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O amor nos tempos da cólera

José Fabiano Ito


Corpo Freudiano Seção Goiânia
Setembro de 2022

A questão da liberdade, eterna que é, segue em voga. Saiu do


recôndito do martírio privado, onde mantém fincadas as suas raízes, para avançar a
sua sombra sobre o debate público. O mundo, Brasil incluído, retomou com vigor o
uso sectário das palavras direita e esquerda. Sobre o palco, uma agenda nacionalista e
ultraconservadora, de um dos lados da contenda, faz resistência à marcha
multifacetada em prol do esgarçamento das fronteiras identitárias, do outro lado.

Entre ambos os movimentos, jaz o muro erguido com as pedras


arremessadas, reciprocamente, em nome de duas ideias díspares de liberdade.

Para falar desse tema, Lacan evocou Rosseau. Em Do Contrato


Social, é dito o óbvio, de fato. Há a liberdade positiva, que é poder fazer o que se
quer, quando se quer. Rousseau, porém, advertiu: a liberdade positiva de nada vale
para o escravo.

O inferno são os outros, diria Sartre. Só há liberdade positiva se os


outros assim o permitirem. Para que um goze de liberdade, é preciso que todos os
outros – entre os quais, a confiar em Rimbaud, o nosso eu está incluído – se
abstenham de impedir. É esta a tônica do contrato social: a liberdade positiva é uma
quimera sem a abstenção de todos e de cada um de nós. Eis a importância fundante da
liberdade negativa.

Para evitar a crueza dessa denominação, as constituições democráticas


mundo afora, tributárias da advertência de Rousseau, a substituíram pela expressão
liberdade política. Sob as suas inúmeras derivações casuísticas, o que se encontra é
uma mesma norma fundamental: não escravizarás o próximo. É esse o mandamento
inspirador do direito fundamental à vida, ao voto, à liberdade de expressão, à
liberdade sexual, à liberdade religiosa, e por aí vai.

Com as constituições psíquicas, não é diferente. Pelo menos é o que


diz a psicanálise. Não há sim sem não, o negativo tem precedência lógica sobre o
positivo. Não há liberdade, de um lado, sem abstenção, do outro.

Vários exemplos disso podem ser recolhidos no repertório da


psicanálise. Para o alemão Freud, a Verdrangund, pedra de toque da teoria
psicanalítica, é também a pedra fundamental da civilização e da cultura. Do mesmo
modo, a Verneinung está na origem do pensamento. Pelo francês Lacan, foi dito que
não há nom sem non. O Nome-do-Pai, veículo de uma interdição, é estruturante da
possibilidade de desejo. A nomeação simbólica é promovida pelo pai morto.

Isso sem esquecer os ingleses Winnicot e Klein. Para o primeiro, o


luto da perda do objeto originário é o móvel da constituição do objeto transicional,
enquanto que, para a tripeira genial, a escotomização violenta da posição
esquizoparanoide lança as bases para a culpa empática da posição depressiva.

A liberdade tem diferentes e surpreendentes facetas, é o que quero


ressaltar. Em seu nome, há hoje os que defendem a desregulamentação da economia,
a redução dos direitos trabalhistas, o porte irrestrito de armas de fogo, a liberdade de
expressão ao limite das fake news, a defesa da ordem pelo extermínio daqueles
taxados marginais.

Do mesmo modo, o estandarte da liberdade está à frente dos diferentes


movimentos formados pelos que militam pela decolonização dos costumes, pela
defesa dos excluídos da globalização, pelo direito ao aborto, pela democracia de
gênero, pela descriminalização das drogas.

A antipatia colérica entre os diferentes lados é mútua. E muita. Pouca


é a lembrança da advertência de Freud de que se deve dela desconfiar.

No meio psicanalítico, aparentemente composto por uma maioria mais


à esquerda do espectro político, não tardou a surgir a acusação de que o nosso
mandatário conservador alçado ao poder estaria promovendo o afrouxamento do
recalque civilizatório.

A isso, porém, logo se seguiu um chiste em forma de indagação: mas


se for assim, não estaria ele operando do mesmo modo que a psicanálise? Instante de
ver.

Passado o tempo do riso, surgiu, ao menos para mim, a questão de o


que fazer com o imbróglio causado pelo chiste. Tempo para compreender.

Como pretenso lacaniano, meu primeiro esforço foi o de não querer


me desvencilhar depressa demais do mal-estar trazido pela incompreensão. Com o
desconforto transformado em elã, comecei pelo passo atrás, para tentar reformular a
questão a partir do que me pareceu uma possibilidade de ponto de partida: o discurso
extremado de direita seria expressão do afrouxamento do recalque ou do retorno do
recalcado?

A premissa maior do chiste, vista por esse viés, me pareceu falsa. Mas
isso ainda não era tudo. O mal-estar insistia.
Torrente de pensamentos aberta, me adveio a lição freudiana de que o
recalque não é um movimento pontual, senão um processo em marcha constante. Para
esse passo, recorri a Norbert Elias, sociólogo alemão cujo ingresso na sociedade
psicanalítica inglesa, tragicamente, foi recusado em razão de sua homossexualidade.
Em O Processo Civilizatório, lhe coube retirar consequências da tese freudiana de
que o recalque nunca se contenta com as exigências já postas.

Pictoricamente, essa ideia conduz à lembrança da metáfora freudiana


da cebola: o recalque seria a pedra de toque dessa construção constituída por camadas
que se sobrepõem tendentes ao infinito.

Elias também teorizou a partir do artigo sobre A negativa, abertamente


utilizado por ele para uma proposição. Segundo Freud, os psicanalistas, quando
dissertam sobre o impulso incestuoso recalcado, não estariam vencendo o próprio
recalque, senão dando mostra de um recalque pregnante, que se mantém impassível
mesmo diante do retorno do material recalcado à consciência. O próprio do conteúdo
recalcado é o automatismo de repetição, não o fato de ser inconsciente.

O sociólogo alemão fez uso dessa tese para tratar do processo


civilizatório. Extraio de seu livro um exemplo, dentre tantos outros ali esmiuçados.
Na baixa Idade Média, ainda era comum ver pessoas seminuas nas ruas, caminhando
para as casas de banho. Com o recrudescimento da cultura cortesã, a nudez em
público foi erradicada pelo uso de múltiplas camadas de vestimentas sobrepostas. Na
contemporaneidade, biquínis e sungas são de uso prosaico na maioria das culturas.

Mas não em todas. Eis a sua tese: a repressão pode ceder quando o
recalque já é uma realidade bem sedimentada. A civilização é um processo desigual
de sujeito a sujeito, de cultura a cultura, da direita à esquerda.

Freud foi áspero ao dizer que, se vistos pelo inconsciente recalcado,


nós humanos não passaríamos de uma malta de assassinos e estupradores. Essa
remissão joga luz sobre o que está em questão. No processo civilizatório, roupas de
banho deixariam de ser alvo de repressão quando o recalque avançou ao ponto da
nudez em público não mais induzir, ao menos como regra geral, à disputa homicida
ou à violência sexual desmedida.

Aqui está o que me interessou. A liberalização dos costumes,


especialmente os sexuais, não teria como pressuposto, necessariamente, a lassidão do
recalque.

Em alguns casos, sim, o titubeio do recalque pode estar na base de


passagens ao ato no terreno sexual. É importante que essa hipótese, fonte de
dificuldades particulares na clínica, seja isolada daquela outra de que se está tratando
aqui.
De qualquer modo, quero lançar luz sobre a possibilidade oposta. Com
efeito, há casos em que a defesa de uma maior liberalidade pode conviver com uma
extrema conscienciosidade. Nessa hipótese, o consenso do outro é condição sine qua
non para o descentramento das experimentações sexuais, numa vitória incontestável
do mandamento recalcante de que não escravizarás o próximo.

Nesse ensejo, já estamos de volta ao ponto de partida. Na clínica, o


sofrimento não aceita a classificação de direita ou esquerda. Conservadores sofrem,
desde sempre. Vide as histéricas e os obsessivos vitorianos de Freud. Mas a
desconstrução dos ícones tradicionais de sexualidade e de gênero, sendo corajosa e
criativa, não se traduz em uma diminuição inexorável do sofrimento psíquico. Não
são só os conservadores que acedem às clínicas de psicanálise.

Esse dado clínico evidente parece avalizar a tese de que os avanços na


política de costumes não estão em relação direta com o levantamento do recalque, na
medida em que o seu pressuposto pode ser o rebaixamento da repressão em razão
inversamente proporcional à densificação do recalque.

O círculo está fechado. Neste ponto, retorna, ainda mais ruidosa, a


indagação do início. Se o movimento de vanguarda dos costumes pode ser expressão
do incremento do processo civilizatório, não seria verdadeira a premissa de que o
movimento ultraconservador estaria lutando pelo afrouxamento do recalque?

Já esbocei a resposta negativa acima. Resta agora a tentativa de lhe


dar uma sustentação mais acurada.

Como dito por Freud e Norbert Elias, o recalque opera por camadas.
Não se afrouxa uma corda que ainda não apertou o seu laço. Como falar em
desfazimento do que não foi feito? Mais especificamente, não há sentido em se
postular que, numa camada determinada do processo de recalcamento, haveria uma
força em curso produzindo o afrouxamento do recalque em operação em outra
camada do processo.

Uma precisão terminológica pode ser bem-vinda aqui. Não soa


coerente o uso das expressões afrouxamento e desfazimento. Entretanto, as palavras
oposição e evitação podem ser elucidativas.

Há recalque também entre os neoconservadores, claro. Mas um


recalque com contornos específicos. A título de ilustração, se a comparação fosse
com o habitus cortesão, o contraste permitiria situar o neoliberal de hoje em uma
camada mais excêntrica do processo civilizatório de recalcamento. Prova disso é que
o nosso presidente nutre o costume, impensável para um soberano de antanho, de
desfilar de roupa de banho sobre motos aquáticas.
Contudo, quando comparado aos defensores de uma política de
liberdade de gênero e de descriminalização do aborto e das drogas, a sua pertença a
uma camada mais concêntrica desponta evidenciada.

Em suma, para o ultraconservador contemporâneo, a sua postura de


confrontação não pode ser qualificada como uma luta pelo afrouxamento do recalque.
Inclusive, se luta há, me parece que é pela perenização do próprio modelo de
recalque, por apego ao seu sintoma correlato.

Diga-se de passagem que, nesse caso, o sintoma homólogo ao


recalque em questão, visto pelo seu viés social, bem poderia ser delimitado pela ideia
lacaniana da paixão do ter. A propriedade, significante aqui revestido de importância
central, certamente pode aludir tanto à coisa como ao outro, ao passado como ao
futuro. Realmente tanto faz, desde que sobre o objeto possa operar o logro da fantasia
fetichista da propriedade.

De toda forma, se é verdade que a ontogenia repete a filogenia, como


disse Freud, esse estrato do processo civilizatório é conhecido de todos os que
partilham do estádio atual da cultura. Ou seja, todos nós. Essa lembrança pode
ressoar tão antipática quanto importante. As pedras também transportam a cólera da
esquerda para a direita.

Duplo ou não, voltemos à figura do conservador que responde hoje


por um terço do eleitorado nacional. De todo aquele que esteja fixado nessa camada,
é esperada uma conduta de defesa do seu modelo de recalque, por meio de uma
oposição ao ingresso no passo seguinte do processo civilizatório, rechaço tanto mais
forte quanto mais obscuros forem os operadores simbólicos do binômio ganho com a
mudança e perda com a fixação.

Seja como for, a ideia de oposição ao avanço do processo civilizatório


me parece mais adequada do que a de afrouxamento do recalque. Na medida do
possível, está aí a premissa maior desconstruída.

Mas o que dizer da premissa menor? E a psicanálise em meio a isso


tudo? A sua prática operaria por oposição ao recalque?

A rabugice de Freud para falar do assunto serve de falsa pista. No


Mal-estar na civilização, ele resmunga que não, ao reconhecer que a psicanálise não
tem como conter o avanço do processo civilizatório. O que lhe resta é tratar dos seus
excessos.

A distinção entre repressão e recalque, nesse diapasão, serve como um


divisor de águas. Com Freud, é possível afirmar que o recalque é uma operação de
base simbólica só possível pela via do amor de transferência. Em contrapartida, a
repressão é expressão de ódio, de si ou do outro, tanto maior quanto mais aguçado o
fracasso do meio sócio-cultural na oblação de recursos afetivos e simbólicos para a
forja de uma comunidade sintomática.

Desse modo, penso que o excesso civilizatório tem como um de seus


nomes a repressão. A partir disso, postulo a conclusão de que, se a psicanálise busca
afrouxar ou fazer oposição a algo, esse algo é eminentemente a repressão.

Quanto ao recalque, acho que não se trata, para o psicanalista, de


tomar partido a favor ou contra o avanço do processo civilizatório. A suspensão do
juízo de valor é sempre o melhor começo para a escuta do sujeito, esteja ele à direita
ou à esquerda, na fixidez ou na escansão, na queda ou no salto, em estado de gozo ou
de desejo.

Lacan costumava dizer que não se deve iludir o sujeito em análise


com a promessa de liberdade. Conselho clínico importante, sem dúvida. Por outro
lado, ele não se furtava a pensar e teorizar sobre a liberdade possível.

De sua parte, Sartre dizia que o ser humano está condenado à


liberdade, mas a teme. Por essa razão seriam tantos os que dela cedem em nome de
deus, por exemplo.

Lacan com Sartre. O diabo, assim como o desejo, é um redemoinho,


diria Riobaldo. Sigo apressado para o salto do momento de concluir. Lacan tornou
célebre, ao menos entre os psicanalistas, a definição de que amar é dar o que não se
tem, a quem não o quer. Para Sartre, apesar de condenados à liberdade, dela
abriríamos mão por medo. Seria a liberdade aquilo que não se tem e que não se quer?
Ainda assim, seria essa a direção do processo civilizatório?

Por amor, deixar o outro ir, nas palavras de Jean Allouch. Mas ao
preço de que novos sintomas? Disso pouco sei, a não ser que não há ponto de partida
ou de chegada, na melhor das hipóteses. A estória dirá sobre a deriva. Melhor é
escutar.

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