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NÃO É UMA CAIXA!

TRANSFORMAÇÕES DOS SENTIDOS ATRIBUÍDOS A


UMA CAIXA DE PAPELÃO POR CRIANÇAS DE UMA TURMA DA
EDUCAÇÃO INFANTIL

Resumo: Comentado [VN1]: resumo provisório

Este artigo tem como objetivo analisar a criação de sentidos para uma caixa de papelão
por crianças da Educação Infantil em um evento de brincadeira. A partir da Teoria
Histórico-Cultural e da Etnografia em Educação, argumentamos que a brincadeira é um
ato de criação de possibilidades de participação no grupo social e sentidos para o que
acontece na vida coletiva. Entendemos que a unidade de análise [ação/imaginação]
sintetiza a relação das crianças com o contexto da escola e outros contextos vivenciados,
com os artefatos culturais, o imaginário e as práticas sociais na criação das situações
imaginárias. Ao construírem significações de banheira, cesto, tambor, piscina de
bolinhas e estratégia de proteção contra o lobo mau na brincadeira com a caixa, as
crianças criam um enredo por meio das linguagens, ou seja, uma narração que entrelaça
os conteúdos culturais presentes no grupo ao longo do tempo e que sustenta a participação
nas relações e a interação entre elas, as professoras e a materialidade. A análise do evento
“Não é uma Caixa” permite defender a ideia de que a brincadeira cria contradições entre
o campo perceptivo, campo narrativo e o campo imaginário, ampliando as possibilidades
de ação, linguagem e relações sociais, o que impulsiona o desenvolvimento cultural das
crianças.

Palavras-Chave:
Brincadeira. Imaginação. Teoria Histórico-Cultural. Etnografia em Educação. Educação
Infantil.

Introdução

Em uma tarde quente de fevereiro na Escola Municipal de Educação Infantil de


Belo Horizonte (EMEI Tupi), a professora Rita e as crianças de sua turma finalizaram
uma roda de conversa. A professora, na sequência, entregou várias caixas grandes de
papelão para as crianças. Larissa (idade) e Simone (idade), que têm dois anos de idade,
levaram uma das caixas para um canto da sala. Ao longo de dezoito minutos, por meio da
atividade de brincar, as duas meninas atribuíram diferentes sentidos à caixa (banheira,
cesto, tambor, proteção do lobo mau, piscina de bolinhas). O que impulsionou o
envolvimento das duas meninas nessa brincadeira por um longo período de tempo? Como
essa brincadeira se desenrolou? Quais sentidos as crianças atribuíram à caixa? Qual a
origem desses sentidos? Essas questões são exploradas nesse artigo, dando visibilidade à
[ação/imaginação] como unidade de análise da atividade de brincar, no desenvolvimento
cultural das crianças (VIGOTSKI, 2021).
Assim como no livro “Não é uma caixa1!” (PORTIS, 2006), a caixa de papelão
se tornou um pivô (VIGOTSKI, 2021), separando a palavra do artefato e possibilitando
que novos sentidos fossem criados pelas duas meninas. Mais além, os diferentes sentidos
atribuídos à caixa permitem a criação, por meio da [ação/imaginação], de uma narrativa
cujo tema se relaciona com os cuidados na relação entre mãe e filha, como veremos nas
próximas seções desse artigo.
No campo da Sociologia da infância, a brincadeira é compreendida como cultura
da infância, como modo de a criança se apropriar, (re)interpretar e (re)produzir
novas/velhas versões para o mundo (CORSARO, 2003; BORBA, 2009). São estudos que
priorizam aspectos de sua epistemologia, lógica, produção, projeção, rotinas culturais e
culturas de pares.
Na produção científica contemporânea, há estudos que que compreendem a
brincadeira como a forma de a criança agir no mundo (BRAGAGNOLO, RIVERO e
WAGNER, 2013; RIVERO e ROCHA, 2017), como uma atividade rica em
possibilidades para o desenvolvimento das crianças (MARCOLINO e MELLO, 2015) na
relação com outras pessoas e a materialidade e, por meio destas ações, há criação de
formas de estar no mundo (GÓES, 2000, RIVERO e ROCHA, 2017) e compartilhamento
de significados sociais (TEIXEIRA, 2013). Ou seja, trata-se de um duplo processo da
criança se inserir na cultura da qual faz parte e a constituir (BROUGÉRE, 2010). Além
disso, a brincadeira também favorece o desenvolvimento da imaginação, uma vez que as
crianças ao brincarem de diferentes temáticas podem exigir a criação de situações
imaginárias novas e complexas (MARCOLINO, 2013). Identificamos que a maioria das
perspectivas contemporâneas dos estudos da brincadeira focaliza o que as crianças
aprendem quando brincam, como essa relação acontece no currículo da Educação Infantil
(FLEER, 2019; INHELDER et al 1972; LILLARD, 2007) e como a brincadeira evolui no

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O livro “Não é uma caixa” (PORTIS, 2006) se baseia nas possibilidades de brincadeiras com um artefato
presente em várias culturas: a caixa de papelão. A narrativa é carregada de possibilidades imaginativas para
os/as leitores/as, pois a caixa se transforma em carro, casa, foguete. Há um diálogo estabelecido entre o
Coelho, personagem principal, e o/a narrador/a que, insistentemente nomeia o artefato cultural caixa, em
sua concretude. O Coelho, por sua vez, se apoia nessa concretude e amplia suas possibilidades por meio da
imaginação materializada em gestos. O/A leitor/a é convidado/a a acompanhar as transformações da caixa
ao longo das páginas.
processo de desenvolvimento da criança em abordagens processuais e dialógicas
(OLIVEIRA, 1996; CARVALHO e PEDROSA, 2002; CARVALHO e RUBIANO,
2004). Por outro lado, há uma linha de discussão acerca da relação entre brincadeira e
narrativa, e buscam compreender os atos de significação na produção imaginária e o que
as crianças vivenciam nessa produção (RATNER e BRUNER, 1978; (BRUNER e
SHERWOOD, 1976; BRUNER, 1983; 1990; KISHIMOTO, 2007). Nessa linha, há
estudos que estabelecem interconexão entre brincadeira e narratividade, ou seja,
compreendem a brincadeira como um relato de ações das crianças nas situações
imaginárias (como REYS, 2010; LÓPEZ, 2018; MONTES, 2020). De modo geral, o que
a revisão da produção acadêmica evidencia é uma ênfase na brincadeira das crianças com
mais de três anos e, sobretudo, o enfoque na relação entre brincadeira e aprendizagem
escolar. Há a necessidade de estudos que demonstrem a historicidade da brincadeira, ou
seja, sua gênese, transformações e, sobretudo, sua concretude nas práticas sociais nas
quais as crianças estão inseridas, a fim de oferecer fundamentos para a ideia de a
brincadeira é atividade de produção de subjetividade, significação, e, portanto, de
consciência humana em condições históricas e culturalmente situadas.
A partir dessa breve construção da revisão da produção acadêmica, podemos dizer
que os textos selecionados apresentam relatos de pesquisas sobre brincadeiras com
crianças de quatro a seis anos, demonstrando a necessidade de apresentarmos a relevância
da nossa pesquisa, com vistas a apresentar a brincadeira dessas crianças, menores de três
anos, considerando a historicidade e o desenvolvimento cultural de bebês e de crianças
bem pequenas.
Nessa direção, elencamos a teoria histórico-cultural como referencial possível
para analisarmos a brincadeira como atividade humana (VIGOSTKI, 2021) que
impulsiona o desenvolvimento das crianças, como processo complexo e dialético, um
“caminho pelo qual o social se torna individual2” (VERESOV e FLEER, 2016, p. 327).
Assim, as vivências das crianças em situações e práticas sociais de desenvolvimento
possibilitam a transformação das funções psicológicas elementares e superiores, bem
como a transformação do próprio contexto no qual as crianças estão inseridas. As
contradições e tensões no processo de desenvolvimento “existem em forma de drama,
eventos dramáticos, colisões e confrontos entre as pessoas” (VERESOV e FLEER, 2016,
p. 327).

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Tradução nossa.
Nesse sentido, argumentamos que a brincadeira é um processo de (re)construção
permanente da significação da atividade de brincar pelas crianças (AUTORAS, 2021).
Ou seja, brincar é atividade de produção de significações e, portanto, da consciência
humana, sendo fonte do desenvolvimento cultural humano. Como mencionado, a
atividade que impulsiona esse desenvolvimento na primeira infância é a brincadeira
(VIGOTSKI, 1933/2009), uma atividade que institui a ação no meio social e a criação de
sentidos para o que acontece. A partir desse pressuposto, nossas pesquisas (AUTORAS,
2021) têm evidenciado que a brincadeira é constituída pela unidade [ação/imaginação] e
permite criar modos de participação das crianças em um grupo social por meio das
linguagens em uso nas situações imaginárias.
Ao tratarmos a [ação/imaginação] como unidade de análise da brincadeira,
estamos considerando que essa atividade forma um todo indivisível entre a criança e o
meio social. Consideramos que há uma trama de afetações que envolve as sequências
interacionais e as linguagens em uso, que integram o complexo sistema de funções
psicológicas superiores, como a percepção, a fala, o pensamento, a memória e a
imaginação. O que consiste, então, os processos de imaginação nesse sistema
interfuncional do desenvolvimento cultural humano?

Imaginação e Criação

A definição de imaginação ou fantasia é baseada na capacidade de combinação


do nosso cérebro, ou seja, a imaginação seria a base de toda atividade criadora,
manifestando-se em todos os campos da vida cultural, “tudo o que nos cerca e foi feito
pelas mãos do homem, todo o mundo da cultura, diferentemente do mundo da natureza,
tudo isso é produto da imaginação e da criação humana que nela se baseia” (VIGOTSKI,
2018b, p.16). Nesse sentido, Pino (2006) afirma que a produção imaginária reafirma a
“capacidade criadora dos seres humanos, adquirida no processo evolutivo, que lhes
permite assumir o rumo da própria evolução. Ela constitui um dos pilares do processo de
humanização” (p. 48). A construção de novas situações no campo imaginário, por meio
da brincadeira, torna evidente a conexão entre a imaginação e o desenvolvimento da fala.
Vigotski considera que:
O processo de desenvolvimento da imaginação infantil, assim como de outras funções
psíquicas superiores, está seriamente ligado à fala3 da criança, à forma psicológica principal
de sua comunicação com aqueles que a rodeiam, isto é, a forma fundamental de atividade
coletiva social da consciência infantil (VIGOTSKI, 1932/1999, p. 123).

Ao mesmo tempo, há uma estreita relação entre a fantasia e os sentimentos, uma


vez que “o motor principal da imaginação é o afeto” (VIGOTSKI, 1932/1999, p. 124).
Dessa maneira, a imaginação é atividade psíquica complexa, formação específica
humana, intrinsecamente relacionada à atividade criadora, pois existe em interconexão
com as outras funções psicológicas superiores. Para Vigotski (2009), a imaginação é uma
atividade humana afetada pela cultura, pela fala, pelo afeto e pelo pensamento.
De acordo com Cruz (2011), a imaginação é a capacidade de produzir imagens
mentais e argumenta que, para Vigotski, os processos imaginários envolvidos na
atividade de brincar demonstram como a criança pode vivenciar situações que não seriam
possíveis na realidade e, portanto, há uma libertação das “amarras situacionais”
(VIGOTSKI, 2021, p. 222). Ocorre uma reelaboração criativa de impressões vivenciadas,
“é uma combinação dessas impressões e, baseada nelas, a construção de uma realidade
nova que responde às aspirações e aos anseios da criança. Assim como na brincadeira, o
ímpeto da criança para criar é a imaginação em atividade” (VIGOTSKI, 2018b, p.18).
Argumentamos que a brincadeira é um ato de criação de possibilidades de participação
no grupo social e sentidos para o que acontece na vida coletiva (AUTORAS, 2021). Tal
compreensão demanda abordagens de pesquisa que apreendam a historicidade e os
atravessamentos entre a [ação/imaginação] das crianças e os contextos e práticas sociais
das quais participam, como será discutido na próxima seção.

Abordagem teórico-metodológica

Esse artigo está inserido em um Programa de Pesquisa que acompanha, por meio
de uma abordagem etnográfica, o mesmo grupo de doze bebês ao longo de três anos na
EMEI Tupi, instituição pública de Educação Infantil em Belo Horizonte, Minas Gerais.
No início de 2017, primeiro ano da pesquisa, os bebês tinham entre sete e dez meses de
idade. Ao longo dos três anos da produção do material empírico, as crianças foram
atendidas em tempo integral, entre 7h e 17h, havendo um grupo de treze professoras e

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Concordamos com Prestes (2010) que, nesse caso, a melhor tradução do termo russo retch é fala, e não
linguagem.
duas auxiliares que foram responsáveis pelo cuidado e educação desse grupo. Dos
duzentos dias letivos de cada ano, observamos 42% em 2017, 35% em 2018 e 45% em
2019. Produzimos 897 horas de filmagens com câmera móvel, fotografias, notas de
campo e entrevistas.
O grupo de pesquisa é composto por professoras e estudantes da graduação e da
pós-graduação. Temos como objetivo geral a compreensão do processo de
desenvolvimento cultural dos bebês em um contexto coletivo de cuidado e educação.
Cada pesquisadora, em particular, investiga diferentes dimensões desse processo, tais
como imitação, brincadeira, letramentos, processo de inserção, a questão do tempo e as
relações de amizade. Ao longo da permanência das pesquisadoras na EMEI Tupi, em cada
ano, havia quatro pesquisadoras responsáveis pelo acompanhamento das crianças. Em
alguns dias, houve duas pesquisadoras juntas na turma (uma fazendo anotações e outra
realizando as filmagens). Assim, é possível que uma pesquisadora analise o material
empírico produzido pelo grupo de pesquisa, e não apenas por ela mesma.
A produção do material empírico, que hoje constitui o Banco de Dados da
pesquisa, seguiu os princípios da Etnografia em Educação em diálogo com a Psicologia
Histórico-cultural (AUTORAS). Tais princípios têm sido amplamente discutidos (por
exemplo, CORSARO, 1985; GREEN; DIXON; ZAHARLICK, 2005; ZANELLA et al.,
2007) e serão aqui apenas mencionados. São eles: (i) longa permanência em campo de
forma contínua e comprometida; (ii) as relações entre as partes e o todo; (iii) as relações
entre o local e o global; (iv) a busca pela perspectiva das pessoas pesquisadas; (v) análise
microgenética; (vi) lógica abdutiva de investigação. Cumpre destacar que a ética no
processo de investigação se baseou em um respeito incondicional à alteridade e a inteireza
dos/as bebês e das suas professoras (AUTORAS, 2021).
O evento que abre esse artigo tornou-se um evento âncora (anchor event, no
original, Agar, 1994, 2006), ou seja, um evento em que a pesquisadora que estava
filmando a turma nesse dia se surpreendeu e se perguntou sobre o que estava acontecendo
com aquelas duas meninas e de que modo aquele evento se relacionava com o conjunto
das práticas sociais do grupo. Partindo desse evento âncora, houve um processo de
imersão no Banco de dados com o objetivo responder às questões seguintes: O que
impulsionou o envolvimento das duas meninas nessa brincadeira por um longo período
de tempo? Como essa brincadeira se desenrolou? Quais sentidos as crianças atribuíram
à caixa? Qual a origem desses sentidos? A imersão no Banco de Dados envolveu quatro
momentos: i) assistir às filmagens dos três anos da pesquisa de campo; ii) realizar o
mapeamento dos eventos que envolveram caixas nos anos pesquisados; iii) transcrição
dos eventos; iii) análise microgenética dos eventos selecionados. Ressaltamos que a
análise microgenética buscou evidenciar as sequências interativas, as minúcias indiciais
(GÓES, 2000) e, ainda, as análises semânticas, ou seja, dos sentidos e significados
construídos (GÓES e CRUZ, 2006) nessa atividade das crianças.

Evento “Não é uma caixa!”

O evento “Não é uma caixa!” ocorreu às 14h05 de 14 de fevereiro de 2019. Em


2019, a turma era composta por 16 crianças, com mais de 2 anos de idade. As crianças
estão na sala de atividades, composta de tatame azul, quadro branco e duas mesas. A
professora Rita e a auxiliar Fabiana estão na sala. A professora Rita, na roda de conversa,
leva um “saco surpresa” para que as crianças descubram o que está dentro. A seguir, ela
propõe que as crianças façam bolinhas de papel e as joguem dentro de uma caixa de
papelão. As crianças e professora sorriem e parecem se divertir com a atividade. Como o
dia estava quente, as crianças estavam descalças.
Após essa atividade, a professora Rita disponibiliza diversas caixas de papelão
para as crianças, junto com as bolinhas de papel e coloca para tocar, no aparelho de som,
um CD com músicas infantis, enquanto a auxiliar leva uma criança de cada vez para tomar
banho. Larissa, criança branca com 2 anos e 8 meses, e Simone, criança negra com 2 anos
e 9 meses, transformam a caixa por meio de suas ações e falas, atribuindo diferentes
sentidos a esse artefato cultural, conforme sintetizado na Figura 1.
Figura 1: Processos de significação ao longo da brincadeira.

Ao longo de dezoito minutos, as crianças atribuem diferentes sentidos para a


caixa: banheira, cesto, tambor, proteção contra o lobo e piscina de bolinhas. A
transformação do artefato cultural caixa foi possível por meio da [ação/imaginação],
envovendo afetos, cognição social situada, linguagens em uso e culturas (AUTORAS,
2021). Interpretamos esses sentidos a partir dos significados sociais que construímos para
as ações e linguagens das crianças, associadas aos usos funcionais desses artefatos nas
práticas sociais do grupo desde 2017. Esse processo de transformação apoiou, bem como
se sustentou, por uma narrativa relacionada aos cuidados na relação mãe e filha. Os
diferentes sentidos foram construídos ao longo dos anos em que essa turma esteve junta
na EMEI Tupi, como evidenciado pela figura 2, a seguir. Essa figura localiza o evento
“Não é uma caixa!” na história da turma:
Piscina de bolinhas Cesto de brinquedos Caixa de papelão
02-09-2017 11-22-2017 11-30-2017

Bolinhas de papel Contação de estórias Banheira


02-19-2018 04-19-2018 10-09-2018

Não é uma caixa


2019-02-14

Nas próximas seções, analisaremos os diferentes sentidos atribuídos à caixa, a


narrativa construída e suas relações com a EMEI Tupi, contexto histórico e cultural
construído ao longo dos anos por essas crianças e suas professoras.

Não é uma caixa: é uma banheira!

Larissa e Simone levam a caixa para um canto da sala. Simone está dentro da
caixa e Larissa entra também, dizendo “é minha banheira.” Simone sai da banheira e diz
“vou lavar sua cabeça.” Iniciam-se movimentos de lavar o cabelo da colega, um chuveiro
imaginário é aberto, a partir de um movimento giratório da mão de Simone na porta da
sala, e uma bolinha de papel se transforma em xampu, a partir do momento em que Larissa
diz “panha” aqui, panha pa genteee!” e entrega a bolinha para Simone. Após 56
segundos, Larissa diz “mamãe”, introduzindo o tema da narrativa que atravessará todo o
evento. Ao mesmo tempo, Simone e Larissa observam a professora Rita ajudar Lúcia e
Ivan a dividirem uma caixa. Ivan tentou sentar em cima da caixa onde Lúcia se escondia.
A professora diz “cuidado/ cuidado/ para não machucar.”
O banho continua e, após enxugar Larissa com uma toalha imaginária, é a vez
de Simone entrar na banheira e ter seu cabelo lavado pela colega. Após trinta segundos,
Laís se aproxima e observa as duas meninas. O banho continua e Simone diz “mãe/
toalha/ toalha.” Ao sair da banheira, Simone olha pela porta de vidro e diz “lobo/ o lobo/
olha o lobo”, introduzindo um novo elemento na brincadeira. Larissa pega seu chinelo
rosa, dizendo “vamo/ mata ele/ vamo” e bate o chinelo na porta. As duas meninas
sorriem, colocam o chinelo na caixa e a balançam. Nesse momento, a caixa já não é uma
banheira, mas um cesto, por um breve momento.
Nesse primeiro momento, as ações, expressões faciais e falas das duas meninas
evidenciam que a caixa se transformou em uma banheira. Mais além, uma banheira que
apoia uma mãe a lavar os cabelos da filha.
De acordo com relato das professoras da EMEI Tupi, a mãe de Larissa é
cabelereira, trabalha em um salão de beleza. No ano de 2017 e 2018, identificamos que
os cuidados com o cabelo, enquanto conteúdo cultural da vivência de Larissa no âmbito
familiar, afetava e impulsionava muitas interações com outras crianças e artefatos
culturais na EMEI Tupi, além de ser um conteúdo inserido por ela nas situações
imaginárias (por exemplo, em 09/10/2018. Figura 2). Construir sentidos de pente, escova,
xampu, secador com peças de montar e frascos vazios; fazer de conta que escovava,
lavava, secava cabelos das bonecas, colegas e professoras, foram algumas das situações
construídas pela [ação/imaginação] de Larissa. Por diversas vezes em 2018, Simone
(idade?) foi a parceria dessas situações. Na figura X, por exemplo, é possível ver Larissa
(idade?) prendendo os cabelos de Simone após um processo de pentear com pente
imaginário. Notamos que a mãe de Simone utiliza vários acessórios em seus cabelos, tais
como: laços, turbantes, arcos, algo que identifica uma marca cultural em relação à turma
e que despertou interesse das outras crianças da turma.
As práticas sociais de cuidar dos cabelos fazem parte do imaginário do grupo
desde o berçário, enquanto rotina coletiva. Em 2017, filmamos momentos de pentear e
prender os cabelos das meninas, sobretudo, na própria sala de atividades. Havia um varal
na parede para guardar acessórios. Em 2018, havia frascos de xampu vazios nos cestos
de brinquedos, uma banheira rosa que em diversos eventos, compôs enredos imaginários
de dar o banho em bonecas e cuidados de higiene e beleza na própria pia da sala ou no
solário/parque. Portanto, havia uma materialidade presente no berçário que apoiou
vivências com conteúdos culturais associados a essa prática.
Dessa forma, o imaginário coletivo apoia a atividade imaginária das crianças
(FLEER, e PEERS, 2012). Há um processo de compartilhamento de práticas sociais,
como as de cuidado, de rotinas culturais, de materialidades e de relações com adultos e
entre as próprias crianças que faz emergir conteúdos culturais que são percebidos,
vivenciados e recriados na brincadeira. No ano de 2018, há eventos em que as professoras
nomeiam a ação das crianças dentro de caixas como um local do banho, como sendo uma
banheira, introduzindo o símbolo de lugar. Por outro lado, as vivências das crianças em
outros contextos sociais diversificam e ampliam os conteúdos da brincadeira das crianças
em um novo contexto coletivo. Na relação das crianças com a caixa, por exemplo, é
possível compreender como os papeis sociais de mãe e filha, as rotinas coletivas de
cuidado e as fontes materiais e simbólicas presentes na sala (as histórias que têm o lobo
como personagem) são recombinadas pela [ação/imaginação] das crianças. É essa
unidade que cria um conjunto de símbolos para as ações, uma linguagem partilhada, a
necessidade de comunicação das intenções e uma narrativa singular que sustenta a
parceria na brincadeira.

Não é uma caixa, olha o lobo!

Larissa e Simone continuam a brincadeira com a caixa de papelão. Após o banho


na banheira, Larissa ajuda a Simone a sair da caixa. Simone sai da caixa e diz a Larissa
“lobo/ o lobo”, olhando para a porta de vidro. Larissa e Simone carregam a caixa pela
sala, caminham em direção ao quadro branco, no tatame azul e retornam ao mesmo local
onde estavam antes, próximas à porta de vidro. Simone olha, novamente, para fora da sala
e repete “olha o lobo!”, ao que Larissa responde Vamo/ mata ele/ vão?, ela se abaixa e
pega o chinelo rosa dentro da caixa e bate com o chinelo na porta de vidro. Simone se
afasta da porta, com expressões corporais de medo do lobo. Larissa joga o chinelo rosa
dentro da caixa, olha para a Simone e as duas sorriem.
O medo do lobo emerge na brincadeira de Larissa e Simone e dá visibilidade aos
afetos que sustentam toda a imaginação. Como diz Vigotski (2003), “no jogo, na mentira
ou nas histórias, a criança encontra uma fonte inesgotável de vivências e, dessa forma, a
fantasia abre novas portas para que nossas necessidades e aspirações adquiram vida”
(p.155).
O compartilhamento de fontes simbólicas por meio da Literatura é algo que
merece destaque aqui, por representar um modo narrativo de organização de experiências
sociais onde se tem um enredo, os agentes da ação, as ações e suas consequências. Outros
autores já analisaram essa relação entre o pensamento narrativo e a brincadeira
(BRUNER, 1990; KISHIMOTO, 2007), entre o enredo literário e a origem e
transformação da imaginação das crianças na brincadeira (FLEER, 2017). Na brincadeira
com a caixa, vimos que a inserção de um personagem, o lobo, presente nas histórias
contadas pelas professoras em 2017e 2018, na materialidade dos livros de literatura e no
jogo e outras brincadeiras cantadas (como por exemplo, a brincadeira cantada “vamos
passear no bosque enquanto seu lobo não vem”) cria um campo simbólico de defesa e
perseguição ao lobo já presente no imaginário coletivo da turma. Vigotski argumenta que
não se trata, na brincadeira, de percepções de características isoladas, mas de um modo
de generalização do significado das ações que conferem sentido ao objeto (1933/2009).
A caixa, nesse momento, serviu de cesto para guardar o instrumento de “matar o lobo”, o
que altera a percepção das meninas. Ou seja, a [ação/imaginação] cria uma forma de
relação com a caixa determinada pelo sentido atribuído à caixa e também por suas
características. A [ação/imaginação] é apoiada tanto pelos sentidos atribuídos quanto pela
materialidade da própria caixa: não daria para guardar o chinelo se elas estivessem
brincando com outra coisa (uma bola, por exemplo). A concretude do artefato com o qual
se brinca também é importante. É esse agir no campo simbólico que possibilita a criação
da narrativa que reconfigura as relações das meninas com o próprio artefato como símbolo
em um grupo cultural, com o contexto da brincadeira e com as pessoas presentes.

Não é uma caixa, é um cesto!

Continuando a brincadeira, Simone tenta entrar na caixa, colocando o pé esquerdo


dentro dela, mas Larissa retira a caixa, carregando-a. Simone encosta a mão direita na
porta de vidro para não desequilibrar e cair. Larissa balança a caixa de papelão, contendo
as bolinhas de papel e os chinelos. Simone observa e pega do outro lado da caixa e
balança-a junto com a Larissa, em um movimento parecido como se fosse cestos de
brinquedos que estiveram presentes ao longo de 2017 e 2018. O olhar das duas crianças,
ao fazerem juntas o movimento de balançar a caixa, demonstra entusiasmo com o
deslocamento e com o som que os objetos produzem ao serem movimentados na caixa.
O movimento remete também a vivências com as professoras do berçário que, ao longo
de 2017, colocavam as crianças dentro desses cestos e as balançavam.
Na sala de atividades, em 2018, havia quatro cestos verdes com brinquedos que
ficavam dispostos na parede e que, após serem esvaziados diariamente, as crianças
utilizavam como carrinhos. Ao agirem com a caixa como se fosse cesto de guardar coisas,
movê-la pela sala, balançá-la de um lado para outro, as duas meninas separam o
significado do artefato em si, criando outras formas de relação com esse artefato e com o
contexto social naquele momento.
Vigotski (1933/2009) considerou essa criação como uma das formas de transição
do pensamento perceptivo para o pensamento ideativo, ou seja, uma forma de pensamento
pelas ideias e sentidos construídos sobre os objetos que, nesse caso, é possível pela
[ação/imaginação]. Tal constatação nos faz observar que a atividade criadora, ou seja, a
imaginação, constitui o desenvolvimento cultural das crianças na brincadeira ao
possibilitar formas de domínio das ações e intenções. Nesse caso, não é apenas a
percepção, mas a [ação/imaginação] que guia a atividade de produção de significação, de
imagens mentais e símbolos sociais que representam objetos.

Não é uma caixa: Olha o lobo, mamãe!

Simone aponta novamente para a porta de vidro, avisando a Larissa que o Lobo
está do lado de fora, ela levanta a toalha com a mão esquerda, e olha para o lado de fora,
como se estivesse vendo o lobo. Larissa pega o chinelo rosa e repete a ação de bater na
porta de vidro, com o intuito de espantar o lobo. Larissa pergunta “quê/ foi/ filha?” e
arrasta a caixa na direção de Simone. Simone chama Larissa: “mamãe/ mamãe” e
caminha para o outro lado da sala, sentando-se embaixo de uma prateleira. Larissa vê
onde está Simone, caminha em sua direção e também se senta ao seu lado, embaixo da
prateleira.
Nesse momento, Larissa e Simone retomam a narrativa “mãe e filha”,
entrelaçando-a com o medo do lobo que está do lado de fora da sala. Por meio da
[ação/imaginação] de que há um lobo presente na narrativa imaginada, as crianças
estabelecem um campo de sentidos de proteção por meio da caixa embaixo da prateleira.
A localização da caixa na posição em frente ao corpo conduz à associação com o
significado de proteção e também de uma rotina cultural de aproximação/evitação
(CORSARO, 2009) que vimos ser estabelecido em outros eventos ao longo de 2018. Por
meio do uso da casinha, do ninho, de cestos (Conforme evento X), dos colchonetes e da
mesa da sala de atividades ou mesmo do afastamento corporal nas rotinas de pega/pega
(AUTORAS, 2021), as crianças compartilharam diversas rotinas, com as professoras e
entre elas, de escapar do lobo, representado por outras crianças.
Argumentamos que, pela [ação/imaginação], as crianças recuperam vivências e as
reelaboram em outros contextos e com outras materialidades, em um processo de
recombinação e de novos atos de significação. A atividade de brincar, portanto, integra
outras funções culturais, como a memória, o pensamento, a percepção, a fala, a
imaginação em um sistema funcional. A atividade de brincar guia o processo de
significação e produção simbólica e, portanto, o desenvolvimento da consciência e
subjetividade humana.

Não é uma caixa, é um tambor!

Larissa e Simone viram a caixa, de ponta cabeça. Caem todos os objetos que
estavam dentro da caixa. As duas batem no fundo da caixa, como se a caixa fosse um
tambor. Neste trecho do evento, o gesto de bater com as mãos sobre a caixa e produzir
som é representativo do sentido de tambor construído nas práticas coletivas. Desde 2017,
as professoras utilizam diferentes suportes para produzir som e acompanhar cantigas e
outras rotinas culturais, incluindo o próprio tambor de brinquedo (Ver figura X). Há, no
evento, a apropriação do significado de bater sobre uma superfície com as duas palmas
da mão como produção de som e música no grupo e, ao mesmo tempo, sentidos para as
ações umas das outras com aquele artefato. O giro da caixa para o outro lado e a queda
dos materiais que estavam dentro foram ressignificados pelas linguagens em uso pelas
duas meninas. Nesse caso, o gesto de bater na caixa possibilita a continuidade da situação
imaginária com outros campos semânticos (como o tambor que produz som).
É possível analisar como a [ação/imaginação] das crianças possibilita a atividade
criadora de sentidos e de campos interativos dialógicos, (ROSSETTI-FERREIRA et al.
2004), nos quais as ações de Larissa e Simone são partilhadas e interdependentes, ou seja,
são renegociadas e redefinidas dialogicamente, como por exemplo, quando uma começa
a bater com as mãos na caixa após a outra. O campo interativo dialógico, desse modo,
reorganiza as ações umas das outras e todo o sistema de funções psicológicas, uma vez
que a [ação/imaginação] abre outras possibilidades para a caixa, ressignificada agora
como um tambor. Ao mesmo tempo, a brincadeira de produzir som de tambor possibilita
a permanência e transformações de rotinas culturais do grupo como a bandinha que insere
a materialidade sonora desde 2017 (conforme evento X), demonstrando, por meio da
[ação/imaginação], uma memória que é construída ao longo do tempo.

Não é uma caixa, é uma piscina de bolinhas, é uma banheira! E o lobo?

Larissa diz a Simone “Olha/ a/ piscina/ de/ bolinhas/ que / a /mamãe/ tousse/
para/ você!” Simone responde “O/ lobo/ mau!” Larissa empurra a caixa para frente,
jogando os objetos para fora dela. Assim que todos os objetos caem, Larissa pede a
Simone “panha”/ comigo!” Simone ajuda a pegar os objetos e colocar de volta dentro
da caixa. Larissa arrasta a caixa e retorna para debaixo da prateleira. Simone acompanha
Larissa dizendo “O/ lobo/ o lobo/ mau!” As crianças Maria e Carlos se aproximam. Maria
coloca dois chinelos dentro caixa de papelão. Larissa e Maria entram dentro da caixa e
Simone massageia suas cabeça. As três crianças sorriem. Após sair da caixa, Larissa ajuda
a Simone a entrar na banheira. Ela diz “Agora/ eu/ vô/ tomar/ banho”. Larissa pega uma
bolinha de papel e dá duas batidinhas na cabeça de Simone. Simone aponta para o outro
lado da sala e diz “o/ lobo!” Maria observa Larissa e Simone, sentada embaixo da
prateleira. Larissa diz a Simone “Vamo/ sai/ do banheiro!”, ao que Simone responde “o/
lobo/ mamãe!” Larissa, Simone e Maria carrega uma aba da caixa, no momento de ida.
Andam na outra direção da sala. Retornam para debaixo da prateleira, somente Larissa e
Simone que carregam a caixa. Maria recolhe algumas bolinhas de papel que estavam no
tatame azul e coloca dentro da caixa.
Nesse momento, Larissa introduz a significação da caixa como piscina de bolinha,
que é um presente de uma mãe para sua filha. As meninas, a partir da ação e fala de Maria,
retomam a caixa como banheira, mas também como proteção do lobo. É perceptível que
a narrativa “mãe e filha” sustenta a atividade de brincar das duas meninas.
Na continuidade do evento, Larissa repete “pixina/ de/ bolinha!” Simone entra na
piscina de bolinhas (caixa), com a ajuda de Larissa, enquanto Maria observa. Larissa entra
na piscina de bolinhas junto com Simone. Maria diz “eu/ quero/entra/ no/banheiro!”
Larissa e Simone olham para cima e Larissa diz “tá/chovendo/ tá chovendo!”, ao que
Simone repete “tá/ chovendo”. Elas colocam as duas mãos sobre a cabeça, parecendo se
protegerem da chuva.
A continuidade do evento demonstra que as ações de Larissa e Simone de
empurrar a caixa, derrubar os objetos que estavam dentro, assim como a ação de Maria
de colocar bolinhas de papel dentro da caixa, constroem sentidos de uma piscina de
bolinhas. Larissa olha a ação de Maria e diz que ali é a piscina de bolinhas. Maria não
parece compartilhar o sentido de piscina de bolinhas e retoma o campo semântico
relacionado ao banheiro.
Essa mesma turma de crianças já havia vivenciado as brincadeiras em uma piscina
de bolinhas, artefato presente no contexto do berçário em 2017 (CORTEZZI, 2017). É
importante destacarmos que a recordação dessas vivências na piscina de bolinhas do
berçário possibilitou a proposição dessa brincadeira por Larissa e Simone.
Para Vigotski (2021) na estrutura da brincadeira existem as regras que devem ser
seguidas, desse modo a satisfação é maior que os impulsos imediatos das crianças. O
autor bielorusso esclarece essa afirmação, ao retomar as ideias de Spinoza, “um afeto não
pode ser refreado nem anulado senão por um afeto contrário e mais forte que o afeto a ser
refreado” (p.229). Nesse sentido, a brincadeira opera com um plano afetivo duplo, “por
exemplo, ao brincar, a criança chora como um paciente, mas se alegra como um dos
brincantes” (p.230).
A brincadeira é uma situação imaginária que emerge do real, construída com as
emoções advindas dessas situações por meio de um enredo (LEANDRO, 2017), um
roteiro (GARVEY, 2015) ou um drama com grandes catarses. Quando as crianças
escolhem os objetos pivôs, eles suscitam emoções, e ajudam a criarem narrativas que são
próprias dos afetos dessas crianças. À medida que essa narrativa vai sendo construída, ao
longo desse evento de dezoito minutos, existe aí a possibilidade de viver esses afetos de
mãe-e-filha, ao lavar os cabelos, ao envolver em um abraço com a toalha (imaginária), ao
proteger do lobo, ao se aproximarem e se afastarem ao longo da brincadeira. O
sincronismo das duas crianças demonstra como a narrativa foi se constituindo e como os
papéis das duas crianças foram sendo apresentados.

Penso que deveríamos explorar também os momentos de aproximação e afastamento de


Sophia e Laura. Vejam se a figura abaixo faz sentido e se vale a pena colocar as imagens
correspondentes:
A [ação/imaginação], nessa rotina cultural estabelecida por Simone e Larissa,
estabelece a dialética criança-meio, linguagens e culturas. O contexto micro da sala, seus
cantos, materiais e sonoridades (boneca, caixa, as pessoas, choro de uma criança,
música?) e as afecções que ampliam ou reduzem a capacidade de agir (SPINOZA, Ética
III, Definição 3) estão imbricados nas ações e linguagens que tornam visíveis o conteúdo
cultural da brincadeira. Consideramos os movimentos de aproximação e afastamento
enquanto rotina cultural uma vez que, a convivência coletiva em um contexto de cuidado
e educação, possibilitou o compartilhamento de fontes simbólicas (sobretudo do
cancioneiro infantil e literatura) sobre medo e perigo que constituem as afecções para
agirem como se evitassem algo. A permanência de histórias de lobo mau e de brincadeira
do folclore popular que envolvem a evitação-aproximação de animais como o lobo
durante os anos de 2017 e 2018, por exemplo, instituem o imaginário coletivo que
possibilita a criação de situações imaginárias como aproximar e afastar. Por outro lado,
há outra dimensão nessa rotina que se refere a um processo de construção de um
entendimento comum acerca do gesto de afastamento e aproximação, como a posição do
corpo que desvia e o olhar que convoca, que servem de mediadores à ação de outras
crianças.
Portanto, as rotinas culturais em um grupo que compartilha o contexto de cuidado
e educação, são ressignificadas na brincadeira em um processo de permanência e
apropriação. Na pesquisa com bebês e crianças de até três anos, observamos que a
dimensões estruturais, como contextualização, embelezamento e o enquadre aos
elementos materiais (CORSARO, 2011), embora sejam relevantes para a manutenção da
situação imaginária, não sustentam, por si, o campo interativo dialógico. A
[ação/imaginação] é a menor unidade de desenvolvimento cultural no grupo, uma vez
que, criam sínteses entre as estruturas sociais, as culturas, as linguagens que expressam
significações de afastamento e aproximação e os artefatos que ativam outros conteúdos
culturais das rotinas, das práticas sociais e familiares.

Algumas considerações

A gênese de brincar na piscina de bolinhas e dos cestos de brinquedos aconteceu


em 2017, como se pode ver na figura 5. A professora da turma do berçário colocou o bebê
dentro do cesto verde de brinquedos, ela arrasta o cesto pela sala do berçário, e os bebês
ficam olhando o que acontece. O sentido atribuído ao cesto também foi uma experiência
para os bebês, ainda em 2017, no momento em que a professora balança as duas bebês
dentro de uma caixa de papelão. Em 2018, as professoras ensinam aos bebês a rasgarem
folhas de revistas e fazer bolinhas de papel. O sentido do “tomar banho” enquanto uma
brincadeira da turma, também ocorre em 2018, quando a criança Simone lava o cabelo de
Valéria, que está dentro de uma caixa de papelão. E por fim o evento “Não é uma caixa”,
em 2019, em que as vivências das crianças são demonstradas nas situações imaginárias
com a caixa de papelão, conforme sintetizado na figura 5.
A fantasia e a realidade são duas nuances de possibilidades humanas, nas quais
encontramos as vivências que nos constituem como sujeitos. A brincadeira é demarcada
como o lugar onde a criança imagina e cria situações imaginárias. Além disso, ficou Comentado [EdBTS2]: Sugiro rever a ideia de brincadeira
como lugar...ou mesmo a noção de que a fantasia e
destacado o papel de protagonistas das duas crianças, Larissa e Simone, conduzindo a realidade estão assim separadas nas vivenciais. Também a
ideia de papel de protagonista. Talvez seja o caso de
brincadeira conforme as suas vivências e as suas ações. reformular...
Larissa e Simone imaginaram e criaram novos sentidos para a caixa de papelão: Comentado [EdBTS3]: Retomar a unidade para não
separar a imaginação da criação... Precisamos reformular
i) banheira para vivenciar o banho (como parte da rotina da instituição educativa, ou por aqui para não gerar a ideia de que usam o artefato para
vivenciar... não seria a brincadeira uma vivência em si que
seu contexto familiar), ii) o cesto (ou os cestos em que os brinquedos ficavam guardados integra outras? Não consegui reformular, mas podemos
pensar juntas.
na sala de aula), iii) o uso de um tambor; iv) a piscina de bolinhas (foi muito importante
para os bebês, desde 2017). Em alguns momentos, possibilitou também a participação do
lobo mau na brincadeira das duas crianças.
A construção de sentidos para a caixa de papelão no evento são processos de
criação para o que acontece na vida coletiva em entrelaçamento com as dimensões
individuais e afetivas das crianças. A imaginação aumenta a potência de agir. Segundo
Kusonoki e Smolka (2013), ao citar Spinoza sobre a realidade ontológica e afetiva da Comentado [EdBTS4]: Sugiro não fazer uso de citações na
conclusão. Talvez trazer a noção de afeto antes, no texto, e
imaginação: homem se esforça o quanto pode para imaginar aquilo que aumenta sua já em Spinoza. Vejam o que eu trouxe antes se faz algum
sentido.
potência de agir (alegria) – (Kusonoki e Smolka, 2013, p. 207). O que as impulsiona a
Comentado [VN5R4]: sugiro reescrever
agir no campo imaginário são conteúdos culturais que as afetam e, ao mesmo tempo, as
relações e parcerias estabelecidas ao longo do tempo de convivência no grupo.
Outra dimensão fundamental da análise do evento são os processos de criação de
linguagens para comunicar intenções e sustentar a situação imaginária, bem como a
criação narrativa interligada com atos de cuidado. Os sentidos atribuídos à caixa enquanto
banheira, cesto, proteção contra o lobo, tambor, piscina de bolinha são sintetizados na
narrativa de proteção, cuidado e relações sociais entre mãe e filha. As linguagens
utilizadas por Simone e Larissa para representar a ação de lavar e enxugar os cabelos,
proteger do lobo, são atos de cuidado construídos nas relações entre mãe e filha. A
centralidade do cuidado na brincadeira das crianças já fora observada em outros trabalhos
(AUTORAS, 2021), o que dá pistas de que a brincadeira é atividade de criação de relações
humanas dialógicas, de busca do Outro e de produção de ações delimitadas pela posição,
papel e compreensão desse Outro. Não se trata, dessa forma, de uma exploração do mundo
físico e material simplesmente, mas de produção cultural e simbólica mediada pelo
imaginário coletivo.
O conceito de vivência (perejivânie) nos permite compreender a importância da
relação subjetiva entre criança e meio social, indicando a influência das circunstâncias e
dos modelos particulares de educação. As rotinas culturais coletivas do grupo, como o
uso da piscina de bolinhas, de tambor e de caixas, além das rotinas de cuidado na EMEI,
como banho, constituem conteúdos culturais para os quais as crianças buscam construir
sentidos na brincadeira.
Então podemos dizer que há, nesse evento, uma síntese no ato de brincar entre
vivências anteriores e a situação concreta estabelecida com as materialidades e pessoas
presentes no contexto da brincadeira. Isso ratifica a noção de unidade de análise teórica e
metodológica do desenvolvimento cultural que temos defendido como sendo a
[ação/imaginação]. Assim, a análise do evento “não é uma caixa” nos apresenta as
situações imaginárias das crianças, com as linguagens em uso e os sentidos e significados
atribuídos à caixa de papelão, em uma situação social de desenvolvimento.
Outros aspectos a mencionar nas conclusões: falar da narrativa como drama e
relacionar com o desenvolvimento entendido como um drama – há reorganização de
afetos na narrativa “mãe e filha”? E também mencionar o tempo prolongado da
brincadeira – um contraste com outros eventos ocorridos em 2017 e 2018.

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