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JAMES WHITE
A Grande Operação
MAJOR OPERATION
INTRODUÇÃO
É uma novela do futuro —de um futuro distante. Mas é também um prodígio de engenho
e lógica, em que o Médico-Chefe Conway e o Major O'Mara, mais uma vez, são os
símbolos da inventiva de um autor ímpar, quer na sua originalidade, quer num
impecável manejo da ciência e da técnica. Esclareça-se que James White é, ele
próprio, um médico, e compreender-se-á muito do que se lê nas suas novelas.
INVASOR
— Sem dúvida que é impensável — disse com secura o Psicólogo-Chefe, O’Mara. — Estou
a pensar nisso, relutantemente, e você também está a pensar... mesmo que apenas por
um momento. Mas muito pior é o facto de Mannen estar convencido da sua própria
culpa. Isso deixa-me sem outra alternativa...
— Não! — disse Conway, com uma forte emoção a sobrepor-se ao seu respeito usual
pela autoridade. — Mannen é um dos melhores superiores que temos... e você sabe
disso! Ele não seria capaz... Quero dizer, ele não pertence ao tipo... Ele é...
— Um bom amigo seu — concluiu O’Mara, com um sorriso. Conway não respondeu e ele
prosseguiu: — Pode ser que eu não goste tanto de Mannen como você, mas o
conhecimento profissional que tenho dele é muito mais pormenorizado e objetivo. De
modo que há dois dias eu não o teria julgado capaz de fazer tal coisa. Mas agora,
que diabo, preocupa-me o comportamento incaracterístico...
Agora parecia que aquele psicólogo ímpar não fora suficientemente vigilante. Em
psicologia não há efeitos sem causa e O’Mara devia pensar agora que ignorara
qualquer sinal de aviso, pequeno mas vital —uma palavra ligeiramente
incaracterística ou qualquer expressão ou reação nervosa — que o teria prevenido do
problema que se estava a criar com o Médico-Chefe Mannen.
O psicólogo recostou-se na cadeira e fitou Conway com um par de olhos cinzentos que
viam tanto e que se abriam para um espírito tão finamente analítico que, em
conjunto, davam a O’Mara o que correspondia a uma faculdade telepática. Ele disse:
— Sem dúvida que está a pensar que perdi o domínio da situação. Tem a certeza de
que o problema de Mannen é na essência psicológico e que há outra explicação além
da negligência para o que aconteceu. Pode concluir que a recente morte do cão dele
o levou a perder a cabeça, de dor, e outras ideias de natureza igualmente
complicada e ridícula podem ocorrer-lhe. Entretanto, em minha opinião, todo o tempo
despendido em investigar os aspetos psicológicos deste caso serão completamente
perdidos. O Doutor Mannen tem sido sujeito aos exames mais exaustivos, É
fisicamente são e tem tanto juízo como qualquer de nós. Pelo menos tem tanto como
eu...
— Continuo a dizer-lhe, doutor, que o meu trabalho é encolher cabeças e não inchá-
las. A sua missão, se lhe podemos dar esse nome, não é de modo algum oficial. Como
não há nenhuma desculpa para o erro de Mannen, pelo que diz respeito à saúde e ao
psicoperfil, preciso que procure qualquer outra razão... talvez qualquer influência
externa, de que o doutor não tenha consciência. O Doutor Prilicla observou o
incidente em questão e pode auxiliá-lo.
Conway saiu do gabinete, um pouco mal humorado. O’Mara andava sempre a atirar-lhe à
cara o seu suposto espírito peculiar, quando a simples verdade era a de que ele se
sentira tão acanhado quando entrara pela primeira vez no hospital, em particular
com as enfermeiras da sua própria espécie, que se sentira muito mais à vontade na
companhia dos extraterrestres. Já não era acanhado, mas ainda contava mais amigos
entre os estranhos e maravilhosos cidadãos de Traltha, Illensa e duas dezenas de
outros sistemas que entre seres da sua própria espécie. Isso podia ser peculiar — o
próprio Conway o admitia — mas para um médico vivendo num hospital multiambiental,
era uma grande vantagem.
Uma vez no corredor, Conway contactou Prilicla na enfermaria dele, verificou que o
pequeno empata estava livre e combinou uma reunião a realizar tão depressa quanto
possível no Piso Quarenta e Seis, onde estava situada a sala de operações dos
Hudlarianos. Depois ele devotou uma parte do seu espírito ao problema de Mannen
enquanto os outros o guiavam para o Quarenta e Seis e evitavam que ele fosse pisado
esmagado no caminho.
— Bom dia, amigo Conway — disse o pequeno empata enquanto saltava para o teto e ali
se segurava com as suas seis frágeis pernas com ventosas nas extremidades. Os
trinados e estalidos musicais da sua fala Cinrusskina foram recebidas pelo Tradutor
de Conway, transmitidas ao tremendo computador no centro do hospital e
retransmitidas ao seu auricular num inglês átono, despido de qualquer emoção. A
tremer ligeiramente, o Cinrusskino prosseguiu:— Sinto que precisa de ajuda, doutor.
— Sim, sem dúvida — disse Conway, com as suas palavras a passarem através do mesmo
processo de Tradução e a chegar a Prilicla num Cinrusskino igualmente átono. — É
sobre Mannen. Não tive tempo de lhe dar pormenores quando lhe falei...
Prilicla confirmou que não tinha importância. Mas o Cinrusskino era não só a
criatura mais agradável de todo o hospital mas também o maior mentiroso que lá
havia.
Ninguém queria magoar Prilicla de qualquer forma — gostavam muito dele para lhe
fazerem tal coisa. A faculdade empática de Prilicla fazia com que a pequena
criatura dissesse e fizesse sempre o que era correto para as pessoas — sendo uma
criatura sensível às emoções alheias, se procedesse de outro modo os sentimentos de
fúria ou tristeza que uma sua ação impensada pudesse inspirar faria ricochete e,
por assim dizer, iria bater-lhe na cara. Portanto o pequeno empata era obrigado
constantemente a mentir e a ser bondoso e considerado, para tomar a radiação
emocional das pessoas à sua volta tão agradáveis para ele próprio quanto possível.
— Não estou certo do que na verdade procuro, doutor. Mas se se recordar de qualquer
coisa invulgar sobre as acções ou emoções de Mannen, ou dos seus subordinados...
Com o seu frágil corpo a tremer com a memória da tempestade emocional que emanara
dois dias antes da sala de operações Hudlariana, agora vazia, Prilicla descreveu a
cena desde o princípio da operação. O pequeno GLNO não tomara a gravação de
fisiologia Hudlariana e portanto não fora capaz de acompanhar o processo com
qualquer comparticipação no estado do doente, que, de resto, estivera anestesiado e
quase não radiara. Mannen e os seus auxiliares tinham-se concentrado no seu
trabalho e só uma pequena parte dos seus espíritos ficara livre para pensar ou se
emocionar sobre qualquer outra coisa. Depois, o Médico-Chefe Mannen tivera o seu...
acidente. Aliás — e para dizer a verdade — tinham sido cinco acidentes separados e
distintos.
— L...Lamento muito!
O paciente fora parcialmente descomprimido para que o campo operativo pudesse ser
tratado de uma maneira mais eficiente. Havia nisso um certo perigo, considerando o
ritmo do pulso dos Hudlarianos e a pressão sanguínea, mas o próprio Mannen
imaginara o método e portanto era perfeitamente capaz de avaliar os seus riscos.
Como o paciente fora descomprimido ele tinha de trabalhar com rapidez, e a
princípio tudo pareceu correr bem. Abrira uma aba da couraça flexível que os
Hudlarianos possuíam, em lugar da pele, e estancara a hemorragia subcutânea. Fora
então que ocorrera o primeiro erro, seguido imediatamente por outros dois. Prilicla
não podia afirmar pela observação que tivessem sido verdadeiros erros, ainda que
houvessem hemorragias consideráveis — tinham sido as reações emocionais de Mannen,
das mais violentas que o empata alguma vez sentira, que lhe tinham mostrado que o
cirurgião cometera um erro muito sério e estúpido.
Os intervalos entre os outros dois que se haviam seguido tinham sido maiores — o
trabalho de Mannen tomara-se drasticamente mais lento, a sua técnica assemelhara-se
às primeiras tentativas desastradas de um estudante, longe de ser a de um dos mais
hábeis operadores do hospital. Tomara-se tão lento que a cirurgia curativa
resultara impossível e mal tivera tempo para desistir e fazer voltar a pressão ao
seu valor normal antes de o estado do doente se deteriorar até se tornar
irremediável.
Foi muito triste — disse Prilicla, sempre a tremer violentamente. — Ele queria
trabalhar depressa, mas os erros anteriores tinham destruído a confiança que ele
tinha em si próprio. Pensava duas vezes antes de fazer as coisas mais simples,
coisas que um cirurgião com a sua experiência teria feito automaticamente, sem
pensar.
— Houve mais qualquer coisa invulgar nas sensações dele? Ou nas dos assistentes?
— É difícil isolar variantes subtis de emoção quando a fonte está a irradiar... tão
violentamente. Mas recebi a impressão de que... o efeito é tão difícil de
descrever... qualquer coisa com um fraco eco emocional, de duração irregular...
— Talvez seja isso— disse Prilicla. A resposta, numa criatura que estava invariável
e entusiasticamente de acordo com tudo quanto se lhe dizia, situava-se tão perto de
uma negativa quanto era possível a um empata. Conway começou a sentir que talvez
estivesse a chegar a alguma coisa importante.
— E os outros?
Uma das enfermeiras quase tivera um acidente ao pegar num tabuleiro com
instrumentos. Um deles, um escalpelo Hudlar Tipo Seis, longo, usado para abrir a
couraça incrivelmente dura das criaturas daquela espécie, escorregara e caíra por
qualquer razão. Mesmo uma pequena ferida perfurante ou incisa era uma coisa muito
séria para um Kelgiano, de modo que a enfermeira Kelgiana apanhara um grande susto
ao ver aquela lâmina tão perigosa a cair sobre o seu flanco desprotegido. Mas,
fosse como fosse, ele batera de tal maneira — era difícil saber como, considerando
a sua forma e falta de equilíbrio — que não penetrara na sua pele nem sequer
danificara os seus pêlos. A Kelgiana sentira-se aliviada e agradecida pela sua boa
sorte, mas ficara um pouco perturbada, apesar de tudo.
Conway disse:
— A pessoa em questão era a Enfermeira-Chefe. Foi por isso que, quando a outra
enfermeira se enganou numa contagem de instrumentos (ou houve um a mais ou um a
menos) que o resultado foi um pouco abafado. E durante ambos os incidentes detetei
o efeito do eco irradiado por Mannen, ainda que nesse caso o eco viesse das
enfermeiras.
— Pode ser que isso signifique alguma coisa! — disse Conway, excitado. — As
enfermeiras tinham qualquer contacto físico com Mannen?
Prilicla respondeu:
— Estavam a assisti-lo, e toda a gente usava fatos de proteção. Não vejo como
qualquer forma de vida parasitária ou bactéria podia ter passado entre eles, se é
essa a ideia que o está a tomar tão excitado e esperançado neste momento. Lamento
muito, amigo Conway, mas esse efeito de eco, ainda que peculiar, não me parece
importante.
Sim — respondeu Prilicla. — Mas uma coisa que não tinha identidade própria, que não
era um indivíduo. Só um ligeiro eco emocional das sensações das pessoas
participantes.
Três pessoas tinham sofrido acidentes ou cometido erros naquela sala, dois dias
antes, e todas tinham irradiado um estranho eco emocional que Prilicla não
considerava importante. Conway pôs de parte a ideia de um desastrado, porque
métodos de triagem de O’Mara eram demasiado eficientes esse aspeto. Mas supondo que
Prilicla se enganara e alguma coisa entrara na sala ou no hospital, qualquer forma
de vida que fosse difícil de detetar e estivesse para além da sua experiência
presente... Era bem sabido que quando aconteciam coisas estranhas no Geral do
Sector, as razões eram, mais das vezes, encontradas fora do hospital. De momento,
no entanto, ele não tinha provas suficientes para formar sequer uma vaga teoria e a
primeira coisa que tinha a fazer era arranjar uma qualquer— mesmo pensando que
talvez não desse conta dela mesmo que tropeçasse nela com os dois pés.
Conway marcou o costume que era uma dose tripla de esparguete terrestre, e depois
olhou para Mannen.
— Tenho um FROB e uma besta MSVK em cima de mim — disse o outro chefe, por entre os
dentes. — Os Hudlarianos não são muito esquisitos com a comida, mas esses malditos
MSVK ofendem-se com tudo que não pareça alpista! Arranja-me qualquer coisa
nutritiva, mas não me digas o que é e mete tudo em três sanduíches, para eu não ver
o que é...
— O «jornal dos corredores» diz que vocês estão a tentar livrar-me deste sarilho
onde me meti. Muito obrigado, mas estão a perder o vosso tempo.
Conway descreveu o pouco que até então conseguira saber, tentando mostrar-se mais
esperançado do que na realidade estava, mas Mannen não era parvo.
— Agora é você que me diz que eu tenho um cérebro peculiar— observou Conway.
Conway repetiu:
Conway pensara no cão, mas era um grande covarde mental para confessar tal coisa.
Disse:
— Gostei desse cão quando eu era eu. Mas durante estes últimos quatro anos tenho
andado permanentemente com gravações MSVK e LSVD devido às minhas obrigações de
ensino e recentemente precisei das gravações Hudlarianas e Melfanianas para um
projeto em que Thornnastor me convidou a colaborar. Também as uso permanentemente.
Com o meu cérebro a pensar que sou cinco pessoas diferentes, cinco pessoas muito
diferentes... Bem, vocês sabem como é...
O Hospital estava preparado para tratar todas as formas de vida inteligente, mas
nem uma só pessoa podia manter no seu cérebro mais do que uma fração dos dados
fisiológicos necessários para esse fim. A destreza cirúrgica era uma questão de
capacidade e treino, mas o conhecimento completo fisiológico de qualquer paciente
era fornecido por meio de uma gravação do Educador, que era simplesmente o registo
cerebral de qualquer grande génio da medicina pertencente à mesma espécie, ou a uma
espécie semelhante, da do paciente a ser tratado. Se um médico humano-terrestre
tinha de tratar um paciente Kelgiano, tomava uma gravação de fisiologia DBLF e
mantinha-a até que o tratamento estivesse completo, depois do que ela era apagada.
As únicas exceções a essa regra eram os Médicos-Chefes com serviço de ensino e os
Diagnosticadores.
Mannen prosseguiu:
Dentro de poucos minutos ele podia deixar de ser uma besta feroz e peluda, disposta
a arrancar-me as penas da barriga, para se tomar num monte de pelos sem cérebro que
poderá ficar esmagado por um dos meus seis pés se não se desviar a tempo do meu
caminho, e, finalmente, parecer-me um cão perfeitamente igual a qualquer outro,
ansioso por brincar. Ultimamente. era já muito velho e tonto, e sinto-me mais
contente que triste por ele ter morrido.
Fez exatamente isso durante o resto da refeição, discutindo com aparente delícia
uma peça sumarenta de má-língua originária da secção SNLU das enfermarias de
meliana. Como podia ocorrer qualquer coisa de escandaloso entre duas formas de vida
inteligentes, cristalinas, vivendo a menos cento e cinquenta graus centígrados, era
uma coisa que perturbava Conway, assim como o facto de as suas limitações morais
serem de tamanho interesse para um respirador de oxigénio de sangue quente. A menos
que fosse uma das razões por que o Médico-Chefe Mannen estava tão perto de vir a
ser um Diagnosticador.
Ou estivera.
Segundos depois os lugares deles na mesa foram ocupados por três Kelgianos que
dobraram os seus corpos longos, prateados, semelhantes aos de lagartas, sobre as
costas das cadeiras ELNT, de modo que os seus manipuladores dianteiros ficassem
suspensos sobre a mesa a uma distância confortável para comerem. Um deles era
Naydrad, a Enfermeira-Chefe do pessoal assistente de Mannen. Conway despediu-se dos
seus amigos e voltou apressadamente para a mesa.
— Gostaria de responder, mas é uma pergunta invulgar. Pelo menos, implica uma
quebra total da confidência...
«Os erros cometidos por uma pessoa responsável são mais notáveis e sérios que os de
um subordinado, mas se esses erros foram cometidos por um agente exterior eles não
devem ficar confinados ao pessoal superior, e é por isso que precisamos de dados.
Há sempre possibilidade de serem cometidos erros, em particular entre o pessoal em
treino; todos nós sabemos disso. O que devemos saber é se houve qualquer aumento
local ou geral no número desses erros menores e, se assim exatamente onde e quando
eles ocorreram.»
Conway quase se sentiu sufocado perante a ideia de qualquer coisa poder ser
confidencial naquele lugar, mas, felizmente, o sarcasmo foi afastado da sua voz
pelo Tradutor.
— Quanto mais pessoas reúnam dados sobre isto, melhor será — disse ele. — Limitem-
se a fazer uso da vossa discrição...
Poucos momentos depois estava a outra mesa, dizendo mais ou menos a mesma coisa, e
depois a outra e ainda a outra. Naquele dia regressaria atrasado às suas
enfermarias, mas felizmente tinha bons assistentes — do tipo dos que adoravam ter
uma oportunidade de demonstrarem o que podiam fazer sem ele.
Durante o resto do dia não houve muitas respostas, nem ele esperara muitas, mas no
dia seguinte enfermeiros de todos os feitios e espécies começaram a dirigir-se a
ele, muito em segredo, para lhe contarem incidentes que, invariavelmente, tinham
acontecido a terceiras pessoas. Conway anotou cuidadosamente as horas e os lugares,
não mostrando curiosidade em tudo que se referia às identidades das pessoas a que
eles diziam respeito. Depois, na manhã do terceiro dia, Mannen procurou-o durante
as suas rondas.
— Você está de facto a trabalhar nessa coisa, não está, Conway? — disse Mannen numa
voz rouca. Depois acrescentou: — Estou muito grato. A lealdade é muito bela, mesmo
quando errada. Mas gostaria que parasse com isso. Vai a caminho de grandes
problemas.
Conway respondeu:
— Isso é o que pensa —disse Mannen, a custo.— Venho do gabinete de O’Mara. Ele quer
vê-lo. Imediatamente.
Poucos minutos depois Conway era mandado entrar no gabinete de O’Mara por um dos
assistentes dele, que tentava avisá-lo com as sobrancelhas ao mesmo tempo que
exprimia a sua comiseração baixando os cantos da boca. A combinação mostrava-se tão
ridícula que Conway, antes que desse por isso, viu-se com um sorriso estúpido no
rosto, a olhar para O’Mara.
— Que demónio quer você dizer com essa ideia de infestar o hospital com uma
inteligência incorpórea?
O’Mara parou para readquirir o fôlego, e, quando continuou, o seu tom tornara-se
calmo e quase cortês. Disse:
— Não creio que você esteja a brincar com ninguém. Reduzido a termos simples você
espera que se forem cometidos bastantes erros, os do seu amigo passem relativamente
despercebidos. E deixe de abrir e fechar a boca; a sua vez pode chegar! Um dos
aspetos de toda esta situação que realmente me preocupa é o de que compartilho a
responsabilidade consigo porque lhe entreguei um problema insolúvel, à espera de
que você o atacasse segundo um ângulo diferente... um ângulo que pudesse conduzir a
uma solução pardal, bastante para tirar o nosso amigo do aperto. Em vez disso, você
criou um problema novo e talvez pior!
— Estou a ver isso —disse O’Mara com uma suavidade que não era habitual nele. — E
agora diga-me porque fez isso. Sim, doutor?
Conway demorou um pouco a responder. Não era a primeira vez que ele deixava o
gabinete do Psicólogo Chefe com o seu ego um tanto ou quanto crestado, mas daquela
vez ele parecia sério. A opinião geralmente sustentada era a de que, quando O’Mara
não estava indevidamente preocupado, ou, em certos casos, quando ele gostava
verdadeiramente de um indivíduo, o psicólogo se sentia capaz de se pôr vontade com
eles e ser mal humorado e intolerável, mas quando O’Mara se tomava calmo e cortês e
de modo algum sarcástico, quando ele começava a tratar uma pessoa como um paciente
e não como um colega, essa pessoa estava metida em problemas até ao pescoço.
— A princípio foi somente uma história para explicar porque eu estava a ser
intrometido. As enfermeiras não contam histórias e podia parecer que eu procurava
fazê-las falar. Tudo quanto fiz foi sugerir que o Doutor Mannen estava são sob
todos os casos, fora da ação de agentes físicos, e as bactérias, parasitas e outras
coisas extraterrestres foram postas de parte por causa do cuidado dos nossos
processos antissépticos. Como nos tinha assegurado da boa condição mental dele, eu
pensei na hipótese de... uma causa exterior, imaterial, que fosse ou talvez não
fosse dirigida conscientemente.
«Não consegui ainda definir uma teoria digna desse nome» — acrescentou
apressadamente Conway. —Nem falei de inteligências incorpóreas a ninguém, mas
aconteceram coisas estranhas nessa sala de operações, e não apenas enquanto Mannen
lá trabalhou...
—... Até agora ainda não há um número bastante para ter significado casuístico —
prosseguiu Conway. — No entanto, são bastantes para me tomarem curioso. Dar-lhe-ia
os nomes das pessoas afetadas se não tivesse jurado mantê-los confidenciais, porque
penso que o senhor poderia estar interessado na maneira como eles descrevem alguns
desses incidentes.
— Por outro lado, posso não querer dar o meu apoio profissional a um produto da sua
imaginação, investigando tais trivialidades. Quanto aos quase-acidentes com
escalpelos e aos outros erros, é minha opinião que certas pessoas têm sorte, outras
são por vezes um pouco estúpidas, enquanto outras ainda gostam de passar rasteiras.
Está bem, doutor?
— O escalpelo que caiu era um FROB Tipo Seis, um instrumento muito pesado e
desequilibrado. Mesmo que ele batesse com o cabo, devia ter penetrado no flanco de
Naydrad alguns centímetros para além do ponto de impacte, causando ferimento
profundo e sério... mesmo que a lâmina não existisse! Foi por isso que eu comecei a
duvidar. E é por isso que penso que devemos alargar o âmbito desta investigação.
Autoriza-me que fale com o Coronel Skempton e, se necessário, contacte com o
pessoal de fiscalização do Corpo para verificar as origens das últimas pessoas que
chegaram ao hospital?
A explosão esperada não ocorreu. Em vez disso, a voz de O’Mara soou quase
concordante, quando ele disse:
— Não posso concluir se você está honestamente convencido de que descobriu alguma
coisa ou se foi muito longe para poder recuar sem se mostrar ridículo. Pelo que me
diz respeito, você não pode parecer mais ridículo do que está a ser neste momento.
Não deve ter medo de confessar que se enganou, e começar a reparar alguns dos danos
que a sua irresponsabilidade causou na indisciplina.
— Muito bem, doutor. Vá falar com o Coronel. E diga a Prilicla que vou dar-lhe
outro horário de trabalho... pode ser que ele lhe seja útil como detetor de ecos
emocionais. Como insiste em fazer figura de parvo, ao menos que a faça bem feita.
Depois... bem, teria muita pena de ver Mannen ir-se embora, e creio que posso dizer
honestamente o mesmo de si. É provável que partam na mesma nave...
O próprio Mannen acusara Conway de uma lealdade mal orientada e O'Mara acabara de
sugerir que a sua posição presente era o resultado de não querer confessar que
errara. Tinha-lhe sido oferecida uma saída e ele recusara-a. Agora começava a
pensar em servir num pequeno hospital multiambiental, ou mesmo num estabelecimento
planetário, onde a chegada de um paciente extraterrestre devia ser considerada como
um grande acontecimento. Isso provocava-lhe uma sensação desagradável na área
abdominal. Talvez ele estivesse a basear a sua teoria em poucas provas e não
quisesse confessar isso a si próprio. Talvez os estranhos erros fizessem parte de
um enigma completamente diferente, sem ligação qualquer com o problema de Mannen.
Enquanto seguia pelos corredores, desviando-se ou fazendo desviar os outros a
intervalos de poucos metros, nasceu nele um impulso para voltar para junto de
O’Mara, dizer que sim a tudo, pedir abjetamente desculpa e prometer voltar a ser um
bom menino. Mas quando se sentiu disposto a ceder já estava junto da porta do
Coronel Skempton.
O Geral do Sector era abastecido e numa grande extensão mantido pelo Corpo de
Monitores, que era o braço executivo e defensor da lei da Federação. Sendo o
oficial mais graduado do Corpo, no hospital, o Coronel Skempton tratava do tráfego
para e do hospital, além de uma horda de pormenores administrativos. Dizia-se que o
cimo da sua secretária não estava visível desde o dia em que ela chegara. Quando
Conway entrou, ele olhou para cima e disse:
— Bom dia — Olhou para baixo, para a secretária, e acrescentou:— Dez minutos...
Demorou muito mais que dez minutos. Conway estava interessado no tráfego de origens
estranhas, ou naves que tivessem passado por lugares igualmente estranhos. Queria
dados sobre o nível de tecnologia, ciência médica e classificação fisiológica dos
seus habitantes — em especial se as ciências psicológicas ou parapsicológicas
estavam bem desenvolvidas ou se a incidência das doenças mentais era anormalmente
alta. Skempton começou a escavar entre os papéis que cobriam a sua secretária.
— Um paciente! — quase gritou Conway quando o Coronel chegou a esse ponto. Skempton
não precisava da faculdade empática para saber o que ele estava a pensar.
— Sim, doutor, mas não leve longe as suas esperanças — disse o Coronel — Ele tinha
apenas uma perna partida. E, apesar do facto de os bicharocos extraterrestres não
poderem viver em criaturas de outras espécies, um facto que simplifica
fantasticamente a prática da medicina extraterrestre, os médicos das naves andam
constantemente a procura da exceção que possa provar a regra. Em poucas palavras,
ele sofria apenas de uma perna partida.
Mas o encontro com o Tenente Harrison teve de esperar até tarde, porque o horário
de Prilicla demorou a ser modificado e o próprio Conway tinha outras coisas a
lazer, além da busca de inteligências hipoteticamente incorpóreas. A demora. no
entanto, foi afortunada porque havia muito mais informações disponíveis para ele,
reunidas durante as rondas e as refeições, mesmo pensando que os dados eram tais
que ele não sabia o que fazer com eles.
—... É ridículo! — protestou Conway. — Mesmo que eu não acreditasse seriamente numa
inteligência incorpórea... seria apenas uma hipótese. Não sou tão estúpido como
isso!
— Concordo.
Conway teria preferido quaisquer objecções construtivas, de modo que não falou
senão quando chegou ao 283-Quatro. Era uma pequena enfermaria particular, junto de
um grande compartimento extraterrestre, e o Tenente parecia contente por os ver.
Mas Prilicla disse que ele se sentia aborrecido.
— À parte uma avaria estrutural temporária, parece que você está em muito bom
estado, Tenente — começou Conway a dizer, para o caso de Harrison estar preocupado
pela presença de dois Médicos-Chefes junto do seu leito. — O que gostaríamos de
saber é a cadeia de acontecimentos que conduziu ao seu acidente. Se não se
importar, bem entendido.
— De maneira nenhuma — disse o Tenente. — Por onde quer que eu comece? Com a
descida ou antes disso?
— Talvez seja melhor dizer-nos primeiro qualquer coisa sobre o planeta — sugeriu
Conway.
Os oceanos eram uma espécie de sopa espessa e viva, e as suas partes terrestres
estavam quase completamente cobertas por tapetes de vida animal, que se moviam
lentamente. Em muitas áreas havia excrescências de minérios e solo que suportavam
vida vegetal, enquanto outras formas de vegetação cresciam na água, no fundo do mar
ou lançavam raízes na própria superfície orgânica. Mas a maior parte da superfície
terrestre estava coberta por uma camada de vida animal que em alguns lugares tinha
oitocentos metros de espessura.
A segunda possibilidade poderia ser uma forma de vida bastante pequena, de pele
lisa, flexível, e suficientemente rápida para poder viver dentro ou entre as
criaturas dos estratos e evitar os processos ingestivos dessas criaturas, cujos
movimentos e metabolismo eram lentos. Os seus locais de abrigo, que deviam ser
suficientemente seguros para proteger os seus filhotes e permitir o desenvolvimento
da sua cultura e ciência, encontravam-se provavelmente em caves, ou sistemas de
túneis, na rocha subjacente.
Se qualquer dessas formas de vida existisse no planeta, era improvável que ela
possuísse uma tecnologia avançada. Certamente que era impossível a existência de
tipos grandes e complexos de maquinaria industrial naquele mundo arquejante. As
ferramentas, se tinham conseguido criar algumas, teriam de ser pequenas, manuais e
não especializadas, mas o mais provável era que a sua sociedade fosse muito
primitiva, sem raízes.
O comandante escolhera uma área formada por material espesso, seco, coriáceo. O
material parecia morto e insensível, de modo que o jato da cauda da nave não devia
causar dor a qualquer vida na área, inteligente ou de outro tipo. Tinha descido sem
incidente e durante talvez dez minutos nada acontecera. Depois, a pouco e pouco, a
superfície coriácea por baixo deles começou a afundar-se. embora lentamente e de
maneira tão igual que os giroscópios da nave não tiveram dificuldade em mantê-lo
nivelado. Viram-se primeiro numa pequena cova e depois numa cratera de paredes
baixas. Os bordos da cratera dobraram-se para eles, exercendo pressão sobre as
pernas do trem de pouso. As pernas tinham sido concebidas para se retraírem
telescopicamente, e não para se dobrarem para o centro da nave. O mecanismo de
extensão e os alojamentos das pernas começaram a ceder, com um ruído semelhante ao
de alguém que rasgasse metal em bocadinhos.
Depois, alguém ou alguma coisa começou a atirar rochas. Para Harrison, quase
parecera que a Descartes se situava sobre um vulcão em erupção. O barulho fora
incrível, ao ponto de a única maneira de transmitir ordens ser através dos rádios
dos fatos espaciais, com o volume no máximo. Harrison ordenara uma rápida
investigação das avarias na popa, antes de subir de novo...
Harrison parou nesse ponto, como que para esclarecer qualquer coisa no seu
espírito. Disse com todo o cuidado:
— Compreendem que não havia qualquer perigo nisso, íamos subir a 1,5 G porque não
tínhamos a certeza de que a cratera fosse uma manifestação de inteligência, mesmo
hostil, ou o movimento involuntário de qualquer monstro enorme e sujo a fechar a
boca, portanto quisemos evitar destruições desnecessárias na área. Se eu me pudesse
agarrar a um par de suportes e tivesse qualquer coisa onde apoiar os pés, tudo
estaria bem. Mas os fatos espaciais de longa permanência embaraçam os movimentos e
cinco segundos não são muito tempo. Tinha dois bons lugares onde me agarrar e
estava a procurar um lugar onde pudesse firmar os pés. Depois vi-o e até senti a
minha bota tocá-lo, mas... mas...
— Você estava perturbado e calculou mal a distância — disse Conway, em voz baixa.—
Ou talvez tivesse simplesmente imaginado que havia um apoio.
— Talvez eu imaginasse que ele estava lá. De qualquer maneira, não estava e eu caí.
A perna do trem de pouso, do meu lado, foi arrancada durante a largada e os
destroços do seu alojamento encheram de tal modo o espaço entre os revestimentos
que eu não pude sair. Os cabos de comando da sala das máquinas passavam demasiado
perto de mim para que eu me pudesse arriscar a abrir uma passagem, e o nosso médico
disse que seria melhor vir aqui e deixar que o vosso pessoal de serviço pesado
abrisse caminho. De qualquer modo tinhamos de trazer as amostras.
— Não era necessário... Eu tinha dores, apesar da medicação do fato, e isso devia
ser desagradável para um empata. Ninguém se podia aproximar muito de mim...
O Tenente fez uma pausa, e depois, no tom de alguém que deseja mudar de assunto,
disse:
Conway sorriu.
— Coisas que até excedem a nossa imaginação — disse ele. — De momento estou a fazer
o possível para não pensar nos problemas médicos que poderiam existir num monstro
com o tamanho de um subcontinente. Mas voltemos à realidade. Tenente Harrison,
estamos ambos muito agradecidos pela informação que nos deu, e esperamos que não se
importe se voltarmos...
— Entro de serviço daqui a duas horas e não terei qualquer tempo livre durante as
outras seis — disse ela, a bocejar.— E normalmente não passo o tempo a fazer de
Mata-Hari aos pacientes solitários. Mas se esse tem informações que possam auxiliar
o Doutor Mannen, não me importarei de maneira nenhuma. Farei tudo por esse homem.
— E por mim?
— Qualquer coisa conseguiu entrar nessa nave. Harrison sofreu o mesmo tipo de
alucinação simples ou confusão mental que o pessoal da sala de operações sentiu.
Mas eu continuo a pensar nesse rombo no revestimento da nave... uma inteligência
incorpórea não teria necessidade de um buraco para entrar. E essas pedras a baterem
na popa. Suponhamos que era apenas um efeito secundário de uma influência maior,
imaterial... uma perturbação análoga ao fenómeno do poltergeísmo. Onde é que isso
nos leva?
Conway disse:
Mas foi o Psicólogo-Chefe quem falou de início, sem deixar que mais ninguém
dissesse uma palavra. Mannen acabara de sair do seu gabinete depois de dizer a
O’Mara que o estado do doente Hudlariano se deteriorara subitamente, necessitando
de uma segunda operação não mais tarde que o meio-dia seguinte. O Médico-Chefe
dissera, sem rodeios, que não tinha quaisquer esperanças quanto à sobrevivência do
doente, mas que as poucas possibilidades que havia podiam ser um pouco aumentadas
se eles operassem rapidamente.
O’Mara concluiu:
— Isso não lhe dá muito tempo para provar a sua teoria, Conway. Agora, que quer
dizer-me?
As notícias sobre Mannen tinham perturbado tremendamente Conway, de modo que ele
estava terrivelmente consciente de que o seu relatório sobre o incidente de
Meatball e as suas ideias quanto a ele pareciam fracas e incoerentes — o que era o
pior, quanto ao que dizia respeito a O’Mara. O psicólogo tinha pouca paciência para
com as pessoas que não pensavam claramente e diziam exatamente o que pretendiam.
— e tudo isto é tão peculiar — concluiu ele embaraçado —, que estou quase
convencido de que o caso de Meatbail não tem nada que ver com o problema de Mannen,
mas...
— Conway!— disse O’Mara, num tom seco.— Você está a falar em círculos! Deve
compreender que se dois acontecimentos peculiares ocorrem com uma tão pequena
separação no tempo, então existe uma alta probabilidade de que tenham uma causa
comum. Não me importo muito de que a sua teoria seja absolutamente ridícula... pelo
menos você chegou até ela por uma forma tortuosa de lógica, mas importo-me de que
você tenha deixado inteiramente de pensar! Estar errado, doutor, é infinitamente
preferível a ser estúpido!!
Durante alguns segundos, Conway fungou pesadamente, tentando dominar a sua cólera
antes de responder. Mas O’Mara poupou-o a dificuldades cortando a ligação.
— Ele não foi muito cortês para si, amigo Conway — disse Prilicla.— No fim ele
pareceu muito mal-humorado, É um progresso significativo sobre os sentimentos dele,
esta manhã...
A pior parte do problema era que eles não sabiam exatamente para onde deviam olhar,
e agora o tempo de busca fora reduzido a metade. Tudo quanto podiam fazer era
continuar a reunir informações e esperar que qualquer coisa pudesse emergir
daquilo. Mas até as perguntas pareciam disparatadas — variações de «Você esqueceu-
se de fazer alguma coisa nos últimos dias em condições que o pudessem levar a
suspeitar que qualquer coisa esteja a influenciar o seu espírito?» Eram mal
redigidas, tontas e quase insensatas, mas continuaram a fazê-las até que as pernas
de Prilicla, finas como lápis, começaram a tomar-se como borracha, devido à fadiga
— o vigor do empata ara quase igual à sua força, que não era praticamente nenhuma —
e ele teve de se retirar. Conway continuou teimosamente a fazer perguntas,
sentindo-se cada vez mais fatigado, furioso e estúpido.
Depois das suas rondas, Conway almoçou cedo, com Mannen e Prilicla, e acompanhou o
doutor ao gabinete de O’Mara enquanto o empata se dirigia para a sala de operações
para fiscalizar a radiação emocional do pessoal durante os seus preparativos. O
Psicólogo-Chefe parecia um pouco fatigado, o que era invulgar, e algo resmungão, o
que era um bom sinal.
Não senhor; apenas serei um observador — respondeu Conway.— Mas dentro da sala. Se
algo estranho acontecer... quero dizer, se a gravação Hudlariana me confundir e eu
quiser estar tão alerta quanto possível...
— Alerta, diz ele. — O tom de O’Mara era escaldante.— Você parece estar a dormir em
pé. — Dirigindo-se a Mannen disse: — Você ficará aliviado se souber que eu, também,
começo a suspeitar que está a acontecer qualquer coisa estranha, e desta vez
estarei a ver tudo lá de cima. Se quiser deitar-se nesse sofá, Mannen, dar-lhe-ei
pessoalmente a gravação Hudlariana...
Mannen disse:
— Tenho trabalhado com empatas e telepatas. Os empatas recebem as emoções mas não
as projetam. Os telepatas só podem comunicar com outros telepatas das suas próprias
espécies; de vez em quando têm tentado comunicar comigo, mas apenas têm conseguido
fazer-me uma espécie de comichão mental. Mas naquele dia na sala de operações eu
tinha o domínio completo de mim próprio; estou absolutamente certo disso! No
entanto vocês todos querem convencer-me de que qualquer coisa insubstancial,
invisível e indetetável influenciou a minha maneira de julgar as coisas. Seria
muito mais simples se vocês confessassem que essa coisa que procuram é também
inexistente, mas vocês...
Duas horas depois, estavam na sala de operações. Mannen usava um fato pesado e
Conway um mais ligeiro, em que a proteção dependia apenas dos seus neutralizadores
gravitacionais. As placas-G colocadas sob o pavimento foram reguladas para uma
atração de 5 G, a normal em Hudlar, mas a pressão era apenas um pouco maior que a
normal na Terra — os Hudlarianos não eram muito perturbados pelas baixas pressões e
podiam, na verdade, trabalhar sem proteção no vácuo do espaço. Mas se alguma coisa
resultasse desastrosamente errada e o paciente necessitasse uma pressão igual à do
seu planeta de origem, Conway teria de sair dali o mais depressa possível. Conway
tinha uma ligação direta com Prilicla e O’Mara, na cúpula de observação, e outra,
inteiramente separada, com Mannen e o pessoal operatório.
— O quê?
O’Mara resmungou:
— Apesar do que eu disse a Mannen no meu gabinete, continua a não existir qualquer
prova real de que esteja a acontecer qualquer coisa anormal. Aquilo que eu disse
destinava-se ajudar o doutor e o doente, fortalecendo a confiança de Mannen em si
próprio... mas não consegui o meu objetivo. Portanto será melhor para Mannen e
também para si que esse homenzinho apareça.
O paciente foi trazido nesse momento e transferido para mesa. As mãos de Mannen,
projetando-se dos pesados braços do escafandro, estavam envolvidas apenas por uma
película de plástico transparente, mas se fosse necessária toda a pressão de Hudlar
ele poderia calçar luvas pesadas em poucos segundos. Mas abrir um Hudlariano
naquelas condições produziria uma súbita descompressão, e todos os procedimentos
consequentemente tinham de ser realizados rapidamente.
Conway viu-o fazer uma incisão triangular no tegumento incrivelmente duro e prender
o pedaço de pele. Imediatamente um cone invertido de neblina amarela surgiu por
cima do campo operatório — uma fina névoa de sangue sob pressão, escapar-se das
capilares cortadas. Uma enfermeira interpôs rapidamente uma folha de plástico entre
a abertura e o visor de Mannen enquanto outra colocava em posição o espelho que lhe
daria uma vista indireta da operação. Em quatro minutos e meio ele dominara a
hemorragia. Devia tê-lo feito em dois.
— Da primeira vez foi mais rápido do que isto. Sabe como é, eu estava a pensar com
dois ou três movimentos de avanço. Mas notei que estava a fazer incisões agora que
não devia ter feito senão alguns segundos depois. Se isso tivesse acontecido uma
vez já teria sido muito mau, mas cinco vezes...! Tive de me retirar porque teria
morto o paciente.
Mannen prosseguiu:
— É apenas um pequeno tumor. Tão próximo da superfície que se pode considerar uma
maravilha para uma primeira tentativa de cirurgia Hudlariana. Tratar-se-ia
simplesmente de cortar o tumor, encapsular os três vasos sanguíneos cortados na
área com tubo plástico e a pressão sanguínea do paciente e os nossos grampos
especiais deveriam vedar tudo perfeitamente até que as veias se regenerassem, em
poucos meses. Mas isto...! Já viram uma porcaria destas?!...
Mais de metade do tumor, uma massa esponjosa e acinzentada que parecia ser mais que
metade vegetal, mantinha-se em posição. Cinco dos principais vasos sanguíneos na
região tinham sido cortados — dois por necessidade, o resto por «acidente»— e
encapsulados. Mas esses troços de veias artificiais ou eram demasiado curtos ou
tinham sido insuficientemente apertados — ou talvez o movimento do coração tivesse
arrancado um dos vasos parcialmente do seu tubo. A única coisa que salvara a vida
do doente fora a insistência de Mannen em que ele não fosse deixado recuperar a
consciência desde a primeira operação. O mais ligeiro esforço físico teria
arrancado um dos vasos do respetivo tubo, causando uma tremenda hemorragia interna
e com o tremendo ritmo de pulsação e a pressão da espécie Hudlariana, a morte
ocorreria dentro de poucos minutos.
— É pouco provável que exista uma tecnologia complexa em Meathball, mas há uma boa
possibilidade de estarem bem adiantados em ciências filosóficas. Se qualquer coisa
física entrou a bordo da Descartes, tem por certo uma massa inferior ao limite da
de uma criatura inteligente...
— Se quer fazer perguntas a alguém, doutor, posso fazer um pouco de pressão, mas
não há muito tempo — disse O’Mara, calmamente.
— Ela está com Harrison neste momento — disse Conway. Preciso de estabelecer uma
ligação física entre o tenente e esta sala, mesmo pensando que ele nunca esteve a
menos de cinquenta pisos deste lugar. Quer fazer o favor de dizer a ela para lhe
perguntar...
Era uma pergunta comprida, complicada, com muitos aspetos, concebida para lhe
indicar como uma forma de vida pequena e inteligente pudera chegar àquela área sem
deteção. Era também uma pergunta estúpida porque qualquer inteligência que afetasse
os espíritos dos humanos terrestres e dos extraterrestres simultaneamente não podia
manter-se sem deteção, vista a presença de um empata como Prilicla. O que levava de
novo ao ponto de onde ele partira: àquela coisa imaterial que recusava, ou era
incapaz, de se mover para além das cercanias da sala de operações.
— Harrison disse que teve muitas alucinações durante a viagem de regresso. Disse
que o médico da nave considerou isso normal, em face das drogas que ele absorvera.
Diz também que tinha perdido por completo a consciência, antes de chegar aqui e não
sabe como ou onde entrou aqui. Agora creio que será melhor entrarmos em contacto
com a Receção, doutor. Vou ligá-lo, não se dê o caso de eu fazer perguntas
erradas...
Segundos depois, uma voz átona, lenta, traduzida, que podia pertencer a qualquer
espécie de criatura, disse:
O Tenente Harrison não foi recebido da maneira habitual. Como era um homem do Corpo
e a sua história médica era conhecida em pormenor, foi admitido na Escotilha de
Serviço Quinze, a cargo do Major Edwards...
Edwards não estava presente, mas do gabinete dele disseram a O’Mara que ele não
tardaria a aparecer.
Perto dele, Mannen fizera sinal para que uma enfermeira se mantivesse junto do
regulador de pressão. Um súbito regresso à pressão normal do Hudlar diminuiria a
violência de qualquer hemorragia que pudesse ocorrer, mas tornaria também
impossível a Mannen operar sem luvas pesadas. Não só isso: o aumento de pressão
teria obrigado o campo operatório a abater-se dentro da abertura, onde o movimento
transmitido do coração próximo tornaria impossível fazer trabalhos delicados.
Naquele momento, apesar do perigo de uma incisão errada, o complexo dos vasos
sanguíneos estava distendido, separado e relativamente imóvel.
Mannen recuou ligeiramente enquanto o campo operatório era aspirado até ficar
limpo. Através do visor os olhos dele brilhavam estranhamente na máscara branca e
suada que era o seu rosto. O tempo era importante agora. Os Hudlarianos eram duros,
mas havia limites — eles não podiam suportar indefinidamente a descompressão. Havia
um movimento gradual do fluido do corpo para a abertura no tegumento, uma tensão
nos órgãos vitais na vizinhança e um aumento correspondente na pressão sanguínea.
Para obter êxito, a operação não poderia durar mais de trinta minutos, e mais de
metade desse tempo tinha sido gasto na abertura do local onde estava o mal. Mesmo
que o tumor fosse retirado, a sua extirpação implicaria danos para os vasos
subjacentes, que teriam de ser reparados com grande cuidado antes de Mannen se
retirar.
Todos sabiam que a velocidade era essencial, mas para Conway pareceu subitamente
que eles estavam a ver um filme cuja passagem tivesse sido subitamente acelerada.
As mãos de Mannen moviam-se mais depressa do que Conway alguma vez vira. E cada vez
mais depressa...
— Não gosto disto — disse O’Mara, numa voz rouca.— Parece que ele está a recuperar
a confiança, mas é mais provável que tenha deixado de se preocupar... quanto a si
próprio. Continua preocupado com o paciente, sem dúvida, mesmo pensando que não há
muitas esperanças quanto a ele. E o que é trágico é que ele nunca deu motivo para
muitas esperanças, segundo Thornnastor me disse. Se não fosse a interferência do
seu hipotético amigo, Mannen nunca se teria preocupado tanto com a possibilidade de
perder o paciente… teria sido uma das suas muito poucas falhas. Quando ele cometeu
aquele seu primeiro deslize, perdeu a confiança em si próprio e agora...
— Houve qualquer coisa que o fez escorregar — disse Conway, com firmeza.
— Fale, Conway —disse o psicólogo. — Faça você as perguntas. Neste momento tenho
mais em que pensar.
O tumor esponjoso tinha sido levantado, mas um grande número de pequenos vasos
havia sido cortado para conseguir isso e o trabalho da reparação deles seria muito
mais difícil que qualquer coisa acontecida antes. Insinuar as pontas cortadas nos
tubos, o bastante para que não saltassem quando a circulação fosse restaurada, era
um processo difícil, repetitivo, castigador dos nervos.
— Pode haver ainda qualquer espécie de portador. Major — disse rapidamente Conway.—
Até que ponto levou a descon...
A seu lado Mannen parara. As mãos do cirurgião tremiam e ele dizia desesperado:
— Preciso de oito pares de mãos, ou instrumentos, que possam fazer oito operações
diferentes ao mesmo tempo. Isto não vai bem, Conway. De maneira nenhuma...
— Não faça nada durante um momento Doutor — disse apressadamente Conway, depois do
que começou a gritar ordens para as enfermeiras, a fim de que desfilassem perante
ele com os tabuleiros dos instrumentos. O’Mara começou a gritar que queria saber o
que estava a acontecer, mas Conway estava demasiado concentrado para lhe responder.
Depois uma das enfermeiras Kelgianas fez um ruído igual ao de uma buzina de
nevoeiro —o que para uma DBLF equivalia a um grito de surpresa — porque aparecera
subitamente uma chave de caixas de tamanho médio, entre os fórcipes do seu
tabuleiro.
— Não acreditará no que lhe vou dizer — disse Conway, alegremente, enquanto
transportava a... coisa... para junto de Mannen e a colocou nas mãos do cirurgião.
— Mas se me escutar por um momento e depois fizer o que lhe vou dizer...
Hesitante a princípio, mas com uma confiança e uma velocidade crescentes, voltou à
sua delicada tarefa de reparação. De vez em quando assobiava através dos dentes ou
praguejava fortemente, mas esse era o comportamento normal de Mannen durante uma
operação difícil que prometia decorrer bem. Na cúpula de observação, Conway podia
ver o rosto felizmente carrancudo, estupefacto do Psicólogo-Chefe, e o corpo frágil
e fino do empata. Prilicla continuava a tremer, mas muito lentamente. Era um tipo
de reação não muitas vezes visto num Cinrusskino fora do planeta nativo, indicando
uma fonte de radiação próxima que era intensa e inteiramente agradável.
Depois da operação, todos quiseram interrogar Harrison sobre Meatball, mas antes
que o pudessem fazer, Conway teve de explicar de novo ao tenente o que acontecera.
— E ainda que não tenhamos ideia da aparência deles, sabemos que são muito
inteligentes e, à sua maneira, tecnicamente avançados. Quero dizer com isso que
eles fazem e usam ferramentas...
— Sem dúvida — disse Mannen, e aquilo que ele tinha na mão tornou-se numa esfera
metálica, num busto de Beethoven, em miniatura, e num jogo de dentaduras
Tralthanas. Como se tornara evidente que o Hudlariano iria ser outro dos sucessos
de Mannen, em vez de um malogro, ele começara a recuperar o seu sentido de humor.
— Daria o meu braço direito, por um — disse Mannen, e depois acrescentou, a sorrir.
— A minha perna direita, aliás...
— Pelo que me recordo do lugar, doutor, não há por lá falta de carne crua.
— Normalmente não sou um homem ambicioso. Mas consideremos as coisas que este
hospital poderia fazer com dez desses aparelhos, ou mesmo com cinco... Tivemos uma
e, se estamos a fazer o que é devido, voltaremos a colocá-la onde a encontrámos...
é evidente que uma ferramenta como esta tem um valor enorme. Isso significa que
teremos de as comprar ou de fazer qualquer espécie de troca com eles, e para fazer
isso teremos de aprender a comunicar com os seus proprietários.
VERTIGEM
COMO era talvez inevitável, quando a indicação de vida inteligente, havia tanto
tempo aguardada, apareceu finalmente, a maioria dos observadores da nave estavam a
olhar para qualquer outra parte, de modo que ela não foi vista nas baterias de
telescópios que estavam a ser apontadas para a superfície ou nas películas fixas ou
cinematográficas que tinham sido impressionadas pelas sondas planetárias da
Descartes, mas sim nos visores de aproximação final da nave.
— Comunicações?
— Apanhámo-lo, senhor — foi a resposta. — Um telescópio apontado segundo a
localização do radar... a imagem está no seu visor repetidor Cinco, É um veículo de
propulsão química, de dois ou três andares, e o segundo andar ainda está a
funcionar. Isso significa que podemos reconstruir a sua trajetória de lançamento e
determinar o local de partida com uma precisão razoável. Está a emitir sinais
complexos de radiofrequência, indicadores de canais de telemetria de alta
velocidade. O segundo andar apagou-se agora e está a cair. O terceiro, se é um
terceiro, não teve ignição... Está a ter problemas!
A nave alienígena, um cilindro fino, brilhante, com uma ponta cónica de um lado e o
outro extremo com maior diâmetro e rombo, começara a trambolhar.
—Para além do trambolhar — disse uma voz lenta —. a nave parece ter sido inscrita
numa órbita muito boa, quase circular, É muito improvável que essa órbita tenha
sido alcançada por acidente. A falta de sofisticação... relativa... no desenho do
veículo, e o facto de que a sua maior aproximação de nós se situar a menos de
trezentos quilómetros, indicam que é mais provável que se trate de um satélite
artificial ou de um veículo orbital tripulado, e não de um míssil dirigido a esta
nave.
«Se é tripulado — disse a voz, num tom diferente— a tripulação deve estar perante
um grande perigo
O procedimento óbvio era o de deter o volteio com raios tractores tão suavemente
quanto possível para evitar esforços excessivos sobre a estrutura da pequena nave e
depois esvaziar os tanques do terceiro andar para eliminar o perigo de incêndio
antes de proceder à acostagem. Se a nave fosse tripulada e a fuga fosse de ar em
vez de propulsante. poderia ser admitida no porão de carga da Descartes onde o
salvamento e o primeiro contacto seriam possíveis — calmamente, uma vez que o ar de
Meatball era adequado aos seres humanos e inverso, provavelmente, também era
verdadeiro.
«Sugiro que usemos toda a força necessária para deter imediatamente o trambolhar,
abrir os tanques e deitar fora todo o propulsante, depois do que a meteremos no
porão de carga. Com a pressão do ar normal à sua volta, não haverá perigo para a
tripulação e teremos tempo de...»
— Fala Astrogação. Negativo quanto a isso. Os nossos cálculos mostram que a nave
partiu do mar... mais precisamente, do fundo do mar, porque não há evidência
visível de torres flutuantes ou de outras instalações de lançamento nessa área.
Podemos reproduzir o ar de Meatball porque é virtualmente igual ao nosso, mas não
essa sopa animal e vegetal que eles usam como água, e tudo indica que é isso que os
tripulantes respiram.
Se a sua nave não pudesse ajudar diretamente a outra nave, poderia, numa questão de
dias, levá-la a um lugar que possuísse tudo quanto fosse necessário para o fazer. O
transporte, por si próprio, só apresentava um pequeno problema — o veículo podia
ser rebocado sem deixar de girar, desde que se instalasse um gancho magnético ao
seu centro de rotação, e com o ponto de atracação lateral da nave maior também a
girar, o cabo não se torceria ao ponto de levar a pequena nave a esmagar-se no
flanco da Descartes. Durante a viagem o campo da hiperpropulsão da nave maior
poderia ser expandido para incluir ambos os veículos.
Sabia que nos primeiros dias do voo espacial humano as fugas eram ocorrências muito
normais, porque houvera muitas ocasiões em que fora preferível transportar reservas
de ar suplementares do que tomar as naves absolutamente estanques, devido ao
aumento de peso que isso representaria. Como o astronauta ou astronautas
alienígenas não deixavam, por qualquer razão estranha, que imobilizassem a sua
nave, o dever dele era evidente. Provavelmente a sua hesitação era devida a um
errado orgulho profissional porque ele estava a passar uma responsabilidade
particularmente importante a outros.
— Ia apenas almoçar.
— Belo. Nesse caso ficará muito satisfeito ao saber que os nativos de Meatball
puseram uma nave em órbita... pelo aspeto dela deve ser a primeira. Tiveram
dificuldades... o Coronel Skempton dar-lhe-á os pormenores... e a Descartes trouxe-
a para aqui para tratarmos dela. Chegará aqui dentro de três horas e eu sugiro que
você pegue numa nave-ambulância e em material pesado de salvamento e saia, para ver
se se consegue tirar a tripulação lá de dentro. Sugiro também que os doutores
Mannen e Prilicla sejam retirados dos seus serviços normais para o auxiliar, uma
vez que vocês três vão ser os nossos especialistas nos assuntos de Meatball.
— Muito bem — disse o Major. — E sinto-me satisfeito, doutor, por compreender que
há coisas mais importantes que a comida. Um psicólogo menos esclarecido e capaz do
que eu poderia admirar-se dessa súbita fome que surge sempre que se menciona uma
missão importante. De resto, eu compreendo que não é o sinal exterior de uma
sensação de insegurança, mas uma simples e tremenda gula!
«Tem muito que fazer, doutor — concluiu ele, num tom agradável. — Terminado.»
O gabinete de Skempton estava muito perto pelo que Conway precisou apenas de quinze
minutos para alcançá-lo — incluindo o tempo necessário para vestir um fato protetor
para os duzentos metros do caminho que passavam através dos pisos dos respiradores
de cloro Illensanos.
— Bom dia — disse Skempton antes que Conway abrisse a boca. — Tire essas coisas da
cadeira e sente-se. O’Mara já me falou. Decidi enviar a Descartes de volta a
Meatball assim que ela deixe aqui essa nave. Aos observadores nativos poderá
parecer que o veículo foi... quase diria raptado... e a Descartes deve estar
próxima para notar as reações, estabelecer contacto se possível e assegurar-lhes
que tudo vai bem. Ficar-lhe-ei muito grato se você conseguir estrinçar, satisfazer
e enviar de volta este «paciente»» a Meatball tão depressa quanto possível... nem
faz ideia de quanto isso seria útil à nossa gente do contacto cultural.
«Há uma cópia do relatório do incidente enviada pelo rádio de bordo da Descartes —
prosseguiu o Coronel. — E você precisará desta análise de água retirada do mar
junto do ponto de largada as amostras reais estarão disponíveis logo que chegue a
Descartes. Se precisar de mais algumas informações sobre Meatball ou sobre
procedimentos de contacto, fale com o Tenente Harrison, que vai ter alta e que
ficará muito contente por o ajudar. Não bata com a porta, doutor.
Não sabia muito bem se devia fazer uma série de perguntas específicas — mesmo que
hipotéticas — ou passar alguns minutos a exprimir preocupações em voz alta. Era
vitalmente importante que ele tratasse e curasse aquele paciente. Muito para além
de se tratar da sua obrigação, e da do hospital, um tratamento com êxito seria a
maneira ideal de estabelecer comunicação com os nativos de Meatball e conseguir
finalmente mais alguns daqueles maravilhosos instrumentos cirúrgicos comandados
pelo pensamento.
Conway disse a si próprio que seria melhor fazer a sua pergunta esperar até que
tivesse visto realmente o seu paciente, o que iria acontecer daí a uma hora.
Passaria esse tempo a estudar o relatório da Descartes.
E a almoçar.
A nave exploradora dos Monitores surgiu no espaço normal. com a nave alienígena a
girar como um hélice desequilibrado, na popa, e depois voltou imediatamente ao
hiperespaço para a viagem de regresso a Meatball. O transbordador de socorro
aproximou-se, agarrou o cabo de reboque que fora largado pela Descartes e amarrou a
ponta solta a um dos seus olhais rotativos.
O corpo de Prilicla, frágil como uma casca de ovo, sobre as suas seis pernas finas
como pavios, tinham principiado a tremer tão violentamente que era óbvio que ele
sentia alguma coisa.
— É bom sabermos que não iremos ter um trabalhão tão grande por causa de um
cachorrinho espacial — disse secamente Mannen.
Pensava que o paciente devia estar muito próximo do limite. O medo dele era
compreensível, evidentemente, e a dor, a sufocação e a consciência diminuída eram
provavelmente devidas a ferimentos, fome intensa e água contaminada. Conway
colocou-se na posição do astronauta de Meatball.
— Cortem! — gritou Conway aos emissores de raios tractores. A nave alienígena, que
quase parara, começou a girar lentamente, enquanto era ejetado vapor das saídas
laterais da proa e da popa. Ao fim de alguns minutos os jatos tornaram-se
irregulares, mais fracos, e cessaram finalmente, deixando o veículo a girar a cerca
de metade da sua velocidade original. O corpo de Prilicla parecia estar a ser
batido por um vento fortíssimo.
Conway respondeu:
Prilicla começou a tremer de novo e dessa vez Conway compreendeu que os seus
próprios sentimentos de frustração e cólera estavam a afetar a pequena criatura.
Tentou tornar os seus pensamentos mais frios e construtivos, mesmo pensando que ele
sabia que a situação era essencialmente a mesma que fora quando a Descartes tentara
pela primeira vez ajudar o astronauta de Meatball — não estavam a fazer progresso
algum.
Mas havia umas coisas que ele podia fazer e que podiam ajudar o paciente, ainda que
de uma maneira indireta.
O vapor que se escapava do veículo tinha de ser analisado para ver se era de
propulsante ou simplesmente de água do sistema de manutenção de vida da nave.
Muitas informações valiosas poderiam ser obtidas de uma visão direta do paciente—
mesmo que fosse possível observá-lo através do lado errado de um periscópio, porque
a nave não possuía nenhuma vigia. Precisavam também de encontrar um meio de entrar
na nave para examinarem o tripulante e o acalmarem, antes de o transferirem para
uma ambulância e para a enfermaria.
Agora que o paciente estava quase inconsciente, o Cinrusskino tinha de estar perto
para detetar as subtis alterações das radiações emocionais. Mas o longo casco
tubular girava silenciosamente sob a pequena criatura como as pás de um moinho
tremendo.
Conway não expressou, no entanto, a sua preocupação. Com Prilicla isso não era
necessário.
— Aprecio os seus sentimentos, amigo Conway — disse Prilicla—. mas não creio que,
apesar da minha classificação fisiológica, tenha nascido para ser esborrachado.
Quando alcançaram o casco, subiram para ele com o auxílio de imanes de pulso e
bota, e notaram que o grampo magnético que fora colocado pela Descartes amolgara as
chapas do casco e que essa era a área obscurecida pela névoa do vapor que se
escapava. Os próprios imanes dos fatos deles faziam mossas nas chapas. O metal não
devia ser muito mais espesso que papel, e Conway sentia que se ele fizesse um
movimento demasiado brusco abriria um buraco nele.
— Não é assim tão mau como isso, doutor — disse o tenente. — Nos nossos primeiros
dias de voo no espaço... antes de termos dominado a gravitação, as viagens
hiperespaciais e os motores nucleares tivessem tomado as considerações de peso de
pouca ou nenhuma importância... os veículos tinham de ser construídos de modo a
serem tão leves quanto possível. De tal modo que o conteúdo era muitas vezes usado
para reforçar a estrutura...
— No entanto — disse Conway— sinto-me como se estivesse a pisar gelo fino... até
posso ouvir água ou propulsante a borbulhar lá em baixo. Por favor verifique a
popa. Eu vou para vante.
Tiraram amostras do vapor que se escapava de vários lugares, e bateram, escutaram
os ecos e analisaram com fones sensíveis os ruídos que vinham, do interior do
veículo. Não havia resposta do tripulante, e Prilicla disse-lhes que ele não notara
a presença deles. Os únicos sinais de vida vindos do interior eram mecânicos.
Pareciam vir de um mecanismo invulgarmente complexo, a julgar pelos ruídos que
ouviam, além do borbulhar do líquido. E quando se aproximaram das extremidades da
cápsula, a força centrífuga trouxe outra complicação.
A cabeça de Conway apontava para a proa da nave de modo que a força centrífuga
impunha um G negativo no seu corpo. Não era excessivamente incómodo — ele sentia os
olhos um pouco esbugalhados mas a sua vista não se avermelhava. O pior era a visão
da nave-ambulância, de Prilicla e da vasta e tubular árvore de Natal que era o
Geral do Sector a girarem em volta da proa da cápsula aparentemente imóvel. Quando
ele fechou os olhos, a sensação de vertigem diminuiu, mas, naturalmente, deixou de
ver o que estava a fazer.
Quanto mais avançava maior era a força que os imanes do seu fato tinham de fazer
para o segurarem à superfície lisa de metal do casco da nave, mas não podia também
aumentar a potência porque a chapa fina começava a ranger e ele tinha receio de
rasgar o casco. Mas a pouca distância havia um tubo saliente curto, que
possivelmente era qualquer espécie de periscópio e ele começou a acercar-se do
dispositivo com todo o cuidado. Mas, de súbito, escorregou e agarrou-se
instintivamente ao tubo quando passou por ele.
— Que diabo! Onde está, doutor? — disse Mannen. — Da última vez que o vi estava
ali, mas agora...
— Não sei, doutor — respondeu Conway, furioso. Acendeu um dos seus fachos de alarme
e acrescentou: — Agora já me vê?
— Isto é ridículo! Estamos a gastar demasiado tempo com o que devia ser um simples
trabalho de salvamento. Tenente Harrison, Dr. Prilicla... por favor voltem ao
transbordador. Tentaremos outra coisa.
Fora averiguado que o vapor que se escapava da nave alienígena era de água, e não
de propulsante, e que a água era usada unicamente para fins respiratórios, uma vez
que não continha as matérias animais e vegetais encontradas nas amostras dos
oceanos de Meatball e que, comparado com o das amostras locais, o seu conteúdo de
CO2 era muito alto —em resumo: a água estava perigosamente contaminada.
Um estudo pormenorizado das fotografias, feito por Harrison, que era uma autoridade
notável no primitivo voo espacial, sugeriu que a parte expandida da popa da nave
alienígena continha um escudo térmico sobre o qual fora montado um grupo de
travões-foguetes. Agora era evidente que, longe de ser um último «andar» que não
funcionara, o longo veículo cilíndrico continha pouco mais do que o sistema de
sustentação de vida, o qual, a julgar pelo tamanho, devia ser muito grosseiro.
Depois de fazer essa afirmação, o tenente pensou melhor e observou que enquanto os
astronautas que respiravam ar podiam transportar consigo ar comprimido, um
respirador de água não podia comprimir água.
A ponta da ogiva continha pequenos painéis que provavelmente se abriam para largar
os paraquedas de descida. A cerca de metro e meio para a popa havia outro painel
que tinha menos de quarenta centímetros de largura e cerca de um metro e oitenta de
comprimento. Eram dimensões estranhas para uma escotilha de entrada e saída do
piloto, mas Harrison estava convencido de que não podia ser outra coisa.
Acrescentou que a falta de sofisticação mostrada na construção do veículo tornava
improvável que se tratasse de uma escotilha dupla.
— Tenho de ver o paciente para fazer uma ideia das suas lesões e preparar os seus
alojamentos. Tenente: suponha que eu abro uma entrada a meio da nave, no centro de
rotação dela. Uma quantidade apreciável da água que ela continha já se perdeu e a
força centrífuga obrigou o resto a concentrar-se na proa e na popa, de modo que a
parte média do veículo deve estar vazia e a perda adicional de água causada pela
minha entrada será ligeira.
— Concordo, doutor — disse Harrison. — Mas a estrutura da nave deve ser tão frágil
que, se abrir um rasgo nela, não só afetará a vedação das secções onde se encontra
a água como criará o perigo de a força centrífuga a destroçar.
— Seria muito difícil numa nave girando sobre si própria — disse Mannen.
Harrison observou:
— Sim. Mas poderemos instalar uma estrutura ligeira, tubular, presa ao casco por
imanes. A cinta e a comporta de ar poderão ser instaladas a partir daí. Mas levará
algum tempo...
Prilicla não fez comentários. Os Cinrusskinos não tinham muito vigor físico e o
pequeno empata agarrara-se ao teto com as ventosas das suas seis patas e deixara-se
adormecer.
— Doutor Conway — disse o Psicólogo-Chefe quando pôde ver e ser visto. — Têm-me
chegado rumores de que você está a tentar... e talvez já tenha conseguido...
estabelecer um novo máximo para o tempo despendido para transferir um paciente de
uma nave para a enfermaria. Não preciso recordá-lo da urgência e importância desse
assunto, mas faço-o, de qualquer maneira, É urgente, doutor, e importante.
Terminado.
— Talvez a minha perna ainda não esteja devidamente curada desde que a quebrei,
nessa descida em Meatball. Um médico amigo, cooperador, poderia decidir enviar-me
de volta para a Enfermaria 4 do Piso 283.
— O mesmo doutor amigo e pronto a auxiliá-lo poderia concluir que uma certa
enfermeira humano-terrestre na Quarta-238 tinha algo que ver com o seu relapso, e
ele poderia enviá-lo para a... digamos, Sétíma-241. Não há nada como ser tratado
por uma enfermeira com quatro olhos e pernas a mais para que um homem deixe de
uivar à Lua.
Conway riu-se:
—Não lhe dê atenção, Harrison. Por vezes ainda é pior que O’Mara. Neste momento,
não podemos fazer mais nada e o dia foi longo e duro. Vamo-nos deitar antes que
adormeçamos.
Passou-se outro dia sem que tivesse sido feito qualquer progresso significativo.
Por causa da urgência, o pessoal que montava a estrutura tentou apressar-se e
perdeu ferramentas e secções da armação, além do que deixou ir homens pela borda
fora, por mais de uma vez. Os homens puderam ser facilmente recuperados pelos raios
tractores, mas as ferramentas e as partes da armação não estavam equipadas com
fachos luminosos e perderam-se, de uma maneira geral. Praguejando por ter de
realizar um difícil trabalho de construção numa espécie de carrossel espacial, os
homens voltaram ao trabalho.
O progresso tomou-se muito mais lento mas um pouco mais certo, o número de mossas e
vincos feitos no casco da nave pelas ferramentas e pelas botas espaciais tomou-se
incontável, e a neblina criada pelo vapor de água que se escapava continuou a
aumentar.
No dia seguinte a estrutura estava pronta e começou a ser instalada a cinta em que
seria montada a comporta provisória. Entretanto Conway e Harrison prenderam cabos
de segurança à estrutura e examinaram o casco. O tenente descobriu muita coisa
sobre os reatores de manobra e os circuitos dos travões-foguetes, enquanto Conway
continuava a sentir-se estupefacto perante a longa e estreita escotilha e a pequena
vigia que tinha apenas alguns centímetros de diâmetro e mostrava apenas uma espécie
de obturador que se abria e fechava rapidamente. Foi só no dia seguinte que o
tenente e ele puderam entrar na nave.
O seu tripulante estava vivo, como Prilicla dissera, mas a sua vida encontrava-se
por um fio.
Como se esperava, a seção da cintura da nave estava quase vazia de água. A força
centrífuga levara-a a concentrar-se nas extremidades do veículo, mas as lanternas
deles refletiam-se num espesso nevoeiro que, depois de uma rápida investigação,
verificaram ser alimentado pelo funcionamento de um sistema de carretos e correntes
de transmissão que se estendia a todo o comprimento da nave.
— Sei que a circulação e purificação da água exigem equipamento mais pesado que o
sistema de regeneração de ar — disse Conway, falando a Harrison e ao transbordador.
— No entanto tenho a certeza de que devia haver aqui uma proporção maior de
sistemas elétricos, em relação aos mecânicos. Não posso avançar mais que alguns
metros e só vejo carretos e correntes. O sistema de circulação gera uma forte
corrente e estou em perigo de ser arrastado para as engrenagens.
O nevoeiro impedia uma visão clara, mas durante um momento ele viu qualquer coisa
que não fazia parte do mecanismo — qualquer coisa castanha, enrolada, e com uma
espécie de vegetação ou tentáculos curtos a despontarem dele; qualquer coisa
orgânica. A criatura estava cercada por todos os lados por mecanismos que rodavam,
e parecia rodar também, mas via-se tão pouco do seu corpo que não podia haver a
certeza disso.
— Vejo-o — disse Conway. — No entanto não posso fazer uma classificação precisa.
Não parece usar fato de pressão, de modo que isto deve ser o equivalente de um
ambiente de «mangas de camisa». Mas não podemos tirar daqui a criatura sem desfazer
a nave, o que o matará. — Praguejou e depois disse, furioso: — Isto é ridículo,
insano! Queriam que eu viesse aqui, imobilizasse o paciente, o transferisse para
uma enfermaria e o tratasse. Mas esta maldita coisa não pode ser imobilizada sem...
— Suponho que há qualquer coisa que não funciona bem no sistema de manutenção de
vida — disse o tenente, interrompendo-o.—Qualquer coisa que exige gravidade, ou
gravidade artificial sob a forma de força centrífuga para voltar a funcionar
devidamente. Se pudéssemos reparar essa avaria...
— Mas porquê? — disse subitamente Conway, enquanto uma ideia vaga que estivera
oculta no seu cérebro vinha à superfície. — Quero dizer... porque é que devemos
pensar que se trata de uma avaria? — Fez uma pausa e depois disse: — Abriremos as
válvulas de um par de garrafas de oxigénio, aqui dentro, para melhorar o ar que a
criatura respira... ou antes, a água. Será uma espécie de primeiro-socorro, até que
estejamos em condições de fazer algo mais positivo. Depois regressaremos ao
transbordador. Estou a começar a ter ideias estranhas sobre este astronauta.
Gostaria de comprová-las.
Voltaram à sala de comando sem despir os fatos e encontraram Prilicla, que lhes
disse que o paciente parecia um pouco melhor, mas continuava inconsciente. O empata
acrescentou que podia ser que a criatura estivesse ferida e num estado adiantado de
desnutrição, além de se ter encontrado perto da morte, devido a asfixia. Conway
começou a dizer-lhe qual era a sua ideia, enquanto traçava um esquema da nave.
Quando o esquema ficou completo, disse:—Se este é o centro de rotação e a distância
deste ponto à posição do piloto é esta, e a velocidade de rotação é esta, pode
dizer-me se a gravidade aparente, na posição do piloto, é semelhante à de Meatball?
— Isso significa que temos um mostrengo que, sem dúvida por alguma boa razão
fisiológica, não pode viver sem gravidade...
Conway sentiu que a ideia que se formara no seu espírito começava a reduzir-se a
nada: força centrífuga, rodas dentro de rodas! Mas as feições quadradas e duras do
Psicólogo-Chefe enchiam o visor e era impossível pensar noutra coisa.
O psicólogo continuou:
— Desculpe, senhor — disse Conway, distraído. — Estava a pensar. Há uma coisa que
eu gostaria de experimentar... e talvez me possa ajudar, conseguindo o apoio do
Coronel Skempton. Estamos a perder tempo aqui. Quero levar a nave para dentro do
hospital... ainda a girar, evidentemente, mas apenas a princípio. A Escotilha de
Carga 30 é suficientemente grande para isso e está bastante perto do corredor cheio
de água que conduz à enfermaria que estivemos a preparar para o paciente. Mas
receio que o Coronel não goste muito que se leve o veículo para o hospital.
— Trate disso, tenente — disse Conway, depois do que se virou para a imagem de
Skempton. — Concluo, senhor, que nada tem a objetar sobre a entrada da nave no
hospital depois de os travões-foguete terem sido atuados? Nem quanto ao
funcionamento do material de que necessitarei no porão de carga e na enfermaria?
— O oficial de manutenção nesse piso tem ordem para cooperar — disse Skempton. —
Boa sorte, doutor. Terminado!
— Ainda estou aqui, doutor, e tenho uma pergunta a fazer-lhe— disse O’Mara, num tom
seco. — A sua ideia de que a criatura precisa de gravidade, quer normal, quer
artificial, posso eu compreender, mas agora colocá-la nesse carrossel tão
complicado...
O tenente demorou mais tempo a instalar o relé do que calculara — naquele trabalho
tudo levava mais tempo que o previsto! — e Prilicla informou que o estado do
paciente entrava a piorar rapidamente. Mas por fim os foguetes de travagem
funcionaram durante o número de segundos necessário para tirar a cápsula da sua
órbita original e a nave-ambulância acompanhou-a, fazendo-a girar com raios
tractores opostos assim que o impulso desapareceu, para que o tripulante
continuasse a dispor de gravidade. Mesmo assim houve complicações: logo que os
travões-foguete pararam, abriram-se janelas na ogiva e o paraquedas de descida
saltou. Dentro de segundos, a nave ficou com os paraquedas enrolados à sua volta,
desajeitadamente.
— Está a dar fugas como um passador! — gritou Conway. — Lancem-lhe outro grampo
magnético. Mantenham-na a girar e levem-nos rapidamente para a Escotilha 30! Como
está o paciente?
Ainda a girar, o veículo foi levado para a enorme boca da Escotilha 30. Dentro da
câmara da comporta de ar, as grelhas de gravidade artificial colocadas sob o convés
foram neutralizadas, para que as condições de ausência de peso, existentes no
espaço, se mantivessem. A sensação de vertigem de Conway, que o acompanhara desde
que vira a cápsula pela primeira vez. foi intensificada pela visão da nave
alienígena. a girar pesadamente no espaço fechado, lançando jatos de vapor gelado
enquanto girava.
Prilicla disse:
— Medo... não, uma angústia extrema. A radiação é agora muito forte... a criatura
parece estar bem, pelo menos melhorou... — O empata deu a impressão de não
acreditar nas suas próprias sensações.
A nave foi levantada suavemente e um reboque baixo e comprido, com pneus-balão, foi
introduzido por baixo dela. Da abertura que dava para a secção adjacente, começou a
cair água na câmara da comporta. Prilicla correu para a parede e dali para o teto,
até se colocar a poucos metros acima da proa da nave, e Mannen, Harrison e Conway
patinharam primeiro e depois nadaram na mesma direção. Quando alcançaram a nave
juntaram-se na proa, ignorando a equipa que estava a colocar cintas em torno da
nave, fixando-a antes de levar para o corredor adjacente, dos respiradores de água,
e começaram a cortar a fina chapa do casco.
Conway insistiu em que o trabalho fosse feito com extremo cuidado, para evitar
quaisquer danos no mecanismo de manutenção de vida.
— Sente-se confundido... — disse uma voz familiar, irascível, e Conway deu com
O’Mara a nadar ao lado dele. O Coronel Skempton patinhava como um cão, do outro
lado. em silêncio. O psicólogo prosseguiu: — Caso se tenha esquecido disso, doutor,
lembro-lhe que isto é importante; daí o nosso interesse pessoal. Mas porque é que
não desmonta esse despertador e tira daí o paciente? Você já provou a sua teoria de
que ele precisava de gravidade para viver...
— Ele é que é o doutor — disse O’Mara, antes que a discussão fosse por diante, e
desviou discretamente a atenção do coronel para o sistema de rodas de pás que
mantinha o «ar» respirado pelo astronauta em circulação permanente.
O enorme reboque, com o seu peso suportado em grande parte pela água graças aos
pneus-balão, foi empurrado através do corredor e dali para o tremendo tanque que
era um dos conjuntos de sala de operações-enfermaria dos respiradores de água.
Subitamente, surgiu outra complicação.
Um dos homens que se acotovelava junto da ogiva devia ter carregado acidentalmente
no botão de ejeção do astronauta, porque a estreita escotilha se abrira e o sistema
de engrenagens, carretos e correntes estava a deslizar e a tomar novas posições.
Qualquer coisa que se parecia com três pneumáticas de metro e meio de diâmetro
estava a rolar em direção à abertura.
Harrison, que era o mais próximo, tentou amortecer a queda, mas apenas conseguiu
deitar-lhe uma mão. A criatura tombou e caiu no chão, de lado. Saltitou apenas uma
vez e imobilizou-se.
Conway gritou aos outros que mantivessem a criatura de pé e a fizessem rodar sobre
si própria. Poucos segundos depois. O'Mara puxava pelo seu lado, enquanto Mannen
levantava o seu e o tenente e Conway procuravam que aquele corpo em forma de anel
não tombasse.
— Mais baixo Prilicla! — gritou O’Mara. Depois, numa voz mais calma, mas ainda mais
furiosa, disse:—Creio que um de nós sabe o que está a fazer!
— Também creio —disse Conway. — Pode fazê-lo girar mais depressa? Dentro da nave
ele rodava com muito maior rapidez. Prilicla...
Fizeram tudo quanto puderam para acelerar a rotação da criatura, ao mesmo tempo que
a levavam para o alojamento preparado para ela. e no qual se encontrava a roda que
Conway mandara fazer, assim como uma atmosfera aquática que era um duplicado da
sopa que era o oceano de Meatball. Na verdade. não era um perfeito duplicado,
porque o material suspenso na sopa era uma massa sintética, sem vida, e não os
organismos vivos do original, mas tinha o mesmo valor alimentício e. como não era
tóxico para os outros respiradores de água que pudessem vir a ocupar aquela
enfermaria, o recinto onde ficaria o astronauta estava limitado por uma película de
plástico transparente, em vez de chapas de metal e uma escotilha dupla. Isso ajudou
também a levar o paciente para o seu lugar e para a roda.
Por fim ele ficou em posição, preso com cintos e girando na mesma direção e à mesma
velocidade que no «leito» da nave. Mannen, Prilicla e Conway colocaram-se tão perto
quanto possível do centro da roda e. enquanto procediam ao exame do paciente, o
pessoal operatório, com instrumentos especiais, equipamento de diagnóstico e a
«ferramenta» muito especial, comandada pelo pensamento, de Meatball, instalaram-se
ou foram instalados na estrutura da roda, e giraram dentro da sopa quase opaca.
Para O’Mara e Skempton, que tinham deixado os seus lugares na roda aos membros da
equipa operatória, Conway disse: — Mesmo a curta distância é difícil ver através
desta coisa, mas como o processo de respiração é involuntário e inclui a ingestão,
e o paciente teve falta de comida e ar durante muito tempo, preferirei não
trabalhar em água límpida, livre de alimento.
Mannen observou:
— Pergunto a mim próprio como é que uma forma de vida como esta surgiu — disse
Conway. — Suponho que tudo começou num charco grande e pouco profundo, alimentado
pelas marés — constituído de tal modo que a água girava continuamente à sua volta
em vez de entrar e sair. O paciente pode ter sido o resultado da evolução de
qualquer mostrengo que era constantemente revolvido pelas correntes circulares, e
que ia apanhando comida, enquanto isso. A seu tempo, essa criatura primitiva
desenvolveu musculatura interna e órgãos que permitiam que ela rolasse por si
própria, em vez de esperar pelas marés e pelas correntes, e adquirisse apêndices
manipulatórios sob a forma dessa franja de tentáculos curtos que saem da
circunferência interior do seu corpo, entre as séries de guelras e olhos. O
equipamento visual dela está sempre a rodar.
— Mas porquê? — perguntou O’Mara. — Porque é que eles têm de rolar quando podem
sugar água e comida sem se moverem?
— Sabe qual é o mal do paciente. Doutor? — perguntou Skempton, numa voz dura.
Depois, acrescentou num tom preocupado: — Pode tratar dele?
Conway respondeu:
— Sim e não. Ou para falar melhor: a resposta devia ser «sim» a ambas as perguntas.
— Olhou para O’Mara, para significar que também se dirigia a ele, e prosseguiu: —
Tem de girar para se manter vivo; serve-se de um processo curioso para transferir o
centro de gravidade enquanto se mantém de pé, inflando parcialmente a secção do seu
corpo que em qualquer momento se encontra no alto. O rolar contínuo permite que o
seu sangue circule; usa uma espécie de sistema de alimentação pela gravidade, em
vez de uma bomba muscular. Não possui qualquer espécie de coração. Quando deixa de
rolar, a sua circulação para e ele pode morrer em poucos minutos.
— Não concordo, amigo Conway — disse Prilicla, que, em regra, concordava com toda a
gente. O corpo e as pernas muito finas do empata tremiam fortemente, mas com um
ritmo lento, como era habitual num Cinrusskino exposto a uma emoção confortável.
Prilicla acrescentou:—O paciente está a voltar a si rapidamente. Agora está
absolutamente consciente... tem uma espécie de dor, não localizada e surda,
certamente causada pela fome, mas que começa agora a dissipar-se. Sente-se
ligeiramente angustiado, muito excitado e imensamente curioso.
Passou-se mais de uma hora antes de terem, medicamente falando, terminado o caso do
astronauta de Meatball. Um linguista do Corpo compartilhava a roda com a criatura,
para adicionar, com um mínimo de demora, uma nova linguagem extraterrestre aos
bancos de memória do computador de tradução do Hospital, e o Coronel Skempton saíra
para preparar uma mensagem muito especial para o Comandante da Descartes.
— Nem todas as notícias são boas — disse Conway, sorrindo com alívio, apesar de
tudo. — O nosso «paciente» estava apenas a sofrer de subnutrição, asfixia parcial e
maus tratos gerais. em consequência de ter sido salvo (ou antes raptado) pela
Descartes. Par outro lado, não mostra possuir qualquer aptidão especial para o uso
de ferramentas comandadas pelo pensamento e parece completamente falto de
familiaridade com as coisas. Isso só pode significar que existe outra espécie
inteligente em Meatball. Mas quando o nosso amigo puder falar devidamente não creio
que haja muita dificuldade em convencê-lo a ajudar-nos a descobrir os verdadeiros
«senhores»... não está de modo algum aborrecido connosco por causa do número de
vezes que quase o matámos, É o que Prilicla diz... e não faço ideia de como nos
saímos disto tão bem. depois de termos feito tantos disparates.
Mannen disse:
— Sabem que eu não como em público... isso dá a impressão de que sou um ser humano
vulgar. Além disso tenho muito que fazer: tenho de descobrir todo um conjunto de
testes para mais uma espécie supostamente inteligente...
IRMÃO DE SANGUE
NÃO se trata de uma simples missão médica. Doutor, ainda que esse seja o aspeto
mais importante, Doutor— disse O’Mara quando Conway foi chamado ao gabinete do
Psicólogo-Chefe, três dias depois. — Se os seus problemas conduzirem a complicações
políticas...
— O seu tom — observou secamente O’Mara — implica uma crítica a um esplêndido corpo
de homens e criaturas a que tenho a honra de pertencer...
— E entretanto está a perder tempo — prosseguiu O’Mara. — Tem dois dias antes que a
sua nave parta para Meatball... creio que é tempo bastante para tratar de quaisquer
assuntos profissionais ou pessoais que tenha pendentes. Será melhor que estude
tanto quanto possível os pormenores deste projeto, enquanto dispõe de um ambiente
confortável para trabalhar.
Continuou:
— É porque eu sou muito bravo, generoso e magnânimo — disse Surreshun na sua voz
átona, traduzida. Sempre a rodar, acrescentou:—Sou também muito previdente e
altruísta, e preocupo-me apenas com o bem das nossas duas espécies.
— Sim —disse O’Mara, numa voz cuidadosamente neutra—, mas o nosso objetivo não é
inteiramente altruísta. Pensamos em investigar e avaliar as necessidades médicas no
vosso planeta natal, com vista a fornecer assistência nessa área. Como nós somos
também generosos, altruístas e... altamente éticos, essa assistência será fornecida
gratuitamente em qualquer caso, mas se vocês se quiserem oferecer para colocarem à
nossa disposição um certo número desses instrumentos quase-vivos, que existem no
vosso planeta...
— Mas Surreshun já disse que a sua espécie não os produz... — começou a dizer
Conway.
— E eu creio nisso — disse o Major O’Mara. — Mas sabemos que eles vieram do seu
planeta natal e um dos seus problemas Doutor, é encontrar as criaturas que o usam.
Agora, se não houver mais perguntas a fazer...
Poucos momentos depois, estavam no corredor. Conway olhou para o relógio e disse:
— Almoço. Não sei o que acontece consigo, mas eu penso melhor com o estômago cheio.
A secção dos respiradores de água fica apenas dois pisos acima de nós...
— É uma bondade da sua parte fazer-me tal oferta, mas compreendo quanto é
inconveniente para os indivíduos da sua espécie comerem no meu ambiente — replicou
Surreshun. — O meu equipamento de manutenção de vida contém uma interessante
seleção de comida e ainda que eu seja completamente desprovido de egoísmo e muito
atento ao conforto dos meus amigos, devo voltar a casa dentro de dois dias e as
oportunidades de experimentar condições multi-ambientais e contatos é portanto
limitada. Preferirei usar as instalações dos respiradores de oxigénio, com sangue
quente, como vocês.
— Faça favor...
Quando entraram na sala de jantar, Conway tentou decidir se devia comer de pé, como
um Tralthano, ou arriscar-se a arranjar uma hérnia múltipla, numa mesa de tortura
Melfanianas. Todas as mesas de humano-terrestres estavam cheias.
— Vi-os chegar e perguntei a mim mesmo se podemos discutir durante alguns momentos
a vossa missão... antes de começarem a comer...
Nas mesas à sua volta, as pessoas acabavam de almoçar e caminhavam, ondulavam ou,
num caso, voavam em direção à saída para serem substituídos por um sortido
semelhante de extraterrestres, e Thornnastor continuava a discutir métodos de
processar os dados e os espécimes que eles lhe deviam enviar, assim como a
organização eficiente daquele exame médico à escala planetária. Sendo a criatura
responsável pela análise da massa dos dados que iriam chegar, tinha ideias muito
definidas sobre a maneira como o trabalho deveria ser feito.
— Sim —disse Surreshun. Fez outro ruído intraduzível e prosseguiu: — Bravo, cheio
de recursos e emocionalmente estável como eu sou...
Antes que chegasse a manhã seguinte, ele teria de resolver os problemas em suspenso
e estabelecer alguns planos razoavelmente pormenorizados sobre o procedimento a
seguir antes da chegada, quanto mais não fosse para dar a ideia de que os médicos
do Gera! do Sector sabiam o que faziam.
Naquela ocasião tinha a seu cargo uma enfermaria de lagartas prateadas Kelgianas e
a maternidade dos Tralthanos. Era também responsável por uma pequena enfermaria de
Hudlarianos, cuja pele era como uma couraça flexível, e que, além de viverem num
sistema gravitacional artificial regulado para 5 G, respiravam uma atmosfera que
era um nevoeiro denso, de alta pressão — e ainda pela estranha criatura com a
classificação TLTU que viera não sabia de onde e que respirava vapor sobreaquecido.
Foi preciso mais do que umas poucas horas para resolver todos os problemas. Os
tratamentos e as convalescenças estavam bem adiantados, mas ele sentia a obrigação
de dizer uma palavra a cada um deles e despedir-se de todos, porque eles deviam ter
alta e regressar aos seus planetas natais muito antes de ele regressar de Meatball.
Seis horas depois eles estavam no piso de recreio, onde uma iluminação enganadora e
uma paisagem artificial realmente inspirada, davam uma ilusão de espaço, numa
pequena praia tropical, ladeada por arribas e aberta a um mar que parecia estender-
se por quilómetros. Só a vegetação alienígena, no alto das arribas, impedia que ela
se parecesse com qualquer outra baía tropical da Terra, mas o espaço tinha muito
valor no Geral do Sector e as pessoas que trabalhavam juntas tinham também de se
divertir juntas.
Conway sentia-se muito fatigado e compreendeu subitamente que devia começar dentro
de duas horas as rondas matinais do dia seguinte, se ainda tivesse rondas a fazer.
Mas o dia seguinte iria ser muito atarefado para isso, se ele bem conhecia O'Mara.
Quando acordou, a Murchison estava debruçada sobre ele com uma expressão que era um
misto de curiosidade, irritação e preocupação. Dando-lhe um soco não muito suave no
estômago, ela disse:
— Adormeceste deitado sobre mim, no meio de uma frase, há mais de uma hora! Não
gosto disso... faz-me sentir pouco segura, indesejada, sem atrativos para os
homens. — Ela continuou a dar-lhe socos no diafragma. — Espero ouvir finalmente
algumas informações originais. Uma ideia dos problemas ou dos perigos do teu novo
trabalho e por quanto tempo andarás ocupado com ele. Pelo menos, espero uma
despedida terna e calorosa...
Mas ela esquivou-se e correu para a água. Quando Conway se aproximou ela mergulhou
na turbulência causada por um Tralthano que estava a ser ensinado a nadar. Ele
pensou que a perdera de vista quando um braço esbelto e bronzeado surgiu em torno
do seu pescoço, do lado de trás, e o fez engolir metade do oceano artificial.
De resto, não tinham uma verdadeira necessidade de sair do piso de recreio. Mas
acontecia que os DBDG humano-terrestres eram a única espécie na Federação Galáctica
para a qual a nudez era um tabu, e uma das poucas que sentia aversão a fazer amor
em público.
— Já sabe como é, Doutor —disse o psicólogo quando ele e o seu ajudante, tenente
Craythorne, o ligaram ao Educador. — No entanto aviso-o de que os primeiros minutos
que se seguem a uma transferência de memória são os piores... é então que o
espírito humano sente estar a ser dominado pelo alter ego alienígena, É um fenómeno
puramente subjetivo causado pelo súbito influxo de memórias e experiências
alienígenas. Você deve tentar manter a flexibilidade do espírito e adaptar-se tão
depressa quanto possível a essas estranhas... por vezes muito estranhas impressões.
Como o deve fazer é consigo. Como esta gravação é inteiramente nova, vigiarei as
suas reações, para o caso de surgirem problemas. Como é que se sente?
Conway despertou alguns segundos depois num pequeno quarto, muito estranho, cujos
planos e contornos, tal como os móveis, eram demasiado direitos e com arestas
agudas. Duas criaturas grotescas — uma pequena parte do seu espírito insistia em
que elas eram os seus amigos— erguiam-se sobre ele. observando-o com olhos húmidos,
planos colocados em dois rostos feitos de massa rosada informe. A sala, os seus
ocupantes e ele próprio estavam imóveis e...
Ele estava a morrer!
Conway compreendeu subitamente que atirara com O’Mara ao chão e estava sentado
sobre a borda do leito, os pulsos cerrados, os braços cruzados com força sobre o
peito, oscilando rapidamente para trás e para a frente. Mas esse movimento não o
ajudava. . a sala continuava horrivelmente, entontecedoramente firme! Ele sentia-se
agoniado com vertigens, a sua visão estava a falhar e o ar faltava-lhe. Estava a
perder o sentido do tato.
— Calma, rapaz — disse O’Mara suavemente.— Não lute contra isso. Adapte-se..
Conway tentou praguejar, mas o som que lhe saiu da boca foi como um balido de um
animalzinho aterrorizado. Oscilou para a frente e para trás, cada vez mais
depressa, abanando a cabeça. A saia dava saltos e rolava à sua volta, mas mantinha-
se demasiado firme. A firmeza era terrível e letal. Conway perguntou a si próprio,
num desespero absoluto: Como é que alguém se pode adaptar a morrer!
Mas o alienígena que estava no seu espírito sentia-se tonto de se manter firme e a
porção humano-terrestre sentia-se tonta por tanto movimento. Conway não era
psicólogo mas sabia que se ele não pensasse em qualquer coisa rapidamente acabaria
como um paciente —de O’Mara — em vez de ser um médico, porque o seu outro eu estava
convencido de que ia morrer imediatamente.
Ele tivera uma ideia quando subira para a secretária, mas era difícil recordá-la
com o espírito dominado pelo pânico. Alguém tentou puxá-lo e ele esbracejou até o
deixarem, mas o esforço fê-lo perder o equilíbrio e caiu de cabeça na cadeira
giratória de O’Mara. Sentiu-se a rolar para o chão e instintivamente estendeu a
perna para amparar a queda. A cadeira girou mais de 180 graus, de modo que ele
escoiceou de novo e continuou a escoicear. A cadeira continuou a rodar, a princípio
de uma maneira errática, mas depois mais suavemente, quando ele compreendeu como
devia agir.
O seu corpo estava dobrado de lado em volta das costas da cadeira, e a coxa
esquerda e o joelho sobre o assento, enquanto o pé direito pontapeava
constantemente o chão. Não era muito difícil imaginar que os armários-arquivos, as
estantes, a porta do gabinete e as figuras de O’Mara e Craythorne estavam todas
deitadas de lado, e que ele, Conway, rodava num plano vertical. O seu pânico
começou a dissipar-se um pouco.
— Fez-se entender muito bem, Doutor — disse O’Mara, aproximando-se de novo. Na sua
mão direita, de palma para cima, havia três comprimidos. — Não lhe darei uma
injeção porque é evidente que se o parasse lhe faria sentir-se mal. Em vez disso
dar-lhe-ei três dessas bombas de sono. Os efeitos serão súbitos e você manter-se-á
adormecido durante quarenta e oito horas. Apagarei a gravação enquanto se mantiver
inconsciente. Haverá algumas impressões e memórias residuais enquanto estiver
acordado, mas nada que leve ao pânico.
Conway despertou numa pequena cabina cujas cores austeras lhe disseram que ele
estava a bordo de um cruzador da Federação e que uma placa da parede esclarecia ser
a nave de Exploração e Contacto Cultural Descartes. Um oficial que usava uma
insígnia de major estava sentado na única cadeira, dobrável, enchendo o
compartimento enquanto folheava uma das espessas pastas referentes a Meatball.
Olhou para cima.
— Edwards, oficial médico da nave — disse ele, num tom agradável. — Feliz por o ter
connosco, Doutor. Está bem acordado?
— Meio?
— Nesse caso —disse Edwards, dirigindo-se para o corredor de modo que Conway
tivesse espaço para se vestir —, o Comandante quer falar connosco.
A Descartes era uma grande nave e a sua sala de comando era suficientemente
espaçosa para conter o sistema de manutenção de vida de Surreshun sem muitos
problemas para os oficiais que nela trabalhavam. O Comandante Williamson convidara
o rolador a passar ali a maior parte do tempo — uma atenção que devia ser apreciada
por qualquer astronauta, qualquer que fosse a espécie a que pertencesse — e para
uma criatura que não conhecia o significado do sono a sala tinha a vantagem de ter
sempre alguém presente. E Surreshun podia falar com eles, de certa maneira.
O computador da nave era pequeno, comparado com o monstro que tratava da Tradução,
no Geral do Sector, e mesmo assim, só uma fração da sua capacidade podia ser usada
para efeitos de tradução, uma vez que tinha também de servir a nave.
Consequentemente, as tentativas do Comandante de comunicar complexas ideias
psicopolíticas a Surreshun não estavam a ter muito êxito.
— Muito bem, muito obrigado — disse Harrison. Num tom sério, acrescentou: — Dói-me
um pouco quando chove, mas como isso não acontece muitas vezes numa nave...
— É evidente que sabe mais do que nós, quanto a este assunto — disse o Comandante,
aliviado. — Tinha esperanças disso. Segundo me disseram, além de terem
compartilhado os espíritos por alguns minutos, ele foi seu paciente.
— Na verdade não era um paciente, pois não estava doente, mas cooperou connosco
durante os muitos ensaios fisiológicos e psicológicos. Ele continua ansioso por
voltar a casa, e quase tão ansioso como nós pelo estabelecimento de contactos
amigáveis com o seu povo. Qual é o problema, senhor?
Surreshun explicou:
A maneira mais fácil de fazer isso seria entrar numa órbita para além do alcance
dos mísseis deles e deixar Surreshun gastar todo o tempo que fosse necessário para
convencer a sua gente de que não fora torturado ou tivera o seu espírito absorvido
por qualquer forma de vida monstruosa, como a do Comandante. O equipamento de
comunicações da sua nave fora duplicado, de modo que não havia problemas técnicos.
No entanto, Williamson pensava que o procedimento conecto seria o de ele próprio
comunicar com as autoridades de Meatball e apresentar desculpas antes de Surreshun
falar.
— O objetivo original desta missão era o de estabelecer contato amigável com essa
gente, mesmo antes de vocês, os do Hospital, terem ficado tão excitados com essas
ferramentas comandadas pelo pensamento — concluiu o Comandante.
— A minha razão de aqui estar não é inteiramente comercial— disse Conway no tom de
quem não tinha a consciência inteiramente limpa. Prosseguiu: — Pelo que diz
respeito ao problema presente, posso ajudá-lo. A dificuldade tem a sua origem no
facto de não compreender que eles carecem em absoluto de qualquer afeição paternal
ou filial, ou de quaisquer laços emocionais, além da breve mas muito intensa
ligação que existe antes e durante o processo de fecundação. Na verdade, eles
odeiam os pais e quem mais que...
— que tenha relações de parentesco com eles. Algumas das memórias mais invulgares
de Surreshun permaneceram no meu espírito. Isso ocorre por vezes, quando nos
expomos a uma personalidade invulgarmente alienígena, e essa gente é
verdadeiramente invulgar...
Nos tempos primitivos essa camada da sociedade fora considerada como a mais baixa
entre todas, mas fora um dos seus membros que descobrira uma maneira de conseguir
com que uma pessoa girasse e vivesse sem ter de se deslocar através do fundo do
mar. Essa capacidade de viver permanecendo estacionário, fora comparável à
descoberta do fogo ou da roda, na Terra, e determinara o início do desenvolvimento
tecnológico em Meatball.
A razão desse arranjo confuso era um profundo desagrado, de base sexual, quanto a
todas as relações consanguíneas. Os roladores de Meatball tinham-se desenvolvido
numa área muito pequena e confinada e tinham sido obrigados a mover-se
constantemente nessa área, pelo que o contacto físico para efeitos de fecundação —
um ato inteiramente instintivo nos dias de pré-sapiência — tinha muito maiores
probabilidades de acontecer entre parentes que entre criaturas inteiramente
estranhas. Tinham adquirido uma salvaguarda eficaz contra o incesto.
— Doutor, concluo que o nosso amigo, por causa do longo treino e da disciplina
necessárias para se tomar no primeiro astronauta de Meatball, pertence à classe
social mais baixa, e que, ainda que não oficialmente, pode muito bem ser
considerado indesejável.
— Senhor, esquece a importância (que está ligada à aversão ao incesto) que esta
gente dá aos grandes viajantes que trazem sangue e conhecimentos novos. Sob esse
aspeto, Surreshun é único. Sendo o primeiro astronauta do planeta, é o mais
importante. seja qual for o aspeto segundo o qual for olhado... é a criatura mais
respeitada no seu mundo e a sua influência é, também, considerável.
O Comandante não disse nada, mas as suas feições distenderam-se na invulgar (nele)
configuração de um sorriso.
Conway observou:
— Falando como alguém que o conhece literalmente por dentro, estou certo de que ele
não sente qualquer ressentimento pelo facto de ter sido raptado (na verdade até se
sente grato a nós) e por isso cooperará connosco durante o processo de contacto.
Bastará que acentuemos as nossas diferenças a essas criaturas. Pertencem à espécie
mais estranha que até agora encontrámos. Principalmente não diga que no fundo somos
todos irmãos, ou que pertencemos à grande família dos seres inteligentes da
Galáxia. «Família» e «irmão» são palavras malsoantes!
Mas o chefe dos especialistas de contacto cultural ainda não estava satisfeito —
queria estudar a cultura em profundidade. Insistia em que as civilizações normais
se baseavam na extensão dos laços de família à tribo, à aldeia e ao país, até que
por fim o mundo inteiro se unia. Não podia compreender como uma civilização se
podia criar sem essa cooperação ao nível familiar e tribal mas pensava que um
estudo mais íntimo das relações pessoais pudesse esclarecer as coisas. Talvez o
Doutor Conway não se importasse de aceitar de novo a gravação de Surreshun...
Conway estava fatigado, irritado e esfomeado. A sua resposta foi antecipada pelo
Major Edwards, que disse:
— Não! De maneira nenhuma! O'Mara deu-me instruções severas sobre isso. Com todo o
respeito, Doutor, ele proibiu-me que o fizesse, mesmo que o senhor fosse
suficientemente estúpido para o desejar. As gravações desta espécie não são
utilizáveis. Que demónio, estou com fome e não quero mais sanduíches!
— E eu também — disse Conway.
— Porque é que os médicos estão sempre com fome? — perguntou o chefe do CC.
— Falando pessoalmente — disse Conway—, é porque toda a minha vida de adulto tem
sido devotada ao serviço desinteressado dos outros e à oferta, a qualquer hora do
dia ou da noite, dos meus vastos poderes de operar e curar. Os princípios da minha
grande e altruística profissão exigem isso. Esses sacrifícios (as longas horas, o
sono inadequado, as refeições irregulares), sofro-os de boa vontade e sem
queixumes. Se eu penso em comida mais vezes do que parece normal para os seres
menos importantes, é porque qualquer emergência médica pede surgir e tomar a minha
próxima refeição incerta, e comer agora dar-me-á um maior grau de capacidade...
mesmo os leigos como vocês devem saber dos efeitos da má nutrição no espírito e nos
músculos.
Secamente, acrescentou:
Mas a cirurgia curativa e a medicina eram progressos muito recentes, pois só tinham
sido possíveis quando a espécie aprendera a rodar sem sair de uma posição. No
entanto havia vagas referências a outras espécies que atuavam como médicos, ou
coisa parecida. Pela descrição de Surreshun pareciam ser em parte médicos, em parte
parasitas e em parte animais de presa. Transportar uma criatura dessas era uma
coisa muito arriscada, pois muitas vezes causava o desequilíbrio, a paragem e a
morte do corpo constantemente giratório do paciente. Surreshun insistia em que era
preciso ter mais medo do médico que da doença.
Com as limitadas instalações de tradução, ele era incapaz de explicar como essas
criaturas comunicavam com os seus pacientes. Surreshun nunca vira pessoalmente uma
delas nem conhecia pessoalmente ninguém que as tivesse visto. O que ele podia dizer
de mais próximo era que elas estabeleciam contacto direto com a alma do paciente.
Edwards exclamou:
— Está a fazer preces ou apenas a dar largas aos seus sentimentos? — perguntou
Conway.
— Não sei. Doutor — disse Edwards. — Parece-me que o vosso Psicólogo-Chefe não nos
pode ajudar muito sob esse aspeto. E se pensa que o vou ajudar, aplicando-lhe outra
vez a gravação de Surreshun, será melhor que se deixe disso.
Como grandes argolas molhadas, saíram a rolar da névoa líquida verde e subiram até
à base da nave, em volta da qual passaram a girar. Quando surgiam no seu caminho
alguns recifes ou quaisquer coisas espinhosas, as criaturas oscilavam pesadamente e
por vezes quase se deitavam por um instante se fossem obrigados a mudar de direção,
mas sempre mantendo constante a sua velocidade de rotação e a máxima distância
possível entre elas.
Conway aguardou que Surreshun descesse a rampa e fosse acolhido pelos seus não-
amigos. Vestiu um fato ligeiro, idêntico aos usados na secção dos respiradores de
água, no Hospital, tanto por razões de conforto como para mostrar tanto quanto
possível aos nativos as formas estranhas do seu corpo. Saiu da rampa e deixou-se
cair para o fundo do mar, escutando as vozes traduzidas de Surreshun, das
personagens importantes e daqueles que falavam mais alto entre aqueles que o
rodeavam.
Quando tocou no fundo, pensou que fora atacado. Todas as criaturas na vizinhança da
nave tentaram passar por ele o mais perto possível sem lhe tocarem e cada uma delas
disse alguma coisa quando passou. O microfone do facto captou o som como uma
espécie de grunhido borbulhante, mas o Tradutor, porque era uma mensagem simples,
dentro da capacidade do computador da nave, retransmitiu-a como «Bem-vindo,
estranho».
Não podia haver dúvidas sobre a sua sinceridade — naquele mundo estrambólico o
calor das boas-vindas era diretamente proporcional ao grau de estranheza. E as
criaturas não se importavam de responder a pequenas perguntas. Por isso, Conway
estava certo de que o seu trabalho seria fácil.
Quase a primeira coisa que ele descobriu foi que não havia qualquer necessidade
real dos seus serviços.
Era uma sociedade cujos membros nunca deixavam de girar através e em torno de
«cidades» que eram simples instalações de produção, ensino ou aprendizagem, em vez
de grupos de alojamentos — porque em Meatball não havia alojamentos. Depois de um
período de trabalho num tambor com movimento mecânico, a criatura-argola deixava-se
escorregar do seu arnês e rolava em busca de comida, excitação ou qualquer
companhia estranha, em qualquer parte no fundo do mar.
Não havia sono, nenhum contacto físico além do necessário para a reprodução, nenhum
edifício alto e nenhum cemitério.
Conway falou a várias criaturas que eram demasiado velhas para rolar e eram
mantidas vivas por alimentação artificial, enquanto giravam em rodas com movimento
mecânico. Não conseguiu saber ao certo se eram mantidas vivas por causa do seu
valor para a comunidade ou simplesmente porque fossem objetos de uma experiência.
Sabia que estava a prática de geriatria, mas foi a única forma de medicina que
encontrou, juntamente com outra semelhante, destinada a assistir os partos
difíceis.
—Podemos iniciar uma diagnose preliminar dos problemas do planeta — disse Conway,
furioso. — São o resultado do uso demasiado livre das armas nucleares, por parte
dos roladores! Mas continuamos a precisar desesperadamente de uma apreciação local
da situação médica, e é isso que não conseguimos. O que verdadeiramente importa...
Fora da vigia, as ondas lentas e túrgidas refletiam o luar através de uma cortina
de névoa. A Lua, que se aproximava do Limite de Roche e da desintegração, iria
afetar os habitantes de Meatball — mas só daí a cerca de um milhão de anos. De
momento era um enorme crescente irregular que iluminava o oceano, os sessenta
metros da Descartes que se elevavam acima da superfície e a linha de costa,
estranhamente pacífica.
— A gravação de Surreshun é mais perigosa do que você pensa... você teve muita
sorte em não perder o juízo por inteiro, para sempre. Além disso O’Mara já teve
essa ideia e pô-la de parte. Girar sobre si próprio sob a influência da gravação,
numa cadeira giratória ou num dispositivo construído pela nossa oficina, só
enganará o seu espírito durante uns minutos, segundo ele diz. Mas se quiser
perguntar-lhe-ei outra vez.
Edwards objetou:
Dois dias depois, Conway estabeleceu contacto com um não-parente de Surreshun que
trabalhava na geradora mais próxima — um reator nuclear onde ele se sentia quase
que como em casa, porque tinha quatro paredes sólidas e um teto. O rolador pensava
em realizar uma viagem ao longo de um pedaço de costa ainda não povoado, no fim do
seu período de trabalho que. segundo Conway estimou, devia durar dois ou três dias.
O nome da criatura era Camsaug e não se importava de que Conway o acompanhasse
desde que não se mantivesse demasiado próximo dele se ocorressem certas
circunstâncias. Descreveu essas circunstâncias em pormenor e aparentemente sem
vergonha alguma.
Camsaug ouvira falar nos «protetores», mas somente em segunda ou terceira mão. Não
cortavam e coziam pessoas, como os médicos de que Conway falava — não sabia
exatamente o que eles faziam, mas sabia que, muitas vezes, eles matavam as pessoas
que em princípio deviam proteger. Eram criaturas estúpidas, que se moviam
lentamente e que por qualquer estranha razão se mantinham próximo das secções
costeiras mais ativas e mais perigosas.
No entanto não podiam esperar pelo início das férias de Camsaug — os relatórios de
Thornnastor, as amostras trazidas pelas naves auxiliais de exploração e os próprios
olhos deles não deixavam lugar a dúvidas sobre a urgência da situação.
Meatball era um planeta muito doente. O povo de Surreshun fora demasiado descuidado
no uso da energia atómica, que acabara de descobrir. A razão que ele tivera para
isso fora a expansão da sua cultura, que não se podia sujeitar à constante ameaça
dos enormes monstros terrestres. Detonando uma série de engenhos nucleares a alguns
quilómetros no interior, e cuidando de que o vento não arrastasse a precipitação
para a área onde viviam, as criaturas tinham exterminado as massas monstruosas que
cobriam largas superfícies sobre a Terra. Agora podiam estabelecer bases sobre a
terra morta, para fazer avançar a sua investigação científica em muitos campos.
Não se importavam de ter espalhado peste e cancro através de vastas áreas, muito
para o interior — os grandes tapetes eram o seu inimigo natural. Centenas de
pessoas eram paradas e devoradas pelos monstros terrestres durante anos, e agora
eles estavam apenas a receber a resposta devida.
— Concordo — disse Edwards. — Mas temos de lhes falar com tato. Somos hóspedes
deles, não esqueça!
— Não é preciso usar-se tato para dizer a alguém que se está a matar!
— Deve ter pacientes com uma inteligência invulgar, doutor— disse Edwards,
secamente. E acrescentou: — Se os tapetes orgânicos são inteligentes e não apenas
estômagos com os apêndices indispensáveis para os manter cheios, então devem ter
olhos, ouvidos e qualquer espécie de sistema nervoso capaz de reagir aos estímulos
externos...
— Quando a Descartes pousou aqui houve uma reação bem grande — disse Harrison, do
posto de pilotagem. — O monstro tentou engolir-nos! Dentro de momentos vamos passar
perto do sítio onde isso aconteceu. Querem vê-lo?
— Sim, por favor — disse Conway. Pensativamente, acrescentou: — Abrir a boca pode
ser uma reação instintiva de um monstro esfomeado e falto de inteligência. Mas
havia qualquer espécie de inteligência por causa dessa ferramenta comandada pelo
pensamento que apareceu a bordo.
Saíram da área doente e começaram a correr atrás da sua própria sombra através de
grandes manchas de vegetação de um verde-vivo. Ao contrário dos tipos que
reciclavam ar e detritos, aquelas plantas eram pequenas e não pareciam que
servissem qualquer propósito aparente. Os espécimes que Conway examinara no
laboratório da Descartes tinham raízes muito longas e finas e quatro grandes folhas
que se enrolavam verticalmente mostrando a sua face posterior amarela quando
estavam abrigadas da luz. A pequena nave deixava atrás de si uma fila de folhas
enroladas para o alto, na esteira da sua sombra, como se a superfície fosse o alvo
de um grande osciloscópio verde, e a sombra da nave um ponto de alta persistência.
Era uma cratera pouco profunda com um fundo cheio de altos c baixos, que de maneira
nenhuma se parecia com uma boca. Harrison perguntou se eles queriam descer, num tom
que não deixava dúvidas de que ele esperava que a resposta fosse «Não».
— Sim — disse Conway.
— Também não foi um olho o que essa coisa abriu — disse Harrison, na frequência dos
fatos espaciais. — Eu estava... aqui.
— Parece apenas tecido cicatricial — disse Conway. — Mas é muito profunda para ter
sido formada apenas em consequência do jato traseiro da Descartes. E porque devia
em qualquer caso, haver aqui uma boca, exatamente no lugar onde se decidiu fazer
pousar a nave? As probabilidades contra isso são de milhões para um. E porque não
foram descobertas outras bocas no interior? Explorámos cada quilómetro quadrado da
massa terrestre, mas a única boca que apareceu abriu-se poucos minutos depois da
descida da Descartes. Porquê?
— Essa coisa viu-nos quando nos aproximávamos e... — começou a dizer Harrison.
— Uma boca — disse Conway — com músculos para a abrir e para a mover, com dentes,
sucos pré-digestivos, e um canal alimentar ligando-a a um estômago que, a menos que
ela decidisse também formá-lo, poderia estar a muitos quilómetros de distância...
tudo poucos minutos depois da descida da nave? Pelo que sabemos do metabolismo do
tapete, não posso ver tudo isso a acontecer tão rapidamente!
Conway acrescentou:
— Pelo nosso estudo do tapete que habita essa pequena ilha, no norte, temos uma
ideia razoável de como eles funcionam.
Desde o dia seguinte à sua chegada, a ilha fora mantida sob observação constante. O
seu habitante tinha um metabolismo incrivelmente lento, quase como o de um vegetal.
A superfície superior do tapete parecia não se mover, mas na verdade alterava os
seus contornos para fornecer água da chuva onde ela era necessária à vida das
plantas que reciclavam o seu ar e desperdícios ou serviam como alimento adicional.
A única atividade real ocorria através da orla do tapete, onde o monstro tinha as
suas bocas. Mas aí, mais uma vez, não era o próprio tapete que se movia
rapidamente, mas as hordas dos animais de presa que tentavam devorá-lo. enquanto
ele, lenta e pesadamente tentava sugá-los com a água do mar, rica de alimento. Os
outros grandes tapetes, que não tinham a sorte de possuírem uma orla em contacto
com o mar, comiam vegetação, ou devoravam-se mutuamente.
— Olhos? — perguntou Edwards. — Porque foi que eles não viram a nossa nave de
exploração?
— Nos últimos tempos têm andado por aqui dúzias de naves exploradoras e
helicópteros — disse Conway. — E o monstro pode estar confundido. Mas o que eu
gostaria que fizesse agora, tenente, era que subisse com a sua nave até, digamos,
trezentos metros, e descreva uma série de curvas em forma de oitos. Faça-as tão
apertadas quanto possa, cubra a mesma área de terreno de cada vez e estabeleça o
ponto de cruzamento mesmo sobre as nossas cabeças. Compreendeu?
— Sim, mas...
— Isto fará com que o monstro saiba que não se trata de uma nave exploradora
vulgar, mas sim de uma muito especial — explicou Conway e depois acrescentou:—
Esteja pronto para nos recolher imediatamente, se alguma coisa não correr bem.
— Compreendo o que pretende, doutor. Quer atrair a atenção sobre nós. «X» marca o
ponto e um «X» com os extremos fechados é um 8. A persistência da visão fará o
resto.
A pequena nave começou a cruzar o espaço sobre a cabeça deles nas curvas mais
apertadas que Conway alguma vez vira. Mesmo com os compensadores gravitacionais a
trabalharem a toda a capacidade, Harrison devia estar a suportar pelo menos quatro
G. Na superfície a sombra da nave corria com a rapidez de uma chicotada sobre eles
e à sua volta, traçando uma longa linha, amarelo-viva, de folhas enroladas
verticalmente. A terra tremia com o trovão dos jatos da nave e, depois, muito
ligeiramente, começou a tremer por si própria.
— Harrison!
A pequena nave interrompeu a manobra e rugiu, numa manobra imediata de pouso, atrás
deles. Então o solo estava já a afundar-se.
— Pense em cubos para eles! — gritou. — Pense em qualquer coisa romba! Harrison!
No Geral Sector, Conway vira o seu colega Mannen fazer coisas incríveis na
cirurgia, usando uma dessas ferramentas comandadas pelo pensamento, um instrumento
cirúrgico capaz de tudo, porque se tomava instantaneamente em tudo quanto ele
desejava. Agora, duas dessas coisas arrastavam-se e contorciam-se como pesadelos
metálicos enquanto eles tentavam dar-lhes uma forma e alguém — que era o
proprietário deles e como tal tinha muito maior prática disso — tentava dar-lhes
outra forma. Era uma luta que pendia demasiado para um lado, mas eles conseguiram —
por pouco — prejudicar o pensamento do seu opositor, de maneira bastante para se
afastarem antes que o círculo de «pele», contendo a perfuradora e outro material,
se afundasse e desaparecesse da vista.
Conway disse:
— Pensava antes num fino feixe de luz projetado na superfície durante a noite. As
folhas devem reagir abrindo-se, e o feixe pode mover-se muito rapidamente numa
sucessão de linhas, formando um quadrado, à maneira da antiga TV. Talvez até
possamos projetar filmes.
— É isso — disse Edwards, entusiasmado. — Mas o que não sei é como um monstro sujo,
tão grande como um país inteiro, sem braços, pernas ou qualquer outra coisa, pode
responder ou fazer sinais. Provavelmente pensará em qualquer coisa.
Fez-se silêncio quando a pequena nave voltou a voar horizontalmente, num rumo que a
levaria à nave-mãe. Harrison disse:
Conway disse:
— Tal como vejo as coisas, se foram usadas ferramentas para nos levar até eles, é
que eles estão a uma boa distância da superfície... talvez não possam existir na
superfície. E não esqueçam que eles podem usar o tapete tal como nós usamos os
recursos vegetais e minerais. Como poderiam eles analisar espécimes vivos? Seriam
capazes de os ver lá em baixo? Usam plantas em vez de olhos, mas não posso imaginar
um microscópio vegetal. Talvez eles usem os sucos digestivos do monstro, em certas
fases da análise...
— E se enviássemos um autómato com sensores, primeiro, para ver o que eles fazem?
— É tudo teoria...
— Nave de Exploração Nove. Aqui Mãe. Tenho uma mensagem urgente para o Doutor
Conway. A criatura Camsaug partiu em férias levando o traçador que o doutor lhe
deu. Dirigiu-se para a faixa de costa ativa na área H-12. Harrison, tem alguma
coisa a comunicar?
— Muito — disse o tenente, olhando de soslaio para Conway. — Mas penso que o doutor
lhe quer falar primeiro.
Conway falou durante breves momentos e poucos minutos depois a pequena nave dava um
pulo, sob um impulso de emergência, rasgando o céu demasiado depressa para que as
próprias folhas pudessem reagir à sua sombra e deixando atrás de si uma onda de
choque infindável que devia ensurdecer tudo quanto na superfície tivesse ouvidos.
Mas o grande tapete que ficava para trás, debaixo deles, podia muito bem sofrer de
surdez entre muitas outras enfermidades que agora — pensou Conway, furioso —
incluíam um grande número de cancros da pele, extensos e bem desenvolvidos, e só
Deus sabia o que mais.
Ele perguntou a si próprio se uma criatura enorme e lenta como aquela poderia
sentir dor, se se sentisse, em que medida. Aquilo que ele via estava confinado a
algumas centenas de hectares de «pele» ou era muito mais profundo? Que aconteceria
às criaturas que viviam dentro ou debaixo deles, se muitos dos tapetes orgânicos
morressem, decompondo-se? Até os roladores e a sua cultura aquática seriam afetados
— a ecologia de todo o planeta seria destruída! Alguém tinha de falar aos
roladores, com tanta cortesia como firmeza, se já não fosse demasiado tarde.
Na Descartes o helicóptero que eles tinham requisitado estava à sua espera. Conway
vestiu um facto ligeiro com um motor de propulsão montado nas costas e garrafas de
ar adicionais sobre o peito. Camsaug tinha um grande avanço para que ele o pudesse
alcançar a pé, de modo que Conway teria de voar no helicóptero até à posição
presente da criatura, Harrison estava aos comandos.
O tenente sorriu.
Voaram baixo sobre o troço da costa que se encontrava habitado e onde os fundos
baixos estavam protegidos dos grandes animais de presa marinhos por um cordão de
ilhas e recifes. A essa proteção natural, os roladores tinham adicionado do lado de
terra uma barreira de restos do monstro morto, detonando uma série de dispositivos
nucleares de baixa energia dentro do enorme corpo da criatura. A área estava agora
tão calma que as argolas podiam rolar com muito pouco perigo bem dentro das
cavernosas bocas do tapete orgânico e dos seus pré-estômagos, a sair de novo.
Mas Camsaug estava a ignorar a área segura. Rolava firmemente para a abertura entre
os recifes que levava à costa ativa, onde os animais ferozes, grandes, médios e
pequenos, comiam e corroíam o tapete orgânico.
Harrison fez descer o helicóptero suavemente no ponto indicado e Conway desceu para
um flutuador. Com o visor aberto e a cabeça e os ombros a projetarem-se através da
escotilha do fundo, podia ver o visor de busca e a costa, a uns oitocentos metros.
Qualquer coisa que parecia ser um linguado do tamanho de uma baleia lançava-se fora
de água e voltava a cair nela com um som semelhante ao de uma explosão. A onda
alcançou-os alguns segundos depois e fez balançar o helicóptero como se ele fosse
um pedaço de cortiça.
— Francamente, doutor — disse Edwards —, não compreendo porque é que está a fazer
isto, É uma curiosidade científica, relacionada com os métodos de fecundação deles?
O desejo de ver de perto as bocas gigantescas de um monstro terrestre? Temos
instrumentos com comando a distância que lhe permitirão fazer ambas as coisas sem
perigo, uma vez que nos arrisquemos a instalá-los...
Conway observou:
— Não gosto de espreitar pelo buraco da fechadura, e as suas engenhocas talvez não
digam o que pretendo saber. Compreende, não sei exatamente o que é que procuro, mas
estou razoavelmente certo de que é aqui que poderei entrar em contacto com eles...
— Isso pode ser mais difícil do que esperamos — disse Conway. — Não me agrada
atacar a minha teoria, mas temos de considerar que os conceitos mais importantes
como a astronomia e as viagens no espaço, devem ser de compreensão difícil para
criaturas que vivem dentro ou sob o seu enorme hospedeiro...
Conway explicou que se tratava apenas de outra teoria, mas da maneira como ele a
via, os utilizadores das ferramentas tinham adquirido um grande domínio do seu
ambiente. Num mundo normal, o domínio do ambiente incluiria sectores como a
reflorestação, a proteção contra a erosão do solo, a utilização eficiente de
recursos naturais, etc. Talvez naquele mundo essas coisas não fossem a preocupação
de geólogos e lavradores, mas de criaturas que, porque o seu ambiente era um
organismo vivo, eram especialistas em mantê-lo de boa saúde.
Estava razoavelmente certo de que essas criaturas poderiam ser encontradas nas
áreas periféricas em que o organismo gigante estava sob constante ataque e
necessitava a sua ajuda, estava também certo de que eles fariam o trabalho por si
próprios em vez de usarem os seus instrumentos porque esses dispositivos comandados
pelo pensamento tinham a desvantagem de obedecer e se formarem segundo a fonte de
pensamentos mais próxima — isso fora provado muitas vezes no Hospital, assim como
pelo que acontecera horas antes. Provavelmente, as ferramentas eram valiosas —
demasiado valiosas para que se pudesse correr o risco de serem engolidas e (ou)
tornadas inúteis pelos pensamentos selvagens e desorganizados dos animais de presa.
Conway não sabia como essa gente se chamava a si própria— os roladores davam-lhes
os nomes de Protetores ou Curadores ou um meio quase certo de suicídio, pois eles
matavam mais vezes que curavam. Mas mesmo o mais famoso cirurgião Tralthano em toda
a Federação seria capaz de matar um humano-terrestre, se não possuísse conhecimento
médico da espécie e se não dispusesse de uma gravação fisiológica. Os utilizadores
dos instrumentos trabalhavam com uma desvantagem semelhante, quando tentavam curar
os roladores.
— Mas o que importa é que eles tentam — disse Conway. — Todos os seus esforços se
dirigem para manter um grande doente vivo, em vez de muitos. São os médicos de
Meatball e é com eles que devemos estabelecer contato, em primeiro lugar!
Conway moveu a cabeça num gesto de compreensão, fechou o visor e deixou-se cair
desajeitadamente na água. O peso do propulsor e das garrafas de ar adicionais fê-lo
afundar-se rapidamente e em poucos minutos ele avistou Camsaug a rolar pelo fundo
do mar. Conway seguiu-o, igualando a velocidade do rolador e mantendo-se apenas à
sua vista. Não tinha intenção de se intrometer na vida privada de ninguém. Era um
médico e não um antropólogo e só estava interessado em ver o que Camsaug faria se
necessitasse de socorros médicos.
A água ia-se tomando tão cheia de seres vivos e de atividade animal e vegetal, que
ele já não podia ver a perturbação causada na superfície pelo helicóptero. Como um
precipício vermelho-escuro, a periferia da besta terrestre erguia-se, próxima,
quase obscurecida pela sua massa de atacantes, parasitas e, possivelmente,
defensores aquáticos — a situação era demasiado caótica para que Conway pudesse
estabelecer diferenças. Começou a encontrar novas formas de vida — uma massa negra
brilhante, aparentemente infinita, que cortou o seu caminho, a ondular, e tentou
enrolar-se em volta das suas pernas, e uma grande alforreca irisada, tão
transparente que só os seus órgãos internos eram visíveis.
Uma das criaturas estendera-se sobre cerca de vinte metros quadrados do fundo do
mar, enquanto outra flutuava sobre ela. Não possuíam espinhos ou dardos, tanto
quanto ele pudesse ver, mas todas as criaturas pareciam evitá-las. e Conway fez o
mesmo.
Conway não viu como a coisa acontecera; notou apenas que o rolador oscilava mais do
que era usual e quando se aproximou viu um grupo de dardos venenosos a sobressaírem
do seu flanco. Quando alcançou Camsaug, viu-o a rolar num círculo apertado, quase
sobre o solo, como uma moeda nos movimentos lentos que surgem quando ela está quase
a deixar de girar. Conway sabia o que tinha a fazer, uma vez que enfrentara uma
emergência semelhante quando Surreshun fora transferido para o hospital. Levantou
rapidamente o rolador e começou a empurrá-lo através do fundo do mar como se fosse
um pneu furado.
Camsaug fazia ruídos que não eram traduzidos, mas o seu corpo foi-se tornando menos
flácido à medida que rolava — começava a reanimar-se. Subitamente oscilou e
afastou-se, rolando entre duas moitas de vinhas aquáticas. Conway subiu a uma
altura segura, mas um linguado gigante, com as mandíbulas abertas, lançou-se sobre
ele e fê-lo mergulhar instintivamente.
A cauda enorme afastou-se, sem o ferir, mas arrancando o propulsor das suas costas.
Simultaneamente, uma vide fustigou-lhe as pernas, rasgando o tecido do facto numa
dúzia de pontos. Sentiu a água fria a subir-lhe pelas pernas e sob a pele surgiu
algo como fogo líquido, que lhe correu pelas veias. Viu de relance Camsaug a rolar
estupidamente sobre a orla de uma alforreca e outra das criaturas que descia sobre
ele como uma nuvem irisada. Como Camsaug, os ruídos que fazia não eram traduzíveis.
— Doutor! — A voz estava tão deformada pela aflição que ele não a reconheceu. — Que
foi que aconteceu?
Conway não sabia e não podia falar. Por precaução contra quaisquer danos no espaço
ou em atmosferas nocivas, o revestimento do seu facto fora dividido em secções
anulares que obturavam a área de rotura, expandindo-se apertadamente contra a pele.
Tratava-se de conter a queda de pressão, ou o gás venenoso, mas naquele caso os
anéis expandidos estavam a atuar como torniquetes, demorando a difusão do veneno no
seu sistema. Apesar disso, Conway não podia mover os braços, as pernas ou mesmo os
queixos. A sua boca imobilizara-se, aberta, e ele apenas podia respirar — e mal.
A alforreca estava exatamente por cima dele. A sua orla enrolou-se sobre o corpo de
Conway e apertou-o, enrolando-o numa espécie de casulo quase invisível.
Sentiu qualquer coisa picar várias vezes as suas pernas e descobriu que a alforreca
tinha espinhos ou esporões e os estava a usar nos sítios onde o tecido do seu facto
fora rasgado pelas vides. Comparada com a sensação de ardor nas suas pernas, a dor
era pequena, mas ele ficou preocupado porque as picadas pareciam muito próximas das
artérias e veias. Com um tremendo esforço moveu a cabeça para ver o que estava a
acontecer, e viu o que esperava. O seu casulo transparente estava a tomar-se
vermelho.
— Doutor! Onde está? Posso ver Camsaug a rolar. Parece que ele está envolvido por
um saco de plástico rosado. Há uma grande bola vermelha exatamente por cima dele...
Conway podia agora ver o major. Edwards vestia um facto de serviço pesado que o
protegia das vinhas e dos espinhos, mas tornava difícil a pontaria — a sua arma
parecia apontar para Conway. Instintivamente, ele protegeu o rosto com as mãos e
verificou que os seus braços se moviam facilmente. Pôde voltar a cabeça, dobrar as
costas e as pernas doíam-lhe menos. Quando olhou para elas, a região dos joelhos
estava vermelha, mas a massa que a rodeava parecia mais transparente.
Era impossível!
Olhou de novo para Edwards e, depois, para o lento e perigoso rolar de Camsaug, que
continuava envolvido. Surgiu no seu espírito uma grande luz.
—Não dispare, major — disse Conway, fracamente, mas de uma maneira distinta. — Peça
ao tenente para descer a rede de salvação. Icem-nos para o helicóptero e para a
Descartes, depressa. A menos que o nosso amigo não possa sobreviver no ar. Nesse
caso levem-nos a ambos à Descartes, submersos... o meu ar durará. Mas tenha muito
cuidado em não o aleijar nem magoar.
Ambos quiseram saber de que diabo ele estava a falar. Fez tudo quanto pôde para
explicar, acrescentando:
MEATBALL
O tenente que pilotava olhou para trás, para Conway e Edwards, o médico da nave-
mãe, e ergueu um sobrolho.
— Esta nave contém três humano-terrestres com a classificação fisiológica DBDG. São
o Major Edwards e o Tenente Harrison do Corpo de Monitores e eu, o Médico-Chefe
Conway. Transportamos dois nativos de Drambo. Drambo é o nome nativo do planeta...
vocês ainda o devem ter indicado como Meatball, que era o nome antes de termos
descoberto nele vida inteligente. Um dos nativos é um CLHG, respirador de água, com
um metabolismo de sangue quente baseado no oxigénio. O outro pode provisoriamente
ser classificado como SRJH e parece à vontade tanto no ar como na água.
— Negativo.
— Obrigado.
A pequena nave entrou na enorme caverna cúbica que era a Escotilha Vinte e Três
enquanto vestiam os fatos ligeiros que usavam para ambientes onde o líquido ou o
gás era letal, mas se encontrava a pressões razoáveis. Sentiram as garras colocá-
los no berço ajustável e cambalearam ligeiramente quando as grelhas de gravidade
artificial foram ligadas. A porta exterior da escotilha fechou-se e ouviram a água
a cair pelas arribas de metal.
— Doutor, fala Harrison. O chefe da equipa de receção diz que demorará algum tempo
até que a escotilha esteja completamente cheia de água, e que se completem os
processos de anti-contaminação nas outras cinco entradas internas. A escotilha é
grande, e a pressão da água nas portas externas será severa se...
— O homem abençoa-o.
Era uma questão puramente retórica, porque o outro Dramboniano não falava, talvez
porque não podia. Mas se não podia conversar, podia pelo menos reagir. Como uma
enorme e irisada medusa — seria completamente invisível na água se não fosse a sua
pele irisada e os órgãos internos, nebulosos — Dramboniano ondulou na direção
deles. Enrolou-se em tomo de Conway como um casulo transparente, durante um
momento, e depois transferiu as suas atenções para Edwards.
— É uma entrada muito melhor que a primeira — disse Conway quando Edwards começou a
ajudá-lo a retirar do porão o equipamento de manutenção de vida de Surreshun. —
Pelo menos desta vez sabemos o que estamos a fazer.
— Não é preciso pedir desculpa, amigo Conway — disse Surreshun. — Para uma criatura
com uma inteligência e com valores morais tão altos como os meus, a simpatia pelas
limitações mentais das criaturas inferiores e, de resto, o perdão de quaisquer
incómodos que me hajam causado são pequenas facetas da minha generosa
personalidade.
Conway não dera conta de que estivera a apresentar desculpas, mas para uma criatura
que desconhecia por completo o conceito de modéstia, era possível que as suas
palavras soassem desse modo. Diplomaticamente, não disse nada.
— Desculpe isto, doutor — disse a sua voz, um pouco deformada pelo meio usado para
a transmissão. — Surgiu subitamente uma emergência e não quero sobrecarregar a
frequência dos fatos. Gostaria de que todos vocês fossem para a enfermaria tão
depressa quanto possível. Surreshun já passou anteriormente pelas nossas mãos pelo
que não temos de nos preocupar com ele. Bastará que tomemos conta do outro tipo
e... Que demónio!
O «outro tipo» tinha-se enrolado em volta da cabeça e dos ombros dele, segurando-
lhe os braços e acariciando-o como um cão com doze cabeças invisíveis.
— Talvez ele goste de si — disse Conway. — Se lhe não der atenção dentro de um
momento ele vai-se embora.
Conway nadou em volta e sobre a criatura, agarrou com as duas mãos o tegumento
transparente e flexível que cobria as costas dela e empurrou-a de lado contra a
água até que a frente da criatura ficou virada para a entrada da enfermaria.
Grandes e lentas ondulações percorreram o corpo dela e a criatura começou a ondular
na direção do corredor que levava à enfermaria AUGL, como um tapete voador irisada.
A roda de Surreshun seguiu-o de uma forma menos graciosa.
Mesmo uma pequena ferida perfurante ou incisa era uma coisa muito séria para um
Kelgiano. Eram lagartas gigantes, peludas, e só o seu cérebro, alojado na secção
cónica da cabeça, estava protegido por qualquer coisa que parecesse uma estrutura
óssea. O corpo era constituído por uma série de largas cintas musculares que lhe
davam mobilidade e serviam para proteger, muito inadequadamente, os órgãos vitais
internos.
Eram cinco humano terrestres que usavam fatos ligeiros como o dele, dois Kelgianos
e um Illensano cujo invólucro transparente mostrava o amarelo nebuloso do cloro, no
seu interior. Um dos capacetes dos humano-terrestres continha uma cabeça que ele
reconheceu—a do seu amigo Mannen, que se especializara em cirurgia Hudlariana.
Formavam um enxame em volta do ferido como um cardume de peixes disformes,
empurrando-o e puxando-o na direção do outro lado da enfermaria, e o tamanho do
cardume aumentava quando o chefe da equipa de receção e os seus homens se
aproximavam para apreciar a situação. A alforreca Dramboniana também se aproximou.
Todos o ouviram porque ele os viu saltar quando a voz dele soou de uma maneira
ensurdecedora nos comunicadores dos seus fatos. Mas não sabiam a quem haviam de
deter, nem como o fazer, e não havia tempo para lhes explicar isso.
Houve uma suave explosão de bolhas quando as sondas do Dramboniano romperam a maca
de pressão do Kelgiano e se enfiaram no fato já danificado que a criatura usara na
sala de operações Hudlariana, para depois se inserirem no espesso pêlo prateado que
estava por baixo dele. Segundos depois, o seu corpo transparente estava a
avermelhar-se, à medida que sugava o sangue do Kelgiano ferido.
Podia ter ficado calado, porque toda a gente estava a falar e a sobrecarregar o
rádio do seu fato. A tomada direta de som também não ajudava — tudo quanto ele
podia ouvir era o grunhido profundo e rouco da sereia de emergência da enfermaria e
demasiadas vozes a gritar, até que uma, muito alta, Chalderiana, se fez ouvir acima
das outras.
— Animal! Animal!
A regra no Geral do Sector era a de que, se uma criatura estava viva, fosse qual
fosse o tamanho ou forma que tivesse, então era inteligente.
As exceções a essa regra eram muito raras e incluíam animais de estimação — não
violentos, evidentemente — pertencentes ao pessoal ou a visitantes de importância.
Quando uma criatura não inteligente entrava acidentalmente no Hospital, tinham de
ser tomadas imediatamente medidas de proteção, para que as formas de vida
inteligentes mais pequenas não sofressem.
Edwards chegou então, viu o que Conway estava a fazer e juntou-se a ele. Os dois
pontapearam o focinho gigantesco do Chalderiano, tentando afastá-lo. Não podiam
aleijar o monstro, mas confiavam em que o extraterrestre não atacasse duas
criaturas inteligentes para matar outra criatura que parecia ser um animal e que
estava a atacar um terceiro ser inteligente. A situação era, no entanto,
suficientemente confusa para que fosse cometido um erro. Era muito possível que
Edwards e Conway ficassem com as pernas amputadas da cintura para baixo.
Subitamente, o pé de Conway foi agarrado por duas mãos grandes e fortes e o seu
amigo Mannen aproximou-se até que os capacetes de ambos entraram em contacto.
— Conway, que diabo está a fazer?
— Não tenho tempo para explicar — respondeu ele. — Leve-os o mais rapidamente
possível para a secção de ar. Não deixe que ninguém aleije o SRJH; ele não está a
fazer mal algum.
Mannen olhou para a criatura que cobria o Kelgiano como uma bolha enorme, vermelha
como sangue. Já não era transparente e o sangue do enfermeiro ferido podia ser
visto a entrar e a difundir-se pelo enorme corpo do Dramboniano, que parecia cheio
até quase estoirar.
— Talvez me tenha enganado — disse Mannen. Com uma das mãos agarrou um dos enormes
dentes do Chalderiano, fê-lo rodar até poder fitá-lo num olho que tinha quase o
tamanho de uma bola de futebol e com a outra mão fez movimentos secos, laterais.
Mostrando-se confundido, o Chalderiano afastou-se, e poucos momentos depois estavam
na escotilha que conduzia à secção dos respiradores de ar.
A água esgotou-se e a porta abriu-se para mostrar dois homens do Corpo, vestidos de
vende, que se encontravam na antecâmara, de armas prontas. Um deles estava agarrado
a uma metralhadora com tambores múltiplos, capaz de anestesiar instantaneamente uma
dúzia (ou mais) de formas de vida que pertenciam à categoria dos respiradores de
oxigénio com sangue quente, enquanto o outro apontava uma arma muito mais pequena e
de aspeto muito menos feroz, mas que era capaz de matar um elefante ou qualquer
extraterrestre do mesmo tamanho.
Eles não baixaram as armas, nem deram mostras de terem acreditado no que ele
dissera.
— Seria melhor que se explicasse — disse o chefe da equipa, calmamente, mas com a
cólera a transparecer no rosto.
— Sim — disse Conway. — Ah, espero não o ter aleijado quando lhe dei aquele
pontapé...
Edwards, que era quem estava mais próximo, regulou a câmara de televisão como foi
exigido e disse:
— Naturalmente, se Conway tem alguma coisa a ver com isso — disse O’Mara,
causticamente.— Que está ele a fazer aí? Está a fazer preces para um parto feliz?
Conway estava de joelhos junto do Kelgiano ferido, verificando o seu estado. Pelo
que podia ver, o Dramboniano colara-se de tal maneira que muito pouca água entrara
na maca de pressão ou no fato de proteção: a criatura estava a respirar
normalmente, sem indicação de água nos pulmões. A cor do Dramboniano tornara-se
mais clara. Já não era vermelho-escura: voltara ao seu colorido normal irisado,
apenas um pouco róseo. Enquanto Conway fazia as suas observações, o Dramboniano
soltou-se do Kelgiano e rolou como um grande balão cheio de água até parar contra a
parede.
Edwards dizia:
— Um relatório completo sobre esta forma de vida, há três dias. Compreendo que três
dias não são muito tempo para que os resultados sejam disseminados através de um
estabelecimento deste tamanho, mas nada disto teria acontecido se o Dramboniano não
tivesse sido exposto a uma criatura seriamente ferida...
A voz de O’Mara fez-se ouvir num tom que tinha tudo menos o que dizia:
Não era muito vulgar que O’Mara não soubesse o que dizer.
Conway afastou-se para o lado para que o Kelgiano, que já não estava ferido, se
levantasse sobre os seus inúmeros pés. Disse:
«No entanto, nem todo o sangue é devolvido, e não fomos capazes de determinar se é
fisiologicamente impossível para a criatura devolvê-lo todo ou se ela retém alguns
gramas como pagamento pelos serviços prestados.»
O Kelgiano soltou um ronco que parecia o de uma sereia de nevoeiro. O ruído foi
traduzido como:
O DBLF afastou-se seguido pelos dois militares armados. Olhando estupefacto para o
nativo de Drambo, o Comandante fez sinal aos seus homens para que voltassem aos
respetivos postos e o silêncio começou a pesar.
— Quando tiverem tratado dos vossos visitantes e não houver razões fisiológicas
contra isso, será bom que nos reunamos para discutir isto. No meu gabinete dentro
de três horas.
O seu tom era agoirentamente calmo. Seria uma boa ideia se Conway ganhasse algum
apoio moral e médico para a reunião com o Psicólogo-Chefe.
Conway pediu ao seu amigo Prilicla para participar na reunião, assim como o Coronel
Skempton e o Major Edwards, o Doutor Mannen, os dois Drambonianos, Thornnastor e
dois médicos de Hudlar e Melf que estavam a seguir cursos no Hospital. Demoraram
alguns minutos a entrar na enorme antecâmara do gabinete de O’Mara — uma sala
normalmente ocupada apenas pelo ajudante do Major e algumas peças de mobiliário
próprias para os extraterrestres com os quais O’Mara tinha contactos profissionais.
Naquela ocasião era o Psicólogo-Chefe quem ocupava a secretária do seu adjunto e
aguardava com uma impaciência visivelmente mal contida, que toda a gente se
sentasse, deitasse, ou colocasse como melhor lhe conviesse.
— A razão por que eu voltei foi simplesmente a de pedir auxílio. Não estava a fazer
qualquer progresso no problema de Drambo e isso preocupava-me.
O’Mara observou:
«A razão disso está no facto de nos últimos anos a espécie de Surreshun ter
aprendido como libertar a energia atómica. Explosivamente, e com vastas quantidades
de poeira radioativa. Eles são... (hesitou, tentando encontrar uma maneira
diplomática de falar de falta de cuidado, estupidez, ou desejo de suicídio) ...são
muito orgulhosos da sua recente descoberta, que lhes permite matar grandes áreas
das criaturas terrestres e tomar as águas pouco profundas, em torno dessas linhas
costeiras vivas, seguras para a sua população, cada vez maior.
«Quando se tornou evidente que a gente de Surreshun não era quem construía as
ferramentas, perguntámos a nós próprios onde poderíamos mais facilmente encontrar
esses construtores, e calculámos que fosse nas regiões onde a sua terra viva estava
sob um ataque constante. Era aí que eu esperava também encontrar os seus médicos, e
foi lá, de facto, que eu encontrei o nosso amigo transparente. Ele salvou-me a
vida, de uma maneira muito desconcertante, e eu estou convencido de que ele é o
equivalente a um médico, em Drambo. Infelizmente, ele não parece poder comunicar
comigo de qualquer maneira que eu possa entender e, tendo presente o facto de que
qualquer pessoa pode observar as suas entranhas sem necessidade de raios X, não
parece possuir qualquer agrupamento de gânglios nervosos, ou qualquer coisa que se
pareça com um cérebro.
— Não é estranho que um dos Drambonianos não tenha coração e o outro pareça não ter
cérebro?
— Estou habituado a médicos sem miolos —disse secamente O’Mara. — Comunico com
eles, e de uma maneira geral com êxito, todos os dias. Mas esse é o seu único
problema?
— Já disse que temos de tratar um pequeno número de pacientes muito grandes. Mesmo
com a ajuda de todos os médicos de Drambo continuaria a necessitar de auxílio
cartográfico (isto é: reconhecimento fotográfico) para determinar a extensão do
mal, de uma maneira tão precisa quanto possível, e também da sondagem das regiões
internas. O uso de raios X a semelhante escala é impossível. Uma operação de
perfuração em grande escala para colher amostras do tecido a grande profundidade
seria de pouco uso, uma vez que a broca corresponderia a uma agulha muito curta e
impossivelmente fina. Portanto precisamos de investigar pessoalmente as áreas
doentes ou danificadas, usando carros blindados e, se possível, os nossos pés e as
nossas mãos, dentro de fatos espaciais de serviço pesado. A entrada para as áreas
afetadas poderá ser feita através das aberturas naturais, e a missão poderá ser
muito rápida se tivermos o auxílio de gente com treino médico que não precise da
proteção de veículos blindados, nem de fatos. Estou a pensar em espécies como os
Chalderianos, os Hudlarianos e os Melfanos.
— Gostaria que a Patologia me desse sugestões para fornecer uma cura por cirurgia,
de preferência a uma medicamentação. As indicações presentes são de que o mal é uma
consequência do envenenamento radioativo, e ainda que eu saiba que hoje podemos
curar casos mesmo muito avançados, o tratamento poderá ser impossível de aplicar a
doentes daquele tamanho, sem mencionar o facto de que a medicamentação regenerativa
necessária para apenas um deles representaria a produção total de uma dúzia de
planetas durante muitos anos. Daí a necessidade de uma solução cirúrgica.
— Não me compreendeu, senhor — disse Conway. — Não posso saber precisamente qual a
dimensão do auxílio de que necessitaremos, mas tenho estado a pensar em termos de
uma subarmada de sector, completa, dispondo de lasers de longo alcance, torpedos
perfurantes, armas nucleares táticas («limpas», evidentemente) e todas as outras
coisas terríveis que possa sugerir e que sejam simultaneamente concentradas e
capazes de serem dirigidas com precisão.
«Compreende, Coronel: a cirurgia em tamanha escala exigirá uma operação que será
mais militar que cirúrgica.» — Conway voltou-se para O’Mara e acrescentou: — Essas
são algumas das razões do meu regresso imprevisto. As outras são menos urgentes
e...»
— Podem muito bem esperar até que esta parte esteja resolvida — disse O’Mara com
firmeza.
A reunião cessou pouco depois porque nem Surreshun nem Conway podiam dar qualquer
informação sobre Drambo que não constasse já dos relatórios do Corpo. O’Mara
retirou-se para o gabinete interior com o medico Dramboniano. Thornnastor e
Skempton voltaram para os seus serviços e Edwards, Mannen, Prilicla e Conway, tendo
procurado em primeiro lugar dar conforto a Surreshun no tanque dos AUGL, dirigiram-
se para o refeitório dos respiradores de oxigénio. Os médicos de Hudlar e Melf
acompanharam-nos para saber mais coisas sobre Drambo e para ver os outros comerem.
Eram novatos no Hospital e, estando nos primeiros ardores do entusiasmo, passavam
todos os momentos disponíveis a observar os extraterrestres e a falar com eles.
Conway sabia o que isso era. Ainda tinha muito disso, mas já estava suficientemente
prático para admirar o entusiasmo dos jovens...
— Não sou Prilicla— disse Mannen, a rir-se—, mas até eu estou a ver que está a
pregar aos convertidos. Gosta de bife frio, Conway?
Conway disse:
Prilicla deslizou subitamente, de lado, e quase meteu uma das suas pernas na
sobremesa de Mannen. Tremia ligeiramente— um sinal seguro de que alguém na mesa
irradiava emoções fortes e complicadas.
Mannen disse:
— Não sou Prilicla, mas pelo comportamento do seu amigo empata creio que você está
a procurar, e a tentar justificar, uma ligação muito íntima com o departamento de
patologia e especialmente com uma patologista chamada Murchison. Não é verdade,
Doutor?
Edwards perguntou:
— Quem é Murchison?
— Oh, é uma fêmea DBDG humano-terrestre. Uma enfermeira muito eficiente com uma
experiência operacional de mais de trinta formas de vida diferentes, que se
classificou recentemente como uma patologista, com grau superior. Pessoalmente,
acho-a muito agradável e cortês, a ponto de ignorar as (para mim) repelentes
camadas de tecido adiposo que cobrem a maior parte da sua musculatura.
— Se lhe derem metade de uma oportunidade — disse Mannen, num tom grave.
— Você devia casar com a garota, Conway.
— Já o fez.
— Ah!
«Mas aquilo que eu pretendo pôr em evidência é que a grande maioria dos nossos
extraterrestres não compreende porque é que a fêmea da nossa espécie deve perder a
sua identidade, a mais poderosa de todas as propriedades: o seu nome. Para muitos
deles isso equivale à escravidão, ou, pelo menos, à cidadania de segunda classe,
enquanto para outras é uma simples estupidez. Não veem porque é que uma médica,
enfermeira ou técnica humano-terrestre deve mudar de identidade e tomar o nome
pertencente a outra entidade por simples razões emocionais. Portanto elas mantêm os
seus nomes profissionais, como as atrizes e outras fêmeas com profissões, e têm
todo o cuidado em usá-los sempre, para evitar confusões de identidade com
extraterrestres que...
— É isso. Mas eu gostaria que me explicasse a diferença entre uma mulher amadora e
uma profissional.
— Claro que se comportam de maneira diferente, na sua vida particular. Algumas são
tão depravadas que se tratam pelos nomes próprios.
— Creio que não, amigo Conway — disse o empata. — Durante toda a reunião, o
Dramboniano esteve consciente e bem atento, mas ele não reagiu a nada que tivesse
sido dito ou feito, nem se empenhou em qualquer pensamento concentrado. Teve apenas
sentimentos de bem-estar, e de autocontentamento.
Edwards comentou:
— Sem dúvida que ele fez um bom trabalho nesse Kelgiano, e para uma sanguessuga, os
decilitros de sangue que ele absorveu...
— O’Mara quer ter a sua ajuda, Prilicla, quando for fazer passar o nosso amigo
sanguessuga através dos seus labirintos psicológicos, de modo que ficar-lhe-ei
muito grato se puder observar as suas radiações emocionais enquanto o contacto
estiver a ser estabelecido. O Major poderá querer esperar até que um tradutor
especial tenha sido programado para o Dramboniano, antes de falar comigo. Mas eu
gostaria de dispor de qualquer informação útil, tão depressa você a consiga . .
Três dias depois, quando ia a entrar na Descartes com Edwards e a primeira leva de
recrutas — alguns poucos, muito bem escolhidos, que, segundo ele esperava, poderiam
pelo seu entusiasmo atrair e instruir muitos mais — os altifalantes começaram a
insistir para que o Doutor Conway entrasse em comunicação com o Major O’Mara,
imediatamente — e a insistência era reforçada com uma dupla campainhada que
precedia os sinais mais urgentes. Fez sinal aos outros para que fossem andando e
dirigiu-se ao comunicador da escotilha.
— Ainda bem que o apanhei — disse o Psicólogo-Chefe antes que Conway pudesse fazer
mais alguma coisa além de se identificar. — Oiça e não fale. Prilicla e eu não
estamos a conseguir nada com o nosso médico de Drambo. Ele tem emoções, mas não o
conseguimos excitar de maneira nenhuma, de modo que nem sequer podemos averiguar de
que é que ele gosta ou não gosta.
Sabemos que que vê e sente, mas não sabemos se ele pode ouvir e falar, ou, se pode,
como faz tais coisas. Prilicla pensa que ele pode ter uma forma baixa de empatia,
mas enquanto não pudermos agitar um pouco a sua disposição sempre imperturbável não
há maneira de provar isso. Não me confesso batido, Conway, mas você entregou-nos um
problema que pode ter uma solução muito simples...
— Foi a primeira, a segunda e a centésima coisa que tentei — disse O’Mara com
amargura. — Prilicla detetou um aumento muito ligeiro de interesse, correspondente,
segundo ele, à identificação de um objeto familiar. Mas o Dramboniano não fez
qualquer tentativa para se servir do instrumento. Estava a dizer que você nos
arranjou um problema. Talvez a resposta mais simples seja a de nos arranjar outro
como ele.
O Psicólogo-Chefe não gostava de dar explicações, de modo que Conway pensou por um
momento antes de dizer:
— Pelo que compreendo, gostaria que eu lhe trouxesse outro médico de Drambo, para
que pudesse observar e escutar a conversação deles quando se encontrarem, e
reproduzir o método no tradutor...
Não foi possível a Conway procurar, raptar ou de qualquer outra maneira arranjar
imediatamente outro SRJH no seu regresso a Drambo. Tinha um grupo de
extraterrestres com variadas exigências de alimentação, gravidade e atmosfera, e
ainda que as três formas de vida pudessem subsistir sem muita dificuldade no oceano
de Drambo, os seus aposentos na Descartes tinham de ter alguns dos confortos dos
mundos natais.
A primeira expedição à costa foi um simples ensaio geral — pelo menos começou como
tal. Camsaug e Surreshun colocaram-se na vanguarda, oscilando e rodando ao longo do
fundo do mar como um par de grandes argolas orgânicas. Eram ladeados por dois
Melfanos parecidos com caranguejos e que podiam avançar duas vezes mais depressa do
que os Drambonianos podiam rolar, enquanto um Chalderiano com nove metros de
comprimento, couraçado, e com os tentáculos prontos a atacar, nadava majestosamente
por cima deles, pronto a desencorajar os animais de presa locais com os seus
dentes, garras e a grande massa óssea da cauda — ainda que na opinião de Conway
bastasse um olhar dos seus quatro aparelhos oculares telescópicos para desencorajar
todos quantos tivessem a mais pequena vontade de viver.
Dirigiam-se para uma seção morta da costa, uma profunda faixa da besta terrestre
que o povo de Surreshun matara para conquistar mais espaço para rolar. Tinham feito
isso com bombas atómicas porque a precipitação radioativa era afastada pelos ventos
predominantes, que sopravam na direção do interior. Mas Conway escolhera
propositadamente um ponto que ficava apenas a poucos quilómetros de uma faixa de
costa ainda muito viva, de modo que com um pouco de sorte o seu primeiro exame
podia tornar-se em algo mais que uma autópsia.
A primeira boca utilizável tinha o aspeto de uma caverna enorme. Quando seguiram os
roladores e entraram nela, os projetores do veículo mostraram vegetação pálida
oscilando e contorcendo-se até onde chegava a vista. Surreshun e Camsaug
descreveram inseguros «oitos» - naquela espécie de mato, e pediram desculpa por não
poderem levar o grupo mais longe sem correrem o risco de parar.
Conway respondeu-lhes:
— Compreendo. E obrigado.
Quando penetraram mais na enorme boca, a vegetação tornou-se rara e mais pálida,
mostrando grandes áreas do tecido da criatura. Parecia grosseiro e fibroso, e muito
mais vegetal que animal, mesmo considerando que morrera havia já alguns anos. O
teto começou subitamente a descer e as luzes da frente mostraram a primeira
barreira séria, um labirinto de dentes longos, como presas, tão espessos que eles
se julgaram no limiar de uma floresta petrificada.
«Pela posição e condição de alguns cadáveres gigantescos, nesta área, direi que o
sistema de ingestão da criatura é muito simples. A água do mar, contendo animais
alimentícios de todos os tamanhos, é arrastada para o estômago ou pré-estômago. Os
pequenos animais passam através dos dentes, enquanto os grandes se espetam neles,
depois do que a corrente de água que entra e os esforços do animal levam os dentes
a inclinarem-se para dentro e a libertá-lo. Creio que os pequenos animais não são
problema, mas que os grandes podem fazer sérios danos ao estômago antes de o
sistema digestivo os neutralizar, de modo que eles têm de estar mortos antes de lá
chegarem.
Conway dirigiu os projetores para a área onde se encontrava o Melfano e viu ele
indicar uma das mandíbulas. Disse-lhe:
— Não é necessário, doutor — disse o Melfano. — Os dentes estão podres e são muito
moles e quebradiços. Pode simplesmente avançar através deles. Nós segui-lo-emos.
Edwards deixou o cruzador assentar no fundo e depois fê-lo avançar a uma velocidade
conveniente para o Melfano. Centenas de longas e descoloridas plantas-dentes
partiram e caíram lentamente através da água opaca, antes de se encontrarem
subitamente livres.
— Se os dentes são uma forma especial de vida vegetal — disse Conway, pensativo —
ocupam uma área muito bem definida, o que significa que alguém os plantou.
— Já andámos bastante — observou Conway. — Será melhor que não percamos de vista a
saída.
— Sabemos que havia centenas dessas bocas nesta secção morta, e o número de
estômagos pode ser um qualquer... grandes cavernas chatas e com quilómetros de
largura, se este radar não me está a enganar. Nem sequer ainda aflorámos o
problema!
Até o Hudlariano saiu para ver mais de perto os grandes, fortemente encurvados,
pilares que sustentavam o teto. Usando os seus analisadores portáteis puderam
determinar que os pilares eram uma parte da musculatura do monstro e não, como
tinham pensado, outra forma de vida vegetal — ainda que a superfície de todos os
suportes musculares naquela área estivesse coberta com qualquer coisa que parecia
uma alga gigante. Os grãos tinham quase um metro de comprimento e pareciam prestes
a rebentar. Um Melfano que retirava um espécime do músculo subjacente tocou
acidentalmente num e ele rebentou, fazendo estoirar uma vintena dos seus vizinhos.
Todos eles largaram um líquido espesso, leitoso, que se espalhou rapidamente e se
dissolveu na água.
— Não, doutor. Tem um forte conteúdo de ácido, mas não é imediatamente perigoso. Se
fosse um respirador de água diria que cheira mal. Mas olhe para o efeito no
músculo.
O grande pilar de músculo enraizado firmemente tanto no fundo como no alto estava a
tremer. A sua curva começou a endireitar-se.
— Sim — disse Conway—, isto apoia a teoria que estabelecemos sobre o método de
ingestão da criatura. Mas agora creio que devemos voltar à Descartes... esta área
pode não estar tão morta como supúnhamos.
Nos outros pilares começavam a rebentar mais grãos. Isso, só por si, não
significava que o monstro estivesse vivo, mas apenas que o músculo morto podia
ainda responder ao estímulo próprio. Mas o teto da caverna estava a levantar-se e a
água entrava de novo.
Edwards disse:
— Concordo em que temos de sair daqui. Mas será melhor que o façamos por outra
boca... poderemos aprender alguma coisa através de um novo cenário.
— Sim — disse Conway com a sensação incómoda de que devia ter dito que não. Se os
músculos mortos podiam mexer-se, que outras formas de atividade involuntária eram
possíveis na gigantesca carcaça? Acrescentou: — Conduza o veículo, mas mantenha a
escotilha de carga e a do pessoal abertas... eu manter-me-ei de fora com os
extraterrestres...
Poucos minutos depois Conway estava agarrado a uma pega enquanto o veículo seguia
os extraterrestres para uma boca diferente. Ele tinha esperanças de que fosse uma
boca e não uma ligação com alguma coisa mais no interior do monstro, porque Edwards
informara que ela se curvara para uma área costeira viva. Mas antes de que o
abaixamento de temperatura dos seus pés pudesse afetar a sua fala ao ponto de lhes
ordenar que voltassem por onde tinham vindo, houve uma interrupção.
— Major Edwards, pare o cruzador, por favor — disse um dos Melfanos. — Doutor
Conway, creio que encontrámos um colega... morto.
Era um SRJH Dramboniano, já não transparente mas leitoso, engelhado, com uma longa
ferida incisa que atravessava o seu corpo e que flutuava e chocava aqui e ali,
junto ao fundo.
— Thornnastor vai ficar contente por te ver, amigo — disse Conway, entusiasmado. —
E também O’Mara e Prilicla. Metamo-lo a bordo com os outros espécimes. Não sou um
respirador de água, mas...
— Ele também não é — observou o Melfano. — E parece-me que morreu há muito pouco
tempo.
O Chalderiano voltou para trás, agarrou o SRJH morto com os seus tentáculos e
transferiu-o para o compartimento refrigerado dos espécimes, depois do que voltou à
sua posição. Poucos segundos depois, uma palavra átona, traduzida, foi ouvida nos
recetores deles.
— Companhia.
Edwards dirigiu todas as suas luzes para mostrar todo um jardim zoológico em luta,
que praticamente enchia a garganta, na sua frente. Conway identificou duas espécies
de grandes animais ferozes aquáticos, os quais tinham por certo conseguido abrir
caminho através dos dentes quebradiços, e também cerca de dez SRJH e alguns peixes
com tentáculos e grandes cabeças que nunca vira. Era impossível dizer quem lutava
com quem, ou mesmo se isso tinha alguma importância para as criaturas nisso
empenhadas.
— Entrem depressa!
Meio a correr, meio a nado para o veículo, Conway invejou a mobilidade submarina
dos Melfanos. Ultrapassou o Hudlariano que tinha as mandíbulas de um grande animal
de presa cerradas sobre a sua carapaça. Por baixo dele uma das novas formas de vida
tinha um SRJH enrolado nela, e o médico Dramboniano já estava a tornar-se vermelho,
enquanto tratava o seu paciente da única maneira que conhecia. Houve um outro
estrondo quando um dos animais se lançou sobre o cruzador, esmigalhando dois dos
seus quatro projetores.
— Na escotilha de carga! — gritou Edwards, numa voz rouca. — Não tenho tempo para
tratar de escotilhas de pessoal!
— Sai de cima de mim, maluco — disse o Hudlariano que tinha a fera agarrada às suas
costas. — A mim ninguém me come.
Duas grandes feras lançavam-se para ele, através do fundo, enquanto o Chalderiano
corria na sua direção, vindo do flanco. Subitamente, um médico Dramboniano ondulou
rapidamente entre a fera que ia à frente e Conway. Mal tocou no animal, mas ele
teve um espasmo muscular tão violento que partes do seu esqueleto apareceram,
brancas, através da pele.
Tanto podes matar como curar, pensou Conway, agradecido, enquanto tentava evitar o
segundo animal de presa. O Chalderiano chegou então e com uma pancada da sua cauda
couraçada limpou os costados do Hudlariano, ao mesmo tempo que a sua enorme
queixada se abria e fechava sobre o pescoço da segunda fera.
— Obrigado, doutor — disse Conway. — A sua amputação foi brutal, mas eficaz.
O Chalderiano respondeu:
Quando a escotilha se fechou alguns minutos depois, o porão continha dois Melfanos,
um Hudlariano, o Chalderiano, o SRJH Dramboniano com o seu paciente e Conway. As
trevas eram como breu. O veículo estremecia a intervalos de poucos segundos, quando
as feras se colocavam contra o casco, e estavam tão apertados que se o Chalderiano
se tivesse movido, todos, menos o Hudlariano, teriam ficado esmagados. Pareceu que
se tinham passado alguns anos, quando a voz de Edwards soou no capacete de Conway.
— Estamos a meter água por uma porção de sítios, doutor, mas não é grave e, em
qualquer caso, os respiradores de água não se devem sentir atrapalhados por isso.
As câmaras automáticas captaram umas imagens muito interessantes das formas de vida
internas, ao serem socorridas pelos médicos locais. O’Mara deve ficar muito
contente. Oh, vejo os dentes na minha frente. Não tardaremos a sair...
«Pelo que pudemos descobrir até agora, a sua faculdade empática está muito
desenvolvida, mas não é relacionada com a inteligência. O mesmo se pode dizer do
segundo nativo Dramboniano que trouxe, exceto que..
— É muito mais esperto— disse O’Mara, com amargura.— Quase tão esperto como um cão
extremamente atrasado. Não me importo de confessar que durante algum tempo pensei
que a nossa incapacidade de comunicar era devida a uma falta de competência
profissional da minha parte. Mas agora é evidente que temos andado a perder o nosso
tempo submetendo a testes sofisticados animais de Drambo.
— Um animal muito especializado mas sem inteligência — disse O’Mara, com firmeza. —
Protege e cura os amigos e mata os inimigos, mas não pensa nisso. Quanto ao novo
espécime que trouxe, quando o expusemos à ferramenta comandada pelo pensamento,
teve emoções de atenção e precaução (algo como a nossa radiação emocional quando
estamos perto de um caixa de alta tensão), mas segundo Prilicla nem sequer pensou
no aparelho.
«Portanto, lamento muito mas temos de continuar a procurar a espécie que produz
essas ferramentas, e a assistência médica inteligente, em Drambo.»
— Prilicla diz que eles não têm emoções fortes em circunstância alguma —
acrescentou Conway. — Reproduzem-se por cisão, de modo que não pode haver
sentimentos sexuais neles. Mas a visão de um deles, morto, pode causar qualquer
espécie de reação.
Quando o SRJH morto chegou, Conway retirou-o apressadamente da maca para o chão do
gabinete e fez sinal a O’Mara e Prilicla para que recuassem. Os dois SRJH vivos
estavam já a aproximar-se do cadáver. Tocaram-no, como que fluíram à sua volta, e
durante dez minutos tiveram muito que fazer. Quando acabaram, nada restava.
— Não, senhor. Continuo a sentir-me desapontado por não estabelecer contacto com um
médico de Drambo, mas estes animais são uma magnífica alternativa. Matam os
inimigos do monstro terrestre, curam e protegem os seus amigos e limpam as
detritos. Isso não lhe sugere qualquer coisa? Evidentemente que não são médicos:
são super-leucócitos. Mas deve haver milhões deles e estão todos do nosso lado...
A GRANDE OPERAÇÃO
EM todo aquele estranho e maravilhoso planeta havia apenas trinta e sete pacientes
que necessitavam de tratamento. e eles variavam muito no tamanho e no avanço da sua
doença. Naturalmente, o doente que se encontrava em pior estado era o que tinha de
ser tratado primeiro, mesmo pensando que era também o maior — tão grande que a nave
auxiliar de exploração, à sua velocidade suborbital de mais de dez mil quilómetros
por hora, demorava um pouco mais de nove minutos para viajar de um extremo do
planeta a outro.
— É um grande problema e nem mesmo a altitude o toma mais pequeno — disse Conway. —
Nem a falta de especialistas.
— Tenho estado a estudar o material de Drambo, desde há muito, mas concordo em que
só o vendo como o estou a ver é que o compreendi bem. Quanto à falta de
especialistas. deve compreender, doutor, que não pode retirar todo o pessoal e todo
o material do hospital somente por causa de um paciente, mesmo que ele tenha este
tamanho. Há milhares de doentes mais pequenos e mais facilmente curáveis que nos
merecem atenção idêntica.
«E se está a sugerir que eu, pessoalmente, demorei demasiado tempo a chegar aqui,
eu vim tão depressa quanto o meu chefe tomou a decisão que o doutor precisava de
mim, como patologista»—concluiu, num tom ardoroso.
— Há seis meses que ando a dizer a Thornnastor que preciso aqui de um patologista
de primeira classe. — A Murchison era bonita quando estava furiosa, mas era melhor
que não o estivesse. — Creio que toda a gente no hospital sabia porque era que eu
te queria aqui e essa é uma das razões por que estás aqui ao pé de mim, nesta
redoma tão acanhada, a ver o que já vimos muitas vezes em gravações, e a discutir
quando bem nos podíamos dedicar a coisas não profissionais...
Conway riu-se.
«Provavelmente a criatura não pode reagir, mesmo que o queira fazer, porque os
olhos são recetores sensoriais e não transmissores. No fim de tudo, não podemos
enviar mensagens com os nossos olhos.»
Conway respondeu:
Desceram pouco depois e saltaram com todo o cuidado para o chão elástico, esmagando
várias plantas-olhos em cada metro de avanço. O facto de o paciente ter inúmeros
milhões de outros olhos não lhes dava segurança alguma, sobre as consequências dos
danos infligidos pelos seus pés.
Quando já se tinham afastado uns cinquenta metros da nave, ela disse subitamente:
— Se essas plantas são olhos... e é uma hipótese admissível, pois são sensíveis à
luz... porque são elas tantas numa área onde o perigo é tão pouco? Seria muito mais
útil a posse de visão periférica para coordenar a atividade das bocas através das
quais se alimenta.
— As raízes são finas e estendem-se até não se sabe onde — disse ele, escavando
suavemente com os dedos para mostrar uma raiz esbranquiçada que se estreitava até
ao diâmetro de uma corda fina, antes de desaparecer da vista. — Mesmo com
equipamento mineiro ou durante explorações com escavadoras não fomos capazes de
encontrar os extremos. Sabes alguma coisa do funcionamento interno?
Ele cobriu a raiz exposta, mas manteve as palmas das mãos apoiadas na superfície.
— Fecha os teus olhos — disse Conway a sorrir. — Vou tocar-te. Tão precisamente
quanto possas, diz-me onde.
Conway começou a tocá-la ao de leve na face, depois assentou três dedos no cimo do
ombro dela e desceu a partir daí.
— Face esquerda a cerca de três centímetros do lado esquerdo da minha boca — disse
ela.— Agora assentaste a tua mão no meu ombro. Pareces estar a descrever um X sobre
o meu bíceps esquerdo. Agora tenho um polegar e dois, talvez três dedos na minha
nuca, logo abaixo do cabelo... Estás a gostar disso? Eu estou.
Conway riu-se.
— É uma boa teoria, mas não pareces muito satisfeito com ela.
Interrompeu-se, com toda a sua atenção concentrada na palma da mão que continuava
premida contra a superfície, e disse apressadamente:
— Sim, mas só daqui a uns momentos — disse Conway, com peito oprimido. — De quanto
tempo precisa para partir, de modo que possamos observar a chegada das ferramentas
através de qualquer coisa maior que o visor desta escotilha?
— Para uma largada de emergência, dois minutos. E se vierem ao Comando poderão usar
as sondas, a fim de examinarem os danos externos.
— Mas o que é que estava a fazer, Doutor? Em minha opinião, a frente do bíceps não
é uma zona erógena.
— Ele estava a realizar uma experiência—disse ela, com toda a calma. — Queria
provar que eu não posso ver com os terminais nervosos da parte superior do meu
braço. E também não tenho olhos na nuca.
Eles eram três discos de metal semicircular que se diria ora aparecerem, ora
desaparecerem, na área da superfície coberta pela longa sombra matinal da nave.
Harrison aumentou a ampliação da sua sonda, a qual mostrou que os objetos não
desapareciam e reapareciam, mas sim contraíam-se ritmicamente em pequenos glóbulos
de metal e depois se expandiam de novo em lâminas chatas e circulares, que rasgavam
a superfície. Mantiveram-se deitados durante alguns segundos entre as plantas-olhos
que se encontravam na sombra, e depois, subitamente, os discos tomaram-se numa
espécie de pratos metálicos, invertidos. A mudança foi tão súbita que eles saltaram
alguns metros no ar e foram cair a cerca de seis metros de distância. O processo
foi repetido a intervalos de segundos, com um disco a saltar rapidamente na direção
da ponta distante da sombra da nave, o segundo a ziguezaguear, para medir a
largura, e o terceiro a dirigir-se diretamente para a nave.
O terceiro disco ainda vinha na direção deles, a saltos de cinco metros, ao longo
do centro da sua sombra. Nunca os vira mostrar tal mobilidade e coordenação, mesmo
pensando que sabia que eles eram capazes de tomar a forma que os operadores
desejassem, e que a complexidade da forma e a rapidez da transformação eram
determinadas apenas pela rapidez e claridade do pensamento do utilizador.
— Devem ser cegos. As ferramentas devem ser uma extensão do sentido do tato da
criatura, e são usadas para aumentar as informações fornecidas pelas plantas. Estão
a apalpar-nos para avaliar o nosso tamanho, forma e consistência.
— Antes que eles descubram que temos um ponto fraco, sugiro que façamos uma
retirada tática— disse Harrison, com firmeza.
Conway concordou. Enquanto Harrison cuidava dos seus painéis de comando, ele
explicou que as ferramentas podiam ser comandadas pelos cérebros humanos até uma
distância de cerca de seis metros, e que para além dessa distância os utilizadores
das ferramentas é que assumiam o comando. Disse à Murchison para pensar em formas
sem arestas assim que chegassem ao seu alcance, qualquer forma, desde que não
tivesse bordos cortantes...
— Não, espera — observou ele quando, de súbito, lhe surgiu uma ideia melhor. —
Pensa em coisas largas e achatadas, com uma secção de aerofólio e qualquer
saliência vertical para estabilização e comando. Mantém a forma enquanto eles
estiverem a cair, de modo que eles vão parar tão longe da nave quanto possível. Com
sorte, necessitarão de três ou quatro saltos para voltar.
A primeira tentativa não foi um êxito, ainda que a forma que finalmente bateu na
nave fosse demasiado desprovida de arestas e retorcida para fazer qualquer dano
sério. Mas concentraram-se com o maior esforço no seguinte, fazendo-o manter uma
forma triangular, com pouco mais de um centímetro de espessura e com uma larga
deriva central. A Murchison insistiu na forma geral, enquanto o pensamento de
Conway torceu os bordos de fuga e o estabilizador, de modo a imprimir-lhe uma
inclinação vertical que o levou para longe, num grande voo planado.
O voo continuou muito para além da passagem pela zona de influência deles, com a
ferramenta a inclinar-se e a oscilar um pouco, até cortar algumas das plantas-
olhos, antes de aterrar.
— Sei que gosta muito de brincar com garotas e modelos de aviões mas vamos subir
dentro de vinte segundos — disse secamente Harrison. — Cintos!
— Cintos.
Conway não tinha dado conta da extensão dos danos: notara apenas que havia mais
luzes vermelhas no painel de comando do que era normal. Os dedos do piloto moviam-
se sobre os seus painéis com tal suavidade que a dureza da sua voz fazia com que
ela parecesse vir de uma pessoa completamente diferente.
Durante algum tempo houve um silêncio cortado apenas pelo silvo do ar através das
chapas rasgadas e dos suportes das câmaras avariadas. A superfície oscilou por
baixo deles e o movimento da nave sugeriu a Conway que estava no mar, e não no ar.
O problema deles era o de manterem altura a uma velocidade muito baixa, porque se
voassem mais depressa as secções danificadas do casco soltar-se-iam ou aqueceriam
devido ao atrito atmosférico, ou aumentariam a resistência de tal maneira que a
nave acabaria por não poder voar. Para uma nave supersónica, a velocidade a que se
deslocavam era ridícula. Harrison devia estar agarrado ao céu pelas unhas.
Conway tentou esquecer os problemas do piloto, pensando em voz alta nos seus.
— Creio que isto prova, sem quaisquer dúvidas, que os tapetes animais são as
criaturas inteligentes que usam as ferramentas — disse ele. — O alto grau de
mobilidade e adaptabilidade mostrado pelas ferramentas toma isso muito evidente.
Devem ser comandadas por um campo difuso e muito forte de radiação mental conduzido
e transmitido por redes nervosas e que atuam somente até uma curta distância da
superfície, É tão fraco que um cérebro médio, humano-terrestre ou extraterrestre,
pode assumir localmente o comando.
A Murchison interrompeu-o:
— Acredito mais num sistema nervoso centralizado — respondeu Conway. — Creio que
esteja alojado numa área segura e naturalmente bem protegida, provavelmente perto
da parte inferior da criatura, onde existe grande abundância de minerais e
possivelmente numa cova natural, na rocha da subsuperfície. As plantas-olhos e os
tipos similares de raízes internas que analisaste tendem a tomar-se mais complexos
e densos quanto mais perto estamos da subsuperfície, o que só pôde significar que a
rede sensível à pressão é ampliada pelo sistema eletrovegetal que causa o movimento
muscular, assim como por outros tipos cuja função e finalidade ainda nos são
desconhecidas. Sem dúvida que o sistema nervoso é em grande parte vegetal, mas o
conteúdo mineral dos sistemas de raízes significa que as reações eletroquímicas
geradas em qualquer terminal nervoso transmitem impulsos muito rapidamente ao
cérebro, de modo que, provavelmente, só há um cérebro. E ele pode estar localizado
em qualquer parte.
— Uma coisa não podemos fazer: é adiar a operação. Os nossos relatórios são muito
claros a esse respeito.
Ela não perdera tempo desde que chegara a Drambo e, em resultado das análises que
fizera a milhares de espécimes colhidos por perfuradoras, escavadoras e médicos
exploradores em todas as áreas e níveis daquele corpo incrivelmente extenso, pelo
que podia dar uma ideia precisa, e talvez mesmo pormenorizada, do estado
fisiológico da criatura.
Havia dois tipos distintos de organismos internos e eles tomavam muito a sério a
sua missão. O peixe-agricultor, de cabeça grande, era responsável pela cultura e
proteção da vegetação benigna e pela destruição de toda a outra — para uma criatura
tão grande, o equilíbrio metabólico do paciente era notavelmente delicado. O
segundo tipo, que na criatura correspondia aos leucócitos, auxiliava o peixe-
agricultor nos cuidados com as plantas, e fazia-o diretamente se um dos peixes
estivesse ferido ou doente. Tinha também o hábito de comer os membros mortos da sua
própria espécie, ou da dos peixes, de modo que uma quantidade muito pequena do
material radioativo introduzido pelas raízes das plantas da superfície podia ser
responsável pela morte de um grande número de leucócitos, um após outro.
Portanto, as áreas mortas que se tinham espalhado muito para além das regiões
diretamente afetadas pela precipitação eram causadas pela proliferação desordenada
da vida vegetal maligna. O processo, como a decomposição, era irreversível. A
remoção cirúrgica urgente das áreas afetadas era a única solução.
Mas o relatório fora encorajador sob alguns aspetos. Em certas áreas tinham sido já
realizadas intervenções de pequena cirurgia, para estudar os possíveis efeitos
ecológicos de grandes massas de material animovegetal decomposto, no mar ou nas
criaturas-tapetes adjacentes, assim como para estudar a aplicação de métodos de
descontaminação radioativa em grande escala. Concluíra-se que o paciente
cicatrizava, mas lentamente; se uma incisão era alargada até se tornar num fosso
com trinta metros de largura, então o desenvolvimento maligno nas secções retiradas
não alcançava a área viva, ainda que fosse necessário realizar patrulhas regulares
para ter a certeza absoluta disso. O problema da decomposição nem sequer era um
problema: o crescimento explosivo continuava até que as plantas gastavam todo o
material disponível e morriam. Na terra, o resíduo formava uma espécie de marga e
tornava o sítio ideal para uma base capaz de se sustentar a si própria, se nos anos
futuros fossem necessários observadores médicos. No caso do material que
escorregava das vertentes costeiras para o mar, acontecia que ele se desfazia e se
afundava, formando outro tapete, que os roladores tinham verificado ser comestível.
Certas áreas não podiam ser tratadas cirurgicamente. Eram pontos relativamente
pequenos, no interior, semelhantes a um severo cancro da pele, mas com cirurgia
limitada e incríveis doses de medicamentos, começavam a ser obtidos bons
resultados,
A nave estava a passar sobre uma área morta onde as plantas-olhos estavam
descoloridas e mortas e não reagiam à sua sombra. Conway perguntou a si próprio se
a vasta criatura podia sentir dor, ou se tinha apenas uma perda de sensação quando
morriam partes dela. Em todas as outras formas de vida que ele encontrara — e na
verdade conhecera algumas verdadeiramente estranhas, no Geral do Sector— a
sobrevivência era prazer e a morte trazia a dor. Era como a evolução impedisse que
uma espécie caísse e morresse quando os obstáculos eram demasiado grandes. Portanto
a monstruosa criatura sentira dor, quase por certo, numa extensão de centenas de
quilómetros. Sentira uma dor mais do que bastante para a enlouquecer de ódio
— Tens razão — disse ele. — Não sabem sobre nós, mas odeiam as nossas sombras.
Esta, em particular, odeia-as porque o engenho que transportou as bombas atómicas
dos roladores produzia uma sombra não muito diferente da nossa, exatamente antes de
enormes áreas do corpo do paciente terem sido assadas e irradiadas.
Conway respondeu:
O piloto retorquiu:
Dias depois, ainda os observadores discutiam se fora uma descida ou uma queda. As
pernas do trem de pouso cederam, a secção da cauda tentou enfiar-se pelo meio da
nave e absorveu outra parte do choque, e os leitos de aceleração aguentaram o resto
—mesmo quando a nave tombou, caiu de lado e uma larga fatia de céu apareceu entre
as chapas, a pouca distância deles. O helicóptero de socorro estava quase por cima
deles.
Harrison gritou:
Olhando para a superfície morta e descolorida à sua volta, Conway pensou de novo no
paciente. Furioso, disse:
— Para o seu paciente, não — disse o tenente. — Mas, talvez egoisticamente, penso
nos meus descendentes. Façam o favor de sair.
Durante a curta viagem a nave-mãe, Conway passou o tempo a olhar pela vigia, a seu
lado, e a tentar não se sentir assustado e impotente. O seu receio era devido à
reação depois do que podia ter sido um choque fatal, mais o pensamento de uma
viagem ainda mais perigosa que teria de fazer dentro de poucos dias, e qualquer
médico com um paciente que se estendia para além dos limites da visibilidade em
todas as direções não podia deixar de se sentir demasiado pequenino. Era um
micróbio isolado tentando curar o corpo que o continha. Subitamente, teve saudades
das relações normais, entre médicos e doentes, no seu hospital — mesmo pensando que
muito poucos dos seus pacientes ou dos seus colegas podiam ser considerados
normais.
Perguntou a si próprio se não seria melhor ter enviado um general a uma escola
médica do que qualquer toda uma subarmada de sector sob as ordens de um médico.
Somente seis das unidades pesadas do Corpo de Monitores tinham descido em Drambo,
com os seus trens de pouso assentes firmemente nas águas pouco profundas, a poucos
quilómetros de uma das secções mortas da linha de costa. Os outros enchiam o céu de
manhã à noite como estrelas arregimentadas. As suas equipas médicas estavam
agrupadas dentro e em torno das naves pousadas, que se erguiam do mar denso,
xaroposo, como grandes cortiços cinzentos. Os humano-terrestres como ele viviam a
bondo, enquanto os extraterrestres, nenhum dos quais respirava, se sentiam felizes
a divertirem-se no fundo do oceano.
Ele convocara o que esperava que fosse a reunião final pré-operatória do porão de
carga da Descartes, o qual estava cheio de água do mar de Drambo, cujo conteúdo de
vida animal e vegetal fora filtrado para que o projetor pudesse ter uma
possibilidade de abrir caminho até ao alvo colocado nas anteparas da frente.
Surreshun foi seguido por Garoth, o Médico-Chefe Hudlariano que estava encarregado
do tratamento médico do paciente. A principal preocupação de Garoth era a conceção
e realização de alimentação artificial, nas áreas em que as incisões cortariam os
túneis-gargantas, entre as bocas da costa e os pré-estômagos do interior. Ao
contrário de Surreshun não disse muito, e deixou que o projetor falasse por ele.
O grande visor estava cheio com uma imagem de uma boca auxiliar a cerca de três
quilómetros adentro da linha de incisão planeada. A intervalos de poucos minutos,
um helicóptero ou uma pequena nave de abastecimentos pousava junto da abertura e
descarregava nela a sua carga de animais acabados de morrer, trazidos das águas
baixas da costa, e partiam quando os homens do Corpo, com transportadores e
máquinas de remoção de terras, empurravam a comida para o orifício. Talvez a
quantidade e a qualidade da comida fossem inferiores às da absorvida naturalmente,
mas essa era a única maneira pela qual grandes áreas do paciente podiam ser
abastecidas com comida.
Subitamente, houve uma espécie de relâmpago, saído da superfície junto da casa das
bombas, e um homem do Corpo deu um salto sobre um pé, antes de cair no chão. A bota
com o outro pé caiu de lado, no lugar onde ele estivera, e a ferramenta, já não
prateada, estava já a abrir caminho abaixo da superfície coberta de sangue.
— Os ataques das ferramentas estão a aumentar de frequência — disse Garoth.— E
estão a mostrar uma iniciativa considerável. A sua ideia de limpar uma área em
volta das instalações de todas as plantas-olhos, para que as ferramentas tivessem
de trabalhar às cegas, resultou apenas durante pouco tempo, Doutor. Eles imaginaram
um novo estratagema, o de deslizar a poucos centímetros abaixo da superfície, às
cegas, evidentemente, para depois, subitamente, fazerem sair uma ponta ou lâmina e
apunhalarem ou golpearem antes de se esconderem de novo sob a superfície. Se não as
podemos ver, não as podemos dominar mentalmente, e ainda que tenhamos experimentado
guardar cada trabalhador com outro homem do Corpo usando um detetor de metais, a
ideia não resultou muito bem .. deu apenas às ferramentas uma melhor probabilidade
de atingirem alguém.
Garoth concluiu:
— Obrigado, Doutor. Mas agora receio que tenhamos também de suportar ataques
aéreos. No caminho para aqui ensinámos ao paciente como funcionam os planadores, e
ele aprendeu depressa... — Começou a descrever o incidente, adicionando-lhe as
últimas descobertas patológicas e as suas deduções e teorias sobre a natureza do
seu paciente. Consequentemente, a reunião tomou-se rapidamente num debate e estava
a degenerar rapidamente numa discussão amarga antes que ele tivesse de invocar a
sua autoridade e conseguir que os seus médicos humanos e extraterrestres voltassem
a um estado de frieza clínica.
Os chefes das equipas Melfana e Chalderiana tomaram os seus relatórios num dueto.
Como Garoth, eles tinham estado preocupados com os aspetos não-cirúrgicos do
tratamento do paciente. Para um observador hipotético, ignorante da verdadeira
natureza do seu problema, aquele tratamento médico teria sido confundido com uma
grande operação mineira, ou agrícola numa escala ainda maior, ou ainda com um rapto
em massa. Ambos estavam fortemente convencidos, e Conway concordou com eles, que a
amputação do membro afetado era uma maneira errada de tratar um cancro da pele.
Para uma secção viva da enorme criatura, não se podia dizer que fosse muito
saudável. Os peixes-agricultores, cuja função era a de cultivar e fiscalizar a vida
vegetal interna, moviam-se lentamente, chocando uns contra os outros, e os
leucócitos, normalmente transparentes, mostravam a coloração leitosa que ocorria
pouco antes da morte As leituras do sensor de radiação não deixavam lugar a dúvidas
sobre as causas dessa situação.
— Esses espécimes foram salvos pouco depois e transferidos para as enfermarias das
naves maiores e do Geral do Sector — disse o Chalderiano. — Tanto os peixes como as
«sanguessugas» responderam aos tratamentos de descontaminação e regeneração que
costumamos dar à nossa gente que estava exposta a uma dose excessiva de radiação.
Depois foram feitos regressar, para continuarem o seu bom trabalho.
O Melfano acrescentou:
— O que quer dizer que ficaram sujeitos a absorver a radiação da planta ou do peixe
mais próximo, e a adoecer de novo.
O’Mara acusara Conway de tratar o Geral do Sector como se fosse uma espécie de
máquina de fazer salsichas extraterrestres, ainda que o Hospital estivesse a curar
tantos Drambonianos quantos podia, e mesmo os médicos do Corpo de Monitores
mostrassem apenas que sofriam havia muito tempo quando não se mostravam demasiada
mente atarefados.
Mas eles não estavam no Hospital nem as instalações para tratamento nas naves-
almirantes eram bastantes para mudar o curso da situação. Para que o paciente
pudesse na verdade combater essas infeções locais era indispensável que se
procedesse a maciças transfusões de leucócitos de outras criaturas-tapetes, mais
saudáveis.
No visor apareceu uma sequência que mostrava um dos comandos especiais retirando
leucócitos de uma pequena e repugnante, mas saudável criatura-tapete, do outro lado
do planeta. O poço de entrada estivera em uso havia semanas e os movimentos da
criatura-tapete tinham-no levado a dobrasse em vários lugares, mas continuava
utilizável. Os homens do Corpo desciam dos helicópteros e entravam no túnel,
correndo e evitando por vezes a aparelhagem que depois transportaria para a
superfície as suas presas. Vestiam fatos protetores ligeiros e transportavam apenas
redes. Os leucócitos eram seus amigos. Era muito importante para eles lembraram-se
disso. Porque havia circunstâncias em que um homem perdia o domínio sobre si
próprio e dava largas a um relâmpago de cólera ou de irritação — por causa de uma
peça do seu equipamento, por exemplo —e por causa desses lapsos muitos morriam.
— Não podia ser de outro modo, Doutor — disse Williamson —, e um dos nossos homens,
mais tarde ou mais cedo, pensaria também nisso... praticamente pensaram em tudo o
mais. No entanto, o que pretendo é...
Williamson moveu a cabeça num gesto de concordância mas hesitou antes de falar.
— Podemos estar em posição por essa altura. Doutor, mas aconteceu uma coisa que o
pode levar a mudar de ideias sobre o momento adequado.
— Amanhã terão muito que fazer — concluiu ele. — Durante esse tempo farei mais uma
tentativa para obter o consentimento e a cooperação do nosso paciente.
Três dias antes tinham sido feitas alterações num par de perfuradoras sobre
lagartas, tomando-as tão invulneráveis às ferramentas quanto possível, e ampliando
o seu equipamento de visão nos dois sentidos, para permitir que Conway
acompanhasse, e, se necessário, dirigisse, a operação de qualquer parte, sobre ou
no interior da criatura. Foi o equipamento de comunicações que ele ensaiou
primeiro.
— Não tenho intenção de me tomar num herói morto — explicou Conway, sorrindo.— Se
estivermos em perigo, serei o primeiro a gritar por socorro.
— O segundo.
Seguiram para o interior, na direção de uma área saudável densamente coberta por
plantas-olhos e pararam durante uma hora, depois do que avançaram outra hora e
pararam de novo. Passaram a manhã e o princípio da tarde a andar e a parar, sem que
o paciente tivesse qualquer reação percetível. Por vezes descreviam círculos
apertados para atrair a atenção, mas mesmo assim não obtinham êxito. Nem uma só
ferramenta apareceu. Os sensores colocados na superfície não davam qualquer indício
de que a criatura lhes estivesse a cortar o chão debaixo dos pés. No seu todo
aquilo estava a tomar-se num dia intensamente frustrador, ainda que fisicamente
repousante.
Quando as trevas vieram, eles ligaram os faróis da escavadora e jogaram com eles em
volta, vendo milhares de plantas-olhos a abrirem-se e a fecharem-se subitamente
perante aquela espécie de sol artificial, mas, mesmo assim, a criatura ignorou-os.
Conway disse:
— A princípio o monstro deve ter sentido curiosidade a nosso respeito e por isso
deve ter estado ansioso por investigar qualquer objeto ou ocorrência. Agora está
simplesmente assustado e hostil, e há alvos muito melhores por toda a parte.
Os visores da escavadora mostravam diversos sítios de transfusão e alimentação sob
o constante ataque das ferramentas, e havia muitas manchas escuras no chão que não
eram de óleo.
E a Murchison disse:
«Mas há muitas outras redes de raízes nesta camada e não sabemos quais as suas
funções. Não obedecem a qualquer codificação pela cor... parecem todas idênticas,
exceto pequenas variações na espessura. O tipo que aparentemente extrai metais da
rocha da subsuperfície pode variar em espessura. Portanto não devo aconselhar
qualquer espécie de estimulação artificial. Podemos facilmente levar um grupo de
músculos da superfície a sofrerem espasmos, e os homens do Corpo terão de enfrentar
tremores de terra, além de tudo o mais.»
— Muito bem — disse Conway, furioso porque as observações dela eram válidas. — Mas
continuo a querer alcançar o cérebro do monstro, ou a área onde ele produz
ferramentas, e se ele não nos puxa lá para dentro teremos nós de ir lá. O pior é
que o tempo escasseia. Em tua opinião, qual é o melhor lugar onde devemos procurar?
— Quer o cérebro, quer a área de produção de ferramentas, devem estar numa cova ou
num pequeno vale, na subsuperfície, onde, possivelmente, a criatura absorve os
minerais necessários. Há uma grande caverna na rocha a vinte e cinco quilómetros
daqui, e ela dar-lhe-á a proteção necessária de baixo e de todos os lados, enquanto
a massa do corpo a protegerá pela parte de cima. No entanto, existem dúzias de
outros sítios igualmente bons. Sim, deve dispor de um fornecimento constante de
alimento e oxigénio, mas como se trata de um processo quase vegetal, num paciente
que, em vez de sangue, possui água como fluido vital, não deve haver dificuldade
alguma em abastecer um cérebro profundamente enterrado...
A Murchison objetou:
— Sabe, Doutor, por vezes gosto de babar-me sobre um prato acabado de fazer,
especialmente se for seu.
O tenente disse:
— Isto não parece o material de que costumam ser feitos os miolos —disse ele. — Mas
creio que devíamos observar a coisa mais de perto...
Puderam colher alguns espécimes e ver a coisa de perto, mas não por muito tempo.
Mas quando acabaram de vestir os fatos e saíram pela escotilha traseira, já o túnel
que tinham aberto estava a abater-se perigosamente e onde o solo húmido e áspero
encontrava os lados do túnel, surgia um líquido negro, oleoso, que subiu de nível
até lhe cobrir os tornozelos. Conway não queria que levassem com eles para a
escavadora uma quantidade demasiada daquela substância. Pelas amostras anteriores,
extraídas pelas perfuradoras, sabiam que cheirava horrivelmente mal.
Quando voltaram para o interior do aparelho, o Murchison pegou num dos espécimes.
Parecia-se um pouco com uma cebola que tivesse sido cortada lateralmente em duas. A
parte inferior, plana, estava coberta por uma espécie de escova vermicular, e do
centro subia uma haste que se dividia e subdividia muitas vezes antes de se juntar
à rede nervosa, a pouca distância acima deles. Ela disse:
Passou-se perto de uma hora antes que alcançassem a segunda cova e outras três
antes que alcançassem a terceira. Conway tivera algumas dúvidas desde o princípio
sobre o terceiro local porque estava demasiado próximo da periferia para abrigar um
cérebro. Mas não tinha sido afastada a possibilidade de, numa criatura daquele
tamanho, existirem cérebros múltiplos ou, pelo menos, um certo número de
subestações neurais. A Murchison recordara-lhe que os brontossauros dos velhos
tempos precisavam de dois, e eram microscópicos quando comparados com aquele
paciente.
— Podemos passar o resto das nossas vidas a explorar covas, sem encontrarmos o que
desejamos, e não dispomos de muito tempo.
— Evidentemente que esse é o grande fator que torna esta criatura diferente das
suas semelhantes mais pequenas e não-inteligentes. Para estarem mais protegidos, o
cérebro, e possivelmente os centros de produção de ferramentas, devem quase por
certo encontrar-se numa secção estacionária. Por outro lado, posso recordar-me
somente de cerca de uma dúzia de perfurações em que o lubrificante não surgiu ou
esteve presente apenas em pequenas quantidades, e em poucos minutos posso encontrar
a sua posição no mapa.
— Continuo a não gostar que estejas aqui, mas estou contente por teres vindo.
— A subsuperfície forma uma pequena planície rodeada por montes. Os sensores aéreos
dizem-nos que se trata de uma área muito rica em minérios, mas o mesmo acontece com
a maior parte do centro desta massa terrestre. As nossas perfurações de ensaio
foram muito espaçadas, de modo que podíamos muito facilmente ter deixado de colher
material cerebral, ainda que eu esteja razoavelmente certa que ele se encontra
aqui.
— Harrison, essa será a nossa próxima paragem. Mas é demasiado longa para irmos até
lá através ou sob a superfície. Leve-nos lá acima e arranje-nos um helicóptero de
transporte para nos levar até esse ponto. No caminho, se não se importar, leve-nos
até à boca do Túnel Quarenta e Três, tão perto da linha de incisão quanto for
possível, para que eu possa ver como o paciente reage às primeiras fases da
operação.
Por certo que deve ter alguma defesa natural contra os grandes danos físicos...
Calou-se e a sua disposição mudou subitamente de uma extrema excitação para uma
angústia profunda. Disse:
— Que demónio! Seria melhor que eu me tivesse concentrado nas ferramentas logo de
início, em vez de me distrair com os roladores e depois pensar que aqueles
leucócitos gigantes eram os utilizadores inteligentes das ferramentas. Desperdicei
demasiado tempo.
— Pois agora não estamos a perder tempo — disse Harrison, e apontou para os
repetidores.
Era muito raro que o Corpo fosse forçado a usar os matraqueadores em combate —
normalmente os oficiais de comando de foco ficavam satisfeitos por os utilizarem na
limpeza e cultura de terrenos bravios, para as novas colónias — e para um efeito
ótimo o foco tinha de ser bem concentrado. Mas um feixe difuso podia ser
devastador, em especial num alvo pequeno com uma nave. Em vez de arrancar grandes
pedaços da chaparia do casco e reduzir a fragmentos as estruturas internas, abanava
a nave inteira até que os homens dentro dele matraqueavam também.
No entanto, naquela operação o foco era muito concentrado e o alcance conhecido até
aos centímetros.
Visualmente não linha nada de espetacular. Cada cruzador tinha três baterias de
matraqueadores que puxavam e empurravam tão rapidamente que a superfície mal
parecia ser perturbada. Só os feixes de raios tractores, relativamente suaves,
colocados entre os matraqueadores, pareciam fazer qualquer coisa — puxavam para
cima a estreita cunha de «carne» e vegetação destroçada até que o matraqueador
seguinte aprofundasse a incisão. Quando a incisão chegasse à superfície e tivesse
quilómetros de comprimento, os outros esquadrões chegariam para alargar o corte de
modo que a parte sã fosse atingida pela vegetação infetada da parte em
decomposição.
A sensação durou dez minutos, e durante esse tempo a incisão passou através do
túnel Número Quarenta e Três onde tinham acabado de entrar. Conway podia ver a
parte interna da «compressa» — uma espécie de salchicha espessa, canelada, de
plástico forte contendo ar a três quilos e meio por centímetro quadrado, que se
comprimia contra as paredes do túnel. Tinham sido tomados cuidados especiais para
evitar a perda de fluido vital, porque os processos de cicatrização da criatura
eram espantosamente lentos. O seu sangue era literalmente água e a água não
coagulava.
— Conway: o tampão do Túnel Quarenta e Três está a ser atacado por ferramentas.
— Mas isso é impossível — disse a Murchison, num tom escandalizado de alguém que
encontrou um amigo a fazer batota. — O paciente nunca interferiu com as nossas
operações internas. Não há aqui em baixo plantas-olhos que lhe deem a nossa
posição, nem luz que mereça esse nome, e o tampão não é de metal. Eles nunca
atacaram material plástico na superfície... unicamente homens e máquinas.
Calou-se quando o tampão desapareceu numa explosão abafada de bolhas que rugiam na
direção deles através do teto do túnel. Não podia ver nada fora da escavadora e
dentro só havia as imagens do rosto de Edwards e das naves em formação.
— Doutor, o tampão foi-se! — gritou o major. — Os detritos atrás dele estão a ser
arrastados. Harrison, afunde-se!
Mas o tenente não podia cumprir a ordem porque as bolhas tomavam-lhe impossível a
visão. Engrenou as lagartas em marcha-atrás, mas a corrente arrastou-os de tal modo
que a escavadora quase perdeu o contacto com o solo. Apagou os projetores porque o
reflexo do lado exterior o encandeava. Mas havia uma mancha de luz que se tomava
cada vez maior...
Poucos segundos depois eram arrastados para fora do túnel numa catarata que caía
por uma arriba orgânica até uma ravina que parecia não ter fundo. O veículo não se
fez em pedaços nem eles se transformaram em geleia, de modo que ficaram a saber que
o Major Edwards tinha conseguido fazer parar a tempo as baterias de matraqueadores.
Quando pararam com um choque, uma eternidade depois, dois dos visores-repetidores
estoiraram espetacularmente e a catarata que amortecera a sua queda começou a bater
neles, empurrando-os e fazendo-os rolar ao longo do fundo da incisão.
Harrison observou:
— Estamos salvos — disse ele antes que o outro pudesse falar—, mas isto é um grande
problema. A menos que possamos deter esta perda de fluido, o sistema do estômago
deixará de funcionar e mataremos o nosso paciente em vez de o curarmos. Que
demónio! Não terá ele algum meio de se proteger contra os grandes danos físicos...
uma válvula impedindo o retorno, por exemplo? Eu não esperava que isto
acontecesse...
— Sim — disse Edwards. Poucos segundos depois, uma nova voz disse: — Comando de
Armamento, Vespasian. Major Holroyd. Em que posso ser-lhe útil, doutor?
Era o mesmo que ter um doente a sofrer de uma hemorragia, na mesa operatória. Fosse
a criatura pequena ou grande, fosse o seu fluxo vital sangue humano-terrestre,
metal líquido sobreaquecido do TLTU de Thecaldi Cinco ou a água impura que
transportava comida e organismos internos especializados até às longínquas
extremidades daquela criatura-tapete de Drambo, o resultado seria o mesmo — a
pressão sanguínea abaixaria constantemente, o choque tomar-se-ia cada vez mais
profundo, a paralisia muscular aumentaria, e no fim seria a morte.
— Não — disse Conway, com firmeza. — Estou preocupado com os efeitos de compressão
de uma grande explosão no interior do túnel. A onda de choque será transmitida
através do interior e muitos peixes-agricultores e leucócitos morrerão, para não
falar na frágil vegetação interna. Temos de fechar o túnel tão perto da incisão
quanto possível, major, e confinar os danos a essa área.
Conway disse:
A boca do túnel era agora seis vezes maior do que fora e o paciente continuava a
sangrar.
— Desculpe, doutor — disse Holroyd. — Devo repetir a dose e tentar uma maior
penetração?
— Não. Um momento.
Conway tentou desesperadamente pensar. Sabia que estava a dirigir uma operação
cirúrgica, mas não acreditava nisso — tanto o problema como o paciente eram
demasiado grandes. Se um humano-terrestre se encontrasse no mesmo estado, mesmo sem
instrumentos ou medicamentos, ele saberia o que fazer — estancar a hemorragia sem
perda de pressão, aplicando um torniquete... Era isso.
Foram necessários menos de quinze minutos para que a Vespasian orientasse e focasse
de novo os seus pés invisíveis e lançasse os mísseis, mas a catarata cessou quase
imediatamente e dessa vez não voltou a surgir. A abertura do túnel desapareceu e no
seu lugar ficou uma grande depressão em forma de prato, sobre a parede da incisão,
onde os pressores de estibordo da Vespasian tinham sido focados. Ainda se filtrava
água do tampão comprimido, mas a situação manter-se-ia enquanto a nave-almirante se
mantivesse na posição e assentasse o seu peso muito considerável sobre a abertura.
Para uma maior segurança, outro tampão pneumático estava a ser levado para o túnel
de abastecimento.
— Não esta. Peça-lhe para que aprontem a outra e a tenham à nossa espera quando
eles nos tirarem daqui.
Agora estavam convencidos de que ele se desenvolvera a partir de uma forma vegetal
móvel. Fora sempre grande e omnívoro, e quando aquelas criaturas tinham começado a
viver longe umas das outras tinham aumentado de tamanho e complexidade e diminuído
de número. Não parecia haver qualquer maneira de as criaturas-tapetes se
reproduzirem. Continuavam simplesmente a viver e a crescer até que uma da sua
própria espécie e que fosse maior as matasse. O seu paciente era a criatura maior,
mais velha, mais dura e mais avisada daquela espécie. Sendo o único ocupante
daquela massa terrestre, havia muitos milhares de anos, deixara de ter necessidade
de se mover e adquirira novamente raízes.
Conway concluiu:
— Mais um ponto que devemos ter presente quando tentarmos entrar em comunicação com
o paciente é que ele é cego, surdo e mudo, porque nunca tivera outra criatura da
sua própria espécie para falar. O nosso problema não é simplesmente o de aprender
uma linguagem extraterrestre peculiar e difícil: temos de comunicar com um ser que
nem sequer conhece o significado da palavra comunicação.
A Murchison disse secamente:
—Se estás a tentar elevar o meu moral, olha que não estás.
— A área que julgamos ser cerebral é demasiado grande para ser investigada
rapidamente, mas... corrijam-me se me enganar... não foi nela que a Descartes
pousou pela primeira vez? Se assim foi, as ferramentas enviadas para investigar a
nave tiveram uma distância relativamente pequena a percorrer, e se for possível
traçar o caminho de uma ferramenta pelo tecido cicatricial deixado na «carne» do
corpo...
— A nave seria arrastada por certo apenas até uma curta distância abaixo da
superfície — disse a Murchison. — O bastante para deixar as ferramentas estabelecer
contacto com a sua superfície total enquanto ela estivesse suportada pela «carne»
do corpo, em vez de estabelecerem um contacto passageiro como o conseguido enquanto
saltavam no ar. Mas notaram como as ferramentas, mesmo quando cortam à máxima
velocidade, conseguem evitar qualquer dano à rede de raízes que transmite as
instruções mentais que elas recebem?
Antes que Conway pudesse responder a qualquer deles, o rosto de Edwards surgiu no
visor principal.
— Ferramentas, doutor. Dúzias delas. Não podem ter uma energia muito grande, vindo
como vêm através desta matéria esponjosa, e a nossa blindagem suplementar deve
aguentá-las. O que me preocupa é a antena.
Antes que Conway pudesse perguntar porquê, Murchison afastou-se da vigia. Disse:
— Perdemos o rasto original. Esta área é praticamente toda ela constituída por
tecido cicatricial, gerado pelas ferramentas. Devem passar muito por aqui.
Uma das suas quatro instalações de pressores fora esmagada como que por um martelo
gigantesco e Conway compreendeu que se tratava daquela que estivera a manter
fechado o Quarenta e Três. Quando a nave, a rodopiar, se aproximou do chão, ele
quis fechar os olhos, mas então ele viu que os tombos tinham sido dominados e que a
vegetação da superfície estava a ser esmagada pelos três pressores restantes,
abertos com a máxima força para suportarem o peso da nave.
A Vespasian pousou com dureza, mas não de uma maneira catastrófica. Outro cruzador
colocou-se em posição sobre o Quarenta e Três enquanto transportes de superfície e
helicópteros corriam para a nave almirante, para prestar socorros. Chegaram ao
mesmo tempo que um grande número de ferramentas que nada faziam para os ajudar.
— Doutor Conway, não é a primeira vez que eu vejo uma nave convertida em sucata à
minha volta, mas nunca aprendi a gostar de tal coisa. O acidente foi causado pela
tentativa de equilibrar toda a nave num feixe pressor estreitamente focado. O
resultado foi o de a estrutura de suporte ter cedido e quase ter destroçado a nave.
O seu tom tornou-se um pouco mais quente, mas apenas por um momento.
A escavadora deu um salto e durante um momento Conway teve uma sensação impossível
naquele lugar — a de uma queda livre. Depois houve um choque quando o veículo bateu
em terreno rochoso. Caiu de lado, rolou duas vezes e depois avançou de novo, mas a
derrapar de um lado. O som das ferramentas a bater no casco era ensurdecedor.
As constantes pancadas das ferramentas tomavam difícil pensar, mas Conway moveu a
cabeça afirmativamente e disse:
— Não esperava que os tampões fossem atacados, mas agora compreendo que o paciente
está simplesmente a tentar defender-se onde ele pensa que está a ser mais
fortemente atacado. Compreendo também agora que o seu sentido de tato não está
unicamente limitado à superfície superior. Ele é cego, surdo e mudo, mas parece ser
capaz de sentir em três dimensões. As plantas-olhos e as redes de raízes da
superfície permitem que ele sinta áreas de pressão local, mas vagamente, sem
pormenores. Para sentir os pormenores mais pequenos, envia ferramentas, que são
extremamente sensíveis... de tal modo que conseguiram sentir a corrente de ar sob
as suas asas quando lhes fizemos assumir a configuração de planadores, e
reproduziram voluntariamente essa forma. O nosso paciente aprende muito depressa e
esse planador que eu pensei custou muitas vidas. Desejaria...
— Doutor Conway — disse o Comandante da Armada, num tom duro. — Ou está a tentar
dar-me desculpas ou está a falar-me de coisas que eu já conheço há muito tempo. Não
tenho vagar para escutar nem uma coisa nem outra. Enfrentamos uma emergência
cirúrgica e tática. Precisamos de orientação.
Prosseguiu:
— O paciente vê e toma contacto com tudo pelo tato. Até agora, a nossa única área
de contacto são as ferramentas. São extensões comandadas pelo pensamento do seu
sentido do tato, através dó corpo do paciente c de uma curta distância acima dele.
A nossa radiação mental e o domínio que ela exerce são mais concentrados e têm um
alcance muito limitado. A situação é a de dois esgrimistas que tentassem comunicar
apenas através das pomas dos seus floretes...
Calou-se subitamente porque estava a falar com um visor vazio. Havia energia nos
três repetidores, mas a imagem e o som tinham desaparecido.
Harrison gritou:
A escavadora assentara numa plataforma rochosa, numa larga caverna que fazia um
ângulo inclinado na direção da subsuperfície. Por cima e na frente estava suspensa
uma grande massa de «carne» da criatura, da qual saíam milhares de raízes muito
finas que se juntavam e tornavam a juntar até se tornarem em cabos espessos e
prateados que se estendiam, imóveis, pelo chão da caverna, e também pelas paredes e
pelo teto, antes de desaparecerem nas profundezas. Cada cabo tinha pelo menos um
rebento a sair deles, como uma folha fina de alumínio, amachucado. Os rebentos mais
desenvolvidos agitavam-se e tentavam tomar a forma das ferramentas que atacavam a
escavadora.
Qualquer dano naquela área sensível poderia ter sérios efeitos para o seu paciente.
O Tenente fez um gesto afirmativo e começou a rodar a escavadora para a frente e
para trás através da plataforma, até ficarem encostados à parede indicada.
Protegidos pelos cabos sensíveis, em cima, o fundo da caverna, em baixo, e a parede
rochosa, do lado de estibordo, só estavam expostos ao ataque das ferramentas pelo
lado de bombordo. Podiam de novo escutar os seus próprios pensamentos, mas Harrison
observou, com firmeza, ainda que num lamento, que não podiam subir aquela encosta
ou escavar uma saída dispondo somente de uma lagarta, e que, além de não poderem
pedir socorro, tinham ar apenas para catorze horas e mesmo isso somente se eles
fechassem os seus fatos e usassem o ar contido nas garrafas.
Rapidamente, explicou o que pensava fazer e poucos minutos depois todos estavam em
posição fora da escavadora. Conway tinha as costas viradas para a lagarta de
bombordo, a pouca distância de uma cova cheia de água, no fundo da caverna. Havia
um furo de profundidade desconhecida no centro da cova, onde um cabo ou uma planta
semelhante, extratora de minério, abrira caminho através da rocha. A um lado dele,
um grupo de sete ou oito ferramentas combinara-se para cercar e apertar o casco do
veículo, e parte da blindagem começava a ceder pelas costuras. Conway pensou numa
abertura na cinta de metal e depois fê-la rolar para a cova, como uma grande massa
metálica animada. Então começou a trabalhar.
Pensar a forma exterior da criatura era fácil. Dentro de poucos minutos havia como
que um tapete grande e prateado — uma reprodução do paciente, em pequena escala —
no centro do charco. Mas pensar tridimensionalmente as suas bocas, e os túneis e
estômagos ligados a elas, não foi tão fácil. Mais difícil ainda foi a fase em que
ele começou a pensar nos pequenos estômagos a expandirem-se e a contraírem-se,
sugando a água arenosa c cheia de algas no modelo à escala e expelindo-a depois.
Era um modelo grosseiro, mais do que simplificado. O melhor que ele conseguiu, de
uma vez, foi oito bocas e os estômagos a ela ligados, e receou muito que a relação
com o paciente fosse a mesma que existia entre um boneco e uma criança. Mas depois
começou a adicionar os movimentos ondulantes que observara nas criaturas-tapetes
mais jovens e mais pequenas, mantendo imóvel a área em volta da depressão central e
fazendo votos para que os movimentos de bombagem dos estômagos dessem a impressão
de um organismo vivo. O suor escorria da sua testa e caía-lhe nos olhos, mas ele já
não se importava de não ver bem, pois que as secções que estava a formar já se
estendiam, de qualquer maneira, para além da sua vista. Depois começou a pensar que
algumas áreas se tinham tornado sólidas, inertes, mortas. Foi estendendo essas
áreas mortas, inertes e informes até que todo o modelo se tornasse numa massa
sólida e morta.
Depois limpou o suor dos olhos e começou tudo de novo. Iniciou novamente a
demonstração e subitamente viu os outros a seu lado.
— As ferramentas já não nos atacam e antes que mudem de ideias vou tentar reparar a
lagarta avariada. Pelo menos não nos falta ferramentas.
A Murchison disse:
— Posso ajudar... para além de não pensar em nada, a fim de evitar deformar o teu
modelo?
— Sim. Vou fazer passá-lo pela mesma sequência, mas pararei no ponto em que as
áreas mortas têm a extensão atual. Quando fizer isso, agradeço que penses nas
incisões que estamos a fazer e que as prolongues e alargues enquanto eu fecho os
túneis-gargantas cortados e penso os poços de alimentação e transfusão. Depois,
afasta um pouco o material amputado e pensa-o sólido (morto) enquanto eu tento
transmitir a ideia de que o resto está vivo e a atuar, e é provável que assim
continue.
Ela compreendeu tudo rapidamente mas Conway não tinha maneira alguma de saber se o
seu paciente tinha compreendido ou podia compreender. Atrás dele, Harrison
trabalhava na lagarta avariada enquanto perante eles o modelo no paciente e os
efeitos da cirurgia em curso se tornavam cada vez mais pormenorizados — até aos
minúsculos tampões canelados e ao que acontecia à criatura quando um deles era
destruído. Mas continuava a não haver qualquer indício de que o paciente
compreendesse o que eles tentavam comunicar-lhe.
— Lamento muito mas tive de me afastar um momento para recompor o meu espírito.
Apesar de estar fora do alcance dos pensamentos deles, o modelo não se abatera nem
perdera pormenores. Alguém o mantinha exatamente como eles o haviam feito.
Instantaneamente, Conway esqueceu a sua fadiga mental e física.
— Deve ser a sua maneira de dizer que nos compreende. Mas nós temos de alargar as
comunicações, informá-lo de mais coisas a nosso respeito. Vamos reunir mais
ferramentas e pensar num modelo desta caverna completo com os cabos nervosos...
procurarei incluir nele a escavadora com as nossas figuras. Serão grosseiras, bem
entendido, mas para começar necessitaremos apenas de transmitir a ideia do nosso
pequeno tamanho e da vulnerabilidade ao ataque das ferramentas. Depois afastar-nos-
emos um pouco e formaremos um modelo da escavadora em funcionamento, assim como da
maquinaria, dos helicópteros e das naves auxiliares, na superfície... mas nada tão
grande e complicado como a Descartes, pelo menos para começar. Temos de apresentar
tudo como muito simples.
Harrison não tinha oxigénio bastante para responder. Entraram com ele na escavadora
e, enquanto Conway estabelecia contacto com a superfície, a Murchison erguia a mão
instintivamente para dizer adeus à caverna e aos modelos espalhados pela
plataforma.. Devia ter pensado muito fortemente nesse adeus, porque o seu último
modelo também ergueu a mão e assim a deixou ficar enquanto a escavadora,
lentamente, se afastava do alcance mental.
Conway deixou escapar um longo suspiro de alívio. O seu paciente era um rapazinho
esperto, apesar dos seus tempos de reação fisicamente lentos. Abanou a cabeça e
disse:
— Não terá mais problemas com as ferramentas. Na verdade, poderá ver que elas serão
úteis para ajudar a manter o equipamento e para o uso nas seções mais difíceis da
incisão, uma vez que as façamos compreender as nossas necessidades. Pode também
poupar o trabalho da escavação da trincheira de isolamento (o nosso paciente mantém
a mobilidade suficiente para se afastar do material amputado) e isso significa que
as naves que estariam ocupadas na escavação podem ser usadas para fazer progredir
mais rapidamente a incisão, de modo que a operação estará terminada muito antes do
que se esperava.
Conway concluiu:
A cirurgia mais importante ficou pronta em pouco menos de quatro meses e Conway
recebeu ordem para voltar ao Geral do Sector. O tratamento pós-operatório iria
demorar muitos anos e seria realizado em conjunto com a exploração de Drambo e com
uma investigação mais profunda das suas formas de vida e culturas. Antes de partir,
enquanto se sentia ainda mais perturbado pelo pensamento das vítimas havidas,
Conway perguntara uma vez a si próprio qual o valor do que tinham feito. Um
especialista de contacto cultural algo arrogante tentara tomar tudo muito simples
dizendo que a diferença, fosse cultural, fisiológica ou tecnológica, era
imensamente valiosa, Aprenderiam muito da criatura-tapete e dos roladores, ao mesmo
tempo que tratariam do seu ensino. Conway, com certa dificuldade, aceitara isso.
Podia também aceitar o facto de que, como cirurgião, o seu trabalho em Drambo
terminara. Era muito mais difícil aceitar o facto de que a equipa de patologia—e em
particular um dos seus membros — ainda teria muito que fazer por lá.
Ainda que O’Mara não se mostrasse abertamente satisfeito com a sua angústia, também
não mostrava simpatia por ela.
— O monstro foi encontrado numa das regiões ainda não exploradas. Um acidente
cortou a sua nave (e ele próprio) ao meio. As anteparas estanques cerraram a parte
não danificada e o nosso paciente (ou parte dele) pôde recolher-se nela antes de as
portas se fecharem. Era uma grande nave, cheia com uma espécie de terra nutritiva,
e a vítima ainda está viva... ou meio viva, É que não sabemos qual foi a metade
dela que salvámos. Está bem?
O seu novo paciente não era como a Serpente de Midgard, mas não lhe faltava muito
para isso. Torcendo-se e enrolando-se. enchia praticamente o enorme hangar que fora
esvaziado para a alojar.
— É pequenina, não é?