 19). convi-
da-nos à porosidade e à generosidade, a sensibilizar nosso olhar
para os fenômenos da existência, enxergar o ser como algo ina-
cabado, em processo contínuo de fazer, refazer, começar e reco-
meçar. (ARAÚJO, 2019, p. 14)

Esse processo de fazer, refazer, começar e recomeçar nunca


fez tanto sentido como em tempos como esse, no qual os lugares tra-
dicionais de criar, compartilhar e pensar a arte não eram acessíveis e
precisávamos desvendar, no espaço mais conhecido de cada um de
nós (nossas casas), possibilidades para brincar, criar e compartilhar.

190 Juliana Daher


Referências
ARAÚJO, Charles Valadares Tomaz. Teatro é infância e memória: o
menino que há no homem. Escola de Belas Artes. Dissertação de
mestrado, UFMG, 2019.
MACHADO, Marina Marcondes. Merleau-Ponty & a educação. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.

Bibliografia
MACHADO, Marina Marcondes. Espiralidades: arte, vida e presença
na pequena infância. Currículo sem fronteiras, v.20, n.2, maio/ago.
2020. p. 348-371.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar. Tradução: Cássia Raquel
da Silveira. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

Juliana Daher 191


O que é criar um
livro para bebês?
Rosinha

O bebê é esse ser humano incrível que acabou de chegar ao mundo


com toda a potência. Um ser curioso que explora, reconhece, com-
para e interpreta, transformando tudo em aprendizagem. E nós,
espectadores de todo esse potencial, recepcionamos o bebê ávidos
por interagir com ele. E logo recorremos, entre outras coisas, ao
nosso tão conhecido objeto que nos proporciona interação humana,
acesso à linguagem e à cultura: o livro. 
Mas o que é um livro para bebês? Como fazer um livro para
quem não fala, não sabe passar as páginas e foca numa mesma coisa
não muito mais que alguns poucos segundos? Para quem tudo é
extremamente intenso e vital, para quem tudo está à flor da pele,
para quem tudo à volta chama a atenção?

Juliana Daher 195


Talvez a resposta mais imediata aponte que os livros para
bebês devem ser curtos, com imagens isoladas na página dupla, pou-
quíssimas ou nenhuma palavra. Livros que servem para a aquisição
de conceitos iniciais, sejam substantivos concretos como objetos,
animais, vestimentas, veículos, sejam substantivos abstratos, como
cores, números ou tamanhos, que deem conta das demandas de
tempo e de atenção. Esse é o tipo de livro que nos vem à mente, junto
com seus materiais: pano, plástico ou cartonado. Mas são apenas
esses os livros que devem ser oferecidos ao bebê? 
Quando falamos de livros para bebês, falamos da primeirís-
sima infância, que abarca de 0 a 3 anos de idade. Tão pequenos, não
é? Então como pensar em livros para essa faixa de idade, quando
as mudanças no ser são rápidas, intensas e transformadoras, e não
acontecem do mesmo jeito em nenhum outro período da nossa
existência? Como dar conta dessa profunda transformação em um
objeto que é estático, que se movimenta apenas pela passagem das
páginas em nossas mãos? E, principalmente, como criar livros que
considerem o bebê como o grande leitor que ele é? 
Não se acreditava que o bebê fosse um leitor pleno. Mas é
exatamente essa intensidade de interesses que faz dele um grande
leitor, leitor das melodias das nossas vozes, leitor das expressões
dos nossos rostos, leitor dos cheiros e dos paladares, leitor dos
silêncios e dos movimentos, leitor do ambiente e dtudo o que ele
contém. O bebê é um leitor competente de tudo o que está à sua
volta, inclusive dos livros. Leitor que merece livros que contenham
narrativas, que sejam divertidos e que proporcionem um bom jogo,
que é o que os livros fazem com a gente, eles jogam com o leitor.
Como criar livros para bebês que deem conta das dimensões
narrativas, linguísticas e poéticas que um bom livro precisa ter? São
muitas as perguntas, que se multiplicam a cada momento em que
desejo iniciar um livro, seja para bebês ou não.  A cultura popular
e a brincadeira sempre estiveram muito presentes no meu trabalho,
junto com a crença da importância que esses temas têm na minha
vida e nos livros que faço. Talvez isso tenha me aproximado tanto do

196 Juliana Daher


livro para bebês. Fazer livro para criança pequena sempre foi minha
preferência exatamente pela possibilidade de encarar o livro como
esse lugar explícito para a brincadeira e para o jogo. Entendo que
fazer livro para um leitor tão especial é trazer a síntese, é transformar
a relação do bebê com a linguagem em brincadeira, jogo e narrativa.
É trazer para o livro ludicidade e experiência estética e literária, com
o intuito de interagir com o leitor e não de ensinar.  Síntese não pela
incapacidade de compreensão do bebê, muito pelo contrário. Tudo
o que o bebê precisa para compreender o mundo já está prontinho
em seu cérebro, sem nenhuma diferença do adulto, a não ser pelas
experiências ainda não vividas. E é aí que que entra nosso papel de
construção junto ao leitor. Vamos fazer parte das primeiras experiên-
cias da vida de uma pessoa com a narrativa escrita e desenhada, com
o poético, o que eu acho incrível e um imenso privilégio. 
Foi pensando em tudo isso que produzi os três livros que
apresento aqui. O primeiro é O que tem aí?, publicado pela Jujuba Edi-
tora, uma brincadeira de cadê-achou, com as páginas estendidas em
aba, que faz as vezes das mãos ou do lençol nesse tipo de brincadeira.
A cada dupla (ou tripla), vamos brincando com os animais, reais e ima-
ginários, com os números, as cores, as rimas e até com os plurais, e a
cada pergunta é necessário abrir a aba para sabermos a resposta. No
final os personagens olham para o leitor para encontrar a resposta à
ultima pergunta, incluindo-o na narrativa.

Juliana Daher 197


O segundo é o livro Na loja do Mestre André, publicado pela
Editora do Brasil, uma cantiga de roda na qual o personagem, um
coelho, introduz os instrumentos da cantiga na página, os experi-
menta e, misteriosamente, eles desaparecem. Ao final, o mistério é
resolvido e um concerto é executado pelo polvo com os instrumen-
tos que ele tirou do coelho.

198 Juliana Daher


O terceiro livro é Cadê o meu bolo?, publicado pela Editora
Imperial Livros, uma parlenda na qual o Papão Mindinho pergunta por
seu bolo aos demais personagens, que estão tramando uma surpresa.
Em cada imagem dos bichos-papões, existe um buraco físico na página
para que o bebê coloque um dedo, depois dois, até que os cinco dedos
atravessem a página, trazendo para o livro a brincadeira que fazemos
com os dedos dos bebês enquanto entoamos a parlenda.
Os três livros não apenas reproduzem as brincadeiras e a
poesia popular, mas transformam cada uma delas em narrativa, tra-
Juliana Daher 199
200 Juliana Daher
zendo um novo sentido à brincadeira, para que o bebê experimente
outras possibilidades de interação com textos que fazem parte do
seu universo de linguagem.
Ao pensar em livros para bebês me deparo com o problema
do custo elevado da produção gráfica. Apesar de ser interessante
oferecer uma maior diversidade de livros, os materiais de que são
feitos os livros para bebês costumam ser mais resistentes, pois
esse leitor ainda está adquirindo destreza para manipular o objeto.
Além da alta gramatura do papel e da capa dura, outro cuidado
fundamental com o livro para bebês é que apresente as bordas
arredondadas, para não correr o risco de machucá-los, principal-
mente nos olhos. Quando pensamos em livros com facas de corte,
abas, páginas que se desdobram, peças de encaixe, soluções que
ampliam os significados narrativos e a experiência do bebê, a coisa
fica mais dramática. É praticamente impossível por essas bandas
do globo terrestre viabilizar livros com essa complexidade de pro-
dução gráfica. Isso me dá uma profunda frustração, já que para o
bebê a relação do corpo com o objeto e a exploração sinestésica
são fundamentais durante a leitura.
Nosso parque gráfico melhorou muito nos últimos 30 anos,
mas não o suficiente para produzirmos livros para bebês com a quali-
dade que eles merecem a um custo viável. São poucas as gráficas capa-
citadas com tecnologia e disposição para implantar os processos manu-
ais que esses livros pedem e pouquíssimas as editoras que se arriscam,
investem e têm consciência de que a qualidade da produção gráfica é
um item fundamental nos livros para bebês. A essas editoras faço uma
reverência pela bravura. Curiosamente, são as editoras pequenas as
que mais produzem livros de qualidade para esse público.
Apesar da discussão sobre livros para bebês já ter come-
çado há algum tempo, ainda não chegou com força aos autores.
Para nós, é um pensamento novo, que precisa se unir ao pensa-
mento dos teóricos e ajudar a mudar o mercado editorial para que
a produção de livros para bebês alcance um novo patamar de qua-
lidade narrativa, estética e gráfica.

Juliana Daher 201


Referências
ROSINHA. O que tem aí? São Paulo: Jujuba Editora, 2019.
ROSINHA. Na loja do mestre André. São Paulo: Editora do Brasil, 2022.
ROSINHA. Cadê o meu bolo. Rio de Janeiro: Imperial Livros, 2022.
SOUZA, Renata Junqueira de. Ler e ensinar: Gestos de leitura na edu-
cação infantil. Presidente Prudente, SP: Educação Literária, 2019.
STERN, Daniel N. Diário de um bebê, o que seu filho vê, sente e viven-
cia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

202 Juliana Daher


A edição de livros
para bebês:
coleção Literatura
de Colo
Daniela Padilha

Nos últimos anos, uma grande quantidade de estudos foram rea-


lizados sobre o início da vida, mostrando os benefícios da leitura
com bebês. Apesar desses movimentos, na área editorial, no Bra-
sil, ainda pouco se discute sobre livros e literatura para bebês. A
quantidade de produções nacionais tendo o bebê como destina-
tário primeiro é pequena, em privilégio de edições estrangeiras,
em que muitas vezes o produto está acima da qualidade literária.
Esse cenário começa a mudar em 2021, com o edital do governo
federal de compra de livros para bebês, o Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD), que traz, contudo, uma concepção dida-
tizante da literatura. No entanto, ainda não é possível se apro-
fundar na análise dessas publicações, pois poucas chegaram ao
mercado até a escrita deste texto.

Juliana Daher 205


Em 2019, a Feira Internacional do livro infantil de Bologna,
referência importante para o mercado editorial mundial, premiou
livros na categoria Toddlers, mesmo ano em que, aqui no Brasil, a
Jujuba Editora propunha a coleção Literatura de Colo, pensada para
a primeiríssima infância. O projeto da coleção, no entanto, começou
a ser gestado antes. Quando a editora estava com cinco anos de
existência, e eu trabalhando há quase quinze no mercado editorial,
passei a sentir a necessidade de me aproximar dos leitores dos livros
que eu editava e da forma como eles se relacionavam com os livros.
Escolhi me aproximar dos leitores que ainda não se comunicavam
com palavras, mas com o corpo, os gestos, os olhares: os bebês.
Então, passei a organizar, em 2015, as Rodas Barrigas leitoras e leito-
res desde a barriga, encontros para conversas e leitura de literatura
para bebês e suas famílias.
Depois de quase dois anos circulando por espaços públicos e
privados e muita pesquisa de livros produzidos para bebês, percebi que
poucos livros possuíam narrativa e que pouquíssimos eram de autores
brasileiros. Dos encantos e reflexões provocados pelas rodas, surgiu o
desejo de começar a editar livros que considerassem os bebês leitores.
No entanto, essa empreitada esbarrava em alguns pontos.
O primeiro é que não temos no Brasil parques gráficos para produzir
os livros cartonados (ou empastados) e poucas gráficas que fazem
as bordas arredondadas. Assim, junto com uma gráfica parceira,
fizemos muitos testes para conseguir a impressão do livro em cou-
chê 300g, uma gramatura maior do que a usada (em geral 150g),
mas que ainda assim não é cartonada.
O outro ponto foi encontrar autores interessados em pen-
sar esse projeto junto: o que é um livro para bebês? O que ele pre-
cisa ter? O que o diferencia de outros livros? Ao propor o projeto da
coleção aos autores, já tinha a certeza de que os livros precisavam
ter narrativas, por entender, a partir da experiência com as rodas,
que a mediação da leitura e a conexão entre o bebê e o livro, entre
o adulto e o livro e entre o adulto e o bebê aconteciam de maneira
mais oportuna quando os livros possuíam narrativas.

206 Juliana Daher


O nome da coleção surgiu do entendimento do lugar que
essa literatura deve ocupar, de leitura a dois, partilhada, em um
espaço seguro e de vínculo: o colo. Este é um dos primeiros lugares
para onde o bebê vai ao sair do útero, espaço circular de aconchego,
em que se aproxima do som do coração, aquele com o qual convive
na barriga. É lugar de cura de cólica, de arranhão no joelho, de medo
do desconhecido. É lugar de mirar nos olhos, de sentir a respiração e
o calor dos corpos conectados. Trazer a literatura para esse espaço
sagrado, de contenção e afeto, é permitir que ela esteja ligada às
emoções e memórias do bebê, que se constitui e aprende sobre
suas emoções a partir da relação com o outro.
As emoções constituem o contágio que garante, desde o
nascimento, a ligação inicial do bebê com a mãe, bem como
o desenvolvimento das relações entre as pessoas da família,
na escola, no trabalho, ou seja, em todos os contextos da
vida humana. (LIMA, 2021, p. 37)

Assim, se faz necessário oferecer uma literatura que provo-


que o interesse tanto do leitor bebê quanto do leitor adulto. Se enten-
demos que as emoções são contagiantes, a conexão no momento da
leitura do livro só acontecerá se na mesma medida despertar os dois
leitores. Ambos ocupam lugares diferentes, mas de igual importância,
a partir do momento que enxergamos o bebê como leitor e protago-
nista da sua leitura. Dessa forma, a relação no momento da leitura
deve ser horizontal, numa construção conjunta da narrativa.
Na coleção Literatura de Colo, apresentamos, então, livros
de literatura para bebês em que a narrativa é fundamental para a
construção do vínculo entre o adulto e o bebê. São histórias em que
ambos precisam ter posições ativas na leitura, que se dá por meio
do texto verbal e visual, numa conjunção entre ambas as linguagens,
o que permite ao bebê ampliar suas construções, compreensão da
realidade e contato com o estético e o subjetivo, da mesma forma
que convoca o adulto a ler as sutilezas, as brincadeiras, os detalhes.
No livro Céumar Marcéu, de Renato Moriconi (2020), temos
a história de um astronauta e de um escafandrista. Nas páginas ini-

Juliana Daher 207


ciais, os dois personagens saem da costura do livro e vão para o seu
lugar de atuação, um para o céu e outro para o mar. Para a leitura,
o livro é aberto de baixo para cima, o que causa um primeiro estra-
nhamento e deslocamento do leitor adulto, habituado com o modo
de funcionamento de um livro, da esquerda para a direita. Cada
personagem, já em seu local de atuação, conta para o leitor o que
está vendo. A primeira dupla de páginas, logo após os personagens
chegarem aos seus espaços e sumirem da visão do leitor, traz as
palavras “estrela do céu” na página superior, e “estrela-do-mar”
na parte inferior. Essas palavras funcionam como a regra do jogo
do livro. Mesmo não sendo a forma como costumamos falar, já que
não falamos “estrela do céu”, mas apenas estrela, ela aparece aqui
como uma dica: apresentar os elementos que aparecem no céu,
observados pela astronauta Céumar, enquanto a parte inferior traz
o que é visto pelo escafandrista Marcéu.

208 Juliana Daher


Numa brincadeira de espelhamento, assim como as emoções
entre adulto e bebê, dois universos são apresentados. O adulto se surpre-
enderá com as semelhanças entre avião e tubarão, balão e polvo, mete-
oro e água-viva. Há ainda uma quebra na expectativa da leitura que o
envolve a partir da abertura do livro. Esta surpresa, por contágio, envolve
também o bebê, que aponta para os objetos, muitos desconhecidos
do seu universo, e inicia sua relação com o livro de formas diferentes, a
depender da sua idade e interesse: interesse pela voz do adulto, pelos
animais, pelo espaço, pelo mar ou pela sonoridade das palavras.
Esse livro é um exemplo da premissa de que partimos para
escolher os livros que compõem essa coleção: livros que acolham o
bebê e o adulto, que surpreendam ambos de diferentes formas na
hora da leitura. Todos, ainda, possuem capa dura, bordas arredon-
dadas e papel com gramatura mais grossa, para que tenham maior
durabilidade e possam acompanhar o crescimento dos leitores.

Juliana Daher 209


Em O que tem aí?, da autora Rosinha (2019), temos uma
brincadeira narrativa com o cadê-achou, composta por uma
experiência estética e literária. Na primeira dupla de páginas,
temos do lado esquerdo um passarinho e do lado direito uma
página lilás, com o seguinte texto: “Passarinho lilás, o que tem
aí?”. Essa página tem uma aba e, embaixo dela, a resposta. O lei-
tor se depara com a ilustração e a resposta: “Um jacaré amarelo
tocando flautim”.
Na dupla de páginas seguinte, temos na esquerda a figura
do jacaré e na direita uma página amarela com a seguinte frase:
“Jacaré amarelo, o que tem aí?”. Ao abrir a aba, a resposta: “Dois
dinossauros azuis usando botim”.

210 Juliana Daher


Neste momento, o leitor possivelmente já percebeu o mote
(regra) da narrativa desse livro, sempre a pergunta e, escondidos
embaixo da aba, os bichos, numa sequência numérica crescente. A
narrativa vai se desenvolvendo, com bichos que existem e que não
existem, mas estão presentes no universo infantil, como o bicho-pa-
pão, e elementos que, assim como em Céumar Marcéu, nem sem-
pre são do universo cotidiano do bebê ou criança pequena, como
botim, jasmim, xixim, causando estranhamento e compondo com
a sonoridade textual. O livro traz ainda elementos que dialogam
diretamente com o adulto, como em: “Nove bichos-papões verdes
ouvindo Jobim”. O adulto e suas referências, assim como o bebê e
suas referências, são considerados na construção da narrativa, para
que, de fato, a leitura a dois possa acontecer.
Ao final da obra, o primeiro personagem, o passarinho, apa-
rece novamente com a pergunta: “E agora, passarinho lilás, o que
tem aí?”. No virar da aba, diferente de toda narrativa, não há texto
verbal, mas sim todos os bichos que apareceram na história, agora
olhando para frente, para os leitores.
Em uma leitura simplista, poderíamos dizer que se trata de
um livro de cores e números, no entanto, a construção narrativa vai
além desses elementos, integrando os leitores, adulto e bebê, para
uma construção compartilhada de leituras e saberes.
Hoje já sabemos pelas ciências do cérebro que o bebê nasce
com o sistema nervoso pronto para aprender e que o desenvolvi-
mento do cérebro é função da cultura, ou seja, que seu funciona-
mento é relativo às suas experiências em cada contexto pessoal
(LIMA, 2021 p. 21). Assim, ao escolher editar na coleção Literatura

Juliana Daher 211


de Colo narrativas que permitam o diálogo leitor entre o adulto e o
bebê, a partir de suas experiências familiares, estamos oferecendo
literatura aos bebês.
Entendo que a mudança de perspectiva trazida pela coleção
está em compreender o bebê como um ser social - e, por isso, de direi-
tos, direito à literatura garantido pela Constituição (direito à Cultura)
e pelo ECA – e como um ser leitor, o que o tira da posição passiva de
receber a leitura levando-o para a posição ativa de leitor de literatura.

Referências
LIMA, Elvira Souza. A incrível aventura dos primeiros dois anos de
vida. São Paulo: Interalia, 2021.
MORICONI, Renato. Céumar Marcéu. São Paulo: Jujuba, 2020.
ROSINHA. O que tem aí? São Paulo: Jujuba, 2019.

212 Juliana Daher


A escuta como base da
mediação de leitura literária
na primeira infância
Pâmela Bastos Machado

Peço licença a você, que inicia a leitura deste texto, para oferecer
minhas palavras ao seu espaço de escuta e, da mesma forma, conce-
do-lhe minha licença para significar as histórias aqui contadas a seu
modo. Me chamo Pâmela, sou bibliotecária, mediadora de leitura e
contadora de histórias. Sou filha, neta e bisneta de contadores de
histórias que me contam sobre as origens deles e as minhas. Percebo
em minha trajetória que a presença de contadoras(es) de histórias
na família influenciou minha vida pessoal minhas escolhas profissio-
nais. Ouso dizer que leio e conto histórias porque elas me contaram
primeiro sobre mim e participaram da construção da minha identi-
dade. Minha mãe costumava contar para mim e minhas irmãs nos-
sos mitos de origem e familiares, e foi por esses mitos que fui cons-
truindo a percepção de quem eu sou, das comunidades de que faço

Juliana Daher 215


parte e dos acontecimentos que me cercam. É assim que mantenho
minha relação íntima com as histórias que dialogam comigo, sejam
elas oralizadas, cantadas ou escritas nos livros.
Trabalhei em bibliotecas escolares de 2014 a 2021, e são mui-
tas as experiências vivenciadas nesses anos, atuando com a mediação
de leitura para crianças nesses espaços. Neste texto, trago relatos de
experiências de mediação de leitura com a primeira infância em uma
escola onde atuei em Belo Horizonte. Nessa escola, os encontros
com as turmas da Educação Infantil aconteciam uma vez por semana,
quando eu fazia leituras compartilhadas ou contava histórias “de
boca”.¹ Cantávamos músicas tradicionais, dançávamos, brincávamos
com os jogos de palavras, construíamos novas narrativas e sempre
conversávamos muito, eu, as professoras e as crianças.
A linguagem é o campo de ação da mediação da leitura e
quando mediamos podemos usar das diversas linguagens para a
construção de repertórios que dialoguem e contribuam para a cons-
trução pessoal, cultural, social e política do indivíduo: os livros, as
canções, as histórias contadas oralmente, a dança, os gestos, os
jogos e as brincadeiras são algumas das linguagens que participam
do processo de mediação da leitura, especialmente na primeira
infância, fase em que a criança ainda não decodifica os signos alfa-
béticos, mas já faz leituras do mundo que as cerca.
Certa vez, li Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, para
um grupo de crianças de quatro e cinco anos. Pela sonoridade das
sílabas, brincamos de mudá-las de lugar e fazer outras experimen-
tações. O que parecia um desafio para crianças que ainda não eram
alfabetizadas tornou-se um momento de muitas brincadeiras e cons-
truções de novos tronsmons,² como: jacaréca, saurodino, abodi.
As crianças riam de cada palavra (des)construída e, no encontro

1 Termo normalmente utilizado para se referir às histórias que são contadas da


memória do contador, com suas próprias palavras. Regina Machado faz uso desse
mesmo termo em seu livro “A arte da palavra e da escuta” (MACHADO, 2015, p.112).
2 Neologismo criado no livro Chapeuzinho Amarelo a partir da troca de posição das
sílabas da palavra “monstros”.

216 Juliana Daher


seguinte, uma delas ainda estava buscando novos modos de brincar
com as palavras ao tentar transformar a palavra “crocodilo”, repe-
tindo várias vezes com os intervalos entre as sílabas: “cro - co - di - lô;
cro - co- di - lô?; lô- cro - co - di?”.
De acordo com Yolanda Reyes, a escuta ativa da criança pos-
sibilita que ela perceba
as diferenças e a gama de sutilezas sonoras da língua materna,
como o contato com as diversas experiências literárias, propor-
ciona-lhe um rico repertório que emoldura seu desejo de ler e
escrever como necessidade vital e não como uma simples tarefa
escolar. (REYES, 2010, p. 74).

Na semana seguinte, lemos juntos o livro E o dente ainda doía,³


de Ana Terra, e dessa leitura muitas conversas engraçadas e importan-
tes surgiram. A história do jacaré que perde seu dente foi ouvida com
atenção e risos pelas crianças e o que me chamou a atenção foi o fato
de uma das crianças, que parecia estar dispersa e nesse dia pediu para
manter sua câmera desligada,4 ter me corrigido sobre um detalhe que
eu havia esquecido de ler. Como é uma história cumulativa, algumas
frases eram parte de uma sequência que se repetia várias vezes e,
quando pulei uma delas, logo fui corrigida por essa criança que pen-
sei não estar prestando atenção. Precisei, então, reler aquele trecho.
Quantos de nós pensamos que as crianças não estão atentas porque
olham para o lado enquanto falamos? Com o tempo, compreendi que
dar sequência na leitura é a melhor maneira de respeitar as crianças
em seus processos de escuta. Elas me ensinam que há vários jeitos
de oferecer escuta e estar atenta à leitura ou à história contada.
Outra percepção que essa experiência trouxe foi de um pro-
cesso vivenciado pelas crianças e que para a grande maioria delas

3 A história conta de um jacaré que sentia dor de dente e que tentou de várias manei-
ras, sugeridas por outros bichos, fazer seu dente parar de doer, mas nada resolvia e
seu dente ainda doía. De modo bem lúdico, o livro apresenta a cada nova página uma
quantidade crescente de bichos que tentam ajudar o jacaré.
4 Algumas das experiências aqui relatadas aconteceram nas aulas remotas, durante
o período da pandemia da COVID-19.

Juliana Daher 217


representa um “rito de passagem” rumo ao crescimento. Estou
falando da perda dos dentes de leite. Assim que a leitura do livro
foi concluída, uma das crianças disse com entusiasmo: “Perdi meu
dente, olha!”. Outras começaram a falar que também já tinham per-
dido alguns dentes e uma delas compartilhou que estava ansiosa
por esse acontecimento e pela passagem da fada do dente. Ao con-
cluir a leitura, o diálogo que se seguiu foi sobre a troca dos dentes
de leite, motivo de entusiasmo, expectativas e até medo da dor.
Aqui podemos observar a exploração e descoberta dos sentimen-
tos e sensações que uma leitura pode provocar nas crianças e sua
integração às referências pessoais delas.
Recordo-me da leitura compartilhada da história A prin-
cesinha medrosa, de Odilon Moraes. Quando a narrativa conta
que a princesinha tinha medo de tudo, inclusive de ficar pobre,
uma criança levantou a mão e perguntou o que é pobreza, ao
que outras crianças responderam: “Pobreza é quando a pes-
soa usa a mesma roupa sempre porque não tem dinheiro para
comprar outra”; “Pobreza é quando a pessoa dorme em cima
do papelão na rua”; “Pobreza é quando uma pessoa não recebe
ajuda de ninguém”. É certo que haveria muitos outros conceitos
para pobreza que eu poderia evocar naquele momento, inclu-
sive da pobreza que não vem da falta de dinheiro, mas naquele
momento esse diálogo entre elas foi suficiente para que aquela
criança tomasse conhecimento de uma realidade da qual ainda
não havia se apercebido. Os diálogos que as histórias podem pro-
mover entre os ouvintes precisam ser respeitados e assistidos
com atenção. Naquele momento, percebi que elas dialogaram na
linguagem delas e que isso bastava para que eu continuasse a lei-
tura. No percurso da mediação, procuro conduzir as crianças na
busca por respostas para suas perguntas. Nem sempre é neces-
sário que façamos intervenções com respostas prontas.
Não posso deixar de dizer que as experiências simbólicas
proporcionadas pelo encontro com as narrativas podem ser difí-
ceis, tristes ou incômodas, assim como as experiências na vida real.

218 Juliana Daher


Certa vez li para as crianças a história A árvore generosa,5 de Shell
Silverstein. No meio da leitura, uma criança começou a chorar, sur-
preendendo a todos. Interrompi a leitura e direcionei minha aten-
ção a ela, perguntando se gostaria de sair ou conversar. Sinalizando
“não” com a cabeça, a criança apenas me abraçou forte e chorou
pelo tempo necessário dentro daquele abraço, diante do silêncio
respeitoso das outras crianças presentes. Em seguida, compartilhou
com o grupo que ao ouvir esta história sentiu que ela era a árvore
e seu pai era o menino que ia embora. Diante da fala da criança,
meu desejo era de protegê-la daquela dor, o que não posso fazer.
Mas ofereci a ela uma história, uma narrativa que possibilitou que
ela sentisse e falasse sobre essa dor. Pensei que ela não gostaria de
ouvir o final da história, mas ela quis e quando concluí a leitura pude
ver seu sorriso.
Não pretendo, neste texto, aprofundar-me nas muitas pos-
sibilidades interpretativas e camadas simbólicas que esta narrativa
pode nos apresentar, mas apontar para a experiência vivida por esta
criança na relação com a história. Compreendo que ouvir a leitura
até o fim foi necessário para que esta criança encontrasse um cami-
nho individual para lidar com a sua dor naquele momento. Mediar
esta experiência foi uma das atuações mais desafiadoras e bonitas
que já vivi em minha trajetória profissional.
A partir das experiências aqui narradas, pude compreender
o quão importante é que o mediador selecione narrativas diversifi-
cadas: daqui e dacolá, com finais felizes ou tristes, com personagens

5 A árvore generosa narra a história de uma relação de amizade entre uma árvore
e um menino. A árvore amava o menino e por ele estava disposta a se doar por
inteiro. Mas o menino, à medida que crescia, se afastava e visitava cada vez
menos sua amiga árvore, enquanto ela esperava ansiosa pelo reencontro, respei-
tando o espaço e as escolhas daquele menino a quem tanto amava. E o menino
quando retorna, sempre pede algo a árvore para que possa realizar seus próprios
desejos e ela lhe concede seus frutos para vender e ganhar dinheiro, seus galhos
para que construa uma casa, seu tronco para que construa uma casa, ficando ao
final apenas um toco da árvore. A cada desejo realizado, o menino se mantinha
distante novamente por um longo período.

Juliana Daher 219


que vivem em realidades distintas, com narrativas que abordam as
diferenças, para além das narrativas convencionais. Os possíveis
efeitos que os livros exercem sobre as crianças não são mensuráveis
ou classificáveis. Enquanto mediadores, temos a responsabilidade
de selecionar narrativas que possibilitem a construção de novos
sentidos e novas experiências.
A condução sensível das conversas motivadas pelas histó-
rias garante liberdade às crianças para perguntarem, expressarem
seus incômodos e incompreensões, tirarem conclusões ou compar-
tilharem sobre si mesmas e suas experiências pessoais e coletivas. É
muito natural que elas digam quando não gostam das personagens
ou histórias, compartilhem percepções e opiniões, perguntem sobre
palavras e situações que não compreenderam, identifiquem-se com
algo ou alguém, narrem outras versões das histórias ou falem sobre
algo de suas vidas que querem compartilhar. Na prática de mediar
leituras para crianças, além de possibilitar novas experiências, preci-
samos estar abertos para aprender com elas e nos desconstruirmos
no processo. Um mediador precisa conhecer muitas histórias e gos-
tar de compartilhá-las, mas aliado ao seu conhecimento e experiên-
cia na oralidade, o mediador precisa estar sempre pronto para ouvir
cada criança, oferecendo-lhes uma escuta sincera, sensível e atenta.

220 Juliana Daher


Referências
BUARQUE, Chico; ZIRALDO. Chapeuzinho amarelo. 22. ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2008.
MACHADO, Regina. A arte da palavra e da escuta: Edição revista e
ampliada do livro Acordais. Colagens de Adriana Peliano. São Paulo:
Reviravolta, 2015.
MORAES, Odilon. A princesinha medrosa. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira
infância. São Paulo: Global, 2010.
SILVERSTEIN, Shell. A árvore generosa. São Paulo: Companhia das
Letrinhas, 2017.
TERRA, Ana. E o dente ainda doía. São Paulo: DCL, 2012.

Juliana Daher 221


Leitura universal,
interpretações singulares:
relato de experiência de uma
mãe com uma filha
com deficiência¹
Mariana Rosa

Como é que se dá a leitura junto à criança com deficiência? O com-


prometimento cognitivo, visual, auditivo ou motor inviabiliza tal
prática? Ou, ainda que viável, é menos importante? Como é possí-
vel atribuir intenção e significado à leitura quando o interlocutor
nos desafia a outras narrativas? Essas e muitas outras questões me
ocorreram quando brotou a intenção de ler com minha filha Alice,
hoje com 3 anos.
Habituada com determinado modelo de leitura comparti-
lhada, ou apegada a um ideal para essa prática entre mãe e filha,
supunha que os principais desafios que encontraríamos para estar na

1 Texto originalmente publicado em LIMA, Érica; FARIAS, Fabíola; LOPES, Raquel


(orgs.). As crianças e os livros: reflexões sobre a leitura na primeira infância. Belo
Horizonte: Fundação Municipal de Cultura, 2017.

Juliana Daher 225


companhia dos livros seriam as limitações físicas de minha pequena.
Ela tem baixa visão e pouco controle dos movimentos do corpo,
em razão da disfunção neuromotora. Não segura o livro, não fixa
a cabeça, não sustenta o corpo, não se senta sozinha, não enxerga
bem as letras, tampouco as imagens. E agora? Será que vamos ler?
Investi tempo e recursos nas adaptações necessárias. Livros
com letras grandes e figuras em contraste, aliados a estímulos sono-
ros ou táteis. Cadeira que permitisse um posicionamento funcional,
de modo que o livro ficasse à altura dos olhos de Alice, ao alcance de
suas mãos, ainda que seus olhos pouco pudessem ler e suas mãos
não conseguissem tocar. Experimentamos. Vira uma página e o jacaré
projeta sua grande boca para fora, vira outra, e o leão se apresenta
rugindo imponente, vira outra e a arara espalha suas asas até encos-
tar no nariz de minha filha. Pelo canto dos olhos, ela direciona inte-
resse e curiosidade. A boca faz bico de quem provou uma novidade.
Repetimos a experiência inúmeras vezes. Embora os ajus-
tes estruturais propostos exibissem inequívoca pertinência, sentia
nossa experiência pouco espontânea. Era tanta preocupação com a
visão que faltava, a coordenação motora que não alcançava, que a
leitura ficou, paradoxalmente, esvaziada de sentido.
Pouco a pouco, compreendi que a principal barreira para a
realização plena do momento do ler não residia nas características
de minha filha, mas no meu restrito repertório de iniciativas ou, por
assim dizer, na minha apequenada interpretação das viabilidades. A
leitura é muito mais do que enxergar as letras e as figuras, do que
ser capaz de segurar o livro ou de virar suas páginas, ou ainda de
compreender sua história. A leitura é matéria da conexão, da imagi-
nação, da reinvenção. A leitura é o universo das inúmeras narrativas
possíveis! E eu? E minha filha? E nós? Nós somos sujeitos dessa nar-
rativa! A nós cabe definir de que maneira “essa história de ler” pode
nos ser aprazível e mobilizadora de consciência e sentimentos.
Aposentei, então, a cadeira apropriada, mantive os livros
com apelo visual. Começamos de novo. Dessa vez, sentamo-nos jun-
tas, eu em uma poltrona macia e ampla, ela em meu colo, o livro

226 Juliana Daher


em seu colo. Uma tríade de acolhimento à história que iniciaríamos
dali em diante. Minhas mãos seguram as dela e juntas abrimos o
livro. Observamos a mesma página sem pressa. Ela vai apreendendo
as formas e cores, enquanto eu vou percebendo sua respiração se
apressar, seu corpo sutilmente alternar o tônus, anunciando inte-
resse. Imposto a voz e começo a leitura. Ela gira a cabeça sutilmente,
desvia do livro. Antes que eu buscasse retomar a posição que colo-
cava seus olhos de frente para as figuras, percebo que seu ouvido
encostou em meu peito. Ela segue espiando o livro de lado, ao
mesmo tempo em que ouve minha voz ecoando lá dentro do corpo,
abafada e compassada às batidas do coração. Capricho nas inter-
pretações e entonações, na tentativa de assegurar nossa diversão.
Ela corresponde à investida, emitindo sons e sorrindo fartamente.
Estaria entendendo o que leio? Visceral, sensorial e cognitiva, a com-
preensão se constrói de diversas maneiras, sobretudo sobre o valor
de estarmos juntas, em comunhão de palavras e afeto. Estamos a
escrever a nossa narrativa, amorosa e singular.
A leitura nos convida ao aconchego dos corpos, ao contato
das mãos, à sintonia da respiração, à junção das vozes, à conexão
sutil dos gestos. A leitura, e somente ela, cria contexto e cenário pri-
vilegiados a esse encontro. Concentra esforços, organiza atenções,
equilibra interesses, prioriza o tempo. Seja qual for o enredo que
o livro nos propõe, reside também ali a chance de interpretarmos
a nós mesmas, a nossa relação mãe e filha, a partir da tomada de
consciência de quem somos e, sobretudo, de quem podemos ser.
Isso porque, a pretexto de conhecer uma história que se nos apre-
senta interessante e prazerosa, é preciso aprofundamos o vínculo
que nos dá condição de ler e aprender mais e mais. Tanto mais histó-
rias conhecemos, mais sabemos sobre nós mesmas.

Juliana Daher 227


Práticas antirracistas de
leitura literária na
educação infantil
Cristiane Tavares e Luciana Gomes

Apesar das inegáveis conquistas dos movimentos negros brasileiros


nas últimas décadas, nosso país segue perpetuando práticas racistas
que vão do “pensamento racista” gerado pelo aparelho ideológico de
dominação escravista no período colonial (MOURA, 2019) ao “racismo
recreativo” presente em piadas cotidianas (MOREIRA, 2019). Partindo
de dados estatísticos e contribuições teóricas que confirmam a presença
dessas práticas racistas em diferentes âmbitos da sociedade brasileira,
este artigo contribui com a tarefa urgente de se construir uma educação
antirracista nas escolas brasileiras, desde as etapas iniciais da escolari-
dade, tão importantes para a formação ética e estética das crianças. Uma
das formas de se fazer isso é cuidando do planejamento das situações
de leitura literária na escola, da seleção dos livros aos encaminhamentos
realizados durante a mediação da leitura, tendo a análise crítica, a escuta

Juliana Daher 231


apurada e sensível e a conversa apreciativa como pontos fortes que con-
figuram as práticas antirracistas de leitura literária.
Pesquisas com diferentes recortes temáticos deixam evidente
a desigualdade racial que assola nosso país e as consequências dire-
tas desse quadro socioeconômico nos dados educacionais. As faces do
racismo, um levantamento realizado pelo Instituto Locomotiva para a
CUFA (Central Única das Favelas),¹ entrevistou mais de mil pessoas, em
todos os estados da federação. Os dados explicitam o racismo em varia-
das formas de manifestação. Evidencia-se, por exemplo, que a população
brasileira reconhece que a cor da pele de uma pessoa faz diferença no
tratamento que ela receberá da polícia e em suas chances de estudar e
trabalhar: 85% dos entrevistados afirmam que atualmente no Brasil uma
pessoa branca teria mais chances de estudar em uma faculdade do que
uma pessoa negra; 91% acham que uma pessoa branca teria mais chances
de conseguir um emprego do que uma pessoa negra e 94% acreditam
que uma pessoa negra teria mais chances de ser abordada de forma vio-
lenta ou, ainda, de ser morta pela polícia do que uma pessoa branca.
Ainda que a pesquisa testemunhe a percepção da parcela
entrevistada da população acerca da existência do racismo nas rela-
ções que envolvem segurança pública, educação e trabalho, não
seria nem um pouco difícil encontrarmos em conversas cotidianas
nos corredores das escolas, nos editoriais dos grandes meios de
comunicação ou mesmo no espaço acadêmico quem ainda acredite
no “mito da democracia racial” sustentando as relações sociais no
país. Cunhado pelo sociólogo Gilberto Freire, tal conceito baseia-se
na crença de uma suposta convivência harmônica entre “as três
raças que compõem nossa sociedade” (o branco, o índio e o negro).²

1 Para ler a pesquisa completa: https://ilocomotiva.com.br/estudos/. Acesso em 12/02/2022.


2 Como explica Nilma Lino Gomes (2005, p. 57), “o mito da democracia racial pode
ser compreendido, então, como uma corrente ideológica que pretende negar a
desigualdade racial entre brancos e negros no Brasil como fruto do racismo, afir-
mando que existe entre estes dois grupos raciais uma situação de igualdade de
oportunidade e de tratamento. Esse mito pretende, de um lado, negar a discrimi-
nação racial contra os negros no Brasil, e, de outro lado, perpetuar estereótipos,
preconceitos e discriminações construídos sobre esse grupo racial.”
232 Juliana Daher
         Assim como a maioria dos entrevistados da pesquisa As
faces do racismo, confirmamos também em nossas práticas de lei-
tura literária com as crianças evidências de um racismo alicerçando
a sociedade brasileira. Tal percepção apoia-se em leituras e pesqui-
sas bibliográficas e, principalmente, em experiências cotidianas de
racismo flagradas em salas de aula, salas de professores, salas de
leitura, pátios e bibliotecas de escolas públicas e privadas. Em nosso
entendimento, o “mito da democracia racial”, portanto, não se sus-
tenta diante de evidências gritantes de desigualdade racial estrutu-
rante, herança de nosso violento processo colonial e, sobretudo,
da resistência das elites brancas em abrir mão dos privilégios que o
racismo lhes confere.
Um dado ainda mais recente, diretamente ligado às práticas
de leitura e escrita, não deixa dúvidas com relação ao impacto do
racismo na aprendizagem e a ausência de políticas públicas voltadas
ao seu combate. Trata-se da pesquisa Impactos da pandemia na alfa-
betização de crianças, realizada pelo Todos pela Educação, com base
na PNAD Contínua (2012-2021).³ A pesquisa compara os números
correspondentes ao terceiro trimestre de cada ano e confirma os
efeitos negativos da pandemia de Covid-19 sobre a educação pública
brasileira, com destaque para dados que reforçam a diferença entre
crianças brancas e crianças pretas e pardas:
Os percentuais de crianças pretas e pardas de 6 e 7 anos de
idade que não sabiam ler e escrever passaram de 28,8% e 28,2%
em 2019 para 47,4% e 44,5% em 2021, sendo que entre as crianças
brancas o aumento foi de 20,3% para 35,1% no mesmo período.
(TODOS…, 2022, grifos nossos)

É neste contexto, portanto, que entendemos as práticas de


leitura antirracistas como parte integrante de iniciativas que visam à
diminuição, a médio e longo prazo, das desigualdades raciais no país.

3 Para ler a pesquisa completa: https://todospelaeducacao.org.br/wordpress/


wp-content/uploads/2022/02/digital-nota-tecnica-alfabetizacao-1.pdf . Acesso em
12/02/2022.

Juliana Daher 233


No que diz respeito especificamente às presenças negras
na literatura de recepção infantil e juvenil produzida no Brasil,
Debus (2017, p. 37) aponta questões importantes sobre o reflexo
do racismo na produção editorial voltada a este público. As pesqui-
sas da autora revelam que as exigências da Lei 10.639/03 contribu-
íram significativamente para o aumento da produção editorial que
problematiza as questões étnico-raciais, por meio, por exemplo, de
maior presença de personagens negros como protagonistas não-su-
balternizados e de abordagens temáticas menos exóticas e homo-
gêneas do continente africano.
Ainda que se possa comemorar o aumento quantitativo de
títulos com presenças negras voltados ao público infantil e juvenil
a partir da referida Lei, faz-se necessário permanente rigor na aná-
lise de cada obra em particular, com vistas, sobretudo, à presença
de estereótipos pejorativos que revelem direta ou indiretamente
preconceito, discriminação ou racismo.4 Parâmetros norteadores
desta análise podem ser encontrados nas Diretrizes Curricula-
res Nacionais para a Educação das relações étnico-raciais e para
o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL,
2004) e nos Indicadores da Qualidade na Educação – Relações
raciais na escola (UNICEF, 2013), documento do qual destacamos
as seguintes orientações:
É necessário afinar o olhar crítico para com as obras, mesmo
aquelas de autores e autoras consagrados e famosos, e discutir
o contexto das relações raciais nas quais foram elaboradas e a
maneira como a população negra é retratada. (...) Ainda chegam
muitos materiais à escola que colocam as pessoas brancas como
as únicas representantes da espécie humana. Muitas obras con-
tinuam a inferiorizar pessoas negras, a tornar invisíveis suas lutas
históricas e a restringir sua presença a lugares sociais de pouco
reconhecimento ou à posição secundária de coadjuvantes de
pessoas brancas. (UNICEF, 2013, p. 59)

4 Para melhor compreensão da distinção entre cada um destes conceitos, indi-


camos a leitura de Gomes (2005).
234 Juliana Daher
Neste artigo, relatamos e analisamos práticas antirracistas
de leitura literária na Educação Infantil, priorizando como modali-
dade de situação didática a leitura realizada pelo professor, dirigida
a um grupo coletivo de crianças. Parte-se do pressuposto de que,
nesta etapa da escolaridade, ainda que as crianças não possuam o
domínio do sistema alfabético de escrita e, portanto, não leiam con-
vencionalmente, já são capazes de interagir com a linguagem escrita
e visual dos livros em toda sua materialidade, construindo sentidos
e ampliando percepções acerca das representações culturais, com
as quais se criam narrativas diversas.
Apresentamos e discutimos a seguir duas situações de lei-
tura e apreciação literária com foco na diversidade étnico-racial pre-
sente na representação dos personagens, em livros-álbuns especí-
ficos: Quero colo, de Stela Barbieri e Fernando Vilela, publicado por
SM Edições (2016) e Meu crespo é de rainha, de bell hooks, com ilus-
trações de Chris Raschka, publicado pela editora Boitatá (2018). As
situações acontecem em rodas de leitura realizadas com turmas de
Educação Infantil, com idade entre três e cinco anos, e com crianças
do Ensino Fundamental, na faixa etária entre seis e sete anos.
As situações de leitura tomadas como base para a escrita do
artigo são inspiradas no planejamento e nas atividades realizadas
pela educadora Luciana Gomes, no ateliescola acaia5 (SP).

5 O ateliescola acaia é uma escola experimental que atende, em sua maioria,


crianças e adolescentes da Favela do Nove, da Favela da Linha e do Conjunto
Habitacional Cingapura Madeirite, próximas à Ceagesp, em São Paulo. Dentro
de uma proposta de educação integral associada a “oficinas de fazeres”, que
agrega saberes de distintas classes sociais, um dos objetivos do ateliescola é
desenvolver e formalizar um programa que articule educação, saúde e cultura.

Juliana Daher 235


Rodas de leitura: presenças negra e indígena em dois
livros-álbum

Quero colo, Stela Barbieri e Fernando Vilela, Edições SM, 2016.

A professora inicia a roda de leitura apresentando a história:


Essa história é para gente grande e gente pequena e fala sobre
gente que mora longe, gente que mora perto, gente que anda
de bicicleta, gente que pega água no rio. É um livro para todos e
todas. O nome desse livro é Quero Colo.

Nesse momento, a professora gira o livro aberto com capa


e contracapa viradas para o grupo. Na sequência, lê os nomes da
autora (Stela Barbieri) e do ilustrador (Fernando Vilela) do livro
e pergunta para o grupo quem gosta de acolher alguém no colo.
Segue-se, então, uma conversa até o início da leitura propriamente
dita. Relatamos e analisamos a seguir trechos da conversa que se
relacionam diretamente com as relações étnico-raciais.
A professora abre o livro para as crianças olharem com aten-
ção quem são as pessoas que oferecem colo e quem são as pessoas
carregadas no colo. 

236 Juliana Daher


Criança: Olha prô, o pai emprestou a bicicleta pro palhaço
buscar ele. O palhaço não tem pai.
Professora: E o que aconteceu com o pai do palhaço?
Criança: Ele não teve. Ele só teve mãe.
A professora prossegue com a leitura pedindo que as crian-
ças observem com muito cuidado quem mais vai aparecer querendo
colo, além do palhaço sem pai. Embora a professora não dialogue
com todas as falas, podemos observar que decide parar a leitura em
alguns momentos, em falas nas quais as crianças vão tecendo rela-
ções familiares ou revelando certo estranhamento com a narrativa.
Exemplos: quando as crianças traçam comparações com seu con-
texto familiar ou quando se surpreendem com a transição entre o
colo humano e o colo dos animais.
A professora prossegue, sem se estender sobre o palhaço
sem pai nomeado por uma das crianças. Ao virar a página na qual há
uma criança no colo de uma senhora (suposição de que seja a avó)
algumas crianças observam a imagem do bebê e nomeiam o tipo de
cabelo dele, retomando memórias do livro Meu crespo é de rainha, já
lido ao grupo pela professora no ano anterior.
Criança: Olha, prô! O menino é transparente? Não pintou.
Criança: Só quis pintar a avó.
Criança: Ela não parece minha avó. Olha o menino de cabelo
cacheado igual ao livro que tem o cabelo assim, enrolado.
A professora vai até a prateleira de livros da sala, mostra
o livro Meu crespo é de rainha e pergunta se é aquele o livro ao
qual a criança se refere. Ela diz que sim. A professora deixa o
livro ao lado e informa que no momento da atividade Livre-li-
vro vão poder olhar os dois para ver se as crianças se parecem
mesmo. Depois de dialogar com a fala da criança, a professora
segue com a leitura. 
É possível observar que a percepção das crianças vai avan-
çando e alcança aspectos mais amplos da narrativa, estabelecendo
relações para além das que geram identificação pessoal imediata,

Juliana Daher 237


como a presença de colo humano e de colo animal e a mudança de
contexto urbano para contexto do campo e da mata. 
Criança: Esse é um canguru. Ele tá levando o filho na barriga!
Criança: Ele vai cair (diz para si mesmo). Esse bebê vai cair!
Professora: Gente, ele está preocupado com o filhote de
canguru. Mas esse é o jeito que as mães cangurus têm para
carregar seus filhotes. É uma bolsa que já fica junto ao seu
corpo, é parte da mãe canguru.
Criança: Olha, agora é uma mãe ursa. O pinguim vai con-
versar com ela. Cadê as pessoas, prô?
Podemos supor que, nesse momento, a pergunta da criança
(cadê as pessoas?) esteja associada à percepção dela em relação à
mudança do colo humano para o colo animal nas imagens. Assim como
as demais falas, essa também explicita as janelas que o livro abre para as
relações humanas cotidianas, especialmente as que são permeadas por
afeto, além de permitir que se mencione a variedade de arranjos familia-
res próprios da contemporaneidade, seja pela presença de uma suposta
avó com o neto de cabelos cacheados no colo, um pai que busca o filho
na escola ou o palhaço que nasceu sem pai, apenas com mãe.
A professora convida o grupo a olhar de perto uma das ima-
gens e pensar em que ambiente essa família está:
Professora: Gente, olha essa imagem. Onde essa família está?
Crianças: Eles estão com frio. O pinguim vai ser amigo
deles. Eles são quase gente.
Professora: Eles não são gente?
Criança: A mamãe ursa é humana, mas ela colocou um
casaco de urso porque tá todo mundo com frio.
Criança: Não é humana porque tem pinguim.
Criança:  É humana sim, né prô? Ela fez roupa de urso pra
não ficar de frio.
Professora: Crianças, vocês lembram quem já apareceu
nessa história recebendo um colinho?

238 Juliana Daher


Crianças: O bebê, o palhaço, outro bebê da avó, o macaqui-
nho, o canguru na barriga…
Enquanto as crianças retomam as personagens, a profes-
sora vai tentando localizar as páginas correspondentes.
Professora: Pois é, a gente tá vendo que nesse livro tem
gente e tem bichos, todos gostam de colo. Vamos ver
quais serão os próximos colos. 
Assim que a professora vira a página, antes de ler, uma
criança já acrescenta:
Criança: Tá nas costas da mãe. Ela agarrou com aquele pano.
Criança: Não é mãe, é pai. Olha o cabelo curto dele.
Professora: Deixa eu ler o que está escrito pra gente des-
cobrir se é mãe ou pai, porque tem muitas mulheres de
cabelos curtos.
Criança: É, tem uma gente mulher até sem nada de cabelo.
Criança: Ela é careca!
Professora: Onde será que essa mulher e essa criança estão?
Criança: No rio. Um rio fundo, bem fundo.
Criança: Não é um rio. É um deserto.
Professora: Por que é um deserto?
Criança: Porque tem muita areia perto dela.
Criança: Ela tem uma roupa. Acho que é rio.
Professora: Essa mãe parece com a família que estava ves-
tida de urso? 
Criança: Não. Ela parece com essa mãe de cabelo curto.
Professora: O que tem de diferente do lugar onde estava a
família com roupa de urso pra cá?
Criança: Lá é roupa de urso, aí não tem roupa de urso.
Aqui fica evidente a percepção das crianças em relação à
mudança de contexto. Embora não consigam nomear exatamente,
estão informando que são lugares diferentes, com climas diferentes.
Juliana Daher 239
Assim como anteriormente perceberam a transição do colo humano
para o colo animal.
É importante acrescentar que optou-se por não interromper
muitas vezes a leitura, pois isso implicaria em perda da cadência rít-
mica do texto e da conexão entre as várias cenas estabelecida pela
repetição da frase “quero colo”.
Algumas observações trazidas pelas crianças são mais
comentadas pela professora, outras menos e isso não se justi-
fica pelo grau de importância de cada fala. Em alguns momentos,
escolhe-se conversar apenas com a imaginação ampliada de cada
criança, em outros escolhem-se falas que ajudam a perceber a orga-
nização da narrativa, como as falas acerca dos diferentes contextos,
e, ainda, pode-se priorizar comentários que revelam certos recortes
sociais, como a fala da criança que virá a seguir, a respeito de uma
imagem que carrega “certo estereótipo” indígena.
As escolhas fazem parte de toda situação de mediação de lei-
tura. No caso desta, em especial, o destaque para comentários volta-
dos à percepção das crianças acerca da diversidade de personagens,
contextos e colos justifica-se por duas razões: o livro traz essa ques-
tão de modo muito forte, tanto no texto, como nas imagens, e pro-
blematizar leituras com presenças negras e indígenas, desde cedo, é
um objetivo quando se trata de práticas de leitura antirracistas.
A página dupla com a frase “E na volta pra casa”, ilustrada
pela imagem de uma mãe com certo estereótipo indígena e uma
casa que nos remete à ideia da “oca”, provoca discussão entre duas
crianças sobre ser “índio” e ser humano, ou não. Note-se que o uso
generalizado da palavra “índio” indistingue até a noção de gênero,
já que mesmo a mãe é nomeada como “índio”, no masculino.
Criança: Olha, prô, ela é índio.
Criança: Não é. Ela é uma pessoa humana!
Criança: Olha lá em cima, a casa dela é casa de índio.
Criança: É mesmo e tem coisas de índio.
Criança: Então, é quase gente.

240 Juliana Daher


Professora: Por que vocês acham que indígena é quase gente?
Criança: Professora, indígena é índio gente, né prô?
Professora: Sempre que formos falar sobre índios, como
vocês estão falando, vamos usar a palavra indígena e em
outro momento vou na sala com a professora pra gente
conversar juntas com vocês sobre por que falar indígena,
e não índio.
Criança: Eu vi que é índio porque tem pouca roupa e tem
um rio.
Criança:  Isso é uma floresta, não um rio.
A professora pede que as crianças observem atentamente
as imagens de uma dupla de páginas e pergunta o que veem.

Criança: Prô, é uma floresta. Olha uma pedra.


Criança: Isso não é uma pedra, é a casa dele. Olha a porti-
nha. (É a primeira criança que observa a casa na imagem).
Criança: É, pode ser uma oca mesmo.
Esse relato da roda de leitura permite observar duas condições
didáticas importantes quando falamos em práticas de leitura antirra-
cistas na escola. A primeira delas é a escolha por livros com estreito
diálogo entre texto e imagem, favorecendo o estabelecimento de
relações, sejam familiares ou de estranhamento, que facilitam, entre
as crianças pequenas, o compartilhar coletivo de percepções. Esta

Juliana Daher 241


é, sem dúvida, uma condição didática propícia para conversar sobre
diferenças. E conversar sobre diferenças culturais, acolhendo e agre-
gando distintas perspectivas e repertórios, é uma coerência pedagó-
gica esperada quando pensamos em práticas antirracistas na escola. 
A segunda condição didática diz respeito ao cuidado crite-
rioso da mediadora ao selecionar os comentários das crianças que
deseja amplificar e problematizar no grupo, de acordo com seus
objetivos de ensino. No caso, como o intuito era oferecer leituras
com presenças negras e indígenas, os comentários das crianças vol-
tados para essa representação no livro foram priorizados, mas não
os únicos a serem comentados. As percepções específicas sobre a
representação das personagens indígenas, explicitadas pelas crian-
ças, provocaram boas conversas, reveladoras de estereótipos que
ainda circundam o modo como vemos e nos referimos aos povos
originários do nosso país. Associar “índio” a oca, mata, floresta e
rio não deixa de desconsiderar a presença indígena em cidades e
grandes centros urbanos. O que mais chama a atenção, no entanto,
é a dúvida colocada em questão durante a conversa: índio é gente?
É quase gente? É humano?
Certamente, as dúvidas revelam padrões de pensamento
aos quais as crianças estão sujeitas, de acordo com seu convívio
social e escolar. Do mesmo modo, o uso da palavra “índio”, no lugar
de indígena, carrega uma semântica colonial, que não apenas des-
considera a variação de gênero, como também as múltiplas etnias
que não se encerram em um vocábulo já tão desgastado. 
Por fim, o encaminhamento da mediadora, ao propor uma
continuidade sobre a discussão acerca dos termos “índio” e “indí-
gena”, envolvendo a professora da turma, em outro momento,
fora da situação da roda, é também condição fundamental quando
pensamos em práticas de leitura antirracistas: entender que uma,
duas, três leituras literárias, por melhores que sejam, não esgotarão
a conversa em torno de questões que estruturam nossa sociedade
há séculos. Ao contrário, podem construir pontes para que outras
leituras, pesquisas, novas e muitas conversas aconteçam.

242 Juliana Daher


Meu crespo é de rainha, bell hooks e Chris Raschka, Editora Boitatá, 2018.

Ô minha preta, pretinha…


A tua pele é bela.
Teu cabelo é de rainha.

O trecho citado é da música Crespo de rainha, do cantor e com-


positor Melvin Santana, e foi a chave de abertura para a mediação do
livro Meu crespo é de rainha. A música foi apresentada para um grupo
de crianças com idade entre cinco e seis anos. A professora iniciou o
encontro perguntando se já haviam prestado atenção que, às vezes, as
pessoas falam dos mesmos assuntos de formas diferentes. Na sequên-
cia, mostrou a foto do cantor e compositor, pediu ao grupo que ouvisse
a música com bastante atenção e acrescentou que no livro havia pala-
vras bem parecidas com as que aparecem na canção.
Professora: Tem palavras bem bonitas nessa música e esse
grupo tem o desafio de memorizar algumas. Pode ser qual-
quer palavra que chame a atenção de vocês. Depois que a
gente ouvir a música, vou ler e conversar sobre esse livro
aqui, que tem muitas coisas parecidas com a música (mos-
tra a capa do livro Meu crespo é de rainha).
Na primeira parte da canção, no trecho em que diz “preta,
pretinha”, uma criança vai até a amiga e diz:
Juliana Daher 243
Criança 1: Olha, nossa música! Falou o nome da nossa cor:
PRETA, PRETINHA!
A criança 2 se levanta e vai até o centro da roda gritando:
Criança 2: Não! Não! Não! Eu já falei outra vez. Prô, olha pra
mim, eu sou preta, pretinha? 
A professora demora um pouco para responder a essa
pergunta. Fica com um nó na garganta, olhando a inquietude da
menina, com pele num tom próximo ao seu.  A criança 2 começa a
se movimentar em círculo, enquanto passa as mãos em seus braços,
fazendo gesto de “limpeza”. Depois, aproxima-se da professora e
aperta sua face, com desespero:
Criança 2: Olha aqui! Não sou preta, né?
Criança 1: É sim! Eu, você, ela. Olha aqui. Né, prô, que eu
sou um pouco pretinha? (mostrando o braço)
A revolta da criança 2 com a cor de sua pele, nomeada em
grupo por outra criança da mesma idade, também negra, exigia
uma mediação para além do livro e das palavras, para além da
música. Duas meninas de cinco e seis anos, uma demonstrando
felicidade por ouvir o nome da sua cor, carinhosamente, numa
música, e a outra extremamente afetada por todas as questões
do racismo que lhe obrigam a não batizar “o ser negro crescente
dentro de si saindo para o mundo”, como diz a letra da can-
ção – uma frase que poderia ajudá-la a se afirmar como menina
“preta, pretinha”, ou expor suas dores, travando o processo de
sua constituição identitária.
Do ponto de vista formativo, a professora sabia ser impor-
tante dialogar com as falas das duas crianças, porém entendia ser
urgente acolher a dor da criança 2. O que poderia ser mais impor-
tante do que escutar esse pulo de revolta de uma criança e de alegria
de outra, por serem negras? A professora escolhe ouvir a criança 1,
na expectativa de que sua resposta aquiete o coração da criança 2:
Professora: Você ficou feliz por ouvir o nome de sua cor
na música?

244 Juliana Daher


Criança 1: Sim. Ele cantou “preta, pretinha”.
Professora: Alguém te chama assim?
Criança 1: Chama na música…
A criança 2 estava sentada no colo da professora, enquanto
seu assistente continuava conversando com o grupo sobre a música.
Dirige-se, então, à criança 2.
Professora: Por que você não gostou da frase “preta, pretinha”? 
Criança 2: Fala dessa cor que não é bonita (e aponta para
amiga, criança 1)
Professora: Você conhece mais alguém que tem essa cor,
além dela?
Criança 2: Minha irmã parece um pouco dessa cor.
Professora: Que cor?
Criança 2: A cor que ele falou na música.
Professora: E qual é a sua cor?
Criança 2: É um pouquinho da sua cor.
Professora: É verdade. Eu sou chamada de ‘preta, preti-
nha’ por pessoas que me amam muito. 
Criança 2: Depois riem de você? Um dia alguém já disse que
essa cor não é legal.
Professora: Não. As pessoas que me amam não riem da
minha cor. Alguém já riu da sua cor? 
Criança 2: Sei lá!  Você vai ler aquele livro?
Professora: Vamos fazer assim: eu vou ler o livro que a
gente combinou e depois, se você continuar incomodada,
a gente sai para conversar, tudo bem?
Criança 2:  Eu posso sentar do lado e virar as páginas? (Essa
é uma prática que a professora usa durante a leitura, para
envolver algumas crianças que se dispersam).
Foi difícil para a professora, uma mulher negra que car-
rega várias situações nas quais as crianças revelam seus medos de

Juliana Daher 245


serem vítimas do racismo, retomar a leitura. Pensou, então, que as
possibilidades de continuar acolhendo as inquietudes da criança 2
poderiam se estender ao cotidiano escolar. Embora reconhecesse
a importância de continuar acolhendo-a individualmente, sabia
que sua dor era coletiva, principalmente num grupo de crianças
majoritariamente negras.
Ao voltar para a roda, o assistente já tinha conversado
sobre a música com o restante do grupo e estava anotando as
palavras que as crianças haviam destacado durante a escuta.
A professora elogia, diz que as crianças são boas de memória,
pois conseguiram lembrar muitas palavras importantes que
aparecem na música. 
Professora: Esse livro é muito especial, porque a autora,
bell hooks, escreveu pensando nas memórias de quando
sua mãe cuidava dos seus cabelos. Assim como a música,
o livro também fala sobre cabelos. O nome do livro é Meu
crespo é de rainha (mostra a capa para o grupo). 
Criança 3: Ele também canta assim na música.
Professora: Assim como?
Criança 3: Pretinha e de rainha. 
Professora: É verdade que a música e o livro têm muitas
coisas parecidas. Mas vamos para o livro ver o que bell
hooks escreveu e que se parece com o que Melvin cantou?
Criança 4: Você viu ela escrevendo? 
Professora: Não.
Criança 4: Você disse que conhece a mãe dela.
Professora: Não. Eu conheço outro livro que ela escreveu
e que fala da experiência de quando sua mãe penteava
seus cabelos, referindo-se ao livro Ensinando pensamento
crítico: sabedoria prática (Editora Elefante, 2020).
  A partir da leitura das primeiras frases – Menina do cabelo
lindo e cheiro doce –, uma criança traz memórias do ex-professor:

246 Juliana Daher


Criança 3: Olha, o cabelo deles é igual ao do Gu (professor
do ano anterior).
Criança 4: É, só que o dele não fica assim pra cima.
Professora: E aqui nesse grupo, alguém acha que tem o
cabelo parecido com algum desses?
Criança 3: Não. Acho que é só do Gu (criança acaricia seu
próprio cabelo liso, enquanto fala). 
A professora não faz muitas intervenções e segue a leitura.
Ao chegar no trecho: “Ou, leve livre e solto ao sabor do vento”, a
criança 1 retoma a música e pergunta:
Criança 1: Prô, essa menininha dançando é a da música?
Nesse momento, a criança 2, que estava apenas virando as
páginas sem interagir com o grupo, vira a imagem para si
e afirma:
Criança 2: É nada! Olha aqui, essa menina não é preta e na
música chama ela preta, pretinha.
Criança 1: É sim! Igual eu e você, só é um pouco pequenininha.
Nesse momento a criança 2 fecha o livro, joga no chão, começa
a chorar alto e sai da roda gritando “Eu não sou preta, pretinha!”
A leitura de contexto, neste caso, é tão importante quanto a lei-
tura do livro. Trata-se de uma criança preta se afirmando com felicidade
ao ouvir o nome da sua cor ecoando na sala e de outra criança preta gri-
tando de dor por sentir-se exposta ao ser nomeada negra aos cinco anos. 
Mais uma vez, o assistente assumiu a turma e a professora
acompanhou a criança fora do grupo para conversar com mais calma.
Nesse contexto reservado, pergunta a ela porque sofria tanto ao ser
nomeada como ‘preta, pretinha’. E ela, soluçando, responde:
Criança 2: Não pode ter essa cor. Não é legal não ter ami-
gas. Todo mundo vai rir quando souber que a criança 1
disse que sou dessa cor. Aí eu vou ficar feia.
Peço licença para escrever em primeira pessoa como a profes-
sora que viveu essa experiência: a dor da criança 2 me atra-

Juliana Daher 247


vessou, deixando-me muda, com nó na garganta. Não tinha
encaminhamento pedagógico para nossa dor. Eu era apenas
uma mulher negra recordada na meninice da criança 2. Éramos
espelhos de ontem e de hoje. A mim, doía mais ainda saber que
minha dor de 25 anos não havia envelhecido. Era tão nova e tão
e tão doída quanto antes. O que me coube foi abraçá-la, cho-
rar junto a nossa dor e dizer: “eu também sou preta, pretinha
e sei o quanto você está magoada. Mas essa mágoa precisa sair
daqui.” (Luciana Gomes)
Vale destacar que na instituição onde se passou a situação
relatada há um acompanhamento nomeado “Oficina dos Sentimen-
tos”, na qual psicólogos e psicólogas oferecem um espaço com dife-
rentes estímulos, como faz de conta, jogos e brincadeiras, ou simples-
mente oferecem às crianças um lugar para estar em determinadas
situações. Neste espaço, a criança recebe um encaminhamento pro-
fissional cuidadoso, vinculado aos cuidados da saúde mental. 
  Alguns destes profissionais compõem outras áreas da escola,
acompanhando as aulas de biblioteca, por exemplo. Uma das psicó-
logas estava presente na aula, no momento em que a professora
acolhia a criança. Então conversou um pouco com ela e a levou de
volta para a professora titular, pois a próxima turma já aguardava a
mediadora de leitura para a aula seguinte.
Ao final da tarde, a mediadora e a professora titular trocaram
áudios a respeito do episódio. Ela relatou que foi comunicada sobre o
acontecido e o estado de tristeza e revolta da criança, que na sala rea-
firmou seu incômodo por ser negra. Como ação, a professora decidiu
caminhar pela escola com a criança 2 e conversar com as duas profes-
soras negras que estavam no espaço, tecendo um contato entre elas
e a criança 2 a respeito do processo de se ver negra. 
Essa aula não teria continuado naturalmente se a professora
não tivesse se comprometido com as questões relacionadas ao pro-
cesso de construção das identidades das crianças negras e se não
houvesse, na instituição, um aparato de apoio para situações como
essa, comumente invisibilizadas no cotidiano escolar.

248 Juliana Daher


Referências
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de 6 e 7 anos não alfabetizadas, na percepção dos responsáveis. Nota
técnica, 08/02/2022. Disponível em: https://todospelaeducacao.org.
br/noticias/aumenta-em-1-milhao-o-numero-de-criancas-de-6-e-7-a-
nos-que-nao-sabem-ler-e-escrever/. Acesso em 12/02/2022.

Juliana Daher 249


A tela como um holofote:
reflexões sobre a leitura
literária com crianças
na pandemia
Amanda Ribeiro Barbosa

“Tudo ao mesmo tempo agora”. Em 1991, Arnaldo Antunes apontava um


movimento curioso, um redemoinho, uma costura líquida no tempo das
coisas. As estudiosas Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2017) escolhe-
ram o verso dos Titãs para se referirem a uma “nova era” da literatura e
do livro, em que se acomodam, não sem alguns desconfortos, os meios
impresso e digital. Acostumamo-nos com intromissões de aparelhos e
recursos que surgiram da noite para o dia ao longo dos últimos anos;
tentamos experimentar suas possibilidades, estranhando aqui e ali algo
que, diante do inevitável apego, julgamos não caber na nossa rotina. Por
vezes, insistimos em “uma coisa de cada vez”, numa tentativa de sabo-
tagem do verso que complementa a música em questão. O ano de 2020,
no entanto, reconfigurou nossa relação com as tecnologias digitais, espa-
lhando holofotes que, ao iluminarem, produziram muitas sombras.

Juliana Daher 253


A literatura, o livro e a leitura vivem uma era de interseções.
Aliadas à infância, elas suscitam questionamentos relacionados
à formação de leitores. A educadora Daniela Figueiredo parte da
noção de infância “entendida como uma construção social, cam-
biante ao longo do tempo, forjada nos diversos espaços da nossa
complexa sociedade” (2017, p. 83) para tecer argumentos a favor
da leitura de literatura com as crianças pequenas. A autora ressalta
a importância de se reconhecer que fatores socioeconômicos inter-
ferem diretamente no acesso às práticas de leitura, uma vez que
grande parte das crianças brasileiras não tem a “oportunidade de
adquirir livros, frequentar livrarias, ir a bibliotecas ou participar de
atividades que as aproximem da leitura e da escrita, ou mesmo ter
alguém que leia com elas” (p. 85). Nesse contexto, segundo Silvia
Castrillón (2011), importante bibliotecária, autora e editora colom-
biana, a escola acaba sendo o único espaço em que a maioria dos
latino-americanos tem acesso a livros e à leitura, seja ela individual
ou mediada por uma bibliotecária ou professora, por exemplo.
As leituras literárias são experiências simbólicas em que a
criança se identifica com a narrativa, com algum personagem e até
mesmo com quem lê. Os elos criados durante a leitura viabilizam
outros que ultrapassam os muros da escola, conectam-se a outras
pessoas e livros e produzem conhecimento. As dimensões individual
e coletiva se intercruzam, criando uma engrenagem que mantém
o processo ativo e o dissemina. Tal perspectiva evidencia o cará-
ter social da leitura e a dimensão humana da formação do leitor
(FIGUEIREDO, 2017). O que acontece, então, quando crianças são
impedidas de frequentar o espaço escolar? O espectro dessa per-
gunta é largo, uma vez que sabemos da existência de incontáveis
adversidades enfrentadas por muitas crianças para acessá-lo e se
manterem frequentes. Aqui, refiro-me especialmente ao problema
de saúde pública que assola o mundo: uma pandemia que, no Brasil,
convive com e é agravada por um pandemônio político.
A Covid-19, nome dado à doença causada pelo novo coro-
navírus, o Sars-CoV-2, tem evidenciado e acentuado as disparida-

254 Juliana Daher


des socioeconômicas nacionais. Na segunda quinzena de março de
2020, as escolas brasileiras suspenderam suas aulas em decorrência
de um decreto de quarentena coletiva. Aqueles primeiros dias de
isolamento, que já incomodavam o calendário escolar, transforma-
ram-se em semanas e a perspectiva de volta foi se tornando cada dia
mais turva. Num curto intervalo, professoras da rede privada preci-
saram aprender a manusear uma gama de ferramentas digitais para
ministrar suas aulas a distância. Famílias precisaram organizar novas
rotinas, enfrentando desafios de diversas ordens. Na rede pública, a
falta de acessibilidade digital de grande parte das famílias dificultou
o vínculo e impossibilitou a continuidade das aulas.
A preocupação com a capacidade de decodificação e fluência
leitora, sobretudo ao que compete à alfabetização, ganhou destaque
logo no início das aulas remotas. Sabemos, a partir de pesquisas de
Magda Soares (2003), Roxane Rojo (2004) e Rildo Cosson (2006), que
o letramento é parte edificante e indissociável desse processo. Para
compreender textos, o leitor precisa construir sentidos a partir de
práticas sociais. Uma importante aliada nesse percurso é a leitura de
literatura para e com crianças muito pequenas: um ritual corriqueiro
na sala de aula de Educação Infantil e nas bibliotecas escolares.
A leitura com crianças no ambiente escolar tem um funcio-
namento próprio. Ela geralmente parte da escolha do livro pela pro-
fessora ou pela bibliotecária com o propósito de encantar o público
ouvinte/expectador. A criança que compreendeu o ritual da leitura,
mesmo que ainda não saiba ler, passa a decidir por si mesma qual
será o próximo livro que levará para casa. Ela pode percorrer estan-
tes, tocar e folhear os livros. Pode pedir para que leiam uma nova his-
tória ou para que repitam a sua preferida; com o tempo, ela aprende
a contá-las de cor, imitando os gestos e a entonação da pessoa que
costuma lê-las. Ela compartilha suas dúvidas com colegas e inter-
fere espontaneamente na contação, participando e contribuindo
com suas ideias e leituras prévias, ancorando aquela experiência em
outras que já fazem parte do seu repertório. O entorno, os confli-
tos, as soluções, o convívio com aquele que traz uma bagagem dife-

Juliana Daher 255


rente, de uma casa diferente, de famílias que vivem e pensam de
modos diferentes, compõem as narrativas prévias – que, segundo a
pesquisadora argentina de literatura para crianças Graciela Montes
(2020, p. 86), são as “leituras que se antecipam à sua leitura”, aquilo
que permeia e que também se lê, que se costura com o ficcional,
dando e recebendo sentidos.
A leitura literária nas escolas acaba sendo, então, uma experi-
ência íntima, afetiva, com rodas de conversa e partilha de sensações.
Ela extrapola, demora, invade o horário do lanche ou da saída e tece
uma complexa teia de vozes e leituras que transcendem o próprio livro.
Hoje, com novas configurações de tempo e espaço, concentradas em
uma tela de 15 polegadas e interrompidas com um clique, dependentes
de uma infraestrutura de maquinário e rede de dados eficientes, as con-
tações de história passaram a delinear outro tipo de experiência.
A professora precisou transformar seu arsenal analógico em
digital. Ainda que se mantenham recursos como fantoches e peru-
cas, por exemplo, e não se valham daqueles próprios do meio digital,
como sons, ângulos, transições e efeitos, contar histórias para uma
câmera exige novas competências. Dificuldades técnicas expuse-
ram inabilidades e geraram insegurança. A performance confiante,
incentivada pelos retornos instantâneos de risos e sustos, deu lugar
a uma série de questionamentos sobre a própria prática – afinal, a
plateia havia aumentado. As famílias também estavam ali, do outro
lado da tela, ouvindo e analisando o trabalho da pessoa responsável
pelo aprendizado das crianças.
No início da pandemia, reportagens¹ listavam uma série de
canais de contação de histórias para crianças no YouTube. Algumas
delas, com tom de boa notícia, diziam que as lives e os vídeos eram a
solução para pais que não sabiam como entreter seus filhos no período
de isolamento social – uma espécie de ócio produtivo, já que o entrete-

1 Ver: https://guia.folha.uol.com.br/crianca/2020/03/fique-em-casa-conheca-canais-
-do-youtube-com-contacao-de-historias-para-os-pequenos.shtml e https://www.
brasildefato.com.br/2020/03/19/pela-internet-contadoras-de-historias-entretem-
-criancas-durante-quarentena
256 Juliana Daher
nimento tinha o intuito de cumprir uma demanda considerada impor-
tante, mesmo que não se soubesse explicar tal importância. Canais que
já existiam ganharam mais seguidores e quem lançava um vídeo por
semana passou a fazer lives diárias. Professoras criaram seus próprios
canais para divulgar seu trabalho aos alunos e a famílias e colegas de
profissão que desejassem usufruir do conteúdo. As tecnologias digitais,
até então comumente acusadas de prejudicar relações, se destacaram
por suas potencialidades de aproximação num contexto em que a dis-
tância geográfica se fazia (ainda se faz) necessária.
As possibilidades de um meio não substituem as de outro;
algo que falta aqui, sobra ali, mas um não se sobrepõe ao outro. A
contação de história virtual habita a interseção formada pela con-
tação presencial, pois conserva suas técnicas, por mais diversas e
pessoais que sejam, e pelo meio digital, com recursos audiovisu-
ais que agregam novas camadas à performance. Essa experiência
híbrida, que nasce por meio da “fricção” entre duas linguagens,²
tornou-se importante aliada no acesso às histórias e aos livros, já
que é uma forma de as crianças conhecerem títulos e autores/as e
se afeiçoarem ao “ritual literário”.
Algumas editoras e plataformas de leitura disponibilizaram
obras gratuitas para download ou consulta online durante a quaren-
tena.³ Assim como os vídeos e as lives de contação de histórias, essa
possibilidade de acesso à literatura também depende do manuseio de
aparelhos digitais. Sob a justificativa da necessidade de diminuição do
tempo de exposição às telas, clubes de assinatura de livros impressos
para crianças parecem ter aumentado suas vendas.4 Todavia, apesar
do aparente crescimento das assinaturas, o tempo de dedicação à lei-
tura com crianças foi comprometido pelas circunstâncias da pande-
mia. As famílias – com o inevitável destaque para as mulheres/mães

2 Vera Casa Nova propõe o termo ‘fricções’ para falar do “entrelugar que envolve
as artes na contemporaneidade” (FERREIRA, p. 38, 2004).
3 Ver: https://lunetas.com.br/livros-gratuitos/
4 Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/clubinhos-de-leitura-crescem-na-
-pandemia-com-pais-em-busca-de-opcoes-de-diversao-longe-das-telas-24685539

Juliana Daher 257


– se viram diante de um complexo equilíbrio de pratos em varetas:
o home office conjugado com tarefas domésticas, aulas remotas de
crianças e adolescentes e, às vezes, os próprios estudos à distância.
Tudo isso em um contexto de medo e desamparo em diversos níveis,
do mais íntimo ao federal. O cenário que dificulta e, muitas vezes,
impede momentos de leitura em família é o mesmo que clama por
mais possibilidades de fabulação e elaborações simbólicas. A primeira
infância, período edificante cujos frutos e danos se manifestam ao
longo de toda a vida, necessita de narrativas que ajudem a lidar com
medos, saudade, luto e descobertas, por exemplo.
A ilustradora Bruna Lubambo lançou, ainda no início do perí-
odo de isolamento social, o livro Dentro de casa (Aletria, 2020). Os
textos verbal e visual, ambos de Lubambo, compõem uma narrativa
que reflete sobre o contexto da doença sem cair em prescrições
de caráter pedagógico. A autora, ao observar a forma como o filho
pequeno lidava com seu entorno, conta a história de uma criança
que vê sua casa “crescer”. O livro foi disponibilizado para download
gratuito, em formato pdf, e depois lançado no formato impresso
pela editora Aletria. A leitura pode ser centelha para diálogos acerca
de emoções como o medo e a saudade, além de ajudar a elaborar
novas relações com a casa e o tempo.

Figura 1: Página do livro Dentro de Casa, de Bruna Lubambo


Fonte: Bruna Lubambo/ Site

258 Juliana Daher


A Brinquedoteca Comunitária Ludocriarte, de São Sebastião (DF), em
atividade desde 2005, reformulou o projeto Direito de brincar, finan-
ciado pelo Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, durante
a pandemia. Após pesquisas sobre a acessibilidade digital das famí-
lias de 110 crianças e adolescentes, as oficinas foram transformadas
em lives semanais em plataformas como YouTube e Zoom. O educa-
dor Isaac Mendes conta que as crianças já eram estimuladas a criar
histórias e produzir seus próprios livros pela editora do projeto.5 No
novo formato das atividades, histórias do acervo da biblioteca comu-
nitária foram contadas via podcast, o Brincast, que pode ser acessado
pelo aplicativo Spotify. O projeto também disponibilizou cestas com
materiais artísticos para retirada, individual e com hora marcada, na
brinquedoteca. Dessa forma, a equipe responsável pelo Ludocriarte
manteve sua parceria com as famílias atendidas, explorando estraté-
gias digitais de contato e interação.

Figura 2: Perfil do podcast Brincast no Spotify


Fonte: Fac-símile da autora

As iniciativas individuais e de pequenos grupos, viabiliza-


das pelas ferramentas digitais, parecem ser uma alternativa para

5 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2020/12/


4897447-iniciativas-voltadas-para-a-leitura-infantil-se-adaptam-a-pandemia.html

Juliana Daher 259


mitigar alguns dos efeitos negativos do isolamento social, indiscu-
tivelmente necessário, sobre as crianças pequenas. No entanto, os
abismos socioeconômicos que habitam as sombras produzidas pelo
brilho das telas-holofotes nos fazem perceber o quanto a formação
de crianças leitoras se tornou ainda mais irrequieta e complexa,
atual e urgente. Atravessamos um período de ausência de políticas
públicas de fomento à leitura que valorizem a diversidade do livro,
da escola, da infância e da família, que estejam atentas a uma rea-
lidade socioeconomicamente desigual.6 Como um lobo mau disfar-
çado de vovozinha, algumas forjam preocupações que, na verdade,
sustentam um projeto político de silenciamento de vozes, sejam
elas de autores/as, editores/as, pesquisadores/as ou leitores/as.
Num contexto em que a emergência pela sobrevivência
coloca – ou, ao menos, deveria colocar – as demais demandas em
segundo plano, discutir a formação de leitores parece um luxo.
Uma guerra nos priva de nossas batalhas individuais,7 estabelece-
-nos prioridades e põe em xeque uma boa parcela de futuro. No
entanto, ela também amplia a nitidez de algumas necessidades.
Formar leitores na primeira infância é, com segurança, a primeira
e mais potente chance de contribuir para a formação humana, que
curiosamente não é inata, mas aprendida, valiosa e imprescindível
para lidar com a coletividade.

6 Encontramos análises sobre os programas PNLD Literário e Conta pra mim,


ambos de âmbito federal, no recente artigo de Pinheiro e Tolentino (2021) https://
periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/cadernodeletras/article/view/19865 e no
podcast de José Castilho https://soundcloud.com/user-518880571/0121-podcast-
josecastilho-v1?fbclid=IwAR3FDjYjudwTyxzEdGFnB9QlG_o5JIFD1MtzypmZv-
ImrebKHiwwT4kkKTI
7 Paráfrase da fala de um personagem do filme Jules e Jim, de François Truffaut: “A
parte mais asquerosa da guerra é… priva o homem de sua própria batalha individual”.
260 Juliana Daher
Referências
BABU, Devana. Iniciativas voltadas para a leitura infantil se adaptam
à pandemia. Correio Brasiliense, Brasília, 29 dez. 2020. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2020/12/
4897447-iniciativas-voltadas-para-a-leitura-infantil-se-adaptam-a-
-pandemia.html>
CASTILHO, José. Programa “Conta pra mim”, do MEC, conta pra
quem? Critique em um instante, São Paulo, 2020. Disponível em: <
https://open.spotify.com/episode/3EElUJprwCI546PjLUfKgj?si=VeI-
Xw3zlRPy7Z_q16F-bHw&utm_source=copy-link>
CASTRILLÓN, Silvia. O direito de ler e de escrever. Tradução de Mar-
cos Bagno. São Paulo: Pulo do Gato, 2011.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo:
Contexto, 2006.
FERREIRA, Ana Paula. Videopoesia: uma poética da intersemiose.
Em tese. Belo Horizonte, v. 8, p. 37-45, dez. 2004. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/
view/3582>
FIGUEIREDO, Daniela. Por que ler literatura com as crianças? In:
LIMA, Érica; FARIAS, Fabíola; LOPES, Raquel (Org.). As crianças e os
livros: reflexões sobre a leitura na primeira infância. Belo Horizonte:
Fundação Municipal de Cultura, 2017.
GABRIEL, Ruan de Souza. Clubinhos de leitura crescem na pandemia,
com pais em busca de opções de diversão longe das telas. O Globo,
São Paulo, 13 out. 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/
cultura/clubinhos-de-leitura-crescem-na-pandemia-com-pais-em-
-busca-de-opcoes-de-diversao-longe-das-telas-24685539>
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira:
uma nova / outra história. Curitiba : PUCPRess, 2017.
Livros on-line e gratuitos para as crianças na quarentena. Portal

Juliana Daher 261


Lunetas, São Paulo, 24 mar. 2020. Disponível em: <https://lunetas.
com.br/livros-gratuitos/>
LUBAMBO, Bruna. Dentro de casa. Belo Horizonte: Editora Aletria, 2020.
MONTES, Graciela. Buscar indícios, construir sentidos. Tradução:
Cícero Oliveira. Salvador: Selo Emília e Solisluna Editora, 2020.
PINHEIRO, Marta Passos; TOLENTINO, Jéssica Maria Andrade. A lite-
ratura infantil em perigo: políticas públicas e o controle da leitura.
Caderno de Letras. Pelotas, 2021. Disponível em: <https://periodicos.
ufpel.edu.br/ojs2/index.php/cadernodeletras/article/view/19865>
ROJO, Roxane. Letramento e capacidades de leitura para a cidadania.
São Paulo: SEE: CENP, p. 853, 2004.
SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas.
Revista Brasileira de Educação, São Paulo: Autores Associados, v.
25, 2003.
TELES, Isabel. Fique em casa: conheça canais online com contação
de histórias para os pequenos. Folha de São Paulo, São Paulo, 23 mar.
2020. Disponível em: <https://guia.folha.uol.com.br/crianca/2020/03/
fique-em-casa-conheca-canais-do-youtube-com-contacao-de-histo-
rias-para-os-pequenos.shtml>

262 Juliana Daher


Ler juntos:
sobre histórias,
casulos e metamorfoses
Roberta Colen

As anedotas foram o “primeiro leite alimentar da minha literatura”,


como escreveu o folclorista brasileiro Luís da Câmara Cascudo em seu
livro Literatura oral no Brasil. Eu, assim como ele, “não tinha conheci-
mento anterior para estabelecer confronto.” (CASCUDO, 1984, p. 16).
Não identificava o racismo, não sou negra, então eu ria. Ria também
do estereótipo afeminado do homossexual, sem sequer saber sobre
sexualidade ou gênero. Achava engraçado associar a burrice ao povo
português, porque não sabia que também descendia deles. Ria da
piada da loira, do aleijado, do gago, do cego, do retardado. Até que
um dia, eu me descobri mãe de um filho autista. Ele me ensinou que
não preciso ser negra, loira, deficiente, imigrante ou homossexual,
nem ter algum familiar que seja, para não achar engraçadas as piadas
sem graça que eu ouvia na infância, que ainda existem e são generali-

Juliana Daher 265


zações enraizadas no senso comum. São narrativas sarcásticas povo-
adas de juízos de valor e preconceitos.
A menina que lia os livros disponibilizados pelo Caminhão
da Biblioteca Pública de Minas Gerais, em Belo Horizonte, cresceu
rodeada por histórias, fortalecendo de forma genuína o amor pela
leitura, pelo livro e pela literatura. De maneira espontânea, como
acontece naturalmente quando amamos alguém ou alguma coisa,
nasceu em mim, ao me tornar mãe, o desejo de compartilhar o que
eu tinha de melhor a oferecer aos meus filhos: a leitura. Não foi algo
planejado ou embasado em alguma teoria, nem em uma espécie de
manual de como apresentar um livro ao seu filho. Havia sim uma
vontade muito grande de experienciar a leitura com eles.
Em uma noite, todos de pijama, nós nos preparávamos para
dormir, e intuí que era o momento de convidar Arthur e Isis para o
ninho. Encostados à cabeceira da cama, um ao lado do outro, jun-
tos abrimos nosso primeiro livro: A casa sonolenta, de Audrey e Don
Wood (1984). Lemos calmamente, entregues ao momento, para que
eles pudessem observar as lindas ilustrações que ocupavam páginas
inteiras. Eles saborearam cada detalhe, pois apesar de ser um texto
simples, é um conto cumulativo que requer atenção. A cada página,
as imagens dialogavam com a história compondo a narrativa e, ao
mesmo tempo, eles iam se conectando ao livro e à leitura. Eram
como a terra fértil ávida para ser semeada, e assim como a semente
lançada ao solo germina vagarosamente, também o embrião da lei-
tura começou a brotar, sendo aspergido carinhosamente dia após
dia. De forma orgânica, a leitura foi sendo incorporada à vida deles
e, em pequenas doses, eles sorveram sem pressa, gota a gota, pala-
vra por palavra.
O ato de ler todos os dias para nós não era um hábito, e
sim uma experiência de fortalecimento dos laços afetivos, de nos
dedicarmos exclusiva e inteiramente um ao outro e, consequente-
mente, à construção de nossa identidade leitora. À época, eu não
tinha consciência que se iniciava ali a educação literária das minhas
crianças. Somente anos mais tarde conheci esse conceito lendo a

266 Juliana Daher


obra A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância, de
Yolanda Reyes (2010). Nela, a escritora colombiana defende a inclu-
são da “formação literária no baú familiar de nossas crianças (…)
como alternativa de nutrição emocional e cognitiva e como equipa-
mento básico para habitar mundos possíveis na medida de cada ser
humano.” (REYES, 2010, p. 14)
Por noites seguidas, as crianças no ninho pediam nosso pri-
meiro livro e, unidos em um mesmo intuito, repetiam a história antes
contada, passando o dedo indicador sobre as palavras, como se esti-
vessem lendo cada uma delas. A repetição da narração sem cortes,
com a mesma cadência, de maneira respeitosa, deu-lhes segurança no
processo de leitura. Confiantes, aconchegadas, demonstraram estar
prontas para outras narrativas, e coadunadas pelo mesmo desejo,
aquecidas uma pelo calor da outra, pelo olhar amoroso de uma para
com a outra, na alegria da descoberta, seguimos de mãos dadas para
um novo livro, e mais dois, três… Eram momentos de muita cumplici-
dade, amorosidade, de plena comunhão: nós e os livros. Fomos cons-
truindo, assim, uma relação de intimidade com a leitura e, ao mesmo
tempo, íamos nos constituindo leitores por meio das histórias, dos
poemas, da sonoridade das palavras, do ritmo do texto, das pausas e
das ilustrações. Estávamos fabricando memórias de uma experiência
de afeto entre nós, embalados pelas histórias recontadas ao pé do
ouvido, entre sussurros, assombros, surpresas, variações de timbres,
diferentes sensações e troca de olhares.
Mas nem sempre o meu olhar encontrou o olhar de Arthur.
Meu filho mais velho nasceu prematuro, o primeiro bebê-can-
guru do Hospital São Lucas de Belo Horizonte. Ao invés de ir para
a incubadora, meu menino foi carinhosamente aninhado ao meu
peito pela equipe de enfermagem, e nossos corações voltaram a
bater no mesmo compasso. Aparentemente, um recém-nascido
sem qualquer demanda específica além do comumente orien-
tado a uma mãe de primeira viagem. À medida que ele crescia,
não sustentava o olhar, pois estava acontecendo um fenômeno
chamado “olhar do sol poente”, caracterizado por uma dificul-

Juliana Daher 267


dade da criança em fixar o globo ocular. Eu teria que ter paciên-
cia para aguardar que o fluido cerebral fosse naturalmente absor-
vido pelo organismo, enquanto ele se desenvolvia sem qualquer
atipicidade evidente.
Aos três anos de idade, Arthur chamava a atenção pela
quantidade de palavras completas que falava e pela pronúncia das
concordâncias em cada frase enunciada. Vez ou outra, intuitiva-
mente, ele pegava os prendedores de roupa de madeira, sentava-se
no chão e brincava montando a inicial do seu nome, “A” maiúsculo.
Cena que me intrigava porque ele ainda não estava na escolinha, não
havia sido formalmente apresentado ao alfabeto. Também a memó-
ria era algo em que ele se destacava, demonstrava especial interesse
por animais, a princípio, dinossauros. Sabia nomear, caracterizar e
diferenciar um a um. Aproveitei para apresentar vários outros livros
com seres do reino animal para ele e diversificar as histórias com
seu tema preferido, o que propiciou a criação de suas próprias nar-
rativas. Arthur, dia a dia, revelava-se uma criança com imaginação
e criatividade fecundas. Enquanto ele brincava com os cavalinhos,
imitava os sons do galopar e do relinchar, completamente absorto
pelas imagens produzidas em sua mente.
Nesse percurso de uma identidade leitora, outro livro que
nos marcou foi Maria Júlia e a árvore das galinhas, da escritora Erika
Stockholm (2007). Durante muitas noites consecutivas, lemos,
relemos, nos divertimos e, de maneira despretensiosa, a diversi-
dade foi se descortinando para nós. As crianças foram se apro-
priando da história e, naturalmente, foram identificando nossa
família nos papéis sociais da ficção. A partir daquele momento, era
estabelecida por eles uma relação de empatia com as personagens
e de afeto com a narrativa, o que proporcionou a intimidade com
a leitura. A previsibilidade proporcionada pela recorrência dos
acontecimentos em sequência cronológica já conhecida por eles
promovia a familiaridade com a história. Interessante como ainda
achavam engraçadas as aventuras de Maria Júlia, Galinha e seus
pintinhos, mesmo depois de tantas releituras.

268 Juliana Daher


Na ocasião, eu não tinha conhecimento, mas esse universo
do faz de conta vivido por minha família a partir da leitura comparti-
lhada já havia sido amplamente estudado por grandes pesquisado-
res como Jean Piaget (1896-1980), Lev Vygotsky (1896-1934) e Henri
Wallon (1879-1962). Todos ofereceram grandes contribuições para
o entendimento do desenvolvimento sociocognitivo infantil, nas
áreas da educação, da psicologia e da neurociência. A partir deles,
outros estudiosos descobriram que a criança desenvolve a capaci-
dade de se colocar no lugar do outro por meio da leitura, em virtude
do compartilhamento de vivências, levando-a a compreender as
emoções e os pensamentos das personagens das histórias, além de
também favorecer o aprimoramento da linguagem. Todo esse arca-
bouço mental recebe o nome de Teoria da mente:
Nos anos iniciais da infância, a criança começa a atribuir uma
variedade de termos mentais para descrever ações próprias e
alheias como desejos, crenças, pensamentos e sentimentos.
Essa capacidade, que permite ao indivíduo predizer seu próprio
comportamento e o dos outros, é nomeada pela literatura como
teoria da mente. (RIBEIRO et al., 2014, p. 195)

Com o tempo, nosso encontro familiar em torno do livro


e da leitura ganhou mais um integrante, o pai. A presença paterna
nesses momentos, totalmente dedicado a ler para os filhos, com o
olhar voltado apenas para eles, com carinho e com amor, irrigou e
fortaleceu a sementeira da leitura, proporcionando às crianças a
memória afetiva da união da nossa família em torno da prática lei-
tora. Sobre esse gesto paterno, Yolanda Reyes (2010) escreveu:
E o pai que anos depois deixa as ocupações adultas de lado para
compartilhar uma história com o filho, como um rito de passa-
gem para entrar no mundo dos sonhos, volta a tornar vigente
essa amarradura entre a história particular e a história universal
humana escrita em cifra na literatura. (REYES, 2010, p. 25)

No aconchego do lar, fomos compondo um pequeno


acervo literário, ao passo que, em paralelo, o interesse das crian-

Juliana Daher 269


ças por outros gêneros também se ampliava. E então, durante o
processo de alfabetização de Arthur, ele e a irmã mais nova, Isis,
conheceram as revistas em quadrinhos. As palavras escritas em
caixa alta favoreceram o reconhecimento das letras, a formação
das sílabas e a assimilação do pequeno texto nos balões de fala.
Aos poucos, as crianças, cada uma no seu tempo, foram alcan-
çando autonomia na leitura em voz alta, para depois desenvol-
verem a habilidade de ler sem mexer os lábios, silenciosamente.
Além dos textos curtos, as expressões faciais das personagens
dos quadrinhos foram muito importantes para que eles compre-
endessem o contexto em cada história. Até hoje lembram de
várias delas com riqueza de detalhes!
Arthur, aos 6 anos, demonstrava muita facilidade e inti-
midade com a leitura e, rapidamente, estava lendo com fluência.
Divertindo-se, mais motivado e com mais fluidez, passou a ler sema-
nalmente a publicação infantil Revista Recreio. O pequeno estava
sedento por ampliar seu repertório de leituras, então essa revista
foi importante para alargar seus interesses e seu vocabulário.
Segundo a pediatra que o acompanhava, por ter nascido pre-
maturamente, havia um atraso em seu amadurecimento cerebral,
por isso ele seria, até determinado período da vida adulta, neurolo-
gicamente mais novo que a sua idade cronológica real. Além disso,
ao completar o segundo aniversário, seu comportamento começou
a mudar, ele passou a ficar mais arredio ao toque, mais irritadiço e a
qualidade do sono já não era a mesma. Peregrinamos dez anos em
diversos consultórios, entre pediatras, neurologistas, psiquiatras e
psicólogos. Foram feitos diversos exames. Nenhuma palavra con-
clusiva foi dita. Nenhuma pista. Ninguém apontou qualquer possi-
bilidade de autismo para a minha criança que, desde o nascimento,
demonstrou ser diferente, singular. Mas o que eu ainda não sabia
era que ele iria ensinar sobre si mesmo a mim e ao mundo.
Durante essa primeira década, especialmente na primeira
infância, conhecemos inúmeros profissionais em diferentes áreas
da saúde e da educação e, assim, chegamos a um grupo de terapia

270 Juliana Daher


entre crianças com alguma demanda comportamental. Lá, ouvimos
da psicóloga: “Ensinem os seus filhos a sonhar! Sonhar é o antídoto
para a depressão.” Levei para a vida e cuidei de estimular os meus
filhos a terem sonhos, projeções, a almejarem um futuro, por meio
das histórias que nós líamos juntos. Na imaginação deles, podiam
ser quem quisessem, explorar lugares ainda desconhecidos, viver
aventuras, experimentar sentimentos novos e se sentirem encora-
jados a enfrentar os desafios que iam aparecendo pela frente, assim
como nas histórias. Ainda não tínhamos tomado consciência do
tamanho dos obstáculos que estavam por vir, mas sem a literatura,
com certeza, nossa luta teria sido muito mais árdua e sem a dose de
ludicidade necessária para criarmos soluções.
Arthur era uma criança que alternava seu brincar entre livros,
brinquedos e uma imaginação borbulhante, sempre sentado com as
perninhas posicionadas em forma de “w”, joelhos para frente e pés
para trás, passava horas sem chorar e sem reclamar nossa atenção.
Demonstrava uma audição muito sensível a diferentes sons, desde
os ruídos menos perceptíveis até estampidos e sons altos, tudo o
incomodava bastante. Ele crescia e se desenvolvia, no geral, como
uma criança típica, às vezes parecia estar muito compenetrado,
como quando criava suas próprias melodias, para brincar ou para
se acalmar. Sempre foi musical, tinha muita facilidade para formar
versos e nessa época me deu um dos presentes mais emocionan-
tes que uma criança pode dar a uma mãe: uma história! Como diz
o provérbio africano: “As palavras que saem da boca chegam aos
ouvidos, mas as palavras que saem do coração chegam ao coração.”
Do coração do meu filho, Arthur Augusto Linhares Passos:
O CAMALEÃO E O ARCO-ÍRIS

Antes de o arco-íris se desfazer no céu após Deus criá-lo,


um camaleão que tinha sido o último a sair da Arca de Noé se
maravilhou com as cores da aliança divina no céu e quis porque
quis ter as cores daquele belo arco. Então, quando as águas
baixaram, o camaleão foi até a árvore mais alta que encontrou,
escalou, escalou, até não restar mais energia, parou no meio

Juliana Daher 271


dela e dormiu em um buraco em seu tronco. Ao acordar, teve
uma ideia, chamou a girafa e lhe disse:

— Ô dona girafa! A senhora poderia me ajudar a chegar ao topo


dessa árvore? – pediu o camaleão.

— Sim, eu posso, suba em minha cabeça e vamos logo fazer isso!


– falou a girafa.

Quando chegou ao topo da árvore, ele agradeceu à girafa


e chamou o criador:

— Senhor Deus! Por favor, venha a meu chamado, preciso que


me ajude! – gritou o Camaleão.

— Diga qual o seu problema, meu amigo! – respondeu o criador.

— Quero ter as cores do arco-íris, Senhor, esse é o meu grande


desejo! – pediu o lagarto.

— Então esse é o seu pedido?! Tudo bem, meu amigo! – disse Deus.

Assim, Ele reuniu todas as suas forças e lançou o cama-


leão para dentro do arco. O lagarto, feliz da vida, nadou pelas
cores até o chão e quando saiu passou a ter as diferentes cores
do arco-íris.

“Esta história, meus amigos, explica como os camaleões


conseguem reproduzir até hoje as cores do arco-íris!”

FIM

Arrisco afirmar que ele sentia que era diferente, que se


projetou nessa narrativa. Seu repertório de leitura proporcionou a
ele construir sua identidade. Em meio a tantas interrogações que
nenhum adulto foi capaz de responder, quem desvendou o que-
bra-cabeça foi ele mesmo. De maneira lúdica, na linguagem que ele
conhecia, em um terreno seguro, familiar, confortável para ele, por
meio da literatura, meu filho se expressou. A fábula, na verdade, era
sobre ele, estava materializada ali em palavras a percepção sobre si
mesmo, sua família e seus sentimentos.

272 Juliana Daher


Em 2012, finalmente, a busca por respostas se encerrou e, a
partir daquele momento, o autismo se instalou em nossas vidas sem
a menor delicadeza. Submergi no ambiente virtual e me dediquei a
ler tudo o que havia na internet a respeito do TEA - Transtorno do
Espectro Autista, ignorado por mim até então. Nessa pesquisa insana,
me deparei com textos variados, artigos, leis, relatos pessoais, sem-
pre obstinada em encontrar uma espécie de manual de como ser mãe
de uma criança autista. Não encontrei. Não existe. Com o passar dos
anos, compreendi o que escreveu o grande educador Paulo Freire
(1989, p. 9): “A leitura do mundo precede a leitura da palavra.” Era
preciso primeiro “ler” o meu filho, decifrar “aquele mundo”, porém,
sem um código de barras, sem rótulos, sem regras, sem padrão. A
partir daí, fui emergindo de volta à superfície do cotidiano, ampliando
meu olhar, e minha leitura de mundo nunca mais foi a mesma.
Enfim, acredito fortemente que a leitura foi nosso casulo,
um processo de metamorfose de dentro para fora, ela nos proje-
tou a novos desafios e à construção de novos sentidos. No caso de
Arthur, que tem uma condição neurobiológica, a leitura foi uma forte
aliada das intervenções precoces, o que proporcionou um melhor
prognóstico do autismo na vida dele. Certamente, existem estudos
que possam confirmar que a prática leitora permanente, por prazer
e por amor, influencia diretamente na qualidade da interação social,
na diminuição dos comportamentos repetitivos e restritos (caracte-
rísticos do espectro), como também na ampliação da comunicação.
Sobretudo, ler possibilitou a ele antecipar algumas situações vividas
pelos inúmeros personagens das narrativas incorporadas ao longo
dos anos, impulsionando-o com esperança e coragem a enfrentar
seus próprios desafios.

Juliana Daher 273


Referências
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte,
Ed. Itatiaia. São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1984, 3ª ed.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se
completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.
REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira
infância. São Paulo: Global, 2010.
RODRIGUES, Marisa Cosenza, SILVEIRA, Flávia Fraga, & PELISSON,
Maíze Carla Costa. Teoria da mente e leitura: estudo qualitativo na
educação infantil. Psicologia Escolar e Educacional {online}. 2017,
vol.21, n.2, pp.195-204. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2175-
3539201702121106. Acesso em 03 de janeiro de 2021.
SALLA, Fernanda. O conceito de afetividade de Henri Wallon. Revista
Nova Escola. São Paulo: 2011. Disponível em: https://novaescola.org.
br/conteudo/264/0-conceito-de-afetividade-de-henri-wallon. Acesso
em 03 de janeiro de 2021.
STOCKHOLM, Erika; PAZ, Andrea. Maria Júlia e a árvore das galinhas.
São Paulo: Planeta Jovem, 2007.
WOOD, Audrey; WOOD, Don. A casa sonolenta. Gisela Maria Pado-
van. São Paulo: Ática, 1984.

274 Juliana Daher


A parte da gente
que serve de
ponte
Mário Alves

Foi há muito tempo. Mas acontece que as histórias têm proprieda-


des mágicas. Elas se atualizam quando recontadas. Eu tinha cinco,
seis anos. Estava passeando com meu pai pelo Parque Municipal
quando vi, acredito que pela primeira vez, dois homens se beijando.
Não me lembro exatamente das palavras que ele usou para comen-
tar a cena. Só sei que a mensagem ficou muito clara: eles se gostam.
Essa lembrança me levou a abrir a janela de minhas
memórias afetivas para contemplar essa paisagem tão exu-
berante, que é a literatura na primeira infância. Lembrei logo
de Paulo Freire em A importância do ato de ler, publicado em
1988. Lá ele escreve que “a leitura do mundo precede a leitura
da palavra.” Esse pode ser um bom ponto de partida, pensei: a
importância de escutar verdadeiramente as crianças e, a partir

Juliana Daher 277


daí, perceber quais histórias elas estão pedindo (às vezes implo-
rando) para ouvir e contar.
Na noite de 8 de abril de 2020, eu estava em casa brincando
com meu filho Luigi quando a Giga, uma gata que amávamos muito, foi
atacada por quatro cães. Consegui espantar os cachorros – a grito – e
levar a pobrezinha para casa. Com a ajuda de bons vizinhos, prestei os
primeiros socorros e depois corri para uma veterinária 24 horas. Mais
tarde, ao voltar pra casa, sozinho, um pensamento me consolava: a
última experiência dela nesse mundo foi de acolhimento e amor.
— Pai, você salvou a Giga?
Choramos juntos. Depois, sem dizer palavra, Luigi foi até o
quarto, pegou seu caderno de desenho e, aos poucos, a Giga renas-
cia – colorida e encantada. A vida tem um dom precioso de recriar as
histórias. E as histórias, a vida!
— Filho – eu contava pra ele –, quando eu tinha mais ou
menos a sua idade (cinco anos), a Fuzaca teve oito filho-
tinhos. Depois de muito implorar, minha mãe e meu pai
deixaram eu ficar com um: o mais fofo e esperto, que eu
mesmo batizei: Barão! Esse cachorrinho era um grude
comigo. Era só eu por o pé na rua que ele dava um jeito
de pular a grade para ir atrás de mim. Eu tinha que pegar o
sapeca no colo e botar ele pra dentro. Porque ele só sabia
sair. Entrar, não.
Um dia, a gente (mãe, pai, irmão e eu) estava no ponto do ônibus
quando, de repente, quem apareceu correndo e abanando o rabinho?
— Precisa voltar lá em casa e abrir o portão pra ele entrar!
O Barão ainda é filhote!
Eu pedi, implorei. Mas não adiantou.
— Agora não dá tempo, meu pai falou.
As pessoas adultas costumam ter relógio, mas raramente
têm tempo... Subindo os degraus do ônibus, olhei pra ele, sentado na
calçada, com os olhinhos tristes que pareciam dizer: “vocês não vão
me levar?” E essa é a última lembrança que tenho do pequeno Barão.
278 Juliana Daher
— Pai, o que aconteceu com ele?
Algumas histórias são assim: nunca terminam. E parece que
isso tem uma força. O que seria de Romeu e Julieta, por exemplo,
se as famílias tivessem se entendido? Se eles tivessem se casado,
tido filhos? Imagine o Romeu, domingo, depois do almoço, ron-
cando no sofá, a barba suja de molho... São narrativas que convi-
dam o ouvinte/leitor a continuar criando. Por isso, ao contar uma
história, acho interessante não entregar tudo mastigado. Em vez de
4, melhor dar 2+2. É gostoso ir completando o álbum junto! No caso
das histórias mais longas, por exemplo, uma possibilidade é contá-
-las em capítulos – e assim vamos pelas noites, a sherazadiar.
Luigi é um menino bastante animado, para não dizer agi-
tado. Portanto, é comum que ele participe ativamente das histórias,
com perguntas e comentários. Procuro acolher e trazer esses ele-
mentos para a história, que vai se tornando cada vez mais nossa.
No livro A arte da palavra e da escuta, Regina Machado (2015)
traz um relato que expressa a essência do ato de compartilhar histórias:
Dizem que certa vez um antropólogo chegou numa aldeia afri-
cana no mesmo dia em que uma TV também chegou ali. No
começo, os habitantes da aldeia ficaram vidrados no aparelho.
Depois, deixaram a TV de lado e não quiseram mais saber dela.
— Vocês não vão mais assistir aos programas? Perguntou o
antropólogo.
— Não, respondeu um deles. Preferimos o contador de histórias
aqui da aldeia.
— Mas, a TV não conhece muito mais histórias do que ele? Pro-
vocou o antropólogo.
— Pode ser, mas o contador de histórias conhece a gente.
(MACHADO, 2015)

A morte da Giga aconteceu simultaneamente ao adoeci-


mento do meu pai, que veio a falecer meses depois. Num macro
contexto de pandemia, percebi a necessidade de trabalhar com o
Luigi esses movimentos fascinantes (mas às vezes amedrontado-
res) de vida, morte, vida. Feita essa leitura de mundo, procurei as

Juliana Daher 279


histórias que pudessem iluminar a travessia e, então, as contei com
o que tenho de mais valioso: minha presença inteira! Isso compensa
qualquer falta de técnica. Afinal, não existem regras de arquitetura
para se construir castelos nas nuvens.
Em 2020, o narrador de histórias Henri Gougaud concedeu
uma entrevista ao pessoal do Boca do Céu, encontro internacional
de contadores de histórias, que ocorre a cada dois anos na cidade
de São Paulo. Nessa conversa, iluminada de saber e poesia, pergun-
taram a Henri, que é uma referência da arte narrativa contemporâ-
nea, quando é que uma contação de histórias atinge seu potencial
máximo. E ele disse que é à noite, na cama, quando um pai, mãe ou
quem cuida conta histórias para criança dormir. Potencial de amor,
conexão, sentido. Também acredito nisso!
Em maio de 2017, durante a primeira Candeia, mostra interna-
cional de narração artística, realizada em Belo Horizonte, ouvi o Giba
Pedroza, narrador de palavra e alma cheias, dizer que contar histórias
é a arte de fazer enxergar. Me lembrei de outra história, com a qual
me despeço – com o coração cheio de gratidão e alegria por estar
aqui, junto com vocês, nesse movimento tão urgente e importante.
Num dia distante de 1984, ao final de uma aula no jar-
dim de infância:
— Crianças, disse a professora, hoje vocês fizeram esses
desenhos lindos e vão levar pra casa para a mamãe e o
papai verem. Eu abaixei a cabeça e comecei a chorar. Che-
gando em casa, minha mãe e meu pai (que são cegos) me
abraçaram e depois, carinhosamente, pediram:
— Conta a história do seu desenho pra gente!
Foi há muito tempo. E pode ser para sempre!

280 Juliana Daher


Referências
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler – em três artigos que se
completam. São Paulo: Cortez & Autores Associados. 1991.
MACHADO, Regina. A arte da palavra e da escuta; colagens de
Adriana Peliano. São Paulo : Editora Reviravolta, 2015.
PADILHA, Josias; GOUGAUD, Henri. Encontro com um contador
notável – Entrevista com Henri Gougaud. Boca do Céu, 2020, Disponí-
vel em: http://bocadoceu.com.br/encontro-com-um-contador-nota-
vel-entrevista-com-henri-gougaud/, acesso em 20 de julho de 2022.

Juliana Daher 281


Cuidar das crianças é
cuidar de toda a
sociedade
Entrevista com Macaé Evaristo

A presença dos bebês e das crianças pequenas nas polí-


ticas públicas no Brasil é recente e tem como referên-
cia o Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257, de 8
de março de 2016), que altera o Estatuto da Criança e
do Adolescente e toda a legislação atinente a este seg-
mento da população, dando ênfase aos primeiros anos
de vida. Como você avalia essa priorização da primeira
infância estabelecida pela legislação?

Se a presença da primeira infância é recente no marco


legal (Lei 13257), não é recente a demanda pelos cuidados, pela
educação, por melhores condições de vida para a primeira infân-
cia no país. Essa é uma demanda presente na luta do movimento

Juliana Daher 285


de mulheres, do movimento negro, dos movimentos do campo.
Essa é uma demanda muito presente na Marcha das Margaridas,¹
na Marcha das Mulheres Negras.²
Essa é uma luta do reconhecimento da infância. O grande
paradigma de mudança do olhar sobre a infância, do ponto de vista
dos marcos normativos, foi com o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente (ECA), quando a gente sai daquela visão da criança como o
menor, o incapaz e, no caso, eu falo muito em especial das crianças
negras, porque a elas era negada uma série de direitos. Elas nem
eram enxergadas na sua humanidade. O ECA vai trazer uma nova
forma de comportamento do Estado brasileiro em relação à infân-
cia. Vai estabelecer um novo marco, que é o marco da proteção inte-
gral. E vai reconhecer as crianças como sujeitos de direitos.
Nós, como educadoras, sempre lutamos pela ampliação do
direito à Educação, para que se inscrevesse a Educação Infantil, cre-
ches para crianças de 0 a 3 anos e pré-escola para as de 4 a 5 anos,
na agenda educacional. Isso porque até a Lei de Diretrizes e Bases,
a Educação Infantil não era considerada. Era tratada como uma polí-
tica pública de assistência social e não como política educacional.
Muitas vezes nem como assistência, e sim como assistencialismo.
Então, conseguimos trazer essa visão de que as crianças têm direito
à Educação desde muito cedo, de que a creche é um direito.
A priorização da primeira infância, para mim, é fundamental,
muito bem-vinda. Mas é preciso destacar que a lei vem atender a
uma grande mobilização, uma grande demanda popular. Com a lei

1 A Marcha das Margaridas é uma ampla ação estratégica das mulheres do campo e da
floresta, promovida pela Contag, Federações e Sindicatos que se consolidou na agenda
do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – MSTTR e das orga-
nizações parceiras – movimentos feministas e de mulheres trabalhadoras e centrais
sindicais e organizações internacionais.
2 A Marcha das Mulheres Negras foi idealizada em 2011 no Encontro Ibero-Ameri-
cano do Ano dos Afrodescendentes, que aconteceu em Salvador, e promovida por
várias entidades ligadas ao movimento negro. O objetivo é aglutinar o máximo de
organizações de mulheres negras, assim como outras organizações do Movimento
Negro e da sociedade, que apoiem a equidade sociorracial e de gênero.
286 Juliana Daher
estabelecida, a gente começa um novo movimento, que é garantir
efetiva e concretamente que ela se traduza nas políticas públicas.

Existem áreas prioritárias para a promoção de cuidados


na primeira infância? Se sim, quais são elas? De que forma
elas se articulam?

Quando eu penso nos cuidados da primeira infância, eu


penso a Educação a partir desse marco, com uma ideia da forma-
ção integral, do desenvolvimento integral. Considerando o desen-
volvimento integral, precisamos pensar numa perspectiva multisse-
torial. As crianças precisam ter acesso a água potável, saneamento
básico, moradia, convivência familiar, acesso à Educação e à Saúde.
É preciso uma abordagem interdisciplinar e plurissetorial para efeti-
vamente garantir sua proteção integral, esse marco criado no ECA
para as crianças. E as políticas precisam ser trabalhadas cada vez
mais nesta articulação intersetorial, para garantir efetivamente que
as crianças estejam protegidas.
Então, a gente pode dizer da importância que tiveram, por
exemplo, no nosso próprio país, as campanhas de vacinação, espe-
cialmente no momento que vivemos hoje, com setores que têm
feito campanha contra a vacinação. Mas a gente sabe a diferença
que fez na redução da mortalidade infantil o acesso à vacinação.
A diferença que fez para as infâncias, por exemplo, fazer cons-
tar nos cartões de vacinação a vacina Sabin contra a poliomielite,
doença que nós conseguimos erradicar no país e que era motivo
de mortalidade, de crianças ficarem com deficiência em função
da doença. Precisamos pensar que é fundamental uma ação inte-
grada de todas as políticas públicas e do Sistema de Garantia de
Direitos.³ E não estamos falando só do Executivo. Estamos falando
da atuação do Judiciário, por exemplo. Nós estamos falando da

3 Articulação entre diversos setores do Estado e da sociedade civil para a pro-


moção, defesa e controle dos direitos das crianças e dos adolescentes previstos
no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Juliana Daher 287


necessidade da participação dos conselhos tutelares, das câma-
ras e assembleias legislativas, com as frentes parlamentares em
defesa da infância e da primeira infância. Em Belo Horizonte, nós
temos discutido uma frente em defesa da primeira infância, inclu-
sive para que a gente possa fortalecer essa agenda. 
Em relação às políticas para a Educação Infantil, nós tivemos
nos governos do campo democrático popular muitos avanços. Nós
avançamos quando aprovamos o Fundeb, que é o Fundo de Manuten-
ção e Desenvolvimento da Educação Básica, que foi muito importante
e significativo para que a gente pudesse ampliar o acesso de crian-
ças à pré-escola e à creche. Tivemos também nos governos do pre-
sidente Lula e da presidenta Dilma a instituição de programas como
o Pró-Infância, que possibilitou a construção de inúmeras unidades
de creches e pré-escolas pelo Brasil. Tivemos o Brasil Carinhoso, que
articulou recursos da Assistência Social e da Educação para garantir
que os municípios pudessem inserir as crianças de 0 a 3 anos, com
a compreensão de que esta faixa etária requer inúmeros cuidados e
de que seria necessária uma articulação mais forte entre Educação,
Assistência Social e Saúde para garantir efetivamente a atenção inte-
gral a essa faixa etária. Nós tivemos muitas políticas nesses governos
no sentido de fortalecimento da agenda da Educação Infantil. 
Infelizmente, o golpe na presidenta Dilma foi nefasto para as
políticas das infâncias. A perspectiva de congelamento, com a aprova-
ção da PEC 95 de 2016, de investimentos para Educação por 20 anos,
corta, quebra a possibilidade de ampliação de investimentos que
a gente estava construindo no Brasil. É importante perceber que a
gente tinha aprovado o Plano Nacional de Educação com 20 metas
e lá estavam muito bem desenhadas as metas e as estratégias para a
Educação Infantil. Importante lembrar que no Plano Nacional havia a
indicação de que o investimento para a Educação seria ampliado para
10% do PIB e nós tínhamos aprovado o regime de partilha do Pré-Sal,
indicando investimentos para a Educação. Tudo isso nesta concepção
de que o Brasil tinha uma tarefa para fazer, que era a plena inclusão
das crianças de 0 a 3 anos e dos jovens de 15 a 17 anos.

288 Juliana Daher


A gente trabalhava com a perspectiva de que já havia univer-
salizado o atendimento para a população de 6 a 14 anos, mas havia
gargalos: as crianças de 0 a 3 porque na faixa etária de 4 e 5 anos
já havíamos passado de 80% de atendimento e a meta era chegar
a 100%. Mas no que diz respeito ao recorte de 0 a 3, a gente traba-
lhava com a perspectiva de que em 2022, se tivéssemos avançado
com essa política, nós estaríamos com 50% das crianças atendidas
nas creches, o que não aconteceu porque nós sofremos o golpe. Foi
aprovada a Emenda Constitucional 95 de 2016. O MEC desconstruiu
todas as políticas que vinham sendo desenvolvidas para a constru-
ção de creches, para formação de professores, para investimento na
pesquisa. Essa área é nova e a gente precisa de mais investimento
em estudo e pesquisa.
Então, tudo isso parou e a própria aprovação do marco
legal, a Lei 13.257, foi interrompida. Por isso eu defendo e acho que
precisa estar na agenda deste ano, no debate eleitoral, a revogação
da Emenda Constitucional 95 de 2016. É fundamental que a gente
garanta recursos e investimentos para a Educação. Nós não podemos
acreditar nessa ideia de que sobram recursos na Educação, que o pro-
blema é falta de gestão. Ou, como alguns, inclusive alguns setores
na Câmara de BH, defendem que para investir na Educação Básica o
governo federal tem que retirar investimentos da Educação Superior.
É uma contradição. Eu tenho uma visão sistêmica de Educação, então,
entendo que é fundamental revogar a Emenda Constitucional 95, de
2016, para que de fato a gente possa concretizar a Lei. 13.257, que é a
priorização da constituição deste marco legal para a primeira infância.
Lembrando, ainda, que essa Emenda Constitucional é atroz para polí-
ticas de Educação, Saúde e de Assistência Social.

O que seria prioritário, no seu entendimento, para a


garantia do direito dos bebês e das crianças à cidade,
considerando seus espaços, serviços e demandas como
mobilidade, cultura, lazer e convivência social?

Juliana Daher 289


Pensar uma cidade educadora, gosto muito dessa ideia,
uma cidade educadora, antirracista. Uma cidade para as crian-
ças teria outra lógica, outra forma de organização. Eu penso
que, por exemplo, cada bairro teria uma praça, arborização,
brinquedos, creches. Uma cidade pensada para as crianças teria
outra conformação. Não essa que existe hoje, uma cidade que
é organizada em função dos carros. São os carros que mandam
nas cidades, a gente alarga as ruas e encurta os passeios. Ou
seja, não temos o direito de transitar na cidade, quem tem o
direito de circular são os carros.
Alguns setores estão pensando o direito das crianças de
conviver com a natureza. Vamos pensar no nosso município, Belo
Horizonte: quais são as crianças que frequentam os parques, as
praças? Em que bairros? Nos aglomerados há praças, árvores, brin-
quedos? Veja o que é a arborização na região de Lourdes e aqui no
Taquaril, Alto Vera Cruz? São questões para a gente pensar. Eu cos-
tumo dizer que uma cidade que cuida bem das crianças cuida bem
de todos. Uma cidade que cuida bem das crianças, cuida bem dos
idosos, das pessoas com deficiência, que precisam de mais acessi-
bilidade, cuida de todos nós.

De que maneira a sociedade civil pode contribuir para a


criação e o fortalecimento de políticas públicas de aten-
ção aos bebês e às crianças pequenas?

A mobilização é fundamental, a participação nos Conselhos


de Direitos da Criança e do Adolescente, nos Conselhos de Saúde,
Conselhos de Educação e a organização social também, os movi-
mentos sociais. Temos a Marcha das Margaridas, os movimentos
de mulheres, mulheres negras, mulheres do campo. Então, a orga-
nização popular e a luta por participação política de mulheres e
jovens nestes espaços de representação política, seja no Legisla-
tivo, seja no Executivo, são fundamentais para avançar. 

290 Juliana Daher


Muitos especialistas, oriundos de distintos campos disci-
plinares, valendo-se de indicadores econômicos, recomen-
dam aos governos em todo o mundo o investimento na
primeira infância, tendo como horizonte a preparação de
adultos mais produtivos para mercados de trabalho cada
vez mais competitivos. Que reflexão você faz sobre essa
perspectiva economicista, que muitas vezes desconsidera
aspectos importantes da cultura da infância?

A OCDE4 e o Fundo Monetário, há vinte anos, quando o


movimento popular já reivindicava o acesso à Educação infantil,
eram contrários, diziam que não, que não era necessário esse
investimento. E agora, em uma perspectiva utilitarista, eles que-
rem aliar os investimentos na primeira infância aos mecanismos de
preparação de adultos mais produtivos para o mercado de traba-
lho. Mas ao mesmo tempo que se preocupam com o mercado de
trabalho, esses mesmos setores apontam para a desregulamenta-
ção das relações trabalhistas, apostam que os governos não devem
investir na Previdência Social, querem a total desregulamentação
de condições que garantem às trabalhadoras e aos trabalhado-
res um trabalho decente, trabalho protegido. Eu acho até irônico
porque eles falam “vamos investir na primeira infância” e falam
do mercado no mundo do trabalho. Nós falamos de mercado em
outra perspectiva, o trabalho como elemento importante na for-
mação humana, mas não o trabalho que escraviza, não o trabalho
que oprime. Falamos do trabalho como uma perspectiva de forma-
ção, de desenvolvimento humano, como elemento educativo na
nossa formação. Para nós, o investimento na Educação Infantil é
o direito de todas as infâncias de ter acesso ao desenvolvimento
integral, à formação plena e integral, inclusive para ter capacidade
reflexiva e de elaboração para não ser explorado.

4 Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico é uma orga-


nização econômica intergovernamental composta por 38 países membros para
estimular o progresso econômico e o comércio mundial. Foi fundada em 1961.

Juliana Daher 291


Há uma outra questão: esses mesmos setores têm traba-
lhado fortemente para desconfigurar a ideia de escola pública,
gratuita. Nós defendemos a escola pública, gratuita, de quali-
dade, antirracista e laica. Muitas vezes, a gente percebe a arti-
culação de segmentos religiosos que pensam na privatização
das escolas. Contraditoriamente, eles falam de escola sem par-
tido, mas eles defendem uma escola de partido único. A gente
defende uma escola plural, no sentido de respeito à pluralidade
de ideias, com respeito às diferenças das pessoas, suas culturas,
suas epistemologias. Que elas possam ser respeitadas e ter pre-
sença nos currículos escolares. Lembro aqui o livro do Miguel
Arroyo, Imagens quebradas;5 ele vai dizer da chegada dos setores
populares à escola pública e de como não é possível falar de uma
única infância porque as infâncias são atravessadas pela estrutura
social. Então, se tem racismo na sociedade brasileira, as crianças
negras são atravessadas por esse racismo e sofrem. A gente vê
isso nos indicadores das condições de saúde, nos indicadores
educacionais. Quando a gente fala da pandemia, a maioria das
crianças que estão nas periferias urbanas, no campo, nas comu-
nidades indígenas e quilombolas foi extremamente prejudicada
no direito à Educação. O ensino híbrido, por exemplo. Como falar
de ensino híbrido se as crianças e adolescentes não têm acesso à
internet? Essas crianças ficaram excluídas do direito à Educação.
O aumento da inflação, o crescimento do desemprego nas famí-
lias – o Brasil é um país que tem grande número de famílias com
mulheres negras como chefe, que no geral estão em trabalhos
terceirizados ou subempregos. Essas dificuldades de sobrevivên-
cia obviamente atingem as crianças. É por isso que ao olhar para
as infâncias, a gente precisa tratar de uma agenda de reconstitui-
ção do Estado de direito, o Estado de bem-estar social.

5 ARROYO, Miguel. Imagens quebradas. Trajetórias e tempos de alunos e mes-


tres. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

292 Juliana Daher


De que maneira programas e ações públicos voltados
para a primeira infância podem contribuir para a redução
das desigualdades sociais no Brasil?

Cuidar das infâncias é reduzir desigualdades. É cuidar, por


exemplo, do Sistema Único de Saúde – SUS. Se melhorarmos o acesso
à saúde para as crianças, estamos fazendo isso para todo mundo.
Quando a gente garante acesso à Educação para as crianças, estamos
favorecendo o acesso à cultura, à arte, à literatura. Toda a sociedade
se move, faz com que as pessoas possam se posicionar melhor. 

Juliana Daher 293


Sobre as autoras

Adélia Carvalho é mãe de Miguel e Francisco, professora de tea-


tro na UNIFAP, Licenciada em Artes Cênicas pela UFOP, mestre em
Estudos Literários e doutora em Artes pela UFMG. É atriz, diretora,
dramaturga e autora de diversos roteiros e peças de teatro para a
infância e juventude.

Amanda Ribeiro Barbosa é mestra em Estudos de Linguagens


pelo CEFET-MG e pedagoga pela UEMG. É professora na rede par-
ticular de ensino de Belo Horizonte. É poeta e videopoeta, autora
dos livros Livre é abelha (Impressões de Minas) e Máquina de cos-
turar concreto (Peirópolis).

Juliana Daher 297


Carla Mauch é pedagoga, com especialização em Deficiência Intelec-
tual, pós-graduação em Tecnologia Assistiva e mestrado em Psicolo-
gia da Educação. É coordenadora da Mais Diferenças, OSCIP que atua
com Educação e Cultura Inclusivas. Atua em projetos sobre direito ao
livro, à leitura e à literatura, tais como: pesquisa e produção de livros
em múltiplos formatos, formação de mediadores de leitura, forma-
ção de leitores com e sem deficiências. Participa de diversas redes e
coalizões em defesa dos direitos das pessoas com deficiência.

Carolina P. Fedatto é bacharel, mestre e doutora em Linguística


pela Unicamp. Fez estágio de doutorado na Universidade de Paris
III. Recebeu o prêmio Capes de Teses em Letras e Linguística. Tem
pós-doutorado em Estudos Linguísticos na UFMG e na UFF. É espe-
cialista em Teoria Psicanalítica pela UFMG. É mãe, pedagoga e espe-
cialista em O livro para a infância n’A Casa Tombada. Idealizadora e
educadora da Cria Coletiva e membro da coordenação e equipe edi-
torial do Instituto Emília.

Cibele Carvalho realizou pesquisa de pós-doutorado em Educa-


ção pela UFMG. Tem doutorado em Educação pela mesma ins-
tituição com estágio na Universidade Sorbonne Paris Descartes
(Paris V). É mestre em Educação pela UFMG. Possui bacharelado
e licenciatura em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFMG.

Cleide Fernandes é bacharel em Biblioteconomia, pela UFMG, com


aperfeiçoamento em Inovação, Gestão e Liderança para Biblio-
tecários, pelo CERLALC/Universidad EAFIT, Colômbia. Atua como
gestora de Cultura na Secretaria de Estado de Cultura e Turismo
de Minas Gerais, na qual desenvolve projetos de incentivo à leitura
para crianças, jovens, pessoas com deficiência visual e comunidades
socioeconomicamente vulneráveis. Atualmente é responsável pelo
Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas de Minas Gerais e está cur-
sando especialização em Audiodescrição na PUC Minas.

298 Juliana Daher


Cristiane Tavares é doutoranda em Educação (UNIFESP) e mestre
em literatura e crítica literária (PUC-SP). Coordena há sete anos a
pós-graduação Literatura para crianças e jovens, no Instituto Vera
Cruz (SP) e atualmente compõe a equipe de coordenação do Projeto
Jaê - Educação para Equidade (CEDAC/SME Santa Bárbara d’Oeste/
Itaú Social). Participou como jurada de vários prêmios literários, é
colaboradora permanente da Revista Quatro Cinco Um e autora de
livros e artigos sobre educação e literatura.

Daniela Padilha é editora de literatura infantil. Tem graduação em


Letras pela USP e especialização em Escutas Antropológicas das
infâncias pel’A Casa Tombada. Atualmente, é mestranda pela Uni-
fesp no Programa Educação e Saúde Infantil. É idealizadora da Edi-
tora Jujuba.

Fabíola Farias é graduada em Letras, mestre e doutora em Ciência


da Informação pela UFMG, com estágio pós-doutoral em Educação
pela UFOPA. Integra o Grupo de Pesquisa e Intervenção em Leitura,
Escrita e Literatura na Escola – LELIT, da UFOPA. É leitora-votante da
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

Gabriela Romeu é formada em Jornalismo pela Faculdade de Comu-


nicação Social Cásper Líbero, pós-graduada em processos de educo-
municação pela ECA-USP. Cursou cinema documentário na FGV-SP e
atualmente pesquisa novos jeitos de se inscrever-escrever no mundo
na pós-graduação Gestos de Escrita n’A Casa Tombada, em São Paulo.
É escritora, documentarista e pesquisadora das infâncias com mais
de vinte anos de desenvolvimento de projetos dedicados às crianças.
com diversas reportagens, roteiros, sites e livros publicados.

Isaac Luís de Souza Santos é licenciado em Música pela UFMG e


mestre em Educação Musical pela mesma instituição. É artista da Cia
Pé de Moleque e autor do livro-CD O mundo de dentro e o mundo de
fora e do DVD Minhas Primeiras Canções. Tem experiência como edu-

Juliana Daher 299


cador musical na área de saúde mental, educação especial e inclu-
siva e como docente na Escola Livre de Música de Itabira. Atua como
professor de musicalização infantil em Belo Horizonte. É brincante e
pesquisador da Cultura da Infância.

Jéssica M. Andrade Tolentino é editora e estudiosa dos livros


para crianças. Possui um mestrado em Literatura, Mídia e Cultura
Infantis pela Universidade de Glasgow (Reino Unido) e outro em
Estudos de Linguagens pelo CEFET-MG, na sua linha dedicada aos
estudos editoriais. É bacharel em Letras e membro do grupo de
pesquisa em Leitura Literária, Edição, Mediação e Ensino (LLEME/
CEFET-MG). Foi membro do júri do Prêmio Jabuti na categoria
Infantil. Integra o Coletivo La Lucila, grupo dedicado aos estudos
sobre literatura e infância na América Latina.

Júlia Félix Azeredo possui graduação em Artes Visuais pela UFMG,


licenciatura em Arte pela Universidade Pitágoras Unopar e especia-
lização em Psicopedagogia pela Universidade FUMEC. É também
especialista em Educação Criativa pela PUC-Minas. Atualmente é
professora de Arte no Colégio Santo Agostinho de Nova Lima, atu-
ando nos segmentos da Educação Infantil, Ensino Fundamental II
e Ensino Médio.

Juliana Cardoso Daher é bacharel em Terapia Ocupacional pela


FCMMG e graduanda em Pedagogia pela Liberdade pela UniBF. É
mestra em Estudos de Linguagens pelo Posling/ CEFET-MG. Artista
da Cia Pé de Moleque e produtora cultural. Integrante do grupo de
pesquisa da Bebeteca- FAE/UFMG e da equipe do Curso Leitura e
Escrita na Educação Infantil-LEEI- FAE/UFMG.

Luciana Gomes do Nascimento é licenciada em Pedagogia pelo Ins-


tituto Superior de Educação de São Paulo. Atualmente é educadora
social no Instituto Acaia e cursa especialização em Literatura para
crianças e jovens no Instituto Vera Cruz.

300 Juliana Daher


Macaé Evaristo é graduada em Serviço Social pela Puc-Minas e mes-
tre em Educação pela UFMG. Foi Secretária Municipal de Educação
de Belo Horizonte, Secretária de Alfabetização, Diversidade e Inclu-
são do Ministério da Educação e Secretária de Estado de Educação de
Minas Gerais. É vereadora de Belo Horizonte e em outubro de 2022 foi
eleita deputada estadual pelo Partido dos Trabalhadores.

Mariana Rosa é jornalista, integrante do Coletivo Feminista Helen


Keller, fundadora do Instituto Cáue - Redes de Inclusão, educadora
popular, consultora em educação inclusiva e ativista pelos direitos
das pessoas com deficiência.

Mário Alves nasceu em 1981, Ano Internacional da Pessoa com


Deficiência. Filho de um casal de cegos, é artista da palavra e da
escuta. Tem pós-graduação em História pela UFMG e é formado
em contação de histórias pelo Instituto Cultural Aletria. Foi pro-
fessor de História nas redes pública e particular e educador do
CCBB-BH e da Casa Fiat de Cultura. Comandou o Canto do conto
(Fnac-BH Shopping) e integrou as equipes dos projetos Ler é viver
e Era uma vez (Instituto Gil Nogueira). Apresentou-se em diversos
festivais literários, como Flipoços, Bienal do livro judaico, Salão do
livro de Minas Gerais, Flir, dentre outros.

Mônica Correia Baptista é professora associada da Faculdade de


Educação da UFMG. Pesquisadora do CEALE - Centro de Alfabetiza-
ção Leitura e Escrita da FAE/UFMG e do NEPEI - Núcleo de Estudos
e Pesquisas em Infâncias e Educação Infantil da FAE/UFMG. É gra-
duada em Pedagogia pela Faculdade de Educação da UFMG, mes-
tre em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG, doutora
em educação pela Universidade Autônoma de Barcelona e tem
pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro e Uni-
versidade Autônoma de Barcelona. É líder do grupo de pesquisa
Leitura e Escrita na Primeira Infância - LEPI (CNPq) e coordenadora
do Projeto Leitura e Escrita na Educação Infantil (MEC/UFMG/UNI-

Juliana Daher 301


RIO/UFRJ) Atua, prioritariamente, em temas relacionados às prá-
ticas pedagógicas de leitura e escrita junto a crianças de zero a
seis anos; formação de professores; políticas públicas e Educação;
alfabetização, leitura e escrita; currículo e Educação Infantil.

Pâmela Bastos Machado é graduada em Biblioteconomia e mestre


em Ciência da Informação pela Escola de Ciência da Informação
da UFMG. Atuou como bibliotecária e mediadora de leitura em
bibliotecas escolares entre 2014 e 2021, desenvolvendo projetos
literários com crianças e adolescentes. Como contadora de histó-
rias, atua desde 2017 e integra o Coletivo Narradores de Belo Hori-
zonte. Atualmente é bibliotecária na Biblioteca do Centro Cultural
UNIMED-BH Minas em Belo Horizonte e pesquisadora experimen-
tal dos temas relacionados à leitura literária, literatura infantil e
formação de leitores.

Roberta Colen é mãe de Arthur e de Isis, contadora de histórias.


Cursou o Magistério e participou da formação Mediação da apren-
dizagem do aluno autista na UFMG. Há dez anos aprende sobre o
Transtorno do Espectro Autista e é ativista em defesa dos direitos
das pessoas com deficiência, especialmente, a pessoa com autismo.
Atualmente estuda Letras na PUC-Minas, onde é revisora, ledora e
audiodescritora voluntária em Projetos de Extensão.

Rosinha nasceu em Recife e mora em Olinda. É formada em Arquite-


tura pela UFPE. Desde os anos 1990 se dedica à ilustração e criação de
livros para jovens e crianças, pelos quais já recebeu vários prêmios da
FNLIJ, Açorianos e Jabuti. Em parceria com Anabella Lopez, é funda-
dora da escola Usina de Imagens para formação de ilustradores.

302 Juliana Daher


Este livro foi composto nas tipografias
Mrs Eaves e Candara e impresso em papel
Chambril Avena, na gráfica Formato, em
outubro de 2022, em Belo Horizonte. Entre
o primeiro e o segundo turno das eleições
presidenciais brasileiras, Chico Buarque
seguia anunciando que amanhã vai ser
outro dia, renovando as esperanças por
vidas e tempos mais justos no país.
Este livro é um exemplo de que a ciência se une às artes para pensar
e incidir sobre a vida, unindo ciência, arte e vida para construir
possibilidades e potências na educação das infâncias. Neste
livro, Primeiras leituras: arte e cultura na primeira infância, vocês
encontrarão uma profusão de vozes, oriundas dos mais distintos
lugares. Vozes de artistas da música, do teatro, das artes visuais,
da literatura. Vozes de estudiosos da linguagem, da educação, da
biblioteconomia, da literatura, da historiografia. Vozes de jornalistas
e de pessoas ligadas à edição de bons livros para crianças.
Mônica Correia Baptista

Este livro conta com versão acessível para pessoas com


deficiência visual, disponível em:
https://primeirasleiturasprimeirainfancia.blogspot.com/

Projeto 333/2021

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