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primeiras leituras
arte e cultura na
primeira infância
primeiras leituras
arte e cultura na primeira infância
Coordenação geral
Juliana Daher
Coordenação editorial
Carolina P. Fedatto, Fabíola Farias e Juliana Daher
Revisão
Carolina P. Fedatto
Capa
Anna Cunha
Projeto gráfico
Samara Coutinho
ISBN 978-65-00-53361-3
CDD: 370.111
primeiras leituras
arte e cultura na primeira infância
Carolina P. Fedatto,
Fabíola Farias e
Juliana Daher
Juliana Daher 9
Esse livro, como tantas coisas na vida, nasce de bons
encontros. Fabíola com Juliana com Carolina. E delas com Mônica,
Gabriela, Jéssica, Carla, Cibele, Cleide, Júlia, Isaac, Adélia, Rosinha,
Daniela, Pâmela, Mariana, Cristiane, Amanda, Roberta, Mário, Macaé
– que convidamos a escrever reflexões e experiências de mediação e
criação artística e literária com e para bebês e crianças pequenas. E
ainda com Anna e Samara – que deram forma, beleza, visibilidade e
acessibilidade a todas essas trocas, conversas e escritas.
Todas e todos nós nos colocamos o começo da vida como
uma questão simbólica que merece investigação e produções
interessadas e comprometidas. Seja em bibliotecas, escolas, casas,
livrarias, editoras, casas de acolhimento institucional, universidades
ou ateliês, a leitura do mundo, de si, do outro e das artes na primeira
infância é o tema principal dos artigos e experiências aqui reunidos.
O livro representa o desejo de que esses encontros continuem na
esfera social como espaços de liberdade e cuidado que considerem
as especificidades do ser humano no início da vida. Para isso, a
coletânea de textos a seguir conta com uma diversidade de enfoques
e olhares para as primeiras leituras, suas implicações e consequências
subjetivas, sócio-históricas e políticas.
Esperamos que ele circule em muitos espaços e que alcance
educadoras, bibliotecárias, agentes culturais e comunitárias, pais,
mães, avós, cuidadoras de bebês e crianças pequenas… Enfim, que
seja, também para quem lê, um encontro potente como o que nos
acena sua origem.
Agradecemos à Lei Municipal de Incentivo à Cultura de
Belo Horizonte, que viabilizou a publicação e distribuição gratuita
do livro, reiterando sua relevância na consolidação da política
cultural na cidade.
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Leitura, arte e cultura
na primeira infância:
distintas vozes de uma
aldeia inteira
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palavras de Solange Jobim e Souza (2016), os que lutam para criar
a sua própria palavra. E nessa luta, vão instituindo-se a si mesmos
e ao mundo, transformando gestos, sons e silêncios em discurso
humano. Na primeira infância aprende-se, pois, a simbolizar, isto é,
aprende-se a representar, condição essencial para a experiência de
pensamento. Primeiras leituras são, portanto, primeiras tentativas
de significar o mundo. E dessas leituras, nascem os primeiros textos.
O olhar, o gesto ou o balbucio, que respondem à voz ou ao aceno
da mãe ou de outras pessoas responsáveis pelos cuidados basilares,
são expressões da autoria de um bebê, que começa a manifestar
seus desejos, e revelam seu esforço em se fazer entender.
Diante da nossa responsabilidade de acolher as crianças e
apresentar a elas esse emaranhado de símbolos, de signos, de índi-
ces, de ícones, devemos nos perguntar como garantir que essa nova
existência, que traz consigo a inovação, a novidade, a recriação, seja
impelida a gerar também uma nova história e, assim, se constitua
em recomeços para a humanidade? (ARENDT, 1989)
É na busca por responder a essa pergunta que encontramos
o elo entre os dois outros vocábulos que compõem o título desta
obra: arte e cultura. E mais, a arte e a cultura como experiências vivi-
das em um ciclo da vida que vai desde a chegada ao mundo até os
seis anos de idade. Cantar, brincar, dançar, mover-se, ouvir histórias,
imitar, dramatizar são formas de pensar e de agir sobre o mundo.
Voltemos à pergunta: como apresentar às crianças o mundo
sem lhes retirar o desejo, a alegria, o entusiasmo de quem acaba
de chegar? Na história do pequeno Antônio, Bartolomeu Campos de
Queirós (1995, p. 23) oferece pistas:
Era silencioso o amor. Podia-se adivinhá-lo no cuidado da mãe
enxaguando as roupas nas águas de anil. Era silencioso, mas via-
-se o amor entre os seus dedos cortando a couve, desfolhando,
cristalizando figos, bordando flores de caneca sobre o arroz-
-doce nas tigelas. Lia-se o amor no corpo forte do pai, no seu
prazer sobre o trabalho, em sua mansidão para com os longos
domingos. Era silencioso, mas escutava-se o amor murmurando
– noite adentro – no quarto do casal. (...) Experimentava-se o
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amor quando, assentados no calor da cozinha – pai e mãe – fala-
vam distâncias, dos avós, das origens, dos namoros, dos casa-
mentos. E, quando o sono chegava, para cada menino em cada
tempo, era o amor que carregava cada filho nos braços para a
cama, ajeitando o cobertor por sob o queixo.
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lizadora) emerge como resposta às demandas de uma sociedade
adultocêntrica, ávida por controlar e subjugar ao invés de propug-
nar a liberdade da imaginação.
Não por coincidência, é nos momentos em que triunfa, nas
relações sociais, o conservadorismo que mais se aguça a sanha pelo
controle da infância e do seu acesso aos bens culturais. Ao invés de
conferir à palavra o máximo de potência imaginativa, deposita-se
nela o sentido mais literal possível, retira-se a metáfora, o humor, a
ambivalência, a abertura de sentidos. Quando justamente ao con-
trário, a literatura, como arte da palavra, deveria ser para todos, e
em especial para as crianças, a porta para mundos insólitos.
Mas a boa notícia é que há resistência. Este livro é um exem-
plo de que a ciência se une às artes para pensar e incidir sobre a vida,
unindo ciência, arte e vida para construir possibilidades e potências
na educação das infâncias. Neste livro, Primeiras leituras: arte e cul-
tura na primeira infância, vocês encontrarão uma profusão de vozes,
oriundas dos mais distintos lugares. Vozes de artistas da música, do
teatro, das artes visuais, da literatura. Vozes de estudiosos da lin-
guagem, da educação, da biblioteconomia, da literatura, da histo-
riografia. Vozes de jornalistas e de pessoas ligadas à edição de bons
livros para crianças.
Se é verdade, como nos adverte Jacqueline Held (1980, p.
234), que “toda descoberta de beleza nos torna exigentes e, pois,
mais críticos diante do mundo”, nos unimos a essas vozes e con-
clamamos, com elas, uma literatura fantástica e poética, fonte de
maravilhamento, de reflexão e de espírito crítico, capaz de quebrar
estereótipos, de desbloquear e fertilizar o imaginário e, assim, cons-
truir a criança que amanhã saberá inventar o homem.
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Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Uni-
versitária, 1989.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se com-
pletam. São Paulo: Cortez, 1985.
GOUVEA, Maria Cristina Soares. Infantia: entre a anterioridade e a
alteridade. Educação e Realidade. Porto Alegre: UFRGS. V.36, nº 2,
maio/agosto, 2011. p. 547-567.
HELD, Jacqueline. O imaginário no poder. As crianças e a literatura
fantástica. São Paulo: Summus, 1980.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Indez. Belo Horizonte: Miguilim, 1995.
SOUZA, Solange Jobim e. Infância e linguagem. In: BRASIL. Ministé-
rio da Educação. Ser criança na Educação Infantil: infância e lingua-
gem. Caderno 2. Coleção Leitura e Escrita na Educação Infantil. Bra-
sília: MEC/SEB, 2016. p. 11-44.
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Primeiras leituras:
reflexões sobre o
encontro com o humano
pela palavra
Juliana Daher
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Saberes Inaugurais
A chegada de um ser humano neste mundo é antecedida, muitas
vezes, por expectativas, histórias e discursos que tornam o bebê
imaginário presente no dia a dia de muitas famílias. Um bebê real
e um bebê imaginário, portanto, são gestados durante a gravidez.
Concomitantemente o bebê, por sua vez, passa por vivên-
cias intrauterinas permeadas por estímulos sensório-motores que
apenas ali, naquele ambiente, poderá experimentar: os sons dos
seus próprios batimentos cardíacos e os da mãe, das vísceras em
constante movimento, dos gases e líquidos na cavidade uterina,
bem como a pressão que eles exercem no corpo, os balanceios,
o crescimento, que cada vez torna-se mais contido pela limitação
do espaço, e muitos outros estímulos irreproduzíveis no ambiente
externo. Um corpo que habita outro corpo e que a partir do que ali
viveu constitui saberes que, observados amiúde, serão legitimados
como tal e apontarão algumas pistas sobre os cuidados com o bebê
recém-chegado ao mundo.
Não por acaso, o colo e a contenção que ele proporciona
ao corpo do recém-nascido, bem como o balanceio, constituem
ações quase instintivas do adulto nos primeiros cuidados com o
bebê. O colo, de certo modo, reproduz o ambiente restrito do útero,
trazendo para o bebê elementos para a autorregulação a partir de
uma vivência corporal que retoma referenciais de espacialidade já
conhecidos por ele.
Este é apenas um exemplo dos muitos saberes iniciais que
os bebês apresentam em seus tempos iniciais de vida, conforme
afirma Parlato-Oliveira (2019). A autora infere, ainda, que os bebês
tecem suas impressões sobre o mundo a partir de uma capacidade
multimodal de interpretação e que tempo e espaço são elementos
fundamentais na construção dos saberes dos bebês. Ou seja, esta-
mos diante de sujeitos que interagem de muitos modos nas relações
que estabelecem com o outro e com o mundo e que expressam seus
saberes também de variadas maneiras.
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A LINGUAGEM QUE HUMANIZA
O bebê recém-chegado é humanizado pela linguagem a ele
direcionada. É imerso em um verdadeiro banho de palavras, sons e
entoações que muito dizem, ainda que ele ainda não compreenda
o sentido do que lhe é dito. A mãe ou outra pessoa adulta que dele
cuida supõe ali um interlocutor, visto que passa a estabelecer diálo-
gos com ele, a nomear suas expressões corporais, faciais e sonoras.
E o mais interessante é que, ainda segundo Parlato-Oliveira
(2019), pesquisas demonstram que, de fato, o bebê torna-se em
pouco tempo um interlocutor, pois passa a interagir, respondendo
não só por imitação, mas também propondo trocas de acordo com
sua intencionalidade, provocando no outro novas respostas.
Quando analisamos registros de diálogos entre bebês e seus
cuidadores, ficamos surpresos com o ritmo das trocas, quando
um finaliza a frase e o outro inicia imediatamente, sem pausa, ou
seja, o bebê não espera o intervalo, o silêncio, para começar a
sua participação. Assim como os adultos, ele percebe pela ento-
nação que a frase do outro está terminando e se prepara para
começar a sua. (PARLATO-OLIVEIRA, 2019, p. 68)
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PRIMEIROS TEXTOS E PRIMEIRAS LEITURAS
Cuidar do surgimento das palavras, da sua afinação com a experi-
ência vivida, de seu vigor e sentido; cuidar do ouvir, do balbuciar,
do murmurar, do falar, do cantar, do contar, do silenciar; cuidar,
enfim, da experiência inicial com a palavra é condição para o
desenvolvimento pleno deste ser de linguagem que é o homem.
Silvia de Ambrosis Pinheiro Machado
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Obviamente bebês tão pequeninos não compreenderão o
significado de tais narrativas cantadas. Contudo, conforme López
(2019, p. 19), “(...) o sentido que precede à significação se lê no rosto
(...)”. Tal afirmativa vai ao encontro ao que Reyes (2010) diz sobre
os primeiros textos do ser humano serem constituídos pela voz e
pelo rosto humano, visto que, a partir da interação com o outro, o
bebê aprenderá sobre os elementos verbais e não verbais que cons-
tituem narrativas e diálogos que serão interpretados por eles, possi-
bilitando inúmeras leituras.
Tão importantes quanto as canções de ninar são as brinca-
deiras tradicionais, as rimas, parlendas e brincos da cultura tradicio-
nal da infância. Sobre eles, Lydia Hortélio diz:
Os brinquedos cantados, os brinquedos ritmados, ou seja, a
MÚSICA TRADICIONAL DA INFÂNCIA, a MÚSICA DA CULTURA
INFANTIL, integra fatos culturais que estão na base da cultura de
um povo, portanto, no berço da CULTURA BRASILEIRA, carre-
gando em seu cerne os arquétipos da língua, da música, o movi-
mento próprio de nossa alma ancestral, sua maneira de ser parti-
cular, sua graça e poder diáfano. (HORTÉLIO, 2014, p. 274)
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-línguas constituem alguns dos exemplos de gêneros textuais desse
repertório. A palavra ganha protagonismo na experiência lúdica e
seu uso (e subversão no uso) torna-se a motivação da criança na
busca pela palavra.
É possível perceber o quanto as primeiras relações do bebê e
da criança bem pequena com a linguagem são permeadas pela intera-
ção com o outro, pela corporeidade e pela qualidade rítmica e meló-
dica que possibilitam experiências estéticas diferenciadas que consti-
tuem os primeiros contatos dos pequenos com a linguagem poética.
Contudo, López (2019, p. 19) alerta para a necessidade de
atentarmos para a qualidade do uso da linguagem com os bebês e
crianças na sociedade contemporânea, que cada vez mais prescinde
das interações humanas presenciais, em um tempo que “(...) separa
a linguagem do jogo, da afetividade, da empatia com o outro”. A
autora afirma ainda que é possível perceber certo esvaziamento
melódico na linguagem, que cada vez mais tem sido usada em
seu sentido apenas informativo, empobrecendo a experiência dos
bebês e das crianças com a linguagem e com a vivência poética. E
essa aprendizagem poética, conforme afirma Reyes (2014), é fun-
damental para que a criança transcenda a realidade, a literalidade e
vivencie uma comunicação não estritamente utilitária e sim criativa,
na qual as palavras adquirem outros sentidos e significações.
1 “Eu não leio; alguém me lê, me decifra e escreve em mim” (tradução nossa).
2 No original: “(…) empieza a cobrar sentido sólo en la medida en que aparece
alguien que lo lee, que lo decifra y que funda en él los primeros significados.”
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alguém que nos lê e escreve em nós nossos primeiros textos,
os primeiros significados. Nessa primeira etapa da vida, temos
contato com muitos textos e muitas leituras, e é importante
esclarecer o sentido amplo das palavras, pois muitos “textos de
leitura” da primeira infância transcendem o alfabético; ou seja,
são escritos além dos livros.³ (REYES, 2014, p. 17, tradução nossa)
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palavras fluem, a criança sente a vida fluir nessas páginas,
nessa voz que conta. (REYES, 2017, p. 49)
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tas no “triângulo amoroso”, que inaugura uma concepção de leitura
mediada permeada pela experiência afetiva.
Portanto, nessa perspectiva, a palavra, seja escrita ou falada,
não deve ser compreendida estritamente enquanto signo linguís-
tico. À infância é reconhecido o protagonismo em todo o processo
de construção de habilidades linguísticas, ressaltando a importância
da mediação durante esse processo.
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rais que os pequenos demandam para estabelecerem suas intera-
ções, suas experiências de fruição.
Além disso, enfrentamos em parte de nossa sociedade
um obscurantismo que atravessa as liberdades de expressão,
que persegue as artes e que, numa tentativa de controle, busca
modos de censurar e boicotar artistas e suas produções, difun-
dindo produtos culturais de qualidade duvidosa, de caráter mora-
lista, que vão na contramão da liberdade que a experiência artís-
tica proporciona.
Assim, destacar um tempo, mesmo que não seja dilatado
em quantidade, mas intenso na qualidade, para ofertar a palavra
poética aos bebês e às crianças por meio dos primeiros textos – can-
tigas, brincadeiras, histórias, brinquedos com a palavra (como os
trava-línguas), leituras de livros – constitui um ato de resistência em
tempos que não favorecem essas vivências tão preciosas nas dimen-
sões afetivas, de inscrição cultural, de ampliação de repertório, de
humanização das relações.
A oferta dos primeiros textos e das primeiras leituras aos
pequenos, permeada pelo afeto e pela palavra poética, consti-
tui sistema de proteção simbólica na primeira infância, conforme
afirma López (2019). E, para além de iniciativas pontuais de famílias,
escolas e equipamentos culturais, deveria ser pauta estruturante
de políticas públicas como parte do amplo sistema de garantia de
direitos desde o nascimento. Considerando as especificidades nas
interações dos bebês e crianças pequenas, suas corporeidades e
suas demandas de tempo e espaço para a consolidação de saberes,
é urgente sensibilizar gestores públicos para a implementação de
ações que garantam o acesso a bens culturais e ao bem-estar desde
os tempos iniciais da vida.
É necessário sensibilizar mães, pais e cuidadores sobre a
importância da palavra em suas diferentes expressões nas intera-
ções com os bebês. A qualidade do uso da palavra, considerando
também os aspectos estéticos da oferta que fazemos aos bebês e às
crianças pequenas, constitui as primeiras experiências literárias na
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primeira infância, que possibilitarão aos pequenos leitores aprofun-
dar seu acesso a muitas camadas de sentidos e significados, tecer
novas realidades simbólicas e, por que não, ser agentes transforma-
dores de realidades.
Por mais começos de vida repletos de palavras poéticas!
REFERÊNCIAS
CADEMARTORI, Ligia. As narratividades. In: BAPTISTA, Mônica Cor-
reia et al. (org.). Literatura na Educação Infantil: acervos, espaços e
mediações. Brasília: MEC, 2015, p. 31-38.
HORTÉLIO, Lydia. Especial: a importância do brincar. [Entrevista
concedida a] Familiarte. São Paulo: Melhoramentos, out. 2014, p. 1-4.
LÓPEZ, María Emilia. Breve ensaio sobre a palavra poética e a prote-
ção simbólica na infância. In: PRADES, Dolores; MEDRANO, Sandra
(coord.). Seminário Internacional Arte, palavra e leitura na primeira
infância - 2018. São Paulo: Instituto Emília, 2019, p. 17-22.
MACHADO, Regina. A arte da palavra e da escuta. São Paulo: Editora
Reviravolta, 2015.
MACHADO, Silvia de Ambrosis Pinheiro. Canção de ninar brasileira:
aproximações. São Paulo: Edusp, 2017. 312 p.
PARLATO-OLIVEIRA, Érika. Saberes do bebê. São Paulo: Instituto
Langage, 2019.
PEREIRA, Maria Antonieta. A criança e a linguagem: entre palavras
e coisas. In: PAIVA, Aparecida et al. (org.). Literatura: saberes em
movimento. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p 111-136.
REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira
infância. São Paulo: Global, 2010.
REYES, Yolanda. Como e por que ler na primeira infância? Revista Letra
A: O jornal do alfabetizador, Belo Horizonte, nº 31, p.12-14, ago/set 2012.
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REYES, Yolanda. O triângulo amoroso. In: LIMA Erica; FARIAS Fabí-
ola; LOPES Raquel (org.). As crianças e os livros: reflexões sobre a
leitura na primeira infância. Belo Horizonte: Fundação Municipal de
Cultura, 2017, p 46-51.
REYES, Yolanda. Secretos que no sabemos que saben. Cidade do
México: Conaculta, 2014.
SILVA, Lucilene. Introdução à cultura da infância. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=7B6JBLPLMe8
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Chão das infâncias
Gabriela Romeu
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sula dos Bálcãs, evocada pela premiada escritora de origem romena
Herta Müller, Nobel de literatura, autora de uma obra cuja poética
desestabiliza o campo leitor, surpreendido com sua escrita de can-
tos inesperados, insólitos por vezes. Müller não se dedica a escrever
sobre infância em seus livros, é verdade. Escreveu sobre universos
imersos em ditaduras, perseguições políticas e outras opressões que
não as infantis. No entanto, ao falar de um dos personagens de seus
livros, o poeta Oskar Pastior, protagonista do romance Tudo o que
tenho levo comigo, ela ensaia que a paisagem delineia em seu país
natal ao menos duas experiências de infâncias, ambas bem diversas,
a das crianças da montanha e a das crianças planície, onde, em seu
tempo de menina, “milharais envolviam o horizonte”.
Para Pastior, seu amigo e personagem do romance, o
vocabulário das montanhas onde viveu quando criança era usado
sempre para descrever os arredores do campo de trabalho for-
çado na ex-União Soviética, onde passou cinco anos da vida
adulta, como se aquelas imagens nunca o tivessem abandonado,
apesar de todo o desamparo naquele lugar nada parecido com
o chão de seu tempo de menino. “Aprendi que a paisagem da
infância deixa marcas para o olhar da paisagem de todos os anos
seguintes” (MÜLLER, 2012, p. 126). E talvez por toda a vida, já
que filósofos da imaginação contam que “ (...) a infância está na
origem das maiores paisagens” (BACHELARD, 1988, p. 97).
Dos milharais da distante Romênia reinventada na obra de
Müller aos muitos rincões deste país de dimensão continental, são
muitas as paisagens das infâncias brasileiras, as dos grandes centros
urbanos, das comunidades de agricultores e em terras indígenas,
das beiradas de rios e das imensidões das florestas, dos quilombos
rurais ou urbanos, dos litorais, dos sertões, das áreas serranas, das
chapadas e dos vales. E para seguirmos por rotas literárias, também
as dos Mutuns em meio aos Campos Gerais, “covão em trecho de
mata, terra preta, pé de serra”, lugar entre morros, “distante de
qualquer parte”, onde cresceu “um certo Miguilim” (ROSA, 1984, p.
13), marcado por sua paisagem-natal, assim como versa Manoel de
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Barros: “O abandono do lugar me abraçou de com / força. / E atingiu
meu olhar para toda a vida” (BARROS, 2015, p. 83).
São muitas as impressões da paisagem no imaginário das
infâncias, as que têm suas narrativas nos livros e as que as narram o
cotidiano em seus quintais, espalhados por diferentes regiões, terri-
tórios ou comunidades muitos Brasis afora. Dos chãos enredados de
mangue aos céus de emaranhados fios, são muitos os jeitos de ser
criança ou de exercitar a infância. Ou melhor, viver as infâncias, no
plural, entendendo a diversidade de paisagens e geografias, saberes
e fazeres, contares e brincares, vivências e experiências. Sim, experi-
ência, um vocábulo caro às infâncias, ainda mais se entendido no sen-
tido apresentado pelo filósofo e educador espanhol Jorge Larrosa:
A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de
exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência
é a passagem da existência, a passagem de um ser que (...) sim-
plesmente ‘ex-iste’ de uma forma singular, finita, imanente, con-
tingente. (LARROSA, 2019, p. 27)
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um ser que existe, de um ser que não tem outro ser, outra essência,
além da sua própria existência corporal, finita, encarnada, no tempo
e no espaço, com outros” (LARROSA, 2019, p. 43).
Na Filosofia, essa disciplina tão cheia de indagações quanto
as crianças, uma das acepções de infância a considera uma expe-
riência fundante, a qual carregamos para sempre. A infância – um
mistério, um enigma, uma pergunta, um jeito afirmativo do pensar
– é uma condição de possibilidade da existência humana, segundo
o filósofo e educador argentino Walter Kohan, em diálogo com o
pensador italiano Giorgio Agamben. Não abandonamos a infância
ao transpor o seu tempo cronológico, ampliamos o seu sentido, pois
ela “é uma condição que nos habita” (KOHAN, 2015, p. 217) e por-
tanto “somos habitados de infância para além de uma fase cronoló-
gica da vida” (KOHAN, 2015, p. 223).
E ser habitado de infância é o mesmo que habitar a vida
com espanto, completa outro filósofo, o educador brasileiro Renato
Noguera. É ter a prontidão da primeira vez, olhos de ver as coisas
invisíveis e cotidianas, mecanismos interiores ágeis de se admi-
rar com o pequeno, o nada. As lentes infantis têm a habilidade de
mirar o extraordinário no ordinário. A infância inaugura a existên-
cia de forma inédita e, principalmente, genuína, pois é “um modo
de lançar olhares inéditos sobre o mundo em busca de percursos
que estão por fazer” (NOGUERA; ALVES, 2019, p. 18). E esse ver da
criança abarca todos os outros sentidos, extrapolando a ideia de
visão de mundo para audição de mundo, olfato de mundo, tato de
mundo, paladar de mundo, como define Noguera a partir da ima-
gem de um Exu que representa em infância a sua fome de vida.
Habitar a vivência com espanto é o que se revela no coti-
diano dos quintais dos muitos recônditos deste país, entre os brin-
cares com a natureza e as sucatas do entorno, sempre a fazer do
ócio puro ofício. O brincar com o próprio corpo-brinquedo, a fle-
char as águas, a escalar árvores, a virar um aviador ao saber dos
ventos, a girar feito pião, a vibrar com um frio na barriga no voo de
balanço, entre muitos outros gestos lúdicos exercitados por meni-
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nas e meninos ludens. E também o brincar com o outro, em dupla,
em roda, em bando.
O quintal não é lugar designado somente ao crescer ou vir
a ser, mas é verdadeiro laboratório de ser, um território de quando
já se é intensamente. Onde (se) cria. É local de descobertas, confli-
tos, invencionices. Tal espaço, a depender da geografia e da oferta de
materialidades, possibilita muitas (ou ainda mais) investigações infan-
tis. No quintal, as crianças aprendem nas trocas e troças com seus
pares, ao compartilhar habilidades diversas, e há também ali convites
para intercâmbios de experiências entre gerações. De novo, é válido
convocar Larrosa e seus inspiradores escritos sobre a experiência:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos
toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase
impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar,
parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, e escu-
tar mais devagar, parar para sentir, sentir mais devagar, demo-
rar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, sus-
pender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
ação e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que
nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar
a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e
espaço. (LARROSA, 2019, p. 25)
Juliana Daher 39
assume “criancista”, gente adulta que aprende com criança, ou que
se propõe a “entender a criança e seu mundo a partir de seu próprio
ponto de vista” (COHN, 2005, p. 8), o que não é pouco e também é
ainda raro. O estado de infância, que experimenta e busca o mundo
pelos sentidos e aprende de forma interrogante, aproxima-se de
uma dimensão brincante e narrativa da vida. E é o que torna viável a
manutenção do viver, aponta esse pensador:
Não se trata de uma instrumentalização do brincar para uma
ação pedagógica, do narrar como entretenimento. Porém, da
vitalidade própria de existir. A vida é fundamentalmente brin-
cada e narrada. (...) Brincar e narrar tornam a vida abundante
(NOGUERA; ALVES, 2020, p. 542).
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colhidas nos muitos quintais do Brasil ao longo dos últimos anos,
poderíamos enfatizar que é o que facilmente registramos em diver-
sos bairros das cidades grandes, onde as crianças desafiam carros
e avenidas, fios e postes, para empinar pipas, peixinhos ou papa-
gaios (entre outros nomes que os brinquedos ganham céus Brasis
afora). O desejo de dominar um artefato lúdico milenar nos ares,
já pouco visto em muitos cantos pela proliferação de arranha-céus,
supera essa aridez urbana. Pela brincadeira, as crianças transgridem
as fronteiras do próprio viver.
E ao exercitarem o brincar, exercitam também o narrar, reto-
mando essas duas ações tão próprias das infâncias. Quando narram,
também brincam. Contam uma história enquanto entoam os versos
do pular corda, trocam diálogos imaginativos nos brincares simbóli-
cos (de casinhas, por exemplo), fazem trocadilhos nos jogos de pal-
mas. A escritora e pesquisadora colombiana Yolanda Reyes, sempre
atenta ao narrar e brincar em suas reflexões acerca da leitura e da
infância, é citada pela argentina María Teresa Andruetto em obra que
tece certeiras conexões entre as efabulações e as brincadeiras:
Se é certo que somos o que falamos, se é verdade que somos
feitos não só de carne e osso, e sim de símbolos, valeria a pena
abrir o mundo das crianças e todos os sotaques que transportam
a infinita diversidade do que somos (...). Como nas brincadeiras
infantis, as palavras eram essas comidas invisíveis de que me ser-
via em xicarazinhas de mentira para saciar a sede de imaginar.
(ANDRUETTO, 2017, p. 42-43)
Juliana Daher 41
Qual a poesia da criança em seu brincar? Tal qual o poeta faz com
as palavras, ela vê a ambivalência dos seres, inanimados ou não,
tijolo, lágrima, bacia, cotovelo, andorinha. Tijolo é tijolo, mas
também cavalo e cavalgada. Aí reside o exercício poético das
infâncias. A criança opera como o poeta, que “põe em liberdade
sua matéria” (PAZ, 1982, p. 26). É que “o artista” (e também a
criança) “não se serve de seus instrumentos – pedra, som, cor ou
palavra – como o artesão; ao contrário, serve-se deles para que
recuperem sua natureza original.” (PAZ, 1982, p. 27). Meninas
e meninos não somente esculpem o entorno, eles o poetizam
intensamente e, para isso, mergulham na verdade de seu ser
abertamente (ao) poético.
E para poetizar o mundo e a vida, narram e brincam. Nar-
rar e brincar são verbos conjugados nas infâncias, independen-
temente do tempo e do lugar, mas, sim, variando conforme as
ofertas locais e também temporais. E vale sempre ressaltar, prin-
cipalmente àqueles que insistem no discurso de que “hoje não se
brinca mais”, é possível observar nas cinco regiões que a criança
brinca em todo território e em toda época, pois essa é uma ativi-
dade tão vital como respirar. A questão é que, conforme as possi-
bilidades do seu entorno e a qualidade do tempo disponível, esse
brincar pode obter variações e matérias-primas mais ou menos
pulsantes. Aos adultos, no entanto, cabe garantir firmemente às
crianças um tempo alargado e um chão permissivo (para pular,
se arrastar, riscar, cavar... entre outras ações tão simples quanto
raras para muitas infâncias de espaços diminutos, confinados e/ou
marcados por assepsias). Ou como afirma quem bem pesquisa as
relações da rica tríade infância, imaginário e natureza:
(...) a materialidade do brincar, quando se constitui de subs-
tâncias materiais pouco científicas, decompostas, desmancha-
das pelo tempo, ou provenientes da natureza, tem o poder de
desemoldurar a imaginação. Permite que a criança crie, com
maior liberdade, sua experiência. Devolve seu ritmo, ecoa e
realiza seu destino natural: pulsar, reunir e expandir, abrir-se
para o mundo. (PIORSKI, 2016, p. 30-31)
42 Juliana Daher
A natureza está na origem da poesia que em muitas paisa-
gens de infâncias bem se reconhece e exercita, pois “O mundo não
foi feito em alfabeto. Senão que primeiro em água e luz. Depois
árvore. Depois lagartixa.” (BARROS, 2001, p. 95). Em diálogo com
diversos poetas, entre eles o já e sempre lembrado Manoel de Bar-
ros, a escritora Gloria Kirinus nos conta que a natureza (manifesta
nas “danças da chuva”, na “escuta do canto dos rios e do barulho do
vento”, por exemplo) são as nossas “primeiras escutas em estado
de poesia” (KIRINUS, 2011, p. 25). É assim, em estado de poesia, que
o menino ribeirinho faz do corpo brinquedo poético a delirar com
o vento solto enquanto percorre maneirinho o extenso trapiche de
sua comunidade durante o tempo das águas grandes, as cheias, que
inundam os chãos e seu vasto imaginário.
Em sintonia com o léxico brincante percorrido até aqui,
damos então um salto na amarelinha ou até mesmo um giro de pião,
para estabelecemos algumas pontes entre a brincadeira e a narrativa,
entre o narrar e o brincar, esses verbos que permitem expressões
genuínas de existência. Ou seja, o desejo é criarmos conexões entre o
quintal e o livro, entendidos nos âmbitos físico e também simbólico.
O quintal, assim como o livro, dá corpo às narrativas infantis e, prin-
cipalmente, ao seu estar no mundo. Ou incorpora as narrativas mais
autorais das infâncias. E o livro, assim como o quintal, é um possível
lugar para que a criança apreenda o mundo brincando-narrando.
Tanto o quintal quanto o livro são lugar onde a criança
pode desenvolver autonomia e autoria, como já apontado em
texto escrito anteriormente:
No quintal, a criança é autora e cria suas primeiras narrativas. É ali
narradora de mundos. Vasto universo da infância que convida a
múltiplas linguagens, onde o narrar se dá contando, cantando, brin-
cando, jogando, fazendo de conta na mais pura verdade. Ou empi-
lhando pedras, classificando tampas e tampinhas, desenhando no
chão (ou nas paredes), inventando brinquedos, entre outras brinca-
deiras-narrativas que se desenrolam de modo palimpsesto, em que
muitas histórias são (re)escritas. (ROMEU, 2020, s.p.)
Juliana Daher 43
As crianças nos ensinam que tanto brincamos quanto nar-
ramos (e ouvimos e lemos histórias) para nos conhecer, rastrear
nossas origens, descobrir quem somos. A criança não só descobre
o mundo exterior, mas seu próprio universo interior nas operações
dos muitos brincares e narrares possíveis que permeiam o viver num
determinado pedaço de chão. Sim, o chão é sustentação, ou melhor,
sustento das infâncias.
A escritora argentina María Teresa Andruetto, ao citar
a poeta e ensaísta uruguaia Circe Maia, dialoga com essa ideia
do livro e do quintal como suportes ou chãos fundamentais às
infâncias ao tratar as histórias impressas nas páginas como “pon-
tes para ‘aprender a pisar, a se sustentar’” (ANDRUETTO, 2017,
p. 109). E afirma: “Boa parte da riqueza de um povo reside no
desenvolvimento de uma consciência sobre si e sobre o lugar que
se ocupa no mundo” (ANDRUETTO, 2017, p. 40). Essa consciência
sobre si e também sobre o mundo, podemos adicionar, tem suas
raízes no próprio chão da infância, lugar sabedor de origens, de
desvendar quem se é.
Dois antropólogos europeus, Tim Ingold e David Le Breton,
abrem mais caminhos teóricos para pensarmos a relação do chão e
da infância – e então com outros espaços físicos, tais como o livro.
Ingold que tão bem aproxima o campo da antropologia aos das
artes, da filosofia e da educação, nos apresenta a importância (e a
contemporânea escassez) da cultura do chão, em que os pés nos
possibilitam contato com nosso entorno (e com o nosso próprio
ser), e questiona a forma como na atualidade se apreende o mundo,
sempre a partir de uma plataforma fixa (caso das sociedades oci-
dentais sedentárias), num corpo em que se prevalece a soberania da
cabeça sobre os calcanhares, os pés, e pouco conectado com outros
mestres e mestras da vida:
Por que reconhecemos apenas nossas fontes textuais, mas não
o chão em que pisamos, os céus em constante mudança, monta-
nhas e rios, rochas e árvores, as casas nas quais habitamos e as
ferramentas que usamos (...)? (INGOLD, 2015, p. 12)
44 Juliana Daher
Em muitos quintais dos Brasis, o chão ensina e é local que
possibilita aprender uma educação dos sentidos, pois “não existem
alternativas senão experimentar o mundo, ser atravessado e trans-
formado permanentemente por ele. (...) Antes do pensamento, há
os sentidos” (BRETON, 2016, p. 11). Uma imagem significativa, a de
uma floresta e quem a frequenta, é evocada por esse pensador para
ampliar a ideia de como, até mesmo num mesmo lugar e tempo, o
ser humano vive sensorialidades distintas:
Percorrendo a mesma floresta, indivíduos diferentes não são
sensíveis aos mesmos dados. Existe a floresta do coletor de
champignons, do passeante, do fugitivo; a floresta do índio, do
caçador, do guarda-florestal, ou do caçador ilegal, a dos apaixo-
nados, dos extraviados, dos ornitólogos; a floresta igualmente
dos animais ou da árvore, a do dia e a da noite. Mil florestas na
mesma, mil verdades de um mesmo mistério que se esquiva e
que jamais se dá senão em fragmentos. Não existe a verdade
da floresta, mas uma infinidade de percepções a seu respeito
segundo os ângulos de aproximações, de expectativas, de per-
tenças sociais e culturais. (BRETON, 2016, p. 12)
Juliana Daher 45
um de nós constrói (para si e para os outros), ao longo da vida, um
relato que constitui nossa identidade, uma narração que nos torna
únicos” (ANDRUETTO, 2017, p. 151). E esse narrar tem seu início já
na infância, nas culturas produzidas pelas infâncias, em seus territó-
rios, paisagens e chãos.
Aprendemos a ler e escrever mundos não só com a articu-
lação de letras e palavras, já nos contou o mestre Paulo Freire. O
pedagogo do esperançar, defensor da urgência de não só associar
a alfabetização à leitura do texto e à leitura da palavra, mas à lei-
tura de contexto, à leitura de mundo, aprendeu as palavras de seu
mundo-menino no quintal da casa em Recife, à sombra de árvores
frondosas, onde foi alfabetizado pela mãe e pelo pai. Com galhos
que faziam as vezes de giz riscando o chão-lousa, ele conta em À
sombra desta mangueira que aprendeu a escrever (sem cartilha)
os nomes do seu entorno afetivo, como os dos pássaros (sanhaçu,
sabiá, olha-pro-caminho-quem-vem), dos acidentes geográficos, das
cores das mangas e seu “amolegar”. O chão daquela primeira escola
“representa o mais próprio da identidade do educador, suas raízes”
(KOHAN, 2019, p. 168). Numa tarde do exílio, em Genebra, escreve
sobre seu primeiro mundo, o quintal, de modo saudoso:
O Brasil dificilmente existiria para mim, na forma como existe,
sem o meu quintal (...). A terra que a gente ama, de que a gente
sente falta e a que se refere, tem sempre um quintal, uma rua,
uma esquina, um cheiro de chão (...) (FREIRE, 2015 [1995], p. 41).
Juliana Daher 47
Para que o espaço seja habitável e representável, para que pos-
samos nos situar, nos inscrever nele, ele deve contar histórias,
ter toda uma espessura simbólica, imaginária. Sem narrativas –
nem que seja uma mitologia familiar, umas poucas lembranças –,
o mundo permaneceria lá como está, indiferenciado; ele não nos
seria de nenhuma ajuda para habitar os lugares em que vivemos
e construir nossa morada interior. (PETIT, 2019, p. 19-20)
48 Juliana Daher
REFERÊNCIAS
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Sesc São Paulo, 2017.
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. Antonio de Padua
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BARROS, Manoel de. Menino do mato. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 2001.
COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2005.
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CHIN, Cleci (orgs.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Ale-
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FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. Organização e notas de
Ana Maria Araújo Freire. 11. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015 [1995].
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zonte: Autêntica, 2019.
LE BRETON, David. Antropologia dos sentidos. Petrópolis: Vozes, 2016.
Juliana Daher 49
MÜLLER, Herta. Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio. São
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NOGUERA, Renato. O poder da infância: espiritualidade e política
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PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
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PIORSKI, Gandhy. Brinquedos do chão: a natureza, o imaginário e o
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ROMEU, Gabriela. Para habitar o quintal (e o mundo). Blog da Letri-
nhas, São Paulo, 24 ago. 2020. Disponível em: shorturl.at/dBCNU
Acesso em: 24 jan 2021.
ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1984.
50 Juliana Daher
Notas sobre a edição de
livros impossíveis
Jéssica M. Andrade Tolentino
Juliana Daher 53
cuja razão de ser é dirigir-se a um público que só existe virtual-
mente como projeção de seus autores?
Neste ensaio, tomo emprestada da autora a ideia de impos-
sibilidade, embora com pretensões francamente mais modestas.
Sem fidelidade a uma única teoria ou escola de pensamento, nas
páginas que se seguem discorro sobre nossas perspectivas em rela-
ção às crianças (com atenção especial aos bebês) e à literatura que
produzimos e oferecemos a elas, ponderando sobre os desafios de
sua publicação. Escrevo, portanto, a partir do lugar de leitora, pes-
quisadora e eventual editora de livros que ocupo.
Infância, infâncias
A ideia de infância universal, com características essen-
ciais identificáveis, há muito vem sendo questionada. Mais do que
nunca, hoje sabemos que as crianças, tanto quanto os adultos, são
atravessadas por questões culturais, sociais e históricas que as tor-
nam um coletivo amplo e heterogêneo. Como ignorar, por exem-
plo, os contextos econômicos que estruturam a vida de crianças
e tornam suas experiências e oportunidades profundamente desi-
guais? Ou ainda, é factível tomar como análogas as vivências infan-
tis de hoje e as de 2 mil anos atrás? Por tudo isso, muitos de nós
preferimos usar o termo infâncias.
Embora o plural possa resolver parcialmente o dilema, espe-
cialmente dos pontos de vista sociológico e antropológico, outras
questões se impõem. Ora, sabemos que as noções de infância não
se resumem a uma classificação cronológica ou biológica (ainda que
necessariamente passem por aí) e que seu entendimento varia con-
forme variam os tempos e espaços. Ainda assim, afirmamos com
convicção que crianças e adultos pertencem a categorias antagô-
nicas. Não há dúvidas de que ocupamos posições diametralmente
opostas, muito embora dificilmente saberíamos dizer quando ter-
mina uma e começa a outra. Melhor, talvez, seria afirmar que as
crianças são aquilo que nós, adultos, não somos. As infâncias se
definiriam, assim, por oposição, na qualidade de diferentes.
54 Juliana Daher
Implícita nesse pensamento, no entanto, está a centrali-
dade adulta. Ao nos colocarmos como referência, outorgamos às
crianças a condição de “vir a ser”. A criança ainda não é; criança
é promessa, projeção, porvir. Trata-se de uma etapa cujo valor se
volta ao horizonte de suas potencialidades e de nossas expectati-
vas. Mais comuns do que nos damos conta são os discursos que
validam tal premissa. Ouvimos e repetimos como mantra frases
como “as crianças são o futuro” e as usamos para justificar nossas
ações sempre bem-intencionadas.
Infância, etapa inicial de uma linha crescente de desenvol-
vimento que culmina na vida adulta. A ideia de progressão, que não
deixa de ter sua quota de razão, esconde outras problemáticas. Se em
um extremo da vida encontra-se o adulto – sábio, racional, completo
–, por oposição, a criança, no outro extremo, estaria ligada ao irracio-
nal, inconcluso, primitivo. Ser quase humano. Selvagem? Não à toa, fre-
quentemente as conversas sobre infâncias vêm acompanhadas de um
vocabulário cheio de conceitos como controle, disciplina, autoridade e
limite. Com isso, além de ignorar seu valor no presente, legitimamos a
ideia de dominação: por sua natureza, a criança requer de nós uma atu-
ação no sentido de educar que, em muitos casos, se torna sinônimo de
domar, domesticar ou subjugar. Felizmente, outros caminhos existem.
Definida, classificada, colonizada pelo olhar adulto, a criança
ainda nos escapa. Apelamos para o plural, para a relativização, para a
alteridade e para o controle, e mesmo assim falhamos em entender
as infâncias ou ao menos delinear os seus contornos. Já dizia Cecília
Meireles, “Tudo é misterioso, nesse reino que o homem começa a
desconhecer desde que o começa a abandonar” (1985, p. 30).
Juliana Daher 55
perguntas. Mesmo o mais banal em nós se faz abismo nos nossos
pequenos. O bebê chorou, o que quer? Tem fome ou sede? Sente
dores? Se contorce, o que quer expressar? Ouve uma voz conhe-
cida, ri, mexe as mãozinhas, pede colo. Será que sente saudades?
Incógnita. Lemos as pistas, inferimos, tentamos adivinhar e muitas
vezes acertamos. Mas ainda há tanto que insiste em nos escapar…
Mesmo assim, porque bebês existem e habitam entre nós,
nos esforçamos para decifrá-los como a um enigma. Desde os
conhecimentos forjados na observação empírica e intuitiva de pais
e cuidadores até as conclusões mais sistemáticas de pesquisadores
e cientistas, contamos hoje com o auxílio de um imenso arcabouço
de informações que, se não solucionam nosso mistério original, ao
menos nos amparam em nossas lidas com bebês e crianças bem
pequenas. Os discursos são os mais variados: vão da pediatria à psi-
cologia, psicanálise, pedagogia e até o direito.
Esse boom de interesse pelos bebês tem origem recente.
Até a primeira metade do século XX, pouco se falava sobre a pri-
meiríssima infância. Conforme o psiquiatra e psicanalista francês
Bernard Golse (2014), os bebês poderiam facilmente ser reduzidos
a “tubos digestivos”, já que a grande preocupação dos estudiosos
limitava-se às suas atividades alimentares. A mudança de paradigma
– da alimentação para o sujeito – só teve início com o fim da Segunda
Guerra Mundial. De seres passivos, os bebês passaram a ser vistos
como atores de seu próprio desenvolvimento. Como contrapartida,
a imagem desvalorizada cedeu lugar à idealização. Golse explica:
Contra o pano de fundo de uma certa culpa por parte dos adultos
em relação aos bebês, eles foram então descritos como autên-
ticos “super-homens”, já sabendo fazer tudo e entender tudo,
novos heróis dos tempos modernos e os principais depositários
de nossas últimas utopias...¹ (GOLSE, 2014, p. 2)
1 No original: Sur le fond d’une certaine culpabilité des adultes à l’égard des bébés,
ceux-ci ont alors été décrits comme d’authentiques « supermen », sachant déjà tout
faire et tout comprendre, nouveaux héros des temps modernes et dépositaires
principaux de nos dernières utopies…
56 Juliana Daher
Onde residiria, então, a “verdade” dos bebês? Para o pesqui-
sador francês, o mais adequado seria falar em competências poten-
ciais, as quais permanecem adormecidas até que situações específi-
cas forcem sua manifestação. Todavia, a natureza e a funcionalidade
dessas competências permanecem indecifráveis. Alternativamente,
Golse propõe outra explicação: em algum lugar entre o tubo diges-
tivo e o super-homem devem se encontrar os bebês, embora a loca-
lização exata seja difícil precisar.
Juliana Daher 57
a linguagem é capaz de estimular a vida mental das crianças, influen-
ciando sua cognição e subjetividade, assim como suas percepções do
ambiente social, das pessoas e de si mesmas.² Como escreve Miller, “a
linguagem transforma o indivíduo humano até em seu corpo, no mais
profundo de si mesmo, transforma suas necessidades, transforma
seus afetos” (MILLER, 1998, p. 34 apud LIMA, 2017, p. 57).
Em contrapartida a essa extraordinária constatação, o que
se segue é uma verdadeira corrida para encorajar a (inseparável)
relação entre bebês e sua língua materna. Cuidadores, educadores
e demais especialistas em infância, amparados principalmente por
estudos linguísticos e cognitivos, vêm arquitetando estratégias des-
tinadas a potencializar essa relação, na esperança de que, ao fazê-lo,
estaremos favorecendo o desenvolvimento dos pequenos. Obvia-
mente, quanto mais estímulos produzimos, mais nos impressiona-
mos com as respostas dos bebês, o que, por sua vez, serve como
confirmação de sua prodigiosa aptidão linguística, bem como da efi-
cácia de nossas ações.
Como efeito colateral, presenciamos (provocamos?) o cres-
cimento de uma certa ansiedade em torno da ligação bebê/lingua-
gem. O recente fenômeno midiático das crianças com articulação
de fala precoce ilustra bem o argumento. Nos maravilhamos com a
“super-habilidade” alheia ao mesmo tempo que esperamos (exigi-
mos?) dos nossos ligeireza semelhante. Trocamos o “vir a ser” pelo
“ainda não”. Mudam-se os parâmetros e a urgência se faz regra.
Não apenas necessitamos agora de estratégias mais elaboradas,
como também de ações cada vez mais prematuras.
E é assim que, na esteira do movimento descrito por Golse
(2014), vemos os bebês passarem de seres “pré-linguísticos” a verda-
deiros sujeitos da palavra. Celebramos sua aptidão natural ao mesmo
tempo que, condescendentes, admitimos que somente o incentivo
sistemático e rigoroso pode fazê-la desabrochar. Despertar a lingua-
2 Em Los libros, eso es bueno para los bebés (2008), Marie Bonnafé descreve sua
experiência à frente da associação francesa ACCESS, por meio da qual pôde atestar
a validade e a extensão dessas descobertas.
58 Juliana Daher
gem neles adormecida é a nova missão dos adultos, sob ameaça de
prejudicar seu desenvolvimento intelectual e psíquico. Já não se trata
mais de acompanhar sua entrada nesse mundo de linguagem que os
precede e de assisti-los na apropriação de estratégias – as reconheci-
das por nós e as inventadas por eles – de interpretação, significação e,
naturalmente, de subjetivação. Trata-se agora de engendrar circuns-
tâncias propícias para que bebês e crianças bem pequenas manifes-
tem, irremediavelmente, suas competências potenciais.
O risco que se corre com a pressa da produtividade é trans-
formar os bebês não em sujeitos de linguagem, mas em sujeitados.
A literatura e os bebês
Se é verdade (e as pesquisas nos dizem que sim) que a lin-
guagem é elemento fundamental para o desenvolvimento psíquico
e cognitivo das crianças, é mais do que natural que queiramos enco-
rajar essa potente relação, explorando-a de maneiras variadas e
fecundas. De um jeito ou de outro, desconfio, tal desejo nos levaria
à literatura, arte em que a palavra se faz mais humana: imprecisa,
ambivalente, plural, indômita. Assim, no afã dos debates sobre lin-
guagem e primeira infância, redescobrimos a literatura. Chamo de
redescobrimento o movimento de reencontro com suas potenciali-
dades e com tudo aquilo que ela pode despertar nos leitores.
Como arte que se constrói na e pela linguagem, a literatura
nos convida a acessar mundos alheios feitos de signos; construir e
partilhar sentidos é a possibilidade que nos oferece. A experiência
da fabulação nos desloca à posição de forasteiros, exploradores de
terras por conhecer. Como descreve Michel de Certeau, “ler é pere-
grinar por um sistema imposto (o do texto, análogo à ordem cons-
truída de uma cidade ou de um supermercado)” cuja pluralidade
indefinida nos permite criar estratégias para explorar e negociar
suas significações (1998, p. 264).
A condição de leitor é também análoga à dos bebês que,
chegando a um mundo de linguagem preexistente, são convoca-
dos a decifrá-lo. Espera-se que a criança, assim como o leitor, seja
Juliana Daher 59
capaz de reconhecer o sistema de signos que a cerca, de apreen-
dê-lo, interpretá-lo e, quem sabe, interrogá-lo. Significar a lingua-
gem ao mesmo tempo que ela nos significa, essa é a promessa
da literatura e é também o chamado dos bebês. Dessa maneira,
quando voltamos os olhos para nossa própria experiência como
leitores, somos surpreendidos pelas arestas que unem o universo
literário às infâncias.
Fascinados por essa constatação (e talvez um pouco culpa-
dos de tê-la ignorado por tanto tempo), somos uma vez mais captu-
rados pela ansiedade do produtivismo. A leitura literária se converte
em catalisador do contato, engajamento e, principalmente, da apro-
priação da linguagem pelos bebês. Literatura como caminho vanta-
joso para se chegar ao letramento. Ler com crianças bem pequenas
para que desenvolvam habilidades linguísticas precocemente, para
acelerar o aprendizado da língua (oral e escrita), para que se tornem
leitoras competentes e escritoras habilidosas, para que se conver-
tam em adultos criativos, para que adquiram prontamente uma ou
outra aptidão considerada justa e necessária, para que desenvolvam
competências psicossociais sem demora, para que se tornem mais
empáticas, compassivas, humanas, melhores.
Na era da tecnocracia, não surpreende que até os bebês
sejam atormentados pela exigência da produtividade. “Os demô-
nios da rentabilidade”, assim descreve Marie Bonnafé (2008) a
nossa inclinação ao utilitarismo. Embora em seu livro ela se con-
centre nas pressões do aprendizado precoce e no uso instrutivo
da literatura, seu argumento pode ser estendido a outras faces da
rentabilidade. No que toca à produção editorial, por exemplo, a
promessa de aquisições aceleradas se converte em oportunidade
de ganhos econômicos. Não há dúvidas de que monetizar qualquer
coisa que não se preste à quantificação produtivista seja tarefa
mais exigente. Mas a que custo?
Creio que escapar à lógica da lucratividade a qualquer
preço seja imperativo, se não quisermos sujeitar os bebês a um
sistema que já não se sustenta. No âmbito da mediação, isso possi-
60 Juliana Daher
velmente passa pela substituição do pragmatismo pela ordem dos
afetos. Ler com crianças bem pequenas para criar circunstâncias
que sejam propícias à partilha desmedida. Possibilidade de encon-
tro que não busca resultados nem mensura. Ao invés de acelerar
o tempo, fantasiar sua suspensão, subvertê-lo. Ler como quem
brinca. Luiz Percival L. Britto explica:
Brincar aqui é projetar-se livremente em direção ao nada, ima-
ginar, transformar, criar formas – sons e sentidos – com o puro
prazer de fazer, sem fim ou finalidade – o lúdico. O inusitado se
aparece diante do leitor, que mastiga sons, que tateia imagens,
que escuta cores – tudo isso instado pelas palavras que se enun-
ciam, pelo imaginário que corrompe o tempo e inverte aconteci-
mentos imaginários em reais. (BRITTO, 2018, p. 25)
62 Juliana Daher
discussões e pesquisas sobre a primeira infância em busca de parâ-
metro ou norte. À medida que novos estudos são conduzidos e suas
conclusões se tornam públicas, vamos nos adaptando, refinando os
critérios de qualidade e aprimorando nossos ofícios.
É fácil notar como as discussões sobre o tema impactaram
o mercado editorial. A começar pela própria oferta de livros para
bebês e crianças bem pequenas que, até pouco tempo, era limitada
em termos de qualidade e numericamente irrelevante. Acreditava-
-se então que a leitura na primeiríssima infância era exclusivamente
sensorial e motora, por isso as experimentações se restringiam à
materialidade. Predominavam obras que estimulam o manuseio
(por exemplo, com botões, partes destacáveis, superfícies com
relevo, aplicação de pelúcia ou outras texturas, livros com fantoche,
chocalho e mordedor), produzidas com materiais os mais diversos
(plástico, tecido, papel cartonado, emborrachado) e que contam
com recursos sonoros. Via de regra, os textos eram secundarizados
e as ilustrações reduzidas a uma função principalmente referencial.
Objetos lúdicos, sem dúvida; literários, talvez.
À medida que os debates foram se aprofundando, pudemos
notar uma progressiva mudança na oferta editorial, seja pela multipli-
cação de títulos ou por sua diversificação. São incontáveis os estudos
que apontam para a importância de se explorar textos e ilustrações
tanto quanto a materialidade dos livros. Já se sabe, por exemplo,
que a palavra pode se complexificar e que outros gêneros, incluindo
poemas e narrativas, devem fazer parte do repertório do bebê. Há
também reflexões sem fim sobre o papel das ilustrações nos livros
infantis, as quais convergem para um argumento comum: as imagens,
mais do que mera repetição, podem adquirir funções diversas, sendo
capazes de acrescentar profundidade simbólica às obras.
Outras áreas além da pedagogia e da literatura também
colaboraram significativamente para o debate, tais como a psicolo-
gia cognitiva e a neurociência. Além de prover evidências científicas
sobre os benefícios da leitura, as pesquisas auxiliaram na compreen-
são dos estágios de desenvolvimento das crianças desde os primei-
Juliana Daher 63
ros dias de vida. A classificação das etapas de competência leitora,
uma prática bastante comum nos meios editorial e pedagógico, é
em grande medida amparada por tal arcabouço científico.
Todas essas discussões têm nos servido de norte para a
criação e a escolha de livros. Um exemplo disso é o trabalho desen-
volvido por Teresa Colomer e Cristina Correro (2015). Segundo as
autoras, a qualidade dos livros para bebês deve ser medida tanto
em termos estéticos quanto em sua adaptação aos estágios de
desenvolvimento psicológico dos leitores. Questões como número
de palavras, gênero literário, relação texto/imagem, quantidade de
personagens, foco narrativo, sequenciamento, ambientação e tem-
poralidade devem apresentar complexidade progressiva de acordo
com a idade e a capacidade de compreensão das crianças.
É inegável que as pesquisas tenham favorecido nossa rela-
ção com os bebês e tudo o que envolve esse universo, incluindo a
leitura. Todavia, ainda que os esforços nos levem mais e mais pró-
ximos daquilo que chamo de “a verdade dos bebês”, estaremos
sempre tangenciando-a. Penso que sua força de indeterminação
se impõe como obstáculo. Conforme Rose (1993), a ideia de que
podemos conhecer o Outro (nesse caso, os bebês) objetivamente e
à parte de nós mesmos, de nossas projeções e desejos, é falaciosa.
Para atravessar a distância – quase ruptura – que separa adultos de
crianças, seria preciso derrotar o inconsciente e sua face materia-
lizada na linguagem. Para Rose, nossas tentativas não passam de
perseguição, busca ou mesmo sedução.
Tampouco se pode desconsiderar a diversidade daquilo que
chamamos de infância, com todos os seus atravessamentos bioló-
gicos, socioculturais e até políticos. Mesmo as questões mais cien-
tíficas (e por isso consideradas mais objetivas), como a progressão
do desenvolvimento cognitivo e psíquico, podem ser relativizadas
quando acrescentamos à equação outros elementos. Se a categori-
zação nos ajuda a ordenar o mundo e a sistematizar nossas ações, ela
também nos confunde ao mascarar sua artificialidade frente a nossa
natureza caótica. Pluralidade é o que nos define, adultos e crianças.
64 Juliana Daher
Eis, portanto, o que chamo de impossibilidade: identificar,
editar e publicar livros feitos sob medida para os desejos (que infe-
rimos), necessidades (que estabelecemos) e competências (as que
logramos detectar) dos bebês. Mais do que um desafio, considero
a tarefa impraticável. Não porque a leitura com a primeira infân-
cia seja impossível ou desaconselhada, mas porque a incumbên-
cia outorgada a editores se assenta em uma premissa improvável.
Isto é, que somos capazes de acessar as demandas de cada sujei-
to-bebê e de unificá-las em um conjunto mais ou menos estável de
características. E mais, que se considere plausível precisar o que é
melhor para eles.
Por isso, argumento que o livro ideal, criado na medida
exata das competências, desejos e necessidades dos bebês,
é uma ficção. Seja porque as crianças são diversas (mesmo as
mais novas!) e seus gostos e preferências mudam de sujeito para
sujeito, seja porque nunca acessaremos completamente os seus
pensamentos. Como bem observa Agamben (2017, p. 15), “deve-
mos parar de fingir que sabemos o que é uma criança. (...) Tudo
o que sabemos da criança é que ela torna inútil tudo aquilo que
acreditamos saber sobre o homem”.
Isso não nos exime de continuar experimentando. A cons-
ciência de nossa limitação serve apenas como lembrança de que
preservar as alteridades pode ser desafio mais interessante que o
empenho em cercá-las a todo custo. Talvez porque minha condição
de editora literária me desvencilhe (ao menos em parte) da obediên-
cia à ciência, à pediatria e à psicologia infantil, tomo a liberdade de
aceitar o acontecimento infância como mistério original.
Livre de tal obrigação, posso passar a outras questões.
Sendo a literatura uma arte do estranhamento, por que negar aos
bebês a experiência da incompreensão, do susto diante do desco-
nhecido? Especialmente nessa etapa em que o mundo é floresta a
desbravar! Nem tudo é compreensão no reino da leitura. Além disso,
em um mundo obcecado pela transparência, abrir espaço para as
sombras não parece má ideia. Assim, se não queremos que os impe-
Juliana Daher 65
rativos da clareza limitem a experiência leitora (em qualquer idade),
precisamos acolher as interrogações.
Sigo acreditando que a saída passa pela diversidade. Editar e
mediar livros para bebês que deem conta do seu entorno, que falem
do que é familiar, mas também daquilo que é estrangeiro. Obras do
tipo “primeiras palavras”, que ajudem as crianças a nomear o mundo
material, e aquelas que lhes dizem do que não se toca nem se vê,
oferecer-lhes abstrações. Poemas, narrativas mais ou menos com-
plexas, com ou sem palavras, personagens de todo tipo, narradores
de toda ordem… Livros publicados por editoras grandes, médias,
pequenas e minúsculas, cujas perspectivas sejam as mais variadas.
Livros-brinquedo, livros-objeto, livros de imagem, livros ilustrados e
sem ilustração, que não percam de vista a dimensão artística e lite-
rária. Obras pequeninas que caibam nas mãos dos bebês e também
as maiores, em cujas páginas eles possam mergulhar.
Publicar livros que cresçam junto com os bebês, essa sim
me parece uma missão justa para os editores de literatura. Obras
que não almejem a compreensão imediata e que, por seu enigma,
convoquem as crianças a novas leituras. Que acolham a pluralidade
e celebrem nossa existência sinuosa e pouco linear; que não deem
conta de tudo o que somos e, por isso mesmo, nos permitam fanta-
siar o que poderíamos ser. Por tudo isso, faço minhas as palavras de
Érica Lima, “insisto na diversidade e aposto na criança” (2017, p. 60).
66 Juliana Daher
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reflexões sobre a leitura na primeira infância. Belo Horizonte: Fun-
dação Municipal de Cultura, pp. 52-61, 2017.
ROSE, Jacqueline. The Case of Peter Pan, or the impossibility of chil-
dren’s fiction. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1993.
Juliana Daher 67
Por que o livro
para bebês e crianças
pequenas?
Carolina P. Fedatto
Tudo isso para dizer que no princípio não era o verbo, e sim a voz.
E o espanto, a intriga.
Michèle Petit
Os começos
Começar. Primeiros contatos, primeiras sensações, primeiros
gestos, primeiros movimentos. Fora e dentro. Contorno. Algo se
imprime nos começos do corpo. Pelos poros, pela pele, pela boca,
pelos olhos e ouvidos. No início da vida, vive-se de primeiras vezes.
De surpresa, de espanto, de enigma. Tudo é sentido e dito de fora,
ouvido. O mundo entra! Mas o que ele significa?
Juliana Daher 71
A infância, que etimologicamente carrega a negação, a falta,
a ausência – infans, aquele que não fala –, para além do foco na
capacidade de falar, pode ser entendida como condição da lingua-
gem (AGAMBEN, 2005, p. 67). Para falar é preciso... hiato, vazio, não
correspondência entre a percepção e a coisa, entre a imaginação
e o objeto. Isso não se ensina, mas se transmite, se vive e se expe-
rimenta. Daí vêm as palavras, os símbolos: no lugar do objeto. E,
embora os objetos existam apesar da nossa vontade ou condição
de nomeá-los, nossa relação com eles se dá sempre e somente pela
linguagem, via simbólico e imaginário.
A experiência da infância evidencia essa condição humana –
de não ter acesso direto ao real –, mas ela vai se decantando ao longo
da vida e produzindo a ilusão de que algumas palavras são adequadas
a determinadas coisas, de que elas sempre existiram ou sempre sig-
nificaram o que sabemos que significam. Isso acontece com a pala-
vra livro. Na etimologia, ela vem de liber, designando uma camada
fibrosa entre a casca e o tronco da árvore. Antes do latim, o termo
indo-europeu leubh significava ‘tirar uma camada, descascar’. Essa
ação nomeou um lugar, que poderia não ter tido nome... Esse lugar,
por sua vez, foi transformado em objeto (papiro, pergaminho, papel)
e assumiu uma função, um uso: o de ser suporte para a escrita.
Vamos nos esquecendo dessa lenta e ininterrupta constru-
ção histórica, social, política e cotidiana que é a linguagem. E que
ela participa da integração dos objetos e suas interpretações no uni-
verso humano. No caso da escrita e do livro, sabemos muitas coisas
interessantes. Sabemos que o livro existiu de várias formas: como
rolos de pergaminhos, como códice, caderno de folhas costuradas,
como página eletrônica que se rola para baixo ou se arrasta para o
lado (HANSEN, 2019). A história é longa e ainda não terminou! Sabe-
mos que a escrita surgiu como uma necessidade de registrar e admi-
nistrar a vida pública nas grandes cidades antigas, mas que ela dá
existência, forma e destino a muitas outras necessidades humanas,
como a de informação, de descobertas, conhecimentos, percepções
e de literatura. Esta última belamente entendida como
72 Juliana Daher
o lugar onde se pensam as palavras; as palavras coletivas e,
portanto, e também, as palavras privadas. A literatura é o lugar
onde se constrói o sentido e o significado da existência, ou seja,
o lugar onde se dá nome a isso que chamamos de realidade. Uma
árvore existe. A realidade árvore é algo que o homem constrói.
A realidade é a forma humana de relacionar-se com o existente.
Quando pensamos ou dizemos uma palavra construímos uma
realidade. Quando pensamos ou dizemos uma frase construímos
o sentido de uma realidade, ordenamos a existência, a tornamos
humana, a tornamos acessível, criamos uma ordem de relação
com ela. (BÉRTOLO, 2014, p. 127)
Juliana Daher 73
corpo, nele encontrando a si mesmo e o mundo. Nesse gesto, o bebê
interpreta quem o materna, lê seu rosto, suas expressões, reações, rit-
mos, sensações. O simbólico encontra aí lugar e passagem.
Pelos estudos de Spinoza, Nietzsche, Freud, Winnicott e
tantos outros, sabemos que o cuidado com os aspectos físicos e
cognitivos do desenvolvimento infantil não basta, é preciso tam-
bém considerar a esfera afetiva e sensível do permanente processo
de maturação humano. Na trilha de Vygotsky, o filósofo, educador
e psicólogo espanhol Angel Pino (2005), por exemplo, fala sobre
a indissociação e simultaneidade do duplo nascimento humano: o
natural e o cultural são articulados. O mundo é estranho porque
nossos recursos de percepção são sempre insuficientes para apre-
ender a diversidade cultural humana (PINO, 2005, p. 55). O mundo
sempre será estranho – não só para quem acaba de chegar –, por-
que o desencontro entre a realidade e suas interpretações é perma-
nente, complexo, reatualizado. E é justamente isso que nos impele
a falar, formular, inventar, redizer, de novo e com outras palavras,
outros traços, cores, gestos e arranjos: nossos, próprios, singulares
e históricos, coletivos, sociais.
Sabemos que, para acederem ao universo humano, os
bebês precisam ser envolvidos pela voz do outro em todas as suas
dimensões: conversas, relatos, descrições, narrações, canto – para
eles, com eles e deles. Pergunto, assim, quando e como o livro pode
chegar na vida do bebê? Evélio Cabrejo-Parra (2011), renomado psi-
colinguista colombiano radicado na França, diz que primeiro o bebê
aprende a musicalidade da língua, sua prosódia. Aos poucos, ele
percebe que esse canto da linguagem também serve para particula-
rizar e nomear as coisas. Falamos com o bebê do que se apresenta,
do que se aponta e do que está ausente, do que já foi ou será.
Por trás de tudo isso está um problema de linguagem, e o destino
do ser humano, de todo menino e toda menina, depende da lin-
guagem, da língua. Quando a língua anda bem, as coisas andam
bem, se a linguagem está unicamente na língua cotidiana e não
está na língua da literatura que permite organizar um imaginário
muito mais rico, mais complexo, o destino deste ser humano não
74 Juliana Daher
será o mesmo. Todo bebê sai do ventre da mãe para cair no ventre
da língua, e desse ventre não sai nunca, esse ventre tem muitas ou
poucas possibilidades, muitas alegrias e muito sofrimento. A lín-
gua é generosa, ainda quando não fazemos absolutamente nada,
pelo menos temos nosso nome e sobrenome, nossa data de nasci-
mento e de morte, e esse é o romance mais curto que a língua nos
permite. Entramos em algo que finalmente existia antes de vir ao
mundo, entramos na língua, nós vamos, e a língua continua, e ela
nos contém para sempre. (CABREJO-PARRA, 2011, p. 43)
Juliana Daher 75
advém e podemos ler algo do mundo interno, aquilo que cada um
experimenta por si só. Para ele, a intersubjetividade participa da
criação do nosso livro interno, metáfora que entende o objeto livro
como um espelho, um eco (ou uma ponte) de necessidades e vivên-
cias interiores (CABREJO-PARRA, 2012, p. 32).
76 Juliana Daher
que nele se esconde... E essa pergunta se repete, a cada virada de
página, vinda de personagens diferentes que descobrimos escon-
didos atrás de grandes abas. Um livro que propõe diversas brinca-
deiras de esconder e achar, de contar, de acumular, de adivinhar.
Ele permite que crianças pequenas vivenciem as emoções do ines-
perado, do não-sabido, da surpresa, tanto na concretude do objeto
quanto na fantasia da narrativa.
Michel Melot, grande bibliotecário francês, diz que o livro é um
objeto que “nasce da dobra”. É ao dobrar uma folha de papel ao meio
que o livro instaura a possibilidade de conter o tempo; nasce, assim, um
antes e um depois, uma possibilidade de ir e voltar – o que não acon-
tecia com os textos em forma de rolo que exigia a leitura sempre no
mesmo sentido. Nesse livro de Rosinha, a dobra esconde e surpreende,
encadeia a história e amplia saberes estéticos. Melot entende ainda que
a encadernação circunscreve o pensamento, produzindo um efeito de
totalidade e unidade. Ainda segundo ele, “o livro não só guarda ideias e
sonhos, ele faz reinar a ordem no mundo das ideias e dos sonhos. Início,
continuação e fim” (MELOT, 2019, p. 63).
Um livro começa e acaba, abre-se e fecha-se, de forma linear e
orientada, em seu princípio irreversível como o tempo, ainda que
nada impeça que o leitor comece a lê-lo pelo fim ou interpolando
os capítulos. Fechar o livro não é menos emocionante do que
abri-lo. (MELOT, 2019, p. 60)
Juliana Daher 77
ração é o objeto em si e também o eco da voz que lê, o reencontro
com a mesma melodia, as mesmas imagens, as mesmas texturas e
pesos. Esse repertório de leituras e histórias permite que se leia o
mundo e a si mesmo de modo plural: simbólico e político.
78 Juliana Daher
que esse objeto estabelece entre o bebê e o outro. Penso em seu con-
tato com a escrita, com a cultura, com a diversidade, com a fantasia.
Um livro pode muitas coisas. O livro diverte, encanta, emo-
ciona. O livro mostra mundos, transporta, transmite. O livro faz
pensar, questiona, intriga. O livro cansa, exige, absorve. O livro traz
visões, versões, saberes. Por mais abrangentes que essas percep-
ções possam soar, acredito na força de metáforas que carregam
contradições, desafios, conflitos e espessuras. Em nossa sociedade,
ora o livro é sacralizado, idealizado, museificado. Ora supervalori-
zado, onipresente, ordinário. Quase sempre é elitizado, pouco aces-
sível e distante. É baú, cofre, relicário. Passaporte, ponte, dádiva.
Morada, cabana, caminho. Muitas são as metáforas: uma palavra
por outra, que leva a outras ainda.
O livro é um direito
Ao longo da vida – e de um dia de vida – nos relacionamos de
diferentes formas com a linguagem. Ouvindo sons, palavras, nomes,
comandos. Ouvindo causos, histórias de improviso contadas no calor
da emoção, do acontecimento, da tradição ou da memória. Ouvindo
alguém ler uma narrativa escrita e observá-la se repetir, sempre a
mesma, na presença daquele objeto específico: poder reencontrar
aquela sequência de palavras e imagens, nome de autor, traços,
estilos. Relações com a linguagem que são indispensáveis a todos.
Pluralidade que está na voz e está também no livro.
Essa compreensão de Antonio Candido (2011) ao anunciar,
em 1988, que a literatura é um Direito Humano exige uma luta per-
manente por seu acesso. Literatura entendida em sentido lato como
capacidade e necessidade humana de narrar, fabular, imaginar nas
diversas formas da música, da oralidade e da escrita. E sabemos da
importância atribuída à escrita e da possibilidade de aceder a diver-
sos lugares sociais quando se tem acesso à leitura crítica e autô-
noma do mundo e das palavras. Por isso, ler imagens e letras é algo
que precisa fazer parte da vida de todos os bebês e crianças. Brincar
de livro, brincar com o livro, o livro como brincadeira!
Juliana Daher 79
Um grande retângulo com desenhos de folhagens azuis e
animais encobertos por elas. Achou?, de Aline Abreu, editado pela
Companhia das Letrinhas em 2021, é um convite. Ao abri-lo, encon-
tramos uma trilha de formigas que, ora bem evidentes, ora camu-
fladas, irão acompanhar a leitura de todas as páginas desse jogo de
achar e recomeçar. Yolanda Reyes (2010) fala sobre o importante
papel da leitura na construção de saberes sobre a língua escrita,
como crianças por volta de 3 ou 4 anos costumam perguntar por
aquelas “formiguinhas negras dispostas nas linhas dos livros” (p.
67). É interessante como esse livro de Aline Abreu condensa a ques-
tão infantil sobre a letra e a representação imagética da formiga
que, de fato, guia o olhar e costura a narrativa. O texto verbal per-
gunta pelos filhotes dispersos na imagem e o texto imagético coloca
o enigma da letra simbolizado pela trilha de formigas. O livro con-
vida a um jogo de leituras de imagens e letras. Até que as formigas
se reúnem para formar a palavra “fim” e se dispersam novamente,
recomeçando a trilha.
Entender, portanto, que a linguagem apresentada nos livros
é diferente da linguagem do cotidiano é um direito: o de aceder aos
ritos e ritmos da cultura escrita. Ter contato com o campo da represen-
tação por meio de diversas linguagens artísticas é um direito: bebês,
formigas, letras... ser um bebê, encontrar outros bebês, ver um bebê
desenhado no livro, ver o livro na mão do bebê do livro, reconhecer-
-se como um bebê etc. Direito à diferença, direito à experiência. Os
diversos modos de representar o mundo e as coisas, pela língua e pela
imagem, vão se apresentando, assim, por meio dos livros.
Um quadrado amarelo com detalhes em azul e um patinho.
Ou um quadrado azul com detalhes em amarelo e um menino? Ou
ainda um enorme retângulo cartonado predominantemente azul de
um lado e majoritariamente amarelo de outro com as mesmas cenas?
Nas mãos das crianças, uma sanfona abre e fecha ou uma cerca, uma
cabana, um muro... Ter um patinho é útil, da argentina Isol Misenta,
foi publicado no Brasil em 2013 pela Cosac Naify e reeditado em 2018
pela Sesi-SP. É um livro com duas capas, dois títulos, dois começos,
80 Juliana Daher
duas narrativas. Esse objeto representa na própria materialidade os
diferentes pontos de vista sobre uma mesma relação: é o menino que
tem o patinho ou o patinho que tem o menino? A relação de posse é a
mais adequada para nomear o que se passa entre eles? As imagens de
contornos pretos são idênticas dos dois lados, o que se alternam são
a referência dos pronomes de primeira e segunda pessoa e os sujei-
tos e objetos dos verbos em questão. Um livro que mostra como o
mundo é o mesmo e é diferente, que a contradição faz parte da nossa
história e que existem muitos modos de olhar e de contar. Um livro
que não resolve a dúvida, mas coloca essas questões pela narrativa e
também por diversos aspectos da materialidade.
Perguntar-se, portanto, pela diversidade de linguagens e de
existências é um processo e um direito que pode se iniciar cedo e de
variadas formas. Quando um bebê tem contato com livros, ele pega,
morde, lambe, cheira, joga. Descobre texturas, cores, pesos, vozes.
Ele olha simultaneamente o livro e o rosto de quem lê. Ele investiga
de onde saem aquelas palavras, onde elas estão: na voz ou no livro?
Ele observa cores e ilustrações no livro e as reencontra no mundo,
na vida. E assim aprende coisas muito complexas e importantes para
sua construção subjetiva e social.
Mas as desigualdades também começam cedo. Há bebês e
crianças que convivem com a linguagem escrita em casa, mas outros a
descobrirão apenas na escola. O livro é, portanto, um objeto político.
E sua circulação precisa ser garantida desde sempre para que todos
possam construir saberes sobre a existência e o funcionamento da
escrita e da arte, inscrevendo-se subjetivamente no mundo no con-
texto da linguagem (língua, imagem e objeto), isto é, da simbolização,
da representação, dos dizeres sobre o mundo e sobre si.
O livro é também um objeto da cultura no qual se pode
reconhecer pertencimentos, identidades e alteridades. Quando a
relação com o livro é social e historicamente situada, ela pode ser
um antídoto contra o confinamento cultural (PERROTTI, 1990), pois
amplia o universo das histórias e das vivências do bebê, da criança
e dos adultos-cuidadores. Outros tempos, outros espaços e outras
Juliana Daher 81
pessoas, para além do universo familiar e geográfico imediato, pas-
sam a integrar o campo de experiências dos bebês e das crianças
quando eles têm acesso aos livros.
O livro é ainda um importante objeto simbólico que contri-
bui para a inscrição dos pequenos na esfera do imaginário. O livro
permite expandir nossa capacidade de sonho, de invenção, de fan-
tasia, de vivenciar outras vidas, de compreender e elaborar o que
se passa conosco e com o outro, as contradições, conflitos e dife-
renças. Antonio Candido (2011, p. 181) diz que a organização da lin-
guagem literária permite que “os sentimentos passem do estado da
mera emoção para o da forma construída, que assegura a generali-
dade e a permanência”, características do livro que constituem sub-
jetividades e sociabilidades na primeira infância.
Afirmar que o encontro com o livro é um direito de bebês
e crianças traz também a questão de como as infâncias passam a
interrogar a existência, a forma, o lugar e a função do livro. Há espe-
cificidades no livro para os pequeninos? O que desejamos que haja
nesses livros endereçados aos bebês e às crianças?
O livro é, portanto, um objeto político, cultural e simbólico
produzido por adultos. É o adulto que escreve, ilustra e publica. É
o adulto que vende, compra, empresta, adota. É o adulto que sele-
ciona, coloca à disposição ou tira o livro do alcance das crianças. É o
adulto que dá voz à narrativa, confere entonação, pula trechos. É o
adulto que aponta elementos e conversa sobre a história. Enfim, é
o adulto que medeia a relação entre os livros e os bebês e as crian-
ças pequenas em diversas esferas. Por isso, é preciso refletir sobre
essas intervenções e sobre a ética do (re)encontro com a infância,
sobre a experimentação desse território, mesmo que na condição
de exílio (PELIZZONI, 2017), de alguém que já habitou, mas não tem
mais acesso pleno ao universo infantil. Como a consideração dos
pequenos leitores produz efeitos na forma como os livros circulam e
são produzidos? Os livros citados acima são bons exemplos de con-
fiança na subjetividade do bebê e da criança pequena, eles praticam
formas de emancipação do pequeno leitor (LÓPEZ, 2018).
82 Juliana Daher
As mãos do leitor
Com essa compreensão, chegamos talvez a uma ideia do
papel do livro para bebês e crianças. O livro não é somente texto,
história, informação ou conteúdo. Assim como a vida, os livros são
frágeis e corruptíveis: “o papel se desgasta, seu conteúdo também”
(MELOT, 2019, p. 54). Para os pequenos, a materialidade importa!
Ela transmite algo, assim como a palavra e a imagem.
O livro é um objeto espacial que representa uma relação
com o tempo nas próprias páginas e suas viradas. Mas diferente-
mente da fala, que se faz pela sequência um-depois-do-outro e,
assim, narrativiza singularmente a cada emissão, o texto inscrito no
livro é sempre o mesmo – letras e imagens aparecem como um mis-
tério que permite a permanência e o reencontro. Com o quê?
O livro é um objeto social e político, inventado para conter,
de uma forma específica, lampejos da cultura: narrativas, informa-
ções, visões inscritas em palavras e imagens que permanecem e
ultrapassam, até certo ponto, tempo e espaço – ou que circulam
de forma diferente da oralidade e de outras artes. Assim, entendo
que quando um bebê manipula um livro e encontra, por intermédio
do adulto, imagens e palavras nesse objeto, ele começa a elaborar
por si mesmo uma relação com o tempo, com a ausência, com a fic-
ção, com a interpretação. O livro pode materializar essas abstrações
para uma criança pequena, é um objeto complexo da cultura que
está - ou deveria estar - ao alcance das mãos.
A autora e artista sul-coreana Suzy Lee (2012), em seu famoso
Trilogia da margem, vê o livro impresso como forma de arte capaz de
“conter uma história íntima, acessível, direta, portátil, viável, repro-
duzível, produzível em massa e universal”. Ela se pergunta o que
faz de um livro um livro: basicamente são folhas de papel com qua-
tro cantos, uma capa mais espessa, uma linha de encadernação (a
dobra central). Em sua compreensão, o livro é uma tela que projeta
histórias e o leitor sente o livro fisicamente de diversas formas, pela
posição, abertura, giro, sequência, formato. Ela considera, assim,
que os dedos do leitor fazem parte do livro. A ideia de tempo difere
Juliana Daher 83
a cada página porque o leitor pode, justamente, ajustar o tempo ao
virá-las. E o significado ocorre justamente entre elas, é dado pelo
ato de virá-las (LEE, 2012, p. 120).
A última página é virada. A história chegou ao fim. O livro é
fechado. O mundo também é fechado. E então ele é rapida-
mente colocado no canto de uma estante. Arte que pode ser
posta em uma estante. Arte do tamanho da estante. Bem, isso
não é maravilhoso? (LEE, 2012, p. 177)
Juliana Daher 85
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ROSINHA. O que tem aí? Coleção Literatura de colo. São Paulo:
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86 Juliana Daher
Bibliotecas para a
infância: um projeto
de fantasia
Fabíola Farias
Juliana Daher 89
surpreendente: “Atrasa um pouco”. Não há o que dizer diante de
tal resposta. Não, pelo menos, com a rapidez que o momento exige.
Por isso, a narrativa termina abruptamente, em um susto.
O pequeno texto tem como título Celebração da fantasia e
anuncia a beleza e a potência da história contada. Mais que a alegria
passageira das crianças que ganharam desenhos e brincaram com
eles em suas mãozinhas, o menino do relógio fez de sua vivência da
fantasia uma experiência, tomando a existência do objeto desenhado
como absoluta realidade, até mesmo nos lamentáveis atrasos.
A ideia de fantasia consignada por Galeano está presente
nas reflexões do escritor Bartolomeu Campos de Queirós, apre-
sentada como ancoragem para sua escrita e também nas ativida-
des de formação que ao longo de décadas ofereceu a educadoras
no Brasil e no exterior.
Ao fantasiar, experimento a liberdade. Não há preconceitos, limi-
tes ou paredes nesse ato fundador do humano de buscar (em vão)
decifrar o absoluto. Fantasiar é o exercício de indagar sobre o meu
tamanho para concluir, sempre, que minha inquietação diante da
finitude não resiste a horizontes. Há sempre um depois do depois.
E só no trabalho criador encontro lugar para fazer da fantasia
matéria primordial de meu ofício. (QUEIRÓS, 2014, p. 69)
As bibliotecas hoje
As bibliotecas podem ser definidas de várias maneiras e
encontram, na bibliografia sobre o tema e no entendimento do
senso comum sobre suas funções, pontos de consenso. Indepen-
dentemente de sua ênfase, as concepções estão ancoradas em
aspectos que podem ser considerados eixos de suas formas de reali-
zação no Brasil: organização, guarda e disponibilização de materiais
bibliográficos e documentais; preservação da memória local; pres-
90 Juliana Daher
tação de serviços de informação à comunidade na qual está inse-
rida; realização de atividades de promoção da leitura e de inclusão
digital; oferta de programação cultural; apoio a pesquisas escolares
e de interesse geral.
Com algumas variações, estes são os eixos mais comuns de
atuação de bibliotecas de acesso público no Brasil, como as públi-
cas e as comunitárias. Preservadas as especificidades do ambiente
escolar e seu compromisso com projetos pedagógicos, até mesmo
as escolares partilham de alguns desses eixos de atuação, especial-
mente no que toca aos empréstimos de livros, ao apoio a pesquisas
e à realização de atividades para a promoção da leitura.
O advento e a massificação do acesso à internet e às muitas
possibilidades que ela abarca provocaram, na última década, questiona-
mentos em relação às bibliotecas. A oferta de informações e materiais
de leitura – livros, revistas, jornais – em computadores, smartphones e
tablets ligados à internet sugeriu a muitas pessoas, não sem razão, que
as bibliotecas estavam perdendo parte de sua razão de ser.
Porém, para quem se dedica a refletir sobre a questão, há
aspectos sobre o tema que precisam ser considerados. Os mais sim-
ples e óbvios são os que nos dizem que apesar da grande expan-
são do acesso à internet, especialmente em função da populariza-
ção dos smartphones, tal cobertura ainda não alcança boa parte da
população brasileira. Aliás, ainda é considerável no país o número
de pessoas que sequer contam com energia elétrica (e com sanea-
mento básico, habitação, segurança alimentar...).
Se o principal problema fosse esse, haveria solução relativa-
mente fácil e rápida para a garantia do direito à leitura no Brasil. Bas-
taria um investimento robusto para a aquisição e a distribuição de
equipamentos de acesso à internet e para a ampliação do serviço de
oferta de rede em todo o país – não faltariam autoridades e empre-
sas empenhadas em levar a proposta a cabo, interessadas nos gran-
des lucros que tal empreitada vislumbraria. Para quem entende que
as bibliotecas existem para disponibilizar livros e outros materiais
de leitura para a população, a questão estaria resolvida.
Juliana Daher 91
Mas há quem entenda que as bibliotecas são mais potentes
e que devem se oferecer como espaço de formação, para além da
oferta de serviços pela qual mais comumente são conhecidas. Obvia-
mente, está em seu campo de atuação, no centro dele, a disponibi-
lização de acervos bibliográficos para a pesquisa e a leitura de seus
usuários, principalmente em um país cuja renda média não permite
que livros façam parte da cesta básica das famílias. Mas a ação biblio-
tecária, que justifica e torna fundamental a existência de bibliotecas,
extrapola a simples oferta de livros. Mais que garantir o acesso a con-
teúdos, sejam eles quais forem, as bibliotecas que se comprometem
com um projeto democrático e emancipador trabalham para que
as leituras a que convidam seus leitores contribuam para que eles
ampliem sua compreensão do mundo, do tempo e do espaço em que
vivem, das relações de que participam, orientando projetos individu-
ais e coletivos. Nessa concepção de biblioteca, tudo converge, entre
erros e acertos, para o fortalecimento de tal projeto:
Por sua arquitetura, definição de seu público, princípios que
ordenam suas coleções, pelas opções tecnológicas que determi-
nam a acessibilidade e a materialidade dos textos, assim como
pela visibilidade das escolhas intelectuais que organizam sua
classificação, toda biblioteca dissimula uma concepção implícita
da cultura, do saber e da memória, bem como da função que lhes
cabe na sociedade de seu tempo. (JACOB, 2008, p. 10)
92 Juliana Daher
Nessa perspectiva, podemos dizer que as bibliotecas, prin-
cipalmente as de acesso público, continuam sendo muito importan-
tes hoje. Ainda que pareça contraditório, se pensarmos que vivemos
imersos em todo tipo de informação e até mesmo sufocados por
avalanches de conteúdos que nos alcançam a cada minuto, a ação
bibliotecária pode nos ajudar a organizar o excesso, sem dispensar a
diversidade e as contradições. Especialmente, pode criar caminhos,
sem evitar desvios e voltas, necessários para nossa formação e ama-
durecimento, para o conhecimento do que ao longo do tempo e do
espaço a humanidade produziu e registrou com a escrita: as narrati-
vas literárias, as artes, a história, as memórias, as ciências.
Aparentemente, isso parece dizer pouco às crianças. Como
pensar bibliotecas para as crianças, incluindo os bebês e as muito
pequenas, nessa perspectiva?
Juliana Daher 93
demonstram intimidade com os livros e com o ambiente da biblio-
teca; crianças que demandam atenção e recursos específicos em
função de alguma deficiência...
A compreensão da diversidade da infância traz em si desdo-
bramentos e sustentação para toda a ação bibliotecária, incluindo o
horizonte da fantasia, celebrado por Eduardo Galeano e Bartolomeu
Campos de Queirós, como instrumento de elaboração de percepções
mais agudas sobre o mundo e a vida e de construção de caminhos até
então não imaginados ou interditados para alguns grupos sociais.
Uma boa coleção de livros, com diversidade de autorias e de
experimentações estéticas, convida as crianças, desde muito peque-
nas, a se apropriarem da língua de maneira mais potente, compreen-
dendo que as mesmas palavras que comunicam e organizam a rotina
também brincam, rimam, contam e silenciam histórias, ampliando a
percepção do espaço e do tempo vivido. Vinculadas à materialidade
do livro – papel, formato, peso –, as narrativas, em verso, prosa e ima-
gens, dilatam o momento da leitura, criando um universo paralelo de
experiências, mas objetivamente marcado pelo passar das páginas.
Quanto mais diversa a coleção de livros para as crianças, mais inventi-
vos e generosos serão os convites feitos aos pequenos, mostrando a
eles as coisas que existem e as que poderiam existir.
São muito comuns os discursos que professam as preferên-
cias das crianças, orientando que elas gostam disso e daquilo, que
seus livros preferidos são os que tratam de temas conhecidos, como
os animais, o ambiente doméstico, o corpo, dentre outros. Não há
dúvidas de que os pequenos demonstram grande interesse no reco-
nhecimento de sua existência nas páginas dos livros, mas isso não
significa que as ofertas para as crianças devam se restringir a esses
contornos. O importante é que palavras, ilustrações, materiais e for-
matos sejam convites a experiências mediatas, que extrapolam a
vida comum e o cotidiano, ainda que seja em sua reinvenção.
A escritora argentina Graciela Montes nomeia os percursos
leitores menos previsíveis e seguros como “jogo do explorador”,
marcado por incertezas e ambiguidades, por enigmas e desafios,
94 Juliana Daher
em contraponto ao que considera “jogos do poder”, que validam
certezas e esvaziam incômodos:
Certo é que também houve – e há – muitas histórias para crian-
ças que escondem lições de bom comportamento, histórias que
talvez finjam explorar, mas que, na realidade, jogam o jogo do
poder, já que se dedicam a “insuflar” certezas e de modo algum
a dialogar com as incertezas. Essas histórias procuram mais
domesticar o leitor – ou tutelá-lo – do que levá-lo para passear
por lugares incertos, perigosos. (MONTES, 2020, p. 112-113)
Juliana Daher 95
O atendimento atencioso da bibliotecária e de outras profis-
sionais deve orientar os leitores de todas as idades, desde os mais
pequenos, sobre o funcionamento da biblioteca, de maneira a aju-
dá-los a compreender as regras e seus fundamentos de organização
para seu melhor uso coletivo e comum. É importante observar que
não se trata de ensinar regras apenas para que elas sejam cumpridas,
mas sim para que possam ser compreendidas na ordem da biblioteca
como instituição que guarda, sistematiza, organiza e disponibiliza a
cultura escrita materializada em livros para muitas pessoas.
Concertados por bibliotecárias e demais profissionais que
atuam nas bibliotecas, os serviços e atividades oferecidos às crianças
devem vislumbrar os “jogos de exploração”, professados por Gra-
ciela Montes e íntimos do horizonte de fantasia de Eduardo Galeano e
Bartolomeu Campos de Queirós. Isso significa que toda a rotina deve
convergir para a apropriação do espaço e para a aproximação das
crianças e suas famílias com os livros, em um exercício de valorização
da infância e das experiências que podem ser realizadas nas leituras.
Mais que a preocupação com a formação de crianças leitoras,
que segue sua marcha perene se existentes as condições para tal e
na exigência constante de políticas públicas que as garantam, nossa
atenção deve se voltar à experiência dos pequenos de ter um livro em
mãos, de poder manuseá-lo, de ouvir e contar suas histórias, de ver
suas ilustrações e também de abandoná-lo por algo que momentane-
amente pareça mais interessante e promissor. Dito de outra maneira:
que crie condições para que as crianças, desde muito pequenas, pos-
sam participar da cultura da biblioteca e produzir suas formas de par-
ticipação na instituição. Tudo isso deve ser acolhido pelas bibliotecas,
que aos poucos podem se mostrar como espaço de formação e de
liberdade, onde as crianças aprendem a estar e a partilhar livros, aten-
ções, silêncios e, principalmente, o desejo de conhecer.
Por fim, mas não menos relevante, é preciso reafirmar e prote-
ger, intransigentemente, o caráter público das bibliotecas de que aqui
tratamos, entendido como o que é de todas as pessoas e para todas as
pessoas, sem segmentações ou perspectivas assistencialistas. As defi-
96 Juliana Daher
ciências e singularidades devem ser consideradas partes constitutivas
de suas existências individuais e coletivas, de quem juntos somos como
sociedade, e contempladas na construção da ação bibliotecária, e não
como atendimentos complementares a algo que se considera principal.
As bibliotecas devem ser pensadas e realizadas, cotidianamente, para
todas as pessoas, garantindo a cada uma delas as condições para par-
ticipação em seus serviços e suas atividades, como consignado pelas
reflexões do Laboratório Mais Diferenças:
(...) no convencimento de que esse para todos, esse para todos
em geral e para ninguém em particular, esse para qualquer um,
exige conjugar a igualdade e a diferença de outro modo, e não
somente fazer políticas especiais de inclusão para grupos especí-
ficos e diferenciados de população. (MAUCH, 2017, p. 16)
Juliana Daher 97
para Crianças e Jovens, realizado pela Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil no Rio de Janeiro, com a presença da autora. Desde
então, as publicações, os eventos e os projetos para leituras com
crianças muito pequenas vêm ganhando espaço no Brasil.
Entre erros e acertos, movidas pelo entendimento da rele-
vância da leitura na primeira infância e das bibliotecas de acesso
público como principais possibilidades de acesso a livros para a
grande maioria das famílias brasileiras, seguimos nos dedicando a
pensar caminhos para que a infância seja mais promissora e que os
tempos sejam mais justos, em futuros que, ininterruptamente, se
anunciam em cada minuto vivido no presente.
Referências
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2007.
JACOB, Christian. Prefácio. In: BARATIN, Marc; JACOB, Christian
(orgs.). O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidentes.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
MAUCH, Carla S. da S. (org.). Cadernos do Laboratório Mais Diferen-
ças de arte, cultura e educação inclusivas. O público e o comum: expe-
riências em acessibilidade cultural. São Paulo: Mais Diferenças, 2017.
MONTES, Graciela. Buscar indícios, construir sentidos. Salvador: Selo
Emília e Solisluna Editora, 2020.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Contos e poemas para ler na
escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira
infância. São Paulo: Global, 2010.
98 Juliana Daher
O direito das pessoas
com deficiência à leitura
e aos bens culturais¹
Carla Mauch
Este texto tem como tema o direito das pessoas com deficiência,
um coletivo múltiplo, plural, que tem muitas histórias, mas histórias
invisíveis, que ficam reduzidas a espaços muito pequenos. No Bra-
sil, de maneira geral, não nos dedicamos a entender o direito, os
marcos legais, talvez em função de um texto duro, que não dialoga
com a maioria das pessoas, que parece se orientar por outra gramá-
tica. Muitas vezes penso que esse texto duro seja intencionalmente
feito para nos afastar de sua leitura, para nos impedir de conhecer
Referências
FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 2001.
LÓPEZ, María Emilia. Um mundo aberto. Cultura e primeira infância.
Trad. Cícero Oliveira. São Paulo: Instituto Emília, 2018.
1 A OSCIP Mais Diferenças, de São Paulo, tem produzido alguns títulos nesse for-
mato: https://maisdiferencas.org.br/biblioteca/livros/
Referências
BRASIL. Estatuto da pessoa com deficiência. Brasília: Senado Federal,
Coordenação de Edições Técnicas, 2015.
FRANCO, Eliana Paes Cardoso; SILVA, Manoela Cristina Correia Car-
valho da. Audiodescrição: breve passeio histórico. In: MOTTA, Lívia
Maria Villela de Mello; ROMEU FILHO, Paulo (Org.). Audiodescri-
ção: transformando imagens em palavras. São Paulo: Secretaria de
Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010. p. 23-42.
FREITAS, Cláudia Rodrigues de et al. Livros ilustrados táteis: uma
possibilidade de acesso à literatura para crianças com deficiência
visual em fase de letramento. Revista Electrónica de Investigación y
Docencia (REID), n. 24, p. 115-129, 2020. Disponível em: https://revis-
taselectronicas.ujaen.es/index.php/reid/article/view/4989. Acesso
em: 13 mar. 2022.
FUNDAÇÃO Dorina Nowill para Cegos. São Paulo, [2022?]. Apresenta
a associação sem fins lucrativos e de caráter filantrópico. Disponível
em: <http://fundacaodorina.org.br/>. Acesso em: 31 mar. 2022.
GARDOU, Charles. A sociedade inclusiva: falemos dela!: não há vida
minúscula. Belo Horizonte: Fino Traço, Ed. UFMG 2018.
1 Este texto é parte de uma pesquisa de pós-doutorado realizada com apoio da Coor-
denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).
2 Rybczynski (1996) mostra, por exemplo, como na França do século XVII, não
havia salas de jantar. As mesas, assim como os leitos e outros móveis, eram des-
montáveis, de forma que as refeições poderiam acontecer em qualquer espaço
da casa. Os quartos, por sua vez, eram espaços para se dormir, mas neles também
ocorriam encontros sociais.
6 Cerca de 19% das crianças brasileiras até 14 anos vivem em adensamento exces-
sivo (domicílio com 3 ou mais moradores por dormitório), 8,4% vivem em domicílios
sem banheiro e 3% delas vivem em casas cujas paredes são de material inadequado
(CINTRA et al., 2021).
Os labirintos de Lygia
No início de 2020, participei de uma oficina de criação chamada
Performar saberes do corpo que transformou em definitivo minha maneira
de pensar o mundo e meu papel como mulher e professora. A proposta
da oficina, guiada por duas pesquisadoras da UFSC, era fazer germinar as
afinidades entre o corpo e a escrita tomando a exposição Mulheres radicais,
arte latino-americana entre 1960-1985 como ponto de partida.
Pela primeira vez tive acesso com profundidade à obra de
Lygia Clark a partir de sua abordagem terapêutica, da experiência
sensorial e do “não objeto”, termo cunhado pelos neoconcretistas.
Associei seu método e propostas às vivências mais sig-
nificativas com as crianças, as quais nomeio “experiências com
a caixa de bugigangas”. A presença constante do corpo como
parte do acontecimento artístico, a mão que segura o pincel e o
lápis, mas que tem o impulso quase irresistível de tocar a tinta,
o resquício do pó de grafite, um farelinho brilhante no canto da
sala. A ação de moldar a argila acompanhada da dança que o
avental nos obriga a fazer entre as cadeiras. A contação de histó-
ria entrecortada por muitas vozes e corpos ansiosos por saber ou
154 Juliana Daher
participar. A roda, grande casulo em que nos tocamos e acessa-
mos olhares e outras histórias.
Em 2020, desenvolvi pela primeira vez nossa versão dos
objetos relacionais de Lygia. Acabávamos de voltar do período de
isolamento no contexto da pandemia de Covid-19, estávamos todos
afoitos pela troca, pela presença, uma vida possível depois de tanto
tempo tendo encontros online.
Apresentei Lygia para as crianças como de fato a enxergo, uma
artista cheia de imaginação, que gostava muito de experimentar...
— Igual a vocês!
Trouxe para a roda alguns “objetos relacionais” de Lygia que
construí. Essa obra foi desenvolvida por ela a partir de 1976, com inten-
ção de promover um trabalho curativo em suas sessões terapêuticas.
Os objetos tinham materialidades diversas: bolinhas de iso-
por, tecidos, pedras e, dentre todos, o meu favorito, Pedra e ar, obra
constituída por uma pedra e saco plástico.
Referências
BARBOSA, Ana Mae. Arte não se ensina; contamina-se pela arte.
Youtube, 17/06/2019. Disponível em: Ana Mae Barbosa: Arte não se
ensina; contamina-se pela arte - YouTube Acesso em: 07/02/2022
BARROS, Manoel de. Livro das Ignorãças. – Rio de Janeiro, Alfaguara, 2016.
LÓPEZ, María Emília. Um mundo aberto: cultura e primeira infância.
I.ed. – São Paulo: Instituto Emília, 2018.
NICOLA, José de. Literatura Brasileira das origens aos nossos dias. 15ª.
ed. São Paulo: Scipione, 1998.
ROCHA, Julia. Ensino (contemporâneo) da arte contemporânea –
Similitudes e enfrentamento entre metodologia e conteúdo. Encon-
tro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27,
2018. Anais do 27˚º Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Esta-
dual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.2208-2223.
1 Este texto foi elaborado a partir da minha dissertação de mestrado, intitulada Edu-
cação musical para crianças de zero a três anos de idade em tempos de pandemia e iso-
lamento social: um estudo sobre práticas docentes de professores de música, defendida
em dezembro de 2021 no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade
Federal de Minas Gerais.
REFERÊNCIAS
BRITO, Teca Alencar. Um jogo chamado música: escuta, experiência,
criação, educação. São Paulo: Peirópolis, 2019. 200p.
BRITO, Teca Alencar. Música na Educação Infantil: propostas para a
formação integral da criança. São Paulo: Peirópolis, 2003.
FONSECA, João Gabriel M.; PARIZZI, Betânia. A música (muito) além
da música. Pista: Periódico Interdisciplinar. Belo Horizonte, v.2, n.1,
p. 38-46, fev./jun. 2020.
GIRARDELLO, Gilka. Imaginação: arte e ciência na infância. Pro-Posi-
ções [online]. 2011, vol.22, n.2, pp.72-92. ISSN 1980-6248.
HORTÉLIO, Lydia. Especial: a importância do brincar. [Entrevista con-
cedida a] Familiarte. São Paulo: Melhoramentos, out. 2009, p. 1-4.
Primeiro Mergulho
Falar de cultura, arte e infância sempre esteve em minha trajetória
profissional e artística de maneira intensa, mas a maior transforma-
Quarto Mergulho
Em diversos momentos e de variadas formas a curiosidade
pela repetição da experiência da menina no barco se mostrava ainda
pulsante na vontade das crianças. Até que um dia, Francisco pediu:
— Mamãe, eu quero fazer hoje outro vídeo, já tenho o
nome: a menina no banho.
Havia ali um código adquirido na proposta anterior, mas
havia também algo de novo e autônomo. A dramaturgia dele come-
Juliana Daher 185
çava a se configurar e ele se sentia à vontade para propor sua cons-
trução própria, como um jogo cujas regras já conhece e pode recriar
de forma livre para que fique ainda mais interessante.
Claro que teria que ter água novamente. E claro que a boli-
nha de sabão era presença essencial. Mas, embora o rio fosse o
mesmo, as águas já eram outras: começaram a chegar, então, outros
objetos, como os pequenos bonequinhos de plástico que iriam ser
os personagens dessa história. As meninas no banho, que a princípio
seriam duas (por uma lógica estabelecida por eles mesmos):
— Tem que ser duas mamães, igual eu e Francisco que
somos dois.
De repente, tornaram-se uma “multidão” que invadia as
águas. Trazer os bonequinhos para a cena também traduz, de
certa forma, a inquietação que traziam com A menina no barco,
quando usávamos apenas um barquinho de papel e a todo
momento eles me perguntavam:
— Mamãe, por que não tem a menina? Da próxima vez
vamos colocar uma bonequinha pra ser ela?
O que permaneceu abstrato na cena anterior, eles quiseram
concretizar agora, não pelo realismo – que não era um fator tão pre-
sente na cena deles –, mas, principalmente, pelas possibilidades que
esse novo elemento podia trazer para a brincadeira.
As referências da vida deles e das experiências que os afe-
tavam invadiam a criação. Ao mesmo tempo, Francisco se apegava,
de alguma forma, inicialmente à sonoridade do texto anterior para
criar suas falas, tanto pela escolha de palavras, quanto pelo tom de
voz que assumia e que trazia algo da forma poética:
As meninas no banho
Elas ouviam cada gota “se” caindo
Elas ouviam cada passo do chuveiro
E as gotas caindo
Mas, quem se importa?²
Das várias vezes que fizeram a cena, cada gravação foi única;
em cada uma delas, como em um espetáculo irrepetível, mesmo
que alguma frase ou palavra retornasse, a condução era inesperada.
Sem um comprometimento sequencial, ou de causa e efeito, eles
brincavam com as sonoridades, com a sensação da mão na água,
com o jogo com as bolhas e com o tirar e colocar bonecos na água,
na mesa, nas beiras da bacia e no espaço. Criaram um código de iní-
cio e fim para “conduzir” minha gravação ao dizerem: “gravando”,
no início, e “corta”, ao final, código esse que não existia no meu
exercício anterior, mas que trazia referências do audiovisual, certa-
mente apreendidos em algum filme ou desenho.
Em tempos de pandemia, o teatro feito on-line, uma das for-
mas encontradas para tornar possível sua existência, se apropriou
de muitos códigos do audiovisual, dialogou com eles, embora na
maioria das vezes mantivesse sua certeza de que não pretendia se
fundir àquela outra linguagem, mas entendendo que ali havia algo
que possibilitava sua sobrevivência em tempos de teatros fechados,
palcos vazios e cortinas cerradas. Essa compreensão que eu, como
professora de um curso de teatro, tateava, ora negando, ora reco-
Bibliografia
MACHADO, Marina Marcondes. Espiralidades: arte, vida e presença
na pequena infância. Currículo sem fronteiras, v.20, n.2, maio/ago.
2020. p. 348-371.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar. Tradução: Cássia Raquel
da Silveira. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
Referências
LIMA, Elvira Souza. A incrível aventura dos primeiros dois anos de
vida. São Paulo: Interalia, 2021.
MORICONI, Renato. Céumar Marcéu. São Paulo: Jujuba, 2020.
ROSINHA. O que tem aí? São Paulo: Jujuba, 2019.
Peço licença a você, que inicia a leitura deste texto, para oferecer
minhas palavras ao seu espaço de escuta e, da mesma forma, conce-
do-lhe minha licença para significar as histórias aqui contadas a seu
modo. Me chamo Pâmela, sou bibliotecária, mediadora de leitura e
contadora de histórias. Sou filha, neta e bisneta de contadores de
histórias que me contam sobre as origens deles e as minhas. Percebo
em minha trajetória que a presença de contadoras(es) de histórias
na família influenciou minha vida pessoal minhas escolhas profissio-
nais. Ouso dizer que leio e conto histórias porque elas me contaram
primeiro sobre mim e participaram da construção da minha identi-
dade. Minha mãe costumava contar para mim e minhas irmãs nos-
sos mitos de origem e familiares, e foi por esses mitos que fui cons-
truindo a percepção de quem eu sou, das comunidades de que faço
3 A história conta de um jacaré que sentia dor de dente e que tentou de várias manei-
ras, sugeridas por outros bichos, fazer seu dente parar de doer, mas nada resolvia e
seu dente ainda doía. De modo bem lúdico, o livro apresenta a cada nova página uma
quantidade crescente de bichos que tentam ajudar o jacaré.
4 Algumas das experiências aqui relatadas aconteceram nas aulas remotas, durante
o período da pandemia da COVID-19.
5 A árvore generosa narra a história de uma relação de amizade entre uma árvore
e um menino. A árvore amava o menino e por ele estava disposta a se doar por
inteiro. Mas o menino, à medida que crescia, se afastava e visitava cada vez
menos sua amiga árvore, enquanto ela esperava ansiosa pelo reencontro, respei-
tando o espaço e as escolhas daquele menino a quem tanto amava. E o menino
quando retorna, sempre pede algo a árvore para que possa realizar seus próprios
desejos e ela lhe concede seus frutos para vender e ganhar dinheiro, seus galhos
para que construa uma casa, seu tronco para que construa uma casa, ficando ao
final apenas um toco da árvore. A cada desejo realizado, o menino se mantinha
distante novamente por um longo período.
1 Ver: https://guia.folha.uol.com.br/crianca/2020/03/fique-em-casa-conheca-canais-
-do-youtube-com-contacao-de-historias-para-os-pequenos.shtml e https://www.
brasildefato.com.br/2020/03/19/pela-internet-contadoras-de-historias-entretem-
-criancas-durante-quarentena
256 Juliana Daher
nimento tinha o intuito de cumprir uma demanda considerada impor-
tante, mesmo que não se soubesse explicar tal importância. Canais que
já existiam ganharam mais seguidores e quem lançava um vídeo por
semana passou a fazer lives diárias. Professoras criaram seus próprios
canais para divulgar seu trabalho aos alunos e a famílias e colegas de
profissão que desejassem usufruir do conteúdo. As tecnologias digitais,
até então comumente acusadas de prejudicar relações, se destacaram
por suas potencialidades de aproximação num contexto em que a dis-
tância geográfica se fazia (ainda se faz) necessária.
As possibilidades de um meio não substituem as de outro;
algo que falta aqui, sobra ali, mas um não se sobrepõe ao outro. A
contação de história virtual habita a interseção formada pela con-
tação presencial, pois conserva suas técnicas, por mais diversas e
pessoais que sejam, e pelo meio digital, com recursos audiovisu-
ais que agregam novas camadas à performance. Essa experiência
híbrida, que nasce por meio da “fricção” entre duas linguagens,²
tornou-se importante aliada no acesso às histórias e aos livros, já
que é uma forma de as crianças conhecerem títulos e autores/as e
se afeiçoarem ao “ritual literário”.
Algumas editoras e plataformas de leitura disponibilizaram
obras gratuitas para download ou consulta online durante a quaren-
tena.³ Assim como os vídeos e as lives de contação de histórias, essa
possibilidade de acesso à literatura também depende do manuseio de
aparelhos digitais. Sob a justificativa da necessidade de diminuição do
tempo de exposição às telas, clubes de assinatura de livros impressos
para crianças parecem ter aumentado suas vendas.4 Todavia, apesar
do aparente crescimento das assinaturas, o tempo de dedicação à lei-
tura com crianças foi comprometido pelas circunstâncias da pande-
mia. As famílias – com o inevitável destaque para as mulheres/mães
2 Vera Casa Nova propõe o termo ‘fricções’ para falar do “entrelugar que envolve
as artes na contemporaneidade” (FERREIRA, p. 38, 2004).
3 Ver: https://lunetas.com.br/livros-gratuitos/
4 Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/clubinhos-de-leitura-crescem-na-
-pandemia-com-pais-em-busca-de-opcoes-de-diversao-longe-das-telas-24685539
— Então esse é o seu pedido?! Tudo bem, meu amigo! – disse Deus.
FIM
1 A Marcha das Margaridas é uma ampla ação estratégica das mulheres do campo e da
floresta, promovida pela Contag, Federações e Sindicatos que se consolidou na agenda
do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – MSTTR e das orga-
nizações parceiras – movimentos feministas e de mulheres trabalhadoras e centrais
sindicais e organizações internacionais.
2 A Marcha das Mulheres Negras foi idealizada em 2011 no Encontro Ibero-Ameri-
cano do Ano dos Afrodescendentes, que aconteceu em Salvador, e promovida por
várias entidades ligadas ao movimento negro. O objetivo é aglutinar o máximo de
organizações de mulheres negras, assim como outras organizações do Movimento
Negro e da sociedade, que apoiem a equidade sociorracial e de gênero.
286 Juliana Daher
estabelecida, a gente começa um novo movimento, que é garantir
efetiva e concretamente que ela se traduza nas políticas públicas.
Projeto 333/2021