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"A rua Conselheiro Nébias era uma maravilha porque a gente brincava de amarelinha,
pegador, de lenço-atrás, podia atravessar a rua correndo, ficava à vontade. De noite podia ficar
até as oito horas brincando ali na calçada, de roda. Brincávamos de "Senhora Dona Sancha" de
"A Canoa Virou"... Aquele bairro ficou horrível; quando passo por lá, naqueles Campos Elíseos,
aí, dá uma dor no coração ..." (D. Alice)
"Naquela época não existia brinquedos... Eu fazia carrinhos com rodas de carretel de linha
e nós brincávamos o dia todo, livremente. Nunca me machuquei porque a rua não tinha carros... A
criançada corria e jogava, no meio da rua, futebol com bola feita de meia..." (Sr. Ariosto)
"Não tivemos brinquedos, fazíamos papagaios, os quadrados, para empinar no Morro dos
Ingleses. Brincávamos de pegador, de barra-manteiga, de roda. Vivina pulou corda como ninguém
imagina: corda simples, de dois, passeio na corda, duas meninas entrando de cada lado, cruzando
e saindo." (Sr. Antônio)
Alice, Ariosto, Antônio, crianças nascidas entre 1897 e 1906, em um meio urbano pobre em
São Paulo, brincavam, como tantas outras crianças, na rua e nas calçadas, terrenos baldios, sem
muitos brinquedos.
"... as crianças de agora, eles assistem muita televisão, eles assistem muito desenho. Então vêem
os brinquedos e então eles pedem." (D. Mercedes)
"... Hoje em dia eu acho que as crianças não têm mais uma infância muito grande. Eu acho que
eles brincam pouco, estudam muito, ficam muitas horas na escola, se bem que tem escolinha de brincar...
É pra brincar, mas é mais um compromisso. E hoje em dia, se eles não vão pra escola, não brincam,
porque não têm onde brincar." (D. Lúcia)
"... as crianças não têm mais a chance que eu tive de brincar numa rua... hoje, se você não tomar
cuidado, você é atropelado." (Dr. Hubhy)
"... Era muito mais gostoso no tempo que as crianças tinham maior convivência, lá na rua, na
pracinha... Hoje eles ficam trancados no apartamento, e o encontro é só com um coleguinha de
escola, com as pessoas da família..." (D. Nina)
"... hoje tudo é diferente... as crianças têm muitos brinquedos que as crianças de antigamente nem
sonhavam de ter." (Sr. Fausto)
Silva, Garcia e Ferrari. Memória e brincadeiras na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do
século XX, 1989
Estes depoimentos de indivíduos que nasceram no começo do século, avaliam o brincar das nossas
crianças hoje, mostrando como a brincadeira mudou. Por quê as crianças estão perdendo todos os
referenciais de antigamente? Por quê foi deixada de lado a cultura popular e passada a responsabilidade
lúdica à civilização tecnológica? Para tentar compreender estas questões é necessário analisar como
evoluiu o brincar'.
Quando se pensa na evolução do brincar, deve-se voltar até a antigüidade, época na qual o brincar
era uma atividade característica tanto das crianças quanto dos adultos, representando para ambos
um importante segmento de vida. As crianças participavam das festividades, lazer e jogos dos adultos,
mas tinham, ao mesmo tempo, uma esfera separada de jogos. Os jogos aconteciam em praças
públicas, espaços livres, sem a supervisão do adulto, em grupos de crianças de diferentes idades e
sexos. O testemunho daquela época mostra o acontecer de uma vida social infantil rica e dinâmica
através dessas Brincadeiras. Qual era o lugar da brincadeira e. o seu significado na vida das crianças e
adultos? Vários autores apontam a brincadeira daquela época como o mais vigoroso elemento da
cultura do riso, do carnaval e do folclore. As brincadeiras eram fórmulas condensadas de vida,
modelos em miniatura da história e destino da humanidade. A brincadeira era o fenômeno social nos qual
todos participavam e foi só bem mais tarde que ela perdeu seus vínculos comunitários e seu simbolismo
religioso, tornando-se individual.
Paralelamente houve um processo de abandono das brincadeiras (antes comuns a toda as idades e
a todas as classes sociais) pelos adultos das classes superiores, sobrevivendo porém, entre as crianças
dessas classes e o povo. Quando não abandonadas, as brincadeiras eram transformadas.
Os processos sociais e civilizatórios de produção que deram forma à sociedade industrial moderna e
à ordem social burguesa, constituíram, assim mesmo, a infância e a brincadeira contemporânea. Dois
fatores tiveram, sobretudo, um papel importante: a) a segregação das crianças em um grupo
separado da vida dos adultos; b) a institucionalização das crianças e: a utilização da atividade lúdica
como um instrumento. A segregação das crianças transformou suas relações e afetou a
institucionalização do desenvolvimento e da educação. Junto com as crianças, também a atividade
lúdica foi transformada para transforma-se no trabalho infantil.
Este processo visava formar o “novo homem”; assim, era necessário investir na modelagem das
crianças.
A infância tornou-se pedagogizada: o objetivo básico dos pedagogos, dentro das instituições e das
famílias, era de criar o novo homem: os documentos da época mostram as medidas aplicadas para
suprimir a esfera físico-sensorial -emocional e estabelecer propriedades racionais, produtivas
disciplinadas da personalidade. A brincadeira, considerada como um vício no começo da idade
moderna, foi introduzida nas instituições educacionais por filantropistas, com o intuito de tornar esses
espaços prazerosos e também como um meio educacional.
Porém, querendo reabilitar a brincadeira e fazê-la útil na educação, o brincar foi colocado sob os
mesmos princípios que sustentaram a idéia do novo homem: era necessário treiná-lo. Esse processo de
pedagogização da atividade lúdica foi agressivo, dando origem ainda hoje, a sistemas para a utilização
educacional do brincar.
Cada geração de crianças transforma brincadeiras antigas, ao mesmo tempo que cria as suas
próprias, específicas. Assim, usando o antigo e NOVO cada geração tem suas próprias características e
padrões de sensibilidade. Na sociedade infantil, a atividade lúdica é a forma através da qual essa
sensibilidade e potencial são liberados e modelados, o que outorga à mesma um papel importante nas
realizações culturais e sociais.
O SIGNIFICADO DO BRINCAR
A brincadeira constitui-se, basicamente, em um sistema que integra a vida social das crianças.
Caracteriza-se por ser transmitida de forma expressiva de uma geração a outra ou aprendida nos
grupos infantis, na rua, nos parques, escolas, festas, etc., e incorporada pelas crianças de forma
espontânea, variando as regras de uma cultura a outra (ou de um grupo a outro): muda a forma, mas
não o conteúdo da brincadeira ; o conteúdo refere-se aos objetivos,básicos da brincadeira; a forma é a
organização da brincadeira no que diz respeito aos objetos ou brinquedos, espaço, temática, número
de jogadores etc. For exemplo: na Amarelinha, o objetivo básico consiste em lançar um objeto, pegá-
lo aos pulos e voltar com ele. Esta brincadeira, conhecida universalmente, muda sua forma de uma
época a outra, de um país a outro ou de um grupo a outro (o traçado, os objetos, o número de
jogadores, etc).
Essas brincadeiras são imitadas ou reinterpretadas pelas crianças. Isto varia
em função dos diferentes estímulos, interesses e necessidades de cada grupo
cultural de crianças.
Assim, as brincadeiras fazem parte do patrimônio lúdico-cultural traduzindo valores, costumes,
formas de pensamento e ensinamentos.
- os objetos e/ou brinquedos: os objetos com os quais a criança brinca podem ser, desde simples
elementos da natureza, até sofisticados brinquedos. Esses objetos aparecem em diversos contextos no
cotidiano infantil: na família, nas instituições educacionais, no contexto tecnológico. Em cada um deles,
um brinquedo pode ser visto como objeto potencial de solidão e consolação; como objeto que estimula a
autonomia ou a associação do coletivo; como objeto de realização, cooperação e progresso; como
novidade, objeto de distração ou informativo. Os brinquedos têm um impacto próprio e são, ao mesmo
tempo, meios para brincar e veículos da inteligência e da atividade lúdica. Eles constituem um "eco" dos
padrões culturais dos diferentes contextos sócio-econômicos;
- uma relação meios/fins: é importante discernir, no decorrer da atividade lúdica, se ela se constitui
num meio para atingir determinados fins (é o caso de um jogo proposto com objetivos pedagógicos
específicos — por exemplo: um jogo de seqüência); ou se a brincadeira acontece como um fim em si
mesmo: a criança brinca por puro divertimento (por exemplo: pular corda no recreio). Uma ou outra
forma, irão mudar o caráter da brincadeira.
ATRANSFORMAÇAO DO BRINCAR
"Quando nós éramos pequenos, nossas brincadeiras desde muito cedo eram brincadeiras de rua,
brincadeiras de moleque... então a gente era mais livre dentro daquele espaço que a sociedade tinha
estabelecido que era o espaço da criança. Ela não podia sair daquilo, mas dentro daquilo, dentro
daquele espaço, ela era mais livre do que hoje em dia, com um espaço maior." (D. Edith)
Silva, Garcia e Ferrari. Memória e brincadeiras na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do
século XX, 1989
Vários estudos constataram a mudança do brincar no decorrer do século, tanto no Brasil quanto em
outros países. A partir de uma coletânea minuciosa de documentos, foi realizada uma análise da
brincadeira espontânea das crianças brasileiras no decorrer do século XX (Friedmann, 1990), reunindo
aproximadamente trezentas brincadeiras na cidade de São Paulo e mais de mil, nos vários estados do
Brasil.
Dentre as causas mais significativas da transformação do brincar no decorrer do século nas grandes
cidades, e considerando as características acima expostas, destacam-se:
- uma significativa redução do espaço físico: com o crescimento das cidades e a falta de segurança,
os espaços lúdicos viram-se seriamente ameaçados e diminuídos
- a redução do espaço temporal: dentro da instituição escolar, a brincadeira foi deixada de lado em
detrimento de outras atividades julgadas mais "produtivas". No contexto familiar, tanto a mudança no
papel da mulher, orientada ao trabalho, quanto o grande espaço ocupado pela televisão no cotidiano
infantil, ou por outras atividades extra-curriculares, constituíram aspectos significativos na diminuição
do estímulo para a brincadeira
Tanto dentro da escola como fora dela, o brincar tem sofrido essas transformações. Dentro da
escola, a brincadeira integra um espaço de trabalho: a brincadeira livre passa a ser considerada como
uma atividade não-produtiva. Fora da escola, nos diferentes contextos, a tendência é similar. A situação
difere de um ponto ao outro do país, de uma grande cidade para o interior, de um contexto mais pobre
para um mais abastado. Mas a modernização chega aos pontos mais longínquos do país, através dos
meios de comunicação, sem que, no entanto, seja garantido o acesso ao que eles divulgam.
Tais transformações, com suas vantagens e desvantagens, não podem ser negadas. Deve-se, pois,
pensar em como é possível atuar para mudar os aspectos negativos da realidade lúdica atual: a falta de
espaço para brincar, a falta de tempo, enfim, a falta de oportunidades de brincar. A ação fundamental
a ser empreendida é a de resgatar o espaço da brincadeira na vida das crianças.
Houve avanço, sim, no que se refere aos estudos e pesquisas a respeito da importância e
compreensão do brincar, para a preservação histórico-cultural, a educação, o desenvolvimento
integral infantil, a aprendizagem, a reeducação, a segurança na fabricação de brinquedos, a
adequação dos brinquedos às diferentes faixas etárias. No que se refere aos fatores externos do
brincar: tempo, temática, espaço, parceiros, objetos, as condições de modernidade comprometeram, de
uma certa forma, as oportunidades lúdicas.
Confrontando passado e presente, não há dúvida quanto ao fato da criança continuar a brincar —
desde a criança da cidade até a criança do interior ou do campo, desde a criança mais estimulada e
com melhores condições econômicas, até à criança de rua ou à criança institucionalizada — todas elas
procuram espaços e formas de expressar-se e descobrir o mundo através da brincadeira. Nesses
diferentes contextos, as crianças estabelecem relações com o mundo, transformando, através do
brincar, seus significados.
Ter consciência desta realidade é fundamental para iniciar qualquer tipo de ação que tenha
como preocupação básica o resgate do espaço lúdico infantil. O espaço em si, você verá ao
longo deste livro, pode ser desde o mais 'simples até o mais incrementado. O que importa é,
sobretudo, a intenção de oferecer às nossas crianças oportunidades para que possam exercer o
direito de brincar.
2. Na língua portuguesa utilizam-se dois nomes para designar este espaço de brincar:
BIBLIOGRAFIA
ARIÈS, Philipe. História social da criança da criança e da família. R.J., Ed. Guanabara, 1981
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade:lembranas de velhos. 2 ed., São Paulo, T.A. Queiroz/ Edusp,
1987 (1 ed. 1982)
FRIEDMANN, Adriana. Jogos tradicionais na cidade de São Paulo: recuperação e análise de sua
função educacional. São Paulo, 1990 ( Tese de Mestrado)
MARJANOVIC, Aleksandra. “The theoretical and methodological problems concerning the projec
on traditional games”. In : Traditional games ans children`s of today. Belgrado –OMEP Traditional
Games Project., 1986
SILVA, Maria Alice Setúbal Souza et alii.Memória e brincadeiras na cidade de São Paulo nas
primeiras décadas do século XX.São Paulo.Cortez cenpec, 1989. (Biblioteca da Educação, séria
1.Escola; v.7)