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Hélio do Soveral

Adeus, Mr. Grogan


© 1969 – Hélio do Soveral
Publicado no Brasil pela Editora Monterrey

Ilustração: Benício

Prelúdio

Morte em Nova Orleans

Ainda com os olhos fechados, ela tentou mover um


braço.–
Não conseguiu. Suas coxas estavam também
horrivelmente doloridas e como que paralisa das. Então,
abriu os olhos, um tanto a medo, e olhou em torno. O sol
batia-lhe diretamente no rosto pálido, cintilando em seus
grandes olhos azuis.
Impressionante! O solo, de terra calcária, ficava a
quinze metros abaixo do lugar onde ela estava! E, ao
redor só se viam as copas do arvoredo. Ela se encontrava
enganchada, pendurada no alto de um pinheiro, segura
por dois de seus ramos mais frondosos. Naquela
incômoda posição, apoiada numa forquilha natural da
árvore, sentia-se entre a terra e o céu. Estava ferida e
dolorida. Sua cabeça latejava. Seria aquilo possível? Ou
tudo não passaria de um pesadelo?
Olhou para cima. Além dos galhos mais altos do
pinheiro (alguns quebrados e lascados) havia uma
pequena montanha rochosa, escarpada, cujo cimo se
debruçava, acerca de trinta metros, sobre a copa do
pinheiro onde ela se achava entalada. Evidentemente,
havia caído lá de cima e, por milagre, ficara presa nos
ramos daquela árvore providencial.
Passou a língua pelos lábios e sentiu o gosto amargo
do sangue. Também havia sangue (seco) nas suas
mãozinhas delicadas. Que lhe teria acontecido? Teria ela
caído, mesmo, lá de cima, sobre a floresta de pinheiros
onde se encontrava?
Ou teria sido empurrada por alguém?
Mas, antes de tudo, era preciso saber quem era ela.
Sim, ela não se lembrava, nem por sombra; de quem era!
Não se lembrava de seu nome, de sua profissão, de sua
nacionalidade, do lugar onde vivia! Nada! Um branco
total!
Amnésia das mais completas e terríveis! Absoluta
ausência do mundo! Ela devia ter sofrido um impacto
muito grande, com a queda, e perdera a memória. Uma
parede branca, limpa, compacta, obturava o seu espírito.
Sabia, apenas, que estava viva, que respirava, que era
uma mulher. E que estava só, isolada do mundo,
enganchada no alto de um pinheiro gigantesco!
Escapara, por milagre, de uma queda acidental...
ou de uma tentativa de assassínio. Mas, por quê? Que
tipo de vida teria sido a sua, para determinar tal
acidente? E onde estaria ela? Que floresta seria aquela?
Em que lugar, em que cidade, em que país? Não sabia de
nada! Não podia se lembrar de coisa alguma!
Fez outro esforço para se movimentar, lentamente,
cautelosamente. Seus músculos doíam muito; cada
centímetro de seu corpo parecia ter levado uma surra
monstruosa! Mas viu que podia se mexer, afinal. Pelo
menos, não estava paralítica. Contudo, era preciso
mover-se com extrema cautela, para não cair daquele
galho. O pinheiro, dos mais altos que já vira, tomava soa
tarefa muito difícil. E o tronco era liso, impossível de usar
como escada.
Um salto daquela altura, ainda mesmo em cima das
folhas secas, poderia significar a morte! Ela não estava
em condições de saltar! Resolveu gritar por socorro, Mas
em que língua?
Sua memória não estava totalmente perdida, afinal.
Lembrou-se de que conhecia vários idiomas. Também
se lembrou dos altos pinheiros da Floresta Negra, no
sudoeste da Alemanha. Resolveu tentar o pedido de
socorro em alemão: — Helfen! Bitte, helfen!
Sua voz angustiada reverberou por entre os pinheiros
e perdeu-se na distância, engolida pela solidão. Não
houve resposta. Tentou em inglês: — Help! Help!
Nada, ainda. Em francês: — Au secours!
Em francês: — Aiuto!
Em espanhol: — Socorro!
E esperou. Esperou minutos, horas talvez. O sol subia
no alto do céu; imaginou que já fosse meio-dia. Meio-dia,
em alguma parte do mundo. Um meio-dia de terão, em
algum bosque de pinheiros do planeta Terra... Voltou a
gritar, outra vez, nos cinco idiomas que dominava com
perfeição. Nada!
Não apareceu ninguém. A floresta continuava quieta e
silenciosa como um tumulto. Esperou mais um pouco.
Afinal, ouvia um tiro. Sim, não havia dúvida: alguém
disparara uma espingarda, por entre o arvoredo!
Pássaros esvoaçaram, assustados, e um grupo de três
homens surgiu por entre os pinheiros. A avaliar pelos
seus trajas característicos, eram caçadores. Traziam rifles
debaixo do braço e cartucheiras a tiracolo. Suas botas
rangiam nas folhas secas.
— Você errou — disse um dos homens, dando uma
risada. — Hoje estamos sem sorte!
Falava em francês, embora com sotaque germânico. A
moça, no alto da árvore, pôs-se a bater palmas e a gritar
nervosamente: — Au secours! Au secours!
Os três caçadores olharam para cima e soltaram
exclamações de espanto. Um deles falava em alemão e
parecia o mais prático de todos; num minuto, subiu pelo
pinheiro (cravando uma escada de corda, pouco a pouco,
no tronco esguio) e alcançou a bela garota ali
enganchada.
— Was ist geschehen, Fraulein?
Ela respondeu, também em alemão: — Que
aconteceu? Não sei! Desça-me daqui, por favor!
Estou muito dolorida! Mas creio que não quebrei
nenhum osso.
Outro minuto se passou, enquanto os três homens
(que eram, todos, jovens e bem-humorados) a ajudavam
a descer pela escadinha de corda. Estenderam-na na
relva e deram-lhe um gole de conhaque para beber. A
mochila de um dos caçadores parecia um arsenal de
campanha; além do cantil (com o conhaque) tinha
algodão e mercurocromo. A moça foi pensada e, pouco a
pouco, recuperou todas as suas faculdades. Menos a
memória. Continuava sem saber quem era, onde estava,
o que lhe tinha acontecido. Um dos caçadores, que
parecia ser o mais jovem, era um belo rapaz, alto e louro,
de penetrantes olhos verdes.
— Sou Lucien Weber — apresentou-te, falando em
francês e olhando com admiração para o corpo escultural
da garota. — Eu não acreditava nas tendas da Suíça...
nem sequer na história de Guilherme Tell... até que isto
aconteceu! Dizem as crônicas que há muitas fadas
escondidas nas belas paisagens deste país; se isso for
verdade, mademoiselle deve ser a rainha de todas elas!
Como se explica...?
— Não sei — respondeu ela, ajeitando pudicamente a
saia sobre as pernas longas e bem torneadas. — Não sei
de nada! Perdi completamente a memória!
— Ach! — fez outro caçador, com ar de desconfiança.
— Sprechen Sie Ernst, Mädchen?*

*“Está falando sério, moça?


A garota respondeu, também em alemão, procurando


ser o mais sincera possível. Realmente, sua aventura,
seguida por um ataque de amnésia, parecia inverossímil.
Mas tudo quanto ela afirmava era a expressão da
verdade. Lucien Weber encerrou o assunto: 
— Acredito no que me diz, mademoiselle. E, eu
creditando, meus amigos acreditam também! Vejo que
mademoiselle sofreu um tremendo choque, ao cair em
cima dessa árvore, e perdeu parte de sua memória.
Essas coisas acontecem... Estamos prontos para ajudá-la
em tudo quanto estiver ao nosso alcance. Meus
companheiros, Erwin Krause e Nills Burg, são suíços e
moram em Zurique, como eu. Estamos aqui a passeio.
Pode confiar em nós, mademoiselle. Provavelmente,
mademoiselle veio de Lausanne, não é?
— Lausanne... — murmurou ela, pondo-se de pé. —
Não sei! Onde estamos, exatamente? Já sei que é a
Suíça, mas... que parte da Suíça?
Lucien respondeu gravemente: 
— Estamos na região de Caux, nos bosques de
pinheiros, sob a extremidade setentrional dos rochedos
de Naye. Este é um lugar privilegiado, uma estação
climática de verão e inverno. As localidades mais
próximas são Glion, ao norte, e Montreux, ao sul, à beira
do Lago Léman. Lausanne fica mais a oeste, depois de
Clarens e Vevey, pela estrada de rodagem. De onde teria
vindo mademoiselle?
— Não sei — repetiu a moça, impaciente. — Nunca
esperei acordar na Suíça! Por que, a Suíça? Será que eu
caí de algum avião e...?
— Não acho provável — retrucou o rapaz, sorrindo
levemente. — Mademoiselle caiu, com toda a certeza, de
cima daquele rochedo. Mas, por que teria subido até lá
acima? E como veio parar em Caux? Deve ter utilizado
alguma condução... Seus sapatinhos estão perfeitamente
limpos... Talvez tenha vindo em algum automóvel...
— Sim, talvez — admitiu ela, preocupada. — Não
quero lhes dar mais trabalhos, messieurs. Eu própria
investigarei os meus passos, até aqui.
— Por favor — protestou Lucien, envolvendo-a no seu
olhar afável. — Não nos negue o prazer de lhe sermos
úteis!
Investigaremos, todos juntos, o seu passado. Só me
sentirei tranquilo depois de vê-la completamente refeita,
entregue aos parentes. E com a memória funcionando
outra vez...
A moça encarou-o com seus grandes olhos azuis, e
sentiu o calor que emanava de seu olhar verde. Era uma
perfeita coincidência: os dois olhares se penetravam, se
misturavam, na mesma esperança de entendimento e
afeição. E havia muita pureza nos desejos de suas almas.
— Lucien — murmurou a moça, entregando a
mãozinha magoada ao seu galante salvador. — Lamento
não poder lhe dizer meu nome, pois não me lembro dele.
Mas confio em você e sinto que acabei de encontrar um
amigo leal! Serei muito feliz, aceitando-o como aliado, na
tarefa de descobrir o meu passado! Você e seus amigos
me salvaram a vida!
Ser-lhes-ei eternamente grata!
O rapaz, emocionado, beijou-lhe impulsivamente a
mão.
— Você será Happy — decidiu ele. — Eu a batizarei
assim, até que conheçamos seu verdadeiro nome. Existe,
na mitologia suíça, uma fada que se chamava Happy.
— Happy, em inglês? — duvidou a moça.
— Escolhi o inglês porque você tem tipo de
americana. E eu sempre gostei desse nome.
O caçador chamado Nills comentou: — Mademoiselle
me parece, antes, francesa. Mas não é assim, por
suposições, que chegaremos à verdade. É preciso
encontrar uma pista, para desvendar o mistério. Sugiro
que comecemos subindo ao alto das rochas de Naye!
Antes da excursão a moça ainda rebuscou os bolsos
de seu tailleur sujo e rasgado, mas não encontrou nada.
Nenhum papel, nenhum objeto, nada! Todavia, Lucien
chamou-lhe a atenção para a etiqueta do casaquinho. A
roupa fora confeccionada por um célebre atelier de moda
de Paris.
Infelizmente, no caso, essa loja se democratizara e
passara a fabricar roupas em série.
— Não adiantaria nada seguir a pista do tailleur —
comentou a moça. — Não foi feito sob medida. Isso quer
dizer que não sou uma dama da alta sociedade...
Subiram às rochas, mas não encontraram nada de
anormal. Todo o platô estava deserto. Também não havia
sinais de nenhum veículo. Mas, ao descerem, acharam
marcas de pneus, na estradinha que corria por trás do
rochedo, ao fundo do bosque de pinheiros.
— Você veio de carro — decidiu Lucien.
— Mas os amigos que a trouxeram foram embora
depois de sua queda, acidental ou não. Suponho que o
desastre tenha ocorrido ontem à noite, ou hoje de
madrugada. Agora, vamos para Lausanne!
Deram volta às rochas e tomaram a se internar no
bosque.
— Lausanne? — fez a moça, confusa. — Não é muito
longe? Vocês não disseram que Montreux fica mais
perto?
— Estamos morando em Lausanne — explicou Lucien,
olhando-a profundamente. — Sempre que caçamos em
Caux, ocupamos os mesmos aposentos num hotel de
Ouchy, à beira do lago. Meus amigos são negociantes de
Zurique e eu sou banqueiro. Herdei de meu pai a maioria
das ações do Royal Bank mit Zurich, que tem sede na
Bahnhofstrasse. Também sou aquilo que se chama,
pejorativamente, um playboy... Você aparenta vinte e
cinco anos e eu já fiz vinte e oito; estamos, pois, em boa
idade para trocar confidências...
— Solteiro? — inquiriu ela, apoiando-se em seu braço.
Uma sombra desceu sobre o semblante do rapaz.
— Não. Casado.
— Ah!
— Mas separado da mulher. Ela mora em Zurique, em
minha mansão da cidade velha, à beira do Limmat. Há
dois anos que nos separamos, por incompatibilidade de
gênios, e eu me tornei um playboy...
— Compreendo — murmurou a moça. — Lamento
muito, Lucien. Quanto a mim, não sei se sou casada ou
solteira.
— Você é solteira, Happy, e não tem nenhum
compromisso. Todas as fadas são livres para poderem
levar a felicidade aos pobres mortais...
A moça sorriu e não disse mais nada. Chegaram à
aldeia de Glion, onde dois automóveis particulares
esperavam por eles. Um dos carros era um sedã Saurer-
6, preto, e o outro, um Alfa Romeu Giulia SS, branco, de
dois lugares, que logo encantou a bela desmemoriada.
— Que beleza! — exclamou ela, afagando o capô do
carro. — Carroceria de Bertone!
Lucien assentiu, contente com a alegria dela.
— Este é o meu carrinho, Happy. Eu tinha um
Mercedes, mas preferi o novo lançamento da Alfa. Você
gosta dele?
Ela examinava o carro por todos os lados,
maravilhada.
— Adorei! Estou pedindo a Deus para que eu seja
bastante rica e tenha uma bólide como esta! Mas não
creio muito nisso... Eu devo ser pobre.
— Se você gosta do carro — disse Lucien, sorrindo —
ele é seu!
— Como? — fez ela, alarmada.
— Empresto-lhe o meu carrinho, até que você
encontre o seu. Não há nada mais fascinante do que a
alegria nos olhos de uma mulher bonita... O carro é seu,
Happy! Você o conquistou com o seu charme!
— Oh, não! É um absurdo, Lucien! Você está falando
sério?
— Sempre falo sério.
Entraram no Alfa e o rapaz sentou-se ao lado do
assento do motorista. A moça apanhou as chaves, na
mão dele, e tomou o volante. Agia com extrema
segurança, como se sua profissão sempre tivesse sido a
de chauffeuse.
— Será que você sabe dirigir? — perguntou Lucien,
olhando-a de soslaio. — Quero dizer, será que você não
se esqueceu?
Como resposta, ela ligou o motor e deu partida ao
carrinho. O Alfa tinha cinco marchas e um potente motor
que lhe dava uma velocidade de cento e vinte cinco
milhas por hora. O outro veículo, pesadão, foi atrás deles.
Lucien, mal contendo a alegria, indicou a estrada para
Montreux, que dominava o Castelo de Chillon. Passaram
pela cidadezinha, à beira do Lago Léman, e seguiram,
pela corniche, para Clarens. As aldeias eram rústicas,
mas as rodovias excelentes. Pelo caminho, o rapaz
falava, falava sem parar, contando sua vida e queixando-
se de sua solidão. Muito rico, mas infeliz, ele nunca se
detinha em nenhum dos lugares por onde passava, em
busca de um bálsamo para a sua alma solitária. Aqueles
dois anos tinham sido bastante desagradáveis.
— Infelizmente — disse a garota, dando maior
velocidade ao Alfa — não posso lhe dizer se sou feliz ou
infeliz. Não conheço a mim mesma. Mas nesse momento,
Lucien, sinto-me a mais feliz das criaturas!
— Por causa do carro? — perguntou ele, desviando a
vista para a paisagem.
— Não. Você sabe que não. Por sua causa!
Ele virou o rosto, para encará-la. Estava emocionado.
— Eu também a agradei, Happy?
— Muito! Você é culto, simpático, elegante, e... e
também tem charme! Não entendo como um bonitão
desses pode ser solitário!
Ele tomou-lhe uma das mãos e levou-a aos lábios.
— Happy, você pode não acreditar, mas eu já estou
fascinado por você!
— Nesse caso — retorquiu ela, sorrindo — vou parar o
carrinho. Corremos muito, nestes últimos minutos, e
deixamos os seus amigos para trás. Sou como você,
Lucien, e também gosto de correr... Há certas coisas que
se devem fazer sem refletir muito, para que não percam
o sabor...
Freou o Alfa, na entrada de Clarens, e virou-se no
assento. Sua saia subiu até acima, pondo à mostra as
pernas maravilhosas. Lucien abraçou-a e puxou-a para si.
Seus lábios se uniram, num beijo longo. Ele também
sabia beijar muito bem.
— Você é uma deusa, Happy — murmurou o rapaz,
recuperando a respiração e lhe afagando o corpo trêmulo
de desejo. — Seremos muito felizes juntos, enquanto
durar esse nosso sonho!
Ela segurou-lhe a mão, que se tornara audaciosa
demais.
— Meu Deus! — suspirou. — Que revelação! Não sei
quem sou, mas, pelo visto, devo ser uma garota muito
sem-vergonha! Você não acha?
— Não — respondeu ele, abrindo-lhe o decote, para
beijá-la na cova dos seios. — Acho que você é honesta e
decente. Foi o amor que nos tomou apressados...
Nesse momento, ela sentiu que alguma coisa
estralejava, no forro de seu casaquinho bege. Rasgou
uma beirada do pano e tirou um envelope em branco.
Lucien separou-se dela e desviou discretamente os olhos
para trás, a fim de ver se aparecia o sedã Saurer de seus
companheiros de caçada. A moça tirou do envelope um
bilhete, escrito em francês, que dizia:

  “Mademoiselle Estou pronto para lhe falar sobre


a Casa de Saúde e as doenças mentais. Encontre-se
comigo no hotel, na Rua des Beaux Arts, esta noite
sem falta.
Paul Provence.”

Lucien viu-a dobrar o papel e enfiá-lo outra vez no


envelope.
— E então? — inquiriu ele, com voz alegre. —
Encontrou alguma pista do seu passado?
— Não — respondeu ela, desabotoando o casaquinho.
— Não é nada importante, meu amor.
E voltou a entregar-lhe os lábios de coral. Mas Lucien
percebeu que ela estava ainda mais confusa e
preocupada do que antes.

A nova Sra. Weber


Visita à clínica do Prof. Saint-Autel
Diversão em alta escala
Um telegrama de Zurique
A mensagem de Paul Provence

Lausanne, a quinta cidade da Suíça, fica sobre três


colinas, que dominam a margem norte do Lago de
Léman, do lado oposto a Genebra, no cantão de Vaud. É
uma das cidades mais francesas do país. Seu porto
fluvial, Ouchy, ao qual está ligada por uma estrada de
ferro funicular, ostenta a residência histórica dos bispos
de Lausanne — o Chateau d’Ouchy — hoje transformado
em botei. Era nesse hotel que Lucien Weber e seus dois
amigos tinham alugado duas suítes, com vista para o
lago.
Os carros chegaram a Ouchy às duas e meia da tarde,
depois de atravessarem o Chemin de Longeraie, em
Lausanne. Só então o rico banqueiro de Zurique se
lembrou de que ainda não oferecera almoço à sua
encantadora companheira.
— Happy — disse ele, quando a moça freou o Alfa —
não é só você que sofre de amnésia. Foi tão emocionante
o nosso encontro que eu até me olvidei dos meus
deveres de anfitrião! Você deve estar morrendo de fome!
Ela fez-lhe um afago no rosto.
— Tem razão, querido. Desconfio que não me alimento
há uma semana!
— Que exagero! — riu ele. — Você não esteve
pendurada no pinheiro por mais de doze horas. Por falar
nisso: como se sente agora?
Ela se sentia muito bem. As dores musculares tinham
desaparecido. Apenas certa região da cabeça ainda se
mostrava dolorida. Era como se ela tivesse sido
golpeada, violentamente, na base do crânio. Mas não
havia fratura externa.
— Amanhã iremos a Paris — decidiu Lucien.
— Ora essa! Por quê?
— Por causa de sua amnésia. Vamos consultar um
especialista. Como lhe disse, quero que você me
pertença, mas na plena posse de todas as suas
faculdades. Assim, Happy, tenho a impressão de que...
não sei... de que estou abusando de você.
Ela deu uma risadinha.
— Não se preocupe, meu bem. Eu perdi a memória,
mas não perdi o entendimento. Gosto de você e, por isso,
sou sua.
Você não está me forçando. Eu seria sua, mesmo que
a memória me voltasse, — Isso — retrucou ele com voz
grave — é o que não sabemos. Quero que você volte a
lembrar-se do passado, que você volte a saber quem é e
como se chama... mas, ao mesmo tempo, tenho medo da
revelação. Eu não queria perdê-la, Happy!
— Descanse. Você não me perderá. Seja eu quem for,
continuam a ser a sua Happy... a Happy de Lucien...
Ele puxou-a para si e beijou-a ardentemente nos
lábios.
Os outros dois rapazes tinham saltado do Sauer e
chamavam por eles. Eles também saltaram do Alfa e
caminharam, de mãos dadas, para o prédio do hotel. O
Chateau d’Ouchy era quase um castelo, amplo e
pitoresco. Na portaria, foram atendidos por um
funcionário amável, que já conhecia o poder do dinheiro
do playboy de Zurique. Os olhos aguados do
recepcionista mediram, de alto a baixo, o corpo
escultural da moça que acompanhava Lucien.
— Às suas ordens, monsieur.
— Uma surpresa — disse o jovem banqueiro, com um
sorriso cínico. — Minha mulher acaba de chegar de
Zurique.
— Mas isso é extraordinário! — exclamou o rapaz,
encantado. — Monsieur prefere mudar de suíte? Não
creio.
Madame Weber ficará bem instalada nos aposentos
que monsieur ocupa atualmente.
— Happy Weber — esclareceu Lucien, sorrindo para o
olhar espantado da garota. — Minha esposa chama-se
Happy...,

A suíte compunha-se de uma saleta, um living alegre e


acolhedor, um quarto amplo e confortável (com cama de
casal) e um banheiro privativo, em mosaicos azuis, onde
não faltava água quente. Todas as janelas abriam para o
lago.

Depois do almoço, Lucien e Happy saíram no carrinho


esporte e foram até o centro de Lausanne, para comprar
uma mala e novas toilettes para a moça. Também
aproveitaram o passeio para fazer indagações, por toda
parte, procurando uma pista que os levasse à
desmemoriada de Caux. Os dois amigos de Lucien, Erwin
Krause e Nills Burg, ajudaram-nos nesse trabalho. Mas foi
tudo inútil. Ninguém conhecia a nova Sra. Weber.
Aparentemente, a bela garota, de cabelos negros e olhos
azuis, não estivera em nenhum hotel de Lausanne. E não
pertencia a nenhuma família da localidade.
Ninguém a conhecia.
— Não foi daqui que você partiu — disse Lucien.
— Mas também não podemos esquadrinhar todas as
aldeias da vizinhança!
As visitas às lojas de modas foram alegres e cheias de
surpresas. A nova Sra. Weber (que não se sentia uma
intrusa dentro desse nome, pois não conhecia o seu
próprio) escolheu meia dúzia de trajos para diversas
ocasiões, sapatos, lingerie, tudo da melhor qualidade.
Lucien não economizava as alegrias que proporcionava à
garota; só por um minuto ele a deixou sozinha, para ir
aos Correios e Telégrafos. Depois, voltaram a se
encontrar, no centro comercial, e ele instou para que ela
tirasse alguns retratos. A garota não se fez de rogada.
Alguns desses retratos eram artísticos, mas outros
pareciam destinados a documentos oficiais.
Por volta das oito horas da noite, regressaram ao
hotel, cansados e satisfeitos. As encomendas já tinham
sido entregues e colocadas na suíte. A moça mudou de
roupa, envergando um dos vestidos mais elegantes.
Jantaram, em companhia dos outros dois amigos do
rapaz, e fizeram seus projetos para a viagem a Paris.
— Só uma coisa me preocupa — disse a garota, em
voz baixa. — Não tenho documentos de identidade!
E olhou, com expressão ingênua, para o seu
companheiro.
— Tudo se arranja — replicou ele, com ar misterioso.
— Amanhã de manhã, você receberá o seu passaporte. E
a sua nova carteira de identidade.
— Mas, como?
— Telegrafei para Zurique — explicou o rapaz. —
Tenho muitos amigos influentes na Suíça. Você receberá
os documentos em nome de Happy Weber, natural de
Neuchâtel. Meus amigos trabalham ligeiro...
A garota ficou desconfiada, mas calou-se. Aquilo era
muito estranho! Lembrou-se dos retratos que tirara,
nessa tarde, em Lausanne, e compreendeu tudo. Seu
novo amigo devia estar ligado a alguma quadrilha de
falsificadores de documentos! Ou não? Também podia ser
que ele obtivesse o passaporte por via diplomática...
Mas, seria isso possível, no espaço de doze horas?
Talvez... Com dinheiro e amigos influentes tudo se
consegue neste mundo.
Desistiu de quebrar a cabeça e entregou-se, de corpo
e alma, à aventura. Lucien lhe agradava e mostrava-se
muito carinhoso; só isso bastia para fazê-la feliz. Quanto
ao seu passado...
Não era capaz de se lembrar de nada! Às vezes, isso
deprimia-a e tornava-a melancólica. Gostaria de saber
quem era, qual o seu verdadeiro nome, sua profissão.
Moça de boa família ou mulher aventureira? Era
inteligente, culta, elegante, mas não sabia de mais nada
a seu respeito! No fundo, tinha medo! Era isso: tinha
medo!
Depois do jantar, quando voltou à suíte com Lucien e
fechou a porta da alcova, pôs-se a olhar pensativamente
para a chave.
— Que foi? — indagou o rapaz, encarando-a.
— Não sei! Esta chave... Tenho a impressão de que eu
lidava com chaves...
Ele deu uma risada. Mas era uma risada sem alegria.
— Pelo amor de Deus, Happy! Você não tem tipo de
fabricante de chaves! Suas mãozinhas são delicadas
demais para isso. Esqueça-se dessa bobagem!
Ela estava muito séria.
— Não é uma bobagem, Lucien! Ao ver esta chave,
senti um arrepio! Aconteceu-me o mesmo quando você
me passou as chaves do carro. É como... não sei... como
se eu já tivesse lidado com gazuas!
— Gazuas? Essa não, Happy! Você também não tem
tipo de “rato de hotel”! Esqueça-se disso e venha me
fazer feliz! Estou esperando você!
Ela acenou vagamente e começou a tirar a roupa.
Sentiu outro estremecimento: ela se despia (até ficar
completamente nua) com muita facilidade... Seu
pensamento estava longe, muito longe dali. Pensava na
mais velha das profissões. Mas, não! Não era possível!
Ela era muito fina e educada para isso!

No dia seguinte, às oito da manhã, chegou um grande


envelope, ao Hotel Château d’Ouchy. Tinha vindo de
Zurique, por via aérea, expresso e registrado. Lucien
levou-o para a suíte onde Happy ainda tomava café, e
abriu-o à vista da garota. Continha todos os documentos
necessários à nova existência civil de Happy Weber, de
Neuchâtel. O passaporte era perfeito. Ela deu gritinhos
de alegria.

— Você é maravilhoso, Lucien! Como conseguiu isso


tudo?
— Tenho amigos influentes — respondeu o rapaz,
evasivamente.
Ela encolheu os ombros e acabou de tomar o café.
Seu peignoir estava aberto e seus belos seios, redondos
e duros, apontavam arrogantemente para frente.
O rapaz contemplava-a embevecido.
— Quando você estiver pronta — volveu ele, sorrindo
outra vez — seguiremos para Paris. Já preveni os nossos
amigos. Erwin e Nills ficarão em Lausanne.
— Vamos de carro?
— Claro. É uma bela viagem. Almoçaremos no meio do
caminho e jantaremos em Paris. A estrada de rodagem é
excelente. Quando quer partir?
— Agora mesmo — respondeu ela, despindo o
peignoir.
— Estou ansiosa por conhecer a opinião do
especialista sobre a minha amnésia.
— Não é só isso — retorquiu o playboy, enlaçando-a
pela cintura. — Seu costume foi feito em Paris. Isso dá a
entender que, se você não é francesa, pelo menos
passou pela capital da França. Talvez tenhamos mais
sorte, lá, e encontremos o seu passado. Eu a ajudarei
com o maior interesse.
Puseram-se a caminho às nove e meia, no veloz Alfa
esporte. A mala da garota seguiu no banco suplementar.
Dentro dessa mala, ia o seu tailleur antigo, ainda sujo
e rasgado (ela mão queria destruir nenhum indício) e o
bilhete do misterioso Paul Provence. Aliás, devido à
sucessão de visitas e passeios, que a distraíam e
encantavam, ela se esquecera completamente da
mensagem encontrada no forro do costume bege. De
qualquer maneira, iam para Paris. E havia uma Rue des
Deaux Arts naquela cidade...
Não houve nenhum contratempo na travessia da
fronteira; os guardas deixaram-nos passar. Depois de
uma encantadora excursão automobilística pelo Condado
da França e pela Borgonha (com almoço em Dijon)
entraram em Paris às seis horas de uma tarde fresca e
agradável. Lucien tinha tomado o volante do Alfa e
dirigiu o carro diretamente para o oeste da capital.
Atravessaram uma ponte e passaram para a margem
direita do Sena, seguindo pelos Grandes Boulevards.
Uma hora depois, estavam entrando no pátio de um
pequeno hotel da Rue de La Fontaine, a cinco minutos do
Bois de Boulogne. Aí, já havia um quarto reservado em
nome de Monsieur e Madame Lucien Weber.
— Eles adivinharam? — perguntou a moça, espantada.
— Não vi você telefonar para Paris!
— Também tenho amigos por aqui... Escolhi um hotel
discreto, fora da cidade, para que possamos ficar mais à
vontade. O passadio é excelente. Comida alemã.
Um boy louro e sardento levou as duas malas para o
quarto número 13. Nem Lucien nem sua nova “esposa"
eram supersticiosos. Jantaram no grill e assistiram um
pequeno show musical, com uma orquestra bávara.
Depois da refeição, Lucien pediu licença e foi para o
telefone da Recepção. Disfarçadamente, a garota foi
atrás dele e postou-se num lugar onde não seria vista e
de onde podia ouvir tudo o que ele falava. O rapaz tinha
ligado para uma espécie de seu procurador, em Paris, e
falava em alemão, marcando uma consulta com um
especialista em doenças da memória, chamado Saint-
Autel. A moça subiu para o quarto e procurou a lista
telefônica. Tudo combinava. O Prof. Jerome de Saint-Autel
era um famoso clínico da Praça de Strasburgo.
Nessa noite, o casal divertiu-se bastante, assistindo a
um espetáculo imoral do Crazy Cat Saloon, e voltou para
o hotel altas horas da noite. Lucien estava eufórico e sua
jovem companheira também tinha bebido além da conta.
Isso não impediu que passassem uma madrugada de alta
voltagem erótica, na qual a moça pôs à prova todas as
seduções femininas adormecidas em sua memória.
Lucien chegou, mesmo, a desconfiar que ela fosse uma
feiticeira.
Às oito da manhã foram acordados pela campainha do
telefone. O rapaz atendeu com voz pastosa. Sentia-se
esgotado.
— Pardon, monsieur — disse a voz da telefonista. —
Sua consulta com o Prof. Saint-Autel está marcada para
as nove horas. Danke sehr, monsieur.
Eles se beijaram e saltaram da cama, correndo para o
chuveiro. Meia hora depois, já tinham comido o pequeno
almoço e corriam, no Alfa esporte, para a Gare do Leste.
A clínica do Prof. Saint-Autel ficava em frente à estação,
num prédio grande e velho, recentemente pintado de
branco. O médico era um homem de meia-idade, calvo,
gordo, de pince-nez de ouro. A nova Happy Weber lhe
narrou a sua história, submetendo-se aos exames
exigidos pelo famoso lente da Sorbonne.
— Não há nenhuma fratura — declarou o médico,
olhando profundamente para o rosto de sua paciente. —
Acho desnecessária uma radiografia. Ainda há vestígios
de contusões leves, generalizadas, nos braços e nas
pernas, mas nenhuma delas tem qualquer gravidade. O
tratamento com mercurocromo foi providencial. Houve
um corte superficial, nos lábios, e outro na espádua,
também sem gravidade. As pequenas manchas roxas nos
seios...
— Não se preocupe com as manchas roxas — rosnou
Lucien, que assistiu ao exame, sentado numa cadeira do
consultório.
O médico piscou os olhos, por trás do pince-nez.
— Sim, claro. Compreendo... O mais sério, monsieur, é
o cérebro.
— O que há com o cérebro? — assustou-se a moça.
— Não tema, madame. Sua cabeça foi duramente
castigada na queda. Encontrei, realmente, uma forte
contusão no occipital, mas está superada. O que me
preocupa é o traumatismo interno.
— Coisa grave, doutor? — perguntou Lucien.
— Podia ser grave se houvesse ruptura de vasos e
hemorragia. Mas, embora não haja indícios de
dilaceração dos tecidos, houve um traumatismo no
cérebro. Isso é evidente. Daí, a amnésia de que madame
se queixa. Uma amnésia parcial, como é comum. As
amnésias gerais só existem nos romances de ficção.
— Não há amnésia geral? — espantou-se a moça.
Ela estava sentada na mesa de exames, vestida
apenas com uma camisola. O Prof. Saint-Autel bateu-lhe
levemente num joelho.
— Não, madame. Todas as amnésias são parciais, pois
nenhuma função intelectual pode existir sem a memória.
Seu caso, pelo que vejo, é sem gravidade. Um acidente
amnésico típico, diria eu. Houve uma compressão
momentânea de um setor do córtex cerebral, onde reside
a memória. Então, essa faculdade foi afetada em parte e
o fenômeno persistiu, mesmo depois da volta à
consciência. Madame esqueceu seu nome e sua origem,
embora não tenha esquecido do que aprendeu em seus
vinte e poucos anos de vida. Continua, pois, senhora da
faculdade de raciocinar e de viver normalmente. Os
tecidos do cérebro reagiram, depois da pancada, pois
não houve propriamente uma lesão, mas ainda não se
recuperaram inteiramente, voltando à normalidade
funcional. O córtex cerebral...
Lucien interrompeu-o, ansioso: — E a amnésia pode
ser definitiva, doutor?
— Nada disso, monsieur. Não há nenhum fenômeno
definitivo na vida. A memória voltará, aos poucos, ou
repentinamente, conforme o caso. A amnésia pode, e
deve ser, periódica.
— E se não for?
— Nesse caso, como o fenômeno não incide sobre
palavras... pois madame não perdeu a faculdade de se
expressar corretamente... temos que aguardar a volta
progressiva da memória, à medida que os fatos
armazenados no cérebro voltem ao seu lugar. Nos casos
de amnésia com privação da faculdade de recordar
palavras, costuma-se proceder a uma nova educação do
paciente, que pode dar bons resultados. Mas não é este o
caso. A memória de madame pode voltar
repentinamente, por uma associação de ideias, ou pela
contemplação de um objeto familiar, desde que se repita,
no presente, algo fundamental que tenha ocorrido no
passado. Não há nenhuma droga química, específica,
para isto, mas apenas uma grande força de vontade.
Aconselho madame a procurar o seu passado, visitando
os lugares onde supõe que tenha vivido.
— Mas eu não sei — queixou-se a moça. — Não sei
onde foi que vivi até agora!
— Neste caso — concluiu o médico — saia muito de
casa e divirta-se. Não se preocupe com coisa alguma,
pois madame não está doente. Isso não é uma doença.
Divirta-se, ria, goze a vida... e, quando menos esperar, a
memória lhe voltará integralmente. Paris tem muitos e
soberbos lugares de distração...
Lucien agradeceu e esperou que sua bela
companheira se vestisse; depois, pegou-a por um braço e
carregou-a para fora da clínica. Foram almoçar na
Avenida Hoche, num dos jardins do restaurante “Le Royal
Monceau”, um dos mais elegantes de Paris, onde
comeram “aiguillettes de Charolais à 1’Armagnac” e
“soufflé à Royal-Monceau”. Depois, saíram para passear
pela cidade, detendo-se em vários bairros. Lucien dirigia
o Alfa e não perdia de vista o rosto de sua Happy, à
espera de uma expressão de reconhecimento, um olhar
de compreensão ou de saudade. Nada. A moça olhava
para todos os lugares com se os visse pela primeira vez.
Não demonstrou nenhuma emoção, nem mesmo em
Saint-Germain, por onde desfilavam os pops da “nouvelle
vague”.
— Em Londres também há beatnicks — foi o
comentário que ela fez.
— Então, você conhece Londres — suspirou o rapaz,
abatido. — Mas, você esteve em Paris! Sim, você
comprou aquele tailleur na Rive Gaúche. É desanimador!
A moça não estava menos acabrunhada. Apesar de
serem felizes, juntos, tinham aquela sombra entre eles!
Não adiantava se divertirem, beberem, assistirem às
grandes atrações de Paris; sempre haveria aquela
sombra toldando os seus espíritos! Quem seria a bela
desmemoriada de Caux?
Por que teria ido parar na Suíça? Ela falava várias
línguas, mas isso ainda tornava o mistério maior. Qual
seria a sua nacionalidade? Tanto podia ser francesa como
inglesa! Ou, talvez, americana, pois o seu sotaque era
yankee. Mas também podia ser alemã, pois falava o
idioma germânico com uma segurança absoluta.
— Meu Deus! — gemeu ela, quando regressavam ao
hotel da Rue de La Fontaine. — O médico não quis dizer a
verdade, Lucien! Eu estou condenada a nunca mais
recuperar a memória! Nunca mais saberei quem sou, de
onde vim, como me chamo!
— Você se chama Happy — tranquilizou-a o rapaz. —
Não se preocupe. Você nasceu outra vez, querida. E, às
vezes, talvez seja melhor não conhecer o seu passado.
Sua vida pode ser feia, má, desagradável... e, ao
regressar a ela, você voltará para os problemas
angustiantes de que se livrou! Talvez seja melhor que
você continue a ser a Happy de Lucien...
Ela o beijou desesperadamente, com lágrimas nos
olhos.
— Aliás — continuou ele, retribuindo o beijo, com o
mesmo ardor — estou pensando numa coisa... Mais
tarde, talvez você possa me ajudar, em meu trabalho de
agente bancário... Tanto quanto de uma esposa fiel,
também preciso de uma secretária bonita... Mas isso fica
para depois.
Eles se acalmaram e resolveram seguir o conselho do
Prof. Saint-Autel: foram jantar numa boite elegante e
reservada da Rue Berton, no bairro de Passy, e dançaram
até à meia-noite. Daí, seguiram para outro night-club, e
outro, e outro. Mas à série de diversões em alta escala
acabava sempre num transe de dúvida c melancolia. A
moça queria sabei quem era.
Dois dias depois de sua chegada à Paris, Lucien
recebeu um telegrama urgente, no hotel. Era uma tarde
de terça-feira e eles tinham combinado passar o dia
visitando o bairro rico de Autell e, depois de
atravessarem a Ponte Mirabeau, passear pelas ruas
pobres de Grenette. Ainda não tinham ido para aqueles
lados e Lucien esperava que algum detalhe, na
topografia daqueles bairros díspares, fizesse voltar a
memória à sua bela companheira. Contudo, a chegada
do telegrama fez gorar os seus projetos.
— Happy? — disse ele, entrando no quarto, onde a
moça se vestia. — Perdoe-me, querida, mas não posso
levá-la a Autell! Tenho que embarcar urgentemente para
Zurique!
Ela arregalou os grandes olhos azuis.
— Para Zurique? Por quê?
— Minha mulher pediu o divórcio — respondeu ele,
com voz grave. — Não sei como, soube das nossas
relações e... É muito desagradável! Agora, a justiça me
chama a Zurique! Tenho que estar lá amanhã de manhã,
sem falta!
— Quando é que você vai?
— Agora mesmo, lá consegui uma passagem no voo
723 da Swissair. O jato Caravelle sai de Orly às cinco
horas. Você quer ir comigo ao aeroporto?
— Claro que sim, querido! Mas... como é que eu
fico? Gostaria de acompanhá-lo à Suíça, mas...
— Não. Nada disso. Você não pode aparecer em
Zurique! Fique com o meu carro e divirta-se. Conforme
for, sexta ou sábado estarei de volta. Espero que a
Justiça não me aborreça muito. Agora, tenho que tomar
um banho.
Enquanto ele esteve no banheiro, ela escolheu
cuidadosamente um novo terno, entre aqueles que
estavam na mala, e transferiu para os seus bolsos os
objetos pessoais.
Entre os papéis estava o telegrama recém-chegado.
Quase sem refletir, ela desdobrou-o e leu: 

“Herr Goltz precisa de você com urgência ponto


perigo para organização comercial assinado Spinne”

A moça empalideceu. Lucien dissera que era


banqueiro e não comerciante! Além disso, o telegrama
não falava em divórcio, em nenhum problema familiar! E
a assinatura — Aranha — sugeria qualquer coisa
tenebrosa! Onde é que ela já ouvira falar em “Aranha”?
Não deu a entender nada. Meteu o telegrama no bolso
de um terno de Lucien e esperou que ele saísse do
banheiro. Às cinco horas, no Aeroporto de Orly, o jato da
Swissair carregou o playboy para Zurique. E a bela Happy
Weber ficou livre, em Paris...
Regressou ao hotel, dirigindo o Alfa pelo meio do
tráfego emaranhado, e foi jantar no hotel, em seu quarto.
Mas, de repente, lembrou-se de algo — algo de que
nunca deveria ter-se esquecido! Correu a abrir a sua
mala e retirou o velho costume bege sujo e amarrotado.
O envelope ainda estava dentro dele.
Sozinha no meio do quarto, ela desdobrou o papel
(que continha a mensagem assinada por Paul Provence)
e pôs-se a examiná-lo por todos os lados. Não havia
nenhuma escrita secreta. O mistério era aquele mesmo.
E sua solução talvez estivesse num hotel qualquer da
Rue des Beaux Arts, do outro lado do Sena... Agora, que
Lucien tinha partido, ela poderia ir a esse hotel e
descobrir, sozinha, o seu passado. O seu passado e,
talvez, a razão do atentado que sofrerá nos rochedos de
Naye. Por motivos óbvios, preferia fazer a descoberta
sem testemunhas.

L’Hôtel
Ciumadas
Happy conhece o famoso Simone des Boulevard
O marroquino do Café Dupont
Uma cilada no alto de Montmartre

Devia haver mais de um hotel na Rue des Beaux Arts.


Contudo, a nova Happy Weber releu a mensagem de
Paul Provence compreendeu por que ali não havia o
número da casa. Não era necessário, uma vez que a
palavra “Hotel” estava escrita com "H” maiúsculo. Só
havia um l'Hôtel, “tout-court”. Ficava no n° 13 da Rue
des Beaux Arts e era a mesma casa de hóspedes onde
morrera Oscar Wilde, em 1900. L’Hôtel mudara bastante,
nesses últimos anos, tomando-se um estabelecimento de
luxo, especializado em hospedar os mais refinados
homossexuais do mundo inteiro; era para ali que ia Amt
Von Krause, o herdeiro das indústrias petroquímicas
alemãs em suas estadas em Paris.
Happy escolheu um de seus vestidos mais ornados,
com decote em “U”, tomou o Alfa o partiu para a
margem esquerda do Sena. Eram seis horas da tarde
quando estacionou o carrinho num parque próximo da
Rue des Beaux Arts. Saltou, balançando uma bolsinha
dourada no pulso esquerdo, e caminhou pelo passeio,
sem dar atenção aos olhares cúpidos dos homens que
passavam. L’Hôtel era pequeno e luxuoso, mas alguns de
seus quartos (cujas janelas abertas deixavam ver o
interior) mantinham a sua tradição romântica do Século
XIX. Até o papel amarelo das paredes (de evidente mau
gosto) parecia o mesmo do tempo de Wilde. A garota
entrou no hall, rebolando os quadris generosos, e dirigiu-
se à portaria. Havia algumas figuras esquisitas, no living,
conversando com voz aflautada e fazendo gestos
comprometedores, mas nenhuma delas prestou atenção
à recém-chegada. Apenas um velhote risonho, simpático,
de vasta cabeleira branca e nariz de tomate, levantou-se
de uma chaise-long e também se aproximou do balcão.
Seus olhos aguados devoravam ardentemente o corpo
enxuto de Happy.
— Pardon — disse, dirigindo-se ao recepcionista. —
Procuro Monsieur Paul Provence. Ele está hospedado
aqui?
Houve um grande silêncio no living. Todos os olhares
convergiram para o balcão. O recepcionista era um rapaz
magro, de grandes olheiras, com tipo de efeminado.
— Quem? — perguntou ele, num sopro.
— Paul Provence. É meu freguês e ficou me devendo
uma noite de amor!
— Mademoiselle está enganada — retrucou o rapaz,
com voz de falsete. — Não temos nenhum hóspede com
esse nome! Monsieur Provence não mora aqui!
— E também não está? — insistiu a moça.
— Não, mademoiselle! Não conheço ninguém com
esse nome!
Ela olhou ao redor, impaciente, batendo com o
pezinho no tapete.
— Um tratante, então? Me enganou! E logo a mim!
Onde posso encontrá-lo?
O recepcionista encolheu os ombros. Nesse momento,
o velhote da cabeleira branca adiantou-se e interferiu,
sorrindo amavelmente: 
— Talvez eu lhe possa ser útil, mademoiselle. Conheço
todo mundo em Paris. E esse nome não me é estranho...
Se mademoiselle me desse alguns esclarecimentos...
Ela já percebera tudo: aquelas criaturas conheciam o
nome de Paul Provence, mas não queriam se ver
envolvidas no caso! Era misterioso. E prometia muito...
— Os únicos esclarecimentos que posso dar — volveu
ela, correspondendo ao sorriso gentil do velhote — dizem
respeito a minha pessoa e não a Monsieur
Provence. Chamo-me Happy Weber e sou de Zurique.
Meu marido me abandonou em Paris e tenho que me
virar para ganhar a vida. Sem dinheiro, não é fácil viver
nesta cidade, tão cheia de seduções. Conheci Monsieur
Provence na rua e aceitei seus galanteios. Malheur à moi!
Ele não me pagou o combinado! E, agora, como é que eu
fico? Estou “dura”, monsieur!
— C’est une tragedie — exalou o velhote. — Se quer a
minha opinião, madame, volte para a Suíça! Este não é
um bom lugar para uma moça tão bonita. Se me permite,
eu a ajudarei. Madame pode passar esta noite no Hotel,
às minhas expensas... sem nenhum compromisso, é
claro... e embarcar, amanhã, de volta para junto de sua
família. Uma bela mulher, em doze horas, arranjará
facilmente o dinheiro da passagem...
— Agradeço-lhe, monsieur. Não tenho onde dormir.
— Meu nome é Gillet — apresentou-se o velhote,
beijando-lhe a mão. — Gustave Gillet, vendedor
itinerante da Casa Stabile, de Nápoles. Fabricamos
material eletrônico. Serve-lhe o quarto número oito? Está
desocupado e fica justamente em frente ao meu... eu lhe
farei companhia, madame, e lhe direi onde encontrar
Monsieur Provence...
A moça concordou, encantada. Atendendo a um gesto
de Mr. Gillet, o recepcionista trouxe o livro de registros de
hóspedes. Um livro enorme, de capa vermelha. Não havia
nenhum Paul Provence na última página escrita. Happy
assinou o seu nome de guerra e deu, como procedência,
uma pensão barata do Quartier Latin não muito longe
dali. O recepcionista olhava para ela com cara feia.
— Seus documentos, por favor.
Mr. Gillet inclinou-se para frente, atento, e também
examinou a carteira de identidade que a moça exibiu.
Conferia perfeitamente com as suas declarações.
— Tem bagagem? — inquiriu o velhote, encarando-a,
com expressão amável. — Eu providenciarei para que
tragam as suas malas a l'Hôtel.
— Não — respondeu ela, baixando os olhos. — Meu
marido levou todas as minhas roupas para a Suíça! Ele é
muito ciumento. Estou sozinha, e quase nua, em Paris!
— É uma maneira de viver nesta cidade — sentenciou
Mr. Gillet, agarrando-a por um braço. — Venha, ma
chèrie. Eu a levarei aos seus aposentos. Ali ficaremos à
vontade, para falar de Monsieur Provence... Você é linda,
Happy!
Ela sentiu um estremecimento.
— Pardon! Monsieur não é um desses...?
O velhote lambeu os beiços.
— Não, ma petite. Minha cabeleira comprida engana
muito... Eu sou dos outros.
Não havia como escapar! Ela respirou fundo e seguiu-
o pelo corredor. Entraram no quarto número oito e Mr.
Gillet fechou a porta a chave. O aposento era dos
antigos; uma sala dividida em duas, living e alcova,
adornada com móveis de mogno do século passado;
tinha, até, um relógio dourado, estilo rococó, em cima da
lareira.
— Muito bem — disse Mr. Gillet, sentando-se na beira
da cama e deixando de sorrir. — Agora, vamos conhecer
toda a verdade. Quem é você?
A garota piscou os olhos azuis.
— Já lhe disse, monsieur. Sou Happy Weber e meu
marido...
— Mentira! — Os olhos aguados do velhote pareciam
verrumas. — Pode confiar em mim. Como conseguiu
esses documentos de identidade? E por que está à
procura de Paul Provence?
— Já lhe expliquei. Conheci Monsieur Provence na rua
e...
— Mentira! Tudo mentira! — O velhote estava se
tornando irritado e ameaçador. — Você veio sozinha da
Suíça? Ou tem amigos aí fora? Está se arriscando muito,
menina! O nome de Paul Provence não dá saúde a
ninguém!
— Quero apenas cobrar uma dívida — retruca, ela,
formalizada. — Por favor, monsieur, não me bata! Seja
carinhoso para mim! Eu preciso tanto de carinho! Perdi a
memória, sabe? E estou procurando o meu passado!
— Ah! — exalou o velhote, aliviado. — Isso é mais
verossímil. Compreendo. Você perdeu a memoria,
coitadinha! E seu marido a abandonou em Paris.
— É verdade, monsieur. Ele me trouxe da Suíça.
— Sim, talvez seja verdade. Pois teve sorte em me
encontrar aqui. Já ouvi falar em Paul Provence. Mas todos
nós, hóspedes de l'Hôtel, recebemos ordens para calar o
bico. Você não deve comentar isso com ninguém. Paul
Provence é um vendedor, como eu, e trabalha para um
laboratório de Genebra. Ele esteve hospedado aqui,
realmente, mas mudou-se. Ninguém conhece seu novo
endereço. mas é habitué do Café Dupont, na Butte
Montmartre. Quer um conselho, ma petite? Procure-o na
Place du Tertre, depois do cair da noite. Há algum
mistério com esse homem! Ninguém deve falar no seu
nome!
— Eu imaginava que houvesse um mistério —
confessou a moça. — Ele me pareceu muito esquivo. Mas
tem que me pagar o preço do prazer!
— Claro — disse Mr, Gillet, sorrindo, outra vez, com
expressão de alívio. — O preço do prazer... Tire a roupa,
ma chèrie. Quero ver se você é mesmo tão bonita de
corpo como parece... Aposto que você tem os seios
caídos.
Irritada, a garota desabotoou o vestido e exibiu os
seios duros e empinados. Nem sequer usava sutiã. Mr.
Gillet aproximou-se dela, trêmulo, os olhos vesgos. Mas
foram interrompidos por violentas pancadas na porta.
— Abra! — gritou uma voz esganiçada. — Abra
imediatamente, seu sem-vergonha.
— Parbleu! — rosnou o velhote. — É a minha Lili
d’Anvers! Péssimo momento para cenas de ciúmes!
Happy tornou a abotoar o vestido e correu para a
porta, abrindo-a. No corredor estava um homem magro,
cabeludo, com a cara rebocada de pó de arroz, vestido
com um trajo de soirée feminino.
— Que significa isso? — protestou a moça. — Quem é
você? Por que atrapalha o meu negócio?
O homem avançou para dentro do quarto, dizendo
palavrões. E enclavinhou as unhas, ameaçando arranhar
o rosto mimoso de sua concorrente. Mas o velhote
interferiu, aplicando uma violenta bofetada na cara do
agressor.
— Quieta, Lili! Sua idiota!
Sob o impacto do golpe, o outro cambaleou e foi cair
em cima de uma cadeira. Ai, continuou a esbravejar: —
Não admito! Com que direito vocês me passam para
trás? Eu lhe faço todas as vontades, Gustave! Você é um
velho sórdido, infiel! De onde desencavou esta mulher
horrível! Quero que vocês morram, seus...
O velhote, furioso, pulou em cima dele e continuou a
esbofeteá-lo. Tap-tap-tap. Mas o outro reagiu, mordendo-
o no queixo, e a agressão degenerou numa luta
selvagem. Os dois homens, engalfinhados, rolaram pelo
chão, trocando dentadas e joelhadas. A moça aproveitou
a ocasião para sair do quarto. Estava desorientada. E foi
cair nos braços de outro rapaz (vestido com uma roupa
masculina, muito justa nas nádegas) que a arrastou para
um quarto próximo. A porta se fechou sobre eles e o
rapaz deu-lhe duas voltas com a chave.
— Pardon — disse ele; fazendo um ademane gracioso.
— Simpatizei com você, queridinha. Por isso, resolvi
arrancá-la das garras de Lili e Monsieur Gillet. Você
provocou os ciúmes daquela “bicha”, dando atenções ao
velho. Eu assisti a tudo, queridinha. Monsieur Gillet,
realmente, dava-se com Paul Provence, pois eu os vi
juntos uma noite. O velho usa todas as armas.
A moça passou a mão pelos olhos. Seu salvador era
alto, musculoso, mas tinha cara de boneca. E usava uma
peruca de cabelos louros, cuidadosamente frisados.
— Estou tonta! — queixou-se Happy. — Nunca esperei
me meter numa aventura destas! Conheci Monsieur
Provence por acaso e...
— Eu sei. Uma singular coincidência. Você é nova em
Paris, não é? Vê-se logo. Quer ficar minha amiga?
Conheço alguns homens ricos que também gostam de
meninas com pouca prática. Sob minha orientação, você
pode chegar até aos Champs Elysées... e alugar um
apartamento discreto em Passy...
— Quem é você?
— Meu nome de família já está esquecido,
queridinha. Sou Simone des Boulevards, não lhe diz
nada?
— Nada.
O rapaz não se mostrou ofendido.
— Vê-se que você não conhece Paris, queridinha. Só o
Marechal De Gaulle tem mais fama do que eu. Gostei de
você, queridinha. Tenho olho clínico e sei quando uma
corista pode se transformar em vedeta... Você prefere os
ministros ou os novos ricos?
— Nem uma coisa nem outra, Simone. Não quero
continuar nesta vida! Quero encontrar Paul Provence,
cobrar o que ele me deve e voltar para a Suíça! Meu
verdadeiro nome não é Happy Weber... e tenho a
impressão de que sou uma moça de família!
— Você nasceu mesmo na Suíça? — perguntou ele,
desconfiado.
— Perdi a memória — esclareceu ela, encarando-o. —
Não sei quem sou.
— Ah! — fez ele, com expressão de simpatia.
— Monsieur Lucien Weber, um bonito rapaz de
Zurique, tomou-me sob sua proteção. Mas teve que
embarcar para a Suíça. Você conheceu Paul Provence?
Talvez ele seja a chave do enigma! Por intermédio de
Paul Provence talvez eu encontre o meu passado!
— Sim, talvez... Vou ajudá-la, queridinha. Em mim,
você pode confiar. Depois, se quiser, eu a apresentarei
aos meus amigos. Costumo cobrar apenas vinte por
cento de comissão.
A garota assentiu, preocupada, e voltou a falar no
misterioso Paul Provence. Tinha uma pista: o velho Gillet
lhe indicara um café da Place du Tertre, em Montmartre,
como ponto de referência para o encontro com Provence.
— Sim — disse Simone, pensativamente. — Pode ser
verdade. Ninguém viu direito esse indivíduo, quando ele
veio ao hotel. Mas o velho já o conhecia. É possível que
você encontre o homem nesse café. Eu a acompanharei,
para desfilar com você. Adoro exibicionismo! E, ao lado
de uma mulher tão bonita, certamente aumentarei a
minha roda de admiradores! Mas não é só por isso,
queridinha. Você corre perigo!
— Eu? Por quê? Só porque falei em Paul Provence?
— Sim. Como lhe disse, esse nome é veneno! Ainda
não descobri o mistério, mas tenho as minhas
desconfianças.
— Drogas!
— Drogas?
— Sim. Fale baixo. Detesto paraísos artificiais,
entende? E odeio os traficantes de heroína e LSD! Meus
prazeres são todos normais, de homem para homem!
Desconfio que esse Paul Provence está ligado a uma
quadrilha de contrabandistas de drogas! Você não me
parece viciada, queridinha. Logo, acredito na sua
história. Refiro-me à amnésia. Mas não acredito no resto.
Você ainda não teve relações com Paul Provence. Nunca
o viu mais gordo! Certo?
— Certo — suspirou a moça. — Também simpatizei
com você, Simone. Vou confiar em você. Eu nunca vi Paul
Provence. Mas ele pode ser a chave do enigma.
E mostrou-lhe a mensagem encontrada no forro do
seu tailleur bege. O rapaz leu e soltou uma exclamação
de surpresa.
— Viu? Ele fala em Casa de Saúde e doenças mentais!
A maior parte dos viciados acaba no manicômio! Tudo se
ajusta, queridinha! O seu Paul Provence é um negociante
da loucura! Agora, prepare-se para escapar de Mr. Gillet!
Vamos fazer uma visita ao Café Dupont, no alto de
Montmartre!
Tiveram sorte. Simone trocou de roupa, envergando
um vestido feminino, e espiou o corredor. Estava deserto.
Saíram pelos fundos de l'Hôtel e deram volta ao
quarteirão, regressando à Rue des Beaux Arts.
— Vamos de táxi? — propôs Simone, endireitando os
folhos do vestido.
— Não. Tenho carro. Um Alfa branco, último tipo, que
você vai adorar. É um produto típico do exibicionismo
italiano.
— C’est mirabolant! Simone des Boulevards vai
esnobar!
Minutos depois, rodavam para a Butte Montmartre, no
18° arrondissement. A noite caía sobre Paris.
Atravessaram a Place Pigalle (que a moça achou
ridiculamente pequena e feia em relação à sua fama) e
subiram até a Place du Tertre.
Entre os cafés, com suas mesinhas na calçada, sob os
toldos coloridos, o Café Dupont quase passava
despercebido.
Happy deixou o Alfa num ângulo da praça e entrou no
bar, acompanhada por Simone, que se refrescava com
um leque.
Na rua desfilava uma multidão de gente estranha e
viam-se pintores, trabalhando à vista do público, criando
paisagens e retratos de fregueses ocasionais.
— Você chegou a ver Paul Provence — sussurrou
Happy ao ouvido de seu companheiro. — Eu nunca o vi.
Ou, pelo menos, não me lembro de tê-lo visto. Diga-me
se ele está aqui.
— Não — respondeu Simone, depois de encarar, um
por um, os fregueses do café. — Que homens feios, mon
Dieu! Ainda é cedo, queridinha. Vamos nos sentar e
comer alguma coisa, como duas moças bem
comportadas. Se você não tem dinheiro, alguém pagará.
Só espero que não seja aquele velho baboso, ali no
fundo...
— Seja mais discreto — admoestou a moça. — Eu
ainda tenho alguns francos, que meu marido me deixou.
— Discreto, não, queridinha. Aprenda a falar comigo.
Eu sou indiscreta!
Sentaram-se e pediram salada russa, com frios
sortidos e “croissants”. Simone escolheu um vinho
branco. A noite foi passando e não apareceu ninguém
com a cara de Paul Provence. Por volta das dez e meia,
Happy sentiu-se desanimada. Simone tinha afugentado
alguns homens mais impulsivos, que queriam pagar a
despesa das duas beldades — sujeitos macilentos que
demonstravam a maior grossura.
De repente, um homenzinho pequeno e esquivo,
escuro como um marroquino, aproximou-se da mesa e
inclinou-se para eles.
— Salut! Madame Weber?
Happy disse que sim. O sujeito falava em voz baixa e
abafada: — Sou Yussuf, de Marrakech. Monsieur Paul
Provence espera-a no Moulin de La Galette. À tout à
l’heure, madame!
A moça encarou-o e teve a impressão de que já vira o
seu focinho noutro lugar. Onde? Quando? Tudo eram
brumas, na sua memória! Logo depois de falar, o africano
desapareceu.
— Cuidado — alertou Simone, abrindo e fechando o
leque. — Mas não podemos deixar de subir. O Moulin de
La Galette já não é o que era; está em franca decadência
e abandono. Um bom lugar para um atentado contra
uma mulher que quer saber demais... Todo o cuidado é
pouco, queridinha!
Pagaram a despesa e puseram-se a caminho, a pé,
afastando-se dos locais mais concorridos. Para chegarem
ao Moulin, tinham que atravessar uma ruela escura e
lúgubre, calçada com grandes pedras irregulares.
— Deve ser aqui — sussurrou Simone, abanando-se
com o leque. — Preste atenção nos portais das casas.
Não há ninguém na calçada. Pode ser que o nosso Paul
Provence esteja no Moulin, mas também pode ser que
não esteja.
Mal acabara de falar e quatro sombras negras
saltaram dos portais das casas velhas, cercando-os
ameaçadoramente.
Dois árabes na frente e outros dois atrás, agachados
como panteras! E todos quatro brandiam punhais
cintilantes nas mãos escuras e nervosas.
— Mon Dieu! — exclamou Happy, parando no meio da
calçada deserta. — Eles querem nos matar!
— Não há a menor dúvida — admitiu Simone,
arregaçando as mangas do vestido. — Mr. Gillet deu-lhe
uma pista falsa, atraindo-a a uma cilada! Mas eu sou
bailarina e faixa preta de judô! Ajude-me, queridinha!
Você pode usar as unhas e os dentes!
E começou o rififi.

Vitória do sexo frágil


Monsieur Gillet desaparece
Nada em Saint-Germain
Jantar no Maxim’s
Uma porta que se abre na escuridão

O primeiro a atacar foi o marroquino mais baixo, o


mesmo que se apresentara como Yussuf, de Marrakech.
Ele estava na frente de Happy e avançou, o punhal
erguido, pronto para desferir um golpe. Subitamente, a
moça teve consciência de que também conhecia judô,
ou, ainda melhor, karatê. Furtou o corpo ao assalto e,
quando a mão armada do agressor passou rente de seu
peito, empolgou-a pelo pulso.
Ao mesmo tempo, deixava-se cair, de costas, com um
joelho dobrado e o pé sobre o estômago do árabe, e
aplicava-lhe um “balão”. O sujeito voou e foi cair de
cabeça no meio da rua, perdendo os sentidos. E outro
marroquino, atrás de Happy, avançou correndo, para
apunhalá-la pelas costas.
Simone também estava em dificuldades. O segundo
assaltante da frente acabara de pular em cima dele,
brandindo o punhal. O rapaz encolheu a barriga, para
não ser atingido, e a lâmina apenas lhe cortou metade
das saias.
Simultaneamente, ele desviou a mão do homem, com
um cotovelo, e agarrou-o pelas abas do casaco, dando-
lhe uma rasteira. Quando o sujeito caiu, Simone soltou
um grito em japonês e subiu em cima de seu peito, lhe
imprensando o braço armado com o joelho.
— Atenção para as costas! — gritou Happy, enquanto
gritava na calçada, para escapar à punhalada de seu
segundo agressor.
Simone virou-se, como um felino, a tempo de
bloquear um golpe de punhal desferido pelo quarto
árabe. Bateu no pulso do inimigo, desviando a lâmina, e
puxou-o pelos cabelos crespos. O marroquino despencou,
de bruços, por cima de seu ombro, e foi estatelar-se na
calçada, ao lado do cúmplice imobilizado. O punhal
tilintou nas pedras da rua, aos pés de Simone;
rapidamente, o rapaz apanhou-o e encostou a ponta à
garganta do adversário, que jazia debaixo dele. Sentindo
a picada, o árabe abriu a mão e deixou cair o outro
punhal. Entretanto, Happy rolava pela sarjeta e punha-se
de pé, para enfrentar o seu segundo assaltante, que
procurava espetar-lhe a lâmina afiada. O homem
avançou e deu um golpe. Ela recuou e respondeu com
um pontapé. Ele avançou de novo e repetiu o bote; ela
repetiu o pontapé.
Pareciam dançar um ballet, um “pas-de-deux”. O
árabe insistiu, com outro golpe; a garota furtou o corpo e
agarrou-o pelo pulso, com a mão esquerda, torcendo-o.
Mas a arma não caiu. Então, ela uniu os dedos da mão
direita e aplicou uma cutilada demolidora no pescoço do
marroquino. Ele fez “Omph” e dobrou os joelhos,
estonteado. Outra cutilada de karatê na nuca acabou de
aniquilá-lo, derrubando-o como uma árvore ferida por um
raio.
— Só restam os seus dois — disse Happy, correndo a
ajudar Simone. — Vamos acabar com eles, filhinha!
Mas Yussuf tinha-se recuperado da queda e voltava ao
ataque. Brandindo o punhal contra as costas de Simone,
ele soltou um grito de triunfo, Happy interceptou-o, no
meio do caminho; seu corpo flexível voou e foi explodir,
de pés juntos, sobre o estômago do marroquino. Um
perfeito yoko-geri. Yussuf recuou, aos tropeções, e caiu
sentado na beira da calçada.
— Arrebente a cara dele — pediu Simone, por cima do
ombro, mantendo os outros dois árabes sob a ameaça do
punhal. — Amasse-lhe as ventas, queridinha!
Obediente, Happy aplicou um tremendo coice no nariz
de Yussuf, estourando-lhe as cartilagens. O sangue
espirrou. Os olhos negros do africano vidraram e ele
tombou de costas, gemendo, sem forças para reagir.
Súbito, o marroquino que atacara Simone pelas costas
(e que parecia ter desmaiado com a queda) deu um pulo
e fugiu, numa disparada, pela ruazinha estreita,
desaparecendo nas sombras. Simone saiu de cima do
outro árabe, mantendo-o sob a ponta do punhal. Happy
ajudou-o a pôr o homem de pé. Era o único que estava
em condições de falar.
— Très bien — disse a garota, agarrando o prisioneiro
por um braço. — Quem mandou vocês nos atacarem?
Comece a vomitar a história toda!
Ela própria se admirava de sua atitude decidida; agia
como se já estivesse habituada àquele tipo de rififi. Mas
o árabe permaneceu mudo.
— Enfie-lhe o punhal na garganta — ordenou Happy a
Simone, piscando-lhe um olho. — Ele falará pelo buraco
da laringe.
O rapaz colaborou na farsa, espetando, de leve, o
pescoço do homem. Este recuou, apavorado, mas Happy
torceu-lhe um braço, obrigando-o a ficar de joelhos.
— Não vai falar? — rugiu a moça, fingindo-se furiosa.
— Então, eu mesma lhe cortarei a garganta, de lado a
lado! Sou boa cozinheira e sei matar galinhas!
Desesperado, o árabe pôs-se a chorar. As lágrimas
escorreram, pateticamente, pelo seu rosto encardido.
— Yussuf nos contratou — gemeu ele. — Não temos
nada contra vocês! Por favor, não me maltratem! Nunca
esperei que duas mulheres fizessem um estrago destes!
— Vocês queriam nos matar — acusou Simone. —
Homens violentos, tarados!
— Só tínhamos ordens para matar mademoiselle.
— Você quer dizer madame!
— Quero dizer mademoiselle, como disse Yussuf. O
Prof. Clochet pagou a Yussuf e ele ia pagar a nós. A
ordem era matar mademoiselle, fingindo um assalto.
Tudo o que roubássemos seria nosso, mas mademoiselle
não devia escapar. Nunca esperei que duas mulheres nos
dessem tanto trabalho!
— Quem é o Prof. Clochet? — quis saber Happy.
— Ignoro. Só o conheço de nome. Ele pagou a Yussuf,
na Rue Damrémont. Nós trabalhamos para Yussuf, na
favela de Montmartre. Só Yussuf sabe quem é o Prof.
Clochet.
Happy foi se ajoelhar ao lado de Yussuf e deu-lhe
algumas bofetadas, para que ele recuperasse a
consciência. O pequeno marroquino não era difícil de
manobrar. Quando sentiu um punhal lhe rasgar o peito,
pôs-se a falar pelos cotovelos: — Mais oui, mais oui!
Monsieur le professeur me contratou, pagando-me com
uma boa partida de heroína, que pode render até mil
francos! Não sei quem é ele, nem onde mora. Juro que
não sei! Ele sempre aparece do outro lado da cidade, em
Montparnasse, fiscalizando a venda das drogas. Queria
que eu e meus amigos neutralizássemos mademoiselle.
— Madame — emendou Simone, irritado. —
Mademoiselle, foi o que disse le professeur. Ele planejou
tudo. Eu devia atrair mademoiselle ao Moulin de La
Galette e enfiar-lhe a faca. Mas...
— Mas venceu o sexo fraco — disse Happy, sorrindo.
— Então, esse Prof. Clochet aparece em Montparnasse,
hem? Em que lugar, exatamente?
— Por ali. No Faubourg Saint-Germain, aqui e ali. Não
tem um pouso certo, compreendem? Ele não é vendedor,
é fiscal. Os vendedores são outros. Não sei de mais nada,
mademoiselle. Sou muito ignorante.
Nisso, os outros dois árabes voltaram a si e também
saíram disparados, pela viela, desaparecendo. Happy
ainda deu um peteleco no nariz ensanguentado de Yussuf
e mandou-o embora.
— Não queremos complicações com a polícia. Dê o
fora, Yussuf! E diga ao Prof. Clochet que eu ainda o
encontrarei! Como é o tipo dele?
— Um velhote risonho, de grande cabeleira
branca. Merci, madame. De qualquer maneira, recebi o
pagamento adiantado...
E, antes que mudassem de opinião, desvencilhou-se e
fugiu correndo. Simone recolheu os quatro punhais e
meteu-os no decote e nas ligas, sorrindo para Happy.
— Sempre podem render alguns francos no “Mercado
das Pulgas”...
A moça estava séria e preocupada.
— Vamos embora, Simone! Já é quase meia-noite e
estou cansada da briga! Vamos voltar a l'Hôtel! Monsieur
Gillet também precisa falar!
Não havia a menor dúvida de que era ele o Prof.
Clochet.

Mas, quando chegaram ao hotel, não encontraram Mr.


Gillet, nem Lili d’Anvers; o casal tinha saído e ainda não
regressara. Happy e Simone foram para o quarto do
segundo, onde se sentiam em mais segurança.

— Você dormirá comigo — decidiu o rapaz, despindo o


vestido rasgado. — Sabe que não precisa ter medo, pois
não a molestarei. Vocês, mulheres, não são o meu tipo.
A garota sorriu e deu-lhe um beijo. Ele retirou os
lábios, cheio de nojo, evitando um contato direto.
— Não faça assim, queridinha! Não quero confianças
comigo! Você é tão bonita que tenho medo de me
regenerar! E isso seria horrível, para o amor-próprio de
Simone des Boulevards! Deite-se na cama; eu vou dormir
no sofá.
Passaram uma noite tranquila, sem contratempos.
Ninguém tentou entrar no quarto. Pela manhã, quando
acordou, Happy deu por falta do companheiro. Mas o
rapaz apareceu logo depois, sobraçando um imenso livro
de capa vermelha. Entrou e fechou cautelosamente a
porta.
— Bonjour, queridinha. Aqui está o registro dos
hóspedes. Veja na página anterior à última com
anotações.
Há uma rasura.
Happy abriu o livro e constatou o fato. Olhando a
página contra a luz. O nome de Paul Provence ali estava,
riscado várias vezes. O local de procedência do hóspede
era uma casa de cômodos de Montparnasse.
— Ele esteve aqui dois dias apenas — informou
Simone.
— E desapareceu misteriosamente! Desconfio que só
veio a l'Hôtel com o propósito de se encontrar com você.
Mas deu azar. Não sabia que Mr. Gillet... aliás, Prof.
Clochet... já aqui estava hospedado. Seu sumiço pode ser
atribuído ao velho amigo de Lili.
Happy acenou, mordendo o lábio.
— E onde estará, agora, Monsieur Gillet-Clochet?
Simone suspirou.
— Só Deus sabe! Estive no quarto deles. Lili d’Anvers,
a grande sem-vergonha, está sozinha, desfeita em
prantos. Seu amiguinho mudou-se, ontem à noite, e não
deixou o novo endereço. Por outras palavras: Mr. Gillet
também desapareceu, tal como Paul Provence! Todo
mundo desaparece, quando você chega!
A moça anuiu, desgostosa. Depois: — Lili não sabe de
nada?
— De nada. É uma idiota, essa Lili! Nunca vi uma
“bicha” tão estúpida! E dizer-se que era um ótimo
estudante, na Bélgica! Apaixonou-se pelo velho porque
ele lhe fornecia drogas. Quando não toma uma “prise",
Lili fica possessa.
Agora mesmo, está gritando e oferecendo cem
francos por uma picada de morfina. Tenho nojo desses
viciados, eles desmoralizam o nosso modo de vida!
— Já que perdemos a pista de Mr. Gillet — refletiu
Happy — temos que tentar o Prof. Clochet! Paul Provence
também dá, como sua procedência, o bairro de
Montparnasse. Você quer almoçar comigo no Faubourg
Saint-Germain?
— Com o maior prazer — sorriu Simone. — Lá, entre
os “pops”, encontrarei muitos colegas em atividade.
Adoro roubar os namorados dessas “bichas”!
Às onze e meia daquela manhã, eles já estavam
entrando num dos restaurantes mais conhecidos e
honestos do bairro boêmio: “La Coupole”, no próprio
Faubourg. Almoçaram as especialidades da casa e, duas
horas depois, saíram para um passeio pela avenida. Não
havia sinais do velhote da cabeleira branca. Nem de Paul
Provence, que Simone afirmava ser um sujeito magro,
nervoso e “olhudo”. Todos os beatnicks que lhes queriam
vender objetos de arte (ou cápsulas de narcóticos)
tinham os olhos pequenos. Happy olhava para todos os
lados, tentando reconhecer alguma casa, alguma rua.
Nada! Era como se andasse por ali pela primeira vez!
Simone manteve contato com alguns artistas
excêntricos e cabeludos, seus amigos íntimos, mas
nenhum deles conhecia Paul Provence, nem lhes deu
notícias do Prof. Clochet. Uma garota hippie, de cabelos
soltos com foulards amarrados na testa em linha reta,
informou-os de que o velhote risonho não era visto no
bairro havia uma semana.
Happy e Simone fizeram várias investigações, nas
casas de cômodos, nas lojas e nos hotéis, mas não foram
mais felizes.
Só um sujeitinho trêmulo, com cara de morfinômano,
lhes deu uma pista: — À noite, no Rêve d’Or, costuma
haver transação de haxixe. O Prof. Clochet, às vezes,
aparece por lá, embora o haxixe tenha baixa cotação. O
velhote tem andado sumido.
Sua especialidade é a heroína e o ácido lisérgico.
Quanto a esse Paul Provence, é a primeira vez que ouço
falar nele. Eu comprava a mercadoria das mãos de Julien
Salout que agora está nas grades. Vocês têm heroína?
— Nós somos duas heroínas — replicou Simone,
fazendo uma careta. — Mas não comerciamos com
porcarias! Suma-se daqui, seu nojento! Tomara que você
vá acabar no hospício, com os seus vícios extravagantes!
Por que não toma juízo e não leva uma vida normal,
familiar, ao lado de um atleta que o faça feliz?
O homenzinho soltou um queixume e foi-se embora,
cambaleando como um bêbado. Eram sete horas da noite
e a vida ainda não começara a esquentar, em
Montparnasse.
Happy sugeriu a Simone irem jantar no Rêve d‘Or;
podia ser que desencavassem Paul Provence, vendendo
cocaína num dos mictórios...
— Nada disso — retrucou Simone, compondo a peruca
morena que adotara para a aventura. — Hoje, sinto-me
uma duquesa... e você tem um carro esporte branquinho
que faz gosto! Vamos esnobar no centro! Sugiro um belo
jantar, regado a champanhe, o Maxim's! Que tal?
Happy disse que não conhecia o famoso restaurante
da Rue Royale e adoraria jantar lá; depois, então,
regressariam a Montparnasse. Mas tinha uma dúvida: o
máitre do Maxim's permitiria a entrada de um travesti?
Simone deu uma risada e respondeu que, de passagem,
iriam até l'Hôtel, onde ele mudaria de roupa.
— Vou esnobar como um duque, queridinha! E a
duquesa será você! Já reparou como nós dois podemos
formar um casal encantador?
— Pardon — alarmou-se Happy. — Você também
gosta...?
— Não. Pode ficar tranquila. Eu não sou Monsieur
Gillet.
Só serei um gentleman na aparência; no fundo,
continuarei a ser uma louca demoiselle...
Passaram pelo hotel da Rue des Beaux Arts e
encontraram Lili d’Anvers no living, fazendo um
escândalo. O homem estava descabelado, com o vestido
rasgado, implorando para que lhe dessem uma ampola
de morfina. Mr. Gillet não aparecera. O recepcionista já
tinha telefonado para a polícia, pedindo que viessem
buscar o viciado. Eram horríveis, os sofrimentos
causados pelo “estado de carência”! Happy, penalizada,
seguiu Simone até o quarto.
— Lili vai ficar de molho mais alguns meses — disse o
rapaz, enquanto trocava de roupa. — Mr. Gillet é um
criminoso! Ele só obtém a submissão desses infelizes
oferecendo-lhes drogas! Vicia-os e, depois, faz deles o
que quer! Mas não há provas de suas atividades. Nós
duas havemos de metê-lo na cadeia, queridinha!
Saíram (Simone elegantemente trajado de homem) e
tomaram o Alfa. Happy olhou para o seu relógio de pulso,
comprado por Lucien em Lausanne: oito horas. Ainda era
cedo.
— Vamos até a Rue de La Fontaine — resolveu ela,
engrenando o carro. — Também quero esnobar, num belo
vestido de soirée. Foi o único que comprei na Suíça.
Perderam mais uma hora e meia, na ida para o
décimo sexto arrondissement, e já eram dez e meia
quando chegaram à Rue Royale. Os salões do Maxim's
regurgitavam de comensais. Simone portava-se como um
perfeito cavalheiro, gozando também o sucesso causado
pela figurinha graciosa de sua companheira. Happy
estava encantadora, num vestido de seda branca, que
parecia feito sob medida. Quando eles entraram, todo o
salão emudeceu — e, depois que se sentaram,
recomeçaram as conversas.
Mas todos os olhares se voltavam, insistentemente,
para a bela Sra. Happy Weber. O maître, que tinha ido
recebê-los à porta, desmanchava-se em salamaleques,
sorrindo de maneira pouco convencional. A moça
escolheu o jantar — “fillets de sole Albert” e “noisette
d’agueau Edouard VII” — e confabulou com Simone a
respeito dos vinhos; queria alguma coisa leve e fresca.
— Creio que champanhe ficaria bem — disse o rapaz.
— Você prefere Cristal ou Don Perignon? Há caviar nos
“hors-d’ouvre”. Também pedi cerejas frescas.
— Prefiro Perignon 55 — respondeu a moça, sem
refletir.
Pouco depois, um garçom trouxe a bebida, num balde
de prata cheio de cubos de gelo. Enquanto ele girava a
garrafa, Happy pôs-se a pensar, procurando descobrir o
motivo por que escolhera, impulsivamente, aquela marca
de champanhe, da safra daquele ano. Era a melhor safra,
realmente, mas como é que ela sabia?
— Engraçado — murmurou, os olhos pousados na
garrafa que o garçom agitava levemente. — Onde foi que
eu já bebi Perignon 55? Tenho a impressão de que isso
faz parte do meu passado!
Simone olhou para ela, perplexo, batendo as pestanas
postiças. Mas, nesse momento, o garçom abriu a garrafa
e encheu as duas taças. Simone escolheu duas cerejas
maduras e deixou-as cair nas taças cheias do líquido
dourado e espumejante. Simultaneamente, o maître se
aproximou, a espinha dobrada como um caracol.
— Santé! — disse ele, a meia voz, sorrindo com ar
cúmplice. — É um prazer recebê-la outra vez,
Mademoiselle Montfort!
Foi como se alguma coisa estalasse no cérebro da
garota, como se uma porta se abrisse na escuridão de
sua memória, deixando entrar o som e a claridade. O
Prof. Saint-Autel tinha razão: sua memória poderia voltar,
de repente, por uma associação de ideias ou pela
contemplação de um objeto familiar. A prova disso é que
acabara de voltar! No mesmo momento em que viu a
taça de champanhe com a cereja no fundo, ela se
recordou de todo o passado, inclusive do motivo por que
sofrera aquela agressão nos bosques de Caux. Ela não
era Happy Weber; sabia que não era, mas desconhecia
seu verdadeiro nome. Agora, sabia! Ela era Brigitte
Montfort, repórter do “Morning News” de Nova Iorque e
agente secreto da CIA! 
E o maître do Maxim’s sabia disso!

Retrospecto
Uma pista em Genebra
A clínica Mon Repos
Paul Provence
Um depósito à beira do rio
O ataque

Ao notar a expressão de sua companheira, Simone


perguntou a meia voz: — Lembrou-se de alguma coisa
importante?
— Sim — respondeu ela. — Eu sou Brigitte Montfort!
O gordo maître do Maxim’s assentiu, sorrindo.
— Certamente, mademoiselle. Ainda na segunda-feira
passada tive a honra de servi-la, ao almoço.
Mademoiselle nos disse até que chegara a Paris no
sábado, para fazer outra de suas extraordinárias
reportagens. Espero que o filé de linguado esteja ao
gosto de seu exigente paladar.
Brigitte dispensou-o e ficou a sós com Simone. O
rapaz parecia aturdido. Também ele conhecia Brigitte
Montfort de nome.
— Mon Dieu, queridinha! O que você não dirá a nosso
respeito no seu jornal americano! Por favor, não diga que
todos os parisienses são iguais a mim!
A garota sorriu.
— Não direi, Simone, porque sei que não são. Minha
mãe era francesa. Você já ouviu falar de mim?
— Quem não ouviu? Você é famosa! Tão famosa como
sua mãe, Giselle, a espiã nua que abalou Paris! Agora,
mais do que nunca, eu me orgulho de ser sua amiga!
Recorda-se de toda a sua vida?
— De toda. Não há mais nenhum claro a preencher na
minha memória. É um verdadeiro milagre!
— E o que é que você está fazendo em Paris? Por que
foi atacada nos arredores de Lausanne?
— Estou aqui fazendo uma reportagem sobre drogas
para o “Morning News” de Nova Iorque. Meu chefe, Mike
Grogan, disse que a tiragem do jornal diminuiu desde
que eu me tomei muito local. Por isso me mandou vir a
Paris, que é um dos centros de distribuição de drogas no
Ocidente.
Era verdade, mas nem toda a verdade. Além de
trabalhar no “Morning News”, Brigitte tinha ido à Europa
com uma incumbência de seu chefe na CIA, o inspetor
Charles Pitzer.
Dessa vez, não se tratava de espionagem, mas de
tóxicos. A Interpol queria conhecer os chefes de uma
quadrilha de traficantes, ligados à Máfia, que colocavam
heroína nos Estados Unidos, via Paris. E a CIA
encarregara a sua agente especial, Brigitte Montfort, de
descobrir o nome do chefão.
Brigitte lembrava-se agora de tudo. A história
começara no sábado, 15 de julho, quando ela
desembarcara em Paris, chegada de Nova Iorque. Levava
no bolso uma carta do diretor do “Morning News”
apresentando-a ao seu correspondente na capital
francesa, Fédor Ralov, um russo branco que se dizia
sobrinho do Tzar. Fédor era um viciado em morfina e um
profundo conhecedor do assunto. Brigitte falara com ele,
no próprio sábado, num café da Rue Oswald, em Passy, e
ouvira de seus lábios esta explicação: 
— A droga chega a Paris pronta para o consumo e é
vendida pelos “irmãos” da Máfia. Entre eles, estão os
homens que você procura para a sua reportagem. A
ramificação da quadrilha que embarca a heroína para os
Estados Unidos é a mais escorregadia, pois trabalha sob
as ordens de um sujeito muito vivo, um médico de longos
cabelos brancos, cujo nome muda todas as semanas. As
vezes, ele é Monsieur Gillet, às vezes Prof. Clochet, e às
vezes, Dr. Sioux. A figura desse cidadão é mitológica. Ele
tanto pode aparecer em Montparnasse como em
Montmartre, ou no Bois de Boulogne. Escorregadio e
atento, prefere liquidar os seus cúmplices a entregá-los à
polícia. Mas o caso não é esse. O caso é que a droga sai
da Itália em bruto... papoulas, coca, fungo de centeio... e
chega à França transformada em morfina, heroína,
cocaína e ácido lisérgico. Agora eu lhe pergunto: onde se
dá o milagre de transformação? Não é na Itália, como
antigamente, porque as autoridades nunca mais o
permitiram.
— Então, é na própria França.
— Também não. Já não há ópio em lágrimas, na
França, há morfina pura. Suspeitamos que as drogas
entrem aqui através da Suíça.
— Ah!
— Só pode ser isso. A fronteira com a Suíça é a única
onde a polícia não pode ter >um controle efetivo. E um
agente da Interpol foi assassinado, há poucos meses, em
Besançon, que não fica muito longe da fronteira. Por isso,
desconfiamos da Suíça.
— Diga, Fédor, você tem algum suíço entre os seus
fornecedores? — quis saber Brigitte.
— Não conheço nenhum. Aliás, estou em tratamento,
para abandonar o vício. Mas o tal doutor fala
fluentemente o francês, o alemão, o italiano e o
romanche. É uma língua neolatina, usada na suíça. Além
disso, ele age como fiscal da quadrilha e viaja muito. Faz-
se passar por caixeiro de uma firma italiana. Será muito
difícil você ter uma entrevista com ele. Eu próprio não o
conheço.
— Que é que você me aconselha?
— Diz um provérbio japonês que, para se vencer um
general o melhor é derrubar o seu cavalo...
— Devo, então, começar pelos vendedores? Você acha
que a arraia-miúda me levará ao chefão?
— Claro. Você tem prática, Brigitte. Meta-se no bas-
fond parisiense e separe o joio do trigo... ou o esporão do
centeio. Dou uma sugestão: Montparnasse. Vende-se
muito LSD por ali. Também se vende algum no Quartier
Latin. Você sabe o que deve fazer. Mas tome cuidado!
Esses homens não são para brincadeiras! Até a própria
Máfia respeita o território deles!

Brigitte agradecera os conselhos de seu colega e


metera-se na aventura, armada apenas com a sua
câmara fotográfica.
Passara a noite de sábado (e todo o dia de domingo)
no Faubourg Saint-Germain, batendo chapas e
entrevistando hippies, mas não obtivera nenhuma outra
pista do misterioso médico cabeludo. Os vendedores da
quadrilha que ela encontrou trabalhavam apenas em
Paris e não conheciam os outros, que contrabandeavam
a droga para a América. Eram estes que a Interpol queria
apanhar.
Na segunda-feira pela manhã, Brigitte tinha sido
acordada por um telefonema anônimo, no seu hotel da
Rue de Ponthieu. Uma voz baixa e rouca aconselhara-a a
interromper a sua reportagem sobre as drogas e voltar
para o seu lar. Enquanto ouvia o seu interlocutor, a
garota identificou um ruído, em background: a voz
inconfundível de um mendigo que vendia pentes à porta
do Rêve d’Or, pequeno restaurante de Montparnasse.
Meia hora depois, ela estava entrando no
estabelecimento e ainda tinha tempo de encontrar um
grupo de três homens suspeitos, jogando cartas numa
das mesas do fundo. Brigitte levava óculos escuros e
marcara o rosto com maquilagem, imitando uma cicatriz.
Aproximou-se dos sujeitos e implorou uma picada.
Mostrou-lhes algumas notas de cem francos. Dois dos
contraventores fugiram correndo, mas o terceiro foi
apanhado na porta.
Brigitte aplicou-lhe uma “gravata” e levou-o para o
mictório do restaurante, onde deu início a uma violenta
aula de “lavagem cerebral”. O homem era duro, mas
acabou amolecendo e revelando o que sabia. Falou em
voz baixa e rouca: — Recebi ordens do professor para
assustar a jornalista americana. Ele não está em Paris,
mas foi avisado de sua entrevista com Fédor Ralov. Eu
são vendo a droga; sou estivador do cais do porto. Não
sei quem são os vendedores, em Paris, e muito menos os
chefes do bando. Mas sei que há um tal Paul Provence
metido no negócio. Paul vende uma parte da droga na
cidade e embarca o excedente para os Estados Unidos.
Pode-se dizer que ele é o lugar-tenente do professor.
— E quem é o professor?
— Não sei. Só o conhecem assim. Já lhe disse que eu
trabalho noutra zona! Recebo as mercadorias e mando
para bordo, nos fundos falsos dos caixotes de
champanhe. Dou-lhe um conselho, mademoiselle: ouça o
que eu lhe disse pelo telefone e dê o fora daqui!
Mademoiselle não está segura em Paris!
— De onde vem a droga?
— Não posso dizer.
Brigitte recomeçou a aula de persuasão, aplicando um
golpe de karatê na barriga do sujeito.
— A droga vem de Genebra — confessou o infeliz,
vomitando tudo o que tinha no estômago. — Genebra, na
Suíça. Entra pela fronteira despoliciada, em carros e
caminhões, e segue a rota de Dijon. Mas o laboratório,
onde eles refinam o ópio em lágrimas, deve ficar em
Genebra.
— Em que parte de Genebra? A cidade é muito
grande.
— Não sei. Procure o Dr. Lémont, na Clínica Mon
Repos. Um dos caixotes que eu recebi tinha o nome
dessa clínica. Eram ampolas de vitaminas, mas havia
alguns frascos de morfina.
Depois, antes que Brigitte o impedisse, o homem
escapara de suas mãos e correra para a rua. A repórter
foi atrás dele, mas chegou tarde. Um enorme caminhão
de transportes, que descia pela avenida, passou por cima
do desgraçado. Tudo não fora além de um acidente; ao
fugir, o sujeito não vira o caminhão na disparada. Mas
Brigitte tinha uma pista.
Então, ela telefonara para o escritório da CIA, no
Boulevard Diderot, e relatara tudo, comunicando que
seguia para Genebra. Em resposta, o agente residencial,
Pierre Charbreuse, desejou-lhe boa viagem. Essa tinha
sido a última vez em que a CIA tivera contato com a sua
agente secreta; depois desse dia, Brigitte Montfort
desaparecera da face da Terra.
Na verdade, ela chegara bem a Genebra, viajando
num Caravelle da Air France que aterrissou no aeroporto
de Cointrin (setor suíço) às duas horas da tarde, Antes de
procurar a Clínica Mon Repos, fora almoçar num
restaurante pitoresco, num bourg, próximo da cidade
(“L’Olivier de Provence) onde apreciara uma excelente
“fondue à Ia bourguignone”. Por volta quatro e meia,
regressara ao centro de Genebra, numa inspeção
turística. Um táxi levou-a, pelas belas avenidas, ao longo
da orla do lago Léman, de volta à Gare de Cornavin. Daí,
seguiu pela Rue de Lausanne, que costeava o bairro de
Paquis, e desembocava diante do Parque Mon Repos,
debruçado sobre o lago. Ali ficava a Clinica, no meio de
um quintal bonito e sonolento. O Dr. François Lémont era
o diretor do pequeno sanatório. Um suíço alto o forte, de
rosto corado e voz de trovão. Brigitte apresentou-se
como correspondente do “Morning News” e ele ficou
encantado ao saber que sua fotografia sairia na primeira
página do famoso matutino. Sua entrevista foi
completamente inócua, até quo a entrevistadora aludiu
ao tráfico das drogas. Aí o Dr, Lémont tornou-se
reticente, Mas a repórter insistiu e ele resolveu ser
franco, Tinha um peso na consciência.
— Bem, mademoiselle... Nós, da direção
administrativa do hospital, não podemos controlar
detalhadamente a entrada o saída de drogas, pois
trabalhamos com elas. Umas são inofensivas, outras não.
Usamos boas quantidades de morfina, é claro, mas
nunca houve nenhuma denúncia contra a minha clínica.
E um enfermeiro que tínhamos, e que utilizava
embalagens da casa para contrabandear heroína, foi
despedido no mês passado.
— Como era o nome dele?
— Paul Provence. Mas mademoiselle não o encontrará,
mais, na Suíça. Ele tinha família em Paris e é possível
que tenha voltado à sua terra. Só trabalhou na clínica
pelo espaço de um mês e meio. E foi posto na rua!
— Como é que ele contrabandeava a droga?
— Não sei. Só sei que demos por falta de algumas
caixas de medicamentos... vitaminas, para ser exato. Ele
as utilizava para acondicionar os frascos de morfina.
Logo que recebi a denúncia, tentei prendê-lo, mas ele
escapou.
— O senhor não tentou prendê-lo, doutor. Não
comunicou nada à Interpol.
— Sim, talvez eu não tenha agido certo, mas... O fato
é que pus o homem no olho da rua! Achei preferível
manter o caso em sigilo, para salvaguardar o bom nome
da clínica. Nossa missão é curar os viciados e um
escândalo desses... Enfim, acabou-se! Agora,
mademoiselle, não há mais contrabando de drogas por
aqui! Não passa um grama de heroína, pela enfermaria,
sem que eu tome conhecimento! Os estoques passaram
a ser controlados por mim mesmo e pelo velho professor.
— Velho professor? — perguntou Brigitte, sentindo um
baque no coração.
— Sim, mademoiselle. Meu mestre. Tem oitenta anos
e é preto como o carvão. O Prof. Gwanda Okapi nasceu
na Nigéria.

Ao sair da clínica, Brigitte voltara ao táxi, que


esperava por ela. Nisso, notou que estava sendo seguida.
Outro carro ia atrás dela, a uma distância constante.
Regressou ao centro de Genebra, passeou, pelo Chemin
de Florissant até o portão do Parque Alfred Bertrand
(onde também havia uma clínica psiquiátrica) e foi se
hospedar no Hotel d’Angleterre, em frente ao lago.
Esperava que acontecesse alguma coisa, nessa noite
cálida de verão, mas não aconteceu nada. Tomou alguns
drinks, no terraço do hotel, enquanto apreciava a
iluminação do “sei d’eau” no Lago Léman. Ninguém a
procurou. Talvez não tivesse sido seguida, afinal de
contas...
No dia seguinte, voltara a Paris, num jato Coronado de
Swissair. Precisava descobrir o tal Paul Provence, ex-
enfermeiro da Clínica Mon Repos! Esteve novamente em
Montparnasse, fazendo perguntas e tirando fotografias, e
acabou por encontrar uma velha Sra. Provence,
moradora num “cul-de-sac”, que confessou ser a mãe de
Paul. Seu filho lhe batia e era uma peste.
— Tomara que o prendam — disse a pobre viúva.
— Ele se meteu com gente muito ruim, que vende
drogas aos estudantes! Acho isso um pecado! Paul me
falou num tal Prof. Clochet, que deve ser o chefe da
quadrilha. Meu filho esteve em Genebra realmente,
trabalhando como enfermeiro... ele é enfermeiro
diplomado... mas cansou-se de ser honesto. Agora, não
sei onde está morando. Chegou de Genebra, pediu-me
algum dinheiro emprestado e sumiu. Já me deve meio
milhão de francos! E eu trabalho para viver!
Quando Brigitte ia saindo, apareceu à porta um
homem magro e nervoso, de olhos redondos como os de
uma coruja.
Tinha uma pistola na mão.
— Voilà, mademoiselle — disse ele, dando um
empurrão na velha Sra. Provence. — Sente-se, por favor.
Vamos conversar. Fui prevenido de que uma jornalista
americana andava atrás de mim... Quanto a você,
mamãe, arrume as suas coisas e dê o fora, para casa de
tio Pinot! Imediatamente! Não quero a senhora em Paris!
A viúva resmungara, mas desapareceu no interior da
casa. Então, Brigitte tinha lançado mão da verba de cem
mil francos, que a CIA pusera à sua disposição. Pelo que
ouvira, Paul Provence andava sempre precisando de
dinheiro...
— O caso é o seguinte, Paul — disse ela, fitando o
homem nos olhos. — A Interpol está muito Interessada
em apanhar um homem chamado Gillet, ou Clochet.
Apenas esse homem, entende? E a cabeça dele vale cem
mil francos novos! É uma transação que pode ser feita
entre nós, sem que ninguém saiba... Você já está meio
“queimado”, depois do incidente na Clínica Mon Repos, e
não irá muito longe, sem dinheiro. A qualquer momento
pode cair nas malhas da Interpol. Ofereço-lhe a
liberdade, em troca do paradeiro do velho da cabeleira
branca.
O contraventor ficou silencioso, um minuto, lambendo
os beiços. Depois: — Ele não está em Paris. E eu não sou
um traidor! Os traidores, na Máfia, têm os dias contados!
Prefiro me livrar de mademoiselle e...
Seu dedo estava pousado no gatilho da arma. Brigitte
atalhou, tão nervosa quanto ele: — De nada lhe servirá
matar-me, Paul. Pense bem. São cem mil francos, sem
impostos. E só nos interessa o Prof. Clochet. Você não
precisa dar uma resposta agora. Eu espero dois ou três
dias.
— Você não pode ficar viva — retorquiu o mafioso,
irresoluto. — Você esteve em Genebra, seguiu a minha
pista e...
— A Interpol já conhece as suas andanças, Paul. Se
você me matar, vai para a guilhotina! Não se complique
mais. Nós só queremos o chefão. Ele está na Suíça, não
é? Sabemos que a refinaria de drogas funciona em
Genebra.
O bandido empalideceu.
— Vocês não sabem de nada! Descobriram a minha
pista na clínica... e talvez no depósito, à beira do rio...
mas eu escapei! Ninguém vai me botar a mão!
— Claro que não, Paul. Você tem uma chance de
escapar. Entregue-nos o velho cabeludo. Se você
concordar com a proposta, pode recomeçar a vida.
noutro lugar, com cem mil francos no bolso. Vou lhe dar o
meu endereço.
E, sem prestar atenção à pistola que o outro lhe
apontava, tirou um cartão da bolsa e rabiscou o endereço
de seu hotel, na Rue de Ponthieu. Depois, voltou a sorrir
para o homem indeciso.
— São cem mil francos, Paul! Pense bem! Cem mil
francos, sem taxas!
Paul Provence não disse nada. Ela fechou a bolsinha e
foi saindo, encolhida, com medo de levar um tiro pelas
costas.
Mas não aconteceu nada. O contraventor ficou no
meio da sala, hirto como uma estátua. Chegando à rua
principal, Brigitte correu até o primeiro telefone público e
ligou para a sede da Interpol. Não acreditava muito na
possibilidade do mafioso trair os seus irmãos... E só
lançara mão da verba de cem mil francos para salvar a
vida.
Meia hora depois, dois carros cheios de gendarmes
cercaram o “cul-de-sac" de Montparnasse. Mas a casa
estava vazia. Nem Paul Provence, nem sua velha mãe! E
Brigitte não tinha mais nenhuma pista dos dois. O tio
Pinot podia morar até na Espanha.

O dia seguinte se passou, sem notícias do traficante.


Brigitte teve a impressão de que ele não se
comunicaria com ela. Raramente um mafioso, por mais
fraco que seja, rompe o seu juramento para com a
“omertà”. Restava-lhe outra pista: um depósito de
mercadorias, em Genebra, à beira de um rio... Que rio?
Só podia ser o Ródano, a oeste de Genebra! Ela achou
que valia a pena voltar à cidade suíça e dar uma espiada
em todos os armazéns, desde o lago Léman até à
fronteira da França. Era uma tarefa penosa, mas talvez a
levasse até o laboratório clandestino da quadrilha.
Na manhã de quarta-feira, foi ao aeroporto de Orly, a
fim de viajar para Genebra. Seu avião acabara de abrir a
porta quando um garoto apareceu, correndo, e lhe
entregou um envelope em branco. Ela subiu a bordo,
com o papel, na mão, e só o abriu depois da decolagem.
Era uma mensagem de Paul Provence, dizendo-se
disposto a lhe falar sobre uma Casa de Saúde e doenças
mentais... Brigitte enfiou a carta no forro de seu tailleur
bege, comprado em Paris. Tinha que voltar o mais
depressa possível! Paul Provence ia falar!
Uma hora depois, já em Genebra alugou outro quarto,
no Hotel d’Angleterre. A paisagem era belíssima: de um
lado o lago Léman; do outro, as serras nevadas dos
Alpes. Almoçou e saiu para um giro, a pé, pela beira da
água. Seus passos a levaram até à extremidade ocidental
do lago. Passou pela Gare de Cornavin e tomou a Rue
Mont Blanc, até a ponte onde o lago se transformava no
Ródano e este fio retomava o seu curso normal, antes de
entrar na França. Seguiu pela esquerda, vagarosamente,
beirando o rio, até o Grande Cassino. Diante do cais,
viam-se duas barcas de rodas, usadas para passeios pelo
lago. E também se viam algumas barcaças de cargas,
desembarcando mercadorias vindas de Lausanne. Então,
ela teve uma intuição. Seu talento detetivesco, suas
extraordinária capacidade de raciocínio lógico, deu-lhe a
resposta da charada: A droga chegava a Genebra,
através do Lago Léman, e era armazenada em algum
daqueles depósitos! E, dali, seguia para a França! Ora, se
os tóxicos, já refinados, vinham pelo lago, só podiam
partir de Lausanne! O QG dos contrabandistas ficava em
Lausanne!
Nesse momento, sentiu que já não estava sozinha,
debruçada na amurada do cais. Dois homens tinham-se
aproximado sorrateiramente, um de cada lado, e sorriam
para ela. Pareciam muito amistosos.
— Mademoiselle Montfort, do “Morning News”? —
perguntou um deles.
Brigitte recuou, alarmada. Não havia mais ninguém
por ali E os dois homens — um, louro, alto e espadaúdo;
o outro, moreno, baixo e quadrado — observavam
fixamente as suas mãos.
— Sim. Que desejam?
O sujeito alto e louro falava em francês: — Venha
conosco, por obséquio. Mister Grogan quer falar com
mademoiselle. Ele também gosta de ser entrevistado...
Mister Grogan? Brigitte sentiu um arrepio na espinha.
O único Mr. Grogan que ela conhecia era Miky, o gordo
Miky, seu chefe no “Morning News”!
— Que Mr. Grogan é esse? — perguntou, num fio de
voz.
— Mademoiselle o conhecerá em seguida. Ele acaba
de chegar de Nova Iorque.
Havia um carro estacionado ali perto. Seguiram para
ele, lado a lado. Mas, de repente, Brigitte teve a
percepção da cilada. Esperou que o homem moreno se
adiantasse, para abrir a portinhola do carro, e meteu a
mão na bolsa, à procura da pistola. Mas não contava com
um terceiro personagem, que se aproximara
silenciosamente pelas suas costas. Era um velho risonho,
de vasta cabeleira branca.
Brigitte apenas o viu de relance. Na mesma hora,
sentiu uma tremenda dor na nuca e tudo ficou vermelho
diante de seus olhos. Ainda tentou reagir, empunhando a
pistola, mas os outros dois homens se voltaram para ela
e começaram a bater-lhe, impiedosamente, com dois
cassetetes. Sua arma caiu. E a bela agente da CIA
também não tardou a cair, sob a saraivada de golpes,
afundando na inconsciência. Quando voltou a si, estava
pendurada num pinheiro, nos bosques de Caux. E tinha
perdido a memória.
Mas, agora, lembrava-se de tudo! O QG dos
contrabandistas ficava em Lausanne!
— Brigitte? — disse Simone, inclinando-se para ela,
por cima da mesa. — Em que está pensando, queridinha?
Você se esqueceu do jantar...

Contato com a CIA


Lili d’Anvers colabora
A casa de campo de Enghien
Monsieur Santuzzi toma a sua dose de esquecimento

Depois do jantar, Brigitte lembrou-se da visita ao Reve


d’Or, onde talvez encontrassem o velho cabeludo. Foram
até Montparnasse e misturaram-se aos artistas e
boêmios, mas não viram sinais de nenhum traficante de
tóxicos. Debalde Simone interrogou os seus amigos
hippies; o Prof. Clochet não aparecia por ali desde a
semana anterior. E nenhum dos “avançados” conhecia
Paul Provence.
— Tenho uma ideia — disse Brigitte, quando
regressavam à Rue des Beaux Arts. — Ainda não
testamos os conhecimentos do recepcionista de l'Hôtel...
— Rafaela? — fez Simone, franzindo o nariz.
— É esse o nome dele?
— Agora é. Ele é Gèrard de dia e Rafaela depois das
dez da noite. Mas você não o encontrará na portaria a
esta hora. Rafaela costuma passar as noites fora,
caçando vagabundos nos cais do Sena. Temos que
esperar até amanhã de manhã. Ele dorme até ao meio-
dia.
Seguiram para l'Hôtel e, uma vez chegados, souberam
(pelo porteiro noturno) que Mr. Gillet mandara buscar a
sua mala e não aparecera mais. Quanto a Lili,
inconsolável, fora internada num sanatório do Estado, em
Saint-Denys.
— A mala do velho — informou Simone, depois de
trocar algumas palavras, em voz baixa, com o porteiro —
foi levada para o aeroporto de Orly. Não é preciso ser
muito perspicaz para se perceber que o seu destino é a
Suíça... Mas, que cidade da Suíça? Foi uma pena não
termos seguido essa mala!
Brigitte sorriu para o rapaz.
— Escute, Simone. Por que você está tão interessada
em encontrar o velho?
— Porque detesto viciados — retrucou ele, fechando a
cara. — E odeio vendedores de drogas! Você caiu do céu,
queridinha! Você vai me ajudar a meter o velho na
cadeia! Eu estava sozinha e não tinha coragem de lutar
contra a Máfia. Mas, agora, com você ao meu lado, estou
disposta a desafiar o próprio Satanás!
Brigitte sentiu ímpetos de lhe dar outro beijo, mas
resistiu ao impulso; não convinha pôr à prova os
sentimentos daquele rapaz bonito, alto e musculoso, que
ela ainda não conhecia muito bem...
Deitaram-se e dormiram em paz. A bela repórter
acordou primeiro, às nove horas da manhã, e contemplou
o seu companheiro de quarto, que ressonava no sofá.
Sem a peruca e os artifícios da maquilagem, Simone des
Boulevards não era tão bela como antes; tinha a pele
macilenta, cheia de sardas, e os olhos encovados pela
vida desregrada. Será que ele também não tomava
cocaína? Não. Não tinha as cartilagens do nariz
congestionadas, nem sinais de picadas no braço.
Brigitte vestiu-se, em silêncio, fez o desjejum no
refeitório e saiu. O Alfa estava num estacionamento
próximo. Antes de ir ao encontro do contato da CIA em
Paris, ela queria passar pelo pequeno hotel da Rue de
Ponthieu, onde se achava hospedada como Brigitte
Montfort e de onde desaparecera, nove dias antes. Foi
até lá e conversou com o recepcionista, que ficou muito
contente em vê-la.
— Mademoiselle nos deu muitas preocupações —
confessou ele. — Por duas vezes, esteve aqui um senhor
de meia-idade, muito nervoso, à sua procura. Ele não
quis deixar o nome; disse, apenas, que era um
amigo. Pensávamos que mademoiselle tivesse sido
engolida pela terra!
— Esse senhor de meia-idade — perguntou Brigitte —
tinha uma cabeleira branca e comprida?
— Não, mademoiselle. Era alto, magro, e tinha olhos
cinzentos e argutos. Exprimia-se em inglês. Eu diria que
ele veio dos Estados Unidos.
A moça sorriu encantada. Depois, correu a seu quarto
e mudou de roupa. Voltou ao Alfa e partiu para o
Boulevard Diderot. O escritório da CIA ficava num prédio
de quatro andares, próximo da Gare de Lyon; era a
sucursal de uma firma americana de aparelhos
eletrodomésticos. O gerente da casa, Pierre Charbreuse,
ficou tão encantado, ao rever a sua colega, que deixou
cair uma lâmpada que tinha na mão.
— Parbleu! Nós pensávamos que mademoiselle
tivesse virado fumaça! Chegou a propósito, sabe? Entre
para o meu gabinete e veja quem está lá dentro!
Ela já sabia (pela descrição do recepcionista do hotel
da Rue de Ponthieu) que o inspetor Pitzer tinha chegado
a Paris.
Ao vê-la, também ele arregalou os olhos. E levantou-
se rapidamente da secretária.
— Brigitte! Até que enfim! Eu já ia voltar para Nova
Iorque e dar baixa no seu nome, nos arquivos da
agência!
Que houve com você, Baby?
Abraçaram-se, emocionados. Em poucos minutos, ela
lhe revelou todas as suas aventuras, antes e depois de
ter perdido a memória. Pitzer meneava a cabeça,
fumando nervosamente um de seus cigarros Kent.
— Imagine! Estou em Paris desde sábado passado,
procurando por você! Pierre esperou dois dias, sem
notícias, e procurou-a no hotel. Nada! Então, ele me
telegrafou na quinta-feira, dia 20, comunicando o seu
sumiço da face da Terra. Embarquei para Paris no dia
seguinte e, desde então, tenho andado por todos os
lados, sem encontrar seu paradeiro! Estive em Genebra e
no Hotel d’Angleterre encontrei a sua valise. O porteiro
me disse que você estava desaparecida desde quarta-
feira retrasada, ou seja, dois dias depois de ter
telefonado para Pierre! Pensei que os mafiosos tivessem
conseguido neutralizá-la! E quase acertei! Você, então,
ainda não recebeu uma resposta desse Paul Provence?
— Não consegui encontrá-lo, tio Charlie! Mas sei que
ele ficou impressionado com a oferta dos cem mil
francos. Agora, estou pensando em algo melhor, e mais
econômico. Quero ter uma entrevista com Lili d’Anvers,
que está internada num sanatório do Estado, onde são
proibidas as visitas. Lili era a amiga de Mr. Gillet, que
também usa os nomes de Clochet e Grogan.
— Grogan? — fez Pitzer, piscando os olhos.
— Pois é — sorriu Brigitte. — O tal velhote da
cabeleira branca deve ser um “gozador”. Adotou o nome
do nosso bom Miky Grogan! Imagine se o gordo sabe
disso! Ia estourar de raiva!
Pitzer deu uma risada. Mas logo ficou sério.
— Essa Lili d’Anvers é alguma mariposa?
— Não. É um gafanhoto. Viciado em morfina. Foi
internado depois de uma crise de carência, complicada
com um abandono conjugal. Preciso falar com ele.
— Isso não será difícil de conseguir, através da
Interpol. Volte ao escritório dentro de duas ou três horas
e procure, com Pierre, a permissão para a visita ao
sanatório. E essa Simone des Boulevards? Você confia
nela?
Brigitte sorriu.
— Simone também é homem, tio Charlie. Sim, confio
nele. Simone já me ajudou muito. Até me salvou a vida,
no alto de Montmartre! Ele também está interessado em
desbaratar a quadrilha de vendedores de tóxicos. Simone
além da “delicadeza”, não tem vícios secretos. É de uma
pureza encantadora!
— Levantaremos a ficha dele — rosnou Pitzer. — Não
quero que você se arrisque outra vez! De agora em
diante, porei um dos meus homens no seu carro! Eles
podem tentar matá-la, outra vez. antes que você
encontre o chefão!
— Não, tio Charlie. Deixe-me agir sozinha, por favor!
Os seus guarda-costas são de confiança, mas andam
muito devagar. Eu preciso correr! Em vez de me dar
cobertura, faça-me outro favor. Confidencial.
Pitzer acendeu um novo cigarro na ponta do anterior.
— Vá dizendo, Baby.
— Quero saber quem é Lucien Weber.
— O seu salvador, nos bosques de Caux? O dono do
carrinho branco?
— Sim. Ele me disse que é um playboy. Quero saber
quem é, em Zurique. Se tem esposa e se é acionista do
Royal Bank mit Zurich, na Bahnhofstrasse. Seus dois
companheiros nas caçadas em Caux e no hotel em
Lausanne chamam-se Erwin Krause e Nills Burgs. Tome
nota. Também quero saber quais as ligações de Lucien
com um missivista, em Zurique, que se assina “Aranha”.
Pitzer empalideceu.
— Você está falando sério? A “Aranha” não existe
mais!
— Quero saber se não existe mesmo, ou se voltou a
existir na Suíça. Mas o senhor terá que me prometer uma
coisa: não tome nenhuma iniciativa sem me consultar!
Eu devo a vida a Lucien. Entende?
— Entendo — disse o homem da CIA, gravemente. —
A agência lhe dará um relatório confidencial, por
intermédio de Pierre. Você continua hospedada na Rua de
Ponthieu? Estive lá duas vezes, à sua procura.
— Sim, continuo no mesmo hotel. Posso receber a
resposta lá, ou no Chateau d’Ouchy, em Lausanne. Tenho
a impressão de que a chave do mistério está em
Lausanne.
Entretanto, ficarei em contato com este escritório. O
senhor pode voltar para Nova Iorque e dizer a Miky que
eu já estou bem.
Pitzer ainda estava à espera de alguma coisa. Então,
ela pôs-se nas pontas dos pés e beijou-o, rapidamente,
nos lábios. Depois, antes que ele a abraçasse, escapou
correndo.
Os dois tinham lágrimas nos olhos; mas eram lágrimas
de felicidade.

Simone pensava que sua amiguinha tivesse abandonado


l'Hôtel para sempre. Tudo se podia esperar dessas
jornalistas americanas... Mas, às onze horas da manhã,
Brigitte apareceu, de volta, convidando o rapaz para uma
nova missão.

— Vou entrevistar Lili d’Anvers, no sanatório. Quer ir


comigo?
— Com o maior prazer, queridinha! Desistiu de falar
com Rafaela? Ela está dormindo, com um marinheiro, nos
fundos do hotel.
— Tenho a impressão de que sua amiga Lili poderá
nos ser mais útil. Afinal, era a companheira fiel de
Monsieur Gillet... e deve ter ouvido muitas confidências
sobre o tráfico de tóxicos. Já consegui uma permissão
para visitar Lili, mas pode ser que ela se sinta mais à
vontade na sua presença. Vista-se de homem, Simone, e
venha! Você será o meu guarda-costas! Fique de olho nos
outros carros!
Dessa vez, Brigitte enganava-se. Foram ao sanatório
de Saint-Denys e não lhes aconteceu nada pelo caminho.
Lili d’Anvers estava internada numa dos enfermarias,
esperando o início de um tratamento de desintoxicação.
Os médicos tinham permitido que o homem tomasse
uma injeção de morfina e ele se mostrava mais calmo.
Simone foi o primeiro a falar com ele, preparando a
entrada da repórter.
— A pequena prostituta — disse Lili,
surpreendentemente — não teve culpa. Gustave é que
não vale nada e, quando sente coceiras, atira-se em cima
de qualquer sexo! Foi ele que me iniciou na droga e,
agora, me deixou na mão! Nem um pingo de heroína! Ele
vai me pagar, aquele velho seboso! Estou pronta para
revelar tudo o que sei sobre Paul Provence!
Brigitte entrou, então, sentou-se na beira da cama e
pôs-se a tomar notas num caderninho. Seus olhos azuis
não perdiam nenhuma das expressões fisionômicas do
viciado.
— Simone não lhe disse tudo, Lili. Nós duas estamos
interessadas, em acabar com a quadrilha de vendedores
de tóxicos, comandada pelo seu amigo Gillet. O velho é o
chefe do bando que fornece Nova Iorque, não é?
O homem, deitado na cama, estreitou os olhos negros,
numa expressão de ódio. Vestido com a camisola parda
do sanatório ele não se parecia mais com uma mulher
bonita; era um verdadeiro farrapo humano, — Sim, ma
petite. Gustave é o chefe. Quero que ele morra! Depois
de fazer o que fez comigo, embarcou de volta para a
Suíça e me deixou a nenhum! Até uma dose de coca ele
me negou! E eu lhe arranjei muitos fregueses, em
Paris! Era eu que introduzia o haxixe, nas Universidades,
por um preço acessível! E não cobrava um cêntimo por
isso!
— Você não precisa dizer nada que a comprometa —
lembrou Brigitte. — Só quero conhecer a personalidade
mórbida de Mr. Gillet. A sua, fica para depois.
— Às vezes — disse Lili pensativamente — ele
também asa o nome de Prof. Clochet. Paul Provence era o
seu braço direito, na venda das drogas, em Paris.
Também era Paul quem se encarregava dos embarques
de heroína para os Estados Unidos. O haxixe não vai,
porque é barato e não dá bom lucro.
— E Paul Provence não existe mais?
— Não. Ele se foi.
Houve um minuto de silêncio.
— Você tem certeza? — interrogou Brigitte, com voz
tensa.
— Claro. Assisti à morte dele. E se me calei até agora
foi porque tive medo de Gustave. Paul foi assassinado na
noite de quinta-feira, dia 20, quando estava em l'Hôtel à
espera de uma amiguinha.
— A amiguinha era eu — disse Brigitte. — Ele ia
denunciar o velho, em troca de cem mil francos.
— Eu sei. Foi por isso que houve a discussão. Não sei
como, Gustave suspeitou das intenções de Paul. O velho
é muito esperto! Tinha estado em Genebra, nos dois dias
anteriores, e voltara nessa tarde. Eu estava no nosso
quarto, perfumando o meu belo corpo nu, quando ele
entrou, acompanhado por Paul. Eu já conhecia Paul de
vista, mas não tinha intimidade com ele. Fiquei
envergonhadíssima e fui me esconder no banheiro! Os
dois discutiram aludindo a uma agente da Interpol que
andaria atrás de Paul...
— Essa agente — disse Brigitte — também era eu. Mr.
Gillet acabara de atentar contra a minha vida, na Suíça.
Ele pensava que eu tinha morrido. Imagine a sua
surpresa, quando me viu em l'Hôtel, transformada em
Sra. Weber.
— Paul estava nervoso — continuou Lili — e deixou
escapar uma observação sobre a sua vontade de largar o
bando e mudar de vida. Gustave virou fera! Gritou que
nenhum mafioso abandonaria a “família” se não se
tornasse alcaguete. E acusou Paul de querer vendê-lo à
polícia. Nesse momento, Paul cometeu um erro: puxou de
uma pistola! Gustave tinha nas mãos um dardo
envenenado com curare, que ele usa como “souvenir”...
— E matou o cúmplice?
— Voilà! Só vi o dardo voar das mãos de Gustave e
cravar-se no peito de Paul! Foi tudo muito rápido. Paul
não teve tempo de usar a pistola; caiu em cima da cama,
estrebuchou e foi embora! Uma coisa pavorosa!
— Onde está o cadáver?
Lili d’Anvers lambeu os lábios finos.
— Tenho medo de uma vingança, meninas. Gustave
ainda está solto e...
— Ele não atingirá você neste sanatório. O tempo dos
gângsteres já passou.
— Bem... O corpo de Paul foi levado para a casa de
campo de um amigo de Gustave, em Enghien, uma
aldeia a treze quilômetros de Paris, no caminho de
Pontoise. O amigo de Gustave, Mr. Sèverin, também é
viciado e trabalha para a quadrilha, no setor do ácido
lisérgico. A casa de campo de Enghien é um depósito de
LSD. Mr. Sèverin ficou encarregado de fazer desaparecer
o corpo de Paul, enterrando-o na floresta de
Montmorency. É um belo lugar para se morrer.
Brigitte tomava nota de tudo, enchendo o caderninho
com sua letra fina e floreada. Depois preparou a câmara
e tirou um retrato de Lili.
— Mr. Sèverin deve saber onde se encontra Gustave
— concluiu o doente. — Descubra onde se meteu aquele
velho libidinoso e meta-o no xadrez! Ele me usou,
sempre que precisou de mim, e, agora, fugiu como um
rato! Não teve nem a decência de me levar para a Suíça!
Aposto que tem outra amante, aquele porco!
Era evidente que o viciado não conhecia o paradeiro
de seu amigo na Suíça. Mas a pista da casa de campo já
ajudava muito. Brigitte agradeceu as informações de Lili
e desceu, acompanhada por Simone, até a portaria do
sanatório.
— Brigitte — sussurrou Simone, na saída do elevador
— conte-me a verdade, queridinha! Você é mesmo uma
agente da Interpol?
— Não, meu bem. Mas estou colaborando com ela.
E você colabora comigo. Não é?
— É — suspirou o rapaz. — Isso não altera
nada. Continuamos boas amiguinhas.
Na portaria, Brigitte pediu licença para usar o telefone
e ligou para a sede da Interpol e para a Sureté Nationale,
no Ministério do Interior. Uma hora depois, uma brigada
de gendarmes foi ao sanatório de Sant-Denys e deu voz
de prisão a Lili d’Anvers; seu tratamento de
desintoxicação seria feito na enfermaria de uma
penitenciária.

Entretanto, Brigitte e Simone não perdiam tempo.

Tomaram o Alfa e partiram para Enghien, pela estrada


de rodagem que terminava em Pontoise, trinta
quilômetros a noroeste de Paris. A antiga Enghien-les-
Bains (hoje, Montmorency) era uma aldeia célebre pelas
suas águas sulfurosas, com um pequeno lago, junto à
floresta dominada pelo Forte de Montmorency, na linha
de defesa exterior de Paris. Fora nesse recanto bucólico
que Rousseau escrevera a sua “Nova Heloisa”, quando
habitava l’Ermitage. Havia diversas casas de campo
espalhadas pelo vale, de maneira que Brigitte e Simone
tiveram que passar a noite numa hospedaria da aldeia,
sem encontrar a residência de Mr. Sèverin. Só no dia
seguinte, ao meio-dia, um aldeão lembrou-se de que vira
um automóvel chegar de Paris, trazendo um homem
adormecido, que fora desembarcado na casa de campo
de Mr. Santuzzi, junto à Estrada de Ferro do Norte. Mr.
Santuzzi era um italiano muito rico, que pouco parava na
terra. Contudo, nesse dia, por coincidência, estava lá.
— É meu vizinho — acrescentou o aldeão. — Se
mademoiselle e monsieur não têm pressa, vou tomar um
gole de vinho e, depois, os levarei a casa dele. Sempre
ando a pé, pelos campos, mas hoje voltarei de
automóvel! É muito bonito esse carrinho branco! Os
parisienses é que sabem viver! E, às vezes, nem sequer
são casados...
Depois que o homem bebeu duas garrafas de vinho, à
saúde do casal parisiense, Brigitte enfiou-o no assento
suplementar do Alfa e rodou, por uma estrada de terra
batida, seguindo as indicações do cicerone. Meia hora
depois, chegaram a uma casa baixa, de telhado
vermelho, no meio de um pomar de cerejeiras.
— É aqui — disse o aldeão, saltando do carro.
— Demoramos um pouco porque eu quis dar um
passeio... Moro do outro lado da estrada de ferro. Espero
que Mr. Santuzzi tenha prazer com a visita, mas não
acredito nisso. Cuidado, porque a casa tem cachorros!
E desapareceu, cantarolando. Brigitte e Simone
bateram palmas, diante do portão da cerca que os
separava da casa, e foram atendidos por uma velha cega
de um olho. A mulher trazia um forcado na mão.
— Salut! Que desejam?
— Somos de Paris — disse Simone, engrossando a
voz. — Viemos pegar uma encomenda com Monsieur
Sèverin. Foi Mr. Gillet quem nos mandou.
— Sèverin? — resmungou a mulher. — Aqui não há
nenhum Sèverin!
Mas, nesse momento, abriu-se a porta principal da
casa e apareceu um homem gordo e cabeludo, com um
guardanapo entalado no colarinho. Vestia um robe e
parecia pacífico e bonachão.
— Deixe-os entrar, Mamãe Michelet! São meus
amigos! Agora, vá prender os cães! Presto! Ho fame, non
ho ancora fato collazione!*

*“Depressa! Estou com fome, ainda não almocei!”


Seu sotaque era napolitano. Brigitte pescou a pistola


dentro da bolsa.
— Monsieur Santuzzi? — perguntou, atravessando o
portão e caminhando para os dois degraus que
conduziam ao pórtico.
— Si — respondeu o italiano, desconfiado. — Mas
vocês procuram Sèverin... Que Sèverin? Quem foi que os
mandou?
— A polícia — respondeu a bela repórter, apontando-
lhe a pistola. — Acabou-se a comédia, Monsieur Santuzzi!
O senhor está preso!

Não havia mais ninguém, na casa de campo, a não ser


a velha cegueta e outra empregadinha, que se trancou,
chorando, num quarto dos fundos. Enquanto Simone
mantinha o italiano sob a mira da pistola, Brigitte deu
uma busca no porão, onde encontrou um monte de
caixotes, cheios de frascos de ácido lisérgico. À vista das
provas, Mr. Santuzzi resolveu confessar.
— Certo. Mr. Gillet usava esta casa como depósito
para o ácido. Mas não sei de onde vem a droga, nem
estou disposto a trair o meu patrão! Sou um camponês,
ingênuo e simples, que alugou o porão a um homem
esperto da cidade!
— Desconfio que não, Monsieur Santuzzi — replicou
Brigitte, recuperando a arma das mãos de Simone. —
Desconfio que o senhor é um sócio de Monsieur Gillet!
O senhor sabe de muito... e vai nos contar tudo!
Estavam na sala, sob a vigilância silenciosa (de olho
arregalado) da velha empregada. O italiano abriu os
braços.
— Alla fine, é passato! Quero um advogado!
— Creio que não me expressei bem — retorquiu
Brigitte.
— Não somos, exatamente, da polícia. Somos duas
cidadãs parisienses, interessadas em acabar com os
infames traficantes de tóxicos que estão corrompendo a
juventude!
— Duas cidadãs? — gemeu o gordo, contemplando
Simone com um olhar fixo. — Mas, então, talvez
possamos entrar num acordo... Se é dinheiro que vocês
querem, minhas belas ragazzas...
— Não, não é dinheiro. Queremos descobrir o
paradeiro que Monsieur Gillet, que é o maior responsável
pela venda das drogas em Paris e nos Estados Unidos! O
senhor vai nos ajudar, Monsieur Santuzzi! Sabemos que o
senhor é boa gente...
— Não contem comigo! Não direi nada! Niente!
— Nem mesmo depois que minha amiga lhe arrancar
os pelos do corpo? Veremos!
— Vocês não ousarão! — O homem eslava lívido.
— Veremos! De qualquer maneira, o senhor está
“queimado”, pois a polícia já sabe que Paul Provence foi
morto em l'Hôtel e seu cadáver trazido para esta casa.
Um vizinho viu o corpo, sendo transportado num
automóvel, e está pronto para testemunhar. Onde
enterrou Paul Provence, Monsieur Santuzzi?
— Se alguém morreu, não fui eu quem o matou! Eu
não mato ninguém!
— Sei disso. Monsieur Gillet o matou e o senhor o
enterrou! Onde está o corpo?
— Na floresta — respondeu o italiano, contrariado. —
Recebi ordens para enterrá-lo discretamente. Se eu não
fizesse isso, seria castigado pelo meu patrão. Ele não
tolera desobediências. Mas, não sei onde vocês poderão
encontrar Mr. Gillet! Ele saiu de Paris!
— Se o senhor sabe disso — tomou Brigitte — é
porque seu patrão esteve aqui nestes dois dias mais
chegados! Há três dias apenas, que Mr. Gillet
desapareceu de l'Hôtel.
— Si — confessou o gordo. — Mr. Gillet estive aqui
ontem. Queria saber se Paul Provence fora enterrado.
Mas, depois, voltou para Paris e...
— E foi para a Suíça?
— Não posso dizer mais nada! Paul Provence era um
traidor! Queria entregar o chefe! Não tenho pena dele!
Todos os traidores merecem a morte! Por isso, eu nunca
me tornarei um traidor! Desidero il mio avvocato! Io non
parlo niente!
— É o que veremos, Mr. Santuzzi!
Atendendo a um sinal de Brigitte, Simone começou a
despir o robe e a camisa do homem. À vista de seu peito
cabeludo, o rapaz sorriu.
— Que maravilha! Quantos pelinhos para arrancar!
— Aspeta! — implorou o italiano, lívido de pavor. —
Per favore, deixem-me respirar! Eu... eu não suporto
tortura! Per favore, signorinas! Posso... posso tomar uma
dose de esquecimento?
— Depende do tipo de esquecimento. Não queremos
que o senhor adormeça.
— LSD. Apenas duzentas microgramas, num copo
d’água. É o bastante para me acalmar os nervos e me
fazer falar.
Brigitte acenou afirmativamente. O homem correu
para a cristaleira e preparou uma poção, num copo de pé
alto.
Simone vigiava-o, alerta. Mas ele limitou-se a ingerir o
líquido, respirando aliviado. Na mesma hora, porém, fez
uma careta e largou o copo, que se espatifou no chão.
— Non é possibile! — gemeu, levando as mãos ao
estômago. — Mr. Gillet trocou os frascos!
Agora havia na sala um pronunciado cheiro a
amêndoas amargas.
— Ácido cianídrico! — gritou Brigitte, alarmada.
A velha cegueta correu a amparar o patrão, mas este
arregalou os olhos e caiu, de borco, no assoalho. Brigitte
ajoelhou-se ao lado dele.
— Depressa! Fale!
— Non parlo niente! — teimou ele, abanando a mão
mole.
— Fala, sim! Não compreende que o velho quis matá-
lo? O senhor sabia que ele matara Paul Provence e ele
não queria testemunhas! Esperou que o senhor
enterrasse o corpo e trocou a sua dose de esquecimento!
Uma ampola de ácido cianídrico, Mr. Santuzzi, é um
esquecimento definitivo!
— Si — gemeu o italiano, quase sem voz. — Ele me
matou! Mr. Grogan... Lausanne... A clínica da casa... uma
casa de doidos! Ecco! Uma casa de doidos!
E não conseguiu dizer mais nada. Estava morto.

Lucien volta de Zurique


O Chateau de Clarens
A refinaria da morte
Mr. Grogan revela o roteiro das drogas
Tratamento especializado com eletrochoques

Ainda ficaram o resto daquele dia em Enghien,


enquanto a polícia varejava a casa de campo, e
passaram a noite na hospedaria da vila, regressando a
Paris na manhã de domingo. Não havia novidades, em
l'Hôtel. Brigitte teve uma inspiração e deu um
telefonema para o hotel alemão da Rue de La Fontaine,
onde continuava hospedada como Mrs.
Weber. Perguntou se havia algum recado para ela.
— Jawoh! — respondeu a telefonista. — Herr Weber
ligou ontem à noite, de Lausanne, pedindo para que
madame vá ao seu encontro, no Hotel Chateau d’Ouchy.
Ele acaba de voltar de Zurique.
Brigitte desligou e encarou o rosto bonito de Simone,
que a contemplava, apoiado nas mãos, por cima do
balcão da portaria.
— Meu marido voltou e está à minha espera, em
Lausanne. Desculpe, Simone, mas temos que nos
separar.
— Por quê?
— Estou lhe dizendo. Meu marido voltou. E ele não
gostará que eu ande ao lado de um efeminado... Afinal,
não sou nenhuma vedeta.
O rapaz baixou os olhos e ela sentiu remorsos.
— Desculpe, meu bem. Vou a Lausanne, procurar a
casa de doidos de que nos falou Mr. Santuzzi. Mas
voltarei a Paris logo que puder. Espere por mim.
— Eu gostaria de continuar trabalhando com você —
disse Simone, timidamente. — Pelo menos, até à
conclusão do caso. Por que não posso ir a Lausanne?
— Está bem — suspirou a moça. — Encontre-se
comigo no estacionamento do Hotel Chateau d’Ouchy,
logo mais à meia-noite. Você conhece o meu carro. Tem
dinheiro para a passagem?
— Tenho passaporte, mas não tenho dinheiro. Já gastei
toda a mesada que meus pais me mandaram.
Brigitte deu-lhe cinco notas de cem francos e
despediu-se dele. Eram dez horas da manhã quando
partiu de Paris, no Alfa esporte, chegando a Dijon a
tempo de almoçar. O resto da viagem foi feito em quatro
horas; às oito horas já tinha atravessado a fronteira (em
Vallorbe) e chegado a Lausanne entrando em Ouchy.
Deixou o carro no estacionamento do hotel e apareceu
no hall.
— Madame Weber — anunciou o amável recepcionista
— seu marido chegou, ontem, a Zurique e está na suíte,
à sua espera. Desejo ardentemente que ele saiba que
madame estava em Paris. Nossos telefonemas não a
localizaram em parte alguma. Brigitte sorriu.
— E os dois amigos de meu marido? Continuam na
segunda suíte?
— Lamento, madame. Monsieur Krause e Monsieur
Burg deixaram o hotel.
— Que estranho! Eles não se encontraram aqui?
— Oui, madame. Monsieur Weber conversou, na noite
passada, com seus companheiros de caçadas. Foi depois
disso que eles deixaram o hotel. Pode subir, madame.
O porteur levará a sua maleta.
Lucien estava na suíte, em mangas de camisa. Não
parecia o mesmo rapaz alegre e despreocupado de
antes; seu rosto anguloso tinha dois vincos de ansiedade.
— Happy! Finalmente, aí está você!
Abraçaram-se e se beijaram. Brigitte não podia negar
que o playboy sabia beijar muito bem.
— Tive que me ausentar do nosso hotel em Paris —
explicou ela. — Lucien, trago uma notícia que talvez não
lhe seja muito agradável.
Ele ficou pálido e tenso.
— Mais aborrecimentos? Você me assusta, Happy!
Que aconteceu?
— Eu não sou mais a Happy de Lucien...
— Que está dizendo?
— Recuperei a memória. Sou Brigitte Montfort,
correspondente do “Morning News” de Nova Iorque. E
estou empenhada numa reportagem sobre contrabando
de tóxicos.
— Ah! Então, foi por isso...?
— Sim. Foi por isso que quiseram se livrar de mim nos
rochedos de Naye.
— Drogas — murmurou Lucien, mordendo o lábio. —
É um assunto fascinante. Para os seus leitores, quero
dizer.
— Sei que você não entende disso — tornou a moça,
esquadrinhando-lhe as feições. — Mas deve compreender
a minha situação. Sou uma jornalista que ama a sua
profissão. Por isso lhe digo que não sou mais a Happy de
Lucien. Meu único compromisso é com o jornal.
O rapaz respirou fundo, para se acalmar. Depois: —
Não creio que o seu trabalho impeça nosso amor,
Brigitte. Eu lhe darei liberdade para servir o seu
jornal. Talvez seja melhor, assim. Sempre desejei me
casar com uma jornalista internacional.
— Você já é casado.
— Acabei de me divorciar, Happy... digo, Brigitte.
Estou livre para me casar com você. Nós dois, juntos,
ainda poderemos conquistar o mundo! Tenho uma
proposta a fazer.
— Vou pensar, Lucien. Você sabe que eu gosto de
você; sabe que nos entendemos muito bem, no capítulo
amoroso. Além disso, devo-lhe a vida. E ainda estou
usando os documentos de identidade que você me deu.
— Depende de você tornar esses documentos
verdadeiros. Pelo menos, a certidão de casamento.
— Vou pensar na sua proposta, querido. Amanhã lhe
direi se quero ser sua companheira. Agora, vamos nos
divertir um pouco. Eu estava com muita saudade de
você!
— E eu de você! — disse ele, abraçando-a com vigor.
Ela percebeu os seus músculos retesados e sentiu-se
frágil e pequenina nos seus braços. Episódio fora do
comum: momentos de prazer à beira do abismo. Porque
Brigitte, graças à sua extrema argúcia, pressentia que
muito breve haveria um abismo entre eles. Mas a hora
sombria estava no futuro. Aquele era o momento do
amor.
Não houve jantar naquela noite, Às onze e meia,
exaustos, eles ficaram imóveis, na larga cama de casal.
Lucien adormeceu logo em seguida. Então, ela se
levantou, tomou um banho, vestiu-se no escuro, apanhou
a bolsa com a pistola e saiu silenciosamente do quarto.
Cinco minutos depois, estava no estacionamento do
hotel. Simone des Boulevards, vestido elegantemente
como um playboy, esperava por ela, encostado ao Alfa
esporte. Tinha um cigarro fumegante entre os lábios.
— Pensei que você não viesse. Já passa um minuto da
meia-noite. Seu marido criou dificuldade?
— Não, meu bem. Ele foi até muito
carinhoso... Estivemos nos braços um do outro até agora.
— Imagino — rosnou Simone.
— Agora, vamos ver se localizamos a casa de doidos
de que nos falou o italiano. Talvez não seja difícil. Por
motivos óbvios, ela não deve se encontrar no perímetro
urbano de Lausanne.
Entraram no carro e acenderam a luz interna. Brigitte
abriu, em cima dos joelhos, um mapa de Lausanne e
seus arredores.
— Uma casa de doidos — disse Simone — é uma
clínica psiquiátrica. Existirá mais de uma por aqui?
— Só em Lausanne existem três. A Suíça é um dos
países que tem o maior índice de estabelecimentos
hospitalares.
Mas estou pensando no que disse Monsieur Santuzzi,
antes de morrer. Quando ele disse “casa”, em francês,
não disse “maison”, Ao falar em “chateau”, podia querer
se referir a um castelo... Há dois mil castelos, na Suíça;
praticamente, um de cinco em cinco quilômetros. Nos
arredores de Lausanne temos, por exemplo, os castelos
de Oron, Morges, La Sarraz, Gruyère e Chillon. Este
último, o famoso Castelo de Chillon, perto de Montreux,
não é uma clinica psiquiátrica, é um museu. Mas sei que
existe outra antiga construção da Idade Média, também
é beira do lago, a vinte e cinco quilômetros daqui. E o
Chateau de Clarens construído pelos Senhores de Vaud.
Tal como o Castelo de Saint-Denys, ele não consta dos
guias turísticas, pois não está aberto ao público.
— Precisamos nos informar, queridinha. Mas você
quer visitar a casa de doidos à noite?
— É o melhor. De noite todos os gatos são pardos. Não
se esqueça, Simone, que essa casa pode ser o QG dos
contrabandistas de tóxicos! E eles devem estar armados,
sob o comando de Monsieur Gillet Tomaram a rodovia de
Lausanne e pararam numa cervejaria do Chamin de
Longeraie, onde cearam. Aí, foram informados de que,
realmente, o antigo Chateau de Clarens fora
transformado numa Clínica Psiquiátrica Popular, doada à
comunidade por um rico senhor americano. Era a
informação que Brigitte mais desejava. O senhor
americano talvez se chamasse Mr. Grogan... E Clarens
ficava a dois passos dos rochedos de Naye e dos bosques
de pinheiros de Caux.
Partiram pela auto-route, beirando o lago e a Estrada
de Ferro, e passaram por várias aldeias pitorescas,
formadas por casas velhas, edificadas no curioso estilo
arquitetônico suíço.
Pully, Lutry, Cully; depois, Chexbres e Vevey. Vinte
minutos depois de terem deixado Lausanne, estava na
entrada de Clarens e avistavam o pequeno castelo dos
antigos Senhores de Vaud. Era uma casa rústica, de
pedra, com uma ponte levadiça enferrujada (que não
subia mais), cercada por um fosso, onde a água fora
substituída pela vegetação. Duas torres gêmeas, uma ao
norte e outra ao sul (esta última sobre o lago)
encimavam a pitoresca construção do Século XIV.
Brigitte deixou o carro à beira da estrada que seguia
para Montreux, e saltou, seguida por Simone. Estavam
ainda muito longe do castelo, embuçados na escuridão
da noite; mesmo que houvesse algum vigia, no alto de
uma torre, não poderia percebê-los.
— Vamos dar uma espiada ao redor disse a bela
repórter.
— Desconfio que encontraremos um cais, nos fundos
da casa.
Não se enganava. Depois de observar as altas
paredes de cantaria, coroadas pelas ameias das
barbacãs, caminharam rente ao castelo e foram dar
numa cerca de arame farpado, além da qual se via um
cais de madeira, evidentemente improvisado. Encostado
ao molhe, havia um lanchão de doze metros, com motor
central.
— Aposto que é um motor diesel suíço — sussurrou
Brigitte. — Leve e muito potente. Uma lancha dessas,
carregada de LSD, morfina e cocaína, pode atravessar o
lago em menos de uma hora! Só as barcas de rodas
levam duas horas e meia na viagem; Genebra fica logo
ali em frente.
Confundidos com os arbustos que marginavam a
cerca, eles ainda não podiam ser pressentidos por
nenhuma sentinela.
— Como vamos entrar na casa? — tornou Simone,
com ar apreensivo. — Você está especulando, queridinha.
Ainda não temos certeza de nada.
— Silêncio! — soprou a moça. — Olhe para cima!
Simone obedeceu e viu um homem, armado com uma
espingarda (ou uma submetralhadora), debruçado numa
das ameias do castelo. Apenas uma cabeça escura, que
se movia lentamente, perscrutando a escuridão. Ficaram
quietos e em silêncio. Mas Brigitte não perdeu tempo e
pôs-se a mexer na sua famosa frasqueira, buscando
instrumentos. Tirou um alicate.
— Entraremos pelo cais — sussurrou ela.
Rastejou pela grama, atingiu o ponto mais vulnerável
da cerca de arame farpado e cortou meia dúzia de fios,
abrindo um buraco. Simone foi atrás dela. Passaram pela
abertura (rasgando as roupas nas pontas aguçadas do
arame) e viram-se do lado de dentro do cais. Uma larga
porta de carvalho, fechada, comunicava com o interior
do castelo. No alto, numa das ameias da Torre Sul, via-se
a cabeça escura de outro guarda. Era preciso cuidado,
para não serem pressentidos.
— Não há maneira de entrar — sussurrou Simone. —
Já sabemos que esta casa está muito bem guardada,
para ser uma simples clínica psiquiátrica. Não será
melhor prevenir a Chefatura de Polícia, em Lausanne,
pedindo alguns gendarmes?
— Farei isso depois — respondeu Brigitte. — Em
primeiro lugar, quero ter a certeza de que as drogas
passam por aqui. Deve haver um laboratório clandestino,
em alguma parte.
No cais, não havia nada suspeito, além do moderno
lanchão, a óleo cru, que estava vazio. Saíram de dentro
dele e voltaram ao cais, contemplando a porta dos
fundos da fortaleza. Nisso, ela se abriu e apareceu uma
figura branca, dando uma risada. Brigitte e Simone
esconderam-se numa quina da parede, trocando um
olhar de entendimento. A mulher que desceu para o cais
usava um uniforme de enfermeira, com uma touca e um
quadrado de pano, pendurado ao peito por dois
cadarços. Ninguém mais apareceu. Silenciosamente,
Brigitte seguiu a enfermeira e desapareceu, atrás dela,
nas sombras da noite. Simone esperou, vigiando a porta
traseira do castelo, que ficara aberta. Cinco minutos
depois, Brigitte voltou, vestida de branco, ocultando os
cabelos negros sob a touca justa.
— Matou-a? — murmurou Simone, horrorizado.
— Não. Apenas mandei-a dormir com um golpe de
“atemi-waza”. Dentro de uma ou duas horas, ela voltará
a si. Espere-me no cais. Logo que obtiver provas contra
os contrabandistas, voltarei, para irmos buscar a polícia!
Simone acenou, contrariado; sua vontade era também
participar da visita ao chateau... Brigitte transferiu a
pistola para o interior do uniforme e deixou a sua temível
frasqueira com seu amiguinho; em seguida, respirou
fundo, como se fosse mergulhar em águas turvas,
colocou o quadrado de pano sobre a parte inferior do
rosto e entrou, resolutamente, pela porta do castelo. Sua
compleição física era muito semelhante à da enfermeira,
cuja identidade acabara de assumir.
Havia um sujeito, armado com uma submetralhadora,
no corredor dos fundos da casa. Era alto, louro, tinha
olhos de cobra. Brigitte baixou a cabeça e passou por ele,
em silêncio.
— Angenehme Ruhe, Liebchen!* — sussurrou o
guarda, aplicando-lhe uma palmada no traseiro.

*“Durma bem, amorzinho!”


A garota deu uma gargalhada, procurando imitar o


riso alvar da enfermeira, e seguiu em frente.
O corredor dobrava para a esquerda. Desembocou
num pátio, onde se viam três pavilhões fechados, de
onde partiam lamentações. As portas tinham rótulas;
espiando por elas, Brigitte verificou que os pavilhões
abrigavam cerca de trinta prisioneiros, pobremente
uniformizados de cinzento, que repousavam em camas
de ferro. Loucos! Alguns deles riam ou cantarolavam para
si mesmos; a maioria, porém, chorava e pedia uma
picada... Até aí não havia nada de anormal; era muito
lógico encontrar doidos mima clínica psiquiátrica.
Brigitte atravessou o pátio e entrou por uma porta, à
direita, que dava para um largo aposento, cheio de
armários com medicamentos. Ali devia ser o Salão dos
Cavalheiros, no tempo dos Senhores de Vaud, mas a
peça fora transformada no almoxarifado de um hospital.
Outra porta, ainda à direita, abria para os Aposentos do
Norte, onde tinham instalado o dormitório dos guardas,
médicos e enfermeiros. Havia, ali, diversas camas e dois
médicos, com batas brancas, conversando à luz de um
abajur. Algumas das camas estavam ocupadas por outras
pessoas.
— Silêncio — ordenou um dos médicos, falando em
francês. — Pode se deitar, mein Fraulein. Você já ganhou
o dia.
Brigitte acenou e voltou a sair para o Salão dos
Cavalheiros. Outra porta, à direita, abria para um
patamar, onde ficava o poço das escadas. O cérebro da
repórter pôs-se a funcionar metodicamente. Não seria
um suicídio descer ao subterrâneo? Provavelmente,
nenhuma enfermeira da clinica costumava fazer isso.
Mas era preciso arriscar. Normalmente, nos castelos
da Suíça, as escadas davam para o celeiro e a armaria;
nenhum outro lugar melhor do que um celeiro para
instalar uma refinaria de tóxicos! Brigitte começou a
descer.
Não havia portas fechadas, no fim da escadaria de
pedra.
A moça penetrou num amplo salão subterrâneo,
atulhado de caixotes e volumes de lona. Havia apenas
uma lâmpada acesa, iluminando debilmente o recinto.
Mas também havia um sujeito, baixo e moreno, sentado
numa cadeira, com uma submetralhadora no colo, logo
adiante do patamar das escadas. Ao vê-lo, Brigitte teve
uma revelação. Lembrava-se da agressão que sofrerá, no
cais de Genebra; aquele homem era o companheiro do
gigante louro, na cena de seu rapto!
— Volte para cima — rosnou ele, sem se fixar muito no
seu rosto. — Mr. Grogan não quer que as enfermeiras
desçam ao laboratório de análises!
Brigitte anuiu e deu meia volta. Mas a curiosidade foi
mais forte. De repente, deu volta à pilha de caixotes, que
bloqueavam a passagem, e espiou para o outro lado. Não
se enganara. Ali estava a destilaria clandestina! Pairava
no ar um cheiro enjoativo, originado por complexo de
retortas e tubos de ensaio, enfileirado num balcão. Ao
fundo, via-se uma espécie de alambique, de onde
pingava um líquido incolor. Sacos de ervas e bolotas
negras (de ópio) juncavam o solo. Esse material dava
origem a uma grande quantidade de LSD, cocaína,
morfina e heroína, que, em ácidos e cristais rômbicos,
tinha sido depositada no canto oposto do laboratório.
Brigitte arregalou os olhos.
— Suba! — ordenou o homem da submetralhadora,
agarrando-a por um braço — Mr. Grogan não vai gostar
disto! Vou levá-la à Residência do Governador!
Então, a garota agiu com rapidez. Enquanto afastava
a arma, com uma das mãos, com a outra atingia o
guarda, no meio da testa, com uma cutilada violenta de
shuto. O homem recuou, deixando cair a metralhadora.
Brigitte apressou-se a apanhá-la. Agora, tinha que sair
dali — sair de qualquer maneira!
Mas, nesse momento, todas as luzes se acenderam e
meia dúzia de mafiosos armados invadiu a destilaria.
— Largue essa arma — guinchou uma voz, num alto
falante da parede. — Eu a segui desde o cais,
mademoiselle! Está em minhas mãos!
Era a voz alegre de Monsieur Gillet-Clochet, aliás, Mr.
Grogan. Ele devia ter usado um sistema de TV em
circuito fechado; havia muito tempo que sabia que ela
estava ali!

O gabinete do velho risonho e cabeludo ficava na ala


nordeste do Château de Clarens, onde existira a
Residência do Governador. Brigitte foi agarrada pelas
mãos grosseiras dos guardas e despojada da
metralhadora e da pistola, que ocultara sob as vestes de
enfermeira; depois, os seis mafiosos fizeram-na subir as
escadas, levando-a à presença do chefão.

O velhote amável de l'Hôtel estava sentado a uma


secretária, brincando com um dardo de aço, pouco maior
do que um lápis.
— Tenho muito prazer em revê-la, Mademoiselle
Montfort — disse ele, indicando uma poltrona. — Gosto
das pessoas inteligentes e curiosas, que sempre querem
saber mais... Mademoiselle demonstrou uma extrema
vitalidade, e um desejo louvável de cultura, no terreno da
toxicologia...
Posso acabar de instruí-la sobre o assunto? Sou um
mestre nessa especialidade terapêutica...
Brigitte tirou o pano que lhe mascarava as feições e
deixou-se cair sentada numa poltrona. Não via qualquer
possibilidade de fuga. Os guardas, que a tinham levado,
esperavam, de pé, encostados às paredes. E todos
tinham armas na mão. Quanto aMr. Grogan, brincava
ameaçadoramente com o dardo envenenado.
— Também tenho muito prazer em revê-lo — retrucou
Brigitte, com o mesmo cinismo. — Eu já esperava que o
senhor também fosse Mr. Grogan...
O velho traficante deu uma risada.
— Adotei esse nome recentemente, depois que soube
do interesse de uma repórter do “Morning News” em
conhecer o roteiro das drogas. É uma homenagem ao
diretor do jornal americano. Na verdade, mademoiselle,
uso vários nomes... de Gustave Gillet a Léon Clochet... e
tenho uma infinidade de carteiras de identidade. Isso é
sempre útil, no nosso ramo de negócios... Normalmente,
fiscalizo as vendas, como caixeiro-viajante da Casa
Stabile, mas, às vezes, também sou umbon vivant.
Quando comprei este castelo, fiz-me passar por Monsieur
Shapiro, milionário americano dedicado a obras
filantrópicas. E meus médicos, doublé de químicos
especializados no tratamento do ópio, têm servido à
comunidade, tratando alguns doentes mentais, levados à
loucura pelo abuso das drogas que eu próprio lhes
vendi... Meu sonho é ir morar nos Estados Unidos, sabe?
Tenho algum dinheiro, nos bancos da Suíça, e talvez
realize esse desejo, depois que me livrar desta
desagradável perseguição... Mademoiselle também
trabalha para a Interpol?
Brigitte ficou em silêncio.
— Sim, claro — continuou ele. — A CIA e a Interpol,
unidas, sempre criaram dificuldades à Máfia. Mas nós
somos muito bem organizados, mademoiselle. É uma
pena que a sua reportagem não possa ser publicada em
Nova Iorque. Mas quero que saiba que vai ser difícil
combater todos os negociantes de tóxicos da Máfia.
Temos agentes em Beirute, na Itália, em Marselha e
Paris; por toda parte existem representantes nossos.
Também temos associados, como os Corsicans e aHong-
Kong Triads, muito poderosos. E onde corre o dinheiro,
mademoiselle Montfort, a polícia fecha os olhos... Vocês,
da CIA e da Interpol, estão agindo como Dom Quixotes...
— Se nós temos o idealismo de Dom Quixote —
retrucou Brigitte — o senhor tem a ingenuidade de
Sancho Pança! Eu nunca viria aqui desacompanhada, Mr.
Grogan.
Ela pensava, desesperadamente, num meio de avisar
a polícia. Será que Simone tomaria a iniciativa de correr
a Lausanne e voltar com um batalhão de gendarmes?
— Não sou assim tão ingênuo — continuou o velhote,
sem deixar de sorrir. — A prova é que meus guardas
suíços estão, neste momento, caçando Simone des
Boulevards no cais do chateau... Aquele efeminado
também não me escapará. Fui informado de que vocês
trabalham juntas... e devo reconhecer que formam uma
dupla encantadora. Mas eu prefiro os travestis morenos,
como Lili d’Anvers... A propósito: Lili será fuzilada, no dia
em que comparecer ao tribunal.
Brigitte reagiu com um sorriso tão falso como o de seu
interlocutor.
— Não nego que vocês sejam fortes — admitiu. —
Basta pertencerem a uma ala da Máfia. Mas é possível
que eu ainda acabe com o império de Mr. Grogan... Seu
melhor cavalo, general, já morreu e está enterrado na
floresta de Montmorency!
— Eu matei Paul Provence — disse o velhote,
mostrando o dardo de aço. — Ele já não me era útil e
ameaçava a minha segurança. Outro “irmão” tomará o
seu lugar. Paul pretendia entregar-me à polícia, a troco
de dinheiro. Não é verdade?
— É a sua dedução. Isso demonstra que não há muita
lealdade entre os mafiosos...
Mr. Grogan deixou de sorrir.
— Paul era uma exceção, mademoiselle. Tenho muitos
colaboradores fiéis. Entre eles, o louro Franz e o moreno
François, aos quais mademoiselle deve algumas das
pancadas que sofreu, em Genebra e nos Rochedos de
Naye. Foi uma pena que eles tivessem falhado... Também
foi uma pena que aqueles quatro marroquinos tivessem
falhado, naButte Montmartre. Mas prometo-lhe que Franz
e François não falharão, outra vez. Agora, eu estarei mais
atento.
— O senhor teve medo de mim — acusou Brigitte. —
E continua apavorado. Sabe que não irá longe, agora que
descobrimos o laboratório da quadrilha.
— Mademoiselle descobriu tudo sozinha. Nem Simone
sabe disto. Logo, não há perigo. Estamos tão seguros,
aqui dentro, como numa fortaleza medieval. Tenho oito
guardas fiéis, todos membros da Máfia, quatro médicos e
seis enfermeiras. E trabalhamos, todos juntos, com a
segurança de um computador eletrônico... Meu império é
maravilhoso, mademoiselle! Tão maravilhoso que vou
sentir saudades dele, quando me aposentar e for morar
na Flórida...
— Vai tentar me matar outra vez? — inquiriu Brigitte,
para ganhar tempo.
— Perdoe-me a insistência... Mademoiselle sabe muito
e não pode publicar a sua reportagem. Mas eu lhe rendo
as minhas homenagens. Respeito os adversários valentes
e teimosos. E é sempre com desgosto que me livro deles.
Não leu os jornais de Lausanne, mademoiselle? Há
quinze dias, morreu misteriosamente um químico, na Rue
du Beau Rivage, filho de um ajudante do Dr. Alberto
Hoffmann, o descobridor do LSD. Diga-se, de passagem,
que o LSD é um produto que tem pouca procura e não
aos interessa muito... Esse químico era um rapaz muito
ambicioso e teve a petulância de querer afastar Mr.
Grogan da chefia do grupo... Franz e François acabaram
com ele. Dessa vez, esses dois excelentes rapazes não
falharam... Mais oui — acrescentou ele, suspirando. — De
vez em quando, aparece um ou outro traidor entre nós...
mas é logo neutralizado. Há muito dinheiro em jogo e as
tentações humanas são muito fortes...
"Sabe quanto um importador americano tem que
depositar, adiantadamente, num banco da Suíça, para
receber a sua cota? No mínimo, quarenta mil dólares!
Dez quilos de morfina custam-nos, no mercado negro do
Oriente Médio, cerca de seis mil dólares; transformada
num quilo de heroína, essa droga pode ser revendida,
nos Estados Unidos, por mais de quatrocentos mil
dólares! É um lucro fabuloso, não acha? Por isso, cada
associado da Máfia é um traidor em potencial, que sonha
controlar o mercado... Nossos choferes, por exemplo,
precisam estar sempre sob vigilância, ao longo da rota da
felicidade... É uma estrada muito comprida,
mademoiselle!"
— Eu sei. O ópio vem da Turquia e da China,
principalmente de Yunnan. É uma longa jornada para a
morte e a loucura! Mas os traficantes sempre conseguem
chegar à Itália...
O velhote contemplava-a pensativamente.
— Tem razão. Mademoiselle é ainda mais esperta do
que eu pensava... Suponho que pertença, há muito
tempo, ao Serviço Secreto. Será um alívio, para nós,
ficarmos livres de uma inimiga tão astuta. Não sou
egoísta, mademoiselle, e não vou tratar da sua saúde
pensando apenas em minha segurança; sou forçado a
isso para proteger a Máfia. Sim, a droga vem do Oriente,
mas só fica sob nosso controle a partir da Itália. Agora, é
fácil reconstituir o roteiro da felicidade. Mademoiselle já
deve conhecê-lo. O produto bruto, inclusive o ópio em
lágrimas, vem da Itália, pelo Grande Túnel de São
Bernardo, a única passagem de automóveis sob os Alpes,
e segue pelo bourg Saint-Pierre, Liddes, Orsieres e
Martigny, até à beira do Ródano. Em Vernayes, a
mercadoria passa para bordo de nosso lanchão e vem
para o Chateau de Clarens. Antigamente, havia um
grande laboratório químico em Nápoles, mas a polícia o
fechou; agora, nossa principal destilaria fica aqui, no
coração da Suíça. Depois de destilado, o produto segue
para Genebra e Paris. Mademoiselle não chegou a ver o
nosso armazém, junto ao Grande Cassino de Genebra,
mas sabe que ele existe, devido a uma estúpida
denúncia de Paul Provence.Mademoiselle sempre foi
seguida por Franz e François, em suas investigações na
Suíça, mas só pudemos apanhá-la muito tarde. Volto a
dizer que foi uma pena que mademoiselle não tivesse
morrido, quando eu a atirei de cima dos Rochedos de
Maye; agora, reservo-lhe outra morte mais original.
Brigitte piscou os olhos.
— O senhor não está pensando em me tornar viciada,
está? Eu não suporto injeções! E meu nariz é alérgico a
cocaína!
— Oh, não! Eu poderia eliminá-la, facilmente,
injetando-lhe uma dose maciça de heroína... mas isso
seria muito agradável. O LSD também provoca uma
morte colorida. Prefiro tratar dos seus nervos de outra
maneira.
— Eu não tenho nervos, Mr. Grogan!
A voz de Brigitte estava rouca pela tensão. O velhote
sorriu.
— Sou eu o seu médico, mademoiselle. E meu
diagnóstico é este: esquizofrenia! Não passa de uma
loucura, o quemademoiselle andou fazendo! Esta é uma
clínica especializada no tratamento das enfermidades
mentais. Usamos processos modernos, como a
sonoterapia e a psicoterapia, mas ainda não excluímos os
eletrochoques. São simples alfinetadas, nos lugares mais
sensíveis do corpo, a menos que se aumente a
voltagem... Mademoiselle será tratada por
eletrochoques!
Brigitte levantou-se, pronta para lutar. Mas dois
guardas saltaram em cima dela e logo a reduziram à
impotência. A garota esperneou inutilmente; os dois
homens (que eram o louro Franz e o moreno François)
mantiveram-na firme, suspensa no ar. Mr. Grogan
protegeu-se atrás da secretária, para não ser atingido
por um pontapé.
— Levem-na para a Sala de Cirurgia — ordenou ele,
com voz menos amável. — Vocês sabem qual a
quantidade de corrente elétrica que deve passar pelos
eléctrodos, para que ela não morra eletrocutada.
Deixem-na gritar, entre as paredes à prova de som. E,
depois, quando ela estiver bem castigada, soltem-na no
cais. Completamente nua, mas com um barrete
vermelho. Eu estarei numa das ameias do castelo,
armado com o meu arco e flecha...
Brigitte pôs-se a gritar em quatro línguas, mas o
velhote cabeludo não se alterou; sua voz concluiu,
secamente: 
— Sou campeão de arco e flecha, Mademoiselle
Montfort. Desde Guilherme Tell que o arco e flecha é o
esporte nacional suíço... Eu a caçarei, do alto da Torre
Sul, se mademoiselle escapar com vida do tratamento
especializado. Au revoir!

Representação teatral na Sala de Cirurgia


A revolução dos doidos
Tragédia na Torre Sul
Adeus, Mr. Grogan

Simone também tinha sido apanhado, no cais e fora


metido numa das celas do Pavilhão dos Desesperados,
que era como Mr. Grogan chamava o dormitório dos
loucos furiosos. Gretchen, a enfermeira cujo uniforme
Brigitte tomara (e que voltara a si do golpe de karatê) foi
encarregada de cuidar da nova hóspede. Mr. Grogan
sabia que podia contar com a sua crueldade.
Brigitte era levada aos empurrões, para uma barbacã
do andar superior, onde antigamente existia a Casa de
Vaud.
Era ali a Sala de Cirurgia. Também era ali que a equipe
médica se dedicava a experiências terapêuticas com
tratamentos especializados. O louro Franz e o moreno
François despiram a prisioneira e arrastaram-na para
uma das mesas de exames, onde a deitaram à força. A
mesa era de ferro esmaltado e tinha rodas de borracha.
Ao mesmo tempo em que lutava com os seus captores,
Brigitte observava o ambiente, à procura de um buraco
para escapulir. Não havia nenhum. E François tratou de
amarrá-la à cama, utilizando duas grossas correias.
— Você está tendo um de seus ataques — rosnou o
moreno, aplicando-lhe uma bofetada. — Quietinha! Nós
temos prática em tratar com loucos!
A face esquerda da moça ficou vermelha como um
tomate. Contudo, o louro Franz não parecia tão
ameaçador.
Embora também a segurasse com energia, suas mãos
não a machucavam. Pelo contrário. Brigitte tinha a
impressão de que ele procurava lhe afagar as partes
mais macias do corpo... A descoberta deu-lhe uma
grande esperança. O gigantesco mafioso tinha-se rendido
aos seus encantos! Isso, às vezes, também acontecia, ao
longo de sua carreira... Seus belos olhos azuis
procuraram os de Franz e transmitiram-lhe uma
mensagem lúbrica e alvissareira. O louro compreendeu a
insinuação, pois ficou um pouco mais pálido e sua
respiração tomou-se curta e sibilante.
— Franz — murmurou a garota, com voz quebrada. —
O que você quiser! Mas não deixe que eles me matem!
François estava escolhendo os eléctrodos, num
aparelho elétrico erguido ao fundo da sala, e não podia
ouvi-los. Não havia mais ninguém ali. O louro fez uma
careta.
— Cuidado — soprou ele, enquanto uma de suas mãos
acariciava os seios da bela paciente. — Há uma câmara
de televisão em frente à mesa! Ele está vendo tudo! E
também pode nos ouvir!
Brigitte compreendeu que tinha ali um aliado. Ou, pelo
menos, um bom ladrão... Voltou a murmurar, com a voz
mais sensual que pôde encontrar: 
— Não deixe que me matem! Você é um
cavalheiro! Livre-me desta, Franz, e eu serei sua...
inteiramente sua!
Franz estava muito nervoso. Seus dedos trêmulos
percorriam o corpo da moça, lhe alisando os cabelos. O
mafioso lutava entre o desejo e o dever, a voz do amor e
o juramento da “omertà”. O corpo desnudo da bela
garota, que se oferecia tentadoramente aos seus olhos e
às suas mãos, perturbava-o por demais. Mas ele sabia
que a Máfia não perdoava! E Mr. Grogan, muito menos.
— Você merece uma chance — voltou a sussurrar o
gigante, mergulhando o rosto nos cabelos sedosos e
perfumados da prisioneira. — Você escapou da morte,
em Caux e Montmartre. Para que fazê-la sofrer? Vou
desligar um dos eléctrodos, para que não se complete o
circuito. Grite e esperneie como se estivesse sendo
eletrocutada. De qualquer maneira, o chefe vai caçar
você lá fora... Boa sorte, menina louca! Ich wünsche
Ihnen guten Erfolg!*

*“Eu te desejo boa sorte!”


E deu-lhe uma bofetada. No seu gabinete, diante de


uma tela de TV (circuito fechado) Mr. Grogan aprovou
silenciosamente a violência do golpe. Pôde ver
perfeitamente a cabeça de Brigitte ser sacudida, sob o
impacto da mão de seu cúmplice.

François já tinha escolhido os cinco eléctrodos que


seriam aplicados às têmporas, aos seios e ao ventre da
garota; quando ele se aproximou da mesa, Franz tomou o
seu lugar, junto ao painel do transformador, e cortou
disfarçadamente um dos fios embutidos na máquina. A
corrente elétrica positiva, quando ligada, passaria pelo
manômetro, mas se perderia no espaço, antes de atingir
os eléctrodos.
— Depressa! — soou a voz do velho risonho, num alto-
falante da parede. — Vocês estão demorando muito!
Schnell! Gehen Sie schnell!*

*“Rápido! Mais depressa!”


François adaptou os eléctrodos nas partes mais


sensíveis do corpo de Brigitte e acenou para. Franz. Este
ligou a máquina. Ouviu-se um zumbido e o manômetro
acusou um nível de eletricidade igual a cem volts.
— Cem volts! — anunciou o louro.
E Brigitte pôs-se a representar o mais impressionante
papel de sua carreira. Gritou, esperneou, retorceu-se
como uma lagosta, e acabou virando a mesa e tombando
no chão, presa de convulsões horripilantes. Até o moreno
François estava sensibilizado com a cena.
A agulha, no manômetro, continuou a subir
lentamente.
— Quinhentos volts! — gritou Franz.
Na parede, uma telescópica de TV virou para o
manômetro e captou, em close, a imagem da agulha,
marcando o número quinhentos. Deitada de bruços no
solo, com a cama em cima das costas, Brigitte
recomeçou a espernear, espasmodicamente, como uma
presa em agonia.
Seus dentes cerrados deixavam passar o ar
represado, que sibilava sinistramente. Afinal, soltou um
gemido cavo e ficou imóvel.
— Chega! — ordenou a voz, no alto-falante. — Levem-
na para a enfermaria e deem-lhe uma injeção
estimulante! Consultem o Dr. Martius! Dentro de quinze
minutos soltem-na no cais, nua como está, e com um
barrete vermelho!
François desligou os fios elétricos e tirou as correias
do corpo encolhido da vítima. Brigitte não dava acordo
de si Depois que eles retiraram a cama, permaneceu
imóvel, de bruços, com as pernas dobradas.
— Desconfio que ela não aguentou — disse o mafioso
moreno.
Em silêncio, Franz inclinou-se para a garota, a fim de
levantá-la nos braços.
— Não — murmurou ela, sem abrir os olhos. — Você,
não! Deixe que François me carregue!
Perturbado à vista daquelas lindas nádegas, expostas
à luz crua, Franz balbuciou uma desculpa e esperou pelo
cúmplice. François também estava impressionado com a
posição de Brigitte.
— É uma bela menina — disse ele, respirando fundo.
— Deixe que eu a levo para a enfermaria. Também quero
lhe aplicar a injeção.
Inclinou-se, agarrou no belo corpo inerte e ergueu-o
facilmente, estreitando-o contra o peito. Os braços
macios da moça recaíram, molemente, em torno de seu
pescoço. O mafioso sorriu e caminhou para a porta. Franz
foi atrás dele.
Não havia ninguém no corredor, que ligava a Casa de
Vaud à escada do Great Hall, no andar térreo. Súbito,
François arregalou os olhos e abriu a boca, pondo a
língua de fora.
Asfixiado pela “gravata” daqueles braços magros,
mas fortes, o homem cambaleou e largou seu fardo.
Brigitte caiu de pé e manteve o estrangulamento,
fazendo o mafioso tombar de joelhos, agarrado aos seus
punhos.
— O que está fazendo? — bradou Franz, acudindo.
— Não vou servir de alvo para as flechas de seu chefe
— respondeu a garota, acabando de esganar o primeiro
carrasco. — Você está comigo ou contra mim?
O corpo de François rolou e ficou estirado no corredor.
Brigitte enfrentava o outro homem, nua, de pernas
abertas, as mãos na cintura, como uma estátua de
marfim dourado.
Franz hesitou, pensando mil coisas ao mesmo tempo.
Depois, vencido pela voz da “omertà”, meteu a mão
na cintura para apanhar a pistola.
— Contra você — respondeu. — Eu não devia ter feito
o que fiz! As mulheres sempre foram a minha perdição!
Brigitte saltou em cima dele, como uma gata
selvagem, e agarrou-lhe o pulso, antes que ele lhe
apontasse a arma. Uma torção no braço fez a pistola cair
das mãos do gigante.
— Maldita!
Foi só o que pôde dizer. A mão esquerda de Brigitte
atingiu-o, sucessivamente, em três pontos vitais do corpo
— na carótida (murasamé), sobre o coração (kyo-ei) e no
baixo-ventre (kintéki) — provocando-lhe uma sincope
mortal.
Pouco a pouco, o corpo robusto do mafioso foi-se
encolhendo e acabou por desmoronar no meio do
corredor.
“Que pena — pensou Brigitte. — Era um belo rapaz!”
Não tinha tempo a perder. Agarrou na pistola e
desceu, correndo, a escada. Havia dois guardas armados
embaixo, no grande hall, mas a moça passou por eles
com tanta rapidez (como uma visão de sonho) que
ficaram na dúvida sobre a sua existência. Era difícil
conceber uma mulher, bela e nua, esvoaçando pelo
Chateau de Clarens... Quando os mafiosos voltaram a si
do espanto, a garota já tinha entrado pela porta da Sala
dos Cavalheiros (transformada em almoxarifado) e
corrido para a porta dos Aposentos do Sul. Junto desta,
encontrou duas enfermeiras alarmadas.
— De onde vem você? — perguntou uma delas. —
Worum handelt es sich?*

*“De que se trata?”


Era Gretchen. E tinha nas mãos as chaves do Pavilhão


dos Desesperados. Brigitte ergueu a pistola, ao mesmo
tempo em que a mulher lhe jogava o molho de chaves. O
tiro partiu, desviado pela pancada, e foi a segunda
enfermeira que tombou, com uma bala no ombro.
Gretchen soltou um grito e correu para o pátio. Brigitte
agarrou nas chaves e foi atrás dela. Já da porta, tomou a
atirar. Dessa vez, a bala alcançou a mulher, derrubando-
a. Mas o alarme já fora dado!
Médicos e enfermeiros surgiram na entrada dos
Aposentos do Norte, berrando como alucinados.
— É a polícia! Atirem para matar!
Brigitte atravessou o pátio numa carreira, e foi
experimentar as chaves nas portas dos pavilhões. Já
soavam tiros e imprecações nos Aposentos do Sul, cada
vez mais próximos. A moça conseguiu abrir as três
portas, uma atrás da outra, soltando os loucos alegres e
lamurientos.
— Salve-se quem puder! — gritou ela, indicando os
médicos e as enfermeiras que acorriam. — Livrem-se
deles e fujam deste inferno!
Ao abrir o terceiro pavilhão, sua surpresa foi imensa.
Ali estava Simone des Boulevards, com o terninho
rasgado e um olho negro, maior do que o outro!
— Simone!
— Brigitte!
— Que fizeram com você, meu bem?
— Foi aquela enfermeira! Vingou-se, em mim, do
golpe que você lhe aplicou! Me pegaram! Agora, a
enfermeira foi para o beleléu! Junte-se aos internados e
comande a revolução! Não temos outro jeito senão
lançar mão dos doidos, para destruir este ninho de
traficantes de tóxicos! Oriente-os... e acabe com esses
bandidos! Há muitos frascos de remédios no depósito da
clínica! Certos ácidos, bem agitados, podem servir como
Bombas Molotov!
Simone compreendeu a situação e tomou a si a tarefa
de sublevar os loucos. Alguns deles estavam
acorrentados à parede, como na Idade Média, mas o
rapaz rompeu as correntes com um pedaço de ferro.
Encantados, os dementes seguiram-no, como um
batalhão ululante.
— Arrebentem tudo! — berrou um esquizofrênico, a
boca cheia de baba.
Os médicos e as enfermeiras viram-se envolvidos pela
turbamulta e recuaram, em busca de armas. Mas os
loucos, com Simone à frente, invadiram a Sala dos
Cavalheiros e apropriaram-se de facas, bisturis e vidros
de éter, atirando-os contra os inimigos. A desordem se
estendeu aos Aposentos do Norte e ao poço das escadas.
Ouviram-se rajadas de metralhadoras (quando os
guardas acudiram), mas a gritaria dos insanos acabou
por triunfar. Envolvidos pelos loucos, os mafiosos foram
dominados. Dentro em pouco, os pacientes eram
senhores da situação, no andar térreo, e divertiam-se
quebrando a cabeça dos guardas, desarmados na luta.
Enquanto isso, Brigitte corria para a Residência do
Governador, onde ainda reinava a ordem. Um mafioso
montava guarda à porta do escritório de Mr. Grogan.
Tinha uma metralhadora na mão.
— Que foi que houve? — perguntou, olhando
espantado para a garota nua.
— Aconteceu o diabo — respondeu Brigitte.
E deu-lhe um tiro à queima-roupa. O guarda caiu, sem
um protesto. Brigitte apanhou a submetralhadora, jogou
fora a pistola e arrombou a porta do gabinete. Estava
vazio. O velhote risonho não se encontrava lá dentro.
Então, ela se lembrou de que Mr. Grogan pretendia
caçá-la com arco e flecha de uma das ameias da Torre
Sul.
Voltou ao corredor, atravessou o grande hall (onde
alguns loucos e enfermeiras trocavam bofetões) e
alcançou a escada em caracol que conduzia ao alto da
torre. Subiu rapidamente.
No alto, passou para o estreito corredor, ladeado pelas
seteiras do castelo. Encostado a uma delas, estava o
velho da cabeleira branca.
— Alô, Mr. Grogan! — saudou Brigitte, ferozmente.
O contrabandista virou-se vivamente, pestanejando.
Na sua frente, sobre uma das ameias, estava o dardo
envenenado e, sobre outra, uma arco e flecha de
grandes proporções.
Indeciso, o velhote não sabia qual das duas armas
devia apanhar primeiro. Brigitte valeu-se disso para não
permitir que ele apanhasse nenhuma. Correu para cima
do adversário e agarrou-o pelos cabelos.
— Está preso, Mr. Grogan!
Mas o homem soltou um urro e escapou por entre
suas mãos, deixando a cabeleira em seus dedos. Era
uma peruca! Por baixo dela, o crânio do traficante era
completamente calvo!
— Maldição! — rugiu Brigitte, deixando cair a
submetralhadora.
O velhote era muito ágil para a idade. Quando a
garota o alcançou, ele já ia descendo as escadas. Brigitte
puxou-o pelos fundilhos das calças e arremessou-o
contra a parede.
Então ele se acocorou e meteu a mão no bolso. Ao
retirá-la, tinha um canivete de mola espetado entre os
dedos. E agia como um autêntico apache.
— Voilà! — E deu um golpe em profundidade.
Brigitte saltou para um lado na passagem estreita, e
aplicou um pontapé no pulso do homem. Mas este não
largou o canivete. Outro golpe, cuja plenitude a garota
evitou, e seu braço começou a sangrar. Mr. Grogan sorriu
ferozmente, à vista do sangue.
— Vou cortá-la em pedaços, mademoiselle!
A garota cambaleou até à beira de uma das ameias,
onde se apoiou, pronta para se defender a pontapés.
Outra punhalada do velho fez-lhe um novo talho, no
tornozelo. Era um massacre! Ela sentiu que as forças lhe
faltavam. E o inimigo arremetia, outra vez, decidido a dar
o golpe de misericórdia.
— No pescoço, mademoiselle!
Nisso, alguém gritou, no cais, e uma labareda quente
subiu pela parede externa do castelo, lambendo a base
da torre. O Chateau de Clarens estava pegando fogo! Mr.
Grogan hesitou, com o canivete ensanguentado no ar. E
Brigitte, lançando mão de suas derradeiras forças,
agarrou-lhe o pulso armado. O velhote, porém, era muito
forte.
Paulatinamente, ele foi erguendo o corpo nu da
garota, tentando atirá-lo por cima das ameias. O cais
ficava a mais de trinta metros abaixo. Súbito, Brigitte
amoleceu o corpo, entalando-o na ameia, e puxou o
braço de seu antagonista, obrigando-o a ficar sobre ela.
— Olho por olho, dente por dente — disse a moça,
erguendo os joelhos. — Se você tiver sorte, ficará, como
eu, balançando na copa de um pinheiro! Adeus, Mr.
Grogan!
Perdendo o equilíbrio, o velho voou por cima de ameia
e despencou no vácuo, soltando um grito prolongado.
Mas lá embaixo não havia pinheiros.

Epílogo

O milagre

O incêndio no Chateau de Clarens foi debelado pelos


bombeiros às cinco da manhã. Um inspetor de polícia,
vindo de Lausanne com alguns gendarmes, conseguiu
prender todos os loucos fugidos e restabelecer a ordem.
Nenhum mafioso escapou, tampouco. Havia oito
mortos e vinte e três feridos, que foram medicados no
próprio sanatório. Brigitte também foi pensada; seus
ferimentos eram superficiais e não exigiram mais do que
uma assepsia e duas tiras de esparadrapo. A surpresa do
inspetor foi enorme, quando desceu ao subterrâneo e
encontrou o laboratório químico parcialmente destruído.
Estavam faltando alguns frascos, com heroína pura, mas
nenhum dos loucos quis dizer onde as tinha escondido.
Mais tarde, a polícia recuperou o novo contrabando.
Simone e Brigitte prestaram as primeiras declarações
às autoridades e foram dispensados, depois que a bela
repórter mostrou ao inspetor os seus verdadeiros
documentos de identidade, encontrados no gabinete de
Mr. Grogan.
— Brigitte Montfort! — exclamou o inspetor,
encantado.
— Já a conhecia de nome, como repórter, mas não
sabia que mademoiselle era tão bonita!
Brigitte já estava convenientemente vestida (com um
trajo típico suíço que encontrara no vestiário das
enfermeiras), mas não deixava de ser uma bela mulher;
o inspetor lamentava, apenas, não tê-la encontrado nua.
— O corpo do velho careca foi examinado? —
perguntou ela. — Eu não esperava que ele morresse da
queda, pois há uma espessa vegetação no fundo do
fosso. Queria, apenas, dar-lhe uma lição.
— Na verdade — retrucou o inspetor — ele não morreu
da queda, mademoiselle. Aquele patife era cardíaco e
morreu do susto. Tem certeza de que era ele o chefe?
— O senhor saberá de tudo quando interrogar os
presos.
Ou, então, quando ler a minha próxima reportagem,
no “Morning News”. Dispense-me, por favor. Preciso ir ao
encontro de meu quase marido, Lucien Weber.
Eram oito horas da manhã de segunda-feira. O caso
terminava justamente quinze dias depois da chegada de
Brigitte a Paris. Ela fez um sinal a Simone e saiu do
castelo.
Tomaram o Alfa esporte e partiram para Lausanne.
— Espere-me no hall do hotel — disse Brigitte,
fazendo um afago no rosto contundido do rapaz.
— Não poderemos usar mais este carrinho. Vou me
separar de Lucien.
Atravessaram Lausanne e chegaram à beira do lago.
Brigitte deixou Simone e entrou no Hotel Chateou
d’Ouchy.
O amável recepcionista tinha um telegrama para ela.
Um telegrama em nome de Brigitte Happy Weber.
— Chegou hoje cedo, madame. Seu marido ainda não
se levantou.
A garota abriu o telegrama e pôs-se a ler, com os
olhos arregalados. Era uma mensagem da CIA, assinada
por Pierre Charbreuse, contando uma longa história sobre
Lucien Weber e seus companheiros de caçadas.
Justamente aquilo de que Brigitte suspeitara. Suspirando,
ela dobrou o telegrama e subiu à suíte de Lucien.
O rapaz alto e louro tinha acabado de se levantar e
estava fazendo o desjejum. Ao ver a garota, correu para
abraçá-la.
Mas, logo, sentiu a sua frieza.
— Que houve, Happy? Onde esteve? Por que voltou
toda machucada?
— O problema não é esse, Lucien. Já lhe disse que não
sou mais a sua Happy. E, agora, não posso enganá-lo
mais. Eu sou uma agente secreta da CIA!
E atirou-lhe o telegrama e os documentos em nome
de Happy Weber. Lucien, pálido como um morto, leu a
mensagem. Depois, sacudiu a cabeça e deixou-se cair
numa poltrona. Estava completamente arrasado.
— Gostei de você, Lucien — continuou a garota,
sorrindo tristemente. — Você me agradou em todos os
sentidos, menos em um. Não podemos nos unir da forma
que você quer. Eu jamais seria a “isca” de um inimigo da
Democracia. Era esse o seu plano para mim, não era?
Ele assentiu gravemente.
— Sim, era essa a ideia. Quando a salvei nos bosques
de Caux e vi que você era tão bonita... pensei em
convencê-la a aderir à nossa causa. Você poderia me ser
útil, arregimentando os oficiais suíços para as hostes do
nacional-socialismo. Foi uma tolice, mas... eu não sabia
quem era você...
— Nem eu mesma sabia quem era eu. Desculpe,
querido, mas nossas vidas se separam neste ponto. Eu
poderia prendê-lo, e acusá-lo de ser um espião nazista,
mas vou deixá-lo em liberdade. Você tem vinte e quatro
horas para fazer suas malas e alcançar a fronteira,
passando para a Baviera; depois disso, mandarei a
polícia atrás de você.
— Obrigado — disse ele, com voz fosca. — Foi um
mal-entendido. Mas volto a dizer que você é muito linda!
— Você também é bonitão, Lucien. Lamento que
tenhamos pontos de vista semelhantes, no amor, e
diferentes, na política. Seus companheiros da nova
“Spinne” Erwin Krause e Nills Burg, foram apanhados, no
Lago Constanza, quando tentavam fugir da Suíça. Creio
que você também leu isso, no telegrama.
— Eu os avisei — disse Lucien. — Alguém nos
denunciou, em Zurique, e a organização deu ordens para
que nos dispersássemos. Você acha que tenho chances
de escapar do Serviço Secreto suíço? Andei distribuindo
panfletos entre os camponeses de origem germânica e...
— Se você pegar seu Alfa e partir agora mesmo, tem
chance de escapar. Mas talvez seja preso na Alemanha,
onde o povo continua fiel à Democracia. Cuidado, Lucien!
Você é alemão?
— Sim, de Zurique.
— E é casado?
— Não. E agora você já sabe que também não sou
acionista de nenhum banco. Todo o meu dinheiro vem da
“Spinne”*. Dinheiro que nossos pais depositaram há
tempos nos bancos da Suíça...

*Aranha em alemão. Organização secreta que


ajudou os nazistas a fugir para a Suíça em 1945, ao
término da Segunda Guerra Mundial.

— Não precisa dizer nada que o comprometa, Lucien.


Somos inimigos. Vá embora, antes que a polícia o agarre
também! Depois dos momentos de prazer que você me
proporcionou, eu sofreria muito se você fosse preso!
Pense bem, meu querido... e, se algum dia quiser deixar
de ser neonazista, sabe onde me encontrar...
O rapaz acenou, perturbado, e foi fazer as malas. Meia
hora depois, deixou o hotel, com lágrimas nos olhos, e
embarcou no Alfa, desaparecendo na direção de
Lausanne.
Deitada na cama da suíte, relembrando os bons
momentos, Brigitte também chorava. Por que a maldita
política tinha sempre que separar os seres humanos?

Depois do almoço, apanhou alguns papéis e pôs-se a


escrever a reportagem para o “Morning News”. Também
redigiu um relatório para a CIA (com cópia para a
Interpol), no qual revelava todos os detalhes do caso que
acabara de resolver. Não se esqueceu de informar a
Sureté sobre a ameaça que pairava sobre Lili d’Anvers,
pedindo para que o travesti fosse bem protegido, em sua
ida ao tribunal. Mas era duvidoso que os elementos da
quadrilha de Mr. Grogan pudessem fazer alguma coisa,
pois a destruição de seu QG levaria a polícia a agarrar
todos os remanescentes, na Suíça e na França. Aquele
ramo da Máfia, pelo menos, estava liquidado.
Só depois de entregar a reportagem e o relatório
cifrado na portaria do hotel, para que os mandassem
pelo correio, é que ela se lembrou de Simone. Correu ao
hall e ali o encontrou. O elegante rapaz estava sentado
num sofá, sorrindo languidamente para um hóspede alto
e musculoso, que se sentara ao lado dele. Brigitte
agarrou seu amigo por um braço e arrastou-o para fora
do hotel.
— Que está fazendo comigo? — protestou Simone. —
Que brutalidade!
— Vou raptá-lo — sorriu Brigitte. — Vamos jantar num
restaurante pitoresco de Lausanne e, depois, passear
pelos campos, à beira do lago. Mas vamos de trem!
— De trem? Como plebeus?
— Sim. É apenas meia hora, de Lausanne a Montreux.
Saltaremos perto dos Rochedos de Naye e passaremos a
noite ao ar livre. Acho que você é até certo ponto
recuperável, Simone!
— Ah, Brigitte! Não me tente, por favor!
Gastaram a noite passeando pelas aldeias vizinhas de
Lausanne — de Pully, Cully e Lutry até Montreux — e
foram se deitar na grama de Caux. Quando a madrugada
irrompia sobre a bela paisagem sonolenta, Brigitte não
pôde deixar de recitar os versos de Jean Graven, o poeta
suíço: “Dans le soir transparent, la flûte des moustiques
vibre comme la dard aigu de la clarté...”*

*“Dentro da noite transparente, a flauta dos


mosquitos vibra como dardo agudo da claridade.”

Mas o maior milagre não foi o da poesia, foi o do sexo.


Simone des Boulevards, há muito entusiasmado com a
beleza de sua companheira, acabou vencido pela sua
natureza, despertada num arroubo de paixão. E ele
cumpriu, fiel e carinhosamente, os seus deveres de
cavalheiro.
Ao menos por uma noite.

A SEGUIR: WHISKY 33

Digitalizado por Carlos Natali

Revisado por Savajo

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