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Para Muller (2006, p. 557), “crianças são e devem ser vistas como ativas na construção
e determinação de suas próprias vidas sociais, da vida de todos aqueles ao seu redor na
sociedade em que elas vivem” (p. 456).
Quando a criança opina, não é ela quem decide. Aliás, do ponto de vista jurídico,
mesmo tendo ‘o melhor interesse da criança em foco’, nem sempre conta a sua opinião.
E do ponto de vista das negociações políticas mais elementares, como afirma Qvortrup
(2010, p. 783), “[...] muito do que influencia as crianças no seu di-a-dia é, na verdade,
instigado, inventado, ou simplesmente ocorre sem eu houvesse a menos preocupação
com as crianças ou a infância”. O adulto, assim, põe-se no centro em quase todos os
momentos dessa relação, tangendo as crianças para confins decisórios marginais (p.
457).
Dentre as noções construídas ao longo da história, uma das mais difundidas a respeito
das crianças é aquela que diz que a criança é um ser em desenvolvimento. É provável
que essa ideia, como querem alguns pesquisadores, tenha se firmado com o advento da
escolaridade infantil obrigatória, cujo fim derradeiro era preparar pessoas para o
mercado de trabalho (SARMENTO; FERNANDES; TOMAS, 2007) [...] Se aceitarmos
que as crianças são apenas seres em desenvolvimento e nos descuidarmos de todas as
suas demais dimensões enquanto seres humanos, seres sociais, tacitamente, tenderemos
a entendê-las como pessoas ainda não completas, o que traria muitos equívocos (p.
257).
[...] embora seja uma imagem adultocentrada, ela não é unívoca nem para todas as
civilizações nem para os indivíduos que formam uma mesma coletividade
civilizacional. Por isso, não daria para dizer hoje que todos os adultos ocidentais ao se
referirem às crianças e às infâncias estão dizendo na mesma direção, crendo num único
e mesmo modelo. Assim, o paradigma que rege nossas relações adultocêntricas é, no
mínimo, multifacetado, feito de várias idealizações [...] Em sentido real não existe
uma criança única, mas uma polifonia delas, vivendo uma incomensurabilidade de
infâncias, algumas das quais pautadas num ideal, ideal muitas vezes não facilmente
atingível (p. 459).
De um lado, todo ser humano adulto, do ponto de vista biológico, foi criança em uma de
suas fases existenciais, seguindo a classificação etária válida para as culturas que se
inspiram nos modelos modernos ocidentais. Por outro lado, embora todas as crianças
tenham tido infâncias, as infâncias vividas pelas crianças nada têm de universal. A
criança é um dado biológico, mesmo que seja compreendida na polifonia, e a infância
é um dado cultural e deve também ser compreendida na diversidade. A infância é o
guarda-chuva da cultura feito para conter as crianças. As culturas não tem apenas um
único guarda-chuva. Por isso, como pensa Marcel Mauss (2010, p. 241): “A infância,
meio social para a criança” (p. 459-460).
Vários autores defendem a opinião de que a infância como a conhecemos hoje foi
inventada a partir de um conjunto de ideias mais ou menos fundamentadas na época
moderna. Como diem Sarmento, Fernandes e Tomaz (2007, p. 184): “A infância foi
construída historicamente, nos últimos séculos, através da sucessiva exclusão das
crianças de esferas sociais de influência [...]”, esferas estas ocupadas por adultos (p.
460).
Conforme Campos (2009, p. 151): “A palavra infância vem do latim “infantia” e diz
respeito ao indivíduo que ainda não sabe falar”. Ora, o que deve acontecer com quem
não sabe falar? Se não sabe falar, não sabe o que dizer. Se não sabe o que dizer, se
intentar falar vai dizer asneiras, então não tem porque ser escutada, a conclusão parece
bem ligeira. Na observação de Sousa (2005, p. 54): “Ela não fala, e por não falar, nunca
ocupa a primeira pessoa nos discursos que se ocupam dela”. Atenta a essa problemática,
afirma Lajolo (2011, p.230): “[...] a infância é sempre definida de fora” (p. 460).
No intervalo que leva da definição teórica à ação concreta, a cultura adulta funciona de
tal forma que sempre desloca a criança real para um segundo plano ou para a
periferia das decisões (p. 460).
Reparada de modo mais profundo, a criança não tem vez nem voz, ela “não sabe falar”,
“ela não está entendendo nada” ou “ela não sabe de nada”. Ela é criança. Criança
também não tem querer. Tem, quando muito, uma série de chiliques que devem ser silen
ciados (p. 461)
O problema é quando esse silenciamento faz surgir um sintoma, uma
manifestação de rebeldia ou uma resistência da parte da criança. Nenhuma
criança deixará passar gratuitamente as suas insatisfações pessoais não
negociadas. Quer percebamos ou não, elas estão sempre atentas a uma série de
coisas que são feitas contra elas. A reação na escola, as crises de choros, a birra,
tudo isso tem de ter uma explicação, não pode ser apenas um capricho. É, de
qualquer forma, uma manifestação de seu agir social independente, o que nem
sempre tem a ver com falta de limites (p. 461).
O fato é que, por forças dos arranjos sociais, o adulto, na cultura contemporânea,
também se tornou ‘mestre’ em desrespeitar a criança, numa institucionalização tácita
de todos seus atos. [...] Se nos colocássemos, como adultos, no lugar das crianças
veríamos que isso seria, no mínimo, abominável, porque todos nós adultos temos a
‘falsa impressão’ de que somos seres libertos. Mas imaginemos o que é ter alguém
por perto, todo o tempo, dizendo sempre o que é que você deve ou não fazer,
independente e sua vontade. Não seria violência? Porém, o que, aliás, é ainda pior, é o
fato de que isso nunca será notado como tal. Essa tirania amorosa, mascarada de
preocupações de certo bem intencionadas, que o adulto exerce sobre as crianças,
está recheada de violência psicológica. E, sem dúvida, provoca dor e sofrimento nas
crianças (p. 461).
Mesmo concordando que é a partir do mundo adulto que a criança constrói sua cultura e
suas representações (PIRES, 2010), estamos inclinados a acreditar, que a criança
também é capaz de simbolizar o seu mundo e se o reproduz a partir de material
adulto, ela o faz reinterpretando-o à sua maneira (CORSARO, 2009). Por isso, em
sintonia com vários pesquisadores da infância, estamos admitindo que a criança
compreende e constrói seu universo com formas diferenciadas daquelas
transmitidas pelos adultos seus cuidadores. Assim, qualquer discurso que tome a
criança para consideração não pode desconsiderar essa capacidade de agência infantil
(p. 462).
A postura que vimos assumindo defende que a criança sabe, ao menos minimamente,
o que quer, mesmo não tendo permissão, em muitas situações, para verbalizar seus
desejos. E quando tem espaços, ela fala, fala de tudo, com a desenvoltura de seu
momento. Por isso, julgamos ser importante conhecer a criança a partir da própria
criança e não partindo de uma construção idealmente prévia da infância. Nesse sentido
concordamos com Sirota (2007, p. 44) quando diz que “A idade da infância não é mais
definida a partir de um devir, mas de um estado no presente” (p. 462).