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II.

O Antilouco

Era um determinado dia de verão, sobejo tardio daqueles quentes verões, que contrastam com os
invernos frios deste último quartel do século, quando tive a sorte de conhecer certo doutor. Passava os
calorentos dias de 1872 na casa de campo, em posse da minha família, em algum lugar escondido e
desolado nas impenetráveis florestas de Aichwald, mais ou menos nas imediações de Stuttgart; creio que
não mais que uns 50 minutos, ou quase, se indo a cavalo da casa até as bordas externas da capital. Este,
que era para ser o nosso sucinto descanso, não direi que se fizera perturbar, a nossa vida familiar, o nosso
simplório convívio, não; mas que era afetado, decerto, isto sim, e não era senão pelo aparecimento
daquele ilustre doutor, quem logo arrumara para si a minha atenção, e a minha mais honesta curiosidade.
Era isto fato e sucedia por meio de um arrebatamento quase transcendental, que se materializava para
além de qualquer dúvida na mente minha e na vista dos outros. Tamanho era, e eu não exagero, percebam
isto os meus leitores, o efeito que sobre mim exercia aquele famoso especialista em psiquiatria.
Vira-o primeiro quando descia com um amigo até as cafeterias e os restaurantes no centro de Stuttgart.
Sentávamos às janelas, ocasião em que assomara o itinerante doutor das ruas da cidade, e do excurso foi
dar de frente conosco. O meu amigo acenou para ele por detrás do vidro, e ele logo se deixara entrar,
levado às confraternizações e ao encontro do nosso agrado. Apresentou-o a mim e apresentou-me a ele,
daí nos falamos pela primeira vez. Era gentil, possuía boas maneiras, conhecia a licitude das perquisições,
e demonstrava com igual arte o dom natural que tinha, de não ser inconveniente, o doutor; mais, revelava-
se fácil de lidar. Até tinha qualquer coisa folgazã, um talento natural com as mulheres. Entretanto, como o
descobriria mais tarde, não havia nele qualquer espírito; qualquer gozo na conversa, na comida e na
bebida, como parecia então. Era tudo uma dissimulação, e era como tal o efeito de uma curiosíssima
condição. Havia ali mais cordialidade do que qualquer outra coisa. Mas a aparência de uma autenticidade,
de uma humanidade, de um relaxado estirar-se e folgar era tão ludibriosa, que não suscitaria a menor das
dúvidas em quem não tivesse razão prévia, para sombrear-lhe assim as façanhas.
Desde o primeiro regalo, avultava nele uma peculiar e elevada educação. A princípio não se distinguia
daquela consagrada aos príncipes e aos duques germânicos, que por aí ainda hoje vivem, mesmo que na
velhice; mas em pouco tempo, sublimava uma vez por outra algo alheio àquelas sensibilidades nobres.
Algo científico, que ele dominava com a mais resoluta clareza. Tinha amplos conhecimentos a respeito de
tudo o que era ciência, indo desde as mais importantes até as consideradas circunstanciais. Qualquer
dúvida que houvesse, se perguntada a ele e fosse matéria de ciência, poderia prontamente e mui bem por
ele ser esclarecida. No mais, ostentava um conhecimento que nunca antes dotara a palavra
"enciclopédico" de uma acepção indubitavelmente sublime, incorporada na própria coisa que é a alma
humana. Era efetivamente uma enciclopédia viva - geologia, frenologia, meteorologia, tudo -; a sua
capacidade da memória aparentava ser espantosa e oceânica, e com a sua mente e à frente da sua
fisiologia, não se apressava um só desvio, uma doença - um revés, sequer. Era a perfeição fisiológica e
mental, e tudo isso ajuntado na sua fria pessoa.
Deixei que passassem livremente as semanas, suando com o calor e me torcendo envolvido da rede
quando era meu tempo livre. De resto, procurava sempre um momento para ver o outro, na sua casa ou no
seu trabalho - porque, sim, chegamos a ficar tão íntimos que ia vê-lo até mesmo no seu estranho
expediente -, e de tal maneira que me levasse a ficar sempre aos seus pés, e que eu logo me pusesse a
rastejar atrás de um inquérito científico, de uma fuga, de uma novidade ou de uma ventania, de um
dilema, em suma. De uma paroxítona das fórmulas e dos calosos ditados! (porque eu, também, era
homem da ciência e da erudição!) E ainda havia aquele tédio, aquele tédio era o que me matava... E
como! Aquela abstenção forçada, que me pungia, contra mim engendrada por um outro brilhante
estudioso da mente humana, privando-me do meu trabalho, tornando-me vadio, enchia-me de angústia e
fazia-me transbordar o caos. Creio que o remédio que me fora indicado surtira mais uma acentuação do
que uma atenuação da mazela, que inicialmente me confinara àquele lugar desértico e inóspito, da alta
Alemanha.
Ao mencionar por acaso o transtorno, rumara o psiquiatra para o armazém e rapidamente extraíra um
volume de pílulas; preparara-me coquetéis, que logo trataram de acabar com os meus casos de ansiedade,
deixando-me de coração aberto, benevolentemente grato e inclinado à recíproca. Fiquei impressionado ao
observar como conseguia ele, com uns simples e pequenos comprimidos, aquilo que o alienista de outrora
não conseguira nem com meses e mais meses de tratamento. Daí, como o admirasse muito, sujeitei-me a
umas computações e aferições, nada grave, danoso ou de dolor; apenas me medira o crânio e conferira os
meus históricos, entre outras providências de um feitio similar. Por fim, até contara algo da sua
singularidade, sua proficiência no mister e, assim, quando terminei por conhecer mais e mais as suas
técnicas, as suas abordagens, os seus tratamentos e os seus mais honoráveis pacientes, via-me quase um
assistente seu das horas vagas. Mesmo durante recessos, como não quisera ficar dias a toa, visitava-o
sempre a uma horinha da tarde, ajudava-o com alguns encargos e anotações, discutíamos os casos e as
ciências, alguma vez fazíamos consultas em domicílio, e depois voltava satisfeito para casa. Mas tudo
isso sem ver os intratáveis doentes, os quais permaneciam em uma ala separada do manicômio, apartada
dos demais, menores funcionários.
Fora numa dessas vezes em que nos encontrávamos que desvendara pela primeira vez a sua descoberta.
Batera em porta de casa, com tempo extravasando das mãos, um certo dia, e tão cedo que tivemos o
distinto dever de sentar à varanda para tomarmos uma xícara de café e almoçar, quando conversamos
muito, rimos muito, e até nos espevitamos com um ou outro gracejo. Ao fim de tudo, foi dizer-me ele isto:
- O senhor é um dos meus mais perduráveis colaboradores. - disse, relaxando-se - Acho que merece, em
troca, pelo menos esse vislumbre - brincou - do futuro. Venha, vou-lhe mostrar o que eu descobri.
E com isso levantamo-nos, e tomamos uma condução para o centro de Stuttgart, onde pulamos em
direção à instituição. Abriu a porta para mim, segurando-a com a minha passagem, quando entrando pude
ver, outra vez, agora excepcionalmente iluminada pelo raiar do sol matinal, a sala de recepções. Um tanto
ornamentada por um estilo de difícil classificação, que só posso tomar em conta que fosse um rococó de
época, ou do jaez do prédio, ao passo que se prosseguia adentrando e esta mesma distinção mudava.
Perpassava-se o interior e viam-se umas rochas, dispostas aqui e ali, enquanto a faceta que caracterizava
as demais salas era moderna, e nisso muito alva, de uma alvura sublime. Tão branca, que resplandecia a
luz de arco no teto - uma das primeiras repartições iluminadas à eletricidade na Alemanha - à medida que
trabalhavam a maior parte dos empregados abaixo, indo de sala em sala, de aposento em aposento.
Atingíamos então um saguão, quando o doutor segurava o meu braço, e logo depois me guarnecia:
- Cuidado. Não esbarre em ninguém! ou então, Deus queira que nenhum acidente vá acontecer contigo.
Alguns destes funcionários transportam substâncias nocivas, tu vês, outros aplicam injeções. Alguns são
demasiado inócuos, como os que praticam a hipnose, mas ainda assim há um risco de que algo se vá
quebrar ou se romper. Há uma certa pressa aqui - e dizia, fazendo um largo gesto de exposição -, porque
ocorrem muitas emergências. Todos eles se movimentam com presteza, pernas lestas, ávidos do espírito a
atender aos necessitados, de supri-los com o tratamento. Vê como não é uma maravilha, o progresso da
ciência por esse nosso tempo. Poderia eu perguntar - e que outra resposta tu havias de me conceder? -,
com que melhor pala já se vestiu o homem, que não esta, que é a ciência e a sua melhor afiliada, a
técnica?
A princípio não lhe respondi. Tanto observava as coisas ao meu redor, e maravilhava-me com a multidão
emergente. A sala de recepções, pela qual passamos, ficava na maior parte do tempo vazia. Já o corredor
de pedra, logo em seguida, intransigente e abalrotado, via a rápida sucessão dos aventais e dos crachás, e
desta forma exemplificando apenas uma fração de toda aquela voragem que me testemunhara o olhar,
quando então adentrava aquele expansivo átrio, e pela primeira vez me punha a avançar até a área mais
afastada, local dos doentes, berço incauto daquela imensa mente.
- Verdadeiramente - respondi, enquanto os observava e contemplava toda a cena -, não há outra.
Prosseguimos, e caminhando à frente de um relaxado encalço, fomos deixando o nosso fraco perfil
impresso nos ares, nas mentes do galeno, para trás e penetrando às escuras numa área mais absconsa.
Aqui atingimos um corredor baixo e estreito, e aqui fora onde vi de derrocada os doentes. Pela primeira
vez na vida vira eu os doentes. Neste espaço que era menor, trespassado por menos gente, sendo levados
de lá para cá pela força, aos gritos, até mesmo aos sussurros - e nisso é que diziam obscenidades, os
ensandecidos, porque berravam coisas incompreensíveis ou então mofinas, a título de exaltação, de pura e
humana exoneração de si mesmos. Observando-os, não pude conter o meu desgosto, mais propriamente o
meu horror, ao contemplar aquele triste e, mais, estranho estado do psiquismo humano. A área em que
estávamos era pequena, certo. Mas mesmo dali, daquela aglomeração meramente exemplar, pudera eu ter
a impressão de haver cruzado bastos hospícios, mais uma porção de galerias ou tendas médicas em meio
ao combate, e ainda umas raras e modernas colônias penais, em África ou em terras ultramarinas e
desoladas. Sem dúvida alguma, a atribulação era triste. E quando imaginava que o outro passava boa parte
da sua magnífica vida ali, perdendo-se com estes loucos - a desperdiçar a incredulidade que tinha por um
gênio, naquele covil obscuro e infernal -, não compreendia como ele conseguia; não compreendia como
ele não olhava para si mesmo e não pensava ser-lhe jus alguma coisa melhor, alguma coisa mais. Não
entendia como ele conseguia arranjar, e sair ileso, sob ameaça constante à sua própria saúde mental, todos
aqueles impulsos, todo aquele caos, que precisava ser reordenado.
Era um vislumbre efêmero, entretanto. Logo, assentava-me sob o teto do seu escritório, que ficava no
final do corredor, aos fundos, e punha-se-me a exibir a sua descoberta, que havia então preparado.
Abeirou-se de uma mesinha, apanhou e trouxe até mim um microscópio, que ele mesmo havia
projetado, com um pedaço de massa cinzenta na platina, ainda com cortes de tecido cerebral ao lado,
parcialmente envoltos em fluidos nos cantos.
Estendeu as mãos e com um gesto indicou para que eu olhasse através da ocular, deixando-o em cima de
ainda uma outra mesa, agora longa e metálica, de tampo assaz espaçoso, a mim adjacente.
Olhei bem o objeto na lente, e vi uma estrutura como cápsula, sendo circundada por inúmeras esferas
agitadas e espúrias, enquanto realizavam o irrealizável. Propulsionavam-se sempiternamente, conforme
me notaria pouco depois, sem princípio aparente. Sem qualquer razão ostensível ou avaliável, e não
perdiam força nunca, jamais.
- Esta descoberta, meu caro companheiro - disse-me ele -, tem tudo para ser a maior do nosso século.
Encontrei esta estrutura no cérebro de todos os homens, e de todas as espécies que analisei (pois foram
muitas!). Que ninguém jamais a tenha visto antes, explica-se simplesmente porque não foi capaz, a gente
científica de outrora, de empreender um estudo tão vasto e minucioso do cérebro humano, tal como eu fiz
- e tampouco permitiria a razão de antes, com as suas tecnologias antiguadas o mesmo feito. Trata-se,
evidentemente, meu amigo, de um moto-contínuo; ou de uma espécie miniaturizada de moto-contínuo,
porque disturba o princípio fundamental, a grande escora por detrás de todas as ideias mais caras ao
homem científico. Louros, meu amigo! Louros! Imagina o que não estará adiante e por vir, graças a essa
argúcia que é a descoberta experimental, aqui presente e exemplificada diante de ti. E que nome
ostentarão, no cume de toda a genealogia; a origem de toda essa nova e postulada ordem dos inventos,
teóricos ou científicos? É preciso, meu caro: o nosso nome. O meu, o teu, e o de todos os nossos
colaboradores. A nós, aguarda ainda mais que o nome eterno, se sim a inspiração de toda uma nova vida;
de toda uma nova geração de homens e de mulheres, que exaltarão um novo princípio - o fruto último dos
nossos sacrifícios!
Entretanto, e logo posto que a descoberta me fascinara, a mim não menos, não me removera da cabeça a
preocupação pessoal com o doutor, e com aquele lugar esguio, o qual lhe deveria dar - como a qualquer
pessoa normal - uma boa dose de calafrios. O lugar era sujo; por vezes cheirava a esgoto, e tinha ratos,
baratas e doenças... além de todos aqueles gritos de tormentas e de tormentados, e quem sabe por cima
não havia alguma coisa, não menos estranha, mas mais temerosa que tudo aquilo.
Quase lhe perguntei como é que ele conseguia fazer, para aturar esta situação. Diante de tantas
colocações e de tantas boas obras, que ele por aí já de novo transparecia... de tantas promessas e de
tamanha vontade... Um espírito livre e sadio! um homem sagaz, dono de tão boa índole, de tão bons usos,
de tão boas qualidades, desgastando-se em condições degradantes, sub-humanas, vis! De tantas ambições,
estando ali... mas no momento em que me vinham aos lábios as inquietudes da palavra, olhei-lhe bem os
olhos. Vi a mais fina verdade. Maior mesmo até que aquela descoberta insigne do cérebro humano e
animal. Ia-lhe perguntar o que sentia, mas não era isto necessário. Não! Podia eu vê-lo bem nos olhos do
doutor.
O que vi me transtornara a pupila. Fizera-me exaurir o pulmão, e exalar-se-me um frio ar, porque
enxergava no rosto e, melhor, no brilho do cristalino, um raio de insistente comoção. Um grito de pânico,
de clamor, de histeria, de calidez frenética e de empatia - em suma, de humanidade. Coisa que como um
chamado, uma súplica, uma convergência que ia de encontro ao meu inquérito, tentava-se libertar do
controle frio e calculista do doutor. Olhava tranquila e fixamente na minha direção, e nisso brilhava um
balão, uma águia, uma coisa triste assim como um canário enjaulado, que canta as suas misérias, mas
esconde-as bem depressa por detrás da sua feição apática e estólida. Tempos depois, ainda saberia por
extensa investigação as particularidades do que com ele se dava, mas a observação por si só, e em um
primeiro momento de conclusão, tão somente, já de fato bastava para mim. Eu sabia muito bem o que em
frente a mim ali transparecia.
Com efeito, soara o insistente trovão do exalçamento animal. Contemplava-o eu na mira do doutor, só
que consigo reduzido a um fiasco; pálido como um fantasma, fino como um córrego, e triste como uma
lágrima. Aquele homem, o qual tão bem se comportava diante do infortúnio e das ocasiões, também era
ele um louco à sua própria medida. Verdadeiramente, era o oposto de um louco, axiologicamente averso
ao devaneio daqueles. Se o louco precipita a emoção, e subjuga com estas mesmas forças o brilho da
razão, fazia o doutor meramente o contrário. Mostrava-nos a sua face lógica, e com isso dissimulava todo
o resto que víamos. Nada escapava ao seu controle consciente. Tinha ele a posse de todas as suas
variáveis, na vida, tão eficientemente quanto nas metodologias, e era isto o que lhe constituía ser cientista.
Era isto o que lhe demandava ser psiquiatra de sanatórios. Era ele, pois sim, o Antilouco, em carne e osso.

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