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Água: elo material, socioeconômico e cultural

Sueli Aparecida de Oliveira1


Derval dos Santos Rosa2
Rubens Pantano Filho3

Danos ambientais causados pelo uso da água impactam significativamente três áreas de proteção:
a saúde humana, a qualidade dos ecossistemas e os recursos naturais (PFISTER et al., 2009; PFISTER et
al., 2011). Uma reflexão abrangente sobre a saúde humana passa pela compreensão do ecossistema, para a
qual a participação de saberes transdisciplinares é essencial. Diferentes grupos socias, com distintas
necessidades e aspirações, trarão impactos ao ecossistema e serão por ele impactados. Fatores
demográficos, socioeconômicos, sociais, culturais, políticos e históricos continuam a ser determinantes
significativos da saúde relacionada à água. Intervenções de saúde pública devem abordar as desigualdades
relacionadas a esses fatores subjacentes, a fim de alcançar a máxima eficácia (NAGATA et al., 2011).
O ponto de intercessão entre ambiente, saúde e sociedade se encontra na própria saúde do
ecossistema. A nós cabe a tarefa de buscar soluções que diminuam os impactos negativos sobre o meio, os
quais se farão sentir no bem-estar e na saúde de todos os seres vivos, especialmente pelo fato de sermos os
principais atores no processo de degradação dos ecossistemas.
Paralelamente à proteção internacional dos direitos humanos, conforme argumenta Carli (2011),
a proteção internacional do meio ambiente configura um dos grandes temas do moderno direito
internacional. A autora apresenta o direito à água como uma espécie de direito fundamental, essencial à
vida dos indivíduos, o que faz deste um direito individual, conquanto seja também um direito social,
compartilhado, necessário à saúde e lazer do grupo social, promovendo interações entre várias esferas
sociais (ecológicas, econômicas, políticas, simbólicas) (CASCIARRI e VAN AKEN, 2017). Carli (2011)
lembra ainda ser um dever humano fundamental utilizar o recuso água de forma racional. Em outra
instância, a água é também um direito difuso, uma vez que todos os seres vivos e o meio ambiente são
beneficiados. A água mesma tem seu direito à preservação universalmente reconhecido pela Declaração
Universal dos Direitos da Água4. De outro lado, o direito à utilização da água, conhecido como direito de
água, obedece a princípios jurídicos que regem seu uso.
A natureza cumpre primorosamente seu papel de regular fluxos, purificar, escoar e recargar
aquíferos, armazenando e provendo água aos ecossistemas. A transferência de água do solo para a
vegetação, desta para o ar e sua precipitação na forma de chuvas mantém em atividade o ciclo hidrológico,
ao passo em que os ecossistemas purificam a água, filtrando poluentes e decompondo resíduos orgânicos
os quais, degradados por microrganismos presentes no solo, dão origem a compostos menos prejudiciais ao
ambiente (HANSON et al., 2012).
A proteção e o restauro dos ecossistemas relacionados com a água, que incluem montanhas,
florestas, zonas úmidas, rios, aquíferos e lagos é uma das áreas de atenção apontadas nos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS), acordados e adotados pelo países membros da Organização das
Nações Unidas (ONU) no ano de 2015, como agenda mundial de desenvolvimento sustentável. Dentre os
17 ODS que compõem esta agenda, a ser cumprida até o ano de 2030, um em particular - o ODS 6 -
ambiciona assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos. Até 2030
todas as pessoas, em todos os lugares, devem ter acesso a informação relevante e conscientização sobre o
desenvolvimento sustentável e estilos de vida em harmonia com a natureza (UNITED NATIONS, 2015).

1 Doutoranda em Nanociências e Materiais Avançados pela Universidade Federal do ABC (UFABC). E-mail:
suoliv@uol.com.br
2 Doutor em Engenharia Química. Docente na Universidade Federal do ABC. E-mail: dervalrosa@yahoo.com.br
3 Doutor em Engenharia e Ciência dos Materiais. Docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de

São Paulo – campus Bragança Paulista. E-mail: rubenspantano@ifsp.edu.br


4 Declaração Universal dos Direitos da Água: redigida pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 22 de março

de 1992. Fonte: Biblioteca Virtual de Direitos Humanos – Universidade de São Paulo (USP). Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Meio-Ambiente/declaracao-universal-dos-direitos-da-agua.html>.
Acesso em 04 ago. 2019.

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Conquanto a água doce esteja presente em rios, lagos, geleiras e aquíferos, apenas cerca de 2,5%
do total de água do planeta consiste em água doce. Além disso sua distribuição é desigual, com 60%
concentrados em apenas nove países, enquanto muitos outros experimentam situações de escassez hídrica
(JACOBI e GRANDISOLI, 2017).
O conjunto de atores sociais envolvidos, aos quais cumpre implementar as medidas que levarão
ao avanço da agenda proposta nos ODS, inclui a Administração Pública, empresas, ecologistas, cientistas,
políticos, economistas, sociólogos, acadêmicos, sociedade civil, organismos governamentais e não
governamentais (CARLI, 2011). Tão importante quanto a multiplicidade de conhecimentos é a conjugação
de diversos fatores, dentre os quais a relevância da educação é primordial. A conscientização ambiental por
parte de todos os atores sociais é essencial para a sustentabilidade no uso e gestão da água (CARLI, 2011).
Experiências muito diversas são relatadas com relação à interação humana com o recurso natural
água em diferentes aspectos: funcionais, culturais, sociais ou econômicos. A água excede a sua
materialidade como recurso físico, sendo um elemento de transversalidade; como pontuam Jacobi e
Grandisoli (2017), a água comunica todos os processos celulares, está presente nos processos circulatórios
dos seres vivos e estabelece, assim, “uma mediação entre céu e terra” (JACOBI e GRANDISOLI, 2017).
E, independente da multiplicidade de contextos históricos e sociais nos quais seja estudada, é inegável sua
capacidade de criar redes e tornar-se mediadora das relações sociais em vários níveis e ao longo da história.
A água é estudada na antropologia naquilo que representa como meio de relações sociais, um instrumento
contemporâneo de poder, na discussão de bens comuns versus processos de mercantilização ou, ainda,
como questionamento à metodologia e força da interdisciplinaridade (CASCIARRI e VAN AKEN, 2017).
Os autores Casciarri e Van Aken (2017) escalonam as relações estabelecidas pela água, nas escalas
micro social (na qual ocorrem as relações entre indivíduos e um grupo que compartilha o acesso a recursos
hídricos comuns), na relação entre a escala micro social e entidades mais amplas (como o Estado), nas
relações entre estados e cidadãos, entre urbano e rural, entre atores internacionais e “subdesenvolvidos”.
Importantes linhas de conhecimento sobre a antropologia econômica da água abrangem a mercantilização,
troca e economias diversas, a ecologia política da água, a resiliência e a sustentabilidade, as instituições e
o nexo água e saúde (WUTICH e BERESFORD, 2019). A água tem a propriedade de estabelecer,
igualmente, conexões entre os elementos do ambiente a nível ecológico, mas também sociocultural. Uma
forte atividade sociocultural tem unido grupos sociais heterogêneos por meio de redes de interação e
sistemas de cooperação em diferentes sociedades (CASCIARRI e VAN AKEN, 2017). Para além de recurso
físico fundamental à vida, seus múltiplos valores - através e dentro das culturas - a tornam um veículo de
identidade cultural. As teorias do consumo da antropologia econômica, neste sentido, desafiam a forma
como os gastos com água são modelados e as hierarquias são defendidas (O’LEARY, 2019).
Em Perfect Order (2006), o antropólogo J. Stephen Lansing apresenta um estudo etnográfico
ímpar, no qual a complexa organização social hierárquica e a auto-organização da sociedade balinesa são
retratadas, tendo como elemento mediador a água que corre ao longo dos rios de Bali. A partir de uma rica
narrativa acerca da estrutura social e ecológica, que faz das plantações de arroz em Bali um estudo de caso
notável, Lansing apresenta, questiona e discute as formas de organização social que conduzem ao complexo
e equilibrado sistema socioeconômico-ambiental da ilha. Em outras palavras, Lansing apresenta as formas
pelas quais esta cultura desenvolveu, ao longo de séculos, a forma de atingir o que atualmente chamamos
de sustentabilidade.
Segundo Lansing (2006), para a tradição ocidental, o princípio de igualitarismo seria o princípio
fundamental da organização social. Conquanto a filosofia oriental - particularmente as filosofias budista e
hindu - também reconheça estes padrões e concentre-se, igualmente, na libertação do ser a partir do
entendimento das ligações a ele impostas pelo mundo material, a forma pela qual compreende as diferenças
sociais entre grupos humanos é a expressão das ações dos seres no mundo material – o conceito de karma.
Neste, a resultante material de progresso e condições de vida dos indivíduos são reflexos de suas atitudes
no mundo material e estas, por sua vez, do seu nível de consciência e engajamento com o mundo no qual
habitam e com o qual interagem.
Diferente de outras ilhas do arquipélago, Bali apresenta uma superfície montanhosa, vulcânica, o
que lhe conferiu características particulares quanto ao uso das terras agrícolas; isto se reflete, entre outros
aspectos, na forma de manejo e gestão dos recursos naturais e humanos. Em outras ilhas da Indonésia, dadas
suas condições geográficas distintas (planas e servidas por grandes rios), estabeleceram-se reinos nos quais
os habitantes locais foram submetidos aos trabalhos de terraplenagem, armazenamento de água e controle
de enchentes. Em Bali, a estrutura de organização se deu na forma de cooperação intercomunidade,
assumindo regras locais simples para o comportamento individual e tomada de decisões global, com
impactos na coletividade.

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Lansing questiona, ao longo da narrativa, a pretensa assimetria entre o igualitarismo ocidental e a
hierarquia oriental, uma vez que, a despeito da existência de líderes religiosos ou sociais nas organizações
sociais balinesas (aos quais é atribuída uma posição de primazia), entre os membros do grupo é fortemente
estimulada a prática da igualdade, verificada, inclusive, no registro verbal utilizado durante as reuniões dos
agricultores nas associações de irrigação (subaks5), de modo a garantir a dignidade pessoal e igualdade de
direitos entre todos os participantes. Tais assembleias orientam a vida social e espiritual destas
comunidades, além de questões objetivas da economia e da ecologia. A experiência de modernização destas
comunidades por impérios ocidentais não foi bem sucedida, particularmente dado o foco limitado - como
o aumento de produtividade - almejado a partir da intervenção colonial ou da completa modernização das
estruturas sociais na era pós-colonial.
As técnicas balinesas de cultivo em áreas irrigadas pressupõem princípios de governança bastante
distintos daqueles propostos pela tecnologia ocidental: os primeiros orientam-se por princípios de
cooperação entre produtores para compartilhamento do recurso natural água, que lhes garante produtividade
e manejo de pragas, ao passo que os demais perpetuam uma posição de consultores, cujos pacotes
tecnológicos devam ser aplicados segundo sua experiência prévia. Aqui, a falta de interação profunda com
os principais envolvidos no processo - os agricultores - e a falta de um olhar sistêmico, não orientado apenas
para a produção, mas para externalidades decorrentes da própria aplicação das tecnologias propostas, trouxe
à tona a fragilidade da implementação destas tecnologias, tendo os agricultores, por consequência,
retornado aos padrões empíricos que lhes garantiam melhor performance (LANSING, 2006). Como
exemplo das externalidades ambientais ocorridas, concentrações excessivas de fertilizantes (aportadas
pelos pacotes tecnológicos propostos pelos consultores ocidentais) foram detectadas nos corpos hídricos.
Isto se deve ao fato de que a característica de solos de origem vulcânica e a lixiviação destes nutrientes para
as regiões à jusante das cabeceiras dos rios proporcionava, naturalmente, a fertilização adequada aos
cultivos, sem a necessidade de uma aplicação adicional de fosfato e nitrogênio (aplicação esta que, além de
não trazer benefícios aos cultivares, ainda promovia efeitos como eutrofização e crescimento de algas nos
corpos hídricos, em função do excesso de nutrientes). Conquanto fossem convidados a conhecer as áreas
de cultivos e sua dinâmica de funcionamento, os consultores não tinham real envolvimento. Interessante
notar que, segundo pontua Lansing, mesmo para os conhecidos padrões de conduta ocidentais, a atividade
- seja industrial ou agropecuária - sofre desta mesma carência de interação, sendo apresentadas soluções de
caráter muito mais impositivo do que compartilhado, com prejuízo global de eficiência, aprendizado e
tempo.
Os estudos de Lansing tem início na década de 1990, com a finalidade de estudar sistemas
complexos. Assim, em parceria com o cientista James Kremer, ecologista de sistemas, cria um modelo
computacional de simulação do papel ecológico desempenhado pelos templos, cujo papel é de ritualizar a
gestão do recurso hídrico das associações de agricultores (subaks) para irrigação de seus campos,
organizados em rede. Acaba por tornar-se um estudo multidisciplinar, no qual arqueólogos e cientistas da
computação tomam parte. O controle da distribuição de água entre os vizinhos, evitando períodos de seca
e viabilizando o controle de pragas decorrentes da inundação de áreas em momentos determinados (entre
colheitas e próximo plantio) depende fundamentalmente da interação entre os subaks, os quais podem
chegar a duas centenas destes núcleos. O balanço ideal entre irrigação e controle de pragas depende deste
equilíbrio delicado entre o padrão pluviométrico da região e o tipo de cultivar. Verificou-se, ainda, que as
boas práticas executadas por um vizinho podem influenciar as ações futuras dos demais grupos, que podem
adotá-las na próxima estação de plantio. A funcionalidade das redes formadas pelos templos, que regulam
a distribuição e a escala de plantios, com a finalidade de otimizar o benefício do coletivo antes do individual,
consiste exatamente na sua capacidade de manutenção de um equilíbrio dinâmico e, especialmente, da
cooperação dentro da rede.
À continuação, o estudo de Lansing evolui para questões cuja ênfase se dá não mais apenas do
ponto visto ecológico, mas sim de governança dos subaks. Formas de resolução de conflitos, essenciais
para a manutenção deste equilíbrio dinâmico são registradas, analisadas e servem como fonte de
retroalimentação para os próprios líderes, cuja missão é zelar pela harmonia dos sistemas individuais e das
redes, no caso dos sacerdotes que conduzem os templos. As atividades religiosas (ou mesmo mágicas, na
percepção ocidental) nos templos, às quais os agricultores dedicam recursos financeiros e tempo, levam o
autor a concluir seu papel como promotoras da democracia nos subaks. As oferendas acontecem nos
pequenos templos em nível local (os terraços de arroz), os quais conectados aos seus vizinhos exercem-nas
nos templos em nível regional (as aldeias) e finalmente, no nível mais elevado (bacia hidrográfica), no

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Um subak é um grupo organizado de agricultores em uma pequena aldeia

3
templo do sumo sacerdote Jero Gde, representante humano da Deusa do Lago, um templo supremo,
governado por sacerdotes de mais elevado poder espiritual do que aqueles dos templos ligados aos subaks.
É compreendido como pré-requisito fundamental para a devida governança, quer do ambiente
social quer do natural, a consciência da interdependência dentro das redes (não apenas restrito a cada subak
individualmente, mas também entre diversos subaks) e, ao mesmo tempo, autodomínio. O gerenciamento
da irrigação passa então dos subaks para estruturas mais complexas que transcendem as fronteiras
individuais dos subaks e lhes dão coesão, a partir da prática da religião da água como elemento sagrado –
ou a religião de tirtha. Estes rituais do culto agrícola estabelecem um paralelo entre o crescimento dos
cultivares de arroz com o crescimento das pessoas. Eventuais rupturas na cooperação dentro desta dinâmica
referem-se à natureza da relação entre hierarquia e igualdade, posto que Bali carrega uma tradição de
instituições hierárquicas, como a divisão social em castas, determinadas desde o nascimento dos indivíduos.
Ainda que nos subaks o conceito de igualitarismo e democracia prevaleça, por vezes rivalidades motivadas
por diferenças de casta ou sentimentos de inveja (decorrentes de uma suposta disparidade em benefícios),
luta por poder, perda do autocontrole (paixões nocivas como ímpetos de medo ou ira), preguiça ou
desconfianças podem levar a tensões capazes de desestabilizar a ordem e harmonia dos subaks. Lansing
observa que os líderes devem estar atentos para propiciar a manutenção do equilíbrio entre as forças
emocionais entre seus membros, combinando as habilidades de bom orador, energia na tomada de decisões,
organização e respeito aos membros do grupo.
Em suma, tendo sido focada, ao longo de séculos, nas redes compostas pelos templos da água, a
ecologia particular da região dos terraços de plantação de arroz se expandiu para uma escala que
compreende as bacias hidrográficas locais. O meio ambiente (particularmente as formas de captação, uso,
regulação e distribuição da água entre os membros de pequenos grupos de agricultores) teve papel
preponderante na organização desta sociedade (de tradições, cultura, ritos, religiões muito diversas e
complexas, detentoras de técnicas de cultivo extremamente precisas), a tal ponto que se indaga se este
sistema auto-organizado e auto-reparador surgiu de forma espontânea ou se foi minuciosamente
arquitetado. O relato desta gestão do recurso natural água e seus impactos na vida social balinesa fornece
insights sobre o elemento natural como regulador de todo o funcionamento socioeconômico de uma
sociedade bastante organizada.
Abordando uma dinâmica social absolutamente distinta, uma análise etnográfica foi conduzida
junto a uma comunidade habitante do ambiente semiárido e densamente povoado a nordeste do Vale do
México, onde a água para consumo doméstico é um recurso escasso e bastante caro (ENNIS-MCMILLAN,
2011). Neste estudo etnográfico é apresentado o significado que, para esta comunidade, está contido na
expressão “sofrer de água”. Aqui, o sofrimento físico, para além das eventuais doenças decorrentes da
escassez de água, se traduz na variedade de lutas individuais e coletivas para obter água, para beber e
atender outras necessidades básicas. A aflição corporal associada à escassez de água, as dificuldades físicas,
emocionais e as condições sociais que limitam seu acesso a um suprimento adequado de água para uso
doméstico são a origem primeira deste sofrimento (ENNIS-MCMILLAN, 2001). Sofre-se pela falta de
provisão do recurso que, mesmo em quantidades restritas, não chega à comunidade, pelo racionamento do
uso da água nas casas, por ter que lutar e ter que correr para buscar a água entregue pelos caminhões-pipa.
E sofre-se pela falta de água para as atividades mais indispensáveis, como preparar comida e beber, pelo
desconforto físico dos banhos limitados, durante dias, ou para lavar roupas (que são, assim, levadas para
higienização em algum rio, nem sempre próximo). Este sofrimento físico, descrito pelos interagentes do
estudo, foi expresso com os termos frustração, angústia, incômodo, preocupação e raiva. Um sentimento
de injustiça pelo recebimento de quantidades inadequadas (mesmo pagando as mesmas taxas mensais pelo
recurso, que outros membros da comunidade, os quais desfrutam de maiores quantidades de água).
O´Leary (2019) relata que na Índia, em assentamentos informais e cortiços com escassez de água
em Délhi, o consumo explícito de água pelo povo não apenas aumenta seu status social e seu poder
econômico, mas também conduz a um acesso adicional à água (O'LEARY, 2019). Similarmente, a
desigualdade no acesso aos serviços de água verificada na África Subsaariana consiste, em certa medida,
em um fenômeno natural; contudo depende, principalmente, de uma construção social, de contextos
históricos do colonialismo e do pós-colonialismo, das circunstâncias socioculturais e do impacto que
normas e forças institucionais globais exercem sobre algumas políticas nacionais de gestão da água na
região.
No Senegal tem-se, de um lado, a figura do intermediador, reconhecido pelos aldeões como seu
representante para as questões referentes à circulação de água potável nos modernos sistemas de adução (o
que faz dele o “filho da aldeia”, para sempre incluído em seu tecido social), e o Estado (que opera em sua
dinâmica e lógica próprias para a distribuição de recursos). No Sudão, no contexto da pós-guerra civil, nas
Montanhas Nuba os atores que promovem a conexão entre a sociedade local e as estratégias dos

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interventores para a questão hídrica rural são as agências de cooperação internacional. Do mesmo modo,
na Etiópia, as Organizações Não-Governamentais (ONGs) e a ajuda humanitária mediam as relações entre
a sociedade pastoril e o Estado neste tema (CASCIARRI e VAN AKEN, 2017).
No Brasil, assentamentos humanos precários são condições críticas à população residente, dados
os riscos socioambientais (inundações e deslizamentos) aos quais fica exposta (JACOBI e GRANDISOLI,
2017). Comunidades ribeirinhas, em função de características como ocupação dispersa e tradição de uso de
água sem tratamento, mesmo em regiões abundantes em recursos hídricos, como a Amazônia Legal
brasileira, enfrentam desafios no acesso seguro à água. Precariedade na cobertura por saneamento básico
na região configura um dos maiores limitantes (GIATTI e CUTOLO, 2012).
A proporção de recursos hídricos utilizada por um país é afetada pelo estresse ou pela escassez
hídrica, que configuram circunstâncias de depleção do recurso água, porém em diferentes graus de
magnitude. O estresse hídrico, que pode ser representado pela razão entre o total de retiradas anuais de água
doce e a disponibilidade hidrológica em determinado ambiente (Withdrawal-to-availability - WTA), é
considerado moderado quando a taxa de retirada é de 20%, ou grave quando equivale a 40% do total
disponível naquela localidade ou bacia hidrográfica. O índice de estresse hídrico (Water Stress Index - WSI)
é utilizado para a avaliação do uso da água, e contabiliza tanto a disponibilidade quanto suas retiradas do
corpo hídrico (PFISTER et al., 2009; PFISTER et al., 2011). Em 2011, 41 países experimentaram estresse
hídrico, em comparação com 36 países em 1998 (UNITED NATIONS, 2015). A escassez de água,
entendida como a “medida em que a demanda por água se compara à reposição de água em uma área, como
uma bacia de drenagem” (ABNT NBR ISO 14046:201) afeta 40% da população mundial, tendendo a um
aumento. Assim, é urgente a implementação de medidas que assegurem retiradas sustentáveis e
abastecimento de água doce para enfrentar a escassez hídrica, reduzindo substancialmente o número de
pessoas que sofrem por esta escassez (UNITED NATIONS, 2015). Escassez pode ser ocasionada por falta
de água em qualidade adequada, por fatores econômicos (como infraestrutura inadequada, devido a
restrições financeiras ou técnicas), ou institucional, pela ausência de instituições que garantam um
suprimento confiável, seguro e equitativo de água.
Dentre os setores mais demandantes por recursos hídricos para viabilizar suas atividades figuram
a agricultura (dados os processos relativos à irrigação, pecuária e aquicultura), as indústrias e os municípios.
Atualmente, os municípios respondem por 12% da captação total de água doce, globalmente, e as indústrias
por 19%, enquanto a agricultura ocupa os 69% restantes, principalmente por meio da irrigação. Apenas 9%
dos recursos renováveis da água doce no mundo são retirados para uso nestas aplicações, o que representa
uma taxa inferior ao limite de 25% de retirada (o que define o início do estresse hídrico físico), mas esse
número consolidado mascara importantes diferenças verificadas entre regiões e mesmo dentro de países
onde há uma grande variação entre ecossistemas. Dados de 2014, do relatório da Agência Nacional das
Águas, intitulado “Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil”, dão conta de que o Brasil, por exemplo,
dispõe de 13% da água doce do planeta, mas concentra cerca de 81% da água potável na Região
Hidrográfica Amazônia, que conta com grande disponibilidade hídrica e baixa densidade demográfica (em
torno de 5% da população), em contraste com cerca de 5% dos recursos disponíveis nas regiões Sul e
Sudeste, nas quais o índice populacional é alto e as atividades agrícolas e industriais são intensas (GOMES,
2007; JACOBI e GRANDISOLI, 2017).
Dez países da Península Arábica, Norte da África e Ásia Central tiveram, por volta de 2011,
retiradas superiores a 100% dos recursos renováveis de água doce; isto significa que, neste ponto, o país
começa a esgotar seus recursos renováveis de água subterrânea, contando com água subterrânea fóssil não
renovável ou fontes não convencionais de água, como água dessalinizada, águas residuais e água de
drenagem agrícola. A escassez de água já afeta todos os continentes e dificulta a sustentabilidade dos
recursos naturais, bem como o desenvolvimento econômico e social (UNITED NATIONS, 2015). A
participação de todo o conjunto da sociedade é fundamental para que se possa harmonizar crescimento
econômico e sustentabilidade ambiental (CARLI, 2011). A escassez de água não se apresenta
exclusivamente pelas características hidrológicas, mas também pela exclusão social, em uma dinâmica
perversa na qual um fator potencializa o outro. Quando sujeitas à condição de escassez, as pessoas fazem
uso de inúmeras ferramentas para aumentar sua parcela de água, o que, por vezes, demanda - ou conduz a
- um consumo ainda maior de água. De outro lado, a urbanização intensiva aumenta a demanda pela água
e sobrecarrega os recursos hídricos com poluentes; uma infraestrutura inadequada pode agravar ainda mais
o problema, dadas as perdas de água tratada na distribuição que, em alguns contextos, pode chegar a 30%
(JACOBI e GRANDISOLI, 2017).
É preciso considerar estas disparidades na relação homem-ambiente. Os ODS tratam do apoio e
fortalecimento das comunidades locais, para melhorar a gestão da água e do saneamento, e neles é reiterado
que os meios de subsistência das pessoas mais pobres estão mais diretamente ligados aos recursos naturais

5
e, como muitas vezes vivem nas áreas mais vulneráveis, sofrem mais com a degradação ambiental
(UNITED NATIONS, 2015). Desenvolvimento, como mencionado por Carli (2010, citando Nusdeo, 2009),
se dá não somente em um determinado espaço natural, mas também em um espaço social (CARLI, 2011).

Considerações finais
A água doce, correspondente à apenas 2,5% do total de água do planeta, é o bem natural do qual
as sociedades humanas dependem para sobreviver. Sendo a água um recurso ambiental essencial à vida, a
escassez ou o uso inadequado desse recurso contribui para a degradação do ambiente, afetando, direta ou
indiretamente, a saúde, a segurança e o bem-estar da população.
Na atualidade, não obstante a declaração da ONU, em Assembleia Geral no ano de 2010, de que
ter acesso à água potável é um direito humano fundamental, ainda há muitas pessoas no planeta que não
sabem o que é possuir água tratada em suas residências. Esse recurso, tão essencial à humanidade, não se
apresenta distribuído entre os países de forma igualitária: em alguns poucos concentram-se mais da metade
do total de água doce, enquanto que em boa parte dos demais o cenário é de escassez hídrica.
Em tempos atuais, quase três quartos da água doce utilizada no mundo destina-se à agricultura,
atividade essa que consome cerca de 70% do todo, sendo que a maior parte não pode ser posteriormente
reaproveitada por se apresentar contaminada por fertilizantes e pesticidas. Dos demais 30%,
aproximadamente dois terços destinam-se aos processos industriais.
O crescente aumento populacional do planeta e o elevado índice de urbanização, em especial nos
países em desenvolvimento, são dois fatores que provocam aumento da demanda pela água. O primeiro tem
exigido maior produção agrícola e o segundo tem provocado uma sobrecarga de poluentes nos recursos
hídricos. Neste contexto é que a escassez de água se apresenta como um problema estabelecido em quase
todos os continentes. Com esse cenário mantido, em um futuro não tão distante um número muito
significativo de pessoas estará vivendo em países ou regiões com escassez absoluta de água.
Para tratar adequadamente toda esta miríade de questões relativas ao acesso justo, equitativo e
saudável ao recurso água, uma articulação robusta e ações consistentes quanto à governabilidade de
recursos hídricos e à sustentabilidade ambiental são fundamentais. Assim é que são prementes as atuações
para o equacionamento ou minimização desses graves problemas ambientais elencados. Faz-se então
necessário um conjunto de ações consistentes quanto à governabilidade dos recursos hídricos e à
sustentabilidade ambiental. Ações essas que devem ser implementadas uma vez resultantes do
amadurecimento a partir de democráticos debates nas mais variadas instâncias, conduzidos e deliberados,
conforme já pontuado, pelo conjunto dos atores - ou protagonistas? - sociais: Administração Pública,
empresas, ecologistas, cientistas, políticos, economistas, sociólogos, acadêmicos, sociedade civil,
organismos governamentais e não governamentais. É deles, ou melhor, é de todos nós, a responsabilidade
no uso e gestão da água de forma sustentável.

Referências
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