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O BRINCAR NA

EDUCAÇÃO INFANTIL*
Gisela Wajskop
Professora do Centro de Educação da PUC-SP

RESUMO ABSTRACT

O texto apresenta uma concepção sócio-histórica do brincar e PLAY IN PRESCHOOL EDUCATION: SOME QUESTIONS. This
faz um panorama de sua evolução nas teorias e práticas peda- reading presents a socio-historical view of play and forms of the
gógicas pré-escolares ocidentais. Baseado em trabalhos de theories and pre-school educational practices of the Western
Brougêre, Henriot e Vygotsky, desenvolve a idéia de que a va- world the panorama of the evolution of play. Based on the works
lorização do brincar na educação infantil está associada a uma of Brougêre, Herriot, and Vygotsky, the author develops the idea
nova imagem de criança que vem sendo construída em função that the merit attributed to play in the education of the young
do seu status social, a partir dos séculos XVI e XVII Levanta child is associated with a new image of the child. Since the
questões a respeito de algumas competências profissionais ne- sixteenth and seventeenth centuries, this image has been
cessárias para o trabalho pedagógico em creches e pré-escolas. building on the base of the child's social status. The author
BRINCAR — EDUCAÇÃO INFANTIL — PRÁTICA PEDAGÓGI- raises questions concerning some professional capabilities
CA — TEORIA PRÉ-ESCOLAR necessary to educational work in day centers and preschools.

*
Artigo preparado inicialmente para aula proferida para o Grupo Gestor do Projeto de Formação de Educadores Infantis da região
metropolitana de Belo Horizonte, em 5 de julho de 1994.

62 Cad. Pesg., São Paulo, n.92, p. 62-69, fev. 1995


Nas sociedades ocidentais atuais, sempre que se “maus” e aconselhando-se aqueles considerados
pensa na criança e nos seus cuidados e educação, “bons”.
faz-se uma referência ao brincar.
Em seguida, uma preocupação dos Estados Na-
Normalmente, a aceitação da brincadeira como cionais com a moral, a saúde e o bem comum con-
parte da infância é conseguência de uma visão social tribuiu para a elaboração de propostas e métodos ba-
de que brincar é uma atividade inata, inerente à na- seados em jogos — sobretudo ligados à educação fí-
tureza da criança. sica — cada vez mais especializados, de acordo com
as idades e o desenvolvimento infantil. A brincadeira,
Contudo, a concepção de educação da criança
como um comportamento infantil e espontâneo, ga-
que a vincula a uma determinada forma de brincar
nhou um valor em si.
tem origem nas concepções românticas de homem e
educação, tendo contribuído também a crescente dis- O prazer, característico da atividade de brincar,
tinção entre criança e adulto, como. categorias sociais passou a ser visto como um componente da ingênua
com direitos e deveres diversos, que vem sendo cons- personalidade infantil, como uma atividade inata e que
truída pelos homens depois da Idade Média. Essa di- protegia dos males causados pelo trabalho árduo e
ferenciação entre criança e adulto, em nossa socie- desgastante do mundo adulto. A brincadeira passou
dade, é equivalente aquela estabelecida entre brincar a ser concebida como a maneira de a criança estar
e trabalhar, pelo menos teoricamente. no mundo: próxima à natureza e portadora da ver-
dade.
É apenas com a ruptura do pensamento român-
Em contraposição ao racionalismo, o romantismo
tico que a valorização da brincadeira, da forma como
inaugurou um período em que a infância vai ser as-
a entendemos hoje, ganhou espaço na educação das
sociada à natureza, ao imediato, à intuição; a inocên-
crianças pequenas. Para situar algumas questões so-
cia e fragilidade da criança garantiriam um investimen-
bre o papel da brincadeira na educação infantil, hoje,
to educacional voltado para a verdade contida no brin-
faremos uma pequena introdução histórica sobre o as-
car e para a preservação de sua pureza.
sunto nas sociedades ocidentais.
Os trabalhos de Comenius (1593), Rousseau
(1712) e Pestalozzi (1746), na Europa, contribuíram,
ao tado do protestantismo, para o nascimento de um
DA ANTIGUIDADE AOS NOSSOS DIAS novo sentimento de valorização da infância. Essa va-
lorização, baseada numa concepção idealista e pro-
NaAntiguidade, as crianças participavam, tanto quan- tetora da criança, aparecia em propostas voltadas
to os adultos, das mesmas festas, dos mesmos ritos para a educação dos sentidos da criança, fazendo
e mesmas brincadeiras. Segundo Ariês (1981. p. 94), uso de brinquedos e centradas na recreação. Deu-se
nessa época o trabalho não ocupava tanto tempo do início à elaboração de métodos próprios para a edu-
dia e nem tinha o mesmo valor existencial que lhe cação infantil, seja em casa, seja em instituições es-
atribuímos neste último século. A participação de toda pecíficas para tal fim.
a comunidade, sem discriminação de idade, nos jogos Sob a influência dos pensamentos e das filoso-
e divertimentos era um dos principais meios de que fias de suas épocas, cada um à sua maneira, os pe-
dispunha a sociedade para estreitar seus laços cole- dagogos Friedrich Frôbel (1782-1852), Maria Montes-
tivos e para se sentir unida. sori (1870-1909) e Ovide Décroly (1871-1932) elabo-
Gradativamente, ainda segundo Ariês, esses jo- raram pesquisas a respeito das crianças pequenas,
gos, brincadeiras e divertimentos passam a sofrer legando à educação grande contribuição. Com Frôbel,
uma atitude moral contraditória. Por um lado, eram por exemplo, inaugurou-se uma educação institucional
admitidos sem reservas pela grande maioria das pes- baseada no brincar. Os médicos que o sucederam, e
soas, por outro, eram proibidos e recriminados pelos se tornaram os primeiros pedagogos da educação
moralistas e pela Igreja, que os associavam aos pra- pré-escolar a romper com a educação verbal e tradi-
zeres carnais, ao vício e ao azar. cionalista de sua época, propuseram uma educação
sensorial, baseada na utilização de jogos e materiais
Entretanto, essa atitude de reprovação total mo- didáticos, que traduzia a crença em uma educação
dificou-se ao longo do século XVII, principalmente sob natural dos instintos infantis.
a influência dos jesuítas. Segundo Mary Del Priore',
Fróbel, na Alemanha, organizou seus jardins de
a partir do século XVI, difundiam-se duas repre-
infância em torno dos dons, termo que designava os
sentações infantis que estavam na base da educação
brinquedos de livre manipulação pelas crianças. Pau-
das crianças índias e mestiças no Brasil: o mito da
line Kergomard, na França, propôs, um pouco mais
criança-santa e o da criança que imita Jesus, cujas
tarde, as escolas maternais, em substituição aos asi-
brincadeiras serviriam de base para uma educação
disciplinar e integradora.
Os humanistas do Renascimento perceberam as 1 Constatamos, entre Ariês e Priore, uma defasagem na deli-
possibilidades educativas dos jogos e passaram a uti- mitação dos séculos que marcaram uma mudança nos sen-
timentos sociais de infância. Mantivemos essa diferença na
lizá-los. Passou-se a considerar as brincadeiras e medida em que ela indica a atualidade do tema e a neces-
jogos como uma forma de preservar a moralidade sidade de mais pesquisas e estudos que comprovem as te-
dos “miniadultos”, proibindo-se os jogos considerados ses desenvolvidas pelos autores.

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los infantis. Com base principalmente na observação A divulgação da psicologia do desenvolvimento e
das crianças, ela elaborou uma pedagogia científica da psicanálise, entre nós, a partir dos anos 60/70, e
que propunha a brincadeira como atividade livre de sua influência nas creches e escolas maternais atra-
aprendizagem e espaço educacional. Em outra dire- vés de revistas especializadas, manuais para profes-
ção, as Casas di Bambini montessorianas foram or- sores e cursos de formação em serviço contribuíram
ganizadas em torno de atividades dirigidas e de tra- para a afirmação da infância como período primordial
balho (antecipação de trabalhos práticos e de vida do desenvolvimento do ser humano, enfatizando o pa-
diária), para contrapor-se à brincadeira, considerada pel da brincadeira na educação infantil.
uma atividade inata infantil, sem fins educativos. Em São Paulo, podemos constatar que, a partir
As concepções de educação infantil que vêm sen- da década de 60, a psicologia piagetiana do desen-
do construídas historicamente têm reiterado e/ou to- volvimento e, posteriormente, a crítica ao espontaneis-
mado de empréstimo as idéias propostas por esses mo escolanovista, a difusão das teorias psicanalíticas
teóricos de fins do século XIX e início do século XX, e das psicologias socioconstrutivistas — Winnicott,
ou seja, a inserção das crianças nas brincadeiras, nos Vygotsky, Elkonin e Wallon, principalmente — deixa-
materiais pedagógicos e nos “treinos” de habilidades ram suas marcas no imaginário do profissional de
e funções específicas. educação infantil.
Fróbel, Montessori e Décroly contribuíram, e mui-
À espera de que a criança se torne adulta e se
to, na superação de uma concepção tradicionalista do
insira no sistema de produção do qual foi excluída
ensino pré-escolar, inaugurando um período histórico
gradativamente no decorrer da história do capitalismo,
no qual as crianças passaram a ser respeitadas e
a ela é designado um ofício próprio nas instituições
compreendidas como seres ativos. Entretanto, é pre-
de educação infantil, transformando a pré-escola ciso apontar as limitações do uso de suas idéias nos
numa espécie de grande bringuedo educativo. dias de hoje. Ao influenciar a pedagogia pré-escolar
A conquista de um espaço diferenciado para a brasileira — a partir de sua entrada no país por meio
criança, transformada em “enfant-roi” (criança-rei) den- do movimento da Escola Nova —, os pensamentos
tro da família nuclear burguesa e da vida urbana nas- frôbeliano, montessoriano e decrolyano têm-se trans-
cente, a partir da revolução industrial, as primeiras pe- formado, principalmente após os anos 70, com prio-
dagogias científicas e o estudo aprofundado do de- rização dos programas de educação compensatória,
senvolvimento infantil a partir do final do século XIX em meros instrumentos didáticos.
modificaram, ainda mais, o sentido da brincadeira na As propostas dos três, apesar de diferentes, con-
educação e sua aceitação social. têm estratégias de ensino com as quais pretende-se
O movimento da Escola Nova europeu e ameri- que as crianças aprendam noções de forma, tamanho,
cano (1889-1918), por seu turno, herdou as concep- cor, assim como a dominar movimentos corporais e
ções de criança ativa e lúdica já elaboradas por Frô- funções básicas de aprendizagem. São marcadas por
bel. Dewey, principal teórico do movimento escolano- uma concepção cumulativa e progressiva de conheci-
mento, cuja elaboração vai dando-se a partir de uma
vista, concebia a brincadeira como uma ação livre e
exploração empírica da realidade que parte do sim-
espontânea. A brincadeira, na sua teoria, é a ex-
ples ao complexo e do concreto ao abstrato. Conce-
pressão dos sentimentos, necessidades e interes-
bem a língua como código lingúístico de comunicação
ses da criança e por isso tem um fim em si mesma
e não como um sistema de representação, sugerindo
(Kishimoto, 1992. p.61).
exercícios mecânicos baseados no treino visual, au-
Os ideais escolanovistas, no Brasil, embora já es- ditivo e de memória.
tivessem presentes nos primeiros jardins de infância Podemos observar, mais recentemente, uma ten-
dos tempos imperiais, ganharam espaço na educação dência das pré-escolas brasileiras a utilizar materiais
infantil nos anos 20 e 30 deste século. Nas escolas didáticos, brinquedos pedagógicos e métodos lúdicos
primárias, utilizavam-se os jogos como meio de ensi- de ensino e alfabetização, cujos fins encontram-se no
no; nos parques infantis paulistas, sob a influência do próprio material, dessa forma descontextualizando seu
movimento modernista e da recuperação do folclore uso dos processos cognitivos e históricos experimen-
como elemento da cultura, as brincadeiras foram uti- tados pelas crianças.
tizadas como um fim em si mesmas, lugar de expe- Assim, a maioria das escolas tem didatizado a ati-
riência cultural, física e de recreação das crianças. vidade lúdica das crianças, restringindo-a a exercícios
A constatação e valorização da brincadeira, con- repetidos de discriminação visomotora e auditiva, me-
siderada atividade espontânea da criança pela ciência diante o uso de brinquedos, desenhos coloridos e mi-
psicológica e pela própria psicanálise, auxiliaram e es- meografados e músicas ritmadas. Ao fazer isso, blo-
timularam também a criação de uma criança brincan- queia a organização independente das crianças para
te. As teorias psicológicas de desenvolvimento — de a brincadeira, infantilizando-as, como se sua ação
Piaget, Wallon, Vygotsky — e pedagógicas -—— Kergo- simbólica servisse apenas para exercitar e facilitar
mard, Frôbel, Décroly e os teóricos da Escola Nova (para o professor) a transmissão de determinada visão
— contribuíram para a constituição de uma criança do mundo, definida a priori pela escola. ,
que se define socialmente pelo não-trabalho e pelo A partir da introdução das teorias da privação cul-
brincar ativo. tural no país, as classes de educação pré-escolar nas

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redes públicas de 1º grau passaram a desenvolver ati- o brincar está associado a uma nova imagem de
vidades curriculares compensatórias de supostos dé- criança que vem sendo construída em função do seu
ficits linguísticos, cognitivos, afetivos e alimentares in- status social.
fantis, atribuindo o fracasso escolar às diferenças in-
Para este autor, o brincar passou por diversas
dividuais e familiares. Essas atividades também se
concepções na História da Filosofia, da Pedagogia e
apoiaram em materiais lúdicos e brinquedos, que por
si sós deveriam ser capazes de ensinar às crianças das demais áreas das ciências e das artes. Tal di-
os conteúdos programáticos. Por ser atividade contro- versidade só pode ser compreendida se tomarmos o
lada pelo professor, a brincadeira aparecia como um fato de que brincar é uma atividade mental, uma for-
elemento de sedução oferecido à criança, que não ma de interpretar e sentir determinados comportamen-
pode ter a iniciativa de escolher o tema, nem os pa- tos humanos. Nessa perspectiva, a noção de brincar
péis, nem os objetos e nem mesmo o conteúdo da pode e deve ser considerada como a representação
brincadeira. Pertencendo o seu controle ao adulto, ga- e interpretação de determinadas atividades infantis,
rante-se apenas que o conteúdo didático seja trans- explicitadas pela linguagem num determinado contex-
mitido. Utiliza-se o interesse da criança pela brinca- to social.
deira para orientá-la para a escola. Assim considerado, o brincar constitui um fato so-
Embora a ciência e o debate político tenham tra- cial e refere-se a determinada imagem de criança e
zido avanços consideráveis no que tange à educação brincadeira de uma comunidade ou grupo de pessoas
e aos cuidados infantis em instituições coletivas a par- específicos. É uma atitude mental definida pelo que
tir do final do século passado, essas teorias, ao se Brougêre denomina de metalinguagem ou linguagem
reproduzirem atualmente sem uma reflexão distancia- de segundo grau?, ou seja, a brincadeira compreende
da no tempo e no espaço, transformaram-se em mitos uma atitude mental e uma linguagem baseadas na
e idealizações que nem sempre correspondem às ne- atribuição de significados diferentes aos objetos e à
cessidades reais da educação e cultura das crianças linguagem, comunicados e expressos por um sistema
de nossa época.
próprio de signos e sinais.
As imagens, idéias e representações da infância,
construídas a partir da pesquisa científica, do debate Em sua obra mais recente, Brougere reapresenta
social e das imagens tradicionais de criança e de brin- todos os autores que escreveram sobre o brincar in-
cadeira foram difundidas e são hoje geralmente acei- fantil, demonstrando o papel determinante da filosofia
tas por toda a população. No entanto, parece que pro- romântica na transformação de um pensar sobre a
duziram efeitos perversos a partir dos quais devemos brincadeira assimilada à concepção de criança. Se-
refletir para superar determinadas práticas institucio- gundo ele, antes de Jean-Paul, o precursor do roman-
nais ainda baseadas na recreação, no espontaneismo, tismo alemão, “não existia um pensamento sobre o
ou no seu inverso, o conteudismo. Mais complicada, brincar. O brincar não tem valor em si, ele se opõe
ainda, é a constatação, hoje, de uma ausência de às atividades sérias e apresenta-se como uma subs-
brinquedos e da brincadeira em creches e pré-escolas tituição de algo que lhe toca, seja sob a forma de re-
dirigidas às camadas populares. creação, relaxamento necessário ao esforço intelec-
Os problemas colocados pela educação, pela éti- tual, seja pelo faz-de-conta, forma de interpretação
ca e pela moral pós-moderna fazem-nos refletir sobre que permite à criança aprender.
o fato de que a infância não é mais apenas um in- “Com o Romantismo e sua nova concepção de
vestimento no futuro da criança, nem tampouco a rea- infância, a brincadeira ganha uma seriedade no inte-
lização do sonho material e simbólico do adulto. As rior de um sistema de inversão de valores proposto
novas imagens de crianças que se elaboram não são por esta corrente de pensamento e pode aparecer
nem as “miniadulto”, nem as “enfant-roi”. As crianças como o espaço de uma educação 'inatural?” (1998.
têm-se constituído em parceiros diversos dos adultos
p.219).
e portadores de singularidades, com os quais deve-
mos e/ou podemos negociar afetos, interações, co- Para Brougêre, ainda, essa concepção desenvol-
nhecimentos e espaço social. A partir dessa consta- ve-se, inicialmente, sob forma literária no pensamento
tação poderemos ajudá-las a entrar no campo dasin- romântico para, só mais tarde, encontrar sua tradução
terações sociais de maneira diferente no presente, prática nos trabalhos desenvolvidos por Fróbel. Em
mediante a reivindicação do seu direito ao brincar. seguida, a ciência do século XIX irá recuperar a idéia
Só a compreensão e aceitação desses fatos pode determinista e inatista de aprendizagem contida nas
auxiliar-nos a entender os vínculos entre educação e concepções de criança e brinquedo evocadas pela fi-
brincadeira na educação infantil. losofia, transformando a brincadeira na atividade que
possibilita a recapitulação da humanidade pela crian-
ça, ou do pré-exercício da vida adulta. Brougêre afir-
O QUE É BRINCAR? ma também que as relações encontradas entre brin-

Essa questão é discutida tanto por Brougêre (1993), 2 Essas noções fazem parte das anotações do curso ministra-
quanto por Herriot (1989). Em sua recente obra Sous do por Gilles Brougêre na Faculdade de Educação da USP,
couleur de jouer, Henriot desenvolve a idéia de que no período de 19 a 21 de setembro de 1994.

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cadeira e educação no decorrer da história contem- Se consideramos, no entanto, que a criança está
porânea foram importantes para transformar a imagem imersa, desde o nascimento, num contexto social que
de frivolidade e gratuidade que se tinha da atividade a identifica como ser histórico e que pode por ela ser
lúdica. modificado, é importante superar as teses biológicas
e etológicas da brincadeira. Essas teorias idealizam
A brincadeira terá que perder seu caráter de jogo,
a criança, empobrecendo as possibilidades educacio-
ganhando utilidade com relação ao futuro da criança,
nais de creches e pré-escolas.
para poder ser aceita como atividade infantil. Segundo
os estudos de Brougêre, “a brincadeira precisou ser O brincar, numa perspectiva sociocultural, define-
concebida como uma vantagem evolutiva para man- se por uma maneira que as crianças têm para inter-
ter-se enquanto atividade infantil. Ela serve para al- pretar e assimilar o mundo, os objetos, a cultura, as
guma coisa, não pode ser fútil. A biologia fundou o relações e os afetos das pessoas. Por causa disso,
valor educativo da brincadeira e a psicologia, distan- transformou-se no espaço característico da infância
ciando-se de sua origem biológica, reconstrói essa para experimentar o mundo do adulto, sem adentrá-lo
concepção. Claparede aparece, desse ponto de vista, como partícipe responsável.
como o vínculo entre a biologia, a psicologia e a pe-
Essa concepção foi elaborada, inicialmente, pelos
dagogia. Os seus escritos revelam, de forma jamais
pesquisadores da Escola Russa, no início deste sé-
encontrada em outro autor, que a brincadeira é a edu-
culo, com base na crítica ao subjetivismo da psicolo-
cação espontânea da criança” (Brougêre, 1998.
gia ocidental e ao espontaneísmo advindo das teorias
p.227).
inatistas do brincar. Vygotsky, Elkonin, Leontiev e
Brougêre e Henriot propõem uma análise socio- Usova são alguns de seus principais representantes
cultural do brincar a partir de suas representações nas (França-Wajskop, 1990. p.42-3). Seus estudos pude-
diferentes sociedades, em diferentes épocas. Mais do ram ser enriquecidos com as pesquisas feitas em cre-
que um comportamento a ser observado, a brincadei- ches por Wallon, nas creches francesas, nas décadas
ra requer uma forma de pensamento para poder exis- de 60/70, pelas pesquisas sobre a história das men-
tir. E esse fato é demonstrado, por Brougere, na es- talidades iniciadas por Ariês na década de 70 (Ariês,
trita assimilação do brincar com a idéia de criança. 1981), na França, e pelas pesquisas da equipe do La-
Abusando mais uma vez do autor, reiteramos sua boratoire du Jeu et du Jouet, atualmente em anda-
idéia de que: “Se a brincadeira aparece como porta- mento na Universidade de Paris-Nord.
dora de um potencial educativo, isto se deve, prova-
Nessa perspectiva, o brincar é, ao mesmo tempo,
velmente, menos às características intrínsecas do in-
espaço de constituição infantil e lugar de superação
divíduo em desenvolvimento e mais às estratégias es-
da infância, pela relação que estabelece com a re-
tabelecidas pelas sociedades para fazer da criança
presentação e o trabalho adultos. É uma forma de ati-
um ser social” (p.126).
vidade social infantil, cujo aspecto imaginativo e diver-
No entanto, se a atividade do brincar tem sido, so do significado cotidiano da vida fornece uma opor-
historicamente, assimilada a uma forma mais livre e tunidade educativa única para as crianças. Na brin-
informal de educação da criança pequena, por que é cadeira, as crianças podem pensar e experimentarsi-
tão difícil para os adultos, em especial os profissionais tuações novas ou mesmo do seu cotidiano, isentas
de educação infantil, relacionarem-se com ela? das pressões situacionais. No entanto, é importante
ressaltar que, pelo seu caráter aleatório, a brincadeira
também pode ser o espaço de reiteração de valores
retrógrados, conservadores, com os quais a maioria
PROPONDO UMA OUTRA CONCEPÇÃO
dãs crianças se confronta diariamente.

Ocorre que, contrariamente à natureza do brincar, a A contradição dessa atividade só pode ser encon-
educação formal e institucional baseia-se no controle trada e resolvida a partir de uma decisão pedagógica
de aprendizagens e conteúdos. e objetiva sobre os caminhos que se quer ampliar
para as crianças.
Por outro lado, as concepções inatistas e espon-
taneístas sobre o brincar contaminam o pensamento Do ponto de vista do desenvolvimento da criança,
e as práticas da maioria dos profissionais de educa- a brincadeira traz vantagens sociais, cognitivas e afe-
ção infantil. Advêm daí diversas formas de relação tivas na medida em que, segundo Vygotsky, é aí que
com a brincadeira das crianças, das quais enumera- ela “.. sempre se comporta além: do comportamen-
remos algumas: oferta de um período de recreação to habitual de sua idade, além de seu comportamento
para relaxamento e dispersão de energias fora da diário: no brinquedo é como se ela fosse maior do
sala; utilização como meics de ensino e transmissor que é na realidade... o brinquedo fornece estrutura
de conteúdos programáticos definidos pelo professor; básica para mudanças das necessidades e da cons-
inexistência absoluta de brinquedos e horário para ciência. A ação na esfera imaginativa, numa situação
brincar. Essas práticas, no entanto, não pressupõem imaginária, a criação das intenções voluntárias e a
uma ação educativa planejada e consciente com re- formação dos planos de vida real e motivações voli-
lação ao brincar por parte do profissional. tivas, tudo aparece no brinquedo, que se constitui no

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mais alto nível de desenvolvimento pré-escolar” (1984. * É durante o processo de interação e negociação
p.117). entre aqueles que brincam que são atribuídos signifi-
É, portanto, na situação de brincadeira que as cados às ações, aos objetos e aos personagens com
crianças podem se colocar desafios para além de seu os quais as crianças brincam. Isto quer dizer que as
comportamento diário, levantando hipóteses na tenta- brincadeiras se constroem durante o processo de
tiva de compreender os problemas que lhes são pro- brincar.
postos pelas pessoas e pela realidade com a qual in- * As crianças decidem sobre o que, com quem,
teragem. Quando brincam, ao mesmo tempo em que onde, com o que e durante quanto tempo brincam.
desenvolvem sua imaginação, as crianças podem Decidem, no processo, mudanças nos papéis, no uso
construir relações reais entre elas e elaborar regras dos objetos e nas ações imaginativas que se desen-
de organização e convivência. Concomitantemente a rolam.
esse processo, ao reiterarem situações de sua reali-
dade, modificam-nas de acordo: com suas necessida- * Às brincadeiras são desprovidas de finalidades
des. Na atividade de brincar, as crianças vão cons- ou de objetivos explícitos.
truindo a consciência da realidade ao mesmo tempo Compreendendo a brincadeira dessa forma, pode-
em que já vivenciam uma possibilidade de modificá-la. mos afirmar que a educação infantil tem-se utilizado
A brincadeira pode transformar-se, assim, em um de um recurso bastante rico, mediante o qual as
espaço privilegiado de interação e confronto de dife- crianças podem apropriar-se do mundo não direta-
rentes crianças com diferentes pontos de vista. mente, mas ativamente por meio da representação.
No entanto, a brincadeira deixa de ser concebida
Nessas interações, elas buscam resolver, no nível
como uma característica inata da natureza infantil e
simbólico, a contradição entre a liberdade da brinca-
passa a ser vista como uma atitude e uma linguagem
deira e a submissão às regras por elas mesmas es-
que é aprendida nas relações sociais e afetivas desde
tabelecidas, determinando os limites entre à realidade
a mais tenra idade.
e seus próprios desejos. Nesse processo, desenvol-
vem aquilo que Vygotsky denomina “autocontrole”. Como atividade dominante na infância, tendo em
Podem, ainda, interagir com seus pares de forma vista as condições concretas da vida das crianças, a
autônoma e cooperativa, compreendendo e agindo na brincadeira pode ser uma das formas pelas quais es-
realidade de maneira ativa e construtiva. tas começam a aprender. Pode ser, também, o espa-
ço privilegiado onde tem início a formação de seus
Ou seja, a brincadeira infantil constitui-se numa processos de imaginação ativa e onde elas se apro-
atividade em que as crianças, sozinhas ou em grupo, priam das funções e das normas de comportamentos
procuram compreender o mundo e as ações humanas sociais.
nas quais se inserem cotidianamente. Essas ativida-
des, a partir geralmente do primeiro ao terceiro ano Para Vygotsky, a aprendizagem configura-se no
de idade, variam conforme a origem sociocultural das desenvolvimento das funções superiores, mediante a
crianças e podem ser caracterizadas como indicamos apropriação e internalização de signos e instrumentos
a seguir. num contexto de interação. A aprendizagem humana
pressupõe uma natureza social específica e um pro-
* Existe um enredo ou situação imaginária a partir
cesso mediante o qual as crianças têm acesso à vida
da qual as crianças brincam e se comunicam, atribuin-
intelectual e afetiva daqueles que as rodeiam.
do significados diversos a ações e objetos. Essa ca-
racterística pode ser identificada por uma forma sin- É por isso que, para ele, a brincadeira, “...cria na
gular de utilização da linguagem, através do condicio- criança uma nova forma de desejos. Ensina-a a de-
nal verbal ou de sinais e gestos corporais próprios à sejar, relacionando os seus desejos a um 'eu” fictício,
brincadeira. ao seu papel na brincadeira e suas regras. Dessa ma-
* Ão brincar, as crianças podem atribuir a si pró- neira, as maiores aquisições de uma criança são con-
prias outras características, fantasiando-se e repre- seguidas no brinquedo, aquisições que no futuro tor-
sentando papéis como se fossem um adulto, outra nar-se-ão seu nível básico de ação real e moralidade”
criança, um boneco, um animal etc. Podem, também, (1984. p.114).
manipular objetos ou bonecos para os quais são atri- Portanto, a brincadeira é uma situação privilegia-
buídas características singulares. da de aprendizagem infantil. Ao brincar, o desenvol-
* As crianças podem utilizar-se de objetos subs- vimento infantil pode alcançar níveis mais complexos
titutos, ou seja, podem atribuir aos objetos significa- por causa das possibilidades de interação entre os
dos diferentes daqueles que normalmente possuem, pares numa situação imaginária e pela negociação de
transformando-os em brinquedos. regras de convivência e de conteúdos temáticos. A
experiência na brincadeira permite às crianças: a) de-
* As crianças imitam e representam as interações
cidir incessantemente e assumir papéis a serem re-
presentes na sociedade na qual vivem.
presentados; b) atribuir significados diferentes aos ob-
* Toda brincadeira possui regras que são defini- jetos transformando-os em brinquedos; c) levantar hi-
das e respeitadas por aqueles que brincam. póteses, resolver problemas e pensar/sentir sobre seu

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mundo e o mundo mais amplo ao qual não teriam rem trabalhados com as crianças, bem como com a
acesso no seu cotidiano infantil. organização do trabalho na instituição. Isso porque,
É por essa razão que Vygotsky considera que a podendo constituir-se como o eixo condutor do pro-
brincadeira cria para as crianças uma “zona de de- grama, pode estar articulado às propostas de cada
senvolvimento proximal”, que não é outra coisa senão grupo etário e aos trabalhos realizados pelos respon-
a distância entre o nível atual de desenvolvimento, de- sáveis pela alimentação, pelo sono, pela limpeza e
terminado pela capacidade de resolver independente- pelo trabalho com os pais e com a comunidade. Daí
mente um problema, e o nível de desenvolvimento po- a importância na observação e registro diário dos te-
tencial, determinado pela resolução de um problema mas das brincadeiras, de suas motivações junto ao
sob a orientação de um adulto ou com a colaboração grupo e a cada criança em particular, da forma como
de um companheiro mais capaz. o espaço é utilizado, dos objetos e brinquedos usados
e das formas de interação. A partir do registro, cabe
Ainda segundo esse autor, a brincadeira possui
às profissionais planejar e replanejar, diariamente, as
três características: a imaginação, a imitação e a re-
atividades a serem desenvolvidas nas instituições, le-
gra. Essas características estão presentes em todos
vando-se em conta as faixas etárias, os ritmos indi-
os tipos de brincadeiras infantis, sejam elas tradicio-
viduais, as condições sociais e culturais das crianças
nais, de faz-de-conta, de regras, e podem aparecer
e suas famílias.
também no desenho, como atividade lúdica.
Cada uma dessas características pode aparecer Dessa forma, a brincadeira poderá configurar-se
de forma mais evidente ou em um tipo ou outro de como espaço de diagnóstico dos interesses e neces-
brincadeira, tendo em vista a idade e a função espe- sidades infantis e se transformar em espaço de ex-
cífica que desempenham junto às crianças. perimentação e estabilização de conhecimentos e afe-
tos, por meio das interações entre crianças e adultos,
Para finalizar, é preciso reiterar que a brincadeira, possibilitando a criação de um vínculo com o trabalho
como qualquer atividade humana, é uma ação que é nas diferentes áreas do conhecimento.
aprendida pelas crianças, desde a mais tenra idade,
nas relações que estabelecem com parceiros mais ex- A profissional, atenta, poderá interferir na amplia-
perientes quando bebês, parceiros da mesma idade ção de possibilidades de usos dos materiais e dos es-
ou mais velhos quando mais crescidas. paços pelas crianças, assim como tornar fácil o aces-
so aôs diferentes conhecimentos, mediante a utiliza-
O contato, manipulação e uso dos brinquedos,
ção de livros, filmes, televisão, passeios e tudo aquilo
por seu lado, possibilita às crianças uma aprendiza-
que ela for capaz de criar.
gem multidisciplinar das formas de ser e pensar da
sociedade. Os brinquedos são, nesta perspectiva que No entanto, a indeterminação, a aleatoriedade, o
vimos desenvolvendo, objetos socioculturais portado- caráter ritual e simbólico da brincadeira muitas vezes
res de imagens, além das funções cognitivas e mo- ameaça o adulto, ele mesmo impossibititado de brin-
toras geralmente evocadas. Ao se apresentarem car com suas questões e problemas vitais. Talvez
como uma produção do mundo adulto dirigido as seja por isso que esses mesmos adultos não se per-
crianças, propõem a estas uma forma singular de ver mitem ter atitudes lúdicas, comunicando e atribuindo
e represeniar a realidade, assim como trazem em si significados diversos à vida e aos sentimentos no tra-
uma concepção de infância. Segundo Brougêre, um balho com as crianças. Talvez apenas os adultos que
brinquedo não é a realidade, mas uma forma de re- suportem a circulação de uma metalinguagem no co-
presentá-la. Entendidos dessa maneira, os brinque- tidiano profissional e aceitem agir com base em um
dos, sejam industrializados ou artesanais, constituem- conceito de trabalho prazeroso e criativo possam per-
se em mediadores das crianças com a sociedade e mitir-se brincar com as crianças.
também medeiam as interações entre as crianças, fa-
Além da questão relativa às atitudes dos adultos
ciltando a construção dos papéis sociais e dos siste-
parece-me que a integração entre trabalho e brincar
mas de representação, através de sua utilização nas
é, hoje, um dos maiores desafios com os quais nós,
brincadeiras.
profissionais de educação infantil, nos defrontamos.
Considerar desta forma a brincadeira e o brinque-
do na sua relação com a educação infantil impõe uma Observar e registrar as brincadeiras espontâneas
reflexão sobre as atitudes e práticas educativas nor- das crianças, suas falas e os bringuedos que inven-
malmente assumidas pelos profissionais em contato tam, assim como nossas atitudes, idéias e dificulda-
com as crianças. Implica, ademais, a elaboração de des frente a essas situações, pode ser uma forma de
um programa claro e organizado da rotina diária, do começar a modificar nossa própria prática profissional!
espaço, do tempo, das atividades, dos materiais e dos São estas algumas das idéias que podem auxiliar
brinquedos que são propostos nas creches e pré-es- a pensar, neste momento, a organização e o trabalho
colas. com as crianças em nosso país, impulsionando novos
Na mesma medida implica, ainda, uma articulação investimentos na formação dos profissionais de edu-
com as diferentes atividades e conhecimentos a se- cação infantil.

68 Cad. Pesg. n.92, fev. 1995


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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