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NÚMERO 223 DA COLEÇÃO ARGONAUTA

JAMES WHITE

A Grande Operação

TRADUÇÃO DE EURICO FONSECA

EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL» LISBOA

Título da edição original:

MAJOR OPERATION

CAPA DE MANUEL DIAS

Copyrigth © 1971 by James White

INTRODUÇÃO

A Grande Operação («Major Operation») é o último volume da trilogia de James White,


formada também por Hospital no Espaço e Médico Espacial, publicados na coleção
«Argonauta» com os números 214 e 220. Mais uma vez, o cenário é o Hospital Geral do
Sector Doze da Galáxia, uma enorme estrutura, com centenas de pisos, construída no
espaço, na periferia galáctica, e onde são reproduzidos os ambientes das centenas
de mundos da Federação, habitados por seres inteligentes

É uma novela do futuro —de um futuro distante. Mas é também um prodígio de engenho
e lógica, em que o Médico-Chefe Conway e o Major O'Mara, mais uma vez, são os
símbolos da inventiva de um autor ímpar, quer na sua originalidade, quer num
impecável manejo da ciência e da técnica. Esclareça-se que James White é, ele
próprio, um médico, e compreender-se-á muito do que se lê nas suas novelas.

INVASOR

Muito longe, na Periferia da Galáxia, onde os sistemas estelares estavam muito


dispersos e as trevas eram quase absolutas, a tremenda estrutura que era o
Hospital-Geral do Sector Doze estava suspensa no espaço. Dentro dos seus trezentos
e oitenta e quatro pisos encontravam-se reproduzidos os ambientes de todas as
formas de vida inteligentes conhecidas da Federação Galáctica, um espectro
biológico que ia das espécies de metana, ultrafrígidas até aos tipos mais normais,
respiradores de oxigénio ou cloro, e daí aos seres mais exóticos que existiam
graças à conversão direta das radiações mais penetrantes. Além dos pacientes, cujo
número e classificação fisiológica eram uma variável constante, havia o pessoal
médico e manutenção composto por cerca de sessenta formas de vida diferentes, com
outros tantos conjuntos diferentes de maneirismos, odores corporais e maneiras de
olhar a vida.

O pessoal do Geral do Sector era um grupo de pessoas extremamente capaz, dedicado,


mas nem sempre sério, que se mostrava fantasticamente tolerante em relação a todas
as formas de vida inteligente — se assim não fosse nunca poderiam atuar num
hospital multiambiental. Tinham orgulho em nenhum caso ser demasiado grande,
demasiado pequeno ou demasiado desesperado, e as instalações de que dispunham e a
sua reputação profissional não tinham par. Era inimaginável que uma delas pudesse
ser culpada de quase matar um paciente por puro desleixo.

— Sem dúvida que é impensável — disse com secura o Psicólogo-Chefe, O’Mara. — Estou
a pensar nisso, relutantemente, e você também está a pensar... mesmo que apenas por
um momento. Mas muito pior é o facto de Mannen estar convencido da sua própria
culpa. Isso deixa-me sem outra alternativa...

— Não! — disse Conway, com uma forte emoção a sobrepor-se ao seu respeito usual
pela autoridade. — Mannen é um dos melhores superiores que temos... e você sabe
disso! Ele não seria capaz... Quero dizer, ele não pertence ao tipo... Ele é...

— Um bom amigo seu — concluiu O’Mara, com um sorriso. Conway não respondeu e ele
prosseguiu: — Pode ser que eu não goste tanto de Mannen como você, mas o
conhecimento profissional que tenho dele é muito mais pormenorizado e objetivo. De
modo que há dois dias eu não o teria julgado capaz de fazer tal coisa. Mas agora,
que diabo, preocupa-me o comportamento incaracterístico...

Conway compreendia aquilo. Como Psicólogo-Chefe, a principal preocupação de O’Mara


era a suave e eficiente atuação do pessoal médico do hospital, mas manter em
harmonia tantas formas de vida diferentes e possivelmente antagónicas era uma
tarefa muito grande, cujos limites, como os da autoridade de O'Mara, eram difíceis
de definir. Mesmo tendo em conta as mais altas qualidades de tolerância e respeito
mútuo no pessoal, ainda havia ocasiões em que ocorriam atritos.

Situações potencialmente perigosas nasciam da ignorância ou da incompreensão, e uma


criatura podia adquirir uma neurose xenofóbica capaz de afetar a sua eficiência, a
estabilidade mental ou ambas as coisas. Por exemplo: um médico humano-terrestre que
tivesse um medo inconsciente das aranhas não seria capaz de se comportar em
presença de um paciente Cinrusskino com o grau de alheamento clínico necessário
para o tratamento. Era dever de O’Mara detetar e eliminar esses problemas, ou
retirar os indivíduos potencialmente prejudiciais. Essa vigilância contra as ideias
erradas, doentias ou intolerantes era um dever que ele cumpria com tal zelo que
Conway já ouvira falar dele como se fosse um Torquemada moderno.

Agora parecia que aquele psicólogo ímpar não fora suficientemente vigilante. Em
psicologia não há efeitos sem causa e O’Mara devia pensar agora que ignorara
qualquer sinal de aviso, pequeno mas vital —uma palavra ligeiramente
incaracterística ou qualquer expressão ou reação nervosa — que o teria prevenido do
problema que se estava a criar com o Médico-Chefe Mannen.

O psicólogo recostou-se na cadeira e fitou Conway com um par de olhos cinzentos que
viam tanto e que se abriam para um espírito tão finamente analítico que, em
conjunto, davam a O’Mara o que correspondia a uma faculdade telepática. Ele disse:

— Sem dúvida que está a pensar que perdi o domínio da situação. Tem a certeza de
que o problema de Mannen é na essência psicológico e que há outra explicação além
da negligência para o que aconteceu. Pode concluir que a recente morte do cão dele
o levou a perder a cabeça, de dor, e outras ideias de natureza igualmente
complicada e ridícula podem ocorrer-lhe. Entretanto, em minha opinião, todo o tempo
despendido em investigar os aspetos psicológicos deste caso serão completamente
perdidos. O Doutor Mannen tem sido sujeito aos exames mais exaustivos, É
fisicamente são e tem tanto juízo como qualquer de nós. Pelo menos tem tanto como
eu...

— Obrigado — disse Conway.


O’Mara prosseguiu num tom amargo:

— Continuo a dizer-lhe, doutor, que o meu trabalho é encolher cabeças e não inchá-
las. A sua missão, se lhe podemos dar esse nome, não é de modo algum oficial. Como
não há nenhuma desculpa para o erro de Mannen, pelo que diz respeito à saúde e ao
psicoperfil, preciso que procure qualquer outra razão... talvez qualquer influência
externa, de que o doutor não tenha consciência. O Doutor Prilicla observou o
incidente em questão e pode auxiliá-lo.

«Tem um espírito peculiar, doutor, e uma maneira invulgar de olhar os problemas»,


concluiu O’Mara, erguendo-se da cadeira. «Não queremos perder o Doutor Mannen, mas
se conseguir livrá-lo deste problema é provável que eu morra de surpresa. Digo-lhe
isto para que você tenha um incentivo adicional...»

Conway saiu do gabinete, um pouco mal humorado. O’Mara andava sempre a atirar-lhe à
cara o seu suposto espírito peculiar, quando a simples verdade era a de que ele se
sentira tão acanhado quando entrara pela primeira vez no hospital, em particular
com as enfermeiras da sua própria espécie, que se sentira muito mais à vontade na
companhia dos extraterrestres. Já não era acanhado, mas ainda contava mais amigos
entre os estranhos e maravilhosos cidadãos de Traltha, Illensa e duas dezenas de
outros sistemas que entre seres da sua própria espécie. Isso podia ser peculiar — o
próprio Conway o admitia — mas para um médico vivendo num hospital multiambiental,
era uma grande vantagem.

Uma vez no corredor, Conway contactou Prilicla na enfermaria dele, verificou que o
pequeno empata estava livre e combinou uma reunião a realizar tão depressa quanto
possível no Piso Quarenta e Seis, onde estava situada a sala de operações dos
Hudlarianos. Depois ele devotou uma parte do seu espírito ao problema de Mannen
enquanto os outros o guiavam para o Quarenta e Seis e evitavam que ele fosse pisado
esmagado no caminho.

A sua braçadeira de Médico-Chefe abria-lhe caminho automaticamente no que dizia


respeito aos enfermeiros e médicos subordinados, mas havia encontros contínuos com
os altaneiros e distraídos Diagnosticadores, que abriam caminho através de toda a
gente e todas as coisas, sem se importarem com o que pudesse acontecer, assim como
com os membros mais novos do quadro do pessoal que pertenciam às espécies de
maiores dimensões. Como os Tralthanos, com a classificação fisiológica de FGLI—
respiradores de oxigénio, de sangue quente, recordando uma espécie de elefante
rebaixado e com seis pernas. Ou os DBLF Kelgianos, que eram gigantescas lagartas
com pêlo prateado e que uivavam como sereias quando eram empurrados, fosse por um
superior ou não fosse, ou ainda os ELNT semelhantes a caranguejos, de Melf IV...

A maioria das espécies inteligentes da Federação eram respiradoras de oxigénio,


ainda que as suas classificações fisiológicas variassem enormemente, mas um perigo
muito maior para a navegação a pé era as entidades que atravessavam os pisos
estranhos, envergando armaduras protetoras. A proteção exigida para um médico TLTU,
que respirava vapor sobreaquecido e cujas exigências de pressão e gravidade eram
três vezes maiores que as dos pisos de oxigénio, era uma enorme e barulhenta
engenhoca que tinha de ser evitada a todo o custo.

Na comporta da intersecção seguinte, Conway vestiu um fato ligeiro e entrou no


mundo amarelado e nebuloso dos Illensanos, respiradores de cloro. Aí os corredores
estavam cheios de cidadãos Illensanos, finos como palitos, membranosos e sem
adornos, enquanto os Tralthanos, Kelgianos e humanos terrestres como ele usavam (e
por vezes conduziam) armaduras protetoras. A parte seguinte do seu trajeto levou-o
através do vasto tanque onde as criaturas de nove metros de comprimento,
respiradoras de água, de Chalderescol II, nadavam pesadamente através do seu mundo
verde e quente. O mesmo fato servia-lhe para essa secção e, ainda que o tráfego
fosse muito menos denso, viu-se consideravelmente demorado por ter de nadar, em vez
de caminhar. Apesar disso, chegou à galeria de observação do piso Quarenta e Seis,
com o fato ainda a escorrer água de Chalder, exatamente quinze minutos depois de
sair do gabinete de O’Mara, e Prilicla chegou pouco depois dele.

— Bom dia, amigo Conway — disse o pequeno empata enquanto saltava para o teto e ali
se segurava com as suas seis frágeis pernas com ventosas nas extremidades. Os
trinados e estalidos musicais da sua fala Cinrusskina foram recebidas pelo Tradutor
de Conway, transmitidas ao tremendo computador no centro do hospital e
retransmitidas ao seu auricular num inglês átono, despido de qualquer emoção. A
tremer ligeiramente, o Cinrusskino prosseguiu:— Sinto que precisa de ajuda, doutor.

— Sim, sem dúvida — disse Conway, com as suas palavras a passarem através do mesmo
processo de Tradução e a chegar a Prilicla num Cinrusskino igualmente átono. — É
sobre Mannen. Não tive tempo de lhe dar pormenores quando lhe falei...

— Não é necessário, amigo Conway — disse Prilicla.— O «jornal interno» mostrou-se


mais eficiente do que nunca no caso Mannen. É evidente que quer saber o que vi e
senti.

— Se não se importa — disse Conway.

Prilicla confirmou que não tinha importância. Mas o Cinrusskino era não só a
criatura mais agradável de todo o hospital mas também o maior mentiroso que lá
havia.

Com a classificação fisiológica GLNO — semelhante a um inseto, com um exosqueleto,


seis pernas muito finas e um par de asas irisadas e nada atrofiadas, e sendo
possuidor de uma faculdade empática altamente desenvolvida, só em Cinruss, com a
sua gravidade oito vezes menos intensa que a da Terra, podia uma espécie de insetos
ter-se desenvolvido até aquele tamanho e, a seu tempo, ter desenvolvido
inteligência e uma alta civilização. Mas, no Geral do Sector, estava num perigo
mortal durante a maior parte do seu dia de trabalho. Tinha de usar dispositivos de
anulação de gravidade em toda a parte fora dos seus aposentos porque a atração
gravitacional tê-lo-ia esmagado instantaneamente, e quando Prilicla conversava com
alguém colocava-se fora do alcance de qualquer movimento impensado de braço ou
tentáculo que pudesse esmagar o seu frágil corpo ou lhe arrancasse uma perna.
Quando acompanhava alguém em rondas mantinha-se usualmente a seu lado deslocando-se
ao longo das paredes do corredor ou do teto, para evitar essa mesma sorte.

Ninguém queria magoar Prilicla de qualquer forma — gostavam muito dele para lhe
fazerem tal coisa. A faculdade empática de Prilicla fazia com que a pequena
criatura dissesse e fizesse sempre o que era correto para as pessoas — sendo uma
criatura sensível às emoções alheias, se procedesse de outro modo os sentimentos de
fúria ou tristeza que uma sua ação impensada pudesse inspirar faria ricochete e,
por assim dizer, iria bater-lhe na cara. Portanto o pequeno empata era obrigado
constantemente a mentir e a ser bondoso e considerado, para tomar a radiação
emocional das pessoas à sua volta tão agradáveis para ele próprio quanto possível.

Exceto quando os seus deveres profissionais o expunham a dores e violentas emoções


num paciente, ou ele queria ajudar um amigo.

Exatamente antes de Prilicla começar o seu relatório, Conway disse:

— Não estou certo do que na verdade procuro, doutor. Mas se se recordar de qualquer
coisa invulgar sobre as acções ou emoções de Mannen, ou dos seus subordinados...

Com o seu frágil corpo a tremer com a memória da tempestade emocional que emanara
dois dias antes da sala de operações Hudlariana, agora vazia, Prilicla descreveu a
cena desde o princípio da operação. O pequeno GLNO não tomara a gravação de
fisiologia Hudlariana e portanto não fora capaz de acompanhar o processo com
qualquer comparticipação no estado do doente, que, de resto, estivera anestesiado e
quase não radiara. Mannen e os seus auxiliares tinham-se concentrado no seu
trabalho e só uma pequena parte dos seus espíritos ficara livre para pensar ou se
emocionar sobre qualquer outra coisa. Depois, o Médico-Chefe Mannen tivera o seu...
acidente. Aliás — e para dizer a verdade — tinham sido cinco acidentes separados e
distintos.

O corpo de Prilicla começou a tremer violentamente e Conway disse:

— L...Lamento muito!

— Sei que fala verdade — disse o empata, e voltou ao seu relato.

O paciente fora parcialmente descomprimido para que o campo operativo pudesse ser
tratado de uma maneira mais eficiente. Havia nisso um certo perigo, considerando o
ritmo do pulso dos Hudlarianos e a pressão sanguínea, mas o próprio Mannen
imaginara o método e portanto era perfeitamente capaz de avaliar os seus riscos.
Como o paciente fora descomprimido ele tinha de trabalhar com rapidez, e a
princípio tudo pareceu correr bem. Abrira uma aba da couraça flexível que os
Hudlarianos possuíam, em lugar da pele, e estancara a hemorragia subcutânea. Fora
então que ocorrera o primeiro erro, seguido imediatamente por outros dois. Prilicla
não podia afirmar pela observação que tivessem sido verdadeiros erros, ainda que
houvessem hemorragias consideráveis — tinham sido as reações emocionais de Mannen,
das mais violentas que o empata alguma vez sentira, que lhe tinham mostrado que o
cirurgião cometera um erro muito sério e estúpido.

Os intervalos entre os outros dois que se haviam seguido tinham sido maiores — o
trabalho de Mannen tomara-se drasticamente mais lento, a sua técnica assemelhara-se
às primeiras tentativas desastradas de um estudante, longe de ser a de um dos mais
hábeis operadores do hospital. Tomara-se tão lento que a cirurgia curativa
resultara impossível e mal tivera tempo para desistir e fazer voltar a pressão ao
seu valor normal antes de o estado do doente se deteriorar até se tornar
irremediável.

Foi muito triste — disse Prilicla, sempre a tremer violentamente. — Ele queria
trabalhar depressa, mas os erros anteriores tinham destruído a confiança que ele
tinha em si próprio. Pensava duas vezes antes de fazer as coisas mais simples,
coisas que um cirurgião com a sua experiência teria feito automaticamente, sem
pensar.

Conway ficou silencioso durante um momento, a pensar na horrível situação em que


Mannen se devia ter visto. Depois disse

— Houve mais qualquer coisa invulgar nas sensações dele? Ou nas dos assistentes?

Prilicla hesitou, e depois disse:

— É difícil isolar variantes subtis de emoção quando a fonte está a irradiar... tão
violentamente. Mas recebi a impressão de que... o efeito é tão difícil de
descrever... qualquer coisa com um fraco eco emocional, de duração irregular...

— Possivelmente a gravação Hudlariana — disse Conway. - Não é a primeira vez que


uma gravação fisiológica me dá uma dupla visão mental.

— Talvez seja isso— disse Prilicla. A resposta, numa criatura que estava invariável
e entusiasticamente de acordo com tudo quanto se lhe dizia, situava-se tão perto de
uma negativa quanto era possível a um empata. Conway começou a sentir que talvez
estivesse a chegar a alguma coisa importante.
— E os outros?

— Dois deles irradiavam a combinação de choque-preocupação-medo, que indica uma


experiência traumática média num passado recente. Eu estava na galeria quando ambos
os incidentes ocorreram, e um deles deu-me um abalo de tal ordem...

Uma das enfermeiras quase tivera um acidente ao pegar num tabuleiro com
instrumentos. Um deles, um escalpelo Hudlar Tipo Seis, longo, usado para abrir a
couraça incrivelmente dura das criaturas daquela espécie, escorregara e caíra por
qualquer razão. Mesmo uma pequena ferida perfurante ou incisa era uma coisa muito
séria para um Kelgiano, de modo que a enfermeira Kelgiana apanhara um grande susto
ao ver aquela lâmina tão perigosa a cair sobre o seu flanco desprotegido. Mas,
fosse como fosse, ele batera de tal maneira — era difícil saber como, considerando
a sua forma e falta de equilíbrio — que não penetrara na sua pele nem sequer
danificara os seus pêlos. A Kelgiana sentira-se aliviada e agradecida pela sua boa
sorte, mas ficara um pouco perturbada, apesar de tudo.

Conway disse:

— Imagino... Provavelmente a Enfermeira-Chefe leu o livrinho de histórias. Os erros


pequeninos tomam-se em grandes crimes quando se trata de assistentes numa
operação...

As pernas de Prilicla começaram a tremer de novo, um sinal de que se estava a


enervar perante o esforço de ser ligeiramente desagradável. Disse:

— A pessoa em questão era a Enfermeira-Chefe. Foi por isso que, quando a outra
enfermeira se enganou numa contagem de instrumentos (ou houve um a mais ou um a
menos) que o resultado foi um pouco abafado. E durante ambos os incidentes detetei
o efeito do eco irradiado por Mannen, ainda que nesse caso o eco viesse das
enfermeiras.

— Pode ser que isso signifique alguma coisa! — disse Conway, excitado. — As
enfermeiras tinham qualquer contacto físico com Mannen?

Prilicla respondeu:

— Estavam a assisti-lo, e toda a gente usava fatos de proteção. Não vejo como
qualquer forma de vida parasitária ou bactéria podia ter passado entre eles, se é
essa a ideia que o está a tomar tão excitado e esperançado neste momento. Lamento
muito, amigo Conway, mas esse efeito de eco, ainda que peculiar, não me parece
importante.

É qualquer coisa que eles tinham em comum — disse Conway.

Sim — respondeu Prilicla. — Mas uma coisa que não tinha identidade própria, que não
era um indivíduo. Só um ligeiro eco emocional das sensações das pessoas
participantes.

Três pessoas tinham sofrido acidentes ou cometido erros naquela sala, dois dias
antes, e todas tinham irradiado um estranho eco emocional que Prilicla não
considerava importante. Conway pôs de parte a ideia de um desastrado, porque
métodos de triagem de O’Mara eram demasiado eficientes esse aspeto. Mas supondo que
Prilicla se enganara e alguma coisa entrara na sala ou no hospital, qualquer forma
de vida que fosse difícil de detetar e estivesse para além da sua experiência
presente... Era bem sabido que quando aconteciam coisas estranhas no Geral do
Sector, as razões eram, mais das vezes, encontradas fora do hospital. De momento,
no entanto, ele não tinha provas suficientes para formar sequer uma vaga teoria e a
primeira coisa que tinha a fazer era arranjar uma qualquer— mesmo pensando que
talvez não desse conta dela mesmo que tropeçasse nela com os dois pés.

— Tenho vontade de comer e já é tempo de falarmos ao homem — disse Conway,


subitamente. — Vamos procurá-lo e convidá-lo para almoçar.

O refeitório do pessoal Médico e de Manutenção respirador de oxigénio ocupava um


piso completo, e em tempos fora dividido em tipos fisiológicos por cordas
estendidas. Mas isso não dera muito bons resultados porque os comensais gostavam
frequentemente de falar de questões de trabalho com colegas de outras espécies, ou
verificavam que não havia espaços vagos nas suas divisões, enquanto abundavam nos
de outras formas de vida. Portanto não se surpreenderam quando verificaram que
tinham de escolher entre se sentarem a uma enorme mesa Tralthana, com bancos um
pouco afastados do bordo da mesa e um no sector Melfano, que era mais confortável,
mas cujos bancos pareciam cestos de papéis surrealistas. Insinuaram-se em três
deles e começaram a dar as suas ordens para o almoço.

— Hoje sou simplesmente eu — disse Prilicla, respondendo a Conway. — O costume, se


fizer favor.

Conway marcou o costume que era uma dose tripla de esparguete terrestre, e depois
olhou para Mannen.

— Tenho um FROB e uma besta MSVK em cima de mim — disse o outro chefe, por entre os
dentes. — Os Hudlarianos não são muito esquisitos com a comida, mas esses malditos
MSVK ofendem-se com tudo que não pareça alpista! Arranja-me qualquer coisa
nutritiva, mas não me digas o que é e mete tudo em três sanduíches, para eu não ver
o que é...

Enquanto aguardavam que a comida chegasse, Mannen falou calmamente, a normalidade


do seu tom denunciada pelo facto de a sua radiação emocional estar a fazer Prilicla
tremer como uma folha. Ele disse:

— O «jornal dos corredores» diz que vocês estão a tentar livrar-me deste sarilho
onde me meti. Muito obrigado, mas estão a perder o vosso tempo.

— Não pensamos isso, nem O’Mara — disse Conway, fugindo consideravelmente à


verdade. — O’Mara considera-o de boa saúde mental e física e diz que o seu
comportamento foi extremamente incaracterístico. Deve haver qualquer explicação,
qualquer influência ambiental, talvez, ou qualquer coisa cuja presença ou ausência
o tivesse levado, ainda que momentaneamente, de uma maneira nada habitual...

Conway descreveu o pouco que até então conseguira saber, tentando mostrar-se mais
esperançado do que na realidade estava, mas Mannen não era parvo.

— Não sei se devo agradecer-lhes os vossos esforços ou se devo sentir-me preocupado


pelo vosso bem-estar mental — disse Mannen quando ele terminou. — Esses efeitos
mentais peculiares e algo vagos são... são... ainda que corra o risco de ofender
esse «papá das pernas altas», sugiro que as peculiaridades devem existir nos vossos
cérebros — estão tão interessados em encontrar desculpas para mim que até se tornam
ridículos!

— Agora é você que me diz que eu tenho um cérebro peculiar— observou Conway.

Mannen riu-se calmamente, mas Prilicla tremia mais do que nunca.

Conway repetiu:

— Uma circunstância, pessoa ou coisa cuja presença ou ausência pudesse afetar...


— Sim, por Deus! — explodiu Mannen. — Vocês não estão a pensar no cão!

Conway pensara no cão, mas era um grande covarde mental para confessar tal coisa.
Disse:

— Pensou nisso durante a operação, doutor?

— Não! — respondeu Mannen.

Houve um silêncio longo e embaraçoso depois disso, durante o qual os painéis do


serviço se abriram e a comida que tinham pedido subiu ao encontro deles. Foi Mannen
quem falou primeiro.

Cuidadosamente, ele disse:

— Gostei desse cão quando eu era eu. Mas durante estes últimos quatro anos tenho
andado permanentemente com gravações MSVK e LSVD devido às minhas obrigações de
ensino e recentemente precisei das gravações Hudlarianas e Melfanianas para um
projeto em que Thornnastor me convidou a colaborar. Também as uso permanentemente.
Com o meu cérebro a pensar que sou cinco pessoas diferentes, cinco pessoas muito
diferentes... Bem, vocês sabem como é...

Conway e Prilicla sabiam-no demasiado bem.

O Hospital estava preparado para tratar todas as formas de vida inteligente, mas
nem uma só pessoa podia manter no seu cérebro mais do que uma fração dos dados
fisiológicos necessários para esse fim. A destreza cirúrgica era uma questão de
capacidade e treino, mas o conhecimento completo fisiológico de qualquer paciente
era fornecido por meio de uma gravação do Educador, que era simplesmente o registo
cerebral de qualquer grande génio da medicina pertencente à mesma espécie, ou a uma
espécie semelhante, da do paciente a ser tratado. Se um médico humano-terrestre
tinha de tratar um paciente Kelgiano, tomava uma gravação de fisiologia DBLF e
mantinha-a até que o tratamento estivesse completo, depois do que ela era apagada.
As únicas exceções a essa regra eram os Médicos-Chefes com serviço de ensino e os
Diagnosticadores.

Um Diagnosticador era um membro da elite, uma criatura cujo espírito era


considerado suficientemente estável para reter permanentemente seis, sete ou mesmo
dez gravações fisiológicas, ao mesmo tempo. Aos seus espíritos cheios de dados era
cometido o trabalho da investigação original em medicina xenológica e o tratamento
de novas doenças em formas de vida até então desconhecidas.

Mas as gravações não forneciam apenas dados fisiológicos: a memória e a


personalidade completas da individualidade que possuíra esse conhecimento era
também transmitida. Com efeito, um Diagnosticador sujeitava-se a si próprio
voluntariamente à forma mais drástica de esquizofrenia. As individualidades que
aparentemente compartilhavam o seu cérebro podiam ser desagradáveis, agressivas —
os génios raras vezes são pessoas encantadoras — com todas as espécies de manias e
fobias. E elas não se tomavam visíveis somente durante as refeições. O pior período
era quando o portador das gravações repousava, antes de dormir.

Os pesadelos alienígenas eram de facto pesadelos e as fantasias sexuais alienígenas


e os sonhos de satisfação de desejos eram bastantes para que a pessoa que os
sofria, se fosse capaz de desejar com coerência alguma coisa, acabasse por pedir a
morte.

Mannen prosseguiu:
Dentro de poucos minutos ele podia deixar de ser uma besta feroz e peluda, disposta
a arrancar-me as penas da barriga, para se tomar num monte de pelos sem cérebro que
poderá ficar esmagado por um dos meus seis pés se não se desviar a tempo do meu
caminho, e, finalmente, parecer-me um cão perfeitamente igual a qualquer outro,
ansioso por brincar. Ultimamente. era já muito velho e tonto, e sinto-me mais
contente que triste por ele ter morrido.

«E agora falemos e emocionemo-nos sobre outro assunto concluiu Mannen, subitamente.


— De outra maneira arruinaremos por completo o almoço de Prilicla...»

Fez exatamente isso durante o resto da refeição, discutindo com aparente delícia
uma peça sumarenta de má-língua originária da secção SNLU das enfermarias de
meliana. Como podia ocorrer qualquer coisa de escandaloso entre duas formas de vida
inteligentes, cristalinas, vivendo a menos cento e cinquenta graus centígrados, era
uma coisa que perturbava Conway, assim como o facto de as suas limitações morais
serem de tamanho interesse para um respirador de oxigénio de sangue quente. A menos
que fosse uma das razões por que o Médico-Chefe Mannen estava tão perto de vir a
ser um Diagnosticador.

Ou estivera.

Se Mannen estava a assistir a Thornnastor, o Diagnosticador-Chefe da Patologia (e,


como tal, o Diagnosticador Principal do hospital), num dos seus augustos projetos,
então Mannen tinha de estar de boa saúde física e mental — os Diagnosticadores eram
terrivelmente exigentes quanto aos seus assistentes. E tudo quanto o Psicólogo-
Chefe lhe dissera conduzia á mesma conclusão. Mas se assim era, que coisa teria
levado Mannen, dois dias antes, a comportar-se daquela maneira?

Enquanto os outros falavam, Conway começou a compreender que a espécie de provas de


que ele necessitava podia ser difícil de conseguir. As perguntas que tinha de fazer
exigiam tato e qualquer espécie de teoria para explicar aquele tipo de
investigação. O seu espírito estava a quilómetros de distância quando Mannen e
Prilicla começaram a levantar-se, para sair. Quando iam a sair da mesa, Conway
aproximou-se de Prilicla e perguntou baixinho:

— Deu conta de alguns ecos, doutor?

— Nada — disse Prilicla. — Absolutamente nada.

Segundos depois os lugares deles na mesa foram ocupados por três Kelgianos que
dobraram os seus corpos longos, prateados, semelhantes aos de lagartas, sobre as
costas das cadeiras ELNT, de modo que os seus manipuladores dianteiros ficassem
suspensos sobre a mesa a uma distância confortável para comerem. Um deles era
Naydrad, a Enfermeira-Chefe do pessoal assistente de Mannen. Conway despediu-se dos
seus amigos e voltou apressadamente para a mesa.

Quando acabou de falar foi Naydrad quem lhe disse:

— Gostaria de responder, mas é uma pergunta invulgar. Pelo menos, implica uma
quebra total da confidência...

— Não precisamos de nomes — disse apressadamente Conway.— Os erros foram registados


apenas para fins estatísticos e não será tomada qualquer ação disciplinar. Esta
investigação é particular; é uma ideia minha. O seu único objetivo é o de ajudar o
Doutor Mannen.

Toda a gente queria ajudar o Chefe e Conway prosseguiu:

— Em suma: se aceitarmos que o Médico-Chefe Mannen é incapaz de graves erros


profissionais (o que acontece com todos nós) então teremos de admitir que os erros
dele foram causados por uma influência estranha) ou mais precisamente: por
manifestações de uma influência exterior) que pode não ser física.

«Os erros cometidos por uma pessoa responsável são mais notáveis e sérios que os de
um subordinado, mas se esses erros foram cometidos por um agente exterior eles não
devem ficar confinados ao pessoal superior, e é por isso que precisamos de dados.
Há sempre possibilidade de serem cometidos erros, em particular entre o pessoal em
treino; todos nós sabemos disso. O que devemos saber é se houve qualquer aumento
local ou geral no número desses erros menores e, se assim exatamente onde e quando
eles ocorreram.»

— É um assunto confidencial? — perguntou um dos Kelgianos.

Conway quase se sentiu sufocado perante a ideia de qualquer coisa poder ser
confidencial naquele lugar, mas, felizmente, o sarcasmo foi afastado da sua voz
pelo Tradutor.

— Quanto mais pessoas reúnam dados sobre isto, melhor será — disse ele. — Limitem-
se a fazer uso da vossa discrição...

Poucos momentos depois estava a outra mesa, dizendo mais ou menos a mesma coisa, e
depois a outra e ainda a outra. Naquele dia regressaria atrasado às suas
enfermarias, mas felizmente tinha bons assistentes — do tipo dos que adoravam ter
uma oportunidade de demonstrarem o que podiam fazer sem ele.

Durante o resto do dia não houve muitas respostas, nem ele esperara muitas, mas no
dia seguinte enfermeiros de todos os feitios e espécies começaram a dirigir-se a
ele, muito em segredo, para lhe contarem incidentes que, invariavelmente, tinham
acontecido a terceiras pessoas. Conway anotou cuidadosamente as horas e os lugares,
não mostrando curiosidade em tudo que se referia às identidades das pessoas a que
eles diziam respeito. Depois, na manhã do terceiro dia, Mannen procurou-o durante
as suas rondas.

— Você está de facto a trabalhar nessa coisa, não está, Conway? — disse Mannen numa
voz rouca. Depois acrescentou: — Estou muito grato. A lealdade é muito bela, mesmo
quando errada. Mas gostaria que parasse com isso. Vai a caminho de grandes
problemas.

Conway respondeu:

— Os problemas são seus, doutor, não são meus.

— Isso é o que pensa —disse Mannen, a custo.— Venho do gabinete de O’Mara. Ele quer
vê-lo. Imediatamente.

Poucos minutos depois Conway era mandado entrar no gabinete de O’Mara por um dos
assistentes dele, que tentava avisá-lo com as sobrancelhas ao mesmo tempo que
exprimia a sua comiseração baixando os cantos da boca. A combinação mostrava-se tão
ridícula que Conway, antes que desse por isso, viu-se com um sorriso estúpido no
rosto, a olhar para O’Mara.

O psicólogo espetou um dedo na direção da cadeira menos confortável e gritou:

— Que demónio quer você dizer com essa ideia de infestar o hospital com uma
inteligência incorpórea?

— O quê...? — principiou Conway.


— Está a procurar que façam pouco de si? — explodiu O’Mara. —Ou a fazer pouco de
mim? Não me interrompa! Bem sei que você é o Chefe mais novo destes sítios e os
seus colegas (nenhum dos quais é especializado em psicologia aplicada, devo dizê-
lo) pensam muito de si. Mas este comportamento idiota e irresponsável é digno de um
paciente das enfermarias psiquiátricas!

«A disciplina do pessoal subordinado vai desmoronar-se, graças a si — prosseguiu


O’Mara, um pouco mais calmamente. — Agora está na moda cometer erros! Praticamente,
todos os Enfermeiros-Chefes gritam por mim... por mim!... para os livrar de tal
coisa! Tudo quanto você fez foi inventar esse monstro invisível, indetetável,
insubstancial; e pelo que parece é ao Psicólogo-Chefe que cabe a responsabilidade
de o eliminar!»

O’Mara parou para readquirir o fôlego, e, quando continuou, o seu tom tornara-se
calmo e quase cortês. Disse:

— Não creio que você esteja a brincar com ninguém. Reduzido a termos simples você
espera que se forem cometidos bastantes erros, os do seu amigo passem relativamente
despercebidos. E deixe de abrir e fechar a boca; a sua vez pode chegar! Um dos
aspetos de toda esta situação que realmente me preocupa é o de que compartilho a
responsabilidade consigo porque lhe entreguei um problema insolúvel, à espera de
que você o atacasse segundo um ângulo diferente... um ângulo que pudesse conduzir a
uma solução pardal, bastante para tirar o nosso amigo do aperto. Em vez disso, você
criou um problema novo e talvez pior!

«Talvez eu tenha exagerado as coisas um pouco porque tratava de um aborrecimento


escusável, mas o facto é que você pode sair-se muito mal deste caso. Não creio que
o pessoal de enfermagem cometa erros propositadamente... pelo menos, daquela ordem
que poderia pôr em perigo os pacientes. Mas qualquer relaxe das normas é obviam
ente perigoso. Começa a compreender o que está a fazer, doutor?

— Sim, senhor — disse Conway.

— Estou a ver isso —disse O’Mara com uma suavidade que não era habitual nele. — E
agora diga-me porque fez isso. Sim, doutor?

Conway demorou um pouco a responder. Não era a primeira vez que ele deixava o
gabinete do Psicólogo Chefe com o seu ego um tanto ou quanto crestado, mas daquela
vez ele parecia sério. A opinião geralmente sustentada era a de que, quando O’Mara
não estava indevidamente preocupado, ou, em certos casos, quando ele gostava
verdadeiramente de um indivíduo, o psicólogo se sentia capaz de se pôr vontade com
eles e ser mal humorado e intolerável, mas quando O’Mara se tomava calmo e cortês e
de modo algum sarcástico, quando ele começava a tratar uma pessoa como um paciente
e não como um colega, essa pessoa estava metida em problemas até ao pescoço.

Por fim, Conway disse:

— A princípio foi somente uma história para explicar porque eu estava a ser
intrometido. As enfermeiras não contam histórias e podia parecer que eu procurava
fazê-las falar. Tudo quanto fiz foi sugerir que o Doutor Mannen estava são sob
todos os casos, fora da ação de agentes físicos, e as bactérias, parasitas e outras
coisas extraterrestres foram postas de parte por causa do cuidado dos nossos
processos antissépticos. Como nos tinha assegurado da boa condição mental dele, eu
pensei na hipótese de... uma causa exterior, imaterial, que fosse ou talvez não
fosse dirigida conscientemente.

«Não consegui ainda definir uma teoria digna desse nome» — acrescentou
apressadamente Conway. —Nem falei de inteligências incorpóreas a ninguém, mas
aconteceram coisas estranhas nessa sala de operações, e não apenas enquanto Mannen
lá trabalhou...

Descreveu o efeito de eco que Prilicla detetara enquanto vigiava a radiação


emocional de Mannen, e o feito semelhante quando Naydrad tivera o acidente com a
faca. Falou também do incidente posterior com o interno Melfano cujo pulverizador
não pulverizava — as mandíbulas deles não podiam receber luvas cirúrgicas pelo que
tinham de ser pintadas com plástico antes das operações. Quando o interno tentou
usar o pulverizador ele ejetara o que, segundo Melfano, parecera uma papa metálica.
Depois, o pulverizador em causa não pudera ser encontrado. Talvez nunca tivesse
existido. E havia outros incidentes peculiares. Erros que pareciam demasiado
simples para serem cometidos por pessoal treinado — erros na contagem dos
instrumentos, erros de deixar cair coisas, tudo parecendo envolver uma certa dose
de confusão mental temporária e talvez de completa alucinação.

—... Até agora ainda não há um número bastante para ter significado casuístico —
prosseguiu Conway. — No entanto, são bastantes para me tomarem curioso. Dar-lhe-ia
os nomes das pessoas afetadas se não tivesse jurado mantê-los confidenciais, porque
penso que o senhor poderia estar interessado na maneira como eles descrevem alguns
desses incidentes.

— Possivelmente, doutor — disse O’Mara num tom frio.

— Por outro lado, posso não querer dar o meu apoio profissional a um produto da sua
imaginação, investigando tais trivialidades. Quanto aos quase-acidentes com
escalpelos e aos outros erros, é minha opinião que certas pessoas têm sorte, outras
são por vezes um pouco estúpidas, enquanto outras ainda gostam de passar rasteiras.
Está bem, doutor?

Conway agarrou-se aos braços da cadeira e disse teimosamente:

— O escalpelo que caiu era um FROB Tipo Seis, um instrumento muito pesado e
desequilibrado. Mesmo que ele batesse com o cabo, devia ter penetrado no flanco de
Naydrad alguns centímetros para além do ponto de impacte, causando ferimento
profundo e sério... mesmo que a lâmina não existisse! Foi por isso que eu comecei a
duvidar. E é por isso que penso que devemos alargar o âmbito desta investigação.
Autoriza-me que fale com o Coronel Skempton e, se necessário, contacte com o
pessoal de fiscalização do Corpo para verificar as origens das últimas pessoas que
chegaram ao hospital?

A explosão esperada não ocorreu. Em vez disso, a voz de O’Mara soou quase
concordante, quando ele disse:

— Não posso concluir se você está honestamente convencido de que descobriu alguma
coisa ou se foi muito longe para poder recuar sem se mostrar ridículo. Pelo que me
diz respeito, você não pode parecer mais ridículo do que está a ser neste momento.
Não deve ter medo de confessar que se enganou, e começar a reparar alguns dos danos
que a sua irresponsabilidade causou na indisciplina.

O’Mara aguardou precisamente dez segundos a resposta de Conway e depois disse:

— Muito bem, doutor. Vá falar com o Coronel. E diga a Prilicla que vou dar-lhe
outro horário de trabalho... pode ser que ele lhe seja útil como detetor de ecos
emocionais. Como insiste em fazer figura de parvo, ao menos que a faça bem feita.
Depois... bem, teria muita pena de ver Mannen ir-se embora, e creio que posso dizer
honestamente o mesmo de si. É provável que partam na mesma nave...

Segundos depois, disse calmamente a Conway que podia sair.

O próprio Mannen acusara Conway de uma lealdade mal orientada e O'Mara acabara de
sugerir que a sua posição presente era o resultado de não querer confessar que
errara. Tinha-lhe sido oferecida uma saída e ele recusara-a. Agora começava a
pensar em servir num pequeno hospital multiambiental, ou mesmo num estabelecimento
planetário, onde a chegada de um paciente extraterrestre devia ser considerada como
um grande acontecimento. Isso provocava-lhe uma sensação desagradável na área
abdominal. Talvez ele estivesse a basear a sua teoria em poucas provas e não
quisesse confessar isso a si próprio. Talvez os estranhos erros fizessem parte de
um enigma completamente diferente, sem ligação qualquer com o problema de Mannen.
Enquanto seguia pelos corredores, desviando-se ou fazendo desviar os outros a
intervalos de poucos metros, nasceu nele um impulso para voltar para junto de
O’Mara, dizer que sim a tudo, pedir abjetamente desculpa e prometer voltar a ser um
bom menino. Mas quando se sentiu disposto a ceder já estava junto da porta do
Coronel Skempton.

O Geral do Sector era abastecido e numa grande extensão mantido pelo Corpo de
Monitores, que era o braço executivo e defensor da lei da Federação. Sendo o
oficial mais graduado do Corpo, no hospital, o Coronel Skempton tratava do tráfego
para e do hospital, além de uma horda de pormenores administrativos. Dizia-se que o
cimo da sua secretária não estava visível desde o dia em que ela chegara. Quando
Conway entrou, ele olhou para cima e disse:

— Bom dia — Olhou para baixo, para a secretária, e acrescentou:— Dez minutos...

Demorou muito mais que dez minutos. Conway estava interessado no tráfego de origens
estranhas, ou naves que tivessem passado por lugares igualmente estranhos. Queria
dados sobre o nível de tecnologia, ciência médica e classificação fisiológica dos
seus habitantes — em especial se as ciências psicológicas ou parapsicológicas
estavam bem desenvolvidas ou se a incidência das doenças mentais era anormalmente
alta. Skempton começou a escavar entre os papéis que cobriam a sua secretária.

Mas as naves de abastecimento, ambulâncias e naves colocadas no serviço de


emergência como ambulâncias que tinham chegado nas últimas semanas tinham vindo de
mundos da federação que eram bem conhecidos e medicamente inócuos. Todos menos um:
a nave de Exploração e Contacto Cultural Descartes. Pousara, por muito pouco tempo,
num planeta muito invulgar. Estivera no solo, se tal nome se lhe podia dar, apenas
uns minutos. Nenhum dos tripulantes saíra, as escotilhas tinham permanecido
cerradas, e amostras de ar, água e matérias da superfície tinham sido colhidas,
analisadas e declaradas interessantes, mas inofensivas. O departamento de patologia
do hospital fizera uma análise muito cuidadosa e dissera a mesma coisa. A Descartes
parara apenas o tempo bastante para deixar as amostras e um paciente...

— Um paciente! — quase gritou Conway quando o Coronel chegou a esse ponto. Skempton
não precisava da faculdade empática para saber o que ele estava a pensar.

— Sim, doutor, mas não leve longe as suas esperanças — disse o Coronel — Ele tinha
apenas uma perna partida. E, apesar do facto de os bicharocos extraterrestres não
poderem viver em criaturas de outras espécies, um facto que simplifica
fantasticamente a prática da medicina extraterrestre, os médicos das naves andam
constantemente a procura da exceção que possa provar a regra. Em poucas palavras,
ele sofria apenas de uma perna partida.

— Gostaria de o ver de qualquer maneira — disse Conway.

— Piso dois-oitenta e três. Enfermaria Quatro, Tenente Harrison— disse Skempton. —


Não bata com a porta.

Mas o encontro com o Tenente Harrison teve de esperar até tarde, porque o horário
de Prilicla demorou a ser modificado e o próprio Conway tinha outras coisas a
lazer, além da busca de inteligências hipoteticamente incorpóreas. A demora. no
entanto, foi afortunada porque havia muito mais informações disponíveis para ele,
reunidas durante as rondas e as refeições, mesmo pensando que os dados eram tais
que ele não sabia o que fazer com eles.

O número de asneiras, erros e enganos era surpreendente, segundo ele suspeitava,


apenas porque até então ele não se interessara por tais coisas. Mesmo assim, os
erros estúpidos e disparatados que ele encontrava, em especial entre o pessoal mais
responsável e bem treinado, eram invulgares, para além de quaisquer dúvidas. E não
conduzia a nada que ele houvesse previsto. O conjunto das horas e lugares devia ter
mostrado um foco inicial daquele contágio mental hipotético, tornando-se mais largo
à medida que a doença progredia. Em vez disso, havia algo que se movia dentro de
uma certa área — a sala de operações Hudlariana e o espaço que lhe era contíguo. O
que quer que fosse — se era de facto alguma coisa — movia-se como uma entidade
singular, em vez de se comportar como uma doença.

—... É ridículo! — protestou Conway. — Mesmo que eu não acreditasse seriamente numa
inteligência incorpórea... seria apenas uma hipótese. Não sou tão estúpido como
isso!

Estivera a informar Prilicla dos últimos acontecimentos, enquanto iam a caminho do


local onde estava o Tenente. O empata acompanhava-o através do teto e, depois de
alguns minutos de silêncio, disse como era inevitável:

— Concordo.

Conway teria preferido quaisquer objecções construtivas, de modo que não falou
senão quando chegou ao 283-Quatro. Era uma pequena enfermaria particular, junto de
um grande compartimento extraterrestre, e o Tenente parecia contente por os ver.
Mas Prilicla disse que ele se sentia aborrecido.

— À parte uma avaria estrutural temporária, parece que você está em muito bom
estado, Tenente — começou Conway a dizer, para o caso de Harrison estar preocupado
pela presença de dois Médicos-Chefes junto do seu leito. — O que gostaríamos de
saber é a cadeia de acontecimentos que conduziu ao seu acidente. Se não se
importar, bem entendido.

— De maneira nenhuma — disse o Tenente. — Por onde quer que eu comece? Com a
descida ou antes disso?

— Talvez seja melhor dizer-nos primeiro qualquer coisa sobre o planeta — sugeriu
Conway.

O Tenente moveu a cabeça num gesto de concordância e moveu a almofada de modo a


colocá-la num ângulo mais confortável para a conversa, depois do que começou:

— Era estranho. Observámo-lo durante longo tempo, da órbita...

Chamado Meatball — «Almôndega» — porque o Comandante Willianson, da Nave de


Exploração e Contacto Cultural Descartes declinara com todas as suas forças a honra
de ver um planeta tão estranho e desagradável receber o seu nome; era uma coisa que
precisava de ser vista para ser acreditada — até aos descobridores fora difícil
acreditar naquilo que viam.

Os oceanos eram uma espécie de sopa espessa e viva, e as suas partes terrestres
estavam quase completamente cobertas por tapetes de vida animal, que se moviam
lentamente. Em muitas áreas havia excrescências de minérios e solo que suportavam
vida vegetal, enquanto outras formas de vegetação cresciam na água, no fundo do mar
ou lançavam raízes na própria superfície orgânica. Mas a maior parte da superfície
terrestre estava coberta por uma camada de vida animal que em alguns lugares tinha
oitocentos metros de espessura.

Aquele vasto tapete orgânico estava subdividido em estratos que se arrastavam,


escorregavam e lutavam entre si para obter acesso à necessária vegetação da
superfície superior ou aos minérios da superfície inferior, ou simplesmente para
sufocar e canibalizar as outras. Durante o curso dessa lenta e gigantesca luta,
esses estratos vivos formavam montes e vales, alternavam a forma de lagos e linhas
de costas e mudando toda a topografia do seu mundo, de mês a mês.

Houvera um acordo geral entre os especialistas da Descartes em que se o planeta


possuía vida inteligente ela devia ter uma entre duas formas possíveis. O primeiro
tipo seria enorme — de tremendos tapetes vivos que podiam segurar-se à rocha
subjacente enquanto empurravam extensões para a superfície com a finalidade de
respirar, ingerir e eliminar os detritos. Deviam também possuir um meio de defesa
em torno do seu longo perímetro para evitar que os estratos de criaturas menos
inteligentes se insinuassem entre eles e o solo, ou escorregassem sobre eles e os
separassem da luz, alimentos e ar, e também para dissuadir os predadores, grandes e
pequenos, que pareciam mordiscar-lhes de vez em quando.

A segunda possibilidade poderia ser uma forma de vida bastante pequena, de pele
lisa, flexível, e suficientemente rápida para poder viver dentro ou entre as
criaturas dos estratos e evitar os processos ingestivos dessas criaturas, cujos
movimentos e metabolismo eram lentos. Os seus locais de abrigo, que deviam ser
suficientemente seguros para proteger os seus filhotes e permitir o desenvolvimento
da sua cultura e ciência, encontravam-se provavelmente em caves, ou sistemas de
túneis, na rocha subjacente.

Se qualquer dessas formas de vida existisse no planeta, era improvável que ela
possuísse uma tecnologia avançada. Certamente que era impossível a existência de
tipos grandes e complexos de maquinaria industrial naquele mundo arquejante. As
ferramentas, se tinham conseguido criar algumas, teriam de ser pequenas, manuais e
não especializadas, mas o mais provável era que a sua sociedade fosse muito
primitiva, sem raízes.

— Podem ser fortes em ciências filosóficas — interrompeu Conway ao chegar a esse


ponto. Prilicla aproximou-se a tremer com a excitação de Conway, assim como com a
sua.

Harrison encolheu os ombros.

— Tínhamos um Cinrusskino connosco — disse ele, olhando para Prilicla. — Ele


informou que não havia indicação do tipo mais subtil de emoções usualmente
irradiadas por vida inteligente, mas a aura de fome e ferocidade crua, animal, que
emanava de todo o planeta, era tal que o empata teve de ser mantido sob a ação de
sedativos a maior parte do tempo. A proporção de vida inteligente em qualquer mundo
é apenas uma pequena parte da vida total...

— Compreendo — disse Conway desapontado. — E que tal a descida?

O comandante escolhera uma área formada por material espesso, seco, coriáceo. O
material parecia morto e insensível, de modo que o jato da cauda da nave não devia
causar dor a qualquer vida na área, inteligente ou de outro tipo. Tinha descido sem
incidente e durante talvez dez minutos nada acontecera. Depois, a pouco e pouco, a
superfície coriácea por baixo deles começou a afundar-se. embora lentamente e de
maneira tão igual que os giroscópios da nave não tiveram dificuldade em mantê-lo
nivelado. Viram-se primeiro numa pequena cova e depois numa cratera de paredes
baixas. Os bordos da cratera dobraram-se para eles, exercendo pressão sobre as
pernas do trem de pouso. As pernas tinham sido concebidas para se retraírem
telescopicamente, e não para se dobrarem para o centro da nave. O mecanismo de
extensão e os alojamentos das pernas começaram a ceder, com um ruído semelhante ao
de alguém que rasgasse metal em bocadinhos.

Depois, alguém ou alguma coisa começou a atirar rochas. Para Harrison, quase
parecera que a Descartes se situava sobre um vulcão em erupção. O barulho fora
incrível, ao ponto de a única maneira de transmitir ordens ser através dos rádios
dos fatos espaciais, com o volume no máximo. Harrison ordenara uma rápida
investigação das avarias na popa, antes de subir de novo...

— Foi entre os revestimentos interior e exterior, perto do expansor, que eu


encontrei o rombo — acrescentou rapidamente o tenente. — Tinha cerca de oito
centímetros de diâmetro e quando comecei a tapá-lo verifiquei que os bordos estavam
ligeiramente magnetizados. Antes que eu pudesse acabar, o Comandante decidiu
levantar voo imediatamente. A parede da cratera ameaçava prender uma das pernas do
trem de pouso. Ele deu-nos cinco segundos de aviso...

Harrison parou nesse ponto, como que para esclarecer qualquer coisa no seu
espírito. Disse com todo o cuidado:

— Compreendem que não havia qualquer perigo nisso, íamos subir a 1,5 G porque não
tínhamos a certeza de que a cratera fosse uma manifestação de inteligência, mesmo
hostil, ou o movimento involuntário de qualquer monstro enorme e sujo a fechar a
boca, portanto quisemos evitar destruições desnecessárias na área. Se eu me pudesse
agarrar a um par de suportes e tivesse qualquer coisa onde apoiar os pés, tudo
estaria bem. Mas os fatos espaciais de longa permanência embaraçam os movimentos e
cinco segundos não são muito tempo. Tinha dois bons lugares onde me agarrar e
estava a procurar um lugar onde pudesse firmar os pés. Depois vi-o e até senti a
minha bota tocá-lo, mas... mas...

— Você estava perturbado e calculou mal a distância — disse Conway, em voz baixa.—
Ou talvez tivesse simplesmente imaginado que havia um apoio.

Do outro lado do Tenente, Prilicla começou de novo a tremer. Disse:

— Desculpe, doutor. Nenhum eco.

— Não esperava nenhum — disse Conway. — Já deve estar noutro lado.

Harrison fitou primeiro um e depois o outro, com uma expressão perturbada e um


pouco magoada. Disse:

— Talvez eu imaginasse que ele estava lá. De qualquer maneira, não estava e eu caí.
A perna do trem de pouso, do meu lado, foi arrancada durante a largada e os
destroços do seu alojamento encheram de tal modo o espaço entre os revestimentos
que eu não pude sair. Os cabos de comando da sala das máquinas passavam demasiado
perto de mim para que eu me pudesse arriscar a abrir uma passagem, e o nosso médico
disse que seria melhor vir aqui e deixar que o vosso pessoal de serviço pesado
abrisse caminho. De qualquer modo tinhamos de trazer as amostras.

Conway olhou apressadamente para Prilicla e depois disse:

— Em qualquer momento, durante a viagem de volta, o vosso empata Cinrusskino vigiou


a sua radiação emocional?

Harrison abanou a cabeça.

— Não era necessário... Eu tinha dores, apesar da medicação do fato, e isso devia
ser desagradável para um empata. Ninguém se podia aproximar muito de mim...
O Tenente fez uma pausa, e depois, no tom de alguém que deseja mudar de assunto,
disse:

— Enviámos a seguir uma nave não tripulada, cheia de material de comunicações. Se


aquela coisa fosse apenas uma grande boca ligada a um ventre ainda maior e sem
qualquer cérebro, quando muito perderíamos uma sonda e ela teria uma indigestão.
Mas se fosse inteligente ou houvesse inteligências mais pequenas no planeta que
pudessem usar as bestas maiores, ou as tivessem treinado para as servir (a nossa
gente do contato cultural disse que havia uma grande possibilidade disso) então
elas deviam sentir-se curiosas e tentar comunicar...

Conway sorriu.

— Coisas que até excedem a nossa imaginação — disse ele. — De momento estou a fazer
o possível para não pensar nos problemas médicos que poderiam existir num monstro
com o tamanho de um subcontinente. Mas voltemos à realidade. Tenente Harrison,
estamos ambos muito agradecidos pela informação que nos deu, e esperamos que não se
importe se voltarmos...

— Quando quiserem... — disse Harrison. — Terei muito prazer em os ajudar.


Compreendem... A maior parte das enfermeiras ou têm mandíbulas ou tentáculos, ou
possuem pés a mais... Sem ofensa Doutor Prilicla.

— De maneira nenhuma — disse Prilicla.

— E as minhas ideias, em relação aos anjos-da-guarda, é um pouco antiquada—concluiu


ele, quando se voltaram para sair.

No corredor, Conway telefonou para os aposentos da Murchison. Quando ele acabou de


dizer o que pretendia dela, ela já estava bem acordada.

— Entro de serviço daqui a duas horas e não terei qualquer tempo livre durante as
outras seis — disse ela, a bocejar.— E normalmente não passo o tempo a fazer de
Mata-Hari aos pacientes solitários. Mas se esse tem informações que possam auxiliar
o Doutor Mannen, não me importarei de maneira nenhuma. Farei tudo por esse homem.

— E por mim?

— Por ti, tudo, quase tudo, querido. Adeus.

Conway desligou e disse a Prilicla:

— Qualquer coisa conseguiu entrar nessa nave. Harrison sofreu o mesmo tipo de
alucinação simples ou confusão mental que o pessoal da sala de operações sentiu.
Mas eu continuo a pensar nesse rombo no revestimento da nave... uma inteligência
incorpórea não teria necessidade de um buraco para entrar. E essas pedras a baterem
na popa. Suponhamos que era apenas um efeito secundário de uma influência maior,
imaterial... uma perturbação análoga ao fenómeno do poltergeísmo. Onde é que isso
nos leva?

Prilicla não sabia.

Conway disse:

— Provavelmente lamentarei isso, mas o melhor será falar com O’Mara...

Mas foi o Psicólogo-Chefe quem falou de início, sem deixar que mais ninguém
dissesse uma palavra. Mannen acabara de sair do seu gabinete depois de dizer a
O’Mara que o estado do doente Hudlariano se deteriorara subitamente, necessitando
de uma segunda operação não mais tarde que o meio-dia seguinte. O Médico-Chefe
dissera, sem rodeios, que não tinha quaisquer esperanças quanto à sobrevivência do
doente, mas que as poucas possibilidades que havia podiam ser um pouco aumentadas
se eles operassem rapidamente.

O’Mara concluiu:

— Isso não lhe dá muito tempo para provar a sua teoria, Conway. Agora, que quer
dizer-me?

As notícias sobre Mannen tinham perturbado tremendamente Conway, de modo que ele
estava terrivelmente consciente de que o seu relatório sobre o incidente de
Meatball e as suas ideias quanto a ele pareciam fracas e incoerentes — o que era o
pior, quanto ao que dizia respeito a O’Mara. O psicólogo tinha pouca paciência para
com as pessoas que não pensavam claramente e diziam exatamente o que pretendiam.

— e tudo isto é tão peculiar — concluiu ele embaraçado —, que estou quase
convencido de que o caso de Meatbail não tem nada que ver com o problema de Mannen,
mas...

— Conway!— disse O’Mara, num tom seco.— Você está a falar em círculos! Deve
compreender que se dois acontecimentos peculiares ocorrem com uma tão pequena
separação no tempo, então existe uma alta probabilidade de que tenham uma causa
comum. Não me importo muito de que a sua teoria seja absolutamente ridícula... pelo
menos você chegou até ela por uma forma tortuosa de lógica, mas importo-me de que
você tenha deixado inteiramente de pensar! Estar errado, doutor, é infinitamente
preferível a ser estúpido!!

Durante alguns segundos, Conway fungou pesadamente, tentando dominar a sua cólera
antes de responder. Mas O’Mara poupou-o a dificuldades cortando a ligação.

— Ele não foi muito cortês para si, amigo Conway — disse Prilicla.— No fim ele
pareceu muito mal-humorado, É um progresso significativo sobre os sentimentos dele,
esta manhã...

Conway riu-se apesar de tudo. Disse:

— Um dia, doutor, esquecer-se-á de dizer as palavras adequadas e toda a gente cairá


morta, no hospital!

A pior parte do problema era que eles não sabiam exatamente para onde deviam olhar,
e agora o tempo de busca fora reduzido a metade. Tudo quanto podiam fazer era
continuar a reunir informações e esperar que qualquer coisa pudesse emergir
daquilo. Mas até as perguntas pareciam disparatadas — variações de «Você esqueceu-
se de fazer alguma coisa nos últimos dias em condições que o pudessem levar a
suspeitar que qualquer coisa esteja a influenciar o seu espírito?» Eram mal
redigidas, tontas e quase insensatas, mas continuaram a fazê-las até que as pernas
de Prilicla, finas como lápis, começaram a tomar-se como borracha, devido à fadiga
— o vigor do empata ara quase igual à sua força, que não era praticamente nenhuma —
e ele teve de se retirar. Conway continuou teimosamente a fazer perguntas,
sentindo-se cada vez mais fatigado, furioso e estúpido.

Deliberadamente, evitou entrar de novo em contacto com Mannen — naquele momento o


doutor seria, sem dúvida, uma influência desmoralizadora. Telefonou a Skempton para
saber se o oficial médico do Descartes tinha feito um relatório e foi terrivelmente
amaldiçoado porque era o meio da noite do Coronel. Mas descobriu que o Psicólogo-
Chefe procurara a mesma informação, dizendo que preferia que os factos surgissem
através de um relatório oficial que por meio de um doutor com envolvimentos
emocionais e um machado pronto a afiar. Depois aconteceu uma coisa absolutamente
inesperada: as fontes de informação de Conway secaram-se de súbito.

Aparentemente, O’Mara estava a chamar certo pessoal da sala de operações para os


seus exames periódicos, mas fazia-o antes do tempo devido, e a maior parte das
pessoas chamadas pertencia ao número daquelas que tinham sido muito prestáveis a
Conway, confessando os seus erros. Ninguém sugeria que Conway tivesse quebrado o
seu compromisso e falado a O’Mara, mas ninguém falava sobre coisa nenhuma.

Conway sentia-se fatigado, desencorajado e estúpido, mas principalmente cansado.


Entretanto já estava demasiado perto da hora do pequeno-almoço para que se fosse
deitar.

Depois das suas rondas, Conway almoçou cedo, com Mannen e Prilicla, e acompanhou o
doutor ao gabinete de O’Mara enquanto o empata se dirigia para a sala de operações
para fiscalizar a radiação emocional do pessoal durante os seus preparativos. O
Psicólogo-Chefe parecia um pouco fatigado, o que era invulgar, e algo resmungão, o
que era um bom sinal.

— Vai ser assistente do Médico-Chefe Mannen, doutor?

Não senhor; apenas serei um observador — respondeu Conway.— Mas dentro da sala. Se
algo estranho acontecer... quero dizer, se a gravação Hudlariana me confundir e eu
quiser estar tão alerta quanto possível...

— Alerta, diz ele. — O tom de O’Mara era escaldante.— Você parece estar a dormir em
pé. — Dirigindo-se a Mannen disse: — Você ficará aliviado se souber que eu, também,
começo a suspeitar que está a acontecer qualquer coisa estranha, e desta vez
estarei a ver tudo lá de cima. Se quiser deitar-se nesse sofá, Mannen, dar-lhe-ei
pessoalmente a gravação Hudlariana...

Mannen disse:

— Tenho trabalhado com empatas e telepatas. Os empatas recebem as emoções mas não
as projetam. Os telepatas só podem comunicar com outros telepatas das suas próprias
espécies; de vez em quando têm tentado comunicar comigo, mas apenas têm conseguido
fazer-me uma espécie de comichão mental. Mas naquele dia na sala de operações eu
tinha o domínio completo de mim próprio; estou absolutamente certo disso! No
entanto vocês todos querem convencer-me de que qualquer coisa insubstancial,
invisível e indetetável influenciou a minha maneira de julgar as coisas. Seria
muito mais simples se vocês confessassem que essa coisa que procuram é também
inexistente, mas vocês...

— Desculpe-me — disse O’Mara, obrigando Mannen a deitar-se e enfiando-lhe o grande


capacete na cabeça. Antes de perder a consciência por completo, Mannen murmurou: —
O meu problema é que seja o que for que eu diga ou faça, vocês pensam sempre o
melhor de mim...

Duas horas depois, estavam na sala de operações. Mannen usava um fato pesado e
Conway um mais ligeiro, em que a proteção dependia apenas dos seus neutralizadores
gravitacionais. As placas-G colocadas sob o pavimento foram reguladas para uma
atração de 5 G, a normal em Hudlar, mas a pressão era apenas um pouco maior que a
normal na Terra — os Hudlarianos não eram muito perturbados pelas baixas pressões e
podiam, na verdade, trabalhar sem proteção no vácuo do espaço. Mas se alguma coisa
resultasse desastrosamente errada e o paciente necessitasse uma pressão igual à do
seu planeta de origem, Conway teria de sair dali o mais depressa possível. Conway
tinha uma ligação direta com Prilicla e O’Mara, na cúpula de observação, e outra,
inteiramente separada, com Mannen e o pessoal operatório.

A voz de O’Mara crepitou subitamente no auricular.


— Prilicla está a receber ecos emocionais, doutor. E também a radiação indicadora
de ter sido cometido um pequeno erro; um baixo nível de angústia e confusão...

— Yehudi está aí? —disse Conway, em voz baixa.

— O quê?

— O homenzinho que não está aqui...

O’Mara resmungou:

— Apesar do que eu disse a Mannen no meu gabinete, continua a não existir qualquer
prova real de que esteja a acontecer qualquer coisa anormal. Aquilo que eu disse
destinava-se ajudar o doutor e o doente, fortalecendo a confiança de Mannen em si
próprio... mas não consegui o meu objetivo. Portanto será melhor para Mannen e
também para si que esse homenzinho apareça.

O paciente foi trazido nesse momento e transferido para mesa. As mãos de Mannen,
projetando-se dos pesados braços do escafandro, estavam envolvidas apenas por uma
película de plástico transparente, mas se fosse necessária toda a pressão de Hudlar
ele poderia calçar luvas pesadas em poucos segundos. Mas abrir um Hudlariano
naquelas condições produziria uma súbita descompressão, e todos os procedimentos
consequentemente tinham de ser realizados rapidamente.

Tendo a classificação fisiológica de FROB, o Hudlariano uma criatura baixa,


atarracada, imensamente poderosa, recordando de certo modo um «armadillo» com um
revestimento que mais parecia uma chapa de aço balístico flexível. Por dentro e por
fora os Hudlarianos eram duros, tanto que sua ciência médica ignorava quase por
completo a cirurgia. Se um paciente não pudesse ser curado pelos medicamentos,
muitas vezes não podia ser curado de modo algum porque a cirurgia no seu planeta
era impraticável, se não impossível. Mas no Geral do Sector, onde qualquer
combinação desejada de pressão e gravidade podia ser reproduzida em poucos minutos,
Mannen e alguns outros podiam acercar-se do impossível.

Conway viu-o fazer uma incisão triangular no tegumento incrivelmente duro e prender
o pedaço de pele. Imediatamente um cone invertido de neblina amarela surgiu por
cima do campo operatório — uma fina névoa de sangue sob pressão, escapar-se das
capilares cortadas. Uma enfermeira interpôs rapidamente uma folha de plástico entre
a abertura e o visor de Mannen enquanto outra colocava em posição o espelho que lhe
daria uma vista indireta da operação. Em quatro minutos e meio ele dominara a
hemorragia. Devia tê-lo feito em dois.

Mannen pareceu ler o espírito de Conway, porque disse:

— Da primeira vez foi mais rápido do que isto. Sabe como é, eu estava a pensar com
dois ou três movimentos de avanço. Mas notei que estava a fazer incisões agora que
não devia ter feito senão alguns segundos depois. Se isso tivesse acontecido uma
vez já teria sido muito mau, mas cinco vezes...! Tive de me retirar porque teria
morto o paciente.

Com uma voz carregada de desânimo, concluiu:

— E agora estou a tentar ser cuidadoso e o resultado será o mesmo.

Conway permaneceu silencioso.

Mannen prosseguiu:
— É apenas um pequeno tumor. Tão próximo da superfície que se pode considerar uma
maravilha para uma primeira tentativa de cirurgia Hudlariana. Tratar-se-ia
simplesmente de cortar o tumor, encapsular os três vasos sanguíneos cortados na
área com tubo plástico e a pressão sanguínea do paciente e os nossos grampos
especiais deveriam vedar tudo perfeitamente até que as veias se regenerassem, em
poucos meses. Mas isto...! Já viram uma porcaria destas?!...

Mais de metade do tumor, uma massa esponjosa e acinzentada que parecia ser mais que
metade vegetal, mantinha-se em posição. Cinco dos principais vasos sanguíneos na
região tinham sido cortados — dois por necessidade, o resto por «acidente»— e
encapsulados. Mas esses troços de veias artificiais ou eram demasiado curtos ou
tinham sido insuficientemente apertados — ou talvez o movimento do coração tivesse
arrancado um dos vasos parcialmente do seu tubo. A única coisa que salvara a vida
do doente fora a insistência de Mannen em que ele não fosse deixado recuperar a
consciência desde a primeira operação. O mais ligeiro esforço físico teria
arrancado um dos vasos do respetivo tubo, causando uma tremenda hemorragia interna
e com o tremendo ritmo de pulsação e a pressão da espécie Hudlariana, a morte
ocorreria dentro de poucos minutos.

Conway disse numa voz rouca através do canal de O’Mara:

— Alguns ecos? Alguns?

— Nada — respondeu O’Mara.

— É ridículo! — explodiu Conway. — Se há aqui alguma inteligência, incorpórea ou de


outra espécie, ela deve possuir atributos: Curiosidade, capacidade de se servir de
instrumentos, etc. O hospital é um lugar grande e interessante, sem barreiras
conhecidas que se possam opor aos movimentos da entidade que tentamos encontrar.
Então porque é que ela se tem mantido num lugar? Porque foi que não andou a
explorar o interior da Descartes! O que é que a leva a manter-se nesta área? Está
assustada, é estúpida ou não será autenticamente incorpórea?

Conway acrescentou rapidamente:

— É pouco provável que exista uma tecnologia complexa em Meathball, mas há uma boa
possibilidade de estarem bem adiantados em ciências filosóficas. Se qualquer coisa
física entrou a bordo da Descartes, tem por certo uma massa inferior ao limite da
de uma criatura inteligente...

— Se quer fazer perguntas a alguém, doutor, posso fazer um pouco de pressão, mas
não há muito tempo — disse O’Mara, calmamente.

Conway pensou por um momento e depois disse:

— Obrigado. Gostaria de falar com a Murchison. Ela está...

O’Mara disse numa voz perigosa:

— Num momento destes, ele quer falar...

— Ela está com Harrison neste momento — disse Conway. Preciso de estabelecer uma
ligação física entre o tenente e esta sala, mesmo pensando que ele nunca esteve a
menos de cinquenta pisos deste lugar. Quer fazer o favor de dizer a ela para lhe
perguntar...

Era uma pergunta comprida, complicada, com muitos aspetos, concebida para lhe
indicar como uma forma de vida pequena e inteligente pudera chegar àquela área sem
deteção. Era também uma pergunta estúpida porque qualquer inteligência que afetasse
os espíritos dos humanos terrestres e dos extraterrestres simultaneamente não podia
manter-se sem deteção, vista a presença de um empata como Prilicla. O que levava de
novo ao ponto de onde ele partira: àquela coisa imaterial que recusava, ou era
incapaz, de se mover para além das cercanias da sala de operações.

A voz de O’Mara soou subitamente.

— Harrison disse que teve muitas alucinações durante a viagem de regresso. Disse
que o médico da nave considerou isso normal, em face das drogas que ele absorvera.
Diz também que tinha perdido por completo a consciência, antes de chegar aqui e não
sabe como ou onde entrou aqui. Agora creio que será melhor entrarmos em contacto
com a Receção, doutor. Vou ligá-lo, não se dê o caso de eu fazer perguntas
erradas...

Segundos depois, uma voz átona, lenta, traduzida, que podia pertencer a qualquer
espécie de criatura, disse:

O Tenente Harrison não foi recebido da maneira habitual. Como era um homem do Corpo
e a sua história médica era conhecida em pormenor, foi admitido na Escotilha de
Serviço Quinze, a cargo do Major Edwards...

Edwards não estava presente, mas do gabinete dele disseram a O’Mara que ele não
tardaria a aparecer.

Quase imediatamente, Conway sentiu-se pronto a desistir A Escotilha Quinze estava


muito longe — uma viagem complicada c difícil que implicava três grandes mudanças
de ambiente. Para que o invasor hipotético, que era também estranho ao hospital,
tivesse encontrado o caminho até àquela sala, teria sido necessário que ele
houvesse dominado mentalmente alguém e houvesse sido transportado. Mas nesse caso
Prilicla teria detetado a sua presença. Prilicla podia detetar tudo quanto pensava
— desde o mais pequeno inseto até às lentas emanações de um espírito profunda e
totalmente inconsciente. Nenhum ser vivo poderia fechar por completo o seu espírito
e permanecer vivo.

O que significava que o invasor podia não estar vivo!

Perto dele, Mannen fizera sinal para que uma enfermeira se mantivesse junto do
regulador de pressão. Um súbito regresso à pressão normal do Hudlar diminuiria a
violência de qualquer hemorragia que pudesse ocorrer, mas tornaria também
impossível a Mannen operar sem luvas pesadas. Não só isso: o aumento de pressão
teria obrigado o campo operatório a abater-se dentro da abertura, onde o movimento
transmitido do coração próximo tornaria impossível fazer trabalhos delicados.
Naquele momento, apesar do perigo de uma incisão errada, o complexo dos vasos
sanguíneos estava distendido, separado e relativamente imóvel.

Subitamente, a coisa aconteceu. Sangue amarelo-vivo espirrou, tão violentamente que


bateu no visor de Mannen com estrondo. Impelida pela enorme pressão sanguínea e
pelo ritmo de pulsação, a veia cortada vibrou como uma pequena mangueira que
tivesse sido largada das mãos. Mannen agarrou-a, perdeu-a e tentou de novo. O
esguicho tomou-se numa névoa fina e oscilante e parou. A enfermeira junto do
regulador de pressão acalmou-se visivelmente enquanto aquela que se encontrava ao
lado de Mannen limpou o seu visor.

Mannen recuou ligeiramente enquanto o campo operatório era aspirado até ficar
limpo. Através do visor os olhos dele brilhavam estranhamente na máscara branca e
suada que era o seu rosto. O tempo era importante agora. Os Hudlarianos eram duros,
mas havia limites — eles não podiam suportar indefinidamente a descompressão. Havia
um movimento gradual do fluido do corpo para a abertura no tegumento, uma tensão
nos órgãos vitais na vizinhança e um aumento correspondente na pressão sanguínea.
Para obter êxito, a operação não poderia durar mais de trinta minutos, e mais de
metade desse tempo tinha sido gasto na abertura do local onde estava o mal. Mesmo
que o tumor fosse retirado, a sua extirpação implicaria danos para os vasos
subjacentes, que teriam de ser reparados com grande cuidado antes de Mannen se
retirar.

Todos sabiam que a velocidade era essencial, mas para Conway pareceu subitamente
que eles estavam a ver um filme cuja passagem tivesse sido subitamente acelerada.
As mãos de Mannen moviam-se mais depressa do que Conway alguma vez vira. E cada vez
mais depressa...

— Não gosto disto — disse O’Mara, numa voz rouca.— Parece que ele está a recuperar
a confiança, mas é mais provável que tenha deixado de se preocupar... quanto a si
próprio. Continua preocupado com o paciente, sem dúvida, mesmo pensando que não há
muitas esperanças quanto a ele. E o que é trágico é que ele nunca deu motivo para
muitas esperanças, segundo Thornnastor me disse. Se não fosse a interferência do
seu hipotético amigo, Mannen nunca se teria preocupado tanto com a possibilidade de
perder o paciente… teria sido uma das suas muito poucas falhas. Quando ele cometeu
aquele seu primeiro deslize, perdeu a confiança em si próprio e agora...

— Houve qualquer coisa que o fez escorregar — disse Conway, com firmeza.

— Você tentou convencê-lo disso. Qual o resultado? — O’Mara mudou de assunto. —


Prilicla está muito agitado e cada vez treme mais. Mas Mannen é... ou era... um
indivíduo muito estável... não creio que ele estoire antes de acabar a operação.
Ainda que com estes tipos sérios, dedicados à sua profissão, ninguém seja capaz de
prever o que pode acontecer.

— Fala Edwards — disse uma nova voz. — Que há?

— Fale, Conway —disse o psicólogo. — Faça você as perguntas. Neste momento tenho
mais em que pensar.

O tumor esponjoso tinha sido levantado, mas um grande número de pequenos vasos
havia sido cortado para conseguir isso e o trabalho da reparação deles seria muito
mais difícil que qualquer coisa acontecida antes. Insinuar as pontas cortadas nos
tubos, o bastante para que não saltassem quando a circulação fosse restaurada, era
um processo difícil, repetitivo, castigador dos nervos.

Restavam apenas dezoito minutos.

— Recordo-me bem de Harrison — respondeu o distante Edwards quando Conway lhe


explicou o que pretendia.— O fato dele estava danificado na secção da perna mas não
podíamos deitá-lo fora... essas coisas transportam com elas um conjunto completo de
ferramentas e equipamento de sobrevivência... consequentemente são dispendiosas. E
naturalmente descontaminámo-lo! Os regulamentos dispõem expressamente que...

— Pode haver ainda qualquer espécie de portador. Major — disse rapidamente Conway.—
Até que ponto levou a descon...

— Até ao extremo — disse o Major, aparentemente aborrecido. — Se ele tinha consigo


qualquer bicharoco ou parasita, agora já é defunto. O fato, juntamente com tudo
quanto lhe estava ligado, foi esterilizado com vapor a alta pressão e irradiado e
passou pelo mesmo processo de esterilização que os seus instrumentos cirúrgicos.
Isso satisfá-lo, doutor?

— Sim — disse Conway baixinho. — Muito.

— Agora dispunha da ligação entre Meatball e a sala de operações, através do fato


de Harrison e da câmara de esterilização. Mas isso ainda não era tudo. Encontrara
Yehudi!

A seu lado Mannen parara. As mãos do cirurgião tremiam e ele dizia desesperado:

— Preciso de oito pares de mãos, ou instrumentos, que possam fazer oito operações
diferentes ao mesmo tempo. Isto não vai bem, Conway. De maneira nenhuma...

— Não faça nada durante um momento Doutor — disse apressadamente Conway, depois do
que começou a gritar ordens para as enfermeiras, a fim de que desfilassem perante
ele com os tabuleiros dos instrumentos. O’Mara começou a gritar que queria saber o
que estava a acontecer, mas Conway estava demasiado concentrado para lhe responder.
Depois uma das enfermeiras Kelgianas fez um ruído igual ao de uma buzina de
nevoeiro —o que para uma DBLF equivalia a um grito de surpresa — porque aparecera
subitamente uma chave de caixas de tamanho médio, entre os fórcipes do seu
tabuleiro.

— Não acreditará no que lhe vou dizer — disse Conway, alegremente, enquanto
transportava a... coisa... para junto de Mannen e a colocou nas mãos do cirurgião.
— Mas se me escutar por um momento e depois fizer o que lhe vou dizer...

Passado menos de um minuto, Mannen estava de novo a trabalhar.

Hesitante a princípio, mas com uma confiança e uma velocidade crescentes, voltou à
sua delicada tarefa de reparação. De vez em quando assobiava através dos dentes ou
praguejava fortemente, mas esse era o comportamento normal de Mannen durante uma
operação difícil que prometia decorrer bem. Na cúpula de observação, Conway podia
ver o rosto felizmente carrancudo, estupefacto do Psicólogo-Chefe, e o corpo frágil
e fino do empata. Prilicla continuava a tremer, mas muito lentamente. Era um tipo
de reação não muitas vezes visto num Cinrusskino fora do planeta nativo, indicando
uma fonte de radiação próxima que era intensa e inteiramente agradável.

Depois da operação, todos quiseram interrogar Harrison sobre Meatball, mas antes
que o pudessem fazer, Conway teve de explicar de novo ao tenente o que acontecera.

— E ainda que não tenhamos ideia da aparência deles, sabemos que são muito
inteligentes e, à sua maneira, tecnicamente avançados. Quero dizer com isso que
eles fazem e usam ferramentas...

— Sem dúvida — disse Mannen, e aquilo que ele tinha na mão tornou-se numa esfera
metálica, num busto de Beethoven, em miniatura, e num jogo de dentaduras
Tralthanas. Como se tornara evidente que o Hudlariano iria ser outro dos sucessos
de Mannen, em vez de um malogro, ele começara a recuperar o seu sentido de humor.

— Mas a fase de produção de ferramentas deve ter avançado muito, em conformidade


com o desenvolvimento das ciências filosóficas — prosseguiu Conway. — Custa até
imaginar as condições em que evoluíram. Essas ferramentas não foram concebidas para
usos manuais; os nativos não têm mãos como aquelas que conhecemos. Mas têm
espíritos. ..

Sob o domínio mental do seu proprietário a «ferramenta» abrira caminho através do


revestimento exterior da Descartes, junto ao posto de Harrison, mas durante a
súbita largada fora incapaz de voltar para trás e uma nova fonte de comando mental
— o Tenente — passara a dominá-la, sem o saber. Tornara-se no apoio que Harrison
necessitara tão desesperadamente para o seu pé, mas cedera sob o seu peso porque na
verdade não fazia parte da estrutura da nave. Quando os acessórios do escafandro de
Harrison tinham sido esterilizados na mesma sala que os instrumentos cirúrgicos e
quando uma enfermeira viera procurar um certo instrumento para a sala de operações,
ela tomara-se de novo no que era desejado.
Daí em diante houvera uma confusão sobre as contagens de instrumentos e escalpelos
que caíam e não cortavam e pulverizadores que se comportavam de maneira muito
estranha, e Mannen usara uma faca que seguira o seu espírito em vez das suas mãos,
com resultados quase fatais para o paciente. Mas, da segunda vez que isso
acontecera, Mannen sabia que tinha nas mãos uma pequena ferramenta não
especializada mas própria para todos os fins, que se submetia tanto ao comando
mental como ao comando manual, e algumas das formas que ele a fizera tomar e as
coisas que ela a levara a fazer deviam levar Conway a recordar aquela operação
durante o resto da vida.

— Esta... engenhoca... é provavelmente do maior valor para o seu proprietário —


disse finalmente Conway. — Temos obrigação de a devolver. Mas precisamos dela aqui,
muitas mais, se possível! Vocês têm de estabelecer contacto e firmar relações
comerciais. Deve haver qualquer coisa que tenhamos e que eles desejem...

— Daria o meu braço direito, por um — disse Mannen, e depois acrescentou, a sorrir.
— A minha perna direita, aliás...

O Tenente retribuiu o sorriso. Disse:

— Pelo que me recordo do lugar, doutor, não há por lá falta de carne crua.

O’Mara, que se mantivera invulgarmente silencioso, disse muito sério:

— Normalmente não sou um homem ambicioso. Mas consideremos as coisas que este
hospital poderia fazer com dez desses aparelhos, ou mesmo com cinco... Tivemos uma
e, se estamos a fazer o que é devido, voltaremos a colocá-la onde a encontrámos...
é evidente que uma ferramenta como esta tem um valor enorme. Isso significa que
teremos de as comprar ou de fazer qualquer espécie de troca com eles, e para fazer
isso teremos de aprender a comunicar com os seus proprietários.

Olhou para todos, cada um de sua vez, e depois disse, sardonicamente:

— Hesito em falar destes sórdidos assuntos comerciais a médicos dedicados e puros


de espírito como vocês, mas devo fazê-lo para explicar porque, se a Descartes
eventualmente estabelecer contacto com as criaturas que usam essas ferramentas,
quero que Conway e quem mais ele quiser escolher vão investigar a situação em
Meatball.

«Os nossos interesses não serão unicamente comerciais — acrescentou ele,


rapidamente — mas parece-me que se tivermos de recorrer à prática do regateio e da
troca, a única coisa que poderemos fornecer-lhes são os nossos conhecimentos
médicos e as nossas instalações.»

VERTIGEM

COMO era talvez inevitável, quando a indicação de vida inteligente, havia tanto
tempo aguardada, apareceu finalmente, a maioria dos observadores da nave estavam a
olhar para qualquer outra parte, de modo que ela não foi vista nas baterias de
telescópios que estavam a ser apontadas para a superfície ou nas películas fixas ou
cinematográficas que tinham sido impressionadas pelas sondas planetárias da
Descartes, mas sim nos visores de aproximação final da nave.

Na sala de comando da Descartes o Comandante carregou num botão da sua consola e


disse num tom seco:

— Comunicações?
— Apanhámo-lo, senhor — foi a resposta. — Um telescópio apontado segundo a
localização do radar... a imagem está no seu visor repetidor Cinco, É um veículo de
propulsão química, de dois ou três andares, e o segundo andar ainda está a
funcionar. Isso significa que podemos reconstruir a sua trajetória de lançamento e
determinar o local de partida com uma precisão razoável. Está a emitir sinais
complexos de radiofrequência, indicadores de canais de telemetria de alta
velocidade. O segundo andar apagou-se agora e está a cair. O terceiro, se é um
terceiro, não teve ignição... Está a ter problemas!

A nave alienígena, um cilindro fino, brilhante, com uma ponta cónica de um lado e o
outro extremo com maior diâmetro e rombo, começara a trambolhar.

— Armamento? — perguntou o Comandante.

—Para além do trambolhar — disse uma voz lenta —. a nave parece ter sido inscrita
numa órbita muito boa, quase circular, É muito improvável que essa órbita tenha
sido alcançada por acidente. A falta de sofisticação... relativa... no desenho do
veículo, e o facto de que a sua maior aproximação de nós se situar a menos de
trezentos quilómetros, indicam que é mais provável que se trate de um satélite
artificial ou de um veículo orbital tripulado, e não de um míssil dirigido a esta
nave.

«Se é tripulado — disse a voz, num tom diferente— a tripulação deve estar perante
um grande perigo

— Sim — disse o Comandante, que tratava as palavras como se fossem de um raro e


precioso metal. Depois disse: — Astrogador, prepare-se para a interseção e
encontro. Sala das Máquinas, atenção.

Quando a tremenda massa da Descartes se aproximou da pequena nave alienígena tomou-


se visível que, além de rodopiar de uma maneira entontecedora, o outro veículo
estava a verter. A rotação rápida tomava impossível dizer com certeza se era uma
fuga de propulsante do terceiro andar que não chegara a funcionar, ou ar a escapar-
se do módulo de comando, se era de facto um veículo tripulado.

O procedimento óbvio era o de deter o volteio com raios tractores tão suavemente
quanto possível para evitar esforços excessivos sobre a estrutura da pequena nave e
depois esvaziar os tanques do terceiro andar para eliminar o perigo de incêndio
antes de proceder à acostagem. Se a nave fosse tripulada e a fuga fosse de ar em
vez de propulsante. poderia ser admitida no porão de carga da Descartes onde o
salvamento e o primeiro contacto seriam possíveis — calmamente, uma vez que o ar de
Meatball era adequado aos seres humanos e inverso, provavelmente, também era
verdadeiro.

— Esperava-se que fosse uma operação de salvamento relativamente simples. A


princípio...

— Emissores de raios tractores Seis e Sete. A nave alienígena não obedece.


Detivemo-la três vezes e de cada vez ela aplicou um impulso direcional e voltou a
rodopiar. Por uma razão qualquer está propositadamente a lutar contra os nossos
esforços para a estabilizar. A velocidade e qualidade da reação sugerem que a
direção está a ser assegurada por uma inteligência presente nela. Podemos aplicar
mais força, mas só ao preço de danificarmos o casco da nave... é incrivelmente
frágil tendo em conta as normas atuais.

«Sugiro que usemos toda a força necessária para deter imediatamente o trambolhar,
abrir os tanques e deitar fora todo o propulsante, depois do que a meteremos no
porão de carga. Com a pressão do ar normal à sua volta, não haverá perigo para a
tripulação e teremos tempo de...»
— Fala Astrogação. Negativo quanto a isso. Os nossos cálculos mostram que a nave
partiu do mar... mais precisamente, do fundo do mar, porque não há evidência
visível de torres flutuantes ou de outras instalações de lançamento nessa área.
Podemos reproduzir o ar de Meatball porque é virtualmente igual ao nosso, mas não
essa sopa animal e vegetal que eles usam como água, e tudo indica que é isso que os
tripulantes respiram.

Durante alguns segundos o Comandante não disse nada. Pensava no tripulante ou


tripulantes alienígenas e nas suas razões para se comportarem daquela maneira. Quer
a razão fosse técnica, fisiológica, psicológica ou simplesmente alienígena, era de
importância secundária. O que importava era prestar socorros tão depressa quanto
possível.

Se a sua nave não pudesse ajudar diretamente a outra nave, poderia, numa questão de
dias, levá-la a um lugar que possuísse tudo quanto fosse necessário para o fazer. O
transporte, por si próprio, só apresentava um pequeno problema — o veículo podia
ser rebocado sem deixar de girar, desde que se instalasse um gancho magnético ao
seu centro de rotação, e com o ponto de atracação lateral da nave maior também a
girar, o cabo não se torceria ao ponto de levar a pequena nave a esmagar-se no
flanco da Descartes. Durante a viagem o campo da hiperpropulsão da nave maior
poderia ser expandido para incluir ambos os veículos.

A principal preocupação era a fuga e a completa ignorância sobre o período durante


o qual a nave alienígena esperava permanecer em órbita. Ele tinha também de tomar
rapidamente as decisões corretas se quisesse estabelecer relações amigáveis com a
gente de Meatball.

Sabia que nos primeiros dias do voo espacial humano as fugas eram ocorrências muito
normais, porque houvera muitas ocasiões em que fora preferível transportar reservas
de ar suplementares do que tomar as naves absolutamente estanques, devido ao
aumento de peso que isso representaria. Como o astronauta ou astronautas
alienígenas não deixavam, por qualquer razão estranha, que imobilizassem a sua
nave, o dever dele era evidente. Provavelmente a sua hesitação era devida a um
errado orgulho profissional porque ele estava a passar uma responsabilidade
particularmente importante a outros.

Rapidamente e com a sua usual economia de palavras o Comandante deu as ordens


necessárias e, menos de meia hora depois de ter sido avistada pela primeira vez, a
nave alienígena ia a caminho do Geral do Sector.

Com uma calma insistência, os altifalantes repetiam:

— Médico-Chefe Conway contacte por favor com o Major O’Mara.

Conway apreciou rapidamente a situação do tráfego no corredor, saltou na frente de


um interno Tralthano que carregava sobre ele sobre as suas seis patas de elefante,
roçou por um momento nos pêlos de uma lagarta kelgiana que vinha na direção oposta
e, enquanto se encostava à parede para evitar ser atropelado por qualquer coisa
como uma caixa altamente refrigerada sobre rodas, retirou do seu recetáculo o
comunicador.

Assim que ele estabeleceu contacto, os altifalantes começaram a insistir calmamente


que outra pessoa qualquer entrasse em contacto com outra pessoa qualquer.

— Está a tratar de qualquer coisa importante neste momento, doutor? — perguntou o


Psicólogo-Chefe sem qualquer preâmbulo. — Talvez empenhado numa investigação vital
ou numa operação de vida ou de morte? — O’Mara fez uma pausa c depois disse
secamente: — Compreende, de resto, que essas perguntas são perfeitamente
retóricas...

Conway suspirou e disse:

— Ia apenas almoçar.

— Belo. Nesse caso ficará muito satisfeito ao saber que os nativos de Meatball
puseram uma nave em órbita... pelo aspeto dela deve ser a primeira. Tiveram
dificuldades... o Coronel Skempton dar-lhe-á os pormenores... e a Descartes trouxe-
a para aqui para tratarmos dela. Chegará aqui dentro de três horas e eu sugiro que
você pegue numa nave-ambulância e em material pesado de salvamento e saia, para ver
se se consegue tirar a tripulação lá de dentro. Sugiro também que os doutores
Mannen e Prilicla sejam retirados dos seus serviços normais para o auxiliar, uma
vez que vocês três vão ser os nossos especialistas nos assuntos de Meatball.

— Compreendo — disse Conway num tom ardoroso.

— Muito bem — disse o Major. — E sinto-me satisfeito, doutor, por compreender que
há coisas mais importantes que a comida. Um psicólogo menos esclarecido e capaz do
que eu poderia admirar-se dessa súbita fome que surge sempre que se menciona uma
missão importante. De resto, eu compreendo que não é o sinal exterior de uma
sensação de insegurança, mas uma simples e tremenda gula!

«Tem muito que fazer, doutor — concluiu ele, num tom agradável. — Terminado.»

O gabinete de Skempton estava muito perto pelo que Conway precisou apenas de quinze
minutos para alcançá-lo — incluindo o tempo necessário para vestir um fato protetor
para os duzentos metros do caminho que passavam através dos pisos dos respiradores
de cloro Illensanos.

— Bom dia — disse Skempton antes que Conway abrisse a boca. — Tire essas coisas da
cadeira e sente-se. O’Mara já me falou. Decidi enviar a Descartes de volta a
Meatball assim que ela deixe aqui essa nave. Aos observadores nativos poderá
parecer que o veículo foi... quase diria raptado... e a Descartes deve estar
próxima para notar as reações, estabelecer contacto se possível e assegurar-lhes
que tudo vai bem. Ficar-lhe-ei muito grato se você conseguir estrinçar, satisfazer
e enviar de volta este «paciente»» a Meatball tão depressa quanto possível... nem
faz ideia de quanto isso seria útil à nossa gente do contacto cultural.

«Há uma cópia do relatório do incidente enviada pelo rádio de bordo da Descartes —
prosseguiu o Coronel. — E você precisará desta análise de água retirada do mar
junto do ponto de largada as amostras reais estarão disponíveis logo que chegue a
Descartes. Se precisar de mais algumas informações sobre Meatball ou sobre
procedimentos de contacto, fale com o Tenente Harrison, que vai ter alta e que
ficará muito contente por o ajudar. Não bata com a porta, doutor.

O Coronel começou a escavar profundamente na camada de papéis que cobria a sua


secretária e Conway voltou a fechar a boca e saiu. Na antecâmara pediu autorização
para se servir do intercomunicador e começou a trabalhar. Uma enfermaria desocupada
na secção de Chalder era o lugar óbvio para alojar o novo paciente. Os gigantescos
cidadãos de Chalderescol II eram respiradores de água, ainda que a água tépida e
esverdeada em que viviam fosse quase cem por cento pura comparada com a espécie de
sopa que eram os mares de Meatball. A análise permitiria que a Dietética e a
Regulação de Ambiente sintetizasse o conteúdo alimentício da água — mas não poderia
reproduzir os organismos vivos que ela continha. Isso teria de esperar até que as
amostras chegassem e eles tivessem oportunidade de estudar e criar esses
organismos, tal como o pessoal da R. A. podia reproduzir a gravidade e a pressão da
água, mas teria de esperar pela chegada da nave para proceder aos acabamentos do
alojamento do paciente.
A seguir, tratou de que uma nave-ambulância com equipamento pesado de salvamento,
pessoal especializado e apoio médico estivesse disponível antes da chegada da
Descartes. O transbordador devia estar preparado para transferir um paciente com
uma classificação fisiológica desconhecida que provavelmente sofria de ferimentos e
descompressão e naquele momento devia estar já próximo da fase terminal, e ele
precisava de uma equipa experimentada na transferência rápida, de emergência, de
sobreviventes de naufrágios.

Conway estava prestes a fazer uma chamada para Thornnastor, o Diagnosticador-Chefe


da Patologia, quando hesitou.

Não sabia muito bem se devia fazer uma série de perguntas específicas — mesmo que
hipotéticas — ou passar alguns minutos a exprimir preocupações em voz alta. Era
vitalmente importante que ele tratasse e curasse aquele paciente. Muito para além
de se tratar da sua obrigação, e da do hospital, um tratamento com êxito seria a
maneira ideal de estabelecer comunicação com os nativos de Meatball e conseguir
finalmente mais alguns daqueles maravilhosos instrumentos cirúrgicos comandados
pelo pensamento.

Mas qual seria o verdadeiro aspeto dos proprietários daqueles maravilhosos


instrumentos? Seriam eles pequenos e completamente não-especializados, sem qualquer
forma física definida, tal como as ferramentas que usavam ou, considerando em
primeiro lugar as capacidades mentais necessárias para desenvolver essas
ferramentas, seriam pouco mais do que cérebros fisicamente impotentes, dependendo
dos seus instrumentos comandados pelo pensamento para se alimentarem, protegê-los e
fornecer todas as necessidades físicas? Conway queria desesperadamente saber o que
o esperaria, quando a nave chegasse. Mas os Diagnosticadores, como toda a gente
sabia, eram imprevisíveis e ainda mais impacientes perante os pensamentos nebulosos
ou confusos que o era o Psicólogo-Chefe.

Conway disse a si próprio que seria melhor fazer a sua pergunta esperar até que
tivesse visto realmente o seu paciente, o que iria acontecer daí a uma hora.
Passaria esse tempo a estudar o relatório da Descartes.

E a almoçar.

A nave exploradora dos Monitores surgiu no espaço normal. com a nave alienígena a
girar como um hélice desequilibrado, na popa, e depois voltou imediatamente ao
hiperespaço para a viagem de regresso a Meatball. O transbordador de socorro
aproximou-se, agarrou o cabo de reboque que fora largado pela Descartes e amarrou a
ponta solta a um dos seus olhais rotativos.

Os doutores Mannen e Prilicla, o Tenente Harrison e Conway, todos com fatos de


pressão, observaram a manobra da escotilha do transbordador.

— Continua a haver fuga — disse Mannen. — É um bom sinal... ainda há pressão lá


dentro...

— A menos que seja uma fuga de propulsante — disse Harrison.

— Que sente? — perguntou Conway?

O corpo de Prilicla, frágil como uma casca de ovo, sobre as suas seis pernas finas
como pavios, tinham principiado a tremer tão violentamente que era óbvio que ele
sentia alguma coisa.

— A nave contém um ser vivo — disse Prilicla, lentamente. — A sua radiação


emocional é composta principalmente de receio e sensações de dor e sufocação. Devo
dizer que estas sensações o acompanham há muitos dias — a radiação é mortiça e
carece de clareza devido a uma inconsciência crescente. Mas a qualidade dos
sentimentos dessa criatura não deixa dúvidas de que ela é inteligente, e não apenas
um animal experimental...

— É bom sabermos que não iremos ter um trabalhão tão grande por causa de um
cachorrinho espacial — disse secamente Mannen.

— Não temos muito tempo — observou Conway.

Pensava que o paciente devia estar muito próximo do limite. O medo dele era
compreensível, evidentemente, e a dor, a sufocação e a consciência diminuída eram
provavelmente devidas a ferimentos, fome intensa e água contaminada. Conway
colocou-se na posição do astronauta de Meatball.

Mesmo pensando que o piloto fora terrivelmente perturbado pelo rodopio


aparentemente imparável, procurara com todas as suas forças manter a rotação quando
a Descartes o tentara recolher a bordo porque devia ter compreendido que uma
cápsula aos trambolhões não podia ser recolhida no porão da nave exploradora.
Talvez ele tivesse podido sustar o movimento de rotação se a Descartes não tivesse
tido tanta pressa em ajudá-lo— mas isso era apenas uma hipótese e a nave mostrara
ter grandes fugas. Agora continuava a ter fugas — e a girar — e o seu tripulante
estava quase inconsciente. Conway pensou que poderia assustá-lo um pouco, travando
a rotação e fazendo entrar o veículo no transbordador, de modo a levar o paciente
tão depressa quanto possível para compartimento cheio de água onde poderiam cuidar
dele. No entanto tão depressa os dedos imateriais dos raios tractores se lançaram
sobre a cápsula, uma força igualmente invisível pareceu agarrar no frágil corpo de
Prilicla e agitá-lo furiosamente.

— Doutor — disse o empata — a criatura está a irradiar um medo extremo. Está a


extrair à força pensamentos coerentes de um cérebro que se encontra perto do
pânico. E está a perder consciência rapidamente... talvez a morrer... Atenção! Está
a usar os motores de manobra!

— Cortem! — gritou Conway aos emissores de raios tractores. A nave alienígena, que
quase parara, começou a girar lentamente, enquanto era ejetado vapor das saídas
laterais da proa e da popa. Ao fim de alguns minutos os jatos tornaram-se
irregulares, mais fracos, e cessaram finalmente, deixando o veículo a girar a cerca
de metade da sua velocidade original. O corpo de Prilicla parecia estar a ser
batido por um vento fortíssimo.

— Doutor — disse Conway subitamente. — Considerando o género de ferramentas que


esta gente usa, pergunto a mim próprio se estará a ser usada contra si qualquer
espécie de força extrassensorial. .. está a tremer como uma folha ao vento.

Quando Prilicla respondeu, a sua voz estava, evidentemente, vazia de emoção.

— Não estava a pensar diretamente em ninguém, amigo Conway. A radiação emocional da


criatura é composta principalmente por medo e desespero. A sua perceção está a
diminuir e parece lutar para evitar uma catástrofe final...

— Está a pensar no mesmo que eu? — perguntou Mannen.

Conway respondeu:

— Se pensa em pôr essa coisa novamente a girar a toda a velocidade... a resposta


será «sim». Mas não há nenhuma razão lógica para isso, pois não?

Alguns segundos depois os homens do raio tractor inverteram a polaridade para


aumentar a velocidade de rotação do veículo. Quase imediatamente o tremor de
Prilicla cessou e ele disse:

— A criatura sente-se muito melhor agora... relativamente, bem entendido. A sua


vitalidade ainda é muito baixa.

Prilicla começou a tremer de novo e dessa vez Conway compreendeu que os seus
próprios sentimentos de frustração e cólera estavam a afetar a pequena criatura.
Tentou tornar os seus pensamentos mais frios e construtivos, mesmo pensando que ele
sabia que a situação era essencialmente a mesma que fora quando a Descartes tentara
pela primeira vez ajudar o astronauta de Meatball — não estavam a fazer progresso
algum.

Mas havia umas coisas que ele podia fazer e que podiam ajudar o paciente, ainda que
de uma maneira indireta.

O vapor que se escapava do veículo tinha de ser analisado para ver se era de
propulsante ou simplesmente de água do sistema de manutenção de vida da nave.
Muitas informações valiosas poderiam ser obtidas de uma visão direta do paciente—
mesmo que fosse possível observá-lo através do lado errado de um periscópio, porque
a nave não possuía nenhuma vigia. Precisavam também de encontrar um meio de entrar
na nave para examinarem o tripulante e o acalmarem, antes de o transferirem para
uma ambulância e para a enfermaria.

Seguido de perto pelo Tenente Harrison. Conway deslocou-se ao longo do cabo de


reboque, na direção da cápsula que rodopiava. Como o cabo girava, eles giravam
também. de modo que enquanto se aproximavam do veículo ele parecia fixo, enquanto
todas as outras coisas pareciam voltear longamente. Mannen ficara na escotilha,
pretextando que era muito velho para tais acrobacias, e Prilicla aproximou-se da
cápsula flutuando no espaço e usando os propulsores do seu fato para manobrar.

Agora que o paciente estava quase inconsciente, o Cinrusskino tinha de estar perto
para detetar as subtis alterações das radiações emocionais. Mas o longo casco
tubular girava silenciosamente sob a pequena criatura como as pás de um moinho
tremendo.

Conway não expressou, no entanto, a sua preocupação. Com Prilicla isso não era
necessário.

— Aprecio os seus sentimentos, amigo Conway — disse Prilicla—. mas não creio que,
apesar da minha classificação fisiológica, tenha nascido para ser esborrachado.

Quando alcançaram o casco, subiram para ele com o auxílio de imanes de pulso e
bota, e notaram que o grampo magnético que fora colocado pela Descartes amolgara as
chapas do casco e que essa era a área obscurecida pela névoa do vapor que se
escapava. Os próprios imanes dos fatos deles faziam mossas nas chapas. O metal não
devia ser muito mais espesso que papel, e Conway sentia que se ele fizesse um
movimento demasiado brusco abriria um buraco nele.

— Não é assim tão mau como isso, doutor — disse o tenente. — Nos nossos primeiros
dias de voo no espaço... antes de termos dominado a gravitação, as viagens
hiperespaciais e os motores nucleares tivessem tomado as considerações de peso de
pouca ou nenhuma importância... os veículos tinham de ser construídos de modo a
serem tão leves quanto possível. De tal modo que o conteúdo era muitas vezes usado
para reforçar a estrutura...

— No entanto — disse Conway— sinto-me como se estivesse a pisar gelo fino... até
posso ouvir água ou propulsante a borbulhar lá em baixo. Por favor verifique a
popa. Eu vou para vante.
Tiraram amostras do vapor que se escapava de vários lugares, e bateram, escutaram
os ecos e analisaram com fones sensíveis os ruídos que vinham, do interior do
veículo. Não havia resposta do tripulante, e Prilicla disse-lhes que ele não notara
a presença deles. Os únicos sinais de vida vindos do interior eram mecânicos.
Pareciam vir de um mecanismo invulgarmente complexo, a julgar pelos ruídos que
ouviam, além do borbulhar do líquido. E quando se aproximaram das extremidades da
cápsula, a força centrífuga trouxe outra complicação.

A cabeça de Conway apontava para a proa da nave de modo que a força centrífuga
impunha um G negativo no seu corpo. Não era excessivamente incómodo — ele sentia os
olhos um pouco esbugalhados mas a sua vista não se avermelhava. O pior era a visão
da nave-ambulância, de Prilicla e da vasta e tubular árvore de Natal que era o
Geral do Sector a girarem em volta da proa da cápsula aparentemente imóvel. Quando
ele fechou os olhos, a sensação de vertigem diminuiu, mas, naturalmente, deixou de
ver o que estava a fazer.

Quanto mais avançava maior era a força que os imanes do seu fato tinham de fazer
para o segurarem à superfície lisa de metal do casco da nave, mas não podia também
aumentar a potência porque a chapa fina começava a ranger e ele tinha receio de
rasgar o casco. Mas a pouca distância havia um tubo saliente curto, que
possivelmente era qualquer espécie de periscópio e ele começou a acercar-se do
dispositivo com todo o cuidado. Mas, de súbito, escorregou e agarrou-se
instintivamente ao tubo quando passou por ele.

O tubo entortou-se de uma maneira alarmante e ele largou-o, assustado, ao notar a


nuvem de vapor que se formara à sua volta, ao mesmo tempo que se sentia lançado no
espaço como que por uma funda.

— Que diabo! Onde está, doutor? — disse Mannen. — Da última vez que o vi estava
ali, mas agora...

— Não sei, doutor — respondeu Conway, furioso. Acendeu um dos seus fachos de alarme
e acrescentou: — Agora já me vê?

Sentiu os raios tractores a focarem-se nele e a puxarem-no de volta ao


transbordador. Conway acrescentou:

— Isto é ridículo! Estamos a gastar demasiado tempo com o que devia ser um simples
trabalho de salvamento. Tenente Harrison, Dr. Prilicla... por favor voltem ao
transbordador. Tentaremos outra coisa.

Enquanto discutiam o problema, Conway providenciou para que a nave fosse


fotografada de todos os ângulos e tratou de que o laboratório principiasse a
realizar uma análise pormenorizada das amostras que o próprio Harrison recolhera.
Ainda estavam a procurar uma solução quando as fotografias e as análises chegaram
às mãos deles, algumas horas depois.

Fora averiguado que o vapor que se escapava da nave alienígena era de água, e não
de propulsante, e que a água era usada unicamente para fins respiratórios, uma vez
que não continha as matérias animais e vegetais encontradas nas amostras dos
oceanos de Meatball e que, comparado com o das amostras locais, o seu conteúdo de
CO2 era muito alto —em resumo: a água estava perigosamente contaminada.

Um estudo pormenorizado das fotografias, feito por Harrison, que era uma autoridade
notável no primitivo voo espacial, sugeriu que a parte expandida da popa da nave
alienígena continha um escudo térmico sobre o qual fora montado um grupo de
travões-foguetes. Agora era evidente que, longe de ser um último «andar» que não
funcionara, o longo veículo cilíndrico continha pouco mais do que o sistema de
sustentação de vida, o qual, a julgar pelo tamanho, devia ser muito grosseiro.
Depois de fazer essa afirmação, o tenente pensou melhor e observou que enquanto os
astronautas que respiravam ar podiam transportar consigo ar comprimido, um
respirador de água não podia comprimir água.

A ponta da ogiva continha pequenos painéis que provavelmente se abriam para largar
os paraquedas de descida. A cerca de metro e meio para a popa havia outro painel
que tinha menos de quarenta centímetros de largura e cerca de um metro e oitenta de
comprimento. Eram dimensões estranhas para uma escotilha de entrada e saída do
piloto, mas Harrison estava convencido de que não podia ser outra coisa.
Acrescentou que a falta de sofisticação mostrada na construção do veículo tornava
improvável que se tratasse de uma escotilha dupla.

Portanto, se o Doutor Conway abrisse o painel, a força centrífuga esvaziaria o


veículo de toda a água — ou melhor: de metade da sua água — numa questão de
segundos. A mesma força obrigaria a água da secção da popa a manter-se ali, mas era
quase certo que o astronauta se encontrava na proa.

Conway bocejou furiosamente e esfregou os olhos. Disse:

— Tenho de ver o paciente para fazer uma ideia das suas lesões e preparar os seus
alojamentos. Tenente: suponha que eu abro uma entrada a meio da nave, no centro de
rotação dela. Uma quantidade apreciável da água que ela continha já se perdeu e a
força centrífuga obrigou o resto a concentrar-se na proa e na popa, de modo que a
parte média do veículo deve estar vazia e a perda adicional de água causada pela
minha entrada será ligeira.

— Concordo, doutor — disse Harrison. — Mas a estrutura da nave deve ser tão frágil
que, se abrir um rasgo nela, não só afetará a vedação das secções onde se encontra
a água como criará o perigo de a força centrífuga a destroçar.

Conway abanou a cabeça.

— Se pusermos uma larga cinta de metal em torno da secção central, e se a cinta


incluir uma escotilha estanque, suficientemente grande para um homem, poderemos
vedar os contornos da cinta com cimento rápido... nada de soldaduras,
evidentemente, porque o calor destruiria o revestimento... e depois montaríamos uma
comporta de ar sobre a escotilha. Isso permitir-me-ia entrar...

— Seria muito difícil numa nave girando sobre si própria — disse Mannen.

Harrison observou:

— Sim. Mas poderemos instalar uma estrutura ligeira, tubular, presa ao casco por
imanes. A cinta e a comporta de ar poderão ser instaladas a partir daí. Mas levará
algum tempo...

Prilicla não fez comentários. Os Cinrusskinos não tinham muito vigor físico e o
pequeno empata agarrara-se ao teto com as ventosas das suas seis patas e deixara-se
adormecer.

Mannen, o tenente e Conway estavam a requisitar o material e a assistência


especializada do Hospital e principiava a organizar um grupo de trabalho quando o
radiografista do transbordador disse:

— O Major O’Mara quer falar-lhes no visor Dois.

— Doutor Conway — disse o Psicólogo-Chefe quando pôde ver e ser visto. — Têm-me
chegado rumores de que você está a tentar... e talvez já tenha conseguido...
estabelecer um novo máximo para o tempo despendido para transferir um paciente de
uma nave para a enfermaria. Não preciso recordá-lo da urgência e importância desse
assunto, mas faço-o, de qualquer maneira, É urgente, doutor, e importante.
Terminado.

— Esse sarcasmo... — começou Conway a dizer, furioso, para a imagem que já se


extinguia, mas depois recompôs-se porque os seus sentimentos faziam estremecer
Prilicla no seu sono.

O tenente, olhando para Mannen, disse:

— Talvez a minha perna ainda não esteja devidamente curada desde que a quebrei,
nessa descida em Meatball. Um médico amigo, cooperador, poderia decidir enviar-me
de volta para a Enfermaria 4 do Piso 283.

Mannen retorquiu secamente:

— O mesmo doutor amigo e pronto a auxiliá-lo poderia concluir que uma certa
enfermeira humano-terrestre na Quarta-238 tinha algo que ver com o seu relapso, e
ele poderia enviá-lo para a... digamos, Sétíma-241. Não há nada como ser tratado
por uma enfermeira com quatro olhos e pernas a mais para que um homem deixe de
uivar à Lua.

Conway riu-se:

—Não lhe dê atenção, Harrison. Por vezes ainda é pior que O’Mara. Neste momento,
não podemos fazer mais nada e o dia foi longo e duro. Vamo-nos deitar antes que
adormeçamos.

Passou-se outro dia sem que tivesse sido feito qualquer progresso significativo.
Por causa da urgência, o pessoal que montava a estrutura tentou apressar-se e
perdeu ferramentas e secções da armação, além do que deixou ir homens pela borda
fora, por mais de uma vez. Os homens puderam ser facilmente recuperados pelos raios
tractores, mas as ferramentas e as partes da armação não estavam equipadas com
fachos luminosos e perderam-se, de uma maneira geral. Praguejando por ter de
realizar um difícil trabalho de construção numa espécie de carrossel espacial, os
homens voltaram ao trabalho.

O progresso tomou-se muito mais lento mas um pouco mais certo, o número de mossas e
vincos feitos no casco da nave pelas ferramentas e pelas botas espaciais tomou-se
incontável, e a neblina criada pelo vapor de água que se escapava continuou a
aumentar.

Numa tentativa desesperada para acelerar as coisas, e muito contra os desejos de


Prilicla, Conway tentou de novo tomar mais lento o movimento de rotação. Dessa vez,
segundo o empata informou, não houve sinais de pânico, porque o tripulante estava
tão inconsciente que não se apercebia disso. Acrescentou que não podia descrever a
radiação emocional do paciente senão a qualquer outro empata, mas era de opinião.
muito firme, que se o movimento de rotação não fosse restabelecido, o paciente não
tardaria a morrer.

No dia seguinte a estrutura estava pronta e começou a ser instalada a cinta em que
seria montada a comporta provisória. Entretanto Conway e Harrison prenderam cabos
de segurança à estrutura e examinaram o casco. O tenente descobriu muita coisa
sobre os reatores de manobra e os circuitos dos travões-foguetes, enquanto Conway
continuava a sentir-se estupefacto perante a longa e estreita escotilha e a pequena
vigia que tinha apenas alguns centímetros de diâmetro e mostrava apenas uma espécie
de obturador que se abria e fechava rapidamente. Foi só no dia seguinte que o
tenente e ele puderam entrar na nave.
O seu tripulante estava vivo, como Prilicla dissera, mas a sua vida encontrava-se
por um fio.

Como se esperava, a seção da cintura da nave estava quase vazia de água. A força
centrífuga levara-a a concentrar-se nas extremidades do veículo, mas as lanternas
deles refletiam-se num espesso nevoeiro que, depois de uma rápida investigação,
verificaram ser alimentado pelo funcionamento de um sistema de carretos e correntes
de transmissão que se estendia a todo o comprimento da nave.

Movendo-se cautelosamente para não entalar as mãos entre qualquer engrenagem e a


respetiva corrente, e também para não abrir inadvertidamente um rombo no frágil
revestimento do casco, o tenente dirigiu-se para a popa enquanto Conway se dirigia
para a proa. Fizeram isso para se assegurarem de que o centro de gravidade da nave
se mantinha tão perto quanto possível do seu centro de rotação, porque qualquer
desequilíbrio abalaria a estrutura e provavelmente abriria rombos nos flancos da
nave.

— Sei que a circulação e purificação da água exigem equipamento mais pesado que o
sistema de regeneração de ar — disse Conway, falando a Harrison e ao transbordador.
— No entanto tenho a certeza de que devia haver aqui uma proporção maior de
sistemas elétricos, em relação aos mecânicos. Não posso avançar mais que alguns
metros e só vejo carretos e correntes. O sistema de circulação gera uma forte
corrente e estou em perigo de ser arrastado para as engrenagens.

O nevoeiro impedia uma visão clara, mas durante um momento ele viu qualquer coisa
que não fazia parte do mecanismo — qualquer coisa castanha, enrolada, e com uma
espécie de vegetação ou tentáculos curtos a despontarem dele; qualquer coisa
orgânica. A criatura estava cercada por todos os lados por mecanismos que rodavam,
e parecia rodar também, mas via-se tão pouco do seu corpo que não podia haver a
certeza disso.

— Vejo-o — disse Conway. — No entanto não posso fazer uma classificação precisa.
Não parece usar fato de pressão, de modo que isto deve ser o equivalente de um
ambiente de «mangas de camisa». Mas não podemos tirar daqui a criatura sem desfazer
a nave, o que o matará. — Praguejou e depois disse, furioso: — Isto é ridículo,
insano! Queriam que eu viesse aqui, imobilizasse o paciente, o transferisse para
uma enfermaria e o tratasse. Mas esta maldita coisa não pode ser imobilizada sem...

— Suponho que há qualquer coisa que não funciona bem no sistema de manutenção de
vida — disse o tenente, interrompendo-o.—Qualquer coisa que exige gravidade, ou
gravidade artificial sob a forma de força centrífuga para voltar a funcionar
devidamente. Se pudéssemos reparar essa avaria...

— Mas porquê? — disse subitamente Conway, enquanto uma ideia vaga que estivera
oculta no seu cérebro vinha à superfície. — Quero dizer... porque é que devemos
pensar que se trata de uma avaria? — Fez uma pausa e depois disse: — Abriremos as
válvulas de um par de garrafas de oxigénio, aqui dentro, para melhorar o ar que a
criatura respira... ou antes, a água. Será uma espécie de primeiro-socorro, até que
estejamos em condições de fazer algo mais positivo. Depois regressaremos ao
transbordador. Estou a começar a ter ideias estranhas sobre este astronauta.
Gostaria de comprová-las.

Voltaram à sala de comando sem despir os fatos e encontraram Prilicla, que lhes
disse que o paciente parecia um pouco melhor, mas continuava inconsciente. O empata
acrescentou que podia ser que a criatura estivesse ferida e num estado adiantado de
desnutrição, além de se ter encontrado perto da morte, devido a asfixia. Conway
começou a dizer-lhe qual era a sua ideia, enquanto traçava um esquema da nave.
Quando o esquema ficou completo, disse:—Se este é o centro de rotação e a distância
deste ponto à posição do piloto é esta, e a velocidade de rotação é esta, pode
dizer-me se a gravidade aparente, na posição do piloto, é semelhante à de Meatball?

— Um momento — disse Harrison, e começou a escrevinhar. Alguns minutos depois, após


uma demora para comprovação dos cálculos, ele disse: — Muito próximo, doutor. Ou
antes: é idêntica.

Pensativo, Conway disse:

— Isso significa que temos um mostrengo que, sem dúvida por alguma boa razão
fisiológica, não pode viver sem gravidade...

— Desculpe-me, doutor — disse a voz calma do radiografista. — O Major O'Mara está


no Visor Dois.

Conway sentiu que a ideia que se formara no seu espírito começava a reduzir-se a
nada: força centrífuga, rodas dentro de rodas! Mas as feições quadradas e duras do
Psicólogo-Chefe enchiam o visor e era impossível pensar noutra coisa.

O’Mara falou num tom agradável —o que era um mau sinal.

— A sua atividade recente foi impressionante, doutor. Especialmente quando tomou a


forma de uma atividade meteórica de origem humana, com ferramentas e componentes
estruturais. Mas estou preocupado com o seu paciente. Todos estamos... e em
particular o comandante da Descartes, que voltou não há muito a Meatball.

O psicólogo continuou:

— O Comandante encontrou dificuldades sob a forma de três mísseis com ogivas


nucleares que foram lançados sobre a nave. Um deles desviou-se da sua trajetória e
emporcalhou uma grande área do oceano de Meatball e os outros dois aproximaram-se
tanto que ele teve de aplicar um impulso máximo, de emergência, para lhes escapar.
Diz que é impossível, nestas condições, estabelecer comunicações e um contacto
amigável com os habitantes, pois eles devem estar plenamente convencidos de que ele
raptou o seu astronauta por quaisquer razões horríveis, e o regresso da criatura
num estado saudável e feliz é o único meio de restabelecer a situação... Doutor
Conway, está de boca aberta. Ou diz alguma coisa ou fecha-a!

— Desculpe, senhor — disse Conway, distraído. — Estava a pensar. Há uma coisa que
eu gostaria de experimentar... e talvez me possa ajudar, conseguindo o apoio do
Coronel Skempton. Estamos a perder tempo aqui. Quero levar a nave para dentro do
hospital... ainda a girar, evidentemente, mas apenas a princípio. A Escotilha de
Carga 30 é suficientemente grande para isso e está bastante perto do corredor cheio
de água que conduz à enfermaria que estivemos a preparar para o paciente. Mas
receio que o Coronel não goste muito que se leve o veículo para o hospital.

Na verdade o Coronel não gostou, apesar dos argumentos de Conway e do apoio de


O’Mara. Instado pela terceira vez, respondeu com uma negativa firme e inequívoca.
Disse:

— Compreendo a urgência da questão. Compreendo a sua importância em relação às


nossas futuras esperanças de negociar com Meatball e compreendo os vossos problemas
técnicos. Mas vocês não entrarão... repito: não entrarão... com um foguete químico,
tendo os travões ainda carregados, neste hospital! Se ele funcionasse
acidentalmente, teríamos um rombo no casco que causaria uma queda de pressão mortal
numa dúzia de pisos, e o veículo podia dirigir-se como uma bala para o computador
central ou as secções de comando da gravitação!
— Desculpe-me — disse Conway furioso, voltando-se para o tenente. Perguntou:

— Pode pôr em funcionamento esses travões-foguetes, a partir da nave ambulância, ou


desligá-los?

— Provavelmente não os poderia desligar sem os pôr em funcionamento e tornar-se em


cinzas, mas poderia instalar-lhe um relé que... Sim poderemos pô-los em
funcionamento a partir da sala de comando.

— Trate disso, tenente — disse Conway, depois do que se virou para a imagem de
Skempton. — Concluo, senhor, que nada tem a objetar sobre a entrada da nave no
hospital depois de os travões-foguete terem sido atuados? Nem quanto ao
funcionamento do material de que necessitarei no porão de carga e na enfermaria?

— O oficial de manutenção nesse piso tem ordem para cooperar — disse Skempton. —
Boa sorte, doutor. Terminado!

Enquanto Harrison colocava o relé, Prilicla mantinha a sua vigilância emocional


sobre o paciente, e Mannen e ele próprio calculavam aproximadamente o tamanho e o
peso da criatura, baseando-se na breve visão que Conway tivera dela e nas dimensões
da sua nave. Essa informação era indispensável para que o transportador especial e
a sala de operação rotativa estivessem prontas a tempo.

— Ainda estou aqui, doutor, e tenho uma pergunta a fazer-lhe— disse O’Mara, num tom
seco. — A sua ideia de que a criatura precisa de gravidade, quer normal, quer
artificial, posso eu compreender, mas agora colocá-la nesse carrossel tão
complicado...

— Não é um carrossel — disse Conway. — É vertical, como uma «Grande Roda»...

O’Mara fungou fortemente.

— Suponho que sabe bem o que está a fazer, doutor?

— Bem... — começou a responder Conway.

— É o que acontece a quem faz perguntas estúpidas — disse o psicólogo, e desligou.

O tenente demorou mais tempo a instalar o relé do que calculara — naquele trabalho
tudo levava mais tempo que o previsto! — e Prilicla informou que o estado do
paciente entrava a piorar rapidamente. Mas por fim os foguetes de travagem
funcionaram durante o número de segundos necessário para tirar a cápsula da sua
órbita original e a nave-ambulância acompanhou-a, fazendo-a girar com raios
tractores opostos assim que o impulso desapareceu, para que o tripulante
continuasse a dispor de gravidade. Mesmo assim houve complicações: logo que os
travões-foguete pararam, abriram-se janelas na ogiva e o paraquedas de descida
saltou. Dentro de segundos, a nave ficou com os paraquedas enrolados à sua volta,
desajeitadamente.

O curto período de impulso aumentou também os danos do casco.

— Está a dar fugas como um passador! — gritou Conway. — Lancem-lhe outro grampo
magnético. Mantenham-na a girar e levem-nos rapidamente para a Escotilha 30! Como
está o paciente?

— Consciente, agora — disse Prilicla, a tremer. — Apenas consciente, e irradia um


medo extremo...

Ainda a girar, o veículo foi levado para a enorme boca da Escotilha 30. Dentro da
câmara da comporta de ar, as grelhas de gravidade artificial colocadas sob o convés
foram neutralizadas, para que as condições de ausência de peso, existentes no
espaço, se mantivessem. A sensação de vertigem de Conway, que o acompanhara desde
que vira a cápsula pela primeira vez. foi intensificada pela visão da nave
alienígena. a girar pesadamente no espaço fechado, lançando jatos de vapor gelado
enquanto girava.

Depois, subitamente, a escotilha exterior foi fechada, os raios tractores detiveram


suavemente a rotação da nave e a gravidade artificial do convés foi levada até ao
nível normal de Meatball. Passados alguns segundos a nave estava pousada
horizontalmente no convés.

— Como está ele? — perguntou Conway, ansioso.

Prilicla disse:

— Medo... não, uma angústia extrema. A radiação é agora muito forte... a criatura
parece estar bem, pelo menos melhorou... — O empata deu a impressão de não
acreditar nas suas próprias sensações.

A nave foi levantada suavemente e um reboque baixo e comprido, com pneus-balão, foi
introduzido por baixo dela. Da abertura que dava para a secção adjacente, começou a
cair água na câmara da comporta. Prilicla correu para a parede e dali para o teto,
até se colocar a poucos metros acima da proa da nave, e Mannen, Harrison e Conway
patinharam primeiro e depois nadaram na mesma direção. Quando alcançaram a nave
juntaram-se na proa, ignorando a equipa que estava a colocar cintas em torno da
nave, fixando-a antes de levar para o corredor adjacente, dos respiradores de água,
e começaram a cortar a fina chapa do casco.

Conway insistiu em que o trabalho fosse feito com extremo cuidado, para evitar
quaisquer danos no mecanismo de manutenção de vida.

A pouco e pouco, a ogiva tomou-se em pouco mais que um esqueleto e o astronauta


ficou exposto. Era uma espécie de lagarta castanha com a cauda na boca, e parecia
entalada nas engrenagens mais interiores de um relógio gigante. Por essa altura já
a nave estava completamente submersa e estava a ser difundido oxigénio na água, à
sua volta. Prilicla disse que o paciente se sentia extremamente angustiado e
confundido.

— Sente-se confundido... — disse uma voz familiar, irascível, e Conway deu com
O’Mara a nadar ao lado dele. O Coronel Skempton patinhava como um cão, do outro
lado. em silêncio. O psicólogo prosseguiu: — Caso se tenha esquecido disso, doutor,
lembro-lhe que isto é importante; daí o nosso interesse pessoal. Mas porque é que
não desmonta esse despertador e tira daí o paciente? Você já provou a sua teoria de
que ele precisava de gravidade para viver...

— Ainda não — respondeu Conway. — Ainda não...

O Coronel Skempton interrompeu-o:

— É evidente que a rotação da criatura dentro da cápsula compensa a rotação da


nave, permitindo que a criatura tenha uma visão estacionária do mundo exterior.

Teimosamente, Conway disse:

— Não sei. A rotação da nave não compensava inteiramente a do astronauta dentro


dela. Em minha opinião, devemos esperar até que possamos transferi-lo rapidamente
para a roda, que quase reproduz as condições do módulo. Tenho uma ideia... que pode
ser louca... de que ainda não estamos livres de problemas.
— Mas transferir a nave inteira para a enfermaria quando o paciente, sozinho,
poderia ser transferido numa questão de segundos...

— Não — insistiu Conway.

— Ele é que é o doutor — disse O’Mara, antes que a discussão fosse por diante, e
desviou discretamente a atenção do coronel para o sistema de rodas de pás que
mantinha o «ar» respirado pelo astronauta em circulação permanente.

O enorme reboque, com o seu peso suportado em grande parte pela água graças aos
pneus-balão, foi empurrado através do corredor e dali para o tremendo tanque que
era um dos conjuntos de sala de operações-enfermaria dos respiradores de água.
Subitamente, surgiu outra complicação.

— Doutor! Ele está a sair!

Um dos homens que se acotovelava junto da ogiva devia ter carregado acidentalmente
no botão de ejeção do astronauta, porque a estreita escotilha se abrira e o sistema
de engrenagens, carretos e correntes estava a deslizar e a tomar novas posições.
Qualquer coisa que se parecia com três pneumáticas de metro e meio de diâmetro
estava a rolar em direção à abertura.

O pneumático central era o astronauta, enquanto os laterais tinham um aspeto


metálico e uma série de tubos passava deles para o central, orgânico —
provavelmente eram depósitos de alimentos, pensou Conway. A sua teoria nasceu
quando as secções exteriores se detiveram exatamente junto da escotilha e a
criatura, levando ainda um dos tubos de alimentação, rolou para fora da nave.
Sempre a girar, começou a cair para o pavimento dois metros e meio abaixo.

Harrison, que era o mais próximo, tentou amortecer a queda, mas apenas conseguiu
deitar-lhe uma mão. A criatura tombou e caiu no chão, de lado. Saltitou apenas uma
vez e imobilizou-se.

— Está outra vez inconsciente, a morrer! Depressa, amigo Conway!

A voz normalmente cortês e discreta do empata fora transmitida ao máximo de


intensidade, para despertar imediatamente a sua atenção. Conway respondeu com um
aceno — já ia a nadar na direção da criatura, tão depressa quanto podia — e gritou
a Harrison:

— Coloque-o de pé, homem! Volte-o!

— O quê!... — berrou Harrison, mas de qualquer maneira meteu os braços sob o


alienígena e começou a levantá-lo.

Mannen, O’Mara e Conway chegaram ao mesmo tempo. Os quatro levantaram rapidamente a


criatura e colocaram-na de pé, mas quando Conway tentou fazê-la rodar, ela oscilou
como um arco mole e começou a dobrar-se como si próprio. Prilicla, com grande
perigo da sua vida e dos seus membros extremamente frágeis, pousou junto deles e
ensurdeceu todos com pormenores da radiação emocional do astronauta — que agora era
virtualmente inexistente.

Conway gritou aos outros que mantivessem a criatura de pé e a fizessem rodar sobre
si própria. Poucos segundos depois. O'Mara puxava pelo seu lado, enquanto Mannen
levantava o seu e o tenente e Conway procuravam que aquele corpo em forma de anel
não tombasse.

— Mais baixo Prilicla! — gritou O’Mara. Depois, numa voz mais calma, mas ainda mais
furiosa, disse:—Creio que um de nós sabe o que está a fazer!

— Também creio —disse Conway. — Pode fazê-lo girar mais depressa? Dentro da nave
ele rodava com muito maior rapidez. Prilicla...

— Ele está quase morto, amigo Conway!

Fizeram tudo quanto puderam para acelerar a rotação da criatura, ao mesmo tempo que
a levavam para o alojamento preparado para ela. e no qual se encontrava a roda que
Conway mandara fazer, assim como uma atmosfera aquática que era um duplicado da
sopa que era o oceano de Meatball. Na verdade. não era um perfeito duplicado,
porque o material suspenso na sopa era uma massa sintética, sem vida, e não os
organismos vivos do original, mas tinha o mesmo valor alimentício e. como não era
tóxico para os outros respiradores de água que pudessem vir a ocupar aquela
enfermaria, o recinto onde ficaria o astronauta estava limitado por uma película de
plástico transparente, em vez de chapas de metal e uma escotilha dupla. Isso ajudou
também a levar o paciente para o seu lugar e para a roda.

Por fim ele ficou em posição, preso com cintos e girando na mesma direção e à mesma
velocidade que no «leito» da nave. Mannen, Prilicla e Conway colocaram-se tão perto
quanto possível do centro da roda e. enquanto procediam ao exame do paciente, o
pessoal operatório, com instrumentos especiais, equipamento de diagnóstico e a
«ferramenta» muito especial, comandada pelo pensamento, de Meatball, instalaram-se
ou foram instalados na estrutura da roda, e giraram dentro da sopa quase opaca.

O paciente continuou inconsciente durante a primeira hora.

Para O’Mara e Skempton, que tinham deixado os seus lugares na roda aos membros da
equipa operatória, Conway disse: — Mesmo a curta distância é difícil ver através
desta coisa, mas como o processo de respiração é involuntário e inclui a ingestão,
e o paciente teve falta de comida e ar durante muito tempo, preferirei não
trabalhar em água límpida, livre de alimento.

Mannen observou:

— O meu remédio favorito é a comida.

— Pergunto a mim próprio como é que uma forma de vida como esta surgiu — disse
Conway. — Suponho que tudo começou num charco grande e pouco profundo, alimentado
pelas marés — constituído de tal modo que a água girava continuamente à sua volta
em vez de entrar e sair. O paciente pode ter sido o resultado da evolução de
qualquer mostrengo que era constantemente revolvido pelas correntes circulares, e
que ia apanhando comida, enquanto isso. A seu tempo, essa criatura primitiva
desenvolveu musculatura interna e órgãos que permitiam que ela rolasse por si
própria, em vez de esperar pelas marés e pelas correntes, e adquirisse apêndices
manipulatórios sob a forma dessa franja de tentáculos curtos que saem da
circunferência interior do seu corpo, entre as séries de guelras e olhos. O
equipamento visual dela está sempre a rodar.

«A reprodução é provavelmente feita por cisão direta, e elas têm de girar


continuamente durante toda a sua vida porque, se pararem, morrem.»

— Mas porquê? — perguntou O’Mara. — Porque é que eles têm de rolar quando podem
sugar água e comida sem se moverem?

— Sabe qual é o mal do paciente. Doutor? — perguntou Skempton, numa voz dura.
Depois, acrescentou num tom preocupado: — Pode tratar dele?

Conway respondeu:
— Sim e não. Ou para falar melhor: a resposta devia ser «sim» a ambas as perguntas.
— Olhou para O’Mara, para significar que também se dirigia a ele, e prosseguiu: —
Tem de girar para se manter vivo; serve-se de um processo curioso para transferir o
centro de gravidade enquanto se mantém de pé, inflando parcialmente a secção do seu
corpo que em qualquer momento se encontra no alto. O rolar contínuo permite que o
seu sangue circule; usa uma espécie de sistema de alimentação pela gravidade, em
vez de uma bomba muscular. Não possui qualquer espécie de coração. Quando deixa de
rolar, a sua circulação para e ele pode morrer em poucos minutos.

«O problema está no facto de lhe termos interrompido a circulação demasiadas


vezes.»

— Não concordo, amigo Conway — disse Prilicla, que, em regra, concordava com toda a
gente. O corpo e as pernas muito finas do empata tremiam fortemente, mas com um
ritmo lento, como era habitual num Cinrusskino exposto a uma emoção confortável.
Prilicla acrescentou:—O paciente está a voltar a si rapidamente. Agora está
absolutamente consciente... tem uma espécie de dor, não localizada e surda,
certamente causada pela fome, mas que começa agora a dissipar-se. Sente-se
ligeiramente angustiado, muito excitado e imensamente curioso.

— Curioso? — perguntou Conway.

— Doutor, a curiosidade é a emoção que predomina nele. O’Mara comentou:

— Os nossos primeiros astronautas também eram uns tipos muito especiais...

Passou-se mais de uma hora antes de terem, medicamente falando, terminado o caso do
astronauta de Meatball. Um linguista do Corpo compartilhava a roda com a criatura,
para adicionar, com um mínimo de demora, uma nova linguagem extraterrestre aos
bancos de memória do computador de tradução do Hospital, e o Coronel Skempton saíra
para preparar uma mensagem muito especial para o Comandante da Descartes.

— Nem todas as notícias são boas — disse Conway, sorrindo com alívio, apesar de
tudo. — O nosso «paciente» estava apenas a sofrer de subnutrição, asfixia parcial e
maus tratos gerais. em consequência de ter sido salvo (ou antes raptado) pela
Descartes. Par outro lado, não mostra possuir qualquer aptidão especial para o uso
de ferramentas comandadas pelo pensamento e parece completamente falto de
familiaridade com as coisas. Isso só pode significar que existe outra espécie
inteligente em Meatball. Mas quando o nosso amigo puder falar devidamente não creio
que haja muita dificuldade em convencê-lo a ajudar-nos a descobrir os verdadeiros
«senhores»... não está de modo algum aborrecido connosco por causa do número de
vezes que quase o matámos, É o que Prilicla diz... e não faço ideia de como nos
saímos disto tão bem. depois de termos feito tantos disparates.

O'Mara observou amargamente:

— Se você está a tentar extrair-me um cumprimento por ter apresentado mais um


brilhante exemplo de raciocínio dedutivo, ou de muita sorte, então está a perder o
seu tempo e o meu...

Mannen disse:

— O melhor é irmos almoçar...

Ao sair, O’Mara voltou-se para trás e acrescentou:

— Sabem que eu não como em público... isso dá a impressão de que sou um ser humano
vulgar. Além disso tenho muito que fazer: tenho de descobrir todo um conjunto de
testes para mais uma espécie supostamente inteligente...

IRMÃO DE SANGUE

NÃO se trata de uma simples missão médica. Doutor, ainda que esse seja o aspeto
mais importante, Doutor— disse O’Mara quando Conway foi chamado ao gabinete do
Psicólogo-Chefe, três dias depois. — Se os seus problemas conduzirem a complicações
políticas...

— Serei guiado peia vasta experiência dos especialistas de contacto cultural do


Corpo de Monitores — disse Conway.

— O seu tom — observou secamente O’Mara — implica uma crítica a um esplêndido corpo
de homens e criaturas a que tenho a honra de pertencer...

A terceira pessoa na sala continuou a fazer sons borbulhantes enquanto girava


continuamente como um moinho de orações orgânico, mas não disse nada.

— E entretanto está a perder tempo — prosseguiu O’Mara. — Tem dois dias antes que a
sua nave parta para Meatball... creio que é tempo bastante para tratar de quaisquer
assuntos profissionais ou pessoais que tenha pendentes. Será melhor que estude
tanto quanto possível os pormenores deste projeto, enquanto dispõe de um ambiente
confortável para trabalhar.

Continuou:

— Decidi, relutantemente, excluir o Doutor Prilicla desta missão... Meatball não é


lugar para onde se envie um ser que é tão hipersensitivo à radiação emocional que
praticamente se enrola sobre si próprio e morre se alguém lhe dirigir um pensamento
odioso. Em vez dele, levará Surreshun, que se prontificou a servir-lhe de guia e
conselheiro... ainda que seja um mistério para mim a razão por que ele faz isso
quando foi muito literalmente raptado por nós e quase morto...

— É porque eu sou muito bravo, generoso e magnânimo — disse Surreshun na sua voz
átona, traduzida. Sempre a rodar, acrescentou:—Sou também muito previdente e
altruísta, e preocupo-me apenas com o bem das nossas duas espécies.

— Sim —disse O’Mara, numa voz cuidadosamente neutra—, mas o nosso objetivo não é
inteiramente altruísta. Pensamos em investigar e avaliar as necessidades médicas no
vosso planeta natal, com vista a fornecer assistência nessa área. Como nós somos
também generosos, altruístas e... altamente éticos, essa assistência será fornecida
gratuitamente em qualquer caso, mas se vocês se quiserem oferecer para colocarem à
nossa disposição um certo número desses instrumentos quase-vivos, que existem no
vosso planeta...

— Mas Surreshun já disse que a sua espécie não os produz... — começou a dizer
Conway.

— E eu creio nisso — disse o Major O’Mara. — Mas sabemos que eles vieram do seu
planeta natal e um dos seus problemas Doutor, é encontrar as criaturas que o usam.
Agora, se não houver mais perguntas a fazer...

Poucos momentos depois, estavam no corredor. Conway olhou para o relógio e disse:

— Almoço. Não sei o que acontece consigo, mas eu penso melhor com o estômago cheio.
A secção dos respiradores de água fica apenas dois pisos acima de nós...
— É uma bondade da sua parte fazer-me tal oferta, mas compreendo quanto é
inconveniente para os indivíduos da sua espécie comerem no meu ambiente — replicou
Surreshun. — O meu equipamento de manutenção de vida contém uma interessante
seleção de comida e ainda que eu seja completamente desprovido de egoísmo e muito
atento ao conforto dos meus amigos, devo voltar a casa dentro de dois dias e as
oportunidades de experimentar condições multi-ambientais e contatos é portanto
limitada. Preferirei usar as instalações dos respiradores de oxigénio, com sangue
quente, como vocês.

O suspiro de alívio de Conway foi intraduzível. Limitou-se a dizer:

— Faça favor...

Quando entraram na sala de jantar, Conway tentou decidir se devia comer de pé, como
um Tralthano, ou arriscar-se a arranjar uma hérnia múltipla, numa mesa de tortura
Melfanianas. Todas as mesas de humano-terrestres estavam cheias.

Conway insinuou-se numa cadeira Melfaniana enquanto Surreshun, cujo fornecimento de


comida estava suspenso na água que ele respirava, estacionou o seu sistema móvel de
manutenção de vida tão perto da água quanto era possível. Estava prestes a mandar
vir a comida quando houve uma interrupção, Thornnastor, o Diagnosticador-Chefe da
Patologia, ergueu-se, dirigiu um olho pana cada um deles enquanto os outros
observavam a sala em redor, e fez um ruído semelhante a uma sereia de nevoeiro,
modulada.

Os sons foram retransmitidos na voz átona vulgar:

— Vi-os chegar e perguntei a mim mesmo se podemos discutir durante alguns momentos
a vossa missão... antes de começarem a comer...

Como todos os Tralthanos, Thornnastor era um vegetariano. Conway teve de escolher


entre comer uma salada — que ele considerava própria para coelhos — ou esperar,
como o seu superior sugerira, por um bife.

Nas mesas à sua volta, as pessoas acabavam de almoçar e caminhavam, ondulavam ou,
num caso, voavam em direção à saída para serem substituídos por um sortido
semelhante de extraterrestres, e Thornnastor continuava a discutir métodos de
processar os dados e os espécimes que eles lhe deviam enviar, assim como a
organização eficiente daquele exame médico à escala planetária. Sendo a criatura
responsável pela análise da massa dos dados que iriam chegar, tinha ideias muito
definidas sobre a maneira como o trabalho deveria ser feito.

Finalmente. o patologista retirou-se, pesadamente. Conway mandou vir o bife e


durante alguns minutos realizou uma operação cirúrgica, em silêncio, com o garfo e
a faca. Depois notou que o Tradutor de Surreshun fazia um som baixo, incerto, que
provavelmente era o equivalente do ruído intraduzível que um humano-terrestre fazia
ao pigarrear. Perguntou:

— Tem alguma pergunta a fazer?

— Sim —disse Surreshun. Fez outro ruído intraduzível e prosseguiu: — Bravo, cheio
de recursos e emocionalmente estável como eu sou...

— E modesto — acrescentou Conway, num tom seco.

— não posso deixar de me sentir um pouco preocupado com a visita de amanhã ao


gabinete da criatura O’Mara. Especificamente: fará doer e terá alguns efeitos
mentais posteriores?
— De maneira nenhuma — respondeu Conway. Começou a explicar o processo para obter
um registo cerebral ou para receber uma gravação do Educador, acrescentando que
tudo era absolutamente voluntário e se a coisa causava a Surreshun algum
desconforto mental ou físico, ele poderia mudar de ideias em qualquer momento sem
que isso fosse motivo de vergonha. Estava a fazer um excelente serviço ao Hospital,
ao deixar que O’Mara preparasse aquela gravação, uma gravação que poderia ajudá-los
a obter um completo e valioso conhecimento do mundo e da sociedade de Surreshun.

Surreshun continuava a fazer o som equivalente a «ora bolas!» quando acabaram de


comer. Pouco depois, a criatura foi dar uma volta pela enfermaria aquática dos AUGL
e Conway dirigiu-se à sua secção.

Antes que chegasse a manhã seguinte, ele teria de resolver os problemas em suspenso
e estabelecer alguns planos razoavelmente pormenorizados sobre o procedimento a
seguir antes da chegada, quanto mais não fosse para dar a ideia de que os médicos
do Gera! do Sector sabiam o que faziam.

Naquela ocasião tinha a seu cargo uma enfermaria de lagartas prateadas Kelgianas e
a maternidade dos Tralthanos. Era também responsável por uma pequena enfermaria de
Hudlarianos, cuja pele era como uma couraça flexível, e que, além de viverem num
sistema gravitacional artificial regulado para 5 G, respiravam uma atmosfera que
era um nevoeiro denso, de alta pressão — e ainda pela estranha criatura com a
classificação TLTU que viera não sabia de onde e que respirava vapor sobreaquecido.
Foi preciso mais do que umas poucas horas para resolver todos os problemas. Os
tratamentos e as convalescenças estavam bem adiantados, mas ele sentia a obrigação
de dizer uma palavra a cada um deles e despedir-se de todos, porque eles deviam ter
alta e regressar aos seus planetas natais muito antes de ele regressar de Meatball.

Conway comeu qualquer coisa apressadamente, sobre uma mesa de instrumentos, e


depois decidiu telefonar à Murchison. A reação ao seu longo período de dedicação
médica estava a fazer-se sentir e ele começava a pensar apenas nos seus prazeres
egoísticos...

Mas na Patologia disseram-lhe que a Murchison estava em serviço na secção de


metana, metida num pequeno veículo com semilagartas, fortemente isolado, cheio de
aquecedores por dentro e coberto de refrigeradores por fora — e essa era não só a
única maneira de entrar na Secção Fria sem gelar em poucos segundos, como ainda sem
matar todos os pacientes da enfermaria com o calor do seu corpo.

Pôde falar com ela através de um retransmissor na sala de serviço da enfermaria,


mas. recordando-se de que haveria talvez outros ouvidos à escuta, falou muito pouco
(e profissionalmente) sobre a missão que iria desempenhar e a possibilidade de ela
ir juntar-se a ele em Meatball como patologista. Sugeriu que discutissem os
pormenores no piso de recreio, quando ela saísse de serviço. Soube que isso só
aconteceria daí a seis horas. Quando ela falou, ele pôde ouvir no fundo o tilintar
inefavelmente doce e delicado — como de flocos de neve, a tocarem uns nos outros —
de uma enfermaria cheia de cristais inteligentes, a falarem uns com os outros.

Seis horas depois eles estavam no piso de recreio, onde uma iluminação enganadora e
uma paisagem artificial realmente inspirada, davam uma ilusão de espaço, numa
pequena praia tropical, ladeada por arribas e aberta a um mar que parecia estender-
se por quilómetros. Só a vegetação alienígena, no alto das arribas, impedia que ela
se parecesse com qualquer outra baía tropical da Terra, mas o espaço tinha muito
valor no Geral do Sector e as pessoas que trabalhavam juntas tinham também de se
divertir juntas.

Conway sentia-se muito fatigado e compreendeu subitamente que devia começar dentro
de duas horas as rondas matinais do dia seguinte, se ainda tivesse rondas a fazer.
Mas o dia seguinte iria ser muito atarefado para isso, se ele bem conhecia O'Mara.
Quando acordou, a Murchison estava debruçada sobre ele com uma expressão que era um
misto de curiosidade, irritação e preocupação. Dando-lhe um soco não muito suave no
estômago, ela disse:

— Adormeceste deitado sobre mim, no meio de uma frase, há mais de uma hora! Não
gosto disso... faz-me sentir pouco segura, indesejada, sem atrativos para os
homens. — Ela continuou a dar-lhe socos no diafragma. — Espero ouvir finalmente
algumas informações originais. Uma ideia dos problemas ou dos perigos do teu novo
trabalho e por quanto tempo andarás ocupado com ele. Pelo menos, espero uma
despedida terna e calorosa...

— Se queres lutar, vamos a isso —disse Conway a rir-se.

Mas ela esquivou-se e correu para a água. Quando Conway se aproximou ela mergulhou
na turbulência causada por um Tralthano que estava a ser ensinado a nadar. Ele
pensou que a perdera de vista quando um braço esbelto e bronzeado surgiu em torno
do seu pescoço, do lado de trás, e o fez engolir metade do oceano artificial.

Enquanto recuperavam de novo o fôlego na quente areia artificial, Conway disse-lhe


o que havia quanto à sua nova missão e à gravação obtida de Surreshun, que lhe
devia ser transmitida dentro em pouco. A Descartes não devia partir senão daí a
cerca de trinta e seis horas, mas durante a maior parte do tempo Conway iria ter a
ilusão de ser uma argola animada que provavelmente considerava todas as fêmeas
humano-terrestres como uma espécie de sacos informes e nada interessantes, ou
talvez muito piores que isso.

Saíram do piso de recreio alguns minutos depois, falando da melhor maneira de a


libertar de Thornnastor, para cuja espécie elefantina a palavra «romance» era
apenas um ruído intraduzível

De resto, não tinham uma verdadeira necessidade de sair do piso de recreio. Mas
acontecia que os DBDG humano-terrestres eram a única espécie na Federação Galáctica
para a qual a nudez era um tabu, e uma das poucas que sentia aversão a fazer amor
em público.

Surreshun já tinha saído quando Conway chegou ao gabinete do Major O’Mara.

— Já sabe como é, Doutor —disse o psicólogo quando ele e o seu ajudante, tenente
Craythorne, o ligaram ao Educador. — No entanto aviso-o de que os primeiros minutos
que se seguem a uma transferência de memória são os piores... é então que o
espírito humano sente estar a ser dominado pelo alter ego alienígena, É um fenómeno
puramente subjetivo causado pelo súbito influxo de memórias e experiências
alienígenas. Você deve tentar manter a flexibilidade do espírito e adaptar-se tão
depressa quanto possível a essas estranhas... por vezes muito estranhas impressões.
Como o deve fazer é consigo. Como esta gravação é inteiramente nova, vigiarei as
suas reações, para o caso de surgirem problemas. Como é que se sente?

— Muito bem — disse Conway, e bocejou.

— Não se faça esperto — disse O’Mara, e ligou o aparelho.

Conway despertou alguns segundos depois num pequeno quarto, muito estranho, cujos
planos e contornos, tal como os móveis, eram demasiado direitos e com arestas
agudas. Duas criaturas grotescas — uma pequena parte do seu espírito insistia em
que elas eram os seus amigos— erguiam-se sobre ele. observando-o com olhos húmidos,
planos colocados em dois rostos feitos de massa rosada informe. A sala, os seus
ocupantes e ele próprio estavam imóveis e...
Ele estava a morrer!

Conway compreendeu subitamente que atirara com O’Mara ao chão e estava sentado
sobre a borda do leito, os pulsos cerrados, os braços cruzados com força sobre o
peito, oscilando rapidamente para trás e para a frente. Mas esse movimento não o
ajudava. . a sala continuava horrivelmente, entontecedoramente firme! Ele sentia-se
agoniado com vertigens, a sua visão estava a falhar e o ar faltava-lhe. Estava a
perder o sentido do tato.

— Calma, rapaz — disse O’Mara suavemente.— Não lute contra isso. Adapte-se..

Conway tentou praguejar, mas o som que lhe saiu da boca foi como um balido de um
animalzinho aterrorizado. Oscilou para a frente e para trás, cada vez mais
depressa, abanando a cabeça. A saia dava saltos e rolava à sua volta, mas mantinha-
se demasiado firme. A firmeza era terrível e letal. Conway perguntou a si próprio,
num desespero absoluto: Como é que alguém se pode adaptar a morrer!

— Agarre-o e mantenha-o firme, Tenente — disse O’Mara, apressadamente.

Então Conway perdeu o domínio de si próprio. A entidade alienígena que


aparentemente se apoderara dele não permitia a ninguém que imobilizasse o seu corpo
— isso era impensável! Pôs-se de pé e cambaleou em direção à secretária de O’Mara.
Sempre a tentar encontrar um movimento que acalmasse o alienígena que estava dentro
do seu espírito, Conway caminhou de gatas através da lixarada organizada no cimo da
secretária, rolando e sacudindo a cabeça.

Mas o alienígena que estava no seu espírito sentia-se tonto de se manter firme e a
porção humano-terrestre sentia-se tonta por tanto movimento. Conway não era
psicólogo mas sabia que se ele não pensasse em qualquer coisa rapidamente acabaria
como um paciente —de O’Mara — em vez de ser um médico, porque o seu outro eu estava
convencido de que ia morrer imediatamente.

Mesmo por procuração, a morte ia ser uma séria experiência traumática.

Ele tivera uma ideia quando subira para a secretária, mas era difícil recordá-la
com o espírito dominado pelo pânico. Alguém tentou puxá-lo e ele esbracejou até o
deixarem, mas o esforço fê-lo perder o equilíbrio e caiu de cabeça na cadeira
giratória de O’Mara. Sentiu-se a rolar para o chão e instintivamente estendeu a
perna para amparar a queda. A cadeira girou mais de 180 graus, de modo que ele
escoiceou de novo e continuou a escoicear. A cadeira continuou a rodar, a princípio
de uma maneira errática, mas depois mais suavemente, quando ele compreendeu como
devia agir.

O seu corpo estava dobrado de lado em volta das costas da cadeira, e a coxa
esquerda e o joelho sobre o assento, enquanto o pé direito pontapeava
constantemente o chão. Não era muito difícil imaginar que os armários-arquivos, as
estantes, a porta do gabinete e as figuras de O’Mara e Craythorne estavam todas
deitadas de lado, e que ele, Conway, rodava num plano vertical. O seu pânico
começou a dissipar-se um pouco.

Com toda a convicção. Conway disse:

— Se me pararem, dou-lhes um pontapé na cara!

A expressão de Craythorne era de espanto, quando o seu rosto surgiu à vista, a


oscilar. O’Mara estava oculto pela porta aberta do armário dos medicamentos.

Num tom defensivo, Conway prosseguiu:


— Não se trata simplesmente de uma reação perante um ponto de vista alienígena
subitamente apresentado... podem crer que Surreshun é uma pessoa mais humana que a
maior parte das individualidades gravadas que tenho tido ultimamente. Mas não posso
suportar esta! Não sou psicólogo mas não creio que uma pessoa sã de espírito possa
adaptar-se a uma contínua sensação de agonia mortal.

Num tom amargo, continuou:

— Em Meatball não é possível a alguém fingir que está morto, a dormir ou


inconsciente. Ou uma pessoa se move e vive, ou está parada e morta. Os filhotes da
espécie de Surreshun até giram durante a gestação...

— Fez-se entender muito bem, Doutor — disse O’Mara, aproximando-se de novo. Na sua
mão direita, de palma para cima, havia três comprimidos. — Não lhe darei uma
injeção porque é evidente que se o parasse lhe faria sentir-se mal. Em vez disso
dar-lhe-ei três dessas bombas de sono. Os efeitos serão súbitos e você manter-se-á
adormecido durante quarenta e oito horas. Apagarei a gravação enquanto se mantiver
inconsciente. Haverá algumas impressões e memórias residuais enquanto estiver
acordado, mas nada que leve ao pânico.

«Agora abra a boca. Doutor. Os seus olhos fechar-se-ão por si.»

Conway despertou numa pequena cabina cujas cores austeras lhe disseram que ele
estava a bordo de um cruzador da Federação e que uma placa da parede esclarecia ser
a nave de Exploração e Contacto Cultural Descartes. Um oficial que usava uma
insígnia de major estava sentado na única cadeira, dobrável, enchendo o
compartimento enquanto folheava uma das espessas pastas referentes a Meatball.
Olhou para cima.

— Edwards, oficial médico da nave — disse ele, num tom agradável. — Feliz por o ter
connosco, Doutor. Está bem acordado?

Conway bocejou furiosamente e disse:

— Meio?

— Nesse caso —disse Edwards, dirigindo-se para o corredor de modo que Conway
tivesse espaço para se vestir —, o Comandante quer falar connosco.

A Descartes era uma grande nave e a sua sala de comando era suficientemente
espaçosa para conter o sistema de manutenção de vida de Surreshun sem muitos
problemas para os oficiais que nela trabalhavam. O Comandante Williamson convidara
o rolador a passar ali a maior parte do tempo — uma atenção que devia ser apreciada
por qualquer astronauta, qualquer que fosse a espécie a que pertencesse — e para
uma criatura que não conhecia o significado do sono a sala tinha a vantagem de ter
sempre alguém presente. E Surreshun podia falar com eles, de certa maneira.

O computador da nave era pequeno, comparado com o monstro que tratava da Tradução,
no Geral do Sector, e mesmo assim, só uma fração da sua capacidade podia ser usada
para efeitos de tradução, uma vez que tinha também de servir a nave.
Consequentemente, as tentativas do Comandante de comunicar complexas ideias
psicopolíticas a Surreshun não estavam a ter muito êxito.

O oficial que se encontrava atrás do Comandante voltou-se e reconheceu Harrison.


Conway moveu a cabeça afirmativamente e disse:

— Como é que vai essa perna, Tenente?

— Muito bem, muito obrigado — disse Harrison. Num tom sério, acrescentou: — Dói-me
um pouco quando chove, mas como isso não acontece muitas vezes numa nave...

O Capitão observou com uma irritação dominada a custo:

— Se quer conversar, Harrison, então mantenha uma conversa inteligível. — Disse


apressadamente para Conway: — Doutor, o sistema governamental desta criatura deixa-
me inteiramente confundido... dir-se-ia ser uma anarquia paramilitar. Mas temos de
entrar em contacto com os superiores dela, ou, pelo menos, com a sua companheira,
ou os seus parentes. O pior é que Surreshun nem sequer compreende o princípio de
afeição por parentesco e as suas relações sexuais parecem ser invulgarmente
complexas...

— E são—disse Conway, com convicção.

— É evidente que sabe mais do que nós, quanto a este assunto — disse o Comandante,
aliviado. — Tinha esperanças disso. Segundo me disseram, além de terem
compartilhado os espíritos por alguns minutos, ele foi seu paciente.

Conway moveu a cabeça afirmativamente.

— Na verdade não era um paciente, pois não estava doente, mas cooperou connosco
durante os muitos ensaios fisiológicos e psicológicos. Ele continua ansioso por
voltar a casa, e quase tão ansioso como nós pelo estabelecimento de contactos
amigáveis com o seu povo. Qual é o problema, senhor?

No fundo, o problema do Comandante era o de que ele tinha um espírito desconfiado e


supunha que os nativos de Meatball eram como ele. Pelo que lhes dizia respeito,
Surreshun, a primeira criatura da sua espécie a ser lançada no espaço, fora
engolida pela escotilha de carga da Descartes e levada para longe.

Surreshun explicou:

— Eles esperavam perder-me, mas não esperavam que me roubassem.

A sua reação subsequente, no regresso de Descartes fora previsível — tinham lançado


contra a nave tudo quanto tinham arranjado de pior. Os mísseis nucleares tinham
sido rapidamente engodados ou intercetados, mas Williamson retirara-se porque as
ogivas deles eram de um tipo particularmente «sujo» e a vida da superfície teria
sido rapidamente afetada pela precipitação radioativa se o ataque tivesse podido
continuar. Agora ele estava a voltar, mais uma vez, e levava consigo o primeiro
astronauta de Meatball. Tinha de provar as autoridades planetárias e (ou) aos
amigos de Surreshun que nada de desagradável lhe acontecera.

A maneira mais fácil de fazer isso seria entrar numa órbita para além do alcance
dos mísseis deles e deixar Surreshun gastar todo o tempo que fosse necessário para
convencer a sua gente de que não fora torturado ou tivera o seu espírito absorvido
por qualquer forma de vida monstruosa, como a do Comandante. O equipamento de
comunicações da sua nave fora duplicado, de modo que não havia problemas técnicos.
No entanto, Williamson pensava que o procedimento conecto seria o de ele próprio
comunicar com as autoridades de Meatball e apresentar desculpas antes de Surreshun
falar.

— O objetivo original desta missão era o de estabelecer contato amigável com essa
gente, mesmo antes de vocês, os do Hospital, terem ficado tão excitados com essas
ferramentas comandadas pelo pensamento — concluiu o Comandante.

— A minha razão de aqui estar não é inteiramente comercial— disse Conway no tom de
quem não tinha a consciência inteiramente limpa. Prosseguiu: — Pelo que diz
respeito ao problema presente, posso ajudá-lo. A dificuldade tem a sua origem no
facto de não compreender que eles carecem em absoluto de qualquer afeição paternal
ou filial, ou de quaisquer laços emocionais, além da breve mas muito intensa
ligação que existe antes e durante o processo de fecundação. Na verdade, eles
odeiam os pais e quem mais que...

— E disse que nos queria ajudar—murmurou Edwards.

— que tenha relações de parentesco com eles. Algumas das memórias mais invulgares
de Surreshun permaneceram no meu espírito. Isso ocorre por vezes, quando nos
expomos a uma personalidade invulgarmente alienígena, e essa gente é
verdadeiramente invulgar...

A estrutura da sociedade de Meatball, até um passado muito recente, fora uma


inversão completa do que a maior parte das espécies inteligentes considerava como
normal. Exteriormente era uma anarquia em que as pessoas mais respeitadas eram os
individualistas extremos, os grandes viajantes, as criaturas que viviam em perigo
constante e procuravam sempre novas sensações. A cooperação e a autodisciplina eram
necessárias para a proteção mútua, evidentemente, porque a espécie tinha muitos
inimigos naturais, mas isso era inteiramente estranho à natureza deles e só os
cobardes e os fracos que punham a sua segurança e conforto acima de tudo eram
capazes de suportar a vergonha da estreita cooperação física.

Nos tempos primitivos essa camada da sociedade fora considerada como a mais baixa
entre todas, mas fora um dos seus membros que descobrira uma maneira de conseguir
com que uma pessoa girasse e vivesse sem ter de se deslocar através do fundo do
mar. Essa capacidade de viver permanecendo estacionário, fora comparável à
descoberta do fogo ou da roda, na Terra, e determinara o início do desenvolvimento
tecnológico em Meatball.

Quando o desejo de conforto, segurança e cooperação aumentara, o número de


individualistas extremos diminuíra — em qualquer caso eles tendiam a morrer de
morte violenta. O poder real acabou por assentar nos curtos tentáculos das
criaturas que se preocupavam com o futuro ou que se sentiam tão curiosas sobre o
mundo à sua volta que se sentiam dispostas a fazer coisas vergonhosas e esqueciam
praticamente toda a sua liberdade física para satisfazer essa sua tendência. Faziam
uma confissão simbólica de culpa e falta de autoridade, mas, na verdade, eram quem
mandava. Os individualistas que, nominalmente, eram os chefes, tinham-se tomado em
simples figuras de fachada — com uma exceção importante.

A razão desse arranjo confuso era um profundo desagrado, de base sexual, quanto a
todas as relações consanguíneas. Os roladores de Meatball tinham-se desenvolvido
numa área muito pequena e confinada e tinham sido obrigados a mover-se
constantemente nessa área, pelo que o contacto físico para efeitos de fecundação —
um ato inteiramente instintivo nos dias de pré-sapiência — tinha muito maiores
probabilidades de acontecer entre parentes que entre criaturas inteiramente
estranhas. Tinham adquirido uma salvaguarda eficaz contra o incesto.

A espécie de Surreshun reproduzia-se hermafroditicamente. Cada um dos pais, depois


da fecundação, dava origem a dois filhotes, que se desenvolviam de cada lado do seu
corpo como bolhas contínuas em volta dos flancos de um pneumático. Qualquer
ferimento, doença ou confusão mental, que, depois do nascimento, levasse o pai a
perder o equilíbrio, e a cair de lado, determinava a sua paragem e logo a sua
morte. Mas esse tipo de fatalidade era agora menos vulgar, porque havia máquinas
que mantinham os pais em rotação e, logo, fora de perigo. Mas os pontos de onde os
filhotes se desligavam a seu tempo dos pais mantinham-se muito sensíveis e as suas
posições eram determinadas por factores hereditários. O resultado era o de que
qualquer parente bastante próximo que pretendesse estabelecer contacto causaria a
si e ao outro uma dor considerável. Os roladores odiavam realmente os pais e todos
os outros parentes próximos. Não tinham outra alternativa.
Conway acrescentou, em conclusão:

— E o facto de o período de corte ser muito breve explica a aparente jactância de


Surreshun. Durante uma conversação ocasional no fundo do mar, nunca há muito tempo
para impressionar um possível com participante com a beleza e força da
personalidade do outro, de modo que a modéstia é, em absoluto, contrário à
sobrevivência.

O Comandante olhou pensativa e longamente para Surreshun e depois voltou a olhar


para Conway.

— Doutor, concluo que o nosso amigo, por causa do longo treino e da disciplina
necessárias para se tomar no primeiro astronauta de Meatball, pertence à classe
social mais baixa, e que, ainda que não oficialmente, pode muito bem ser
considerado indesejável.

Conway abanou a cabeça.

— Senhor, esquece a importância (que está ligada à aversão ao incesto) que esta
gente dá aos grandes viajantes que trazem sangue e conhecimentos novos. Sob esse
aspeto, Surreshun é único. Sendo o primeiro astronauta do planeta, é o mais
importante. seja qual for o aspeto segundo o qual for olhado... é a criatura mais
respeitada no seu mundo e a sua influência é, também, considerável.

O Comandante não disse nada, mas as suas feições distenderam-se na invulgar (nele)
configuração de um sorriso.

Conway observou:

— Falando como alguém que o conhece literalmente por dentro, estou certo de que ele
não sente qualquer ressentimento pelo facto de ter sido raptado (na verdade até se
sente grato a nós) e por isso cooperará connosco durante o processo de contacto.
Bastará que acentuemos as nossas diferenças a essas criaturas. Pertencem à espécie
mais estranha que até agora encontrámos. Principalmente não diga que no fundo somos
todos irmãos, ou que pertencemos à grande família dos seres inteligentes da
Galáxia. «Família» e «irmão» são palavras malsoantes!

Pouco depois. Williamson convocou uma reunião de especialistas de contacto cultural


e comunicações para discutir as informações dadas por Conway. Apesar das más
condições de tradução disponíveis na Descartes, quando os oficiais de serviço na
sala de comando foram rendidos pela segunda vez já tinham sido completados planos
para o estabelecimento de contacto com os nativos de Meatball.

Mas o chefe dos especialistas de contacto cultural ainda não estava satisfeito —
queria estudar a cultura em profundidade. Insistia em que as civilizações normais
se baseavam na extensão dos laços de família à tribo, à aldeia e ao país, até que
por fim o mundo inteiro se unia. Não podia compreender como uma civilização se
podia criar sem essa cooperação ao nível familiar e tribal mas pensava que um
estudo mais íntimo das relações pessoais pudesse esclarecer as coisas. Talvez o
Doutor Conway não se importasse de aceitar de novo a gravação de Surreshun...

Conway estava fatigado, irritado e esfomeado. A sua resposta foi antecipada pelo
Major Edwards, que disse:

— Não! De maneira nenhuma! O'Mara deu-me instruções severas sobre isso. Com todo o
respeito, Doutor, ele proibiu-me que o fizesse, mesmo que o senhor fosse
suficientemente estúpido para o desejar. As gravações desta espécie não são
utilizáveis. Que demónio, estou com fome e não quero mais sanduíches!
— E eu também — disse Conway.

— Porque é que os médicos estão sempre com fome? — perguntou o chefe do CC.

— Senhores... — disse o Comandante, fatigado.

— Falando pessoalmente — disse Conway—, é porque toda a minha vida de adulto tem
sido devotada ao serviço desinteressado dos outros e à oferta, a qualquer hora do
dia ou da noite, dos meus vastos poderes de operar e curar. Os princípios da minha
grande e altruística profissão exigem isso. Esses sacrifícios (as longas horas, o
sono inadequado, as refeições irregulares), sofro-os de boa vontade e sem
queixumes. Se eu penso em comida mais vezes do que parece normal para os seres
menos importantes, é porque qualquer emergência médica pede surgir e tomar a minha
próxima refeição incerta, e comer agora dar-me-á um maior grau de capacidade...
mesmo os leigos como vocês devem saber dos efeitos da má nutrição no espírito e nos
músculos.

Secamente, acrescentou:

— Não é necessário olharem assim para mim, cavalheiros. Estou simplesmente a


preparar o meu espírito para o contacto com o povo de Surreshun, fingindo que a
modéstia não existe.

Durante o resto da viagem, Conway dividiu a sua atenção entre as Comunicações e o


Comando, falando ao Comandante, a Edwards e a Surreshun. Mas quando a Descartes se
materializou dentro do sistema solar de Meatball, ele conseguira muito poucas
informações úteis sobre a prática da medicina no planeta e ainda menos sobre os
próprios médicos.

E o contacto com os seus homólogos, em Meatball, era essencial para o êxito da


missão.

Mas a cirurgia curativa e a medicina eram progressos muito recentes, pois só tinham
sido possíveis quando a espécie aprendera a rodar sem sair de uma posição. No
entanto havia vagas referências a outras espécies que atuavam como médicos, ou
coisa parecida. Pela descrição de Surreshun pareciam ser em parte médicos, em parte
parasitas e em parte animais de presa. Transportar uma criatura dessas era uma
coisa muito arriscada, pois muitas vezes causava o desequilíbrio, a paragem e a
morte do corpo constantemente giratório do paciente. Surreshun insistia em que era
preciso ter mais medo do médico que da doença.

Com as limitadas instalações de tradução, ele era incapaz de explicar como essas
criaturas comunicavam com os seus pacientes. Surreshun nunca vira pessoalmente uma
delas nem conhecia pessoalmente ninguém que as tivesse visto. O que ele podia dizer
de mais próximo era que elas estabeleciam contacto direto com a alma do paciente.

Edwards exclamou:

— Meu Deus, que mais nos espera?

— Está a fazer preces ou apenas a dar largas aos seus sentimentos? — perguntou
Conway.

O Major sorriu e depois prosseguiu, num tom sério:

— Se o nosso amigo usa a palavra «alma» é porque o Tradutor do vosso Hospital


apresenta a palavra como tendo um significado equivalente em Meatball. Você tem de
perguntar ao Hospital o que é que esse cérebro eletrónico pensa que seja uma alma.
Conway respondeu:

— O’Mara começará de novo a suspeitar da minha saúde mental ..

Quando a resposta chegou, o Comandante Williamson já conseguira apresentar


desculpas às não-autoridades de Meatball, e Surreshun pintara uma imagem tão
calorosa da extrema estranheza dos humano-terrestres que lhes estava assegurada uma
boa receção. No entanto tinham pedido à Descartes que se mantivesse em órbita, até
que uma área conveniente para a descida tivesse sido marcada e preparada.

Edwards disse a Conway:

— Segundo a mensagem, a definição de «alma» dada pelo computador é apenas «a vida


do princípio». O’Mara diz que os programadores não o quiseram confundir com fatores
filosóficos e religiosos, incluindo almas materiais ou imortais. Portanto, pelo que
diz respeito ao computador de Tradução, se uma coisa está viva tem uma alma.
Aparentemente, os médicos de Meatball estabelecem contacto direto com o «princípio
vital» do seu paciente.

— Cura pela fé, não será assim?

— Não sei. Doutor — disse Edwards. — Parece-me que o vosso Psicólogo-Chefe não nos
pode ajudar muito sob esse aspeto. E se pensa que o vou ajudar, aplicando-lhe outra
vez a gravação de Surreshun, será melhor que se deixe disso.

Conway ficou surpreendido perante a aparência normal de Meatball, visto da órbita.


Foi só quando a nave estava a quinze quilómetros da superfície que a lenta formação
de rugas e os estremecimentos dos vastos tapetes de tecido animal que cobriam as
massas terrestres se tomaram evidentes, assim como a calma nada natural do mar
espesso como sopa. Só havia atividade ao longo das linhas de costa. Aí o mar era
agitado, até formar uma espuma amarelo-esverdeada, pelos animais de presa aquáticos
grandes e pequenos, que despedaçavam tenazmente essas linhas, vivas, enquanto elas
ripostavam com igual tenacidade.

A Descartes desceu a cerca de três quilómetros de um troço pacífico da costa, no


centro de uma área marcada com flutuadores de cores garridas, completamente
escondida pela nuvem de vapor causada pelo seu jato de cauda. Quando a popa
mergulhou, o impulso foi reduzido e a nave assentou suavemente no fundo arenoso do
mar. A grande massa de água fervente produzida pelo jato afastou-se lentamente,
levada pelas correntes e a gente começou a rolar para cima.

Como grandes argolas molhadas, saíram a rolar da névoa líquida verde e subiram até
à base da nave, em volta da qual passaram a girar. Quando surgiam no seu caminho
alguns recifes ou quaisquer coisas espinhosas, as criaturas oscilavam pesadamente e
por vezes quase se deitavam por um instante se fossem obrigados a mudar de direção,
mas sempre mantendo constante a sua velocidade de rotação e a máxima distância
possível entre elas.

Conway aguardou que Surreshun descesse a rampa e fosse acolhido pelos seus não-
amigos. Vestiu um fato ligeiro, idêntico aos usados na secção dos respiradores de
água, no Hospital, tanto por razões de conforto como para mostrar tanto quanto
possível aos nativos as formas estranhas do seu corpo. Saiu da rampa e deixou-se
cair para o fundo do mar, escutando as vozes traduzidas de Surreshun, das
personagens importantes e daqueles que falavam mais alto entre aqueles que o
rodeavam.

Quando tocou no fundo, pensou que fora atacado. Todas as criaturas na vizinhança da
nave tentaram passar por ele o mais perto possível sem lhe tocarem e cada uma delas
disse alguma coisa quando passou. O microfone do facto captou o som como uma
espécie de grunhido borbulhante, mas o Tradutor, porque era uma mensagem simples,
dentro da capacidade do computador da nave, retransmitiu-a como «Bem-vindo,
estranho».

Não podia haver dúvidas sobre a sua sinceridade — naquele mundo estrambólico o
calor das boas-vindas era diretamente proporcional ao grau de estranheza. E as
criaturas não se importavam de responder a pequenas perguntas. Por isso, Conway
estava certo de que o seu trabalho seria fácil.

Quase a primeira coisa que ele descobriu foi que não havia qualquer necessidade
real dos seus serviços.

Era uma sociedade cujos membros nunca deixavam de girar através e em torno de
«cidades» que eram simples instalações de produção, ensino ou aprendizagem, em vez
de grupos de alojamentos — porque em Meatball não havia alojamentos. Depois de um
período de trabalho num tambor com movimento mecânico, a criatura-argola deixava-se
escorregar do seu arnês e rolava em busca de comida, excitação ou qualquer
companhia estranha, em qualquer parte no fundo do mar.

Não havia sono, nenhum contacto físico além do necessário para a reprodução, nenhum
edifício alto e nenhum cemitério.

Quando um dos roladores parava devido à idade, a qualquer acidente ou a um encontro


com um dos animais ferozes ou com qualquer planta com espinhos venenosos, ninguém
lhe dava atenção. A geração interna de gases que surgia pouco depois da morte
levava o corpo a flutuar até à superfície, onde os pássaros e os peixes o faziam
desaparecer.

Conway falou a várias criaturas que eram demasiado velhas para rolar e eram
mantidas vivas por alimentação artificial, enquanto giravam em rodas com movimento
mecânico. Não conseguiu saber ao certo se eram mantidas vivas por causa do seu
valor para a comunidade ou simplesmente porque fossem objetos de uma experiência.
Sabia que estava a prática de geriatria, mas foi a única forma de medicina que
encontrou, juntamente com outra semelhante, destinada a assistir os partos
difíceis.

Entretanto as equipas exploradoras iam obtendo mapas do planeta e enchendo barcos


de espécimes. A maior parte do material foi enviada ao Geral do Sector para
processamento e não tardou que Thornnastor começasse a enviar sugestões muito
pormenorizadas. Segundo o Diagnosticador-Patologista, Meatball tinha um problema
médico da máxima urgência. Conway e Edwards, que tinham examinado previamente os
dados e realizado um certo número de voos a baixa altitude sobre a superfície
planetária, concordavam em absoluto com ele.

—Podemos iniciar uma diagnose preliminar dos problemas do planeta — disse Conway,
furioso. — São o resultado do uso demasiado livre das armas nucleares, por parte
dos roladores! Mas continuamos a precisar desesperadamente de uma apreciação local
da situação médica, e é isso que não conseguimos. O que verdadeiramente importa...

— É saber se há aqui um médico? — disse Edwards, a sorrir.— E se houver, onde é que


ele está?

— Exatamente — respondeu Conway. E não se riu.

Fora da vigia, as ondas lentas e túrgidas refletiam o luar através de uma cortina
de névoa. A Lua, que se aproximava do Limite de Roche e da desintegração, iria
afetar os habitantes de Meatball — mas só daí a cerca de um milhão de anos. De
momento era um enorme crescente irregular que iluminava o oceano, os sessenta
metros da Descartes que se elevavam acima da superfície e a linha de costa,
estranhamente pacífica.

Pacífica porque estava morta e os animais de presa recusavam-se a comer matéria


apodrecida.

— Se eu construísse uma roda para mim, O’Mara... — começou a dizer Conway.

Edward abanou a cabeça.

— A gravação de Surreshun é mais perigosa do que você pensa... você teve muita
sorte em não perder o juízo por inteiro, para sempre. Além disso O’Mara já teve
essa ideia e pô-la de parte. Girar sobre si próprio sob a influência da gravação,
numa cadeira giratória ou num dispositivo construído pela nossa oficina, só
enganará o seu espírito durante uns minutos, segundo ele diz. Mas se quiser
perguntar-lhe-ei outra vez.

— Confio na sua palavra — disse Conway. Mas, pensativamente, acrescentou: — A


pergunta que estou sempre a fazer a mim próprio é onde será mais provável encontrar
um médico neste planeta. Suponhamos que a resposta é onde ocorre maior número de
acidentes... isto é, ao longo das linhas costeiras...

Edwards objetou:

— Ninguém encontra necessariamente um médico num açougue. E não esqueça que há


outra espécie inteligente neste planeta: os construtores desses instrumentos
comandados pelo pensamento. Não é possível que os seus médicos pertençam a essa
espécie e que a sua resposta se situe inteiramente fora da cultura dos roladores?

— É verdade — confessou Conway. — Mas aqui temos a cooperação voluntária dos


nativos e devemos tirar disso todo o proveito. Creio que da próxima vez devo pedir
licença para acompanhar uma nas nossas argolas-viajantes. Talvez isso se pareça com
uma lua-de-mel a três, e me digam de maneira muito cortês para onde devo ir com o
meu pedido, mas é evidente que não há médicos nas «cidades» ou nas áreas povoadas,
e que só os viajantes têm probabilidades de encontrar um. Entretanto, tentemos
encontrar essa outra espécie inteligente.

Dois dias depois, Conway estabeleceu contacto com um não-parente de Surreshun que
trabalhava na geradora mais próxima — um reator nuclear onde ele se sentia quase
que como em casa, porque tinha quatro paredes sólidas e um teto. O rolador pensava
em realizar uma viagem ao longo de um pedaço de costa ainda não povoado, no fim do
seu período de trabalho que. segundo Conway estimou, devia durar dois ou três dias.
O nome da criatura era Camsaug e não se importava de que Conway o acompanhasse
desde que não se mantivesse demasiado próximo dele se ocorressem certas
circunstâncias. Descreveu essas circunstâncias em pormenor e aparentemente sem
vergonha alguma.

Camsaug ouvira falar nos «protetores», mas somente em segunda ou terceira mão. Não
cortavam e coziam pessoas, como os médicos de que Conway falava — não sabia
exatamente o que eles faziam, mas sabia que, muitas vezes, eles matavam as pessoas
que em princípio deviam proteger. Eram criaturas estúpidas, que se moviam
lentamente e que por qualquer estranha razão se mantinham próximo das secções
costeiras mais ativas e mais perigosas.

— Não é um açougue, major, mas é um campo de batalha — disse Conway.— É de esperar


a presença de médicos num campo de batalha...

No entanto não podiam esperar pelo início das férias de Camsaug — os relatórios de
Thornnastor, as amostras trazidas pelas naves auxiliais de exploração e os próprios
olhos deles não deixavam lugar a dúvidas sobre a urgência da situação.

Meatball era um planeta muito doente. O povo de Surreshun fora demasiado descuidado
no uso da energia atómica, que acabara de descobrir. A razão que ele tivera para
isso fora a expansão da sua cultura, que não se podia sujeitar à constante ameaça
dos enormes monstros terrestres. Detonando uma série de engenhos nucleares a alguns
quilómetros no interior, e cuidando de que o vento não arrastasse a precipitação
para a área onde viviam, as criaturas tinham exterminado as massas monstruosas que
cobriam largas superfícies sobre a Terra. Agora podiam estabelecer bases sobre a
terra morta, para fazer avançar a sua investigação científica em muitos campos.

Não se importavam de ter espalhado peste e cancro através de vastas áreas, muito
para o interior — os grandes tapetes eram o seu inimigo natural. Centenas de
pessoas eram paradas e devoradas pelos monstros terrestres durante anos, e agora
eles estavam apenas a receber a resposta devida.

— Esses tapetes são vivos e inteligentes? — perguntou Conway, furioso, quando a


pequena nave que os transportava fez um voo a baixa altitude sobre uma área que
parecia sofrer de gangrena avançada. — Ou haverá pequenos organismos inteligentes a
viver debaixo ou dentro deles? Seja como for, a gente de Surreshun terá de deixar
de largar bombas!

— Concordo — disse Edwards. — Mas temos de lhes falar com tato. Somos hóspedes
deles, não esqueça!

— Não é preciso usar-se tato para dizer a alguém que se está a matar!

— Deve ter pacientes com uma inteligência invulgar, doutor— disse Edwards,
secamente. E acrescentou: — Se os tapetes orgânicos são inteligentes e não apenas
estômagos com os apêndices indispensáveis para os manter cheios, então devem ter
olhos, ouvidos e qualquer espécie de sistema nervoso capaz de reagir aos estímulos
externos...

— Quando a Descartes pousou aqui houve uma reação bem grande — disse Harrison, do
posto de pilotagem. — O monstro tentou engolir-nos! Dentro de momentos vamos passar
perto do sítio onde isso aconteceu. Querem vê-lo?

— Sim, por favor — disse Conway. Pensativamente, acrescentou: — Abrir a boca pode
ser uma reação instintiva de um monstro esfomeado e falto de inteligência. Mas
havia qualquer espécie de inteligência por causa dessa ferramenta comandada pelo
pensamento que apareceu a bordo.

Saíram da área doente e começaram a correr atrás da sua própria sombra através de
grandes manchas de vegetação de um verde-vivo. Ao contrário dos tipos que
reciclavam ar e detritos, aquelas plantas eram pequenas e não pareciam que
servissem qualquer propósito aparente. Os espécimes que Conway examinara no
laboratório da Descartes tinham raízes muito longas e finas e quatro grandes folhas
que se enrolavam verticalmente mostrando a sua face posterior amarela quando
estavam abrigadas da luz. A pequena nave deixava atrás de si uma fila de folhas
enroladas para o alto, na esteira da sua sombra, como se a superfície fosse o alvo
de um grande osciloscópio verde, e a sombra da nave um ponto de alta persistência.

Em qualquer parte, no fundo do espírito de Conway, uma ideia começara a tomar


forma, mas ela dissolveu-se de novo quando chegaram ao local de pouso original e
começaram a voar em círculo.

Era uma cratera pouco profunda com um fundo cheio de altos c baixos, que de maneira
nenhuma se parecia com uma boca. Harrison perguntou se eles queriam descer, num tom
que não deixava dúvidas de que ele esperava que a resposta fosse «Não».
— Sim — disse Conway.

Pousaram no centro da cratera. Os médicos vestiram factos de serviço pesado para se


protegerem contra as plantas que quer em terra, quer debaixo do mar, se defendiam
agitando ramos com espinhos venenosos ou lançando dardos mortais sobre tudo quanto
se aproximava demasiado. O solo não deu qualquer indício de se abrir e os engolir,
de modo que saíram, deixando Harrison pronto a largar imediatamente, se ele
decidisse mudar de «ideias».

Nada aconteceu enquanto exploravam a cratera e as suas cercanias imediatas, pelo


que instalaram a perfuradora portátil a fim de retirarem amostras locais de pele e
tecido subjacente. Todas as naves auxiliares transportavam essa aparelhagem e
tinham sido retirados espécimes de todas as partes do planeta. Mas ali o espécime
estava longe de ser típico — tiveram de perfurar através de quinze metros de pele
seca e fibrosa, antes de alcançarem o tecido subjacente, rosado, esponjoso.
Transferiram a perfuradora para uma posição fora da cratera. Aí a pele tinha apenas
seis metros de espessura — a média planetária.

— Isto preocupa-me — disse Conway, subitamente. — Não há cavidade oral, nenhum


indício de musculatura operadora, nenhum sinal de qualquer espécie de abertura. Não
pode ser uma boca!

— Também não foi um olho o que essa coisa abriu — disse Harrison, na frequência dos
fatos espaciais. — Eu estava... aqui.

— Parece apenas tecido cicatricial — disse Conway. — Mas é muito profunda para ter
sido formada apenas em consequência do jato traseiro da Descartes. E porque devia
em qualquer caso, haver aqui uma boca, exatamente no lugar onde se decidiu fazer
pousar a nave? As probabilidades contra isso são de milhões para um. E porque não
foram descobertas outras bocas no interior? Explorámos cada quilómetro quadrado da
massa terrestre, mas a única boca que apareceu abriu-se poucos minutos depois da
descida da Descartes. Porquê?

— Essa coisa viu-nos quando nos aproximávamos e... — começou a dizer Harrison.

— Com quê? — perguntou Edwards.

— Ou sentiu-nos pousar e decidiu formar uma boca...

— Uma boca — disse Conway — com músculos para a abrir e para a mover, com dentes,
sucos pré-digestivos, e um canal alimentar ligando-a a um estômago que, a menos que
ela decidisse também formá-lo, poderia estar a muitos quilómetros de distância...
tudo poucos minutos depois da descida da nave? Pelo que sabemos do metabolismo do
tapete, não posso ver tudo isso a acontecer tão rapidamente!

Edwards e Harrison mantiveram-se silenciosos.

Conway acrescentou:

— Pelo nosso estudo do tapete que habita essa pequena ilha, no norte, temos uma
ideia razoável de como eles funcionam.

Desde o dia seguinte à sua chegada, a ilha fora mantida sob observação constante. O
seu habitante tinha um metabolismo incrivelmente lento, quase como o de um vegetal.
A superfície superior do tapete parecia não se mover, mas na verdade alterava os
seus contornos para fornecer água da chuva onde ela era necessária à vida das
plantas que reciclavam o seu ar e desperdícios ou serviam como alimento adicional.
A única atividade real ocorria através da orla do tapete, onde o monstro tinha as
suas bocas. Mas aí, mais uma vez, não era o próprio tapete que se movia
rapidamente, mas as hordas dos animais de presa que tentavam devorá-lo. enquanto
ele, lenta e pesadamente tentava sugá-los com a água do mar, rica de alimento. Os
outros grandes tapetes, que não tinham a sorte de possuírem uma orla em contacto
com o mar, comiam vegetação, ou devoravam-se mutuamente.

Os tapetes não possuíam mãos ou tentáculos ou apêndices manipulatórios de qualquer


espécie — somente bocas e olhos capazes de seguir uma nave, durante a sua descida.

— Olhos? — perguntou Edwards. — Porque foi que eles não viram a nossa nave de
exploração?

— Nos últimos tempos têm andado por aqui dúzias de naves exploradoras e
helicópteros — disse Conway. — E o monstro pode estar confundido. Mas o que eu
gostaria que fizesse agora, tenente, era que subisse com a sua nave até, digamos,
trezentos metros, e descreva uma série de curvas em forma de oitos. Faça-as tão
apertadas quanto possa, cubra a mesma área de terreno de cada vez e estabeleça o
ponto de cruzamento mesmo sobre as nossas cabeças. Compreendeu?

— Sim, mas...

— Isto fará com que o monstro saiba que não se trata de uma nave exploradora
vulgar, mas sim de uma muito especial — explicou Conway e depois acrescentou:—
Esteja pronto para nos recolher imediatamente, se alguma coisa não correr bem.

Poucos minutos depois Harrison subiu, deixando os dois médicos junto da


perfuradora. Edwards disse:

— Compreendo o que pretende, doutor. Quer atrair a atenção sobre nós. «X» marca o
ponto e um «X» com os extremos fechados é um 8. A persistência da visão fará o
resto.

A pequena nave começou a cruzar o espaço sobre a cabeça deles nas curvas mais
apertadas que Conway alguma vez vira. Mesmo com os compensadores gravitacionais a
trabalharem a toda a capacidade, Harrison devia estar a suportar pelo menos quatro
G. Na superfície a sombra da nave corria com a rapidez de uma chicotada sobre eles
e à sua volta, traçando uma longa linha, amarelo-viva, de folhas enroladas
verticalmente. A terra tremia com o trovão dos jatos da nave e, depois, muito
ligeiramente, começou a tremer por si própria.

— Harrison!

A pequena nave interrompeu a manobra e rugiu, numa manobra imediata de pouso, atrás
deles. Então o solo estava já a afundar-se.

Subitamente eles apareceram.

Dois grandes discos planos, de metal, embebidos verticalmente no solo, um a cerca


de seis metros em frente deles e o outro à mesma distância, atrás. Enquanto
observavam os discos, eles contraíram-se subitamente numa massa informe de metal
que se arrastou de lado alguns centímetros e depois, subitamente, se tornou de novo
num disco afiado como uma faca, abrindo um profundo corte no solo. Os discos tinham
cortado, cada um, mais que um quarto de círculo à volta deles e a superfície estava
a afundar-se rapidamente dentro das incisões antes que Conway compreendesse o que
estava a acontecer.

— Pense em cubos para eles! — gritou. — Pense em qualquer coisa romba! Harrison!

— A escotilha está aberta! Corram!


Mas eles não podiam correr sem tirar os olhos e o espírito dos discos, e se eles
não fizessem isso não correriam o bastante para fugirem à incisão circular que
estava a ser feita à volta deles. Em vez disso dirigiram-se de lado para a nave,
desejando em cada centímetro do caminho que os discos se tomassem em cubos, esferas
ou ferraduras — qualquer coisa menos os escalpelos circulares que qualquer coisa
fizera deles.

No Geral Sector, Conway vira o seu colega Mannen fazer coisas incríveis na
cirurgia, usando uma dessas ferramentas comandadas pelo pensamento, um instrumento
cirúrgico capaz de tudo, porque se tomava instantaneamente em tudo quanto ele
desejava. Agora, duas dessas coisas arrastavam-se e contorciam-se como pesadelos
metálicos enquanto eles tentavam dar-lhes uma forma e alguém — que era o
proprietário deles e como tal tinha muito maior prática disso — tentava dar-lhes
outra forma. Era uma luta que pendia demasiado para um lado, mas eles conseguiram —
por pouco — prejudicar o pensamento do seu opositor, de maneira bastante para se
afastarem antes que o círculo de «pele», contendo a perfuradora e outro material,
se afundasse e desaparecesse da vista.

O Major Edwards, quando a porta se fechou e Harrison subiu, disse:

— Bem-vindos sejam! No fim de tudo, temos andado a recolher espécimes durante


semanas e isto pode ter-lhes dado razões para pensarem, antes de nós, a alargar o
contacto com diagramas de sombras. — Sentiu-se subitamente excitado e prosseguiu: —
Com mísseis de alta aceleração, radio-comandados, poderemos traçar figuras muito
complexas!

Conway disse:

— Pensava antes num fino feixe de luz projetado na superfície durante a noite. As
folhas devem reagir abrindo-se, e o feixe pode mover-se muito rapidamente numa
sucessão de linhas, formando um quadrado, à maneira da antiga TV. Talvez até
possamos projetar filmes.

— É isso — disse Edwards, entusiasmado. — Mas o que não sei é como um monstro sujo,
tão grande como um país inteiro, sem braços, pernas ou qualquer outra coisa, pode
responder ou fazer sinais. Provavelmente pensará em qualquer coisa.

Conway abanou a cabeça.

— É possível que, apesar do seu lento movimento, os tapetes tenham pensamentos


rápidos e que, portanto, sejam os utilizadores de instrumentos que nós procuramos,
permitindo-se fazer cirurgia voluntária nos seus corpos sempre que querem apoderar-
se de um espécime e examiná-lo, desde que ele não esteja ao alcance de uma boca.
Mas eu prefiro a teoria de uma forma de vida inteligente mais pequena, dentro ou
debaixo da maior, talvez um parasita inteligente que ajudasse a manter o hospedeiro
em boa saúde através do uso de ferramentas e outras habilidades, e que se servisse
dos «olhos» do monstro, assim como de tudo o mais. Podemos escolher a hipótese que
nos agradar mais.

Fez-se silêncio quando a pequena nave voltou a voar horizontalmente, num rumo que a
levaria à nave-mãe. Harrison disse:

— Então não estabelecemos contacto direto? Limitámo-nos a escrevinhar numa espécie


de radar vegetal? Mesmo assim, é um grande passo em frente.

Conway disse:

— Tal como vejo as coisas, se foram usadas ferramentas para nos levar até eles, é
que eles estão a uma boa distância da superfície... talvez não possam existir na
superfície. E não esqueçam que eles podem usar o tapete tal como nós usamos os
recursos vegetais e minerais. Como poderiam eles analisar espécimes vivos? Seriam
capazes de os ver lá em baixo? Usam plantas em vez de olhos, mas não posso imaginar
um microscópio vegetal. Talvez eles usem os sucos digestivos do monstro, em certas
fases da análise...

Harrison começava a mostrar-se um pouco esverdeado. Disse:

— E se enviássemos um autómato com sensores, primeiro, para ver o que eles fazem?

Conway começou a dizer:

— É tudo teoria...

Interrompeu-se quando o rádio da nave zumbiu, pigarreou e disse subitamente:

— Nave de Exploração Nove. Aqui Mãe. Tenho uma mensagem urgente para o Doutor
Conway. A criatura Camsaug partiu em férias levando o traçador que o doutor lhe
deu. Dirigiu-se para a faixa de costa ativa na área H-12. Harrison, tem alguma
coisa a comunicar?

— Muito — disse o tenente, olhando de soslaio para Conway. — Mas penso que o doutor
lhe quer falar primeiro.

Conway falou durante breves momentos e poucos minutos depois a pequena nave dava um
pulo, sob um impulso de emergência, rasgando o céu demasiado depressa para que as
próprias folhas pudessem reagir à sua sombra e deixando atrás de si uma onda de
choque infindável que devia ensurdecer tudo quanto na superfície tivesse ouvidos.
Mas o grande tapete que ficava para trás, debaixo deles, podia muito bem sofrer de
surdez entre muitas outras enfermidades que agora — pensou Conway, furioso —
incluíam um grande número de cancros da pele, extensos e bem desenvolvidos, e só
Deus sabia o que mais.

Ele perguntou a si próprio se uma criatura enorme e lenta como aquela poderia
sentir dor, se se sentisse, em que medida. Aquilo que ele via estava confinado a
algumas centenas de hectares de «pele» ou era muito mais profundo? Que aconteceria
às criaturas que viviam dentro ou debaixo deles, se muitos dos tapetes orgânicos
morressem, decompondo-se? Até os roladores e a sua cultura aquática seriam afetados
— a ecologia de todo o planeta seria destruída! Alguém tinha de falar aos
roladores, com tanta cortesia como firmeza, se já não fosse demasiado tarde.

Imediatamente, o aspeto comercial da sua missão, a troca de ferramentas por


assistência médica, deixou de ser importante. Conway começava a pensar de novo como
um médico

— um médico com um paciente num estado desesperado.

Na Descartes o helicóptero que eles tinham requisitado estava à sua espera. Conway
vestiu um facto ligeiro com um motor de propulsão montado nas costas e garrafas de
ar adicionais sobre o peito. Camsaug tinha um grande avanço para que ele o pudesse
alcançar a pé, de modo que Conway teria de voar no helicóptero até à posição
presente da criatura, Harrison estava aos comandos.

— Você, outra vez — disse Edwards.

O tenente sorriu.

Estou sempre onde está ação. Agarre-se bem.


Depois da louca corrida para a nave-mãe, a viagem de helicóptero pareceu
incrivelmente lenta. Conway sabia que se «estenderia ao comprido»» se não se
apressasse, e Edward assegurou-lhe que o sentimento era mútuo e que eles teriam
feito um tempo melhor se nadassem. Observaram o traçador de Camsaug a aumentar no
visor de busca enquanto Harrison praguejava contra as aves e os lagartos voadores
que mergulhavam em busca de peixe e se suicidavam nas pás do rotor.

Voaram baixo sobre o troço da costa que se encontrava habitado e onde os fundos
baixos estavam protegidos dos grandes animais de presa marinhos por um cordão de
ilhas e recifes. A essa proteção natural, os roladores tinham adicionado do lado de
terra uma barreira de restos do monstro morto, detonando uma série de dispositivos
nucleares de baixa energia dentro do enorme corpo da criatura. A área estava agora
tão calma que as argolas podiam rolar com muito pouco perigo bem dentro das
cavernosas bocas do tapete orgânico e dos seus pré-estômagos, a sair de novo.

Mas Camsaug estava a ignorar a área segura. Rolava firmemente para a abertura entre
os recifes que levava à costa ativa, onde os animais ferozes, grandes, médios e
pequenos, comiam e corroíam o tapete orgânico.

— Coloque-me do outro lado da abertura — disse Conway. — Esperarei aí que Camsaug


passe, e depois segui-lo-ei.

Harrison fez descer o helicóptero suavemente no ponto indicado e Conway desceu para
um flutuador. Com o visor aberto e a cabeça e os ombros a projetarem-se através da
escotilha do fundo, podia ver o visor de busca e a costa, a uns oitocentos metros.
Qualquer coisa que parecia ser um linguado do tamanho de uma baleia lançava-se fora
de água e voltava a cair nela com um som semelhante ao de uma explosão. A onda
alcançou-os alguns segundos depois e fez balançar o helicóptero como se ele fosse
um pedaço de cortiça.

— Francamente, doutor — disse Edwards —, não compreendo porque é que está a fazer
isto, É uma curiosidade científica, relacionada com os métodos de fecundação deles?
O desejo de ver de perto as bocas gigantescas de um monstro terrestre? Temos
instrumentos com comando a distância que lhe permitirão fazer ambas as coisas sem
perigo, uma vez que nos arrisquemos a instalá-los...

Conway observou:

— Não gosto de espreitar pelo buraco da fechadura, e as suas engenhocas talvez não
digam o que pretendo saber. Compreende, não sei exatamente o que é que procuro, mas
estou razoavelmente certo de que é aqui que poderei entrar em contacto com eles...

— Os que usam as ferramentas? Mas podemos contactá-los visualmente, através das


plantas.

— Isso pode ser mais difícil do que esperamos — disse Conway. — Não me agrada
atacar a minha teoria, mas temos de considerar que os conceitos mais importantes
como a astronomia e as viagens no espaço, devem ser de compreensão difícil para
criaturas que vivem dentro ou sob o seu enorme hospedeiro...

Conway explicou que se tratava apenas de outra teoria, mas da maneira como ele a
via, os utilizadores das ferramentas tinham adquirido um grande domínio do seu
ambiente. Num mundo normal, o domínio do ambiente incluiria sectores como a
reflorestação, a proteção contra a erosão do solo, a utilização eficiente de
recursos naturais, etc. Talvez naquele mundo essas coisas não fossem a preocupação
de geólogos e lavradores, mas de criaturas que, porque o seu ambiente era um
organismo vivo, eram especialistas em mantê-lo de boa saúde.
Estava razoavelmente certo de que essas criaturas poderiam ser encontradas nas
áreas periféricas em que o organismo gigante estava sob constante ataque e
necessitava a sua ajuda, estava também certo de que eles fariam o trabalho por si
próprios em vez de usarem os seus instrumentos porque esses dispositivos comandados
pelo pensamento tinham a desvantagem de obedecer e se formarem segundo a fonte de
pensamentos mais próxima — isso fora provado muitas vezes no Hospital, assim como
pelo que acontecera horas antes. Provavelmente, as ferramentas eram valiosas —
demasiado valiosas para que se pudesse correr o risco de serem engolidas e (ou)
tornadas inúteis pelos pensamentos selvagens e desorganizados dos animais de presa.

Conway não sabia como essa gente se chamava a si própria— os roladores davam-lhes
os nomes de Protetores ou Curadores ou um meio quase certo de suicídio, pois eles
matavam mais vezes que curavam. Mas mesmo o mais famoso cirurgião Tralthano em toda
a Federação seria capaz de matar um humano-terrestre, se não possuísse conhecimento
médico da espécie e se não dispusesse de uma gravação fisiológica. Os utilizadores
dos instrumentos trabalhavam com uma desvantagem semelhante, quando tentavam curar
os roladores.

— Mas o que importa é que eles tentam — disse Conway. — Todos os seus esforços se
dirigem para manter um grande doente vivo, em vez de muitos. São os médicos de
Meatball e é com eles que devemos estabelecer contato, em primeiro lugar!

Fez-se silêncio, só cortado pelos estrondos vindos da costa. Subitamente, Harrison


falou:

— Camsaug está por baixo de nós, doutor.

Conway moveu a cabeça num gesto de compreensão, fechou o visor e deixou-se cair
desajeitadamente na água. O peso do propulsor e das garrafas de ar adicionais fê-lo
afundar-se rapidamente e em poucos minutos ele avistou Camsaug a rolar pelo fundo
do mar. Conway seguiu-o, igualando a velocidade do rolador e mantendo-se apenas à
sua vista. Não tinha intenção de se intrometer na vida privada de ninguém. Era um
médico e não um antropólogo e só estava interessado em ver o que Camsaug faria se
necessitasse de socorros médicos.

O helicóptero subira de novo, mantendo-se junto dele e continuando a comunicar pela


rádio.

Camsaug dirigia-se obliquamente para a costa, oscilando para evitar labirintos de


vinhas aquáticas e tapetes espinhosos, que se tornavam mais densos quando o fundo
subia. Por vezes, descrevia círculos durante minutos, quando algum dos maiores
animais ferozes passava por ele. As vinhas e os tapetes espinhosos tinham espinhos
e dardos venenosos e fustigavam ou disparavam .sobre qualquer coisa que passasse
demasiado perto. Agora, o problema de Conway era o de passar por eles a uma
distância segura mas não tão alto que pudesse se avistado por qualquer linguado
gigante.

A água ia-se tomando tão cheia de seres vivos e de atividade animal e vegetal, que
ele já não podia ver a perturbação causada na superfície pelo helicóptero. Como um
precipício vermelho-escuro, a periferia da besta terrestre erguia-se, próxima,
quase obscurecida pela sua massa de atacantes, parasitas e, possivelmente,
defensores aquáticos — a situação era demasiado caótica para que Conway pudesse
estabelecer diferenças. Começou a encontrar novas formas de vida — uma massa negra
brilhante, aparentemente infinita, que cortou o seu caminho, a ondular, e tentou
enrolar-se em volta das suas pernas, e uma grande alforreca irisada, tão
transparente que só os seus órgãos internos eram visíveis.

Uma das criaturas estendera-se sobre cerca de vinte metros quadrados do fundo do
mar, enquanto outra flutuava sobre ela. Não possuíam espinhos ou dardos, tanto
quanto ele pudesse ver, mas todas as criaturas pareciam evitá-las. e Conway fez o
mesmo.

Subitamente, Camsaug ficou em perigo.

Conway não viu como a coisa acontecera; notou apenas que o rolador oscilava mais do
que era usual e quando se aproximou viu um grupo de dardos venenosos a sobressaírem
do seu flanco. Quando alcançou Camsaug, viu-o a rolar num círculo apertado, quase
sobre o solo, como uma moeda nos movimentos lentos que surgem quando ela está quase
a deixar de girar. Conway sabia o que tinha a fazer, uma vez que enfrentara uma
emergência semelhante quando Surreshun fora transferido para o hospital. Levantou
rapidamente o rolador e começou a empurrá-lo através do fundo do mar como se fosse
um pneu furado.

Camsaug fazia ruídos que não eram traduzidos, mas o seu corpo foi-se tornando menos
flácido à medida que rolava — começava a reanimar-se. Subitamente oscilou e
afastou-se, rolando entre duas moitas de vinhas aquáticas. Conway subiu a uma
altura segura, mas um linguado gigante, com as mandíbulas abertas, lançou-se sobre
ele e fê-lo mergulhar instintivamente.

A cauda enorme afastou-se, sem o ferir, mas arrancando o propulsor das suas costas.
Simultaneamente, uma vide fustigou-lhe as pernas, rasgando o tecido do facto numa
dúzia de pontos. Sentiu a água fria a subir-lhe pelas pernas e sob a pele surgiu
algo como fogo líquido, que lhe correu pelas veias. Viu de relance Camsaug a rolar
estupidamente sobre a orla de uma alforreca e outra das criaturas que descia sobre
ele como uma nuvem irisada. Como Camsaug, os ruídos que fazia não eram traduzíveis.

— Doutor! — A voz estava tão deformada pela aflição que ele não a reconheceu. — Que
foi que aconteceu?

Conway não sabia e não podia falar. Por precaução contra quaisquer danos no espaço
ou em atmosferas nocivas, o revestimento do seu facto fora dividido em secções
anulares que obturavam a área de rotura, expandindo-se apertadamente contra a pele.
Tratava-se de conter a queda de pressão, ou o gás venenoso, mas naquele caso os
anéis expandidos estavam a atuar como torniquetes, demorando a difusão do veneno no
seu sistema. Apesar disso, Conway não podia mover os braços, as pernas ou mesmo os
queixos. A sua boca imobilizara-se, aberta, e ele apenas podia respirar — e mal.

A alforreca estava exatamente por cima dele. A sua orla enrolou-se sobre o corpo de
Conway e apertou-o, enrolando-o numa espécie de casulo quase invisível.

— Doutor! Vou descer! — Parecia Edwards.

Sentiu qualquer coisa picar várias vezes as suas pernas e descobriu que a alforreca
tinha espinhos ou esporões e os estava a usar nos sítios onde o tecido do seu facto
fora rasgado pelas vides. Comparada com a sensação de ardor nas suas pernas, a dor
era pequena, mas ele ficou preocupado porque as picadas pareciam muito próximas das
artérias e veias. Com um tremendo esforço moveu a cabeça para ver o que estava a
acontecer, e viu o que esperava. O seu casulo transparente estava a tomar-se
vermelho.

— Doutor! Onde está? Posso ver Camsaug a rolar. Parece que ele está envolvido por
um saco de plástico rosado. Há uma grande bola vermelha exatamente por cima dele...

— Sou eu... — disse Conway, fracamente.

A cortina vermelha que o envolvia brilhou momentaneamente. Uma coisa grande e


escura passou como um relâmpago e Conway deu consigo a girar sobre si próprio. A
vermelhidão à sua volta tornou-se menos opaca.
— Um linguado gigante — disse Edwards. — Apanhei-o com o meu laser. Doutor?

Conway podia agora ver o major. Edwards vestia um facto de serviço pesado que o
protegia das vinhas e dos espinhos, mas tornava difícil a pontaria — a sua arma
parecia apontar para Conway. Instintivamente, ele protegeu o rosto com as mãos e
verificou que os seus braços se moviam facilmente. Pôde voltar a cabeça, dobrar as
costas e as pernas doíam-lhe menos. Quando olhou para elas, a região dos joelhos
estava vermelha, mas a massa que a rodeava parecia mais transparente.

Era impossível!

Olhou de novo para Edwards e, depois, para o lento e perigoso rolar de Camsaug, que
continuava envolvido. Surgiu no seu espírito uma grande luz.

—Não dispare, major — disse Conway, fracamente, mas de uma maneira distinta. — Peça
ao tenente para descer a rede de salvação. Icem-nos para o helicóptero e para a
Descartes, depressa. A menos que o nosso amigo não possa sobreviver no ar. Nesse
caso levem-nos a ambos à Descartes, submersos... o meu ar durará. Mas tenha muito
cuidado em não o aleijar nem magoar.

Ambos quiseram saber de que diabo ele estava a falar. Fez tudo quanto pôde para
explicar, acrescentando:

— Portanto, e como vê, não só ele é o meu homólogo, o equivalente a um médico, em


Meatball, mas também lhe devo a vida. Há entre nós um laço íntimo, pessoal... pode
até dizer que somos irmãos de sangue!

MEATBALL

COSWAY preocupara-se com o problema de Meatball durante toda a viagem de regresso


ao hospital, mas só nos últimos dois dias o processo se tornara construtivo. Nesse
período ele confessara a si próprio que não podia resolver o problema e começara a
pensar nos nomes e nas capacidades de algumas das criaturas, humanas ou não, que
podiam ajudar a encontrar a solução. Preocupava-se de uma maneira tão intensa e
construtiva que não soube que a nave se materializara aos trinta quilómetros
regulamentares, senão quando a voz átona, traduzida, do Rececionista, crepitou
através do altifalante da sala de comando.

— Identifique-se por favor. Paciente, visitante ou pessoal, e espécie.

O tenente que pilotava olhou para trás, para Conway e Edwards, o médico da nave-
mãe, e ergueu um sobrolho.

Edwards pigarreou nervosamente e disse:

— Aqui, nave auxiliar de exploração Di-835, transbordador da nave de exploração e


contacto cultural Descartes do Corpo de Monitores. Temos quatro visitantes e um
membro do pessoal a bordo. Três são humanos e dois são nativos de Drambon, de
diferentes...

— Indique por favor as classificações fisiológicas ou faça contatos de visão


completa. Todas as espécies inteligentes se consideram «humanas» e afirmam que as
outras são «não-humanas», de modo que aquilo que chama a si próprio não tem
significado algum, quanto à preparação ou às direções necessárias para vos fornecer
alojamentos adequados.

Edwards calou o altifalante e disse a Conway, desesperado:


— Sei o que nós somos, mas como poderemos descrever Surreshun e o outro tipo a este
burocrata médico?

Carregando no botão, Conway disse:

— Esta nave contém três humano-terrestres com a classificação fisiológica DBDG. São
o Major Edwards e o Tenente Harrison do Corpo de Monitores e eu, o Médico-Chefe
Conway. Transportamos dois nativos de Drambo. Drambo é o nome nativo do planeta...
vocês ainda o devem ter indicado como Meatball, que era o nome antes de termos
descoberto nele vida inteligente. Um dos nativos é um CLHG, respirador de água, com
um metabolismo de sangue quente baseado no oxigénio. O outro pode provisoriamente
ser classificado como SRJH e parece à vontade tanto no ar como na água.

«Não há urgência na transferência — acrescentou Conway. — Por outro lado o CLHG


ocupa um complicado mecanismo de manutenção de vida e deve sentir-se muito melhor
num dos nossos pisos cheios de água, onde possa rolar normalmente. Pode levar-nos à
Escotilha Vinte e Três ou Vinte e Quatro?

— Escotilha Vinte e Três, doutor. Os visitantes necessitam de transporte especial


ou dispositivos protetores para a transferência?

— Negativo.

— Muito bem. Por favor informe a Dietética sobre as necessidades de comida e


líquidos e a periodicidade das suas refeições. A sua chegada foi comunicada e o
Coronel Skempton gostaria de ver o major Edwards e o Tenente Harrison tão depressa
quanto possível.

— Obrigado.

A pequena nave entrou na enorme caverna cúbica que era a Escotilha Vinte e Três
enquanto vestiam os fatos ligeiros que usavam para ambientes onde o líquido ou o
gás era letal, mas se encontrava a pressões razoáveis. Sentiram as garras colocá-
los no berço ajustável e cambalearam ligeiramente quando as grelhas de gravidade
artificial foram ligadas. A porta exterior da escotilha fechou-se e ouviram a água
a cair pelas arribas de metal.

Conway acabara de apertar o seu capacete quando o recetor disse:

— Doutor, fala Harrison. O chefe da equipa de receção diz que demorará algum tempo
até que a escotilha esteja completamente cheia de água, e que se completem os
processos de anti-contaminação nas outras cinco entradas internas. A escotilha é
grande, e a pressão da água nas portas externas será severa se...

— Não é necessário enchê-la — disse Conway. — O CLCH de Drambo ficará satisfeito se


a água atingir o nível superior da escotilha de carga.

— O homem abençoa-o.

Entraram no porão da pequena nave, evitando cuidadosamente a máquina autopropulsada


que mantinha a vida do Dramboniano, fazendo-o rodar constantemente, e retiraram as
amarras que a prendiam ao fundo.

— Chegámos, Surreshun — disse Conway. — Dentro de poucos minutos poderás dizer


adeus a essa engenhoca durante uns dias. Como está o nosso amigo?

Era uma questão puramente retórica, porque o outro Dramboniano não falava, talvez
porque não podia. Mas se não podia conversar, podia pelo menos reagir. Como uma
enorme e irisada medusa — seria completamente invisível na água se não fosse a sua
pele irisada e os órgãos internos, nebulosos — Dramboniano ondulou na direção
deles. Enrolou-se em tomo de Conway como um casulo transparente, durante um
momento, e depois transferiu as suas atenções para Edwards.

— Estarei pronto quando estiverem, doutores.

— É uma entrada muito melhor que a primeira — disse Conway quando Edwards começou a
ajudá-lo a retirar do porão o equipamento de manutenção de vida de Surreshun. —
Pelo menos desta vez sabemos o que estamos a fazer.

— Não é preciso pedir desculpa, amigo Conway — disse Surreshun. — Para uma criatura
com uma inteligência e com valores morais tão altos como os meus, a simpatia pelas
limitações mentais das criaturas inferiores e, de resto, o perdão de quaisquer
incómodos que me hajam causado são pequenas facetas da minha generosa
personalidade.

Conway não dera conta de que estivera a apresentar desculpas, mas para uma criatura
que desconhecia por completo o conceito de modéstia, era possível que as suas
palavras soassem desse modo. Diplomaticamente, não disse nada.

A equipa de receção da Escotilha Vinte e Três chegou e começou a ajudá-los a


transportar a roda de Surreshun para a entrada das enfermarias aquáticas AUGL. O
chefe da equipa, cujo fato negro tinha faixas vermelhas e amarelas nas pernas e nos
braços, dando-lhe o aspeto de um moderno bobo da corte, nadou em direção a Conway e
encostou o capacete ao dele.

— Desculpe isto, doutor — disse a sua voz, um pouco deformada pelo meio usado para
a transmissão. — Surgiu subitamente uma emergência e não quero sobrecarregar a
frequência dos fatos. Gostaria de que todos vocês fossem para a enfermaria tão
depressa quanto possível. Surreshun já passou anteriormente pelas nossas mãos pelo
que não temos de nos preocupar com ele. Bastará que tomemos conta do outro tipo
e... Que demónio!

O «outro tipo» tinha-se enrolado em volta da cabeça e dos ombros dele, segurando-
lhe os braços e acariciando-o como um cão com doze cabeças invisíveis.

— Talvez ele goste de si — disse Conway. — Se lhe não der atenção dentro de um
momento ele vai-se embora.

— As criaturas costumam considerar-me irresistível — disse secamente o chefe da


equipa. — É pena que não possa dizer mesmo das fêmeas da minha própria espécie...

Conway nadou em volta e sobre a criatura, agarrou com as duas mãos o tegumento
transparente e flexível que cobria as costas dela e empurrou-a de lado contra a
água até que a frente da criatura ficou virada para a entrada da enfermaria.
Grandes e lentas ondulações percorreram o corpo dela e a criatura começou a ondular
na direção do corredor que levava à enfermaria AUGL, como um tapete voador irisada.
A roda de Surreshun seguiu-o de uma forma menos graciosa.

— Uma emergência? — perguntou Conway.

— Sim. doutor — disse o chefe da equipa, na frequência do fato. — Mas nada


acontecerá nos próximos dez minutos. Fui informado de que um DBLF Kelgiano, que
fazia parte do pessoal da sala de operações Hudlariana, foi ferido em consequência
de um espasmo muscular e um movimento involuntário dos tentáculos dianteiros do
paciente, durante uma operação. Os ferimentos foram complicados pelos efeitos da
compressão, mais o facto de a espécie de caldo a alta pressão que os Hudlarianos
respiram ser altamente tóxica para o metabolismo Kelgiano. Mas a verdadeira causa
da emergência é a hemorragia. Sabe como são os Kelgianos.
— Sem dúvida — disse Conway.

Mesmo uma pequena ferida perfurante ou incisa era uma coisa muito séria para um
Kelgiano. Eram lagartas gigantes, peludas, e só o seu cérebro, alojado na secção
cónica da cabeça, estava protegido por qualquer coisa que parecesse uma estrutura
óssea. O corpo era constituído por uma série de largas cintas musculares que lhe
davam mobilidade e serviam para proteger, muito inadequadamente, os órgãos vitais
internos.

O problema estava em que. para dar àquelas tremendas cintas de músculos, um


fornecimento adequado de sangue, a pulsação e a pressão tinham de ser muito
superiores ao normal nos humano-terrestres.

O chefe da equipa continuou:

— Não têm conseguido dominar satisfatoriamente a hemorragia, de modo que estão a


transportar o ferido da secção Hudlariana, dois pisos acima de nós, para a sala de
operações Kelgiana, e passarão através dos pisos cheios de água para ganhar
tempo... Desculpe-me, Doutor, aí vêm eles...

Várias coisas aconteceram então simultaneamente. Com um intraduzível ruído de


prazer, Surreshun libertou-se da roda e começou a rolar pesadamente pelo chão,
ziguezagueando lentamente entre os pacientes e o pessoal de enfermagem, que incluía
desde os Melfanos atarracados, semelhantes a caranguejos, até aos crocodilos de
doze metros de comprimento, equipados com tentáculos, que eram os nativos do mundo-
oceano de Chalderescol. O outro Dramboniano libertara-se das mãos de Conway estava
a afastar-se, a flutuar, quando na parede oposta se abriu uma escotilha e o
Kelgiano ferido foi trazido para dentro, com demasiadas pessoas a assisti-lo, na
opinião de Conway.

Eram cinco humano terrestres que usavam fatos ligeiros como o dele, dois Kelgianos
e um Illensano cujo invólucro transparente mostrava o amarelo nebuloso do cloro, no
seu interior. Um dos capacetes dos humano-terrestres continha uma cabeça que ele
reconheceu—a do seu amigo Mannen, que se especializara em cirurgia Hudlariana.
Formavam um enxame em volta do ferido como um cardume de peixes disformes,
empurrando-o e puxando-o na direção do outro lado da enfermaria, e o tamanho do
cardume aumentava quando o chefe da equipa de receção e os seus homens se
aproximavam para apreciar a situação. A alforreca Dramboniana também se aproximou.

A princípio Conway pensou que a criatura sentia simplesmente curiosidade, mas


depois viu que o tapete irisado ondulava para o ferido com uma intenção clara.

— Detenham-na! — gritou Conway.

Todos o ouviram porque ele os viu saltar quando a voz dele soou de uma maneira
ensurdecedora nos comunicadores dos seus fatos. Mas não sabiam a quem haviam de
deter, nem como o fazer, e não havia tempo para lhes explicar isso.

Praguejando contra a inércia da água, Conway nadou furiosamente para o Kelgiano


ferido, tentando adiantar-se ao Dramboniano. Mas a grande área de pêlos ensopados
de sangue no flanco do Kelgiano atraía a criatura como se fosse um íman e, tal como
um íman, a sua atração aumentava na razão inversa do quadrado da distância. Conway
não teve tempo de gritar outro aviso, antes de o Dramboniano ter atingido o seu
alvo e se haver agarrado a ele.

Houve uma suave explosão de bolhas quando as sondas do Dramboniano romperam a maca
de pressão do Kelgiano e se enfiaram no fato já danificado que a criatura usara na
sala de operações Hudlariana, para depois se inserirem no espesso pêlo prateado que
estava por baixo dele. Segundos depois, o seu corpo transparente estava a
avermelhar-se, à medida que sugava o sangue do Kelgiano ferido.

— Depressa — gritou Conway —, levem ambos para a secção cheia de ar!

Podia ter ficado calado, porque toda a gente estava a falar e a sobrecarregar o
rádio do seu fato. A tomada direta de som também não ajudava — tudo quanto ele
podia ouvir era o grunhido profundo e rouco da sereia de emergência da enfermaria e
demasiadas vozes a gritar, até que uma, muito alta, Chalderiana, se fez ouvir acima
das outras.

— Animal! Animal!

O esforço extremo que fizera ao nadar sobrecarregara os elementos secadores do seu


fato, mas aquelas palavras fizeram com que o suor que banhava o corpo dele se
tornasse de quente em frio.

Nem todos os habitantes do Geral do Sector eram vegetarianos, e as suas exigências


dietéticas necessitavam de grandes quantidades de carne de fontes extraterrestres e
terrestres. Mas a carne chegava invariavelmente gelada ou conservada, e por uma
muito boa razão: para evitar casos de identificação errada por parte das formas de
vida maiores, carnívoras, que muitas vezes entravam em contacto com extraterrestres
mais pequenos que tinham uma semelhança física com a sua comida favorita.

A regra no Geral do Sector era a de que, se uma criatura estava viva, fosse qual
fosse o tamanho ou forma que tivesse, então era inteligente.

As exceções a essa regra eram muito raras e incluíam animais de estimação — não
violentos, evidentemente — pertencentes ao pessoal ou a visitantes de importância.
Quando uma criatura não inteligente entrava acidentalmente no Hospital, tinham de
ser tomadas imediatamente medidas de proteção, para que as formas de vida
inteligentes mais pequenas não sofressem.

Nem o pessoal médico encarregado de transportar o ferido nem a equipa de receção


estavam armados, mas dentro de poucos momentos a sereia de alarme traria homens do
Corpo, e entretanto, um dos pacientes Chalderiano — com os seus múltiplos
tentáculos, a sua armadura e nove metros de comprimento—movia-se para retirar o
Dramboniano da sua posição com uma ou quanto muito duas dentadas das suas enormes
mandíbulas.

— Edwards! Mannen! Ajudem-me a afastá-lo!—gritou Conway, mas havia ainda muita


gente a gritar para que o pudessem ouvir. Pegou com as duas mãos no tegumento do
nativo de Drambo e olhou em volta como louco. O chefe da equipa alcançara o local
ao mesmo tempo e colocara uma perna entre o Kelgiano ferido e o SRJH que se
agarrara a ele, enquanto tentava separá-los com ambas as mãos. Conway torceu-se,
ergueu os dois pés ao nível do queixo e bateu com eles no homem, afastando-o.
Depois lhe apresentaria desculpas. O Chalderiano aproximava-se perigosamente.

Edwards chegou então, viu o que Conway estava a fazer e juntou-se a ele. Os dois
pontapearam o focinho gigantesco do Chalderiano, tentando afastá-lo. Não podiam
aleijar o monstro, mas confiavam em que o extraterrestre não atacasse duas
criaturas inteligentes para matar outra criatura que parecia ser um animal e que
estava a atacar um terceiro ser inteligente. A situação era, no entanto,
suficientemente confusa para que fosse cometido um erro. Era muito possível que
Edwards e Conway ficassem com as pernas amputadas da cintura para baixo.

Subitamente, o pé de Conway foi agarrado por duas mãos grandes e fortes e o seu
amigo Mannen aproximou-se até que os capacetes de ambos entraram em contacto.
— Conway, que diabo está a fazer?

— Não tenho tempo para explicar — respondeu ele. — Leve-os o mais rapidamente
possível para a secção de ar. Não deixe que ninguém aleije o SRJH; ele não está a
fazer mal algum.

Mannen olhou para a criatura que cobria o Kelgiano como uma bolha enorme, vermelha
como sangue. Já não era transparente e o sangue do enfermeiro ferido podia ser
visto a entrar e a difundir-se pelo enorme corpo do Dramboniano, que parecia cheio
até quase estoirar.

— Talvez me tenha enganado — disse Mannen. Com uma das mãos agarrou um dos enormes
dentes do Chalderiano, fê-lo rodar até poder fitá-lo num olho que tinha quase o
tamanho de uma bola de futebol e com a outra mão fez movimentos secos, laterais.
Mostrando-se confundido, o Chalderiano afastou-se, e poucos momentos depois estavam
na escotilha que conduzia à secção dos respiradores de ar.

A água esgotou-se e a porta abriu-se para mostrar dois homens do Corpo, vestidos de
vende, que se encontravam na antecâmara, de armas prontas. Um deles estava agarrado
a uma metralhadora com tambores múltiplos, capaz de anestesiar instantaneamente uma
dúzia (ou mais) de formas de vida que pertenciam à categoria dos respiradores de
oxigénio com sangue quente, enquanto o outro apontava uma arma muito mais pequena e
de aspeto muito menos feroz, mas que era capaz de matar um elefante ou qualquer
extraterrestre do mesmo tamanho.

— Parem!—disse Conway, escorregando através do pavimento ainda molhado para se


colocar na frente do Dramboniano. — Ê um visitante muito importante. Dêem-nos uns
momentos. Tudo acabará em bem, podem ter a certeza.

Eles não baixaram as armas, nem deram mostras de terem acreditado no que ele
dissera.

— Seria melhor que se explicasse — disse o chefe da equipa, calmamente, mas com a
cólera a transparecer no rosto.

— Sim — disse Conway. — Ah, espero não o ter aleijado quando lhe dei aquele
pontapé...

— Só feriu a minha dignidade, mas mesmo assim .

— Fala O’Mara — rugiu uma voz do comunicador, na parede oposta. — Preciso de


contacto por visão. Que está a acontecer aí?

Edwards, que era quem estava mais próximo, regulou a câmara de televisão como foi
exigido e disse:

— A situação é bastante confusa. Major...

— Naturalmente, se Conway tem alguma coisa a ver com isso — disse O’Mara,
causticamente.— Que está ele a fazer aí? Está a fazer preces para um parto feliz?

Conway estava de joelhos junto do Kelgiano ferido, verificando o seu estado. Pelo
que podia ver, o Dramboniano colara-se de tal maneira que muito pouca água entrara
na maca de pressão ou no fato de proteção: a criatura estava a respirar
normalmente, sem indicação de água nos pulmões. A cor do Dramboniano tornara-se
mais clara. Já não era vermelho-escura: voltara ao seu colorido normal irisado,
apenas um pouco róseo. Enquanto Conway fazia as suas observações, o Dramboniano
soltou-se do Kelgiano e rolou como um grande balão cheio de água até parar contra a
parede.
Edwards dizia:

— Um relatório completo sobre esta forma de vida, há três dias. Compreendo que três
dias não são muito tempo para que os resultados sejam disseminados através de um
estabelecimento deste tamanho, mas nada disto teria acontecido se o Dramboniano não
tivesse sido exposto a uma criatura seriamente ferida...

A voz de O’Mara fez-se ouvir num tom que tinha tudo menos o que dizia:

— Com todo o respeito, Major, um hospital é um lugar onde qualquer pessoa em


qualquer momento pode esperar ver doenças ou feridas sérias. Deixe-se de desculpas
e diga-me o que aconteceu!

O chefe da equipa disse:

— Esse Dramboniano atacou o Kelgiano ferido.

— E depois? — perguntou O’Mara.

— Curou-se instantaneamente — disse Edwards.

Não era muito vulgar que O’Mara não soubesse o que dizer.

Conway afastou-se para o lado para que o Kelgiano, que já não estava ferido, se
levantasse sobre os seus inúmeros pés. Disse:

— O SRJH de Drambon é a coisa mais próxima de um médico que encontrámos nesse


planeta, É uma espécie de sanguessuga que pratica a sua profissão extraindo o
sangue dos seus pacientes e purificando-o de quaisquer substâncias infeciosas ou
venenosas, antes de o devolver ao corpo do paciente, e também repara os danos
físicos. A sua reação na presença de doenças ou ferimentos sérios é instintiva.
Quando o Kelgiano ferido apareceu subitamente ele quis ajudar. O ferido estava a
sofrer de intoxicação devido ao material tóxico do ambiente da sala de operações
Hudlariana, e o ferimento infetara-se. Para o Dramboniano, era um caso muito
simples.

«No entanto, nem todo o sangue é devolvido, e não fomos capazes de determinar se é
fisiologicamente impossível para a criatura devolvê-lo todo ou se ela retém alguns
gramas como pagamento pelos serviços prestados.»

O Kelgiano soltou um ronco que parecia o de uma sereia de nevoeiro. O ruído foi
traduzido como:

— É muito bem-vindo; estou certo disso.

O DBLF afastou-se seguido pelos dois militares armados. Olhando estupefacto para o
nativo de Drambo, o Comandante fez sinal aos seus homens para que voltassem aos
respetivos postos e o silêncio começou a pesar.

Por fim, O’Mara disse:

— Quando tiverem tratado dos vossos visitantes e não houver razões fisiológicas
contra isso, será bom que nos reunamos para discutir isto. No meu gabinete dentro
de três horas.

O seu tom era agoirentamente calmo. Seria uma boa ideia se Conway ganhasse algum
apoio moral e médico para a reunião com o Psicólogo-Chefe.
Conway pediu ao seu amigo Prilicla para participar na reunião, assim como o Coronel
Skempton e o Major Edwards, o Doutor Mannen, os dois Drambonianos, Thornnastor e
dois médicos de Hudlar e Melf que estavam a seguir cursos no Hospital. Demoraram
alguns minutos a entrar na enorme antecâmara do gabinete de O’Mara — uma sala
normalmente ocupada apenas pelo ajudante do Major e algumas peças de mobiliário
próprias para os extraterrestres com os quais O’Mara tinha contactos profissionais.
Naquela ocasião era o Psicólogo-Chefe quem ocupava a secretária do seu adjunto e
aguardava com uma impaciência visivelmente mal contida, que toda a gente se
sentasse, deitasse, ou colocasse como melhor lhe conviesse.

Depois, O’Mara disse calmamente:

— Depois da vossa chegada altamente dramática, li os últimos relatórios sobre


Meatball, e saber tudo é esquecer tudo... exceto, evidentemente, a sua presença
aqui, Conway. Você não devia voltar senão daqui a três...

— Drambo, senhor — disse Conway. — Agora usamos a palavra nativa.

— Nós preferimos isso — disse a voz traduzida de Surreshun. — Meatball não é um


nome que descreva corretamente um mundo coberto por uma camada de vida
relativamente pouco espessa, ou para o que consideramos ser o planeta mais belo da
Galáxia... mesmo considerando que ainda não tivemos oportunidade de visitar
qualquer dos outros. Além disso, o nosso Tradutor diz-me que Meatball, como nome,
carece de precisão, referência e respeito. O uso continuado do vosso nome para o
nosso glorioso planeta não me encolerizará... tenho uma compreensão muito grande da
frequência das limitações do vosso pensamento, e tenho também muita pena dessas
deficiências mentais para sentir cólera ou mesmo irritação...

— É muito amável — disse O’Mara.

— Também isso — concordou Surreshun.

Conway disse apressadamente:

— A razão por que eu voltei foi simplesmente a de pedir auxílio. Não estava a fazer
qualquer progresso no problema de Drambo e isso preocupava-me.

O’Mara observou:

— A preocupação é uma atividade particularmente inútil... a menos que,


evidentemente, você faça isso em voz alta e em companhia de alguém. Ah, agora
compreendo porque foi que trouxe consigo metade do Hospital.

Conway moveu a cabeça num gesto de confirmação e prosseguiu:

— Drambo necessita desesperadamente de assistência médica, mas o problema não tem


comparação com qualquer outro que tenhamos encontrado até hoje nos planetas e nas
colónias humano-terrestres ou extraterrestres. Nessas ocasiões foi apenas uma
questão de investigar e isolar as doenças, levando os medicamentos específicos ou
sugerindo como eles podiam ser distribuídos com maior eficácia, e deixando depois
que as pessoas afetadas administrassem os seus próprios medicamentos através de
médicos e instalações locais. Drambo não é assim. Em vez do diagnóstico e
tratamento de um grande número de indivíduos, há que cuidar de muito poucos
indivíduos, mas de tamanho muito grande... enorme!

«A razão disso está no facto de nos últimos anos a espécie de Surreshun ter
aprendido como libertar a energia atómica. Explosivamente, e com vastas quantidades
de poeira radioativa. Eles são... (hesitou, tentando encontrar uma maneira
diplomática de falar de falta de cuidado, estupidez, ou desejo de suicídio) ...são
muito orgulhosos da sua recente descoberta, que lhes permite matar grandes áreas
das criaturas terrestres e tomar as águas pouco profundas, em torno dessas linhas
costeiras vivas, seguras para a sua população, cada vez maior.

«Mas vivendo dentro, ou sob essas criaturas, ou talvez as dominando, há outra


espécie inteligente cuja terra está literalmente em perigo de morrer à sua volta.
Essa gente fez a ferramenta que veio a bordo da Descartes e, a julgar por essa
engenhoca, dispõe de uma técnica muito avançada. Mas ainda não sabemos nada sobre
ela.

«Quando se tornou evidente que a gente de Surreshun não era quem construía as
ferramentas, perguntámos a nós próprios onde poderíamos mais facilmente encontrar
esses construtores, e calculámos que fosse nas regiões onde a sua terra viva estava
sob um ataque constante. Era aí que eu esperava também encontrar os seus médicos, e
foi lá, de facto, que eu encontrei o nosso amigo transparente. Ele salvou-me a
vida, de uma maneira muito desconcertante, e eu estou convencido de que ele é o
equivalente a um médico, em Drambo. Infelizmente, ele não parece poder comunicar
comigo de qualquer maneira que eu possa entender e, tendo presente o facto de que
qualquer pessoa pode observar as suas entranhas sem necessidade de raios X, não
parece possuir qualquer agrupamento de gânglios nervosos, ou qualquer coisa que se
pareça com um cérebro.

«Precisamos desesperadamente do auxílio da sua gente e essa é a razão por que o


trouxe aqui, para que um especialista de comunicações extraterrestres possa talvez
conseguir o que os peritos da nave e eu próprio não fomos capazes de obter.»

O Coronel Skempton disse de súbito:

— Não é estranho que um dos Drambonianos não tenha coração e o outro pareça não ter
cérebro?

— Estou habituado a médicos sem miolos —disse secamente O’Mara. — Comunico com
eles, e de uma maneira geral com êxito, todos os dias. Mas esse é o seu único
problema?

Conway abanou a cabeça.

— Já disse que temos de tratar um pequeno número de pacientes muito grandes. Mesmo
com a ajuda de todos os médicos de Drambo continuaria a necessitar de auxílio
cartográfico (isto é: reconhecimento fotográfico) para determinar a extensão do
mal, de uma maneira tão precisa quanto possível, e também da sondagem das regiões
internas. O uso de raios X a semelhante escala é impossível. Uma operação de
perfuração em grande escala para colher amostras do tecido a grande profundidade
seria de pouco uso, uma vez que a broca corresponderia a uma agulha muito curta e
impossivelmente fina. Portanto precisamos de investigar pessoalmente as áreas
doentes ou danificadas, usando carros blindados e, se possível, os nossos pés e as
nossas mãos, dentro de fatos espaciais de serviço pesado. A entrada para as áreas
afetadas poderá ser feita através das aberturas naturais, e a missão poderá ser
muito rápida se tivermos o auxílio de gente com treino médico que não precise da
proteção de veículos blindados, nem de fatos. Estou a pensar em espécies como os
Chalderianos, os Hudlarianos e os Melfanos.

Olhando para Thornnastor, prosseguiu:

— Gostaria que a Patologia me desse sugestões para fornecer uma cura por cirurgia,
de preferência a uma medicamentação. As indicações presentes são de que o mal é uma
consequência do envenenamento radioativo, e ainda que eu saiba que hoje podemos
curar casos mesmo muito avançados, o tratamento poderá ser impossível de aplicar a
doentes daquele tamanho, sem mencionar o facto de que a medicamentação regenerativa
necessária para apenas um deles representaria a produção total de uma dúzia de
planetas durante muitos anos. Daí a necessidade de uma solução cirúrgica.

Skempton pigarreou c disse:

— Começo a ver dimensão do problema. O meu papel será o de organizar os transportes


e abastecimentos para o pessoal médico. Sugiro também um batalhão de engenharia
para instalar e manter o equipamento especial...

— Para começar — disse Conway.

— Naturalmente — disse o Coronel, um pouco friamente—, continuaremos a prestar-lhe


todo o auxílio necessário...

— Não me compreendeu, senhor — disse Conway. — Não posso saber precisamente qual a
dimensão do auxílio de que necessitaremos, mas tenho estado a pensar em termos de
uma subarmada de sector, completa, dispondo de lasers de longo alcance, torpedos
perfurantes, armas nucleares táticas («limpas», evidentemente) e todas as outras
coisas terríveis que possa sugerir e que sejam simultaneamente concentradas e
capazes de serem dirigidas com precisão.

«Compreende, Coronel: a cirurgia em tamanha escala exigirá uma operação que será
mais militar que cirúrgica.» — Conway voltou-se para O’Mara e acrescentou: — Essas
são algumas das razões do meu regresso imprevisto. As outras são menos urgentes
e...»

— Podem muito bem esperar até que esta parte esteja resolvida — disse O’Mara com
firmeza.

A reunião cessou pouco depois porque nem Surreshun nem Conway podiam dar qualquer
informação sobre Drambo que não constasse já dos relatórios do Corpo. O’Mara
retirou-se para o gabinete interior com o medico Dramboniano. Thornnastor e
Skempton voltaram para os seus serviços e Edwards, Mannen, Prilicla e Conway, tendo
procurado em primeiro lugar dar conforto a Surreshun no tanque dos AUGL, dirigiram-
se para o refeitório dos respiradores de oxigénio. Os médicos de Hudlar e Melf
acompanharam-nos para saber mais coisas sobre Drambo e para ver os outros comerem.
Eram novatos no Hospital e, estando nos primeiros ardores do entusiasmo, passavam
todos os momentos disponíveis a observar os extraterrestres e a falar com eles.

Conway sabia o que isso era. Ainda tinha muito disso, mas já estava suficientemente
prático para admirar o entusiasmo dos jovens...

— Os Chalderianos são suficientemente fortes e móveis para se defenderem contra os


animais de presa nativos — disse Conway, enquanto estavam sentados a uma mesa
desenhada para os FGLI Tralthanos (as mesas dos DBDG humano-terrestres estavam
todas ocupadas por Kelgianos) e moveu o marcador da comida. — Vocês, Melfanos,
movem-se muito rapidamente no fundo do mar, e as vossas pernas, sendo
principalmente constituídas por material ósseo, são imunes às plantas e aos
espinhos venenosos que crescem nesse fundo. Os Hudlarianos, no entanto, ainda que
se movam vagarosamente, só se teriam de preocupar com uma granada perfurante, e a
água em todo o planeta é tão densa de vida vegetal e animal ansiosa por se fixar
sobre qualquer superfície lisa que podem pôr de parte todo o equipamento de
pulverização de alimentos e viver completamente com o que o mar dá.

— Isso parece o céu — disse o Hudlariano. — Mas você necessitará de um grande


número de médicos das três espécies... muitos mais do que os que poderão ser
fornecidos pelo Hospital, mesmo que autorizassem toda a gente a ser voluntário.

— Precisaremos de centenas de vocês — respondeu Conway.


— E Drambo não é o céu, nem mesmo para os Hudlarianos. Ao mesmo tempo devem ser
médicos (jovens, ainda inquietos, acabados de diplomar) ansiosos por contactar com
extraterrestres...

— Não sou Prilicla— disse Mannen, a rir-se—, mas até eu estou a ver que está a
pregar aos convertidos. Gosta de bife frio, Conway?

Durante alguns minutos concentraram-se na comida de modo que a brisa suave


produzida pelas asas de Prilicla — ele preferia pairar durante as refeições,
afirmando que o voo ajudava a sua digestão —não prejudicava nada senão o gelado.

Edwards disse subitamente:

— Na reunião você mencionou outros problemas, menos urgentes. Espero que o


recrutamento de criaturas de pele dura, como o nosso companheiro Garoth, fosse um
deles. Não quero perguntar nada sobre os outros...

Conway disse:

— Precisaremos de conselhos no próprio local durante este exame médico em grande


escala, o que significa médicos, enfermeiros e técnicos experimentados cobrindo uma
gama de forma de vida tão larga quanto possível. Tenho de falar com Thornnastor,
para que ele dispense algum pessoal da Patologia...

Prilicla deslizou subitamente, de lado, e quase meteu uma das suas pernas na
sobremesa de Mannen. Tremia ligeiramente— um sinal seguro de que alguém na mesa
irradiava emoções fortes e complicadas.

Mannen disse:

— Não sou Prilicla, mas pelo comportamento do seu amigo empata creio que você está
a procurar, e a tentar justificar, uma ligação muito íntima com o departamento de
patologia e especialmente com uma patologista chamada Murchison. Não é verdade,
Doutor?

— Creio que as minhas emoções só a mim dizem respeito — disse Conway.

— Eu não disse nada — observou Prilicla, que estava a sentir dificuldades em se


manter equilibrado, no seu voo.

Edwards perguntou:

— Quem é Murchison?

Garoth elucidou-o através do seu tradutor:

— Oh, é uma fêmea DBDG humano-terrestre. Uma enfermeira muito eficiente com uma
experiência operacional de mais de trinta formas de vida diferentes, que se
classificou recentemente como uma patologista, com grau superior. Pessoalmente,
acho-a muito agradável e cortês, a ponto de ignorar as (para mim) repelentes
camadas de tecido adiposo que cobrem a maior parte da sua musculatura.

— Vai levá-la consigo para Drambo, Conway? — O Corpo de Monitores e os seus


oficiais tinham ideias antiquadas quanto a tripulações mistas, mesmo em longas
missões de exploração.

— Se lhe derem metade de uma oportunidade — disse Mannen, num tom grave.
— Você devia casar com a garota, Conway.

— Já o fez.

— Ah!

Mannen, sorrindo, explicou:

— Este estabelecimento é muito estranho. Major, É cheio de hábitos estranhos e


peculiares. Por exemplo, no aspeto sexual. Para muitas das criaturas aqui
presentes, é um processo de continuação, involuntário e público, tão estimulante
como o de respirar, ou é um terramoto fisiológico que os abala talvez três dias por
ano. As pessoas dessas espécies têm dificuldade em compreender aquilo que, para
elas, não passa de complicações espantosas e de um comportamento ritualista, e que
é o acasalamento e a fecundação na nossa espécie... ainda que haja aqui algumas
cuja vida sexual toma a nossa, por comparação, tão simples como a das flores.

«Mas aquilo que eu pretendo pôr em evidência é que a grande maioria dos nossos
extraterrestres não compreende porque é que a fêmea da nossa espécie deve perder a
sua identidade, a mais poderosa de todas as propriedades: o seu nome. Para muitos
deles isso equivale à escravidão, ou, pelo menos, à cidadania de segunda classe,
enquanto para outras é uma simples estupidez. Não veem porque é que uma médica,
enfermeira ou técnica humano-terrestre deve mudar de identidade e tomar o nome
pertencente a outra entidade por simples razões emocionais. Portanto elas mantêm os
seus nomes profissionais, como as atrizes e outras fêmeas com profissões, e têm
todo o cuidado em usá-los sempre, para evitar confusões de identidade com
extraterrestres que...

Conway disse secamente:

— É isso. Mas eu gostaria que me explicasse a diferença entre uma mulher amadora e
uma profissional.

Mannen prosseguiu, fingindo não o ouvir:

— Claro que se comportam de maneira diferente, na sua vida particular. Algumas são
tão depravadas que se tratam pelos nomes próprios.

— Precisamos de uma equipa de patologia — observou Conway.—Mas mais importante


ainda é o facto de necessitarmos de apoio médico local. O povo de Surreshun, por
razões fisiológicas, só nos pode dar apodo moral, o que significa que tudo depende
da cooperação que conseguirmos dos nossos amigos sanguessugas, É esse o seu papel,
Prilicla. Esteve a vigiar as radiações emocionais durante a reunião. Alguma ideia?

— Creio que não, amigo Conway — disse o empata. — Durante toda a reunião, o
Dramboniano esteve consciente e bem atento, mas ele não reagiu a nada que tivesse
sido dito ou feito, nem se empenhou em qualquer pensamento concentrado. Teve apenas
sentimentos de bem-estar, e de autocontentamento.

Edwards comentou:

— Sem dúvida que ele fez um bom trabalho nesse Kelgiano, e para uma sanguessuga, os
decilitros de sangue que ele absorveu...

Prilicla aguardou cortesmente que Edwards se calasse e prosseguiu:

— Houve um aumento muito breve de interesse quando os intervenientes na reunião


entraram na sala... no entanto a emoção não foi de curiosidade, mas sim uma espécie
de aumento da atenção necessária para uma identificação superficial.
— Havia qualquer indício de que a viagem para aqui o afetara? — perguntou Conway. —
Isto é, que prejudicara as suas faculdades físicas ou mentais?

— Tinha somente pensamentos de satisfação, portanto não acredito isso — respondeu


Prilicla.

Falaram sobre o médico Dramboniano até ao momento de saírem da sala de jantar.


Então, Conway disse:

— O’Mara quer ter a sua ajuda, Prilicla, quando for fazer passar o nosso amigo
sanguessuga através dos seus labirintos psicológicos, de modo que ficar-lhe-ei
muito grato se puder observar as suas radiações emocionais enquanto o contacto
estiver a ser estabelecido. O Major poderá querer esperar até que um tradutor
especial tenha sido programado para o Dramboniano, antes de falar comigo. Mas eu
gostaria de dispor de qualquer informação útil, tão depressa você a consiga . .

Três dias depois, quando ia a entrar na Descartes com Edwards e a primeira leva de
recrutas — alguns poucos, muito bem escolhidos, que, segundo ele esperava, poderiam
pelo seu entusiasmo atrair e instruir muitos mais — os altifalantes começaram a
insistir para que o Doutor Conway entrasse em comunicação com o Major O’Mara,
imediatamente — e a insistência era reforçada com uma dupla campainhada que
precedia os sinais mais urgentes. Fez sinal aos outros para que fossem andando e
dirigiu-se ao comunicador da escotilha.

— Ainda bem que o apanhei — disse o Psicólogo-Chefe antes que Conway pudesse fazer
mais alguma coisa além de se identificar. — Oiça e não fale. Prilicla e eu não
estamos a conseguir nada com o nosso médico de Drambo. Ele tem emoções, mas não o
conseguimos excitar de maneira nenhuma, de modo que nem sequer podemos averiguar de
que é que ele gosta ou não gosta.

Sabemos que que vê e sente, mas não sabemos se ele pode ouvir e falar, ou, se pode,
como faz tais coisas. Prilicla pensa que ele pode ter uma forma baixa de empatia,
mas enquanto não pudermos agitar um pouco a sua disposição sempre imperturbável não
há maneira de provar isso. Não me confesso batido, Conway, mas você entregou-nos um
problema que pode ter uma solução muito simples...

— Tentou usar a ferramenta comandada pelo pensamento?

— Foi a primeira, a segunda e a centésima coisa que tentei — disse O’Mara com
amargura. — Prilicla detetou um aumento muito ligeiro de interesse, correspondente,
segundo ele, à identificação de um objeto familiar. Mas o Dramboniano não fez
qualquer tentativa para se servir do instrumento. Estava a dizer que você nos
arranjou um problema. Talvez a resposta mais simples seja a de nos arranjar outro
como ele.

O Psicólogo-Chefe não gostava de dar explicações, de modo que Conway pensou por um
momento antes de dizer:

— Pelo que compreendo, gostaria que eu lhe trouxesse outro médico de Drambo, para
que pudesse observar e escutar a conversação deles quando se encontrarem, e
reproduzir o método no tradutor...

— Sim, Doutor, e depressa, antes que o seu Psicólogo-Chefe precise de um


psiquiatra. Terminado.

Não foi possível a Conway procurar, raptar ou de qualquer outra maneira arranjar
imediatamente outro SRJH no seu regresso a Drambo. Tinha um grupo de
extraterrestres com variadas exigências de alimentação, gravidade e atmosfera, e
ainda que as três formas de vida pudessem subsistir sem muita dificuldade no oceano
de Drambo, os seus aposentos na Descartes tinham de ter alguns dos confortos dos
mundos natais.

Todos os dias havia uma mensagem de O’Mara, diferente apenas na crescente


impaciência evidente entre linhas. Prilicla e o Psicólogo-Chefe não estavam a ter
êxito com o médico Dramboniano e tinham chegado à conclusão de que ele usava uma
das linguagens exóticas, visotactílicas, que eram virtualmente impossíveis de
reproduzir sem um vocabulário pormenorizado de vista-tato.

A primeira expedição à costa foi um simples ensaio geral — pelo menos começou como
tal. Camsaug e Surreshun colocaram-se na vanguarda, oscilando e rodando ao longo do
fundo do mar como um par de grandes argolas orgânicas. Eram ladeados por dois
Melfanos parecidos com caranguejos e que podiam avançar duas vezes mais depressa do
que os Drambonianos podiam rolar, enquanto um Chalderiano com nove metros de
comprimento, couraçado, e com os tentáculos prontos a atacar, nadava majestosamente
por cima deles, pronto a desencorajar os animais de presa locais com os seus
dentes, garras e a grande massa óssea da cauda — ainda que na opinião de Conway
bastasse um olhar dos seus quatro aparelhos oculares telescópicos para desencorajar
todos quantos tivessem a mais pequena vontade de viver.

Conway, Edwards e Garoth viajavam num dos cruzadores de superfície do Corpo, um


veículo capaz de se mover não só sobre qualquer topografia concebível mas também
navegar sobre, através ou debaixo de água, ou ainda de pairar durante algum tempo
no ar. Mantinham-se na retaguarda, apenas o bastante para ter toda a gente dentro
do seu campo de visão.

Dirigiam-se para uma seção morta da costa, uma profunda faixa da besta terrestre
que o povo de Surreshun matara para conquistar mais espaço para rolar. Tinham feito
isso com bombas atómicas porque a precipitação radioativa era afastada pelos ventos
predominantes, que sopravam na direção do interior. Mas Conway escolhera
propositadamente um ponto que ficava apenas a poucos quilómetros de uma faixa de
costa ainda muito viva, de modo que com um pouco de sorte o seu primeiro exame
podia tornar-se em algo mais que uma autópsia.

Com o afastamento dos animais de presa, a vida vegetal aquática aproximara-se da


costa. Em Drambo a divisão entre plantas e animais raramente era bem definida e
todos os animais eram omnívoros. Tiveram de viajar ao longo da costa durante cerca
de quilómetro e meio até encontrarem uma boca que não estava demasiado fechada nem
demasiado coberta de vegetação, e portanto permitia a entrada, mas o tempo não foi
perdido porque Camsaug e Surreshun puderam assinalar muitas plantas perigosas que
mesmo os extraterrestres couraçados deviam evitar sempre que possível.

A prática da medicina extraterrestre era muito simplificada pelo facto de que as


doenças e infeções de uma espécie não eram transmissíveis às outras. Mas isso não
significava que os venenos e outras matérias tóxicas segregadas pelos animais e
plantas não pudessem matar, e no fundo do mar de Drambo a vegetação era
particularmente perigosa. Algumas variedades estavam cobertas com espinhos
envenenados e uma parecia convencida de que era um polvo vegetal.

A primeira boca utilizável tinha o aspeto de uma caverna enorme. Quando seguiram os
roladores e entraram nela, os projetores do veículo mostraram vegetação pálida
oscilando e contorcendo-se até onde chegava a vista. Surreshun e Camsaug
descreveram inseguros «oitos» - naquela espécie de mato, e pediram desculpa por não
poderem levar o grupo mais longe sem correrem o risco de parar.

Conway respondeu-lhes:

— Compreendo. E obrigado.
Quando penetraram mais na enorme boca, a vegetação tornou-se rara e mais pálida,
mostrando grandes áreas do tecido da criatura. Parecia grosseiro e fibroso, e muito
mais vegetal que animal, mesmo considerando que morrera havia já alguns anos. O
teto começou subitamente a descer e as luzes da frente mostraram a primeira
barreira séria, um labirinto de dentes longos, como presas, tão espessos que eles
se julgaram no limiar de uma floresta petrificada.

Um dos Melfanos foi o primeiro a enviar um relatório. Disse:

— Só poderei ter uma certeza absoluta quando a Patologia analisar os meus


espécimes. Doutor Conway, mas tenho indicações de que os dentes da criatura são de
natureza vegetal, em vez de animal. Crescem nas superfícies superior e inferior da
boca, até ao nosso limite de visibilidade. As raízes dirigem-se transversalmente,
de modo que os dentes são livres para se inclinarem para a frente e para trás sob
pressões constantes. Na posição normal eles estão dirigidos para a superfície
exterior, segundo um ângulo agudo, e atuam como uma barreira mortal contra os
grandes animais ferozes, em vez de servirem como um meio de os triturar.

«Pela posição e condição de alguns cadáveres gigantescos, nesta área, direi que o
sistema de ingestão da criatura é muito simples. A água do mar, contendo animais
alimentícios de todos os tamanhos, é arrastada para o estômago ou pré-estômago. Os
pequenos animais passam através dos dentes, enquanto os grandes se espetam neles,
depois do que a corrente de água que entra e os esforços do animal levam os dentes
a inclinarem-se para dentro e a libertá-lo. Creio que os pequenos animais não são
problema, mas que os grandes podem fazer sérios danos ao estômago antes de o
sistema digestivo os neutralizar, de modo que eles têm de estar mortos antes de lá
chegarem.

Conway dirigiu os projetores para a área onde se encontrava o Melfano e viu ele
indicar uma das mandíbulas. Disse-lhe:

— Isto parece racional, doutor. Não me surpreenderia se os processos digestivos


fossem de facto muito lentos... na verdade começo a perguntar a mim próprio se ela
não é mais vegetal que animal. Um organismo de carne normal, sangue, osso e
músculos, do seu tamanho, seria demasiado pesado para se mover. Mas ela move-se e
faz tudo o mais... muito lentamente. — Interrompeu-se e concentrou o feixe para
conseguir a máxima penetração. — Será melhor entrar a bordo, para que possamos
abrir uma passagem através desses dentes.

— Não é necessário, doutor — disse o Melfano. — Os dentes estão podres e são muito
moles e quebradiços. Pode simplesmente avançar através deles. Nós segui-lo-emos.

Edwards deixou o cruzador assentar no fundo e depois fê-lo avançar a uma velocidade
conveniente para o Melfano. Centenas de longas e descoloridas plantas-dentes
partiram e caíram lentamente através da água opaca, antes de se encontrarem
subitamente livres.

— Se os dentes são uma forma especial de vida vegetal — disse Conway, pensativo —
ocupam uma área muito bem definida, o que significa que alguém os plantou.

Resmungando uma concordância, Edwards verificou se toda a gente já passara através


do túnel que tinham aberto e depois disse:

— O canal está a alargar-se e a aprofundar-se de novo, e eu posso ver outra forma


de vida vegetal, possivelmente especializada. É grande, não é? E ali está outra.
Há-as por toda a parte.

— Já andámos bastante — observou Conway. — Será melhor que não percamos de vista a
saída.

Edwards abanou a cabeça.

— Vejo de ambos os lados aberturas como esta. Se isto é um estômago, e parece


suficientemente grande para isso, tem várias aberturas.

Subitamente encolerizado, Conway disse:

— Sabemos que havia centenas dessas bocas nesta secção morta, e o número de
estômagos pode ser um qualquer... grandes cavernas chatas e com quilómetros de
largura, se este radar não me está a enganar. Nem sequer ainda aflorámos o
problema!

Edward fez um ruído de concordância e apontou em frente.

— Parecem estalactites que tenham amolecido a meio. Não me importaria de as ver


mais de perto.

Até o Hudlariano saiu para ver mais de perto os grandes, fortemente encurvados,
pilares que sustentavam o teto. Usando os seus analisadores portáteis puderam
determinar que os pilares eram uma parte da musculatura do monstro e não, como
tinham pensado, outra forma de vida vegetal — ainda que a superfície de todos os
suportes musculares naquela área estivesse coberta com qualquer coisa que parecia
uma alga gigante. Os grãos tinham quase um metro de comprimento e pareciam prestes
a rebentar. Um Melfano que retirava um espécime do músculo subjacente tocou
acidentalmente num e ele rebentou, fazendo estoirar uma vintena dos seus vizinhos.
Todos eles largaram um líquido espesso, leitoso, que se espalhou rapidamente e se
dissolveu na água.

O Melfano fez uns ruídos intraduzíveis e recuou.

— Que há? — gritou Conway. — É venenoso?

— Não, doutor. Tem um forte conteúdo de ácido, mas não é imediatamente perigoso. Se
fosse um respirador de água diria que cheira mal. Mas olhe para o efeito no
músculo.

O grande pilar de músculo enraizado firmemente tanto no fundo como no alto estava a
tremer. A sua curva começou a endireitar-se.

— Sim — disse Conway—, isto apoia a teoria que estabelecemos sobre o método de
ingestão da criatura. Mas agora creio que devemos voltar à Descartes... esta área
pode não estar tão morta como supúnhamos.

As plantas-dentes, especializadas, serviam como filtro e barreira mortífera à


comida arrastada para o estômago da criatura. Outras plantas simbióticas, crescidas
nos pilares de músculos, libertavam uma secreção que os levava a endireitarem-se,
expandindo o estômago e arrastando grandes quantidades de água carregada com
comida. Possivelmente, a secreção servia também para dissolver a comida, digerida
por assimilação através da parede do estômago ou por outras plantas especializadas
— tinham obtido espécimes bastantes para que Thornnastor pudesse definir em
pormenor o mecanismo digestivo. Quando a força da secreção digestiva é diluída
pelos alimentos entrados no estômago, o seu efeito nos músculos diminui, deixando
que os pilares se abatam de novo, parcialmente, expelindo consequentemente as
matérias não digeridas.

Nos outros pilares começavam a rebentar mais grãos. Isso, só por si, não
significava que o monstro estivesse vivo, mas apenas que o músculo morto podia
ainda responder ao estímulo próprio. Mas o teto da caverna estava a levantar-se e a
água entrava de novo.

Edwards disse:

— Concordo em que temos de sair daqui. Mas será melhor que o façamos por outra
boca... poderemos aprender alguma coisa através de um novo cenário.

— Sim — disse Conway com a sensação incómoda de que devia ter dito que não. Se os
músculos mortos podiam mexer-se, que outras formas de atividade involuntária eram
possíveis na gigantesca carcaça? Acrescentou: — Conduza o veículo, mas mantenha a
escotilha de carga e a do pessoal abertas... eu manter-me-ei de fora com os
extraterrestres...

Poucos minutos depois Conway estava agarrado a uma pega enquanto o veículo seguia
os extraterrestres para uma boca diferente. Ele tinha esperanças de que fosse uma
boca e não uma ligação com alguma coisa mais no interior do monstro, porque Edwards
informara que ela se curvara para uma área costeira viva. Mas antes de que o
abaixamento de temperatura dos seus pés pudesse afetar a sua fala ao ponto de lhes
ordenar que voltassem por onde tinham vindo, houve uma interrupção.

— Major Edwards, pare o cruzador, por favor — disse um dos Melfanos. — Doutor
Conway, creio que encontrámos um colega... morto.

Era um SRJH Dramboniano, já não transparente mas leitoso, engelhado, com uma longa
ferida incisa que atravessava o seu corpo e que flutuava e chocava aqui e ali,
junto ao fundo.

— Thornnastor vai ficar contente por te ver, amigo — disse Conway, entusiasmado. —
E também O’Mara e Prilicla. Metamo-lo a bordo com os outros espécimes. Não sou um
respirador de água, mas...

— Ele também não é — observou o Melfano. — E parece-me que morreu há muito pouco
tempo.

O Chalderiano voltou para trás, agarrou o SRJH morto com os seus tentáculos e
transferiu-o para o compartimento refrigerado dos espécimes, depois do que voltou à
sua posição. Poucos segundos depois, uma palavra átona, traduzida, foi ouvida nos
recetores deles.

— Companhia.

Edwards dirigiu todas as suas luzes para mostrar todo um jardim zoológico em luta,
que praticamente enchia a garganta, na sua frente. Conway identificou duas espécies
de grandes animais ferozes aquáticos, os quais tinham por certo conseguido abrir
caminho através dos dentes quebradiços, e também cerca de dez SRJH e alguns peixes
com tentáculos e grandes cabeças que nunca vira. Era impossível dizer quem lutava
com quem, ou mesmo se isso tinha alguma importância para as criaturas nisso
empenhadas.

Edwards pousou o veículo no fundo.

— Entrem depressa!

Meio a correr, meio a nado para o veículo, Conway invejou a mobilidade submarina
dos Melfanos. Ultrapassou o Hudlariano que tinha as mandíbulas de um grande animal
de presa cerradas sobre a sua carapaça. Por baixo dele uma das novas formas de vida
tinha um SRJH enrolado nela, e o médico Dramboniano já estava a tornar-se vermelho,
enquanto tratava o seu paciente da única maneira que conhecia. Houve um outro
estrondo quando um dos animais se lançou sobre o cruzador, esmigalhando dois dos
seus quatro projetores.

— Na escotilha de carga! — gritou Edwards, numa voz rouca. — Não tenho tempo para
tratar de escotilhas de pessoal!

— Sai de cima de mim, maluco — disse o Hudlariano que tinha a fera agarrada às suas
costas. — A mim ninguém me come.

— Conway, atrás de. si!

Duas grandes feras lançavam-se para ele, através do fundo, enquanto o Chalderiano
corria na sua direção, vindo do flanco. Subitamente, um médico Dramboniano ondulou
rapidamente entre a fera que ia à frente e Conway. Mal tocou no animal, mas ele
teve um espasmo muscular tão violento que partes do seu esqueleto apareceram,
brancas, através da pele.

Tanto podes matar como curar, pensou Conway, agradecido, enquanto tentava evitar o
segundo animal de presa. O Chalderiano chegou então e com uma pancada da sua cauda
couraçada limpou os costados do Hudlariano, ao mesmo tempo que a sua enorme
queixada se abria e fechava sobre o pescoço da segunda fera.

— Obrigado, doutor — disse Conway. — A sua amputação foi brutal, mas eficaz.

O Chalderiano respondeu:

— Muitas vezes temos de sacrificar a perfeição do trabalho, em favor da rapidez...

— Deixem-se de conversas e entrem! — gritou Edwards.

— Um momento! Precisamos de outro médico para O’Mara — começou a dizer Conway,


agarrando-se ao bordo da escotilha. Havia um médico de Drambo a flutuar a poucos
metros de distância, muito vermelho e muito obviamente enrolado sobre o seu
paciente. Conway apontou para ele e o Chalderiano disse: — Empurre-o para dentro
com cuidado, doutor. Faça isso com suavidade porque ele pode matá-lo.

Quando a escotilha se fechou alguns minutos depois, o porão continha dois Melfanos,
um Hudlariano, o Chalderiano, o SRJH Dramboniano com o seu paciente e Conway. As
trevas eram como breu. O veículo estremecia a intervalos de poucos segundos, quando
as feras se colocavam contra o casco, e estavam tão apertados que se o Chalderiano
se tivesse movido, todos, menos o Hudlariano, teriam ficado esmagados. Pareceu que
se tinham passado alguns anos, quando a voz de Edwards soou no capacete de Conway.

— Estamos a meter água por uma porção de sítios, doutor, mas não é grave e, em
qualquer caso, os respiradores de água não se devem sentir atrapalhados por isso.
As câmaras automáticas captaram umas imagens muito interessantes das formas de vida
internas, ao serem socorridas pelos médicos locais. O’Mara deve ficar muito
contente. Oh, vejo os dentes na minha frente. Não tardaremos a sair...

Conway lembrou-se dessa conversa algumas semanas depois, no hospital, depois de os


espécimes vivos e mortos e os filmes terem sido examinados, dissecados e vistos
tantas vezes que os sanguessugas de Drambo ondulavam através de todos os seus
sonhos.

O’Mara não estava satisfeito. Na verdade estava até extremamente desagradado


consigo próprio, o que tornava as coisas muito piores para as pessoas à sua volta.

— Examinámos os médicos de Drambo, isoladamente e em conjunto, amigo Conway — disse


Prilicla, numa vã tentativa para tomar um pouco mais agradável a atmosfera
emocional existente na sala.— Não há provas de que eles comuniquem pela voz, pela
visão, pelo tato, por telepatia, pelo cheiro ou por qualquer sistema conhecido. A
qualidade da sua emoção racional leva-me a suspeitar que eles não comunicam de
maneira nenhuma, no sentido comum da palavra. São simplesmente conscientes das
outras criaturas e objetos à sua volta e, pelo uso dos seus olhos e de um mecanismo
empático semelhante ao que a minha espécie possui, são capazes de identificar
amigos e inimigos... recorde-se de que atacaram as feras de Drambo sem hesitar, mas
ignoraram o médico Chalderiano que era muito mais assustador mas que mostrava
sentir amizade por eles.

«Pelo que pudemos descobrir até agora, a sua faculdade empática está muito
desenvolvida, mas não é relacionada com a inteligência. O mesmo se pode dizer do
segundo nativo Dramboniano que trouxe, exceto que..

— É muito mais esperto— disse O’Mara, com amargura.— Quase tão esperto como um cão
extremamente atrasado. Não me importo de confessar que durante algum tempo pensei
que a nossa incapacidade de comunicar era devida a uma falta de competência
profissional da minha parte. Mas agora é evidente que temos andado a perder o nosso
tempo submetendo a testes sofisticados animais de Drambo.

— Mas esse SRJH salvou-me.

— Um animal muito especializado mas sem inteligência — disse O’Mara, com firmeza. —
Protege e cura os amigos e mata os inimigos, mas não pensa nisso. Quanto ao novo
espécime que trouxe, quando o expusemos à ferramenta comandada pelo pensamento,
teve emoções de atenção e precaução (algo como a nossa radiação emocional quando
estamos perto de um caixa de alta tensão), mas segundo Prilicla nem sequer pensou
no aparelho.

«Portanto, lamento muito mas temos de continuar a procurar a espécie que produz
essas ferramentas, e a assistência médica inteligente, em Drambo.»

Conway permaneceu silencioso durante muito tempo, fitando os dois SRJH no


pavimento. Parecia impossível que a criatura que lhe salvara a vida o tivesse feito
sem pensar ou sentir. O SRJH era simplesmente um especialista como os outros
animais e plantas especializadas que habitavam o interior dos grandes monstros
terrestres, fazendo o trabalho para cujo cumprimento tinham evoluído. As reações
químicas eram lentas dentro dos monstros — o material era demasiado diluído para
que outra coisa acontecesse, uma vez que o seu sangue era pouco mais do que água
ligeiramente impura — e os animais e plantas simbiotas podiam produzir as secreções
necessárias para a atividade muscular, o equilíbrio endócrino, a alimentação de
vastas áreas de tecido e a remoção dos respetivos detritos. Outros simbiotas
especializados cuidavam do ciclo respiratório e de dar-lhe uma espécie de visão, à
superfície.

— O amigo Conway tem uma ideia — disse Prilicla.

— Sim — disse Conway. — Mas gostaria de a comprovar através do SRJH morto.


Thornnastor ainda não fez nele nada de drástico e se acontecer qualquer coisa
podemos conseguir outro com facilidade. Gostaria de colocar os dois SRJH vivos na
frente do seu colega morto.

— Prilicla diz que eles não têm emoções fortes em circunstância alguma —
acrescentou Conway. — Reproduzem-se por cisão, de modo que não pode haver
sentimentos sexuais neles. Mas a visão de um deles, morto, pode causar qualquer
espécie de reação.

O’Mara olhou duramente Conway e disse:


— Pela maneira como Prilicla está a tremer e pela expressão do seu rosto vejo que
pensa que tem a resposta. Mas o que é que pode acontecer? Irão eles curá-lo e
ressuscitá-lo? Não importa. Aguardarei e deixarei que assista por um momento a um
drama médico...

Quando o SRJH morto chegou, Conway retirou-o apressadamente da maca para o chão do
gabinete e fez sinal a O’Mara e Prilicla para que recuassem. Os dois SRJH vivos
estavam já a aproximar-se do cadáver. Tocaram-no, como que fluíram à sua volta, e
durante dez minutos tiveram muito que fazer. Quando acabaram, nada restava.

— Nenhuma alteração detetável na radiação emocional, nenhum indício de dó — disse


Prilicla. Tremia, mas, provavelmente, isso era devido à sua própria surpresa.

— Não parece surpreendido, Conway — disse O’Mara, num tom acusador.

Conway sorriu e disse:

— Não, senhor. Continuo a sentir-me desapontado por não estabelecer contacto com um
médico de Drambo, mas estes animais são uma magnífica alternativa. Matam os
inimigos do monstro terrestre, curam e protegem os seus amigos e limpam as
detritos. Isso não lhe sugere qualquer coisa? Evidentemente que não são médicos:
são super-leucócitos. Mas deve haver milhões deles e estão todos do nosso lado...

— Sinto-me contente perante a sua satisfação, doutor — disse o Psicólogo-Chefe,


olhando para o relógio.

— Mas eu não estou satisfeito — observou Conway. — Continuo a precisar de um


patologista com grau superior e muita experiência, e que saiba utilizar as
instalações do hospital... um patologista muito particular. Preciso de estar em
ligação estreita com...

— A ligação mais estreita possível — disse O’Mara, sorrindo de súbito. —


Compreendo, doutor, e falarei com Thornnastor assim que sair...

A GRANDE OPERAÇÃO

EM todo aquele estranho e maravilhoso planeta havia apenas trinta e sete pacientes
que necessitavam de tratamento. e eles variavam muito no tamanho e no avanço da sua
doença. Naturalmente, o doente que se encontrava em pior estado era o que tinha de
ser tratado primeiro, mesmo pensando que era também o maior — tão grande que a nave
auxiliar de exploração, à sua velocidade suborbital de mais de dez mil quilómetros
por hora, demorava um pouco mais de nove minutos para viajar de um extremo do
planeta a outro.

— É um grande problema e nem mesmo a altitude o toma mais pequeno — disse Conway. —
Nem a falta de especialistas.

A patologista Murchison, que partilhava com ele a pequena redoma de observação,


parecia fria e um pouco na defensiva, quando respondeu:

— Tenho estado a estudar o material de Drambo, desde há muito, mas concordo em que
só o vendo como o estou a ver é que o compreendi bem. Quanto à falta de
especialistas. deve compreender, doutor, que não pode retirar todo o pessoal e todo
o material do hospital somente por causa de um paciente, mesmo que ele tenha este
tamanho. Há milhares de doentes mais pequenos e mais facilmente curáveis que nos
merecem atenção idêntica.

«E se está a sugerir que eu, pessoalmente, demorei demasiado tempo a chegar aqui,
eu vim tão depressa quanto o meu chefe tomou a decisão que o doutor precisava de
mim, como patologista»—concluiu, num tom ardoroso.

Suavemente, Conway respondeu:

— Há seis meses que ando a dizer a Thornnastor que preciso aqui de um patologista
de primeira classe. — A Murchison era bonita quando estava furiosa, mas era melhor
que não o estivesse. — Creio que toda a gente no hospital sabia porque era que eu
te queria aqui e essa é uma das razões por que estás aqui ao pé de mim, nesta
redoma tão acanhada, a ver o que já vimos muitas vezes em gravações, e a discutir
quando bem nos podíamos dedicar a coisas não profissionais...

— Fala o piloto — disse uma voz, baixinho, no altifalante da redoma. — Estou a


descer e vou voltar para trás. Pousaremos a oito quilómetros a leste do terminador.
Vale a pena ver a reação das plantas-olhos, à alvorada.

— Muito obrigado — disse Conway. Voltou-se para a Murchison e acrescentou: — Não


era um espreitar pela janela que eu pensava.

— Pois eu tinha — disse ela, dando-lhe um soco amigável no queixo. — A ti posso eu


ver quando quero.

Ela apontou subitamente e disse:

— Alguém está a pintar triângulos amarelos no nosso paciente.

Conway riu-se.

— Esqueci-me de que não estás ao corrente do nosso problema de comunicações. A


maior parte da vegetação da superfície é sensível à luz e alguns dos nossos pensam
que pode servir de olhos à criatura. Produzimos figuras geométricas e outras
dirigindo um fino feixe de luz da órbita, numa área onde haja noite ou crepúsculo,
e movemo-lo rapidamente. O efeito é como o de desenhar com um ponto de alta
persistência num visor. Até agora não houve qualquer reação discernível.

«Provavelmente a criatura não pode reagir, mesmo que o queira fazer, porque os
olhos são recetores sensoriais e não transmissores. No fim de tudo, não podemos
enviar mensagens com os nossos olhos.»

— Falas por ti — disse ela.

Conway respondeu:

— Falando a sério, começo a perguntar se esta criatura monstruosa não será


altamente inteligente...

Desceram pouco depois e saltaram com todo o cuidado para o chão elástico, esmagando
várias plantas-olhos em cada metro de avanço. O facto de o paciente ter inúmeros
milhões de outros olhos não lhes dava segurança alguma, sobre as consequências dos
danos infligidos pelos seus pés.

Quando já se tinham afastado uns cinquenta metros da nave, ela disse subitamente:

— Se essas plantas são olhos... e é uma hipótese admissível, pois são sensíveis à
luz... porque são elas tantas numa área onde o perigo é tão pouco? Seria muito mais
útil a posse de visão periférica para coordenar a atividade das bocas através das
quais se alimenta.

Conway moveu a cabeça num gesto de concordância. Ajoelharam-se cuidadosamente entre


as plantas, as suas longas sombras cheias com o amarelo das folhas estreitamente
fechadas. Ele indicou os rastos que haviam deixado desde que tinham saído da
pequena nave, os quais também eram de um amarelo-vivo, e moveu os braços de modo a
ocultar parcialmente a luz a algumas outras plantas. As folhas que estavam
parcialmente na sombra e mesmo as que apenas tinham sido muito pouco afetadas,
reagiram exatamente como as que tinham sido completamente separadas da luz.
Enrolaram-se verticalmente para mostrar o fundo amarelo.

— As raízes são finas e estendem-se até não se sabe onde — disse ele, escavando
suavemente com os dedos para mostrar uma raiz esbranquiçada que se estreitava até
ao diâmetro de uma corda fina, antes de desaparecer da vista. — Mesmo com
equipamento mineiro ou durante explorações com escavadoras não fomos capazes de
encontrar os extremos. Sabes alguma coisa do funcionamento interno?

Ele cobriu a raiz exposta, mas manteve as palmas das mãos apoiadas na superfície.

Observando-o, ela respondeu:

— Não muito. A luz e as trevas, assim como levam as folhas a abrirem-se ou a


enrolarem-se. causam alterações eletroquímicas na seiva, a qual está tão carregada
de sais minerais que é um bom condutor. Os impulsos elétricos produzidos por essas
alterações podem transmitir-se muito rapidamente da planta ao outro extremo da
raiz. Que estás a fazer, querido? Estás a tomar-lhe o pulso?

Conway abanou a cabeça sem falar e ela continuou:

— As plantas-olhos estão distribuídas de uma maneira igual sobre a superfície


superior do paciente, incluindo as áreas que contêm vegetação densa especializada
na renovação do ar ou na eliminação de detritos, de modo que uma sombra ou um
estímulo luminoso recebido em qualquer parte na sua superfície é transmitido
rapidamente... quase instantaneamente, na verdade... ao sistema nervoso central
através dessa seiva rica em minerais. Mas aquilo que mais me preocupa é que reações
poderá a criatura ter, a partir de um olho com centenas de quilómetros de diâmetro.

— Fecha os teus olhos — disse Conway a sorrir. — Vou tocar-te. Tão precisamente
quanto possas, diz-me onde.

— Tem andado muito tempo na companhia de homens e de extraterrestres, doutor —


disse ela. Mas depois calou-se, pensativa.

Conway começou a tocá-la ao de leve na face, depois assentou três dedos no cimo do
ombro dela e desceu a partir daí.

— Face esquerda a cerca de três centímetros do lado esquerdo da minha boca — disse
ela.— Agora assentaste a tua mão no meu ombro. Pareces estar a descrever um X sobre
o meu bíceps esquerdo. Agora tenho um polegar e dois, talvez três dedos na minha
nuca, logo abaixo do cabelo... Estás a gostar disso? Eu estou.

Conway riu-se.

— Talvez estivesse, se não fora a possibilidade de o Tenente Harrison estar a


observar-nos e começar a ferver. Mas, falando a sério, compreendes onde quero
chegar: que as plantas-olhos não têm nada a ver com a visão da criatura, mas são
semelhantes às pontas dos nervos sensíveis à pressão, à dor ou à temperatura...

Ela abriu os olhos e fez um gesto de concordância com a cabeça.

— É uma boa teoria, mas não pareces muito satisfeito com ela.

Conway confessou com amargura:


— Não estou, e gostaria que procurasses nela todos os «buracos» possíveis.
Compreendes: o êxito completo da operação depende de sermos capazes de comunicar
com as criaturas que produzem as ferramentas comandadas pelo pensamento. Até agora
eu tinha partido do princípio de que essas criaturas seriam comparáveis em tamanho
a nós próprios, ainda que a sua classificação fisiológica fosse completamente
estranha, e de que elas deviam possuir o equipamento sensorial usual de visão,
ouvido, tato, e serem acessíveis através de algum ou de todos esses canais. Mas
agora os indícios estavam a acumular-se a favor de uma única forma de vida
inteligente... o próprio monstro que, como um tapete, cobria todo o subcontinente,
e que, tanto quanto pudessem ver, era surdo, mudo e cego. O problema da comunicação
dos mais simples conceitos...

Interrompeu-se, com toda a sua atenção concentrada na palma da mão que continuava
premida contra a superfície, e disse apressadamente:

— Corre para a nave.

Tiveram muito menos cuidado em evitar pisar as plantas, no regresso, e quando a


escotilha se fechou, a voz de Harrison metralhou-os através do comunicador.

— Estão à espera de companhia?

— Sim, mas só daqui a uns momentos — disse Conway, com peito oprimido. — De quanto
tempo precisa para partir, de modo que possamos observar a chegada das ferramentas
através de qualquer coisa maior que o visor desta escotilha?

— Para uma largada de emergência, dois minutos. E se vierem ao Comando poderão usar
as sondas, a fim de examinarem os danos externos.

Quando entraram no posto de comando, Harrison acrescentou.

— Mas o que é que estava a fazer, Doutor? Em minha opinião, a frente do bíceps não
é uma zona erógena.

Conway não respondeu e ele lançou um olhar implorativo para a Murchison.

— Ele estava a realizar uma experiência—disse ela, com toda a calma. — Queria
provar que eu não posso ver com os terminais nervosos da parte superior do meu
braço. E também não tenho olhos na nuca.

— Porque é que eu fiz uma pergunta estúpida... — lamentou-se Harrison.

— Aí estão eles — disse Conway.

Eles eram três discos de metal semicircular que se diria ora aparecerem, ora
desaparecerem, na área da superfície coberta pela longa sombra matinal da nave.
Harrison aumentou a ampliação da sua sonda, a qual mostrou que os objetos não
desapareciam e reapareciam, mas sim contraíam-se ritmicamente em pequenos glóbulos
de metal e depois se expandiam de novo em lâminas chatas e circulares, que rasgavam
a superfície. Mantiveram-se deitados durante alguns segundos entre as plantas-olhos
que se encontravam na sombra, e depois, subitamente, os discos tomaram-se numa
espécie de pratos metálicos, invertidos. A mudança foi tão súbita que eles saltaram
alguns metros no ar e foram cair a cerca de seis metros de distância. O processo
foi repetido a intervalos de segundos, com um disco a saltar rapidamente na direção
da ponta distante da sombra da nave, o segundo a ziguezaguear, para medir a
largura, e o terceiro a dirigir-se diretamente para a nave.

— Nunca os vi comportarem-se assim — disse o tenente. Conway tentou explicar:


— Fizemos-lhe cócegas e eles vieram coçá-lo. Podemos ficar aqui mais alguns
minutos7

Harrison disse que sim, mas acrescentou:

— No entanto recorde-se de que só sairemos daqui dois minutos depois de ter


decidido isso.

O terceiro disco ainda vinha na direção deles, a saltos de cinco metros, ao longo
do centro da sua sombra. Nunca os vira mostrar tal mobilidade e coordenação, mesmo
pensando que sabia que eles eram capazes de tomar a forma que os operadores
desejassem, e que a complexidade da forma e a rapidez da transformação eram
determinadas apenas pela rapidez e claridade do pensamento do utilizador.

— O Tenente Harrison tem razão, Doutor — disse subitamente a Murchison. — Os


primeiros relatórios diziam que as ferramentas eram usadas para tirar literalmente
o chão debaixo dos pés às naves pousadas, de modo que elas caíssem para o interior
da criatura, talvez para um exame mais cuidadoso por parte dela. Nessas ocasiões
eles tentaram cortar a sombra do objeto, usando as plantas ensombradas para
determinar o tamanho e a posição. Mas agora, para usar a nossa própria
terminologia, parece que aprenderam a diferençar a cócega do objeto que a causa.

Um grande estrondo metálico ecoou através do casco, assinalando a chegada da


primeira ferramenta. Imediatamente as outras duas a seguiram, ambas aos saltos no
ar, mais alto ainda que a sala de comando, para descreverem arcos e caírem sobre o
casco. Os verificadores de avarias mostraram-nos a bater, depois do que ficaram
alguns segundos e estenderam-se sobre as saliências do casco, e acabaram por cair.
Um instante depois, batiam noutra parte do casco c agarravam-se a ela. Mas segundos
depois deixaram de se agarrar, porque, antes de estabelecer contacto, se muniam de
pontas de agulha que riscavam grandes e profundos sulcos na chaparia.

Excitado, Conway disse:

— Devem ser cegos. As ferramentas devem ser uma extensão do sentido do tato da
criatura, e são usadas para aumentar as informações fornecidas pelas plantas. Estão
a apalpar-nos para avaliar o nosso tamanho, forma e consistência.

— Antes que eles descubram que temos um ponto fraco, sugiro que façamos uma
retirada tática— disse Harrison, com firmeza.

Conway concordou. Enquanto Harrison cuidava dos seus painéis de comando, ele
explicou que as ferramentas podiam ser comandadas pelos cérebros humanos até uma
distância de cerca de seis metros, e que para além dessa distância os utilizadores
das ferramentas é que assumiam o comando. Disse à Murchison para pensar em formas
sem arestas assim que chegassem ao seu alcance, qualquer forma, desde que não
tivesse bordos cortantes...

— Não, espera — observou ele quando, de súbito, lhe surgiu uma ideia melhor. —
Pensa em coisas largas e achatadas, com uma secção de aerofólio e qualquer
saliência vertical para estabilização e comando. Mantém a forma enquanto eles
estiverem a cair, de modo que eles vão parar tão longe da nave quanto possível. Com
sorte, necessitarão de três ou quatro saltos para voltar.

A primeira tentativa não foi um êxito, ainda que a forma que finalmente bateu na
nave fosse demasiado desprovida de arestas e retorcida para fazer qualquer dano
sério. Mas concentraram-se com o maior esforço no seguinte, fazendo-o manter uma
forma triangular, com pouco mais de um centímetro de espessura e com uma larga
deriva central. A Murchison insistiu na forma geral, enquanto o pensamento de
Conway torceu os bordos de fuga e o estabilizador, de modo a imprimir-lhe uma
inclinação vertical que o levou para longe, num grande voo planado.

O voo continuou muito para além da passagem pela zona de influência deles, com a
ferramenta a inclinar-se e a oscilar um pouco, até cortar algumas das plantas-
olhos, antes de aterrar.

— Doutor, tenho vontade de te beijar — disse ela.

— Sei que gosta muito de brincar com garotas e modelos de aviões mas vamos subir
dentro de vinte segundos — disse secamente Harrison. — Cintos!

— Ele manteve a forma até ao fim — disse Conway, começando a preocupar-se. —


Estariam a aprender connosco; talvez a experimentar?

Calou-se. A ferramenta derreteu-se, fluiu para a forma de um disco côncavo e saltou


bem alto no ar. Aí começou a tomar a forma do pairador e desceu a toda a velocidade
sobre eles. Os bordos de ataque eram como navalhas afiadas. Os seus dois
companheiros tomaram também a forma de planadores, cortando o ar na direção deles
do outro lado da nave.

— Cintos.

Alcançaram os leitos de aceleração no mesmo momento em que as três ferramentas


bateram rio casco, inutilizando, por acidente ou propósito, duas tomadas de vistas
exteriores. A que ainda trabalhava mostrou um rasgo de perto de um metro na
chaparia fina, com um planador cravado nela, a mudar de forma, estendendo-se e
alargando o rombo. Provavelmente era uma boa coisa que eles não pudessem ver o que
as outras duas estavam a fazer.

Através do rombo na chapa. Conway podia ver as canalizações e os cabos coloridos


que estavam a ser afastados pela ferramenta. Depois o visor deixou de funcionar,
exatamente quando o impulso do arranque os comprimiu contra o leito.

— Doutor, atenção aos passageiros clandestinos, na popa — disse Harrison quando a


aceleração inicial começou a reduzir-se. — Se encontrar algum, pense em dar-lhe
formas não aguçadas... qualquer coisa que não rebente com mais cabos. Depressa!

Conway não tinha dado conta da extensão dos danos: notara apenas que havia mais
luzes vermelhas no painel de comando do que era normal. Os dedos do piloto moviam-
se sobre os seus painéis com tal suavidade que a dureza da sua voz fazia com que
ela parecesse vir de uma pessoa completamente diferente.

Num tom reconfortante. Conway disse:

— A câmara da popa mostra três ferramentas a planar, perseguindo a nossa sombra.

Durante algum tempo houve um silêncio cortado apenas pelo silvo do ar através das
chapas rasgadas e dos suportes das câmaras avariadas. A superfície oscilou por
baixo deles e o movimento da nave sugeriu a Conway que estava no mar, e não no ar.
O problema deles era o de manterem altura a uma velocidade muito baixa, porque se
voassem mais depressa as secções danificadas do casco soltar-se-iam ou aqueceriam
devido ao atrito atmosférico, ou aumentariam a resistência de tal maneira que a
nave acabaria por não poder voar. Para uma nave supersónica, a velocidade a que se
deslocavam era ridícula. Harrison devia estar agarrado ao céu pelas unhas.

Conway tentou esquecer os problemas do piloto, pensando em voz alta nos seus.

— Creio que isto prova, sem quaisquer dúvidas, que os tapetes animais são as
criaturas inteligentes que usam as ferramentas — disse ele. — O alto grau de
mobilidade e adaptabilidade mostrado pelas ferramentas toma isso muito evidente.
Devem ser comandadas por um campo difuso e muito forte de radiação mental conduzido
e transmitido por redes nervosas e que atuam somente até uma curta distância da
superfície, É tão fraco que um cérebro médio, humano-terrestre ou extraterrestre,
pode assumir localmente o comando.

«Se os utilizadores das ferramentas fossem criaturas de tamanho e capacidade mental


comparável à nossa, teriam de se deslocar sob a superfície, ou através dela, tão
depressa como as ferramentas estão a voar. Para isso seria indispensável que
possuíssem um veículo perfurante e autopropulsado. Mas isso não explica porque foi
que eles ignoraram as nossas tentativas para estabelecer um amplo contacto através
de diapositivos telecomandados, para além de reduzirem os módulos de comunicação
aos seus componentes...

A Murchison interrompeu-o:

— Se o alcance da influência mental corresponde a todo o seu corpo, significará


isso que o cérebro da criatura também é difuso? Ou, se ele tem um cérebro
localizado, onde está ele?

— Acredito mais num sistema nervoso centralizado — respondeu Conway. — Creio que
esteja alojado numa área segura e naturalmente bem protegida, provavelmente perto
da parte inferior da criatura, onde existe grande abundância de minerais e
possivelmente numa cova natural, na rocha da subsuperfície. As plantas-olhos e os
tipos similares de raízes internas que analisaste tendem a tomar-se mais complexos
e densos quanto mais perto estamos da subsuperfície, o que só pôde significar que a
rede sensível à pressão é ampliada pelo sistema eletrovegetal que causa o movimento
muscular, assim como por outros tipos cuja função e finalidade ainda nos são
desconhecidas. Sem dúvida que o sistema nervoso é em grande parte vegetal, mas o
conteúdo mineral dos sistemas de raízes significa que as reações eletroquímicas
geradas em qualquer terminal nervoso transmitem impulsos muito rapidamente ao
cérebro, de modo que, provavelmente, só há um cérebro. E ele pode estar localizado
em qualquer parte.

Ela abanou a cabeça.

— Numa criatura com o tamanho de um subcontinente, sem qualquer esqueleto ou


estrutura óssea detetável que forme uma cobertura protetora, e cujo corpo,
relativamente à área, parece um tapete fino, deve ser bastante um cérebro... quero
dizer: um cérebro central, mais um certo número de «subestações» neurais. Mas
aquilo que realmente me preocupa é o que devemos fazer se o cérebro estiver
perigosamente perto do campo operativo, ou no interior dele.

Conway respondeu num tom amargo:

— Uma coisa não podemos fazer: é adiar a operação. Os nossos relatórios são muito
claros a esse respeito.

Ela não perdera tempo desde que chegara a Drambo e, em resultado das análises que
fizera a milhares de espécimes colhidos por perfuradoras, escavadoras e médicos
exploradores em todas as áreas e níveis daquele corpo incrivelmente extenso, pelo
que podia dar uma ideia precisa, e talvez mesmo pormenorizada, do estado
fisiológico da criatura.

Já sabiam que o metabolismo da criatura era extremamente lento e que as suas


reações musculares eram mais próximas de um vegetal que de um animal. Os músculos
voluntários e involuntários que comandavam a mobilidade, a ingestão e a digestão, a
circulação do fluido motor e a destruição dos detritos, tudo isso era governado ou
iniciado pelas secreções de plantas especializadas. Mas eram as plantas que
formavam o sistema nervoso do paciente, com a sua extensa rede de raízes, quem mais
tinha sofrido com a precipitação radioativa, porque tinham deixado a contaminação
penetrar profundamente na criatura. Isso matara muitas espécies de plantas e
causara também a morte de milhares de organismos animais internos cujo objetivo é o
de limitar o crescimento das várias formas de vegetação especializadas.

Havia dois tipos distintos de organismos internos e eles tomavam muito a sério a
sua missão. O peixe-agricultor, de cabeça grande, era responsável pela cultura e
proteção da vegetação benigna e pela destruição de toda a outra — para uma criatura
tão grande, o equilíbrio metabólico do paciente era notavelmente delicado. O
segundo tipo, que na criatura correspondia aos leucócitos, auxiliava o peixe-
agricultor nos cuidados com as plantas, e fazia-o diretamente se um dos peixes
estivesse ferido ou doente. Tinha também o hábito de comer os membros mortos da sua
própria espécie, ou da dos peixes, de modo que uma quantidade muito pequena do
material radioativo introduzido pelas raízes das plantas da superfície podia ser
responsável pela morte de um grande número de leucócitos, um após outro.

Portanto, as áreas mortas que se tinham espalhado muito para além das regiões
diretamente afetadas pela precipitação eram causadas pela proliferação desordenada
da vida vegetal maligna. O processo, como a decomposição, era irreversível. A
remoção cirúrgica urgente das áreas afetadas era a única solução.

Mas o relatório fora encorajador sob alguns aspetos. Em certas áreas tinham sido já
realizadas intervenções de pequena cirurgia, para estudar os possíveis efeitos
ecológicos de grandes massas de material animovegetal decomposto, no mar ou nas
criaturas-tapetes adjacentes, assim como para estudar a aplicação de métodos de
descontaminação radioativa em grande escala. Concluíra-se que o paciente
cicatrizava, mas lentamente; se uma incisão era alargada até se tornar num fosso
com trinta metros de largura, então o desenvolvimento maligno nas secções retiradas
não alcançava a área viva, ainda que fosse necessário realizar patrulhas regulares
para ter a certeza absoluta disso. O problema da decomposição nem sequer era um
problema: o crescimento explosivo continuava até que as plantas gastavam todo o
material disponível e morriam. Na terra, o resíduo formava uma espécie de marga e
tornava o sítio ideal para uma base capaz de se sustentar a si própria, se nos anos
futuros fossem necessários observadores médicos. No caso do material que
escorregava das vertentes costeiras para o mar, acontecia que ele se desfazia e se
afundava, formando outro tapete, que os roladores tinham verificado ser comestível.

Certas áreas não podiam ser tratadas cirurgicamente. Eram pontos relativamente
pequenos, no interior, semelhantes a um severo cancro da pele, mas com cirurgia
limitada e incríveis doses de medicamentos, começavam a ser obtidos bons
resultados,

— No entanto continuo a não compreender a hostilidade da criatura, para connosco —


disse a Murchison quando a nave deslizou e perdeu altura. — No fim, não pode saber
tanta coisa a nosso respeito que a leve a odiar-nos desta maneira.

A nave estava a passar sobre uma área morta onde as plantas-olhos estavam
descoloridas e mortas e não reagiam à sua sombra. Conway perguntou a si próprio se
a vasta criatura podia sentir dor, ou se tinha apenas uma perda de sensação quando
morriam partes dela. Em todas as outras formas de vida que ele encontrara — e na
verdade conhecera algumas verdadeiramente estranhas, no Geral do Sector— a
sobrevivência era prazer e a morte trazia a dor. Era como a evolução impedisse que
uma espécie caísse e morresse quando os obstáculos eram demasiado grandes. Portanto
a monstruosa criatura sentira dor, quase por certo, numa extensão de centenas de
quilómetros. Sentira uma dor mais do que bastante para a enlouquecer de ódio

Conway contraiu-se ao pensar nessa enorme e inimaginável dor. Algumas coisas


estavam a tornar-se para ele muito claras.

— Tens razão — disse ele. — Não sabem sobre nós, mas odeiam as nossas sombras.
Esta, em particular, odeia-as porque o engenho que transportou as bombas atómicas
dos roladores produzia uma sombra não muito diferente da nossa, exatamente antes de
enormes áreas do corpo do paciente terem sido assadas e irradiadas.

— Descemos dentro de quatro minutos — disse Harrison, subitamente. — Receio que


tenhamos de o fazer na costa. porque esta banheira tem demasiados buracos para
poder flutuar. A Descartes está a seguir-nos e enviar-nos á um helicóptero.

Conway respondeu:

— As ferramentas não podem operar nesta área e, excetuando um pouco da radiação,


não há perigo. Pode descer em segurança.

O piloto retorquiu:

— A sua confiança na minha capacidade profissional é tocante.

Do voo irregularmente horizontal passaram a uma descida de cauda, feita a custo. A


superfície pareceu primeiro aproximar-se lentamente, mas depois como que subiu a
uma velocidade cada vez maior. Harrison dominou a queda com um impulso máximo de
emergência. Houve ruídos de coisas metálicas que se rasgavam e o resto das luzes
nos painéis tornaram-se vermelhas.

— Harrison, há pedaços da sua nave a caírem... — começou a dizer o


radiotelegrafista da Descartes. Então eles tocaram na superfície.

Dias depois, ainda os observadores discutiam se fora uma descida ou uma queda. As
pernas do trem de pouso cederam, a secção da cauda tentou enfiar-se pelo meio da
nave e absorveu outra parte do choque, e os leitos de aceleração aguentaram o resto
—mesmo quando a nave tombou, caiu de lado e uma larga fatia de céu apareceu entre
as chapas, a pouca distância deles. O helicóptero de socorro estava quase por cima
deles.

Harrison gritou:

— Toda a gente para fora. A proteção do reator foi danificada.

Olhando para a superfície morta e descolorida à sua volta, Conway pensou de novo no
paciente. Furioso, disse:

— Um pouco mais de radiação, aqui, não fará muita diferença.

— Para o seu paciente, não — disse o tenente. — Mas, talvez egoisticamente, penso
nos meus descendentes. Façam o favor de sair.

Durante a curta viagem a nave-mãe, Conway passou o tempo a olhar pela vigia, a seu
lado, e a tentar não se sentir assustado e impotente. O seu receio era devido à
reação depois do que podia ter sido um choque fatal, mais o pensamento de uma
viagem ainda mais perigosa que teria de fazer dentro de poucos dias, e qualquer
médico com um paciente que se estendia para além dos limites da visibilidade em
todas as direções não podia deixar de se sentir demasiado pequenino. Era um
micróbio isolado tentando curar o corpo que o continha. Subitamente, teve saudades
das relações normais, entre médicos e doentes, no seu hospital — mesmo pensando que
muito poucos dos seus pacientes ou dos seus colegas podiam ser considerados
normais.
Perguntou a si próprio se não seria melhor ter enviado um general a uma escola
médica do que qualquer toda uma subarmada de sector sob as ordens de um médico.

Somente seis das unidades pesadas do Corpo de Monitores tinham descido em Drambo,
com os seus trens de pouso assentes firmemente nas águas pouco profundas, a poucos
quilómetros de uma das secções mortas da linha de costa. Os outros enchiam o céu de
manhã à noite como estrelas arregimentadas. As suas equipas médicas estavam
agrupadas dentro e em torno das naves pousadas, que se erguiam do mar denso,
xaroposo, como grandes cortiços cinzentos. Os humano-terrestres como ele viviam a
bondo, enquanto os extraterrestres, nenhum dos quais respirava, se sentiam felizes
a divertirem-se no fundo do oceano.

Ele convocara o que esperava que fosse a reunião final pré-operatória do porão de
carga da Descartes, o qual estava cheio de água do mar de Drambo, cujo conteúdo de
vida animal e vegetal fora filtrado para que o projetor pudesse ter uma
possibilidade de abrir caminho até ao alvo colocado nas anteparas da frente.

O protocolo exigia que os Drambonianos presentes abrissem a reunião. Olhando o seu


porta-voz, Surreshun, a rolar como uma grande argola flácida em volta do espaço
livre no centro do convés, Conway perguntou a si próprio mais uma vez como era que
uma espécie tão ridiculamente vulnerável fora capaz de sobreviver e desenvolver uma
cultura tão complexa, baseada na tecnologia — ainda que fosse possível que um
dinossauro inteligente tivesse tido pensamentos semelhantes sobre o homem
primitivo.

Surreshun foi seguido por Garoth, o Médico-Chefe Hudlariano que estava encarregado
do tratamento médico do paciente. A principal preocupação de Garoth era a conceção
e realização de alimentação artificial, nas áreas em que as incisões cortariam os
túneis-gargantas, entre as bocas da costa e os pré-estômagos do interior. Ao
contrário de Surreshun não disse muito, e deixou que o projetor falasse por ele.

O grande visor estava cheio com uma imagem de uma boca auxiliar a cerca de três
quilómetros adentro da linha de incisão planeada. A intervalos de poucos minutos,
um helicóptero ou uma pequena nave de abastecimentos pousava junto da abertura e
descarregava nela a sua carga de animais acabados de morrer, trazidos das águas
baixas da costa, e partiam quando os homens do Corpo, com transportadores e
máquinas de remoção de terras, empurravam a comida para o orifício. Talvez a
quantidade e a qualidade da comida fossem inferiores às da absorvida naturalmente,
mas essa era a única maneira pela qual grandes áreas do paciente podiam ser
abastecidas com comida.

Os procedimentos assépticos eram impossíveis numa operação naquela escala, de modo


que o equipamento de bombagem que trazia água da costa tinha de utilizar tubos de
plástico de grande diâmetro. Deitava-a numa torrente constante — exceto quando as
ferramentas cortavam a conduta — no poço de alimentação, fornecendo à criatura o
fluido de que ela precisava, e ao mesmo tempo humedecia as paredes para que os
leucócitos escorregassem para baixo de tempos a tempos, a fim de combaterem os
efeitos de qualquer vida vegetal perigosa que pudesse ter sido introduzida durante
a alimentação.

Estavam a ver uma perfuração realizada em uma das instalações de alimentação,


alguns dias antes, mas havia mais de cinquenta bocas auxiliares num estado similar
de prontidão, ao longo da linha de incisão proposta.

Subitamente, houve uma espécie de relâmpago, saído da superfície junto da casa das
bombas, e um homem do Corpo deu um salto sobre um pé, antes de cair no chão. A bota
com o outro pé caiu de lado, no lugar onde ele estivera, e a ferramenta, já não
prateada, estava já a abrir caminho abaixo da superfície coberta de sangue.
— Os ataques das ferramentas estão a aumentar de frequência — disse Garoth.— E
estão a mostrar uma iniciativa considerável. A sua ideia de limpar uma área em
volta das instalações de todas as plantas-olhos, para que as ferramentas tivessem
de trabalhar às cegas, resultou apenas durante pouco tempo, Doutor. Eles imaginaram
um novo estratagema, o de deslizar a poucos centímetros abaixo da superfície, às
cegas, evidentemente, para depois, subitamente, fazerem sair uma ponta ou lâmina e
apunhalarem ou golpearem antes de se esconderem de novo sob a superfície. Se não as
podemos ver, não as podemos dominar mentalmente, e ainda que tenhamos experimentado
guardar cada trabalhador com outro homem do Corpo usando um detetor de metais, a
ideia não resultou muito bem .. deu apenas às ferramentas uma melhor probabilidade
de atingirem alguém.

Garoth concluiu:

— E recentemente houve indicações de cinco, seis e, em um caso, dez ferramentas,


trabalhando em combinação. O homem que informou isso morreu poucos segundos depois
de ter enviado o seu relatório. O estado do seu veículo provou, no entanto, que
essa era a verdade.

Conway moveu a cabeça num gesto de concordância e disse:

— Obrigado, Doutor. Mas agora receio que tenhamos também de suportar ataques
aéreos. No caminho para aqui ensinámos ao paciente como funcionam os planadores, e
ele aprendeu depressa... — Começou a descrever o incidente, adicionando-lhe as
últimas descobertas patológicas e as suas deduções e teorias sobre a natureza do
seu paciente. Consequentemente, a reunião tomou-se rapidamente num debate e estava
a degenerar rapidamente numa discussão amarga antes que ele tivesse de invocar a
sua autoridade e conseguir que os seus médicos humanos e extraterrestres voltassem
a um estado de frieza clínica.

Os chefes das equipas Melfana e Chalderiana tomaram os seus relatórios num dueto.
Como Garoth, eles tinham estado preocupados com os aspetos não-cirúrgicos do
tratamento do paciente. Para um observador hipotético, ignorante da verdadeira
natureza do seu problema, aquele tratamento médico teria sido confundido com uma
grande operação mineira, ou agrícola numa escala ainda maior, ou ainda com um rapto
em massa. Ambos estavam fortemente convencidos, e Conway concordou com eles, que a
amputação do membro afetado era uma maneira errada de tratar um cancro da pele.

As quantidades de precipitação radioativa depositada nas áreas centrais era


relativamente pequena, e os seus efeitos espalhavam-se de maneira razoavelmente
lenta nas profundezas do corpo do paciente. Mas mesmo essa situação acabaria por se
tornar fatal se não fosse feita alguma coisa para a dominar. E como as áreas
afastadas pela precipitação ligeira eram demasiado numerosas e ocorriam em
demasiados locais inoperáveis, tinham esfolado a superfície envenenada com máquinas
de remoção de terras e amontoado a pele para descontaminação futura. O resto do
tratamento consistia em ajudar o doente a ajudar-se a si próprio.

No visor surgiu subitamente uma imagem de uma secção de um túnel da subsuperfície,


sob uma das áreas afetadas pela precipitação. Havia dúzias de formas de vida no
túnel, a maior parte delas peixes-agricultores com curtos braços a saírem da base
das suas grandes cabeças, enquanto as outras deslizavam ou ondulavam na direção do
observador, como grandes massas transparentes.

Para uma secção viva da enorme criatura, não se podia dizer que fosse muito
saudável. Os peixes-agricultores, cuja função era a de cultivar e fiscalizar a vida
vegetal interna, moviam-se lentamente, chocando uns contra os outros, e os
leucócitos, normalmente transparentes, mostravam a coloração leitosa que ocorria
pouco antes da morte As leituras do sensor de radiação não deixavam lugar a dúvidas
sobre as causas dessa situação.
— Esses espécimes foram salvos pouco depois e transferidos para as enfermarias das
naves maiores e do Geral do Sector — disse o Chalderiano. — Tanto os peixes como as
«sanguessugas» responderam aos tratamentos de descontaminação e regeneração que
costumamos dar à nossa gente que estava exposta a uma dose excessiva de radiação.
Depois foram feitos regressar, para continuarem o seu bom trabalho.

O Melfano acrescentou:

— O que quer dizer que ficaram sujeitos a absorver a radiação da planta ou do peixe
mais próximo, e a adoecer de novo.

O’Mara acusara Conway de tratar o Geral do Sector como se fosse uma espécie de
máquina de fazer salsichas extraterrestres, ainda que o Hospital estivesse a curar
tantos Drambonianos quantos podia, e mesmo os médicos do Corpo de Monitores
mostrassem apenas que sofriam havia muito tempo quando não se mostravam demasiada
mente atarefados.

Mas eles não estavam no Hospital nem as instalações para tratamento nas naves-
almirantes eram bastantes para mudar o curso da situação. Para que o paciente
pudesse na verdade combater essas infeções locais era indispensável que se
procedesse a maciças transfusões de leucócitos de outras criaturas-tapetes, mais
saudáveis.

Quando ele primeiro sugerira a transfusão, Conway ficara preocupado com a


possibilidade de o paciente vir a rejeitar o que era, na verdade, os anticorpos de
outra criatura. Mas isso não acontecera, e os únicos problemas que encontrara
tinham sido os do transporte e abastecimento, de modo que os primeiros raptos
selecionados se tornaram contínuos e maciços.

No visor apareceu uma sequência que mostrava um dos comandos especiais retirando
leucócitos de uma pequena e repugnante, mas saudável criatura-tapete, do outro lado
do planeta. O poço de entrada estivera em uso havia semanas e os movimentos da
criatura-tapete tinham-no levado a dobrasse em vários lugares, mas continuava
utilizável. Os homens do Corpo desciam dos helicópteros e entravam no túnel,
correndo e evitando por vezes a aparelhagem que depois transportaria para a
superfície as suas presas. Vestiam fatos protetores ligeiros e transportavam apenas
redes. Os leucócitos eram seus amigos. Era muito importante para eles lembraram-se
disso. Porque havia circunstâncias em que um homem perdia o domínio sobre si
próprio e dava largas a um relâmpago de cólera ou de irritação — por causa de uma
peça do seu equipamento, por exemplo —e por causa desses lapsos muitos morriam.

Raramente morriam isolados. No fim da sequência Conway viu a tripulação inteira de


um helicóptero de transporte ser aniquilada em poucos momentos porque era
impossível para um homem pensar amigavelmente em relação a uma criatura que acabava
de matar um dos seus camaradas— injetando-lhe um veneno que desencadeava espasmos
musculares tão violentos que o homem partia praticamente todos os ossos que tinha
no corpo. Não havia proteção nem cura. Os fatos de serviço pesado, suficientemente
resistentes para não ceder perante as patas das sondas das «sanguessugas», não
permitiam aos homens dispor da mobilidade bastante para fazer o seu trabalho, e as
criaturas matavam tão rapidamente, tão eficazmente e tão inconscientemente como
curavam.

— Em resumo — disse o Chalderiano quando o visor se apagou —, a transfusão e a


alimentação artificial estão a decorrer bem atualmente, mas se continuar a haver
tantas vítimas como até agora, o abastecimento descerá perigosamente. Portanto
recomendo, muito fortemente, que a cirurgia comece imediatamente.

— Concordo — disse o Melfano.— Partindo do princípio de que teremos de proceder sem


o consentimento e a cooperação do paciente, teremos de começar imediatamente.

— Imediatamente até que ponto? — interrompeu o Comandante Williamson, falando pela


primeira vez. — Demora o seu tempo a colocar uma subarmada de sector, inteira,
sobre o campo operativo. A minha gente necessita de instruções finais e creio que o
Comandante da Armada deve estar um tanto ou quanto preocupado. Até agora as
operações a cargo dele têm sido todas militares

Conway mantinha-se silencioso, tentando obrigar-se a tomar a decisão que andava a


evitar havia semanas. Uma vez que desse ordem para começar, uma vez que começasse a
cortar naquela gigantesca escala, não podia voltar atrás. Não teria possibilidade
de recuar e tentar de novo, nem havia ali especialistas a que ele pudesse recorrer
se as coisas começassem a andar mal e, pior que tudo, não havia tempo para
hesitações, porque o doente estava sem tratamento havia demasiado tempo.

— Não se preocupe, Comandante — disse Conway, tentando irradiar a confiança e


segurança que não sentia. —Pelo que diz respeito ao nosso povo, isto tornou-se numa
operação militar. Sei que a princípio isto foi encarado por vocês como um exercício
de socorros públicos, numa escala invulgarmente grande, mas agora, nos vossos
espíritos, tornou-se impossível de distinguir da guerra, porque na guerra há
vítimas e é o que se está a ter. Lamento muito isso. Nunca esperei perdas tão
pesadas e pessoalmente lamento muito o facto de ter sido eu próprio quem ensinou
essas ferramentas a planarem, porque essa habilidade vai custar muito mais
perdas...

— Não podia ser de outro modo, Doutor — disse Williamson —, e um dos nossos homens,
mais tarde ou mais cedo, pensaria também nisso... praticamente pensaram em tudo o
mais. No entanto, o que pretendo é...

— Imediatamente até que ponto? — disse-lhe Conway.— Bem, pensando no facto de a


operação ter de ser medida em semanas em vez de horas, e como não há razões lógicas
para a demorar, sugiro que comecemos o nosso trabalho depois de amanhã, à alvorada.

Williamson moveu a cabeça num gesto de concordância mas hesitou antes de falar.

— Podemos estar em posição por essa altura. Doutor, mas aconteceu uma coisa que o
pode levar a mudar de ideias sobre o momento adequado.

Apontou para o visor e continuou:

— Posso mostrar-lhe os nossos diagramas e números, se quiser, mas é mais rápido


dizer-lhe primeiro os resultados. A exploração das outras criaturas-tapetes,
saudáveis ou menos doentes, está agora completa. Ao todo, foram visitados mil
oitocentos e setenta e quatro sítios em todas as criaturas-tapetes conhecidas.
Deixámos uma ferramenta na superfície e mantivemo-la sob observação, a distância,
por períodos até seis horas. Mesmo pensando que o material dos corpos é
praticamente idêntico ao do nosso paciente, incluindo a presença de uma forma de
planta-olho algo simplificada, os resultados foram completamente negativos. As
criaturas examinadas não tentaram comandar ou alterar as ferramentas, e as pequenas
alterações que ocorreram puderam ser diretamente atribuíveis à radiação mental dos
pássaros e de animais não inteligentes da superfície. Fornecemos os dados ao
computador da Descartes e depois ao computador tático da Vespasian. As conclusões
não deixaram lugar a dúvidas.

— Há apenas uma criatura-tapete inteligente em Drambo: o nosso paciente- — concluiu


Williamson, num tom amargo.

Conway não respondeu imediatamente e a reunião tornou-se ainda mais desorganizada.


De início havia ali algumas ideias úteis — mas o Comandante deitara-as por terra.
Assim, em vez de ideias, Conway só encontrou discussões insensatas e mau humor; mas
de repente soube porquê.

Quando a reunião começara, todos estavam demasiado fatigados, e isso acontecera


havia já cinco horas. A parte inferior do corpo ossudo do Melfano abatera-se a
pouco e pouco e estava já a poucos centímetros do convés. Provavelmente o
Hudlariano tinha fome, porque a água tinha sido limpa de todo o material
comestível, tal como o chão, o que, por sua vez, devia desgostar o Drambo rolador.
Acima deles o enorme Chalderiano estava suspenso numa posição incómoda havia
demasiado tempo, e os outros humano-terrestres deviam estar a sentir que os seus
fatos de pressão eram tão incómodos como o de Conway. Era evidente que ninguém
podia dizer algo mais que fosse útil, e que o melhor era acabar com aquilo.

Fez um sinal de silêncio e depois disse:

— Obrigado a todos A notícia de que o nosso paciente é a única criatura-tapete


inteligente do planeta, obriga-nos a esforçar-nos ainda mais, se possível, para que
a operação que vamos realizar seja um êxito. Não é uma razão válida para demorarmos
a cirurgia.

— Amanhã terão muito que fazer — concluiu ele. — Durante esse tempo farei mais uma
tentativa para obter o consentimento e a cooperação do nosso paciente.

Três dias antes tinham sido feitas alterações num par de perfuradoras sobre
lagartas, tomando-as tão invulneráveis às ferramentas quanto possível, e ampliando
o seu equipamento de visão nos dois sentidos, para permitir que Conway
acompanhasse, e, se necessário, dirigisse, a operação de qualquer parte, sobre ou
no interior da criatura. Foi o equipamento de comunicações que ele ensaiou
primeiro.

— Não tenho intenção de me tomar num herói morto — explicou Conway, sorrindo.— Se
estivermos em perigo, serei o primeiro a gritar por socorro.

Harrison abanou a cabeça.

— O segundo.

— As senhoras primeiro—disse a Murchison, num tom firme.

Seguiram para o interior, na direção de uma área saudável densamente coberta por
plantas-olhos e pararam durante uma hora, depois do que avançaram outra hora e
pararam de novo. Passaram a manhã e o princípio da tarde a andar e a parar, sem que
o paciente tivesse qualquer reação percetível. Por vezes descreviam círculos
apertados para atrair a atenção, mas mesmo assim não obtinham êxito. Nem uma só
ferramenta apareceu. Os sensores colocados na superfície não davam qualquer indício
de que a criatura lhes estivesse a cortar o chão debaixo dos pés. No seu todo
aquilo estava a tomar-se num dia intensamente frustrador, ainda que fisicamente
repousante.

Quando as trevas vieram, eles ligaram os faróis da escavadora e jogaram com eles em
volta, vendo milhares de plantas-olhos a abrirem-se e a fecharem-se subitamente
perante aquela espécie de sol artificial, mas, mesmo assim, a criatura ignorou-os.

Conway disse:

— A princípio o monstro deve ter sentido curiosidade a nosso respeito e por isso
deve ter estado ansioso por investigar qualquer objeto ou ocorrência. Agora está
simplesmente assustado e hostil, e há alvos muito melhores por toda a parte.
Os visores da escavadora mostravam diversos sítios de transfusão e alimentação sob
o constante ataque das ferramentas, e havia muitas manchas escuras no chão que não
eram de óleo.

Num tom grave, Conway acrescentou:

— Continuo a pensar que se pudéssemos chegar perto do cérebro da criatura, ou mesmo


à área onde as ferramentas são produzidas, teríamos uma melhor possibilidade de
comunicar diretamente. Se a comunicação direta for impossível, poderemos estimular
artificialmente certas secções para levar a criatura a pensar que grandes objetos
pousaram na superfície, forçando-a a deslocar para elas as ferramentas que estão a
atacar as instalações de transfusão. Se pudéssemos compreender a tecnologia dela,
isso ajudar-nos-ia muito...

Calou-se quando a Murchison abanou a cabeça. Ela mostrou-lhe um diagrama que


incluía trinta ou mais películas transparentes sobrepostas e que mostrava o
interior do paciente tão precisamente quanto era possível depois de seis meses de
trabalho muito duro com equipamento insuficiente. As feições dela adquiriram uma
expressão de conferencista — aquela que dizia que ela precisava de atenção, e não
de admiração.

E a Murchison disse:

— Temos tentado sempre descobrir a localização do cérebro do paciente seguindo os


seus nervos... isto é: a rede de raízes contendo sais metálicos que são capazes de
transmitir impulsos eletroquímicos. Usando perfurações de ensaio feitas ao acaso na
superfície, e através das observações diretas feitas pelas escavadoras, descobrimos
que essa rede se liga não a um cérebro central, mas sim a uma camada plana de
raízes semelhantes, imediatamente acima da subsuperfície. Não se uniam diretamente
àquela nova rede, mas ficavam ao lado, paralelamente, numa extensão bastante para
que os impulsos fossem transmitidos por indução.

«Uma parte dessa rede é provavelmente responsável pelas contrações musculares da


subsuperfície que concederam ao paciente mobilidade antes de ele ocupar toda esta
massa de terra e deixasse de atropelar e esmagar os seus inimigos, e é de supor que
as plantas-olhos acima e os músculos abaixo tenham uma ligação direta, uma vez que
elas devem ser as primeiras a dar aviso, se outra criatura-tapete tentar trepar por
cima dela, e a subsequente reação muscular será quase involuntária.

«Mas há muitas outras redes de raízes nesta camada e não sabemos quais as suas
funções. Não obedecem a qualquer codificação pela cor... parecem todas idênticas,
exceto pequenas variações na espessura. O tipo que aparentemente extrai metais da
rocha da subsuperfície pode variar em espessura. Portanto não devo aconselhar
qualquer espécie de estimulação artificial. Podemos facilmente levar um grupo de
músculos da superfície a sofrerem espasmos, e os homens do Corpo terão de enfrentar
tremores de terra, além de tudo o mais.»

— Muito bem — disse Conway, furioso porque as observações dela eram válidas. — Mas
continuo a querer alcançar o cérebro do monstro, ou a área onde ele produz
ferramentas, e se ele não nos puxa lá para dentro teremos nós de ir lá. O pior é
que o tempo escasseia. Em tua opinião, qual é o melhor lugar onde devemos procurar?

Ela ficou pensativa por um momento e depois disse:

— Quer o cérebro, quer a área de produção de ferramentas, devem estar numa cova ou
num pequeno vale, na subsuperfície, onde, possivelmente, a criatura absorve os
minerais necessários. Há uma grande caverna na rocha a vinte e cinco quilómetros
daqui, e ela dar-lhe-á a proteção necessária de baixo e de todos os lados, enquanto
a massa do corpo a protegerá pela parte de cima. No entanto, existem dúzias de
outros sítios igualmente bons. Sim, deve dispor de um fornecimento constante de
alimento e oxigénio, mas como se trata de um processo quase vegetal, num paciente
que, em vez de sangue, possui água como fluido vital, não deve haver dificuldade
alguma em abastecer um cérebro profundamente enterrado...

Ela calou-se, o rosto e o maxilar tomados rígidos pela supressão de um bocejo.


Antes que ela pudesse voltar a falar, Conway disse:

— É um grande problema. Porque é que não dormimos um pouco sobre ele?

Subitamente ela riu-se.

— É o que tenho estado a fazer. Não deste por isso?

Conway sorriu-se e disse:

— A sério, gostaria de chamar um helicóptero para te levar antes de irmos para


baixo. Não tenho ideia alguma do que nos espera se descobrimos o que procuramos...
talvez acabemos por ser apanhados numa fornalha subterrânea, ou paralisados pela
radiação mental do cérebro. Compreendo que a tua curiosidade é forte e inteiramente
profissional, mas eu preferia que não viesses. No fim de tudo, a curiosidade
científica é que mata os gatos.

A Murchison objetou:

— Com o devido respeito. Doutor, está a dizer disparates. Não há indicações de


temperaturas anormalmente altas na subsuperfície e sabemos ambos que, ainda que
certos extraterrestres comuniquem telepaticamente, só podem fazer isso entre as
suas próprias espécies. As ferramentas são uma coisa muito diferente, um artefacto
inerte mas maleável pelo pensamento, que... — Calou-se, suspirou fundo e terminou,
calmamente:— Há outra escavação como esta. E estou certa de que também haverá um
oficial na Descartes que seja cavalheiro e queira segui-lo através dele...

Harrison suspirou fundo e disse:

— Não seja anti-social, Doutor. Se não os pode vencer, junte-se a eles!

— Conduzirei durante algum tempo — disse Conway, dominando o motim incipiente da


única maneira que lhe era possível; isto era: ignorando-o. — Estou esfomeado e é a
sua vez de tratar da comida.

— Ajudá-lo-ei, Tenente — disse a Murchison.

Quando Harrison deixou o posto de pilotagem e se dirigiu para a cozinha, murmurou:

— Sabe, Doutor, por vezes gosto de babar-me sobre um prato acabado de fazer,
especialmente se for seu.

Pouco antes da meia-noite chegaram à área onde se encontrava a depressão da


subsuperfície e começaram a escavar. A Murchison observava através da vigia que se
encontrava junto dela, tomando de vez em quando apontamentos sobre a rede de finas
raízes que corria através do material húmido, semelhante a cortiça, que era a
«carne» da criatura. Não havia indicação da presença de sangue — nada que mostrasse
que a criatura estava viva, no sentido animal mais que no sentido vegetal.

Subitamente romperam através da parte superior de um estômago e desceram por entre


os grandes pilares vegetais que erguiam e baixavam o cimo, aspirando água e
alimentos do mar e expulsando, muitos dias depois, os detritos não absorvidos pelas
plantas especializadas. As estalactites vegetais estendiam-se em todas as direções
até aos limites alcançados pelos projetores, em todas as direções, todas elas
cobertas pelos grãos especializados cujas secreções faziam com que os pilares se
enrijassem e endireitassem, quando o estômago se mantinha vazio por demasiado
tempo, e os amoleciam quando ele estava cheio. Outras cavernas, mais pequenas e
mais juntas que os estômagos, mantinham simplesmente o fluxo da água no sistema,
sem realizarem qualquer função digestiva.

Exatamente antes de começarem a descer, Harrison colocara a escavadora na posição


de mergulho e pusera as lâminas frontais a girar a toda a velocidade. Pousaram
suavemente no fundo do estômago e continuaram a avançar. Meia hora depois foram
atirados contra os cintos. O ruído surdo das lâminas tomou-se num uivo agudo que se
extinguiu quando Harrison as desligou.

O tenente disse:

— Ou chegámos à subsuperfície ou este monstro tem um coração muito rijo.

Recuaram um pouco e depois reduziram o ângulo de descida para que pudessem


continuar a abrir um túnel com as lagartas a assentarem sobre a subsuperfície
rochosa enquanto as lâminas cortavam a «carne», que agora tinha o aspeto de cortiça
fortemente comprimida e cheia de veios. Depois de avançarem algumas centenas de
metros, Conway fez sinal a Harrison para parar.

— Isto não parece o material de que costumam ser feitos os miolos —disse ele. — Mas
creio que devíamos observar a coisa mais de perto...

Puderam colher alguns espécimes e ver a coisa de perto, mas não por muito tempo.
Mas quando acabaram de vestir os fatos e saíram pela escotilha traseira, já o túnel
que tinham aberto estava a abater-se perigosamente e onde o solo húmido e áspero
encontrava os lados do túnel, surgia um líquido negro, oleoso, que subiu de nível
até lhe cobrir os tornozelos. Conway não queria que levassem com eles para a
escavadora uma quantidade demasiada daquela substância. Pelas amostras anteriores,
extraídas pelas perfuradoras, sabiam que cheirava horrivelmente mal.

Quando voltaram para o interior do aparelho, o Murchison pegou num dos espécimes.
Parecia-se um pouco com uma cebola que tivesse sido cortada lateralmente em duas. A
parte inferior, plana, estava coberta por uma espécie de escova vermicular, e do
centro subia uma haste que se dividia e subdividia muitas vezes antes de se juntar
à rede nervosa, a pouca distância acima deles. Ela disse:

— Parece-me que as secreções da planta dissolvem e absorvem minerais e (ou)


substâncias químicas da rocha e do solo da superfície e, com a água que chega até
aqui, fornecem a lubrificação que permite à criatura mudar de posição se os
minérios se esgotarem. No entanto não há aqui sinais de redes nervosas
concentradas, ou invulgares, nem há quaisquer vestígios das cicatrizes que as
ferramentas deixam quando abrem caminho através deste material. Receio que tenhamos
de tentar de novo, em qualquer outro lugar.

Passou-se perto de uma hora antes que alcançassem a segunda cova e outras três
antes que alcançassem a terceira. Conway tivera algumas dúvidas desde o princípio
sobre o terceiro local porque estava demasiado próximo da periferia para abrigar um
cérebro. Mas não tinha sido afastada a possibilidade de, numa criatura daquele
tamanho, existirem cérebros múltiplos ou, pelo menos, um certo número de
subestações neurais. A Murchison recordara-lhe que os brontossauros dos velhos
tempos precisavam de dois, e eram microscópicos quando comparados com aquele
paciente.

O terceiro local estava também muito próximo da primeira linha de incisão.


Conway disse furioso:

— Podemos passar o resto das nossas vidas a explorar covas, sem encontrarmos o que
desejamos, e não dispomos de muito tempo.

Os visores-repetidores mostravam o céu, a iluminar-se por cima deles, com os


cruzadores pesados dos Monitores já em posição, os projetores a serem desligados
nas instalações de transfusão e alimentação e, de vez em quando, vistas de relance
de Edwards, que fora transferido para a nave-almirante Vespasian como chefe das
ligações médicas, durante a operação. Tinha a missão de traduzir as ordens médicas,
durante a operação. Tinha a missão de traduzir as ordens médicas de Conway em
manobras militares, para os oficiais operacionais da armada.

Conway disse subitamente:

— Creio que as tuas perfurações foram feitas a intervalos regulares e chegaram à


subsuperfície. Houve qualquer indício de que esta coisa negra que o paciente usa
como lubrificante é mais abundante numas áreas que noutras? Estou a tentar
encontrar uma parte da criatura que seja virtualmente incapaz de se movimentar e...

A Murchison respondeu, excitada:

— Evidentemente que esse é o grande fator que torna esta criatura diferente das
suas semelhantes mais pequenas e não-inteligentes. Para estarem mais protegidos, o
cérebro, e possivelmente os centros de produção de ferramentas, devem quase por
certo encontrar-se numa secção estacionária. Por outro lado, posso recordar-me
somente de cerca de uma dúzia de perfurações em que o lubrificante não surgiu ou
esteve presente apenas em pequenas quantidades, e em poucos minutos posso encontrar
a sua posição no mapa.

Conway disse com toda a sinceridade:

— Continuo a não gostar que estejas aqui, mas estou contente por teres vindo.

Cinco minutos depois, ela tinha toda a informação disponível.

— A subsuperfície forma uma pequena planície rodeada por montes. Os sensores aéreos
dizem-nos que se trata de uma área muito rica em minérios, mas o mesmo acontece com
a maior parte do centro desta massa terrestre. As nossas perfurações de ensaio
foram muito espaçadas, de modo que podíamos muito facilmente ter deixado de colher
material cerebral, ainda que eu esteja razoavelmente certa que ele se encontra
aqui.

Conway moveu a cabeça num gesto de concordância e depois disse:

— Harrison, essa será a nossa próxima paragem. Mas é demasiado longa para irmos até
lá através ou sob a superfície. Leve-nos lá acima e arranje-nos um helicóptero de
transporte para nos levar até esse ponto. No caminho, se não se importar, leve-nos
até à boca do Túnel Quarenta e Três, tão perto da linha de incisão quanto for
possível, para que eu possa ver como o paciente reage às primeiras fases da
operação.

Por certo que deve ter alguma defesa natural contra os grandes danos físicos...

Calou-se e a sua disposição mudou subitamente de uma extrema excitação para uma
angústia profunda. Disse:

— Que demónio! Seria melhor que eu me tivesse concentrado nas ferramentas logo de
início, em vez de me distrair com os roladores e depois pensar que aqueles
leucócitos gigantes eram os utilizadores inteligentes das ferramentas. Desperdicei
demasiado tempo.

— Pois agora não estamos a perder tempo — disse Harrison, e apontou para os
repetidores.

Melhor ou pior, a grande operação começara.

O visor principal mostrava uma fila de cruzadores pesados a seguir ao longo da


primeira secção da incisão, com os matraqueadores a afundarem-na, enquanto os raios
pressores afastavam os bordos da ferida para permitir que a nave seguinte atuasse a
uma maior profundidade. Como todas as naves da classe Imperador eram capazes de
fazer toda a espécie de coisas terríveis em doses muito bem medidas, desde pôr
manifestantes a dormir em meia dúzia de ruas até aniquilar por meios nucleares um
continente inteiro. O Corpo de Monitores raramente permitia que qualquer situação
se deteriorasse até ao ponto em que o uso de armas de destruição em massa se
tornassem a única solução — como a maior parte dos polícias, os «aplicadores-da-
lua» da Federação sabiam que um bastão embainhado era melhor e tinha efeitos muito
mais duradores que um que se atarefasse demasiadamente a partir cabeças. Mas a sua
arma mais efetiva e mais versátil, a curta distância — versátil porque tanto podia
servir de espada como de arado—, era o matraqueador.

O feixe matraqueador era um desenvolvimento do sistema de gravitação artificial que


compensava as acelerações mortais usadas pelas naves da Federação, e do escudo
repulsor que dava proteção contra os meteorólitos ou que permitia que uma nave com
suficientes reservas de energia pairasse sobre uma superfície planetária tal como
um dirigível dos velhos tempos. O matraqueador puxava e empurrava, violentamente,
com forças que imprimiam acelerações até uma centena de G, muitas vezes por minuto.

Era muito raro que o Corpo fosse forçado a usar os matraqueadores em combate —
normalmente os oficiais de comando de foco ficavam satisfeitos por os utilizarem na
limpeza e cultura de terrenos bravios, para as novas colónias — e para um efeito
ótimo o foco tinha de ser bem concentrado. Mas um feixe difuso podia ser
devastador, em especial num alvo pequeno com uma nave. Em vez de arrancar grandes
pedaços da chaparia do casco e reduzir a fragmentos as estruturas internas, abanava
a nave inteira até que os homens dentro dele matraqueavam também.

No entanto, naquela operação o foco era muito concentrado e o alcance conhecido até
aos centímetros.

Visualmente não linha nada de espetacular. Cada cruzador tinha três baterias de
matraqueadores que puxavam e empurravam tão rapidamente que a superfície mal
parecia ser perturbada. Só os feixes de raios tractores, relativamente suaves,
colocados entre os matraqueadores, pareciam fazer qualquer coisa — puxavam para
cima a estreita cunha de «carne» e vegetação destroçada até que o matraqueador
seguinte aprofundasse a incisão. Quando a incisão chegasse à superfície e tivesse
quilómetros de comprimento, os outros esquadrões chegariam para alargar o corte de
modo que a parte sã fosse atingida pela vegetação infetada da parte em
decomposição.

Juntamente com as imagens, Conway ouvia as vozes entrecortadas dos oficiais,


transmitindo os seus relatórios. Parecia haver centenas deles, todos a dizer as
mesmas coisas no menor número possível de palavras. A intervalos regulares, uma voz
calma e sem pressas surgia a dirigir, a aprovar, a coordenar o esforço geral —a voz
de Deus, também conhecida como a do Comandante da Armada Dermod, o oficial do Corpo
de Monitores com o posto mais alto no Sector Doze da Galáxia, e como tal, o diretor
tático de mais de três mil naves de batalha, abastecimentos e comunicações, bases
de apoio, carreiras de construção de naves, etc., assim como do grande número de
criaturas, humano-terrestres ou não, que as guarneciam.
Se a operação falhasse, Conway não se poderia queixar da qualidade da ajuda.
Começava a sentir-se calmamente grato pela maneira como as coisas decorriam.

A sensação durou dez minutos, e durante esse tempo a incisão passou através do
túnel Número Quarenta e Três onde tinham acabado de entrar. Conway podia ver a
parte interna da «compressa» — uma espécie de salchicha espessa, canelada, de
plástico forte contendo ar a três quilos e meio por centímetro quadrado, que se
comprimia contra as paredes do túnel. Tinham sido tomados cuidados especiais para
evitar a perda de fluido vital, porque os processos de cicatrização da criatura
eram espantosamente lentos. O seu sangue era literalmente água e a água não
coagulava.

Dois homens do Corpo e um médico Melfano estavam de guarda, ao lado da «compressa».


Pareciam estar agitados, mas havia tantos leucócitos no túnel que Conway não podia
compreender a razão de tal atitude. Os visores mostravam a linha de incisão a
atravessar o túnel da garganta. Algumas centenas de litros de água, entre a
compressa e a incisão, escoaram-se. Considerando o tamanho do paciente era menos
que uma gota. Os matraqueadores e os tractores avançaram, estendendo e ampliando o
corte enquanto os grandes feixes pressores —as muletas invisíveis que suportavam o
enorme peso dos cruzadores, afastavam os bordos até a incisão se tornar numa ravina
cada vez mais funda e mais larga. Uma pequena carga de explosivo químico atirou
abaixo a parte superior da secção vazia do túnel, reforçando o tampão de plástico.
Tudo parecia passar-se exatamente como ele planeara, até que o sinal de atenção
imediata começou a relampejar no seu painel e o rosto do Major Edwards encheu o
painel.

Aflito, o major disse:

— Conway: o tampão do Túnel Quarenta e Três está a ser atacado por ferramentas.

— Mas isso é impossível — disse a Murchison, num tom escandalizado de alguém que
encontrou um amigo a fazer batota. — O paciente nunca interferiu com as nossas
operações internas. Não há aqui em baixo plantas-olhos que lhe deem a nossa
posição, nem luz que mereça esse nome, e o tampão não é de metal. Eles nunca
atacaram material plástico na superfície... unicamente homens e máquinas.

— E atacam os homens porque denunciamos a nossa presença aqui, tentando dominá-las


mentalmente — disse imediatamente Conway. Dirigindo-se a Edwards, acrescentou: —
Major, retire essa gente do tampão e envie-os para o poço de abastecimento.
Depressa! Não falarei diretamente com eles. Diga-lhes para que não tentem pensar
enquanto estiverem a fazer isso...

Calou-se quando o tampão desapareceu numa explosão abafada de bolhas que rugiam na
direção deles através do teto do túnel. Não podia ver nada fora da escavadora e
dentro só havia as imagens do rosto de Edwards e das naves em formação.

— Doutor, o tampão foi-se! — gritou o major. — Os detritos atrás dele estão a ser
arrastados. Harrison, afunde-se!

Mas o tenente não podia cumprir a ordem porque as bolhas tomavam-lhe impossível a
visão. Engrenou as lagartas em marcha-atrás, mas a corrente arrastou-os de tal modo
que a escavadora quase perdeu o contacto com o solo. Apagou os projetores porque o
reflexo do lado exterior o encandeava. Mas havia uma mancha de luz que se tomava
cada vez maior...

— Edwards, parem os matraqueadores!

Poucos segundos depois eram arrastados para fora do túnel numa catarata que caía
por uma arriba orgânica até uma ravina que parecia não ter fundo. O veículo não se
fez em pedaços nem eles se transformaram em geleia, de modo que ficaram a saber que
o Major Edwards tinha conseguido fazer parar a tempo as baterias de matraqueadores.
Quando pararam com um choque, uma eternidade depois, dois dos visores-repetidores
estoiraram espetacularmente e a catarata que amortecera a sua queda começou a bater
neles, empurrando-os e fazendo-os rolar ao longo do fundo da incisão.

— Alguém se aleijou? — disse Conway.

A Murchison afastou a rede de segurança e disse:

— Estou toda cheia de nódoas negras e mossas...

Harrison observou:

— Gostaria de ver isso!

Aliviado, mas irritado, Conway disse:

— Primeiro temos de ver o paciente.

O único visor utilizável estava a transmitir uma imagem obtida de um dos


helicópteros estacionados sobre a incisão. Os cruzadores pesados tinham-se afastado
um pouco para deixar o campo operativo livre para os helicópteros de salvamento e
observação, que zumbiam e mergulhavam sobre a ferida como grandes moscas de metal.
Milhares de litros de água saíam em cada minuto do túnel selecionado, levando
consigo os corpos de leucócitos, peixes-agricultores, comida incompletamente
digerida e montes de vegetação vital interna. Conway chamou Edwards.

— Estamos salvos — disse ele antes que o outro pudesse falar—, mas isto é um grande
problema. A menos que possamos deter esta perda de fluido, o sistema do estômago
deixará de funcionar e mataremos o nosso paciente em vez de o curarmos. Que
demónio! Não terá ele algum meio de se proteger contra os grandes danos físicos...
uma válvula impedindo o retorno, por exemplo? Eu não esperava que isto
acontecesse...

Conway dominou-se, compreendendo que estava a procurar desculpas, em vez de dar


ordens. Apressadamente, disse:

— Preciso de um especialista. Têm alguém que conheça armas explosivas de curto


alcance e baixa potência?

— Sim — disse Edwards. Poucos segundos depois, uma nova voz disse: — Comando de
Armamento, Vespasian. Major Holroyd. Em que posso ser-lhe útil, doutor?

Conway começou a expor o seu problema.

Era o mesmo que ter um doente a sofrer de uma hemorragia, na mesa operatória. Fosse
a criatura pequena ou grande, fosse o seu fluxo vital sangue humano-terrestre,
metal líquido sobreaquecido do TLTU de Thecaldi Cinco ou a água impura que
transportava comida e organismos internos especializados até às longínquas
extremidades daquela criatura-tapete de Drambo, o resultado seria o mesmo — a
pressão sanguínea abaixaria constantemente, o choque tomar-se-ia cada vez mais
profundo, a paralisia muscular aumentaria, e no fim seria a morte.

O processo normal nessas circunstâncias seria o de dominar a hemorragia atando o


vaso sanguíneo danificado e suturando a ferida. Mas aquele vaso era um túnel com
paredes que não eram mais fortes nem elásticas que o material do corpo que o
rodeava, de modo que não podia ser atado nem cerrado com grampos. Para Conway, o
único meio de fechar o vaso roto era o de abater o teto do túnel.

O oficial de armamento disse imediatamente:

— TR-7 de curto alcance. São aerodinamicamente perfeitos, de modo que não há


problema se o dispararmos sobre a corrente, e como não há curvas apertadas perto da
boca do túnel poderemos conseguir a penetração que for desejada...

— Não — disse Conway, com firmeza. — Estou preocupado com os efeitos de compressão
de uma grande explosão no interior do túnel. A onda de choque será transmitida
através do interior e muitos peixes-agricultores e leucócitos morrerão, para não
falar na frágil vegetação interna. Temos de fechar o túnel tão perto da incisão
quanto possível, major, e confinar os danos a essa área.

— Então, os B-22 perfurantes — disse imediatamente Holroyd. — Neste material


podemos conseguir penetrações de cinquenta metros sem qualquer dificuldade. Sugiro
um lançamento simultâneo de três mísseis, espaçados verticalmente acima da boca do
túnel, de modo que façam abater material desagregado bastante para bloquear o
túnel, apesar da pressão da água.

Conway disse:

— Agora já estou a ouvir!

Dentro de poucos minutos, o visor mostrou a nave-almirante a descer sobre a


incisão. Conway não viu os mísseis serem lançados porque se recordou subitamente de
verificar se a escavadora se afastara o bastante para não ficar soterrada pelos
destroços. Felizmente assim fora. A primeira indicação que teve de que acontecera
qualquer coisa foi quando a veia de água se tomou subitamente como que lamacenta,
passou a ser um fio e depois parou. Poucos minutos depois, grandes massas de lama
espessa e viscosa começaram a sair da parte superior do túnel e subitamente uma
grande área em volta da boca abateu-se e escorregou, tornada numa papa castanha,
pela ravina abaixo.

A boca do túnel era agora seis vezes maior do que fora e o paciente continuava a
sangrar.

— Desculpe, doutor — disse Holroyd. — Devo repetir a dose e tentar uma maior
penetração?

— Não. Um momento.

Conway tentou desesperadamente pensar. Sabia que estava a dirigir uma operação
cirúrgica, mas não acreditava nisso — tanto o problema como o paciente eram
demasiado grandes. Se um humano-terrestre se encontrasse no mesmo estado, mesmo sem
instrumentos ou medicamentos, ele saberia o que fazer — estancar a hemorragia sem
perda de pressão, aplicando um torniquete... Era isso.

— Holroyd, coloque mais três na mesma posição e profundidade — disse ele,


rapidamente. — Mas antes de os lançar, pode colocar os raios pressores da sua nave
de modo que sejam focados tantos quantos sejam possíveis acima da boca do túnel?
Incline-os contra a face da incisão em vez de os fazer atuar verticalmente, se
possível. Trata-se de usar o peso da vossa nave para comprimir e suportar o
material desagregado pelos mísseis.

— Pode ser, doutor.

Foram necessários menos de quinze minutos para que a Vespasian orientasse e focasse
de novo os seus pés invisíveis e lançasse os mísseis, mas a catarata cessou quase
imediatamente e dessa vez não voltou a surgir. A abertura do túnel desapareceu e no
seu lugar ficou uma grande depressão em forma de prato, sobre a parede da incisão,
onde os pressores de estibordo da Vespasian tinham sido focados. Ainda se filtrava
água do tampão comprimido, mas a situação manter-se-ia enquanto a nave-almirante se
mantivesse na posição e assentasse o seu peso muito considerável sobre a abertura.
Para uma maior segurança, outro tampão pneumático estava a ser levado para o túnel
de abastecimento.

Subitamente, a imagem foi substituída pela de um rosto simultaneamente velho e


novo, enrugado, colocado sobre ombros vestidos de verde em que havia um
impressionante peso de insígnias. Era o Comandante da Armada.

— Doutor Conway. A minha nave-almirante tem participado em missões muito curiosas,


mas nunca fora chamada a servir de torniquete.

— Desculpe, senhor... parecia ser a única maneira de resolver a situação. Mas


agora, se não se importa, eu gostaria de ver esta escavadora levantada...

Interrompeu-se porque Harrison lhe acenava. O tenente disse em voz baixa:

— Não esta. Peça-lhe para que aprontem a outra e a tenham à nossa espera quando
eles nos tirarem daqui.

Três horas depois estavam na segunda escavadora, modificada e reforçada, suspensa


sob um helicóptero de transporte, e aproximavam-se da área onde, segundo esperavam,
se continha o cérebro da criatura e (ou) as instalações de produção das
ferramentas. A viagem deu-lhes a possibilidade de estabelecerem algumas teorias
construtivas sobre o seu paciente.

Agora estavam convencidos de que ele se desenvolvera a partir de uma forma vegetal
móvel. Fora sempre grande e omnívoro, e quando aquelas criaturas tinham começado a
viver longe umas das outras tinham aumentado de tamanho e complexidade e diminuído
de número. Não parecia haver qualquer maneira de as criaturas-tapetes se
reproduzirem. Continuavam simplesmente a viver e a crescer até que uma da sua
própria espécie e que fosse maior as matasse. O seu paciente era a criatura maior,
mais velha, mais dura e mais avisada daquela espécie. Sendo o único ocupante
daquela massa terrestre, havia muitos milhares de anos, deixara de ter necessidade
de se mover e adquirira novamente raízes.

Mas não fora um processo de evolução. Sem possibilidade de canalizar as outras


criaturas da sua espécie, imaginara meios de dominar o seu crescimento e de tomar o
seu metabolismo mais eficiente, desenvolvendo ferramentas para fazer trabalhos como
os da extração de minérios, a investigação da subsuperfície, o processamento dos
minérios necessários para a sua rede nervosa. O peixe-agricultor era possivelmente
uma estirpe que fora capaz de sobreviver, como o lendário Jonas, no estômago da
criatura, e depois cultivara plantas-dentes para o monstro e para ele próprio se
defenderem contra os animais marinhos de presa sugados pelas bocas. Era menos claro
como os leucócitos tinham aparecido ali, mas os roladores encontravam de vez em
quando uma variedade mais pequena e menos desenvolvida, que era provavelmente a sua
parente selvagem.

Conway concluiu:

— Mais um ponto que devemos ter presente quando tentarmos entrar em comunicação com
o paciente é que ele é cego, surdo e mudo, porque nunca tivera outra criatura da
sua própria espécie para falar. O nosso problema não é simplesmente o de aprender
uma linguagem extraterrestre peculiar e difícil: temos de comunicar com um ser que
nem sequer conhece o significado da palavra comunicação.
A Murchison disse secamente:

—Se estás a tentar elevar o meu moral, olha que não estás.

Conway estivera a olhar em frente, através da redoma da proa, principalmente para


evitar ver a carnificina mostrada nos visores-repetidores, uma vez que os ataques
das ferramentas estavam a fazer cada vez mais vítimas nos locais de alimentação e
transfusão. Disse subitamente:

— A área que julgamos ser cerebral é demasiado grande para ser investigada
rapidamente, mas... corrijam-me se me enganar... não foi nela que a Descartes
pousou pela primeira vez? Se assim foi, as ferramentas enviadas para investigar a
nave tiveram uma distância relativamente pequena a percorrer, e se for possível
traçar o caminho de uma ferramenta pelo tecido cicatricial deixado na «carne» do
corpo...

— É — disse a Murchison, excitada. Harrison deu novas instruções para o piloto do


helitransportador e poucos minutos depois desciam, com as lâminas de corte a
girarem e a mergulharem no corpo esponjoso do paciente.

Mas em vez da grande «rolha» cilíndrica cortada no corpo do paciente, encontraram


uma secção achatada, um cone invertido que se afunilava rapidamente tomando-se num
ferimento quase tão fino como um cabelo, o qual obliquava quase imediatamente para
a área que se suspeitava ser cerebral.

— A nave seria arrastada por certo apenas até uma curta distância abaixo da
superfície — disse a Murchison. — O bastante para deixar as ferramentas estabelecer
contacto com a sua superfície total enquanto ela estivesse suportada pela «carne»
do corpo, em vez de estabelecerem um contacto passageiro como o conseguido enquanto
saltavam no ar. Mas notaram como as ferramentas, mesmo quando cortam à máxima
velocidade, conseguem evitar qualquer dano à rede de raízes que transmite as
instruções mentais que elas recebem?

—No presente ângulo de descida estamos a cerca de vinte minutos da subsuperfície—


disse Harrison. As leituras do sonar indicam a presença de cavernas ou poços
fundos.

Antes que Conway pudesse responder a qualquer deles, o rosto de Edwards surgiu no
visor principal.

— Doutor, os tampões dos túneis Trinta e Oito e Quarenta e Um estoiraram. Estamos


já a aplicar torniquetes ao Dezoito, ao Vinte e Seis e ao Quarenta e Três, mas...

— O mesmo procedimento — disse secamente Conway.

Ouviu-se um ruído metálico surdo, seguido por rangidos ao longo da escavadora. Os


sons repetiram-se com uma frequência cada vez maior. Sem olhar para cima, Harrison
disse:

— Ferramentas, doutor. Dúzias delas. Não podem ter uma energia muito grande, vindo
como vêm através desta matéria esponjosa, e a nossa blindagem suplementar deve
aguentá-las. O que me preocupa é a antena.

Antes que Conway pudesse perguntar porquê, Murchison afastou-se da vigia. Disse:

— Perdemos o rasto original. Esta área é praticamente toda ela constituída por
tecido cicatricial, gerado pelas ferramentas. Devem passar muito por aqui.

Os visores secundários mostravam a colocação das naves, da maquinaria de remoção de


terras e do equipamento de descontaminação, e movimentos dentro e fora das áreas de
alimentação e transfusão, enquanto os visores principais mostravam que a Vespasian
já não estava em posição sobre o Túnel Quarenta e Três. Perdia altura e estava a
girar pesadamente, de lado, enquanto o seu piloto lutava visivelmente para evitar
que ela se virasse sobre si própria.

Uma das suas quatro instalações de pressores fora esmagada como que por um martelo
gigantesco e Conway compreendeu que se tratava daquela que estivera a manter
fechado o Quarenta e Três. Quando a nave, a rodopiar, se aproximou do chão, ele
quis fechar os olhos, mas então ele viu que os tombos tinham sido dominados e que a
vegetação da superfície estava a ser esmagada pelos três pressores restantes,
abertos com a máxima força para suportarem o peso da nave.

A Vespasian pousou com dureza, mas não de uma maneira catastrófica. Outro cruzador
colocou-se em posição sobre o Quarenta e Três enquanto transportes de superfície e
helicópteros corriam para a nave almirante, para prestar socorros. Chegaram ao
mesmo tempo que um grande número de ferramentas que nada faziam para os ajudar.

Subitamente, a imagem de Dermod encheu o visor.

Numa voz fria e furiosa, o Comandante da Armada disse:

— Doutor Conway, não é a primeira vez que eu vejo uma nave convertida em sucata à
minha volta, mas nunca aprendi a gostar de tal coisa. O acidente foi causado pela
tentativa de equilibrar toda a nave num feixe pressor estreitamente focado. O
resultado foi o de a estrutura de suporte ter cedido e quase ter destroçado a nave.

O seu tom tornou-se um pouco mais quente, mas apenas por um momento.

— Se mantivermos torniquetes sobre cada túnel, e com as ferramentas a atacarem


todos os tampões, terei de retirar as minhas naves para que elas recebam grandes
modificações na estrutura, ou então terei de as usar somente durante cerca de uma
hora de cada vez e verificar, após cada período de serviço, se existem indícios de
falha estrutural. No entanto isso conduzirá muitas naves a uma atividade
improdutiva, e quanto mais avançarmos a incisão mais túneis teremos de fechar e
mais devagar progredirá o trabalho. A operação está a tornar-se logisticamente
impossível, o número de vítimas e de perdas materiais está a tomar-se semelhante ao
que resultaria de uma grande batalha, e creio que o único resultado será a
satisfação da sua curiosidade médica, doutor, e da do nosso pessoal do contacto
cultural. Vou dar ordem para a suspensão permanente dos trabalhos. Tenho o espírito
de um polícia e não de um soldado... a Federação prefere que seja assim. Não sinto
qualquer glória nesta espécie de coisa...

A escavadora deu um salto e durante um momento Conway teve uma sensação impossível
naquele lugar — a de uma queda livre. Depois houve um choque quando o veículo bateu
em terreno rochoso. Caiu de lado, rolou duas vezes e depois avançou de novo, mas a
derrapar de um lado. O som das ferramentas a bater no casco era ensurdecedor.

Duas rugas verticais apareceram na testa do Comandante da Armada, que disse:

— Teve algum problema, doutor?

As constantes pancadas das ferramentas tomavam difícil pensar, mas Conway moveu a
cabeça afirmativamente e disse:

— Não esperava que os tampões fossem atacados, mas agora compreendo que o paciente
está simplesmente a tentar defender-se onde ele pensa que está a ser mais
fortemente atacado. Compreendo também agora que o seu sentido de tato não está
unicamente limitado à superfície superior. Ele é cego, surdo e mudo, mas parece ser
capaz de sentir em três dimensões. As plantas-olhos e as redes de raízes da
superfície permitem que ele sinta áreas de pressão local, mas vagamente, sem
pormenores. Para sentir os pormenores mais pequenos, envia ferramentas, que são
extremamente sensíveis... de tal modo que conseguiram sentir a corrente de ar sob
as suas asas quando lhes fizemos assumir a configuração de planadores, e
reproduziram voluntariamente essa forma. O nosso paciente aprende muito depressa e
esse planador que eu pensei custou muitas vidas. Desejaria...

— Doutor Conway — disse o Comandante da Armada, num tom duro. — Ou está a tentar
dar-me desculpas ou está a falar-me de coisas que eu já conheço há muito tempo. Não
tenho vagar para escutar nem uma coisa nem outra. Enfrentamos uma emergência
cirúrgica e tática. Precisamos de orientação.

Conway abanou violentamente a cabeça. Tinha a impressão de que acabara de dizer ou


pensar qualquer coisa importante, mas não sabia o que era. Tinha de manter aquela
ordem de pensamentos se queria trazer isso de novo à luz.

Prosseguiu:

— O paciente vê e toma contacto com tudo pelo tato. Até agora, a nossa única área
de contacto são as ferramentas. São extensões comandadas pelo pensamento do seu
sentido do tato, através dó corpo do paciente c de uma curta distância acima dele.
A nossa radiação mental e o domínio que ela exerce são mais concentrados e têm um
alcance muito limitado. A situação é a de dois esgrimistas que tentassem comunicar
apenas através das pomas dos seus floretes...

Calou-se subitamente porque estava a falar com um visor vazio. Havia energia nos
três repetidores, mas a imagem e o som tinham desaparecido.

Harrison gritou:

— Já receava isto. Doutor. Reforçámos a blindagem do casco, mas tivemos de cobrir a


antena com uma redoma de plástico para permitir as comunicações nos dois sentidos.
As ferramentas encontraram o nosso ponto fraco. Agora estamos também surdos, mudos
e cegos... e com uma perna a menos, porque a nossa lagarta de bombordo não
funciona.

A escavadora assentara numa plataforma rochosa, numa larga caverna que fazia um
ângulo inclinado na direção da subsuperfície. Por cima e na frente estava suspensa
uma grande massa de «carne» da criatura, da qual saíam milhares de raízes muito
finas que se juntavam e tornavam a juntar até se tornarem em cabos espessos e
prateados que se estendiam, imóveis, pelo chão da caverna, e também pelas paredes e
pelo teto, antes de desaparecerem nas profundezas. Cada cabo tinha pelo menos um
rebento a sair deles, como uma folha fina de alumínio, amachucado. Os rebentos mais
desenvolvidos agitavam-se e tentavam tomar a forma das ferramentas que atacavam a
escavadora.

— Este é um dos lugares onde a criatura faz as ferramentas—disse ele, usando um


projetor como ponteiro. — Ou melhor: é onde elas nascem do seu corpo: continuo a
não saber se se trata de um ser animal ou vegetal. O sistema nervoso parece estar
centrado nesta área, portanto é provável que ele faça também parte do cérebro. E é
sensível... veem como as ferramentas evitam, com todo o cuidado, esses cabos
prateados, quando atacam?

— Vamos fazer o mesmo — disse Conway a Harrison. — Isto é: se puder aproximar a


escavadora sobre uma lagarta dessa parede saliente, na qual passam os cabos, sem
esmagar esses dois, no chão...

Qualquer dano naquela área sensível poderia ter sérios efeitos para o seu paciente.
O Tenente fez um gesto afirmativo e começou a rodar a escavadora para a frente e
para trás através da plataforma, até ficarem encostados à parede indicada.
Protegidos pelos cabos sensíveis, em cima, o fundo da caverna, em baixo, e a parede
rochosa, do lado de estibordo, só estavam expostos ao ataque das ferramentas pelo
lado de bombordo. Podiam de novo escutar os seus próprios pensamentos, mas Harrison
observou, com firmeza, ainda que num lamento, que não podiam subir aquela encosta
ou escavar uma saída dispondo somente de uma lagarta, e que, além de não poderem
pedir socorro, tinham ar apenas para catorze horas e mesmo isso somente se eles
fechassem os seus fatos e usassem o ar contido nas garrafas.

Conway disse num tom enérgico:

— Tratemos disso já e saiamos da escavadora. Coloquem-se um em cada extremo da


máquina, sob os cabos, com as costas voltadas para a parede da caverna. Dessa
maneira pensarão somente nos ataques que vierem da frente... qualquer ferramenta
que tentar abrir caminho através da rocha atrás de vocês fará muito barulho para
poder atuar por surpresa. Também os quero bastante longe da minha posição, a meio
do veículo, de modo que a vossa radiação mental não afete as ferramentas que eu
estiver a tentar dominar...

— Conheço aquela expressão de contentamento — disse a Murchison ao Tenente, quando


ela começou a fechar o seu capacete. — O nosso Doutor teve uma ideia das dele...
Creio que ele quer falar ao paciente.

— Em que linguagem? — perguntou Harrison, friamente.

Conway respondeu aparentando uma confiança que não sentia:

— Suponho que através daquilo que se poderá chamar um Braille tridimensional.

Rapidamente, explicou o que pensava fazer e poucos minutos depois todos estavam em
posição fora da escavadora. Conway tinha as costas viradas para a lagarta de
bombordo, a pouca distância de uma cova cheia de água, no fundo da caverna. Havia
um furo de profundidade desconhecida no centro da cova, onde um cabo ou uma planta
semelhante, extratora de minério, abrira caminho através da rocha. A um lado dele,
um grupo de sete ou oito ferramentas combinara-se para cercar e apertar o casco do
veículo, e parte da blindagem começava a ceder pelas costuras. Conway pensou numa
abertura na cinta de metal e depois fê-la rolar para a cova, como uma grande massa
metálica animada. Então começou a trabalhar.

Não fez qualquer tentativa para se proteger contra as ferramentas atacantes.


Procurou concentrar-se tão profundamente numa forma particular que nada que se
aproximasse dentro do seu alcance mental tivesse arestas ou pontas perigosas.

Pensar a forma exterior da criatura era fácil. Dentro de poucos minutos havia como
que um tapete grande e prateado — uma reprodução do paciente, em pequena escala —
no centro do charco. Mas pensar tridimensionalmente as suas bocas, e os túneis e
estômagos ligados a elas, não foi tão fácil. Mais difícil ainda foi a fase em que
ele começou a pensar nos pequenos estômagos a expandirem-se e a contraírem-se,
sugando a água arenosa c cheia de algas no modelo à escala e expelindo-a depois.

Era um modelo grosseiro, mais do que simplificado. O melhor que ele conseguiu, de
uma vez, foi oito bocas e os estômagos a ela ligados, e receou muito que a relação
com o paciente fosse a mesma que existia entre um boneco e uma criança. Mas depois
começou a adicionar os movimentos ondulantes que observara nas criaturas-tapetes
mais jovens e mais pequenas, mantendo imóvel a área em volta da depressão central e
fazendo votos para que os movimentos de bombagem dos estômagos dessem a impressão
de um organismo vivo. O suor escorria da sua testa e caía-lhe nos olhos, mas ele já
não se importava de não ver bem, pois que as secções que estava a formar já se
estendiam, de qualquer maneira, para além da sua vista. Depois começou a pensar que
algumas áreas se tinham tornado sólidas, inertes, mortas. Foi estendendo essas
áreas mortas, inertes e informes até que todo o modelo se tornasse numa massa
sólida e morta.

Depois limpou o suor dos olhos e começou tudo de novo. Iniciou novamente a
demonstração e subitamente viu os outros a seu lado.

Harrison disse numa voz calma:

— As ferramentas já não nos atacam e antes que mudem de ideias vou tentar reparar a
lagarta avariada. Pelo menos não nos falta ferramentas.

A Murchison disse:

— Posso ajudar... para além de não pensar em nada, a fim de evitar deformar o teu
modelo?

Sem olhar para cima, Conway disse:

— Sim. Vou fazer passá-lo pela mesma sequência, mas pararei no ponto em que as
áreas mortas têm a extensão atual. Quando fizer isso, agradeço que penses nas
incisões que estamos a fazer e que as prolongues e alargues enquanto eu fecho os
túneis-gargantas cortados e penso os poços de alimentação e transfusão. Depois,
afasta um pouco o material amputado e pensa-o sólido (morto) enquanto eu tento
transmitir a ideia de que o resto está vivo e a atuar, e é provável que assim
continue.

Ela compreendeu tudo rapidamente mas Conway não tinha maneira alguma de saber se o
seu paciente tinha compreendido ou podia compreender. Atrás dele, Harrison
trabalhava na lagarta avariada enquanto perante eles o modelo no paciente e os
efeitos da cirurgia em curso se tornavam cada vez mais pormenorizados — até aos
minúsculos tampões canelados e ao que acontecia à criatura quando um deles era
destruído. Mas continuava a não haver qualquer indício de que o paciente
compreendesse o que eles tentavam comunicar-lhe.

Subitamente, Conway ergueu-se c começou a subir o fundo inclinado. Disse:

— Lamento muito mas tive de me afastar um momento para recompor o meu espírito.

— Preciso do mesmo — disse ela, alguns momentos depois.

— Vou já ter contigo... Olha!

Conway estivera a fitar a parte escura da caverna, para repousar o espírito e os


olhos. Olhou para baixo apressadamente, pensando que estavam a ser atacados de
novo, e viu a Murchison a apontar para o modelo que tinham concebido, um modelo
vivo.

Apesar de estar fora do alcance dos pensamentos deles, o modelo não se abatera nem
perdera pormenores. Alguém o mantinha exatamente como eles o haviam feito.
Instantaneamente, Conway esqueceu a sua fadiga mental e física.

Excitadamente, ele disse:

— Deve ser a sua maneira de dizer que nos compreende. Mas nós temos de alargar as
comunicações, informá-lo de mais coisas a nosso respeito. Vamos reunir mais
ferramentas e pensar num modelo desta caverna completo com os cabos nervosos...
procurarei incluir nele a escavadora com as nossas figuras. Serão grosseiras, bem
entendido, mas para começar necessitaremos apenas de transmitir a ideia do nosso
pequeno tamanho e da vulnerabilidade ao ataque das ferramentas. Depois afastar-nos-
emos um pouco e formaremos um modelo da escavadora em funcionamento, assim como da
maquinaria, dos helicópteros e das naves auxiliares, na superfície... mas nada tão
grande e complicado como a Descartes, pelo menos para começar. Temos de apresentar
tudo como muito simples.

Dentro em pouco, a plataforma em tomo da escavadora estava coberta de modelos que


eram mantidos pelo paciente tão depressa eram terminados, e cada vez mais
ferramentas rolavam pesada mas suavemente para eles, para serem formadas. Mas os
visores deles iam-se tornando quase opacos com a respiração e o ar dos seus fatos
estava a acabar. A Murchison insistia em que tinha tempo para mais uma modelação —
uma grande, que utilizava mais de vinte ferramentas—, quando Harrison apareceu
vindo detrás da escavadora.

— Tenho de ir lá dentro — disse ele. — Ao contrário de certas pessoas, tenho estado


a trabalhar duramente e a queimar o meu ar.

— Dê-lhe um pontapé em vez de o dar a mim. Está mais perto...

—... Mas a escavadora trabalhará a cerca da quarta parte da velocidade máxima —


continuou Harrison. — E se isso não for possível pediremos socorro. Usei uma
ferramenta para formar uma nova antena (conheço as dimensões exatas) de modo que
até poderemos ter visão nos dois sentidos...

Parou subitamente, ao ver o que a Murchison estava a fazer às suas ferramentas.

Um pouco contra vontade, ela disse:

— Sendo a patologista do partido, é minha missão dizer ao paciente qual o nosso


aspeto. Este modelo possui um sistema respiratório, digestivo e circulatório muito
simplificado. Mostra também as articulações principais. Naturalmente, como sei mais
de mim próprio que de qualquer outra pessoa, este representante da humanidade é de
facto uma fêmea. E, o que é igualmente importante, não quis confundir
desnecessariamente o paciente adicionando-lhe o vestuário.

Harrison não tinha oxigénio bastante para responder. Entraram com ele na escavadora
e, enquanto Conway estabelecia contacto com a superfície, a Murchison erguia a mão
instintivamente para dizer adeus à caverna e aos modelos espalhados pela
plataforma.. Devia ter pensado muito fortemente nesse adeus, porque o seu último
modelo também ergueu a mão e assim a deixou ficar enquanto a escavadora,
lentamente, se afastava do alcance mental.

Subitamente, os três repetidores voltaram a funcionar e Dermod fitava-o, com o


rosto a exprimir sucessivamente preocupação, alívio e excitação. Disse:

— Doutor, pensei que o tínhamos perdido... deixámos de ter comunicação consigo há


quatro horas. Mas posso dizer-lhe que fizemos progressos. A incisão está a avançar
e todos os ataques de ferramentas cessaram há meia hora. Não há nenhum problema nos
túneis, nas equipas de descontaminação e nos poços de transfusão. Doutor, isto será
temporário?

Conway deixou escapar um longo suspiro de alívio. O seu paciente era um rapazinho
esperto, apesar dos seus tempos de reação fisicamente lentos. Abanou a cabeça e
disse:

— Não terá mais problemas com as ferramentas. Na verdade, poderá ver que elas serão
úteis para ajudar a manter o equipamento e para o uso nas seções mais difíceis da
incisão, uma vez que as façamos compreender as nossas necessidades. Pode também
poupar o trabalho da escavação da trincheira de isolamento (o nosso paciente mantém
a mobilidade suficiente para se afastar do material amputado) e isso significa que
as naves que estariam ocupadas na escavação podem ser usadas para fazer progredir
mais rapidamente a incisão, de modo que a operação estará terminada muito antes do
que se esperava.

Conway concluiu:

— Compreenda, senhor: agora temos a cooperação ativa do nosso paciente.

A cirurgia mais importante ficou pronta em pouco menos de quatro meses e Conway
recebeu ordem para voltar ao Geral do Sector. O tratamento pós-operatório iria
demorar muitos anos e seria realizado em conjunto com a exploração de Drambo e com
uma investigação mais profunda das suas formas de vida e culturas. Antes de partir,
enquanto se sentia ainda mais perturbado pelo pensamento das vítimas havidas,
Conway perguntara uma vez a si próprio qual o valor do que tinham feito. Um
especialista de contacto cultural algo arrogante tentara tomar tudo muito simples
dizendo que a diferença, fosse cultural, fisiológica ou tecnológica, era
imensamente valiosa, Aprenderiam muito da criatura-tapete e dos roladores, ao mesmo
tempo que tratariam do seu ensino. Conway, com certa dificuldade, aceitara isso.
Podia também aceitar o facto de que, como cirurgião, o seu trabalho em Drambo
terminara. Era muito mais difícil aceitar o facto de que a equipa de patologia—e em
particular um dos seus membros — ainda teria muito que fazer por lá.

Ainda que O’Mara não se mostrasse abertamente satisfeito com a sua angústia, também
não mostrava simpatia por ela.

— Deixe de se lamentar tão alto em silêncio, Conway — disse o Psicólogo-Chefe


quando ele voltou. — Sublime-se. Mas se não conseguir isso, há sempre trabalho a
fazer, e acaba de nos aparecer um estranho caso ao qual poderá dar uma olhadela.
Evidentemente que estou a ser cortês consigo, É o seu caso a partir de agora.
Observe!

O grande visor atrás da secretária de O’Mara acendeu-se e ele prosseguiu:

— O monstro foi encontrado numa das regiões ainda não exploradas. Um acidente
cortou a sua nave (e ele próprio) ao meio. As anteparas estanques cerraram a parte
não danificada e o nosso paciente (ou parte dele) pôde recolher-se nela antes de as
portas se fecharem. Era uma grande nave, cheia com uma espécie de terra nutritiva,
e a vítima ainda está viva... ou meio viva, É que não sabemos qual foi a metade
dela que salvámos. Está bem?

Conway fitou o visor, imaginando já métodos de imobilizar uma secção do paciente


para fins de exame e tratamento, e também o processo de síntese de terra nutritiva
que já devia ter sido inteiramente consumida, e ainda o estudo dos comandos da nave
para ter uma ideia do equipamento sensorial da criatura. Se o acidente que
destruíra a nave fora devido a uma explosão do gerador, o que era provável, então
aquela poderia ser muito bem a metade da frente, contendo o cérebro.

O seu novo paciente não era como a Serpente de Midgard, mas não lhe faltava muito
para isso. Torcendo-se e enrolando-se. enchia praticamente o enorme hangar que fora
esvaziado para a alojar.

— Então? — perguntou novamente O’Mara.

Conway levantou-se. Antes de sair sorriu-se e disse:

— É pequenina, não é?

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