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Este artigo tem como objetivo analisar a criação de sentidos para uma caixa de papelão
por crianças da Educação Infantil em um evento de brincadeira. A partir da Teoria
Histórico-Cultural e da Etnografia em Educação, argumentamos que a brincadeira é um
ato de criação de possibilidades de participação no grupo social e sentidos para o que
acontece na vida coletiva. Entendemos que a unidade de análise [ação/imaginação]
sintetiza a relação das crianças com o contexto da escola e outros contextos vivenciados,
com os artefatos culturais, o imaginário e as práticas sociais na criação das situações
imaginárias. Ao construírem significações de banheira, cesto, tambor, piscina de
bolinhas e estratégia de proteção contra o lobo mau na brincadeira com a caixa, as
crianças criam um enredo por meio das linguagens, ou seja, uma narração que entrelaça
os conteúdos culturais presentes no grupo ao longo do tempo e que sustenta a participação
nas relações e a interação entre elas, as professoras e a materialidade. A análise do evento
“Não é uma Caixa” permite defender a ideia de que a brincadeira cria contradições entre
o campo perceptivo, campo narrativo e o campo imaginário, ampliando as possibilidades
de ação, linguagem e relações sociais, o que impulsiona o desenvolvimento cultural das
crianças.
Palavras-Chave:
Brincadeira. Imaginação. Teoria Histórico-Cultural. Etnografia em Educação. Educação
Infantil.
Introdução
1
O livro “Não é uma caixa” (PORTIS, 2006) se baseia nas possibilidades de brincadeiras com um artefato
presente em várias culturas: a caixa de papelão. A narrativa é carregada de possibilidades imaginativas para
os/as leitores/as, pois a caixa se transforma em carro, casa, foguete. Há um diálogo estabelecido entre o
Coelho, personagem principal, e o/a narrador/a que, insistentemente nomeia o artefato cultural caixa, em
sua concretude. O Coelho, por sua vez, se apoia nessa concretude e amplia suas possibilidades por meio da
imaginação materializada em gestos. O/A leitor/a é convidado/a a acompanhar as transformações da caixa
ao longo das páginas.
processo de desenvolvimento da criança em abordagens processuais e dialógicas
(OLIVEIRA, 1996; CARVALHO e PEDROSA, 2002; CARVALHO e RUBIANO,
2004). Por outro lado, há uma linha de discussão acerca da relação entre brincadeira e
narrativa, e buscam compreender os atos de significação na produção imaginária e o que
as crianças vivenciam nessa produção (RATNER e BRUNER, 1978; (BRUNER e
SHERWOOD, 1976; BRUNER, 1983; 1990; KISHIMOTO, 2007). Nessa linha, há
estudos que estabelecem interconexão entre brincadeira e narratividade, ou seja,
compreendem a brincadeira como um relato de ações das crianças nas situações
imaginárias (como REYS, 2010; LÓPEZ, 2018; MONTES, 2020). De modo geral, o que
a revisão da produção acadêmica evidencia é uma ênfase na brincadeira das crianças com
mais de três anos e, sobretudo, o enfoque na relação entre brincadeira e aprendizagem
escolar. Há a necessidade de estudos que demonstrem a historicidade da brincadeira, ou
seja, sua gênese, transformações e, sobretudo, sua concretude nas práticas sociais nas
quais as crianças estão inseridas, a fim de oferecer fundamentos para a ideia de a
brincadeira é atividade de produção de subjetividade, significação, e, portanto, de
consciência humana em condições históricas e culturalmente situadas.
A partir dessa breve construção da revisão da produção acadêmica, podemos dizer
que os textos selecionados apresentam relatos de pesquisas sobre brincadeiras com
crianças de quatro a seis anos, demonstrando a necessidade de apresentarmos a relevância
da nossa pesquisa, com vistas a apresentar a brincadeira dessas crianças, menores de três
anos, considerando a historicidade e o desenvolvimento cultural de bebês e de crianças
bem pequenas.
Nessa direção, elencamos a teoria histórico-cultural como referencial possível
para analisarmos a brincadeira como atividade humana (VIGOSTKI, 2021) que
impulsiona o desenvolvimento das crianças, como processo complexo e dialético, um
“caminho pelo qual o social se torna individual2” (VERESOV e FLEER, 2016, p. 327).
Assim, as vivências das crianças em situações e práticas sociais de desenvolvimento
possibilitam a transformação das funções psicológicas elementares e superiores, bem
como a transformação do próprio contexto no qual as crianças estão inseridas. As
contradições e tensões no processo de desenvolvimento “existem em forma de drama,
eventos dramáticos, colisões e confrontos entre as pessoas” (VERESOV e FLEER, 2016,
p. 327).
2
Tradução nossa.
Nesse sentido, argumentamos que a brincadeira é um processo de (re)construção
permanente da significação da atividade de brincar pelas crianças (AUTORAS, 2021).
Ou seja, brincar é atividade de produção de significações e, portanto, da consciência
humana, sendo fonte do desenvolvimento cultural humano. Como mencionado, a
atividade que impulsiona esse desenvolvimento na primeira infância é a brincadeira
(VIGOTSKI, 1933/2009), uma atividade que institui a ação no meio social e a criação de
sentidos para o que acontece. A partir desse pressuposto, nossas pesquisas (AUTORAS,
2021) têm evidenciado que a brincadeira é constituída pela unidade [ação/imaginação] e
permite criar modos de participação das crianças em um grupo social por meio das
linguagens em uso nas situações imaginárias.
Ao tratarmos a [ação/imaginação] como unidade de análise da brincadeira,
estamos considerando que essa atividade forma um todo indivisível entre a criança e o
meio social. Consideramos que há uma trama de afetações que envolve as sequências
interacionais e as linguagens em uso, que integram o complexo sistema de funções
psicológicas superiores, como a percepção, a fala, o pensamento, a memória e a
imaginação. O que consiste, então, os processos de imaginação nesse sistema
interfuncional do desenvolvimento cultural humano?
Imaginação e Criação
Abordagem teórico-metodológica
Esse artigo está inserido em um Programa de Pesquisa que acompanha, por meio
de uma abordagem etnográfica, o mesmo grupo de doze bebês ao longo de três anos na
EMEI Tupi, instituição pública de Educação Infantil em Belo Horizonte, Minas Gerais.
No início de 2017, primeiro ano da pesquisa, os bebês tinham entre sete e dez meses de
idade. Ao longo dos três anos da produção do material empírico, as crianças foram
atendidas em tempo integral, entre 7h e 17h, havendo um grupo de treze professoras e
3
Concordamos com Prestes (2010) que, nesse caso, a melhor tradução do termo russo retch é fala, e não
linguagem.
duas auxiliares que foram responsáveis pelo cuidado e educação desse grupo. Dos
duzentos dias letivos de cada ano, observamos 42% em 2017, 35% em 2018 e 45% em
2019. Produzimos 897 horas de filmagens com câmera móvel, fotografias, notas de
campo e entrevistas.
O grupo de pesquisa é composto por professoras e estudantes da graduação e da
pós-graduação. Temos como objetivo geral a compreensão do processo de
desenvolvimento cultural dos bebês em um contexto coletivo de cuidado e educação.
Cada pesquisadora, em particular, investiga diferentes dimensões desse processo, tais
como imitação, brincadeira, letramentos, processo de inserção, a questão do tempo e as
relações de amizade. Ao longo da permanência das pesquisadoras na EMEI Tupi, em cada
ano, havia quatro pesquisadoras responsáveis pelo acompanhamento das crianças. Em
alguns dias, houve duas pesquisadoras juntas na turma (uma fazendo anotações e outra
realizando as filmagens). Assim, é possível que uma pesquisadora analise o material
empírico produzido pelo grupo de pesquisa, e não apenas por ela mesma.
A produção do material empírico, que hoje constitui o Banco de Dados da
pesquisa, seguiu os princípios da Etnografia em Educação em diálogo com a Psicologia
Histórico-cultural (AUTORAS). Tais princípios têm sido amplamente discutidos (por
exemplo, CORSARO, 1985; GREEN; DIXON; ZAHARLICK, 2005; ZANELLA et al.,
2007) e serão aqui apenas mencionados. São eles: (i) longa permanência em campo de
forma contínua e comprometida; (ii) as relações entre as partes e o todo; (iii) as relações
entre o local e o global; (iv) a busca pela perspectiva das pessoas pesquisadas; (v) análise
microgenética; (vi) lógica abdutiva de investigação. Cumpre destacar que a ética no
processo de investigação se baseou em um respeito incondicional à alteridade e a inteireza
dos/as bebês e das suas professoras (AUTORAS, 2021).
O evento que abre esse artigo tornou-se um evento âncora (anchor event, no
original, Agar, 1994, 2006), ou seja, um evento em que a pesquisadora que estava
filmando a turma nesse dia se surpreendeu e se perguntou sobre o que estava acontecendo
com aquelas duas meninas e de que modo aquele evento se relacionava com o conjunto
das práticas sociais do grupo. Partindo desse evento âncora, houve um processo de
imersão no Banco de dados com o objetivo responder às questões seguintes: O que
impulsionou o envolvimento das duas meninas nessa brincadeira por um longo período
de tempo? Como essa brincadeira se desenrolou? Quais sentidos as crianças atribuíram
à caixa? Qual a origem desses sentidos? A imersão no Banco de Dados envolveu quatro
momentos: i) assistir às filmagens dos três anos da pesquisa de campo; ii) realizar o
mapeamento dos eventos que envolveram caixas nos anos pesquisados; iii) transcrição
dos eventos; iii) análise microgenética dos eventos selecionados. Ressaltamos que a
análise microgenética buscou evidenciar as sequências interativas, as minúcias indiciais
(GÓES, 2000) e, ainda, as análises semânticas, ou seja, dos sentidos e significados
construídos (GÓES e CRUZ, 2006) nessa atividade das crianças.
Larissa e Simone levam a caixa para um canto da sala. Simone está dentro da
caixa e Larissa entra também, dizendo “é minha banheira.” Simone sai da banheira e diz
“vou lavar sua cabeça.” Iniciam-se movimentos de lavar o cabelo da colega, um chuveiro
imaginário é aberto, a partir de um movimento giratório da mão de Simone na porta da
sala, e uma bolinha de papel se transforma em xampu, a partir do momento em que Larissa
diz “panha” aqui, panha pa genteee!” e entrega a bolinha para Simone. Após 56
segundos, Larissa diz “mamãe”, introduzindo o tema da narrativa que atravessará todo o
evento. Ao mesmo tempo, Simone e Larissa observam a professora Rita ajudar Lúcia e
Ivan a dividirem uma caixa. Ivan tentou sentar em cima da caixa onde Lúcia se escondia.
A professora diz “cuidado/ cuidado/ para não machucar.”
O banho continua e, após enxugar Larissa com uma toalha imaginária, é a vez
de Simone entrar na banheira e ter seu cabelo lavado pela colega. Após trinta segundos,
Laís se aproxima e observa as duas meninas. O banho continua e Simone diz “mãe/
toalha/ toalha.” Ao sair da banheira, Simone olha pela porta de vidro e diz “lobo/ o lobo/
olha o lobo”, introduzindo um novo elemento na brincadeira. Larissa pega seu chinelo
rosa, dizendo “vamo/ mata ele/ vamo” e bate o chinelo na porta. As duas meninas
sorriem, colocam o chinelo na caixa e a balançam. Nesse momento, a caixa já não é uma
banheira, mas um cesto, por um breve momento.
Nesse primeiro momento, as ações, expressões faciais e falas das duas meninas
evidenciam que a caixa se transformou em uma banheira. Mais além, uma banheira que
apoia uma mãe a lavar os cabelos da filha.
De acordo com relato das professoras da EMEI Tupi, a mãe de Larissa é
cabelereira, trabalha em um salão de beleza. No ano de 2017 e 2018, identificamos que
os cuidados com o cabelo, enquanto conteúdo cultural da vivência de Larissa no âmbito
familiar, afetava e impulsionava muitas interações com outras crianças e artefatos
culturais na EMEI Tupi, além de ser um conteúdo inserido por ela nas situações
imaginárias (por exemplo, em 09/10/2018. Figura 2). Construir sentidos de pente, escova,
xampu, secador com peças de montar e frascos vazios; fazer de conta que escovava,
lavava, secava cabelos das bonecas, colegas e professoras, foram algumas das situações
construídas pela [ação/imaginação] de Larissa. Por diversas vezes em 2018, Simone
(idade?) foi a parceria dessas situações. Na figura X, por exemplo, é possível ver Larissa
(idade?) prendendo os cabelos de Simone após um processo de pentear com pente
imaginário. Notamos que a mãe de Simone utiliza vários acessórios em seus cabelos, tais
como: laços, turbantes, arcos, algo que identifica uma marca cultural em relação à turma
e que despertou interesse das outras crianças da turma.
As práticas sociais de cuidar dos cabelos fazem parte do imaginário do grupo
desde o berçário, enquanto rotina coletiva. Em 2017, filmamos momentos de pentear e
prender os cabelos das meninas, sobretudo, na própria sala de atividades. Havia um varal
na parede para guardar acessórios. Em 2018, havia frascos de xampu vazios nos cestos
de brinquedos, uma banheira rosa que em diversos eventos, compôs enredos imaginários
de dar o banho em bonecas e cuidados de higiene e beleza na própria pia da sala ou no
solário/parque. Portanto, havia uma materialidade presente no berçário que apoiou
vivências com conteúdos culturais associados a essa prática.
Dessa forma, o imaginário coletivo apoia a atividade imaginária das crianças
(FLEER, e PEERS, 2012). Há um processo de compartilhamento de práticas sociais,
como as de cuidado, de rotinas culturais, de materialidades e de relações com adultos e
entre as próprias crianças que faz emergir conteúdos culturais que são percebidos,
vivenciados e recriados na brincadeira. No ano de 2018, há eventos em que as professoras
nomeiam a ação das crianças dentro de caixas como um local do banho, como sendo uma
banheira, introduzindo o símbolo de lugar. Por outro lado, as vivências das crianças em
outros contextos sociais diversificam e ampliam os conteúdos da brincadeira das crianças
em um novo contexto coletivo. Na relação das crianças com a caixa, por exemplo, é
possível compreender como os papeis sociais de mãe e filha, as rotinas coletivas de
cuidado e as fontes materiais e simbólicas presentes na sala (as histórias que têm o lobo
como personagem) são recombinadas pela [ação/imaginação] das crianças. É essa
unidade que cria um conjunto de símbolos para as ações, uma linguagem partilhada, a
necessidade de comunicação das intenções e uma narrativa singular que sustenta a
parceria na brincadeira.
Simone aponta novamente para a porta de vidro, avisando a Larissa que o Lobo
está do lado de fora, ela levanta a toalha com a mão esquerda, e olha para o lado de fora,
como se estivesse vendo o lobo. Larissa pega o chinelo rosa e repete a ação de bater na
porta de vidro, com o intuito de espantar o lobo. Larissa pergunta “quê/ foi/ filha?” e
arrasta a caixa na direção de Simone. Simone chama Larissa: “mamãe/ mamãe” e
caminha para o outro lado da sala, sentando-se embaixo de uma prateleira. Larissa vê
onde está Simone, caminha em sua direção e também se senta ao seu lado, embaixo da
prateleira.
Nesse momento, Larissa e Simone retomam a narrativa “mãe e filha”,
entrelaçando-a com o medo do lobo que está do lado de fora da sala. Por meio da
[ação/imaginação] de que há um lobo presente na narrativa imaginada, as crianças
estabelecem um campo de sentidos de proteção por meio da caixa embaixo da prateleira.
A localização da caixa na posição em frente ao corpo conduz à associação com o
significado de proteção e também de uma rotina cultural de aproximação/evitação
(CORSARO, 2009) que vimos ser estabelecido em outros eventos ao longo de 2018. Por
meio do uso da casinha, do ninho, de cestos (Conforme evento X), dos colchonetes e da
mesa da sala de atividades ou mesmo do afastamento corporal nas rotinas de pega/pega
(AUTORAS, 2021), as crianças compartilharam diversas rotinas, com as professoras e
entre elas, de escapar do lobo, representado por outras crianças.
Argumentamos que, pela [ação/imaginação], as crianças recuperam vivências e as
reelaboram em outros contextos e com outras materialidades, em um processo de
recombinação e de novos atos de significação. A atividade de brincar, portanto, integra
outras funções culturais, como a memória, o pensamento, a percepção, a fala, a
imaginação em um sistema funcional. A atividade de brincar guia o processo de
significação e produção simbólica e, portanto, o desenvolvimento da consciência e
subjetividade humana.
Larissa e Simone viram a caixa, de ponta cabeça. Caem todos os objetos que
estavam dentro da caixa. As duas batem no fundo da caixa, como se a caixa fosse um
tambor. Neste trecho do evento, o gesto de bater com as mãos sobre a caixa e produzir
som é representativo do sentido de tambor construído nas práticas coletivas. Desde 2017,
as professoras utilizam diferentes suportes para produzir som e acompanhar cantigas e
outras rotinas culturais, incluindo o próprio tambor de brinquedo (Ver figura X). Há, no
evento, a apropriação do significado de bater sobre uma superfície com as duas palmas
da mão como produção de som e música no grupo e, ao mesmo tempo, sentidos para as
ações umas das outras com aquele artefato. O giro da caixa para o outro lado e a queda
dos materiais que estavam dentro foram ressignificados pelas linguagens em uso pelas
duas meninas. Nesse caso, o gesto de bater na caixa possibilita a continuidade da situação
imaginária com outros campos semânticos (como o tambor que produz som).
É possível analisar como a [ação/imaginação] das crianças possibilita a atividade
criadora de sentidos e de campos interativos dialógicos, (ROSSETTI-FERREIRA et al.
2004), nos quais as ações de Larissa e Simone são partilhadas e interdependentes, ou seja,
são renegociadas e redefinidas dialogicamente, como por exemplo, quando uma começa
a bater com as mãos na caixa após a outra. O campo interativo dialógico, desse modo,
reorganiza as ações umas das outras e todo o sistema de funções psicológicas, uma vez
que a [ação/imaginação] abre outras possibilidades para a caixa, ressignificada agora
como um tambor. Ao mesmo tempo, a brincadeira de produzir som de tambor possibilita
a permanência e transformações de rotinas culturais do grupo como a bandinha que insere
a materialidade sonora desde 2017 (conforme evento X), demonstrando, por meio da
[ação/imaginação], uma memória que é construída ao longo do tempo.
Larissa diz a Simone “Olha/ a/ piscina/ de/ bolinhas/ que / a /mamãe/ tousse/
para/ você!” Simone responde “O/ lobo/ mau!” Larissa empurra a caixa para frente,
jogando os objetos para fora dela. Assim que todos os objetos caem, Larissa pede a
Simone “panha”/ comigo!” Simone ajuda a pegar os objetos e colocar de volta dentro
da caixa. Larissa arrasta a caixa e retorna para debaixo da prateleira. Simone acompanha
Larissa dizendo “O/ lobo/ o lobo/ mau!” As crianças Maria e Carlos se aproximam. Maria
coloca dois chinelos dentro caixa de papelão. Larissa e Maria entram dentro da caixa e
Simone massageia suas cabeça. As três crianças sorriem. Após sair da caixa, Larissa ajuda
a Simone a entrar na banheira. Ela diz “Agora/ eu/ vô/ tomar/ banho”. Larissa pega uma
bolinha de papel e dá duas batidinhas na cabeça de Simone. Simone aponta para o outro
lado da sala e diz “o/ lobo!” Maria observa Larissa e Simone, sentada embaixo da
prateleira. Larissa diz a Simone “Vamo/ sai/ do banheiro!”, ao que Simone responde “o/
lobo/ mamãe!” Larissa, Simone e Maria carrega uma aba da caixa, no momento de ida.
Andam na outra direção da sala. Retornam para debaixo da prateleira, somente Larissa e
Simone que carregam a caixa. Maria recolhe algumas bolinhas de papel que estavam no
tatame azul e coloca dentro da caixa.
Nesse momento, Larissa introduz a significação da caixa como piscina de bolinha,
que é um presente de uma mãe para sua filha. As meninas, a partir da ação e fala de Maria,
retomam a caixa como banheira, mas também como proteção do lobo. É perceptível que
a narrativa “mãe e filha” sustenta a atividade de brincar das duas meninas.
Na continuidade do evento, Larissa repete “pixina/ de/ bolinha!” Simone entra na
piscina de bolinhas (caixa), com a ajuda de Larissa, enquanto Maria observa. Larissa entra
na piscina de bolinhas junto com Simone. Maria diz “eu/ quero/entra/ no/banheiro!”
Larissa e Simone olham para cima e Larissa diz “tá/chovendo/ tá chovendo!”, ao que
Simone repete “tá/ chovendo”. Elas colocam as duas mãos sobre a cabeça, parecendo se
protegerem da chuva.
A continuidade do evento demonstra que as ações de Larissa e Simone de
empurrar a caixa, derrubar os objetos que estavam dentro, assim como a ação de Maria
de colocar bolinhas de papel dentro da caixa, constroem sentidos de uma piscina de
bolinhas. Larissa olha a ação de Maria e diz que ali é a piscina de bolinhas. Maria não
parece compartilhar o sentido de piscina de bolinhas e retoma o campo semântico
relacionado ao banheiro.
Essa mesma turma de crianças já havia vivenciado as brincadeiras em uma piscina
de bolinhas, artefato presente no contexto do berçário em 2017 (CORTEZZI, 2017). É
importante destacarmos que a recordação dessas vivências na piscina de bolinhas do
berçário possibilitou a proposição dessa brincadeira por Larissa e Simone.
Para Vigotski (2021) na estrutura da brincadeira existem as regras que devem ser
seguidas, desse modo a satisfação é maior que os impulsos imediatos das crianças. O
autor bielorusso esclarece essa afirmação, ao retomar as ideias de Spinoza, “um afeto não
pode ser refreado nem anulado senão por um afeto contrário e mais forte que o afeto a ser
refreado” (p.229). Nesse sentido, a brincadeira opera com um plano afetivo duplo, “por
exemplo, ao brincar, a criança chora como um paciente, mas se alegra como um dos
brincantes” (p.230).
A brincadeira é uma situação imaginária que emerge do real, construída com as
emoções advindas dessas situações por meio de um enredo (LEANDRO, 2017), um
roteiro (GARVEY, 2015) ou um drama com grandes catarses. Quando as crianças
escolhem os objetos pivôs, eles suscitam emoções, e ajudam a criarem narrativas que são
próprias dos afetos dessas crianças. À medida que essa narrativa vai sendo construída, ao
longo desse evento de dezoito minutos, existe aí a possibilidade de viver esses afetos de
mãe-e-filha, ao lavar os cabelos, ao envolver em um abraço com a toalha (imaginária), ao
proteger do lobo, ao se aproximarem e se afastarem ao longo da brincadeira. O
sincronismo das duas crianças demonstra como a narrativa foi se constituindo e como os
papéis das duas crianças foram sendo apresentados.
Algumas considerações
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