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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLÓGICAS
CAMPUS XX – BRUMADO
Professora Patrícia Pina

DISCIPLINA: CONSTRUÇÃO DO SENTIDO NO TEXTO LITERÁRIO

MÓDULO 2: UNIDADES II E III

O LIRISMO BARROCO

I- Período: de 1580 (falecimento de Camões; Portugal passa ao domínio espanhol) a 1756 (fundação da Arcádia Lusitana).

II- Abordagem histórico-cultural

O século XVI, a partir de 1580, caracterizou-se pelo declínio da nação portuguesa que passou para o domínio
espanhol com a morte de D. Sebastião em Alcácer-Quibir. Em 1640 D. João IV assumiu o trono, ficando o processo de
independência conhecido como “Restauração Portuguesa”.
Na Península Ibérica acentuou-se o movimento da Contra-reforma, onde o absolutismo monárquico aliou-se à
repressão inquisitorial. A Companhia de Jesus teve grande importância no panorama cultural português, haja vista que o
principal representante do barroco foi o padre Jesuíta Antonio Vieira. O treino a que eram submetidos os noviços da
Companhia é descrito por J. Lúcio de Azevedo:

“O neófito pertence em corpo e alma à Companhia; nenhum ato que não esteja regulado pelos superiores,
nenhum pensamento que não seja por eles sugerido ou perscrutado... Do romper do sol à hora do anoitecer,
todos os momentos têm sua ocupação prevista; (...) nada mais que a técnica da pregação da catequese, da
escola, e os três ramos em que se divide a missão jesuítica. Diariamente exercícios de memória, com textos
decorados do Antigo e Novo Testamento; e os de declamação, que na língua da Companhia se
denominavam repetição dos tons, para as inflexões do púlpito. Instruções sobre o porte e ademanes, sobre
o andar, o riso, a voz, a posição das mãos, a direção do olhar, o modo de compor o vestido... (...) Inácio de
Loyola explica o que sejam os três graus da obediência: no primeiro subordina-se a vontade à do superior;
no segundo identifica-se com ela; no terceiro, e só aí esta obediência é perfeita, a identificação da vontade
acompanha a identificação do pensar”.
(CASTELLO, José Aderaldo. A Literatura Brasileira – Manifestações Literárias da Era
Colonial. S. Paulo : Cultrix)

Portugal mergulhou num clima de abatimento e pessimismo, voltando-se para seu passado, suas raízes. Isso originou
a exaltação patriótica que, aliada ao misticismo, adquiriu em Portugal feições proféticas e messiânicas (sebastianismo),
devido principalmente à dependência política. Presente a todo o momento estava a atmosfera religiosa, onde lendas e
milagres narravam a origem divina da nação portuguesa.

III- Conceito:

Etimologicamente barroco designa uma pérola de forma irregular, sendo a “expressão artística e literária de um
sentimento de desequilíbrio, de frustração e instabilidade relacionáveis com a repressão” (SARAIVA, Antônio José &
LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa).

IV- Características:

- Cultismo (culteranismo ou gongorismo): volta-se para o encanto dos sentidos, com predomínio da sugestão por imagens
de ordem sensorial; o cultivo da descrição da forma através de um exagero ornamental que sobrecarrega a expressão
verbal. Emprego de neologismos, antíteses, hipérbatos, metáforas, abuso de aliterações, paranomásias (semelhança
sonora ou gráfica entre palavras de sentidos diferentes), trocadilhos;
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- Conceptismo (conceptualismo): busca a definição do Ser, objetivando o deleite do espírito e da inteligência, através de
uma atitude de análise que visa manifestar um juízo conceitual, contendo, necessariamente, elementos racionais,
discursivos, associações engenhosas de conceitos, buscando equivalência entre objetos ou vocábulos. Emprego de
neologismos, antíteses, paradoxos, jogo de palavras.

Traço comum a conceptistas e cultistas: fugir à clareza.

- o “engenho”: faculdade de encontrar semelhanças em coisas dessemelhantes, revelar a coincidência dos aparentes
opostos, a analogia dos contrastes; emprego de símiles, comparações (semelhança), antíteses e paradoxos (contraste). A
metáfora e o oxímoro intensificam esta noção, levando à superação dos extremos (fusionismo);

- contrastes postos em tensão: razão/fé, céu/terra, realidade/utopia, ascetismo/mundaneidade, etc., o que reflete o
constante conflito interior fruto de convicções contrárias (corpo/espírito). O homem é um animal religioso;

- o “docere” (a serenidade) e o “delectare” (o divertimento acidental). Houve o predomínio do ludismo gratuito, dos
jogos de palavras e de agudezas conceptuais, embora aparecessem também páginas doutrinais, sermões, etc. A realidade
é percebida de forma pictórica e em profundidade, fruto de uma extrema sensibilidade ótica;

- desenvolvimento paradoxal dos estados de alma hiperbolicamente contraditórios (razão/coração); descoberta do conflito
interior na alma do homem;

- formalismo, virtuosismo técnico, a arte pela arte;

- o belo (na figura humana, nas paisagens, coisas, etc.) e o horrendo (nos seres e fatos grotescos; sórdidos, disformes):
cantam a “gentil Senhora” da “presença bela, angélica figura” e a bela cigana vagabunda, a bela desdentada, os defeitos
físicos, as cenas cruéis e sanguinolentas;

- A religiosidade e o erotismo; em Maria Madalena associam-se a sedução do mundo e o apelo do céu. A mulher é
sedutora e apetecível em sua carnalidade e o amor é visto como gozo dos sentidos;

- A fugacidade e a ilusão da vida e das coisas mundanas, de motivação religiosa, mostram ao homem como tudo é vão,
numa feição de angustioso desencanto;

- A metamorfose e a inconstância (as mudanças) expressam-se através de símbolos como a água e a espuma, o vento, a
nuvem, a chama, a ave, etc. – elementos instáveis e efêmeros, ondeantes e fugidios;

- A morte, expressão suprema da efemeridade, é presença obsessiva e teatral no barroco.

V- Representantes na poesia:.
Bento Teixeira, Botelho de Oliveira, Frei Manuel de Santa Maria (Frei Itaparica), Gregório de Matos

VI – Representantes na prosa:
Antônio Vieira

POEMAS BARROCOS “BRASILEIROS”


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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Prosopopéia, de Bento Teixeira
Texto-fonte:
Revista de História de Pernambuco, ano I, no. 1, 1927, Recife.
versão eletrônica: CG Produções
Índice
Prólogo
Narração
Descripção do Recife de Paranambuco
Epílogo
Soneto per ecos, ao mesmo Senhor Jorge d’Albuquerque Coelho

PRÓLOGO
Dirigido a Jorge d’Albuquerque Coelho, Capitão e Governador da Capitania de Paranambuco, das partes do Brasil da Nova
Lusitânia, etc.
Se é verdade o que diz Horácio que Poetas e Pintores estão no mesmo predicamento; e estes pera pintarem perfeitamente
uma Imagem, primeiro na lisa távoa fazem riscunho, pera depois irem pintando os membros dela extensamente, até
realçarem as tintas, e ela ficar na fineza de sua perfeição; assim eu, querendo dibuxar com obstardo pinzel de meu engenho a
viva Imagem da vida e feitos memoráveis de vossa mercê, quis primeiro fazer este riscunho, pera depois, sendo-me
concedido por vossa mercê, ir mui particularmente pintando os membros desta Imagem, se não me faltar a tinta do favor de
vossa mercê, a quem peço, humildemente, receba minhas Rimas, por serem as primícias com que tento servi-lo. E porque
entendo que as aceitará com aquela benevolência e brandura natural, que custuma, respeitando mais a pureza do ânimo que
a vileza do presente, não me fica mais que desejar, se não ver a vida de vossa mercê augmentada e estado prosperado, como
todos os seus súbditos desejamos.
Beija as mãos de vossa mercê: (Bento Teixeira)
Seu vassalo.
Dirigida a Jorge d’Albuquerque Coelho,
Capitão e Governador
de Peranambuco, Nova Lusitânia, etc.

I que tal invocação é vão estudo;


Cantem Poetas o Poder Romano, Aquele chamo só, de quem espero
Sobmetendo Nações ao jugo duro; A vida que se espera em fim de tudo.
O Mantuano pinte o Rei Troiano, Ele fará meu Verso tão sincero,
Descendo à confusão do Reino escuro; Quanto fora sem ele tosco e rudo,
Que eu canto um Albuquerque soberano, Que per rezão negar não deve o menos
Da Fé, da cara Pátria firme muro, Quem deu o mais a míseros terrenos.
Cujo valor e ser, que o Ceo lhe inspira,
Pode estancar a Lácia e Grega lira.
III
E vós, sublime Jorge, em quem se esmalta
II A Estirpe d'Albuquerques excelente,
As Délficas irmãs chamar não quero, E cujo eco da fama corre e salta
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Do Cauro Glacial à Zona ardente, VIII


Suspendei por agora a mente alta Tudo estava quieto e sossegado,
Dos casos vários da Olindesa gente, Só com as flores Zéfiro brincava,
E vereis vosso irmão e vós supremo E da vária fineza namorado,
No valor abater Querino e Remo. De quando em quando o respirar firmava
Até que sua dor, d’amor tocado,
Per antre folha e folha declarava.
IV As doces Aves nos pendentes ninhos
Vereis um sinil ânimo arriscado Cubriam com as asas seus filhinhos.
A trances e conflictos temerosos,
E seu raro valor executado
Em corpos Luteranos vigurosos. IX
Vereis seu Estandarte derribado As luzentes Estrelas cintilavam,
Aos Católicos pés victoriosos, E no estanhado Mar resplandeciam,
Vereis em fim o garbo e alto brio Que, dado que no Ceo fixas estavam,
Do famoso Albuquerque vosso Tio. Estar no licor salso pareciam.
Este passo os sentidos comparavam
Àqueles que d’amor puro viviam,
V Que, estando de seu centro e fim absentes,
Mas em quanto Talia no se atreve, Com alma e com vontade estão presentes.
No Mar do valor vosso, abrir entrada,
Aspirai com favor a Barca leve
De minha Musa inculta e mal limada. X
Invocar vossa graça mais se deve Quando ao longo da praia, cuja area
Que toda a dos antigos celebrada, É de Marinhas aves estampada,
Porque ela me fará que participe E de encrespadas Conchas mil se arrea,
Doutro licor milhor que o de Aganipe. Assim de cor azul, como rosada,
Do mar cortando a prateada vea,
Vinha Tritão em cola duplicada,
VI Não lhe vi na cabeça casca posta
O marchetado Carro do seu Febo (Como Camões descreve) de Lagosta
Celebre o Sulmonês, com falsa pompa,
E a ruína cantando do mancebo,
Com importuna voz, os ares rompa. XI
Que, posto que do seu licor não bebo, Mas ô a Concha lisa e bem lavrada
À fama espero dar tão viva trompa, De rica Madrepérola trazia,
Que a grandeza de vossos feitos cante, e fino Coral crespo marchetada,
Com som que Ar, Fogo, Mar e Terra espante Cujo lavor o natural vencia.
Estava nela ao vivo debuxada
A cruel e espantosa bataria,
Que deu a temerária e cega gente
índice Aos Deoses do Ceo puro e reluzente.

XII
Um Búzio desigual e retrocido
Trazia por Trombeta sonorosa,
NARRAÇÃO De Pérolas e Aljôfar guarnecido,
Com obra mui subtil e curiosa.
VII Depois do Mar azul ter dividido,
A Lâmpada do Sol tinha encuberto, Se sentou nô a pedra Cavernosa,
Ao Mundo, sua luz serena e pura, E com as mãos limpando a cabeleira
E a irmã dos três nomes descuberto Da turtuosa cola fez cadeira.
A sua tersa e circular figura.
Lá do portal de Dite, sempre aberto,
Tinha chegado, com a noite escura, XIII
Morfeu, que com subtis e lentos passos Toca a Trobeta com crescido alento,
Atar vem dos mortais os membros lassos. Engrossa as veas, move os elementos,
E, rebramando os ares com o acento,
Penetra o vão dos infinitos assentos.
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Os Pólos que sustem o firmamento, O estanhado elemento se diriva


Abalados dos próprios fundamentos, Com tanta mansidão, que ô a fateixa
Fazem tremer a terra e Ceo jucundo, Basta ter à fatal Argos aneixa.
E Neptuno gemer no Mar profundo.

XIX
XIV Em o meio desta obra alpestre e dura,
O qual vindo da vã concavidade, ô a boca rompeo o Mar inchado,
Em Carro Triunfal, com seu tridente, Que, na língua dos bárbaros escura,
Traz tão soberba pompa e majestade, Paranambuco de todos ‚ chamado.
Quanta convém a Rei tão excelente. de Para’na, que é Mar; Puca, rotura,
Vem Oceano, pai de mor idade, Feita com fúria desse Mar salgado,
Com barba branca, com cerviz tremente: Que, sem no dirivar cometer míngua,
Vem Glauco, vem Nereu, Deoses Marinhos, Cova do Mar se chama em nossa língua.
Correm ligeros Focas e Golfinhos.

XX
XV Pera entrada da barra, à parte esquerda,
Vem o velho Proteu, que vaticina Está ua lajem grande e espaçosa,
(Se fé damos à velha antiguidade) Que de Piratas fora total perda,
Os males a que a sorte nos destina, Se ô a torre tivera sumptuosa.
Nascidos da mortal temeridade. Mas quem por seus serviços bons não herda
Vem numa e noutra forma peregrina, Desgosta de fazer cousa lustrosa,
Mudando a natural propriedade. Que a condição do Rei que não é franco
Não troque a forma, venha confiado, O vassalo faz ser nas obras manco.
Se não quer de Aristeu ser sojigado.

XXI
XVI Sendo os Deoses à lajem já chegados,
Tétis, que em ser fermosa se recrea, Estando o vento em calma, o Mar quieto,
Traz das Ninfas o coro brando e doce : Depois de estarem todos sossegados,
Clímene, Efire, Ópis, Panopea, Per mandado do Rei e per decreto,
Com Béroe, Talia, Cimodoce; Proteu, no Ceo cos olhos enlevados,
Drimo, Xanto, Licórias, Deiopea, Como que invistigava alto secreto,
Aretusa, Cidipe, Filodoce, Com voz bem entoada e bom meneio,
Com Eristea, Espio, Semideas, Ao profundo silêncio larga o freio.
Após as quais, cantando, vem Sereas.

XXII
"Pelos ares retumbe o grave acento
DESCRIPÇÃO DO RECIFE DE PARANAMBUCO De minha rouca voz, confusa e lenta,
Qual torvão espantoso e violento
De repentina e hórrida tormenta;
XVII Ao Rio de Aqueronte turbulento,
Pera a parte do Sul, onde a pequena Que em sulfúreas burbulhas arrebenta,
Ursa se vê de guardas rodeada, Passe com tal vigor, que imprima espanto
Onde o Ceo luminoso mais serena Em Minos riguroso e Radamanto.
Tem sua influïção, e temperada;
Junto da Nova Lusitânia ordena
A natureza, mãe bem atentada, XXIII
Um porto tão quieto e tão seguro, De lanças e d’escudos encantados
Que pera as curvas Naus serve de muro. Não tratarei em numerosa Rima,
Mais de Barões Ilustres afamados,
Mais que quantos a Musa não sublima.
XVIII Seus heróicos feitos extremados
É este porto tal, por estar posta Afinarão a dissoante prima,
Uma cinta de pedra, inculta e viva, Que não é muito tão gentil subjeito
Ao longo da soberba e larga costa, Suplir com seus quilates meu defeito.
Onde quebra Neptuno a fúria esquiva.
Antre a praia e pedra descomposta,
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XXIV Estes se isentarão da cruel sorte,


Não quero no meu Canto algua ajuda Eclipsando o nome … Romana gente,
Das nove moradoras de Parnaso, De modo que esquecida a fama velha
Nem matéria tão alta quer que aluda Façam arcar ao mundo a sobrancelha.
Nada ao essencial deste meu caso.
Porque, dado que a forma se me muda,
Em falar a verdade serei raso, XXX
Que assim convém fazê-lo quem escreve, O Princípio de sua Primavera
Se à justiça quer dar o que se deve. Gastarão seu destricto dilatando,
Os bárbaros cruéis e gente Austera,
Com meio singular, domesticando.
XXV E primeiro que a espada lisa e fera
A fama dos antigos coa moderna Arranquem, com mil meios d’amor brando,
Fica perdendo o preço sublimado: Pretenderão tirá-la de seu erro,
A façanha cruel, que a turva Lerna E senão porão tudo a fogo e ferro.
Espanta com estrondo d’arco armado:
O cão de três gargantas, que na eterna
Confusão infernal está fechado, XXXI
Não louve o braço de Hércules Tebano. Os braços vigorosos e constantes
Pois procede Albuquerque soberano. Fenderão peitos, abrirão costados,
Deixando de mil membros palpitantes
Caminhos, arraiais, campos juncados;
XXVI Cercas soberbas, fortes repugnantes
Vejo (diz o bom velho) que, na mente, Serão dos novos Martes arrasados,
O tempo de Saturno renovado, Sem ficar deles todos mais memória
E a opulenta Olinda florescente Que a qu’eu fazendo vou em esta História.
Chegar ao cume do supremo estado.
Ser de fera e belicosa gente
O seu largo destricto povoado; XXXII
Por nome ter Nova Lusitânia, Quais dous soberbos Rios espumosos,
Das Leis isenta da fatal insânia. Que, de montes altíssimos manando,
Em Tétis de meter-se desejosos,
Vem com fúria crescida murmurando,
XXVII E nas partes que passam furiosos
As rédeas ter desta Lusitânia Vem árvores e troncos arrancando,
O grão Duarte, valeroso e claro, Tal Jorge d’Albuquerque e o grão Duarte
Coelho por cognome, que a insânia Farão destruição em toda a parte.
Reprimir dos seus, com saber raro.
Outro Troiano Pio, que em Dardânia
Os Penates livrou e o padre caro; XXXIII
Um Públio Cipião, na continência; Aquele branco Cisne venerando,
Outro Nestor e Fábio, na prudência. Que nova fama quer o Ceo que merque,
E me está com seus feitos provocando,
Que dele cante e sobre ele alterque;
XXVIII Aquele que na Idea estou pintando,
O braço invicto vejo com que amansa Hierônimo sublime d’Albuquerque
A dura cerviz bárbara insolente, Se diz, cuja invenção, cujo artifício
Instruindo na Fé, dando esperança Aos bárbaros dar total exício.
Do bem que sempre dura e ‚ presente;
Eu vejo co rigor da tesa lança
Acossar o Francês, impaciente XXXIV
De lhe ver alcançar ua victória Deste, como de Tronco florescente,
Tão capaz e tão digna de memória. Nascerão muitos ramos, que esperança
Prometerão a todos geralmente
De nos berços do Sol pregar a lança.
XXIX Mas, quando virem que do Rei potente
Ter o varão Ilustre da consorte, O pai por seus serviços não alcança
Dona Beatriz, preclara e excelente, O galardão devido e glória digna,
Dous filhos, de valor e d’alta sorte.
Cada qual a seu Tronco respondente.
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Ficarão nos alpendres da Piscina. É impossível ser nenhum que canta


Proezas de valor e glória tanta.

XXXV XLI
Ó sorte tão cruel, como mudável, Uô a cousa me faz dificuldade
Por que usurpas aos bons o seu direito? E o esprito profético me cansa,
Escolhes sempre o mais abominável, A qual é ter no vulgo autoridade
Reprovas e abominas o perfeito, Só aquilo a que sua força alcança.
O menos digno fazes agradável, Mas, se é um caso raro, ou novidade
O agradável mais, menos aceito. Das que, de tempo em tempo, o tempo lança,
Ó frágil, inconstante, quebradiça, Tal crédito lhe dão, que me lastima
Roubadora dos bens e da justiça! Ver a verdade o pouco que se estima."

XXXVI XLII
Não tens poder algum, se houver prudência; E prosseguindo (diz: "que Sol luzente
Não tens Império algum, nem Majestade; Vem d’ouro as brancas nuvens perfilando,
Mas a mortal cigueira e a demência Que está com braço indômito e valente
Co título te honrou de Deïdade. A fama dos antigos eclipsando;
O sábio tem domínio na influência Em quem o esforço todo juntamente
Celeste e na potência da vontade, Se está como em seu centro tresladando?
E se o fim não alcança desejado, É Jorge d'Albuquerque mais invicto
É por não ser o meio acomodado. Que o que desceo ao Reino de Cocito.

XXXVII XLIII
Este meio faltará ao velho invicto, Depois de ter o Bárbaro difuso
Mas não cometerá nenhum defeito, E roto, as portas fechar de Jano,
Que o seu calificado e alto esprito Por vir ao Reino do valente Luso
Lhe fará a quanto deve ter respeito. E tentar a fortuna do Oceano."
Aqui Balisário, e Pacheco aflicto, Um pouco aqui Proteu, como confuso,
Cerra com ele o número perfeito. Estava receando o grave dano,
Sobre os três, ô a dúvida se excita: Que havia de acrescer ao claro Herói
Qual foi mais, se o esforço, se a desdita? No Reino aonde vive Cimotoe.

XXXVIII XLIV
Foi o filho de Anquises, foi Acates, "Sei mui certo do fado (prosseguia)
À região do Caos litigioso, Que trará o Lusitano por designo
Com ramo d’ouro fino e de quilates, Escurecer o esforço e valentia
Chegando ao campo Elíseo deleitoso. Do braço Assírio, Grego e do Latino.
Quão mal, por falta deste, a muitos trates Mas este pressuposto e fantasia
(Ó sorte!) neste tempo trabalhoso, Lhe tirará de enveja o seu destino,
Bem claro no-lo mostra a experiência Que conjurando com os Elementos
Em poder mais que a justiça a aderência. Abalará do Mar os fundamentos.

XXXIX XLV
Mas deixando (dizia) ao tempo avaro Porque Lémnio cruel, de quem descende
Cousas que Deos eterno e ele cura, A Bárbara progênie e insolência,
E tornando ao Preságio novo e raro, Vendo que o Albuquerque tanto ofende
Que na parte mental se me figura, Gente que dele tem a descendência,
De Jorge d’Albuquerque, forte e claro, Com mil meos ilícitos pretende
A despeito direi da enveja pura, Fazer irreparável resistência
Pera o qual monta pouco a culta Musa, Ao claro Jorge, baroil e forte,
Que Meónio em louvar Aquiles usa. Em quem não dominava a vária sorte.

XL XLVI
Bem sei que, se seus feitos não sublimo, Na parte mais secreta da memória,
É roubo que 1he faço mui notável; Terá mui escripta. impressa e estampada
Se o faço como devo, sei que imprimo Aquela triste e maranhada História,
Escândalo no vulgo variável. Com Marte, sobre Vênus celebrada.
Mas o dente de Zoilo, nem Minimo, Verá que seu primor e clara glória
Estimo muito pouco, que agradável Há de ficar em Lete sepultada,
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Se o braço Português victória alcança Não sabe que meu ser ao seu precede,
Da nação que tem nele confiança. E que prendê-lo posso noutra rede?

XLVII LIII
E com rosto cruel e furibundo, Mas seu intento não porá no fito,
Dos encovados olhos cintilando, Por mais que contra mim o Ceo conjure,
Férvido, impaciente, pelo mundo Que tudo tem em fim termo finito,
Andará estas palavras derramando": E o tempo não há cousa que não cure.
- Pôde Nictélio só no Mar profundo Moverei de Neptuno o grão districto
Sorver as Naus Meónias navegando, Pera que meu partido mais segure,
Não sendo mor Senhor, nem mais possante E quero ver no fim desta jornada
Nem filho mais mimoso do Tonante? Se val a Marte escudo, lança, espada.

XLVIII LIV
E pôde Juno andar tantos enganos, "Estas palavras tais, do cruel peito,
Sem razão, contra Tróia maquinando, Soltará dos Ciclopes o tirano,
E fazer que o Rei justo dos Troianos As quais procurará pôr em efeito,
Andasse tanto tempo o Mar sulcando? Às cavernas descendo do Oceano.
E que vindo no cabo de dez anos, E com mostras d’amor brando e aceito,
De Cila e de Caríbdis escapando, De ti, Neptuno claro e soberano,
Chegasse à desejada e nova terra, Alcançará seu fim: o novo jogo,
E co Latino Rei tivesse guerra? Entrar no Reino d’Água o Rei do fogo.

XLIX LV
E pôde Palas subverter no Ponto Logo da Pátria Eólia virão ventos,
O filho de Oileu per causa leve? Todos como esquadrão mui bem formado,
Tentar outros casos que não conto Euro, Noto os Marítimos assentos
Por me não dar lugar o tempo breve? Terão com seu furor demasiado.
E que eu por mil razões, que não aponto, Fará natura vários movimentos,
A quem do fado a lei render se deve, O seu Caos repetindo já passado,
Do que tenho tentado já desista, De sorte que os varões fortes e válidos
E a gente Lusitana me resista? De medo mostrarão os rostos pálidos.

L LVI
Eu por ventura sou Deus indigete, Se Jorge d’Albuquerque soberano,
Nascido da progênie dos humanos, Com peito juvenil, nunca domado,
Ou não entro no número dos sete, Vencerá da Fortuna e Mar insano
Celestes, imortais e soberanos? A braveza e rigor inopinado,
A quarta Esfera a mim não se comete? Mil vezes o Argonauta desumano,
Não tenho em meu poder os Centimanos? Da sede e cruel fome estimulado,
Jove não tem o Ceo? O Mar, Tridente? Urdirá aos consortes morte dura,
Plutão, o Reino da danada gente? Pera dar-lhes no ventre sepultura.

LI LVII
Em preço, ser, valor, ou em nobreza, E vendo o Capitão calificado
Qual dos supremos é mais qu’eu altivo? Empresa tão cruel e tão inica,
Se Neptuno do Mar tem a braveza, Per meio mui secreto, acomodado,
Eu tenho a região do fogo activo. Dela como convém se certifica.
Se Dite aflige as almas com crueza, E, dô a graça natural ornado,
E vós, Ciclopes três, com fogo vivo, Os peitos alterados edifica,
Se os raios vibra Jove, irado e fero, Vencendo, com Tuliana eloqüência,
Eu na forja do monte lhos tempero. Do modo que direi, tanta demência."

LII LVIII
E com ser de tão alta Majestade, - Companheiros leais, a quem no Coro
Não me sabem guardar nenhum respeito? Das Musas tem a fama entronizado,
E um povo tão pequeno em quantidade Não deveis ignorar, que não ignoro,
Tantas batalhas vence a meu despeito? Os trabalhos que haveis no Mar passado.
E que seja agressor de tal maldade Respondestes ‘te ‘gora com o foro,
O adúltero lascivo do meu leito? Devido a nosso Luso celebrado,
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Mostrando-vos mais firmes contra a sorte Cousa que a natureza e lei empede,
Do que ela contra nós se mostra forte. E escassamente às Feras só concede.

LIX LXV
Vós de Cila e Caríbdis escapando, Mas primeiro crerei que houve Gigantes
De mil baixos e sirtes arenosas, De cem mãos, e da Mãe Terra gerados,
Vindes num lenho côncavo cortando E Quimeras ardentes e flamantes,
As inquietas ondas espumosas. Com outros feros monstros encantados;
Da fome e da sede o rigor passando, Primeiro que de peitos tão constantes
E outras faltas em fim dificultosas, Veja sair efeitos reprovados,
Convém-vos aquirir ô a força nova, Que não podem (falando simplesmente)
Que o fim as cousas examina e prova. Nascer trevas da luz resplandecente.

LX LXVI
Olhai o grande gozo e doce glória E se determinais a cega fúria
Que tereis quando, postos em descanso, Executar de tão feroz intento,
Contardes esta larga e triste história, A mim fazei o mal, a mim a injúria,
Junto do pátrio lar, seguro e manso. Fiquem livres os mais de tal tormento.
Que vai da batalha a ter victória, Mas o Senhor que assiste na alta Cúria
O que do Mar inchado a um remanso, Um mal atalhará tão violento,
Isso então haverá de vosso estado Dando-nos brando Mar, vento galerno,
Aos males que tiverdes já passado. Com que vamos no Minho entrar paterno.

LXI LXVII
Per perigos cruéis, per casos vários, "Tais palavras do peito seu magnânimo
Hemos d’entrar no porto Lusitano, Lançará o Albuquerque famosíssimo,
E suposto que temos mil contrários Do soldado remisso e pusilânimo,
Que se parcialidam com Vulcano, Fazendo com tal práctica fortíssimo.
De nossa parte os meios ordinários E assim todos concordes, e num ânimo,
Não faltem, que não falta o Soberano, Vencerão o furor do Mar bravíssimo,
Poupai-vos pera a próspera fortuna, Até que já a Fortuna, d’enfadada,
E, adversa, não temais por importuna. Chegar os deixe a Pátria desejada.

LXII LXVIII
Os heróicos feitos dos antigos À Cidade de Ulisses destroçados
Tende vivos e impressos na memória: Chegarão da Fortuna e Reino salso,
Ali vereis esforço nos perigos, Os Templos visitando Consagrados,
Ali ordem na paz, digna de glória. Em procissão, e cada qual descalço.
Ali, com dura morte de inimigos, Desta maneira ficarão frustrados
Feita imortal a vida transitória, Os pensamentos vãos de Lémnio falso,
Ali, no mor quilate de fineza, Que o mau tirar não pode o benefício
Vereis aposentada a Fortaleza. Que ao bom tem prometido o Ceo propício.

LXIII LXIX
Agora escurecer quereis o raio Neste tempo Sebasto Lusitano,
Destes Barões tão claros e eminentes, Rei que domina as águas do grão Douro,
Tentando dar princípio e dar ensaio Ao Reino passará do Mauritano,
A cousas temerárias e indecentes. E a lança tingirá em sangue Mouro;
Imprimem neste Peito tal desmaio O famoso Albuquerque, mais ufano
Tão graves e terríbeis acidentes Que Iason na conquista do veo d’ouro,
Que a dor crescida as forças me quebranta, E seu Irmão, Duarte valeroso,
E se pega a voz débil à garganta. Irão co Rei altivo, Imperioso.

LXIV LXX
De que servem proezas e façanhas, Nô a Nau, mais que Pístris, e Centauro,
E tentar o rigor da sorte dura? E que Argos venturosa celebrada,
Que aproveita correr terras estranhas, Partirão a ganhar o verde Lauro
Pois faz um torpe fim a fama escura? À região da secta reprovada.
Que mais torpe que ver uas entranhas E depois de chegar ao Reino Mauro,
Humanas dar a humanos sepultura, Os dous irmãos, com lança e com espada,
10

Farão nos Agarenos mais estrago A vós, nunca cansado, mas ferido,
Do que em Romanos fez o de Cartago. Salvai em este meu a vossa vida,
Que a minha pouco vai em ser perdida.
LXXI
Mas, ah! ínvida sorte, quão incertos LXXVII
São teus bens e quão certas as mudanças; Em vós do Luso Reino a confiança
Quão brevemente cortas os enxertos Estriba, como em base só, fortíssimo;
A ô as mal nascidas esperanças. Com vós ficardes vivo, segurança
Nos mais riscosos trances, nos apertos, Lhe resta de ser sempre florentíssimo.
Antre mortais pelouros, antre lanças, Antre duros farpões e Maura lança,
Prometes triunfal palma e victória, Deixai este vassalo fidelíssimo,
Pera tirar no fim a fama, a glória. Que ele fará por vós mais que Zopiro
Por Dario, até dar final suspiro.
LXXII
Assim sucederá nesta batalha LXXVIII
Ao mal afortunado Rei ufano, "Assim dirá o Herói, e com destreza
A quem não valerá provada malha, Deixará o genete velocíssimo,
Nem escudo d’obreiros de Vulcano. E a seu Rei o dará: Ó Portuguesa
Porque no tempo que ele mais trabalha Lealdade do tempo florentíssimo!
Victória conseguir do Mauritano O Rei Promete, se de tal empresa
Num momento se vê cego e confuso, Sai vivo, o fará senhor grandíssimo,
E com seu esquadrão roto e difuso". Mas ‘te nisto lhe será avara a sorte,
Pois tudo cubrirá com sombra a morte.
LXXIII
Anteparou aqui Proteu, mudando LXXIX
As cores e figura monstruosa, Com lágrimas d’amor e de brandura,
No gesto e movimento seu mostrando De seu Senhor querido ali se espede,
Ser o que há de dizer cousa espantosa. E que a vida importante e mal segura
E com nova eficácia começando Assegurasse bem, muito lhe pede,
A soltar a voz alta e vigorosa, Torna à batalha sanguinosa e dura,
Estas palavras tais tira do peito, O esquadrão rompe dos de Mafamede,
Que é cofre de profético conceito: Lastima, fere, corta, fende, mata,
Decepa, apouca, assola, desbarata.
LXXIV
"Antre armas desiguais, antre tambores LXXX
De som confuso, rouco e redobrado, Com força não domada e alto brio,
Antre cavalos bravos corredores, Em sangue Mouro todo já banhado,
Antre a fúria do pó, que é salitrado; Do seu vendo correr um caudal Rio,
Antre sanha, furor, antre clamores, De giolhos se pôs, debilitado.
Antre tumulto cego e desmandado, Ali dando a mortais golpes desvio,
Antre nuvens de setas Mauritanas, De feridas medonhas trespassado,
Andará o Rei das gentes Lusitanas. Será captivo, e da proterva gente
Maniatado em fim mui cruelmente.
LXXV
No animal de Neptuno, já cansado LXXXI
Do prolixo combate, e mal ferido, Mas adonde me leva o pensamento?
Será visto por Jorge sublimado, Bem parece que sou caduco e velho,
Andando quási fora de sentido. Pois sepulto no Mar do esquecimento
O que vendo o grande Albuquerque ousado, A Duarte sem par, dicto Coelho.
De tão trágico passo condoído, Aqui mister havia um novo alento
Ao peito fogo dando, aos olhos água, Do Poder Divinal e alto Conselho,
Tais palavras dirá, tintas em magoa": Porque não hai quem feitos tais presuma
A termo reduzir e breve suma.

LXXVI LXXXII
- Tão infelice Rei, como esforçado, Mas se o Ceo transparente e alta Cúria
Com lágrimas de tantos tão pedido, Me for tão favorável, como espero,
Com lágrimas de tantos alcançado, Com voz sonora, com crescida fúria,
Com lágrimas do Reino, em fim perdido. Hei de cantar Duarte e Jorge fero.
Vejo-vos co cavalo já cansado, Quero livrar do tempo e sua injúria
11

Estes claros irmãos, que tanto quero, O caminho mais recto e proveitoso,
Mas, tornando outra vez a triste História, Fará que num momento abreviado
Um caso direi digno de memória. Seja captivo, preso e mal tratado.

LXXXIII LXXXIX
Andava o novo Marte destruindo Eis ambos os irmãos em captiveiro.
Os esquadrões soberbos Mauritanos, De Peitos tão protervos e obstinados,
Quando sem tino algum viu ir fugindo Por cópia inumerável de dinheiro
Os tímedos e lassos Lusitanos. Serão (segundo vejo) resgatados.
O que de Pura mágoa não sufrindo Mas o resgate e preço verdadeiro,
Lhe diz"; - Donde vos is, homens insanos? Por quem os homens foram libertados,
Que digo: homens, estátuas sem sentido, Chamará neste tempo o grão Duarte,
Pois não sentis o bem que haveis perdido? Pera no claro Olimpo lhe dar parte.

LXXXIV XC
Olhai aquele esforço antigo e puro Ó Alma tão ditosa como pura,
Dos ínclitos e fortes Lusitanos, Parte a gozar dos dotes dessa glória,
Da Pátria e liberdade um firme muro Donde terás a vida tão segura,
Verdugo de arrogantes Mauritanos; Quanto tem de mudança a transitória!
Exemplo singular pera o futuro Goza lá dessa luz que sempre dura;
Dictado, e resplandor de nossos anos, No mundo gozarás da larga história,
Subjeito mui capaz, matéria digna Ficando no lustroso e rico Templo
Da Mantuana e Homérica Buzina. Da Ninfa Gigantea por exemplo.

LXXXV XCI
Ponde isto por espelho, por treslado, Mas, enquanto te dão a sepultura,
Nesta tão temerária e nova empresa. Contemplo a tua Olinda celebrada,
Nele vereis que tendes já manchado Cuberta de fúnebre vestidura,
De vossa descendência a fortaleza. Inculta, sem feição, descabelada.
À batalha tornai com peito ousado, Quero-a deixar chorar morte tão dura
Militai sem receo, nem fraqueza, ‘Té que seja de Jorge consolada,
Olhai que o torpe medo é Crocodilo Que por ti na Ulissea fica em pranto,
Que custuma, a quem foge, persegui-lo. Em quanto me disponho a novo Canto.

LXXXVI XCII
E se o dito a tornar vos não compele, Não mais, esprito meu, que estou cansado,
Vede donde deixais o Rei sublime? Deste difuso, largo e triste Canto,
Que conta haveis de dar ao Reino dele? Que o mais será de mim depois cantado
Que desculpa terá, tão grave crime? Per tal modo, que cause ao mundo espanto.
Quem haverá que por traição não sele Já no balcão do Ceo o seu toucado
Um mal que tanto mal no mundo imprime? Solta Vênus, mostrando o rosto Sancto;
Tornai, tornai, invictos Portugueses, Eu tenho respondido co mandado
Cerceai malhas e fendei arneses. Que mandaste Neptuno sublimado".

LXXXVII XCIII
"Assim dirá: mas eles sem respeito Assim diz; e com alta Majestade
À honra e ser de seus antepassados O Rei do Salso Reino, ali falando,
Com pálido temor no frio peito, Diz: - Em satisfação da tempestade
Irão per várias partes derramados. Que mandei a Albuquerque venerando,
Duarte, vendo neles tal defeito, Pretendo que a mortal Posteridade
Lhe dirá": - Corações efeminados, Com Himnos o ande sempre sublimando,
Lá contareis aos vivos o que vistes, Quando vir que por ti o foi primeiro,
Porque eu direi aos mortos que fugistes. Com fatídico esprito verdadeiro.

LXXXVIII
"Neste passo carrega a Maura força
Sobre o Barão insigne e velicoso; EPÍLOGO
Ele, onde vê mais força, ali se esforça,
Mostrando-se no fim mais animoso. XCIV
Mas o fado, que quer que a razão torça. Aqui deu [fim] a tudo, e brevemente
12

Entra no Carro [de] Cristal lustroso; Pera mais Perfeição da Musa minha.
Após dele a demais Cerúlea gente
Cortando a vea vai do Reino acoso.
Eu que a tal espetáculo presente -FIM-
Estive, quis em Verso numeroso
Escrevê-lo por ver que assim convinha

Descrição da Ilha de Itaparica, IV


Termo da Cidade da Bahia, de Frei Manuel de Santa Em o Brasil, Província desejada
Rita Itaparica Pelo metal luzente, que em si cria,
Texto de referência: Que antigamente descoberta e achada
Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial, Foi de Cabral, que os mares discorria,
organização de Sérgio Buarque de Holanda, Perto donde está hoje situada
São Paulo: Editora Perspectiva, 1979. A opulenta e ilustríssima Bahia,
Editoração eletrônica: Jaz a ilha chamada Itaparica,
José Leonardo Sousa Buzelli A qual no nome tem também ser rica.

V
Está posta bem defronte da Cidade,
Só três léguas distante e os moradores
Descrição da Ilha de Itaparica, Termo da Cidade da Daquela a esta vêm com brevidade,
Bahia Se não faltam do Zéfiro os favores;
E ainda quando com ferocidade
Éolo está mostrando os seus rigores,
Canto Heróico Para a Côrte navegam, sem que cessem,
E parece que os ventos lhe obedecem.

VI
I Por uma e outra parte rodeada
Cantar procuro, descrever intento, De Netuno se vê tão arrogante,
Em um Heróico verso e sonoroso, Que algumas vezes com porcela irada
Aquela que me deu o nascimento, Enfia o melancólico semblante;
Pátria feliz, que tive por ditoso: E com a tem por sua, e tão amada,
Ao menos co'este humilde rendimento Por lhe pagar fiel foros de amante,
Quero mostrar lhe sou afetuoso, Muitas vezes também serenamente
Porque é de ânimo vil e fementido Tem encostado nela o seu Tridente.
O que à Pátria não é agradecido.
VII
II Se a Deusa Citeréia conhecera
Se nasceste no Ponto, ou Líbia ardente, Desta Ilha celebrada a formosura,
Se no Píndaro viste a aura primeira, Eu fico que a Netuno prometera
Se nos Alpes, ou Etna comburente, O que a outros negou cruel e dura:
Princípio houveste na vital carreira, Então de boa mente lhe oferecera
Nunca queiras, Leitor, ser delinqüente, Entre incêndios de fogo a neve pura,
Negando a tua Pátria verdadeira, E se de alguma sorte a alcançara,
Que assim mostras herdaste venturoso Por esta a sua Chipre desprezara.
Ânimo heróico, peito generoso.
VIII
III Pela costa do mar a branca areia
Musa, que no florido de meus anos É para a vista objeto delicioso,
Teu furor tantas vezes me inspiraste, Onde passeia a Ninfa Galatéia
E na idade em que vêm os desenganos Com acompanhamento numeroso;
Também sempre fiel me acompanhaste, E quanto mais galante se recreia
Tu, que influxos repartes soberanos Com aspecto gentil, donaire airoso,
Desse monte Hélicon, que já pisaste, Começa a semear das roupas belas
Agora me concede o que te peço, Conchinhas brancas, ruivas e amarelas.
Para seguir seguro o que começo.
IX
13

Aqui se cria o peixe copioso, Os camarões não fiquem esquecidos,


E os vastos pescadores em saveiros Que tendo crus a cor pouco vistosa,
Não receando o Elemento undoso, Logo vestem depois que são cozidos
Neste exercício estão dias inteiros; A cor do nácar, ou da Tíria rosa:
E quando Áquilo e Bóreas proceloso Os c'ranguejos nos mangues escondidos
Com fúria os acomete, eles ligeiros Se mariscam sem arte industriosa,
Colhendo as velas brancas, ou vermelhas, Búzios também se vêem, de musgos sujos,
Se acomodam cos remos em parelhas. Cernambis, mexilhões e caramujos.

X XVI
Neste porém marítimo regalo Também pertence aqui dizer ousado
Uns as redes estendem diligentes, Daquele peixe, que entre a fauce escura
Outros com força, indústria e intervalo O Profeta tragou Jonas sagrado,
Estão batendo as ondas transparentes: Fazendo-lhe no ventre a sepultura;
Outros noutro baixel sem muito abalo Porém sendo do Altíssimo mandado,
Levantam cobiçosos e contentes O tornou a lançar são sem lesura
Uma rede, que chamam Zangareia, (Conforme nos afirma a Antigüidade)
Para os saltantes peixes forte teia. Em as praias de Nínive Cidade.

XI XVII
Qual aranha sagaz e ardilosa Monstro do mar, Gigante do profundo,
Nos ares forma com sutil fio Uma torre nas ondas soçobrada,
Um labirinto tal, que a cautelosa Que parece em todo o âmbito rotundo
Mosca nele ficou sem alvedrio, Jamais besta tão grande foi criada:
E assim com esta manha industriosa Os mares despedaça furibundo
Da mísera vem ter o senhorio, Co'a barbatana às vezes levantada,
Tais são com esta rede os pescadores Cujos membros tetérrimos e broncos
Para prender os mudos nadadores. Fazem a Tétis dar gemidos roncos.

XII XVIII
Outros também por modo diferente, Baleia vulgarmente lhe chamamos,
Tendo as redes lançadas em seu seio, Que como só a esta Ilha se Sujeita,
Nas coroas estão postos firmemente, Por isso de direito a não deixamos,
Sem que tenham o pélago receio: Por ser em tudo a descrição perfeita;
Cada qual puxa as cordas diligente, E que para bem claro percebamos
E os peixes vão fugindo para o meio, O como a pescaria dela é feita,
'Té que aos impulsos do robusto braço Quero dar com estudo não ocioso
Vêm a colher os míseros no laço. Esta breve notícia ao curioso.

XIII XIX
Nos baixos do mar outros tarrafando, Tanto que chega o tempo decretado,
Alerta a vista e os passos vagarosos, Que este peixe do vento Austro é movido,
Vão uns pequenos peixes apanhando, Estando à vista de Terra já chegado,
Que para o gosto são deliciosos: Cujos sinais Netuno dá ferido,
Em canoas também de quando em quando Em um porto desta Ilha assinalado,
Fisgam no anzol alguns, que por gulosos E de todo o preciso prevenido,
Ficam perdendo aqui as próprias vidas, Estão umas lanchas leves e veleiras,
Sem o exemplo quererem ter de Midas. Que fazem c'os remos mais ligeiras.

XIV XX
Aqui se acha o marisco saboroso, Os Nautas são Etíopes robustos,
Em grande cópia e de casta vária, E outros mais do sangue misturado,
Que para saciar ao apetitoso, Alguns Mestiços em a cor adustos,
Não se duvida é coisa necessária: Cada qual pelo esforço assinalado:
Também se cria o lagostim gostoso, Outro ali vai também, que sem ter sustos
Junto co'a ostra, que por ordinária Leva o arpão da corda pendurado,
Não é muito estimada, porém antes Também um, que no ofício a Glauco ofusca,
Em tudo cede aos polvos radiantes. E para isto Brásilo se busca.

XV XXI
14

Assim partem intrépidos sulcando Qual o ligeiro pássaro amarrado


Os palácios da linda Panopéia, Com um fio sutil, em cuja ponta
Com cuidado solícito vigiando Vai um papel pequeno pendurado,
Onde ressurge a sólida Baleia. Voa veloz sentindo aquela afronta,
Ó gente, que furor tão execrando E apenas o papel, que vai atado,
A um perigo tal se sentenceia? Se vê pela presteza, com que monta,
Como, pequeno bicho, és atrevido Tal o peixe afrntado vai correndo
Contra o monstro do mar mais destemido? Em seus membros atada a lancha tendo.

XXII XXVIII
Como não temes ser despedaçado Depois que com o curso dilatado
De um animal tão feio e tão imundo? Algum tanto já vai desfalecendo,
Por que queres ir ser precipitado Eles então com força e com cuidado
Nas íntimas entranhas do profundo? A corda pouco a pouco vão colhendo;
Não temes, se é que vives em pecado, E tanto que se sente mais chegado,
Que o Criador do Céu e deste Mundo, Ainda com fúria os mares combatendo,
Que tem dos mares todos o governo, Nos membros moles lhe abre uma rotura
Desse lago te mande ao lago Averno? Um novo Aquiles c'uma lança dura.

XXIII XXIX
Lá intentaram fortes os Gigantes De golpe sai de sangue uma espadana,
Subir soberbos ao Olimpo puro, Que vai tingindo o Oceano ambiente,
Acometeram outros de ignorantes Com o qual se quebranta a fúria insana
O Reino de Plutão horrendo e escuro; Daquele horrível peixe, ou besta ingente;
E se estes atrevidos e arrogantes E sem que pela plaga Americana
O castigo tiveram grave e duro, Passado tenha de Israel a gente,
Como não temes tu ser castigado A experiência e vista certifica
Pelos monstros também do mar salgado? Que é o mar vermelho o mar de Itaparica.

XXIV XXX
Mas enquanto com isto me detenho, Aos repetidos rasgos desta lança
O temerário risco admoestando, A vital aura vai desamparando,
Eles de cima do ligeiro lenho 'Té que fenece o monstro sem tardança,
Vão a Baleia horrível avistando: Que antes andava os mares açoitando:
Pegam nos remos com forçoso empenho, Eles puxando a corda com pujança
E todos juntos com furor remando O vão da lancha mais perto arrastando,
A seguem por detrás com tal cautela, Que se lhe fiou Cloto o longo fio,
Que imperceptíveis chegam junto dela. Agora o colhe Láquesis com brio.

XXV XXXI
O arpão farpado tem nas mãos suspenso Eis agora também no mar saltando
Um, que da proa o vai arremessando, O que de Glauco tem a habilidade,
Todos os mais deixando o remo extenso Com um agudo ferro vai furando
Se vão na lancha súbito deitando; Dos queixos a voraz monstruosidade:
E depois que ferido o peixe imenso Com um cordel depois, grosso e não brando,
O veloz curso vai continuando, Da boca cerra-lhe a concavidade,
Surge cad'um com fúria e força tanta, Que se o mar sorve no gasnate fundo
Que como um Anteu forte se levanta. Busca logo as entranhas do profundo.

XXVI XXXII
Corre o monstro com tal ferocidade, Tanto que a presa tem bem subjugada
Que vai partindo o úmido Elemento, Um sinal branco lançam vitoriosos,
E lá do pego na concavidade E outra lancha para isto decretada
Parece mostrar Tétis sentimento: Vem socorrer com cabos mais forçosos:
Leva a lancha com tal velocidade, Uma e outra se parte emparelhada,
E com tão apressado movimento, Indo à vela, ou c'os remos furiosos,
Que cá de longe apenas aparece, E pelo mar serenas navegando
Sem que em alguma parte se escondesse. Para terra se vão endireitando.

XXVII XXXIII
15

Cada um se mostra no remar constante, Desta maneira o peixe se reparte


Se lhe não tem o Zéfiro assoprado, Por toda aquela cobiçosa gente,
E com fadigas e suor bastante Cabendo a cada qual aquela parte,
Vem a tomar o porto desjado. Que lhe foi consignada do regente:
Deste em espaço não muito distante, As banhas todas se depõem à parte,
Em o terreno mais acomodado Que juntas formam um acervo ingente,
Uma Trusátil máquina esta posta Das quais se faz azeite em grande cópia,
Só para esta função aqui deposta. Do que esta Terra não padece inópia.

XXXIV XL
O pé surge da terra para fora Em vasos de metal largos e fundos
Uma versátil roda sustentando, O estão com fortes chamas derretendo
Em cujo âmbito longo se encoscora De uns pedaços pequenos e fecundos,
Uma amarra, que a vai arrodeando: Que o fluido licor vão escorrendo:
A esta mesma roda cá de fora São uns feios Etíopes e imundos,
Homens dez vezes cinco estão virando, Os que estão este ofício vil fazendo,
E quanto mais a corda se repuxa, Cujos membros de azeite andam untados,
Tanto mais para a terra o peixe puxa. Daquelas cirandagens salpicados.

XXXV XLI
Assim com esta indústria vão fazendo Este peixe, este monstro agigantado
Que se chegue ao lugar determinado, Por ser tão grande tem valia tanta,
E as enchentes Netuno recolhendo, Que o valor a que chega costumado
Vão subindo por um e outro lado: Até quase mil áureos se levanta.
Outros em borbotão já vêm trazendo Quem de ouvir tanto não sai admirado?
Facas luzidas e o braçal machado, Quem de um peixe tão grande não se espanta?
E cada qual ligeiro se aparelha Mas enquanto o Leitor fica pasmando,
Para o que seu ofício lhe aconselha. Eu vou diversas cousas relatando.

XXXVI XLII
Assim dispostos uns, que África cria, Em um extremo desta mesma Terra
Dos membros nus, o couro denegrido, Está um forte soberbo fabricado,
Os quais queimou Faeton, quando descia Cuja bombarda, ou máquina de guerra,
Do terrífico raio submergido, Abala a Ilha de um e outro lado:
Com algazarra muita e gritaria, Tão grande fortaleza em si encerra
Fazendo os instrumentos grão ruído, De artilharia e esforço tão sobrado,
Uns aos outros em ordem vão seguindo, Que retumbando o bronze furibundo
E os adiposos lombos dividindo. Faz ameaço á terra, ao mar, ao Mundo.

XXXVII XLIII
O povo que se ajunta é infinito, Não há nesta Ilha engenho fabricado
E ali têm muitos sua dignidade, Dos que o açúcar fazem saboroso,
Os outros vêm do Comarcão distrito, Porque um, que ainda estava levantado,
E despovoam parte da Cidade: Fez nele o seu oficio o tempo iroso:
Retumba o ar com o contínuo grito, Outros houve também, que o duro fado
Soa das penhas a concavidade, Por terra pôs, cruel e rigoroso,
E entre eles todos tal furor se acende, E ainda hoje um, que foi mais soberano,
Que às vezes um ao outro não se entende. Pendura as cinzas por painel Troiano.

XXXVIII XLIV
Qual em Babel o povo, que atrevido Claras as águas são e transparentes,
Tentou subir ao Olimpo transparente, Que de si manam copiosas fontes,
Cujo idioma próprio pervertido Umas regam os vales adjacentes,
Foi uma confusão balbuciante, Outras descendo vêm dos altos montes;
Tal nesta torre, ou monstro desmedido, E quando com seus raios refulgentes,
Levanta as vozes a confusa gente, As doura Febo abrindo os Horizontes,
Que seguindo cad'um diverso dogma Tão cristalinas são, que aqui difusa
Falar parece então noutro idioma. Parece nasce a fonte da Aretusa.

XXXIX XLV
16

Pela relva do campo mais viçoso Os limões doces muito apetecidos


O gado junto e pingue anda pastando, Estão Virgíneas tetas imitando,
O roubador de Europa furioso, E quando se vêem crespos e crescidos,
E o que deu o véu de ouro em outro bando, Vão as mãos curiosas incitando:
O bruto de Netuno generoso Em árvores copadas, que estendidos
Vai as areias soltas levantando, Os galhos têm, e as ramas arrastando,
E nos bosques as leras Ateonéias Se produzem as cidras amarelas,
A República trilham das Napéias. Sendo tão presumidas como belas.

XLVI LII
Aqui o campo florido se semeia A laranjeira tem no fruto louro
De brancas açucenas e boninas, A imitação dos pomos de Atalanta,
Ali no prado a rosa mais franqueia E pela cor, que em si conserva de ouro,
Olorizando as horas matutinas: Por isso estimação merece tanta:
E quando Clóris mais se galanteia, Abre a romã da casca o seu tesouro,
Dando da face exalações divinas, Que do rubi a cor flamante espanta,
Dos ramos no regaço vai colhendo E quanto mais os bagos vai fendendo,
O Clavele o jasmim, que está pendendo. Tanto vai mais formosa parecendo.

XLVII LIII
As frutas se produzem copiosas, Os melões excelentes e olorosos
De várias castas e de várias cores, Fazem dos próprios ramos galaria.
Umas se estimam muito por cheirosas, Também estende os seus muito viçosos
Outras levam vantagem nos sabores: A pevidosa e doce melancia:
São tão belas, tão lindas e formosas, Os figos de cor roxa graciosos
Que estão causando à vista mil amores, Poucos se logram, salvo se à porfia
E se nos prados Flora mais blasona, Se defendem de que com os biquinhos
São os pomares glória de Pomona. Os vão picando os leves passarinhos.

XLVIII LIV
Entre elas todas têm lugar subido No ananás se vê como formada
As uvas doces, que esta Terra cria, Uma c'roa de espinhos graciosa,
De tal sorte, que em número crescido A superfície tendo matizada
Participa de muitas a Bahia: Da cor, que Citeréia deu à rosa:
Este fruto se gera apetecido E sustentando a croa levantada
Duas vezes no ano sem profia, Junto co’a vestidura decorosa,
E por isso e do povo celebrado, Está mostrando tanta gravidade,
E em toda a parte sempre nomeado. Que as frutas lhe tributam Majestade.

XLIX LV
Os coqueiros compridos e vistosos Também entre as mais frutas as jaqueiras
Estão por reta série ali plantados, Dão pelo tronco a jaca adocicada,
Criam cocos galhardos e formosos, Que vindo lá de partes estrangeiras
E por maiores são mais estimados: Nesta Província é fruta desejada:
Produzem-se nas praias copiosos, Não fiquem esquecidas as mangueiras,
E por isso os daqui mais procurados, Que dão a manga muito celebrada,
Cedem na vastidão à bananeira, Pomo não só ao gosto delicioso,
A qual cresce e produz desta maneira. Mas para o cheiro almíscar oloroso.

L LVI
De uma lança ao tamanho se levanta, Inumeráveis são os cajus belos,
Estúpeo e roliço o tronco tendo, Que estão dando prazer por rubicundos,
As lisas folhas têm grandeza tanta, Na cor também há muitos amarelos,
Que até mais de onze palmos vão crescendo: E uns e outros ao gosto são jucundos;
Da raiz se lhe erige nova planta, E só bastava para apetecê-los
Que está o parto futuro prometendo, Serem além de doces tão fecundos,
E assim que o fruto lhe sazona e cresce, Que em si têm a Brasílica castanha
Como das plantas víbora fenece. Mais saborosa que a que cria Espanha.

LI LVII
17

Os araçás diversos e silvestres, Mas com estas Igrejas só não fica,


Uns são pequenos, outros são maiores: Porque Capelas muitas compreende,
Oitis, cajás, pitangas, por agrestes, E nisto mostram seus habitadores
Estimadas não são dos moradores: Como dos Santos são veneradores.
Aos mar’cujás chamar quero celestes,
Porque contêm no gosto tais primores, LXII
Que se os Antigos na Ásia os encontraram, Dedica-se a primeira àquele Santo
Que era o néctar de Jove imaginaram. Mártir, que em vivas chamas foi aflito,
E ao Tirano causou terror e espanto,
LVIII Quando por Cristo foi assado e frito.
Outras frutas dissera, mas agora Também não fique fora de meu canto
Têm lugar os legumes saborosos, Uma, que se consagra a João bendito,
Porém por não fazer nisto demora E outra (correndo a Costa para baixo)
Deixo esta explicação aos curiosos; Que à Senhora se dá do Bom Despacho.
Mas, contudo, dizer quero por ora
Que produz esta Terra copiosos LXIII
Mandioca, inhames, favas e carás, Outra a Antônio Santo e glorioso
Batatas, milho, arroz e mangarás. Tem por seu Padroeiro e Advogado,
Está fundada num sitio delicioso,
LIX Quer por esta Capela é mais amado.
O arvoredo desta Ilha rica e bela Em um terreno alegre e gracioso
Em circuito toda a vai ornando, Outra se fabricou de muito agrado.
De tal maneira, que só basta vê-la Das Mercês à Senhora verdadeira
Quando já está alegrias convidando: É desta Capelinha a Padroeira.
Os passarinhos que se criam nela
De raminho em raminho andam cantando, LXIV
E nos bosques e brenhas não se engana Também outra se vê, que é dedicada
Quem exercita o oficio de Diana. À Senhora da penha milagrosa,
A qual airosamente situada
LX Está numa planície especiosa.
Tem duas Freguesias muito extensas, Uma também de São José chamada
Das quais uma Matriz mais soberana Há nesta Ilha, por certo gloriosa,
Se dedica ao Redentor, que a expensas Junta com outra de João, que sendo
De seu Sangue remiu a prole humana; Duas, se vai de todo engrandecendo.
E ainda que do tempo sinta ofensas
A devoção com ela não se engana, LXV
Porque tem uma Imagem milagrosa Até aqui, Musa; não me é permitido
Da Santa Vera-Cruz para ditosa. Que passe mais avante a veloz pena,
A minha Pátria tenho definido
LXI Com esta descrição breve e pequena;
A Santo Amaro a outra se dedica, E se o tê-la tão pouco engrandecido
A quem venerações o povo rende, Não me louva, mas antes me condena,
Sendo tão grande a Ilha Itaparica, Não usei termos de Poeta esperto,
Que a uma só Paróquia não se estende: Fui historiador em tudo certo.

GREGÓRIO DE MATOS Ou toda, porque inveja não tivera


Outra a metade, que órfã me ficara.
Sentimentos Del Rey D. Pedro II à Morte desta
Sereníssima Senhora Sua Filha Promogênita E se a minha alma enfim tua agonia
Substituir pudera com a sua,
Se a dar-te vida a minha dor bastara, Tua vida animando a cinza fria:
Filha Isabel, de minha dor morrera,
E porque minha dor tudo excedera, Inda que a arrojo o mundo o atribua,
Gêneros novos de sentir buscara. Não só a vida, a alma te daria
Por melhorá-la com fazê-la tua.
Se uma vida se dera, ou se emprestara,
A metade da minha te ofrecera,
18

E sobretudo a rica, e nobre casa


Do nosso capitão Luís Carneiro.
AO CONDE DE ERICEYRA D. LUIZ DE MENEZES
PEDINDO LOUVORES AO POETA NÂO LHE Buscando a Cristo
ACHANDO ELLE PRESTIMO ALGUM
A vós correndo vou, braços sagrados,
Um soneto começo em vosso gabo; Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Contemos esta regra por primeira, Que, para receber-me, estais abertos,
Já lá vão duas, e esta é a terceira, E, por não castigar-me, estais cravados.
Já este quartetinho está no cabo.
A vós, divinos olhos, eclipsados
Na quinta torce agora a porca o rabo: De tanto sangue e lagrimas abertos,
A sexta vá também desta maneira, Pois, para perdoar-me, estais despertos,
na sétima entro já com grã canseira, E, por não condenar-me, estais fechados,
E saio dos quartetos muito brabo.
Agora nos tercetos que direi? A vós, pregados pés, por não deixar-me,
Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais, A vós, sangue vertido, para ungir-me,
Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei. A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me.
Nesta vida um soneto já ditei,
Se desta agora escapo, nunca mais; A vós, lado patente, quero unir-me,
Louvado seja Deus, que o acabei. A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.

Soneto
ANTÔNIO VIEIRA
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido,
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,


A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada


Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,


Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória. LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Soneto Sermão do Bom Ladrão (1655),
de Padre António Vieira.
Ilha de Itaparica, alvas areias, Texto Fonte:
Alegres praias, frescas, deleitosas;
Ricos polvos, lagostas deliciosas,
Farta de putas, rica de baleias.

As Putas tais, ou quais não são más preias,


Editoração eletrônica:
Pícaras,ledas, brandas, carinhosas,
Verônica Ribas Cúrcio
Para o jantar as carnes saborosas,
O pescado excelente para as ceias.
Domine, memento mei, cum veneris in regnum tuum:
Hodie mecum eris in Paradiso (1).
O melão de ouro, a fresca melancia,
Que vem no tempo, em que aos mortais abrasa
O sol inquisidor de tanto oiteiro.
I
Este sermão, que hoje se prega na Misericórdia de
A costa, que o imita na ardentia,
Lisboa, e não se prega na Capela Real, parecia-me a mim
19

que lá se havia de pregar, e não aqui. Daquela pauta havia que devera ser muito antigo e mui freqüente, o qual eu
de ser, e não desta. E por quê? Porque o texto em que se prosseguirei tanto com maior esperança de produzir
funda o mesmo sermão, todo pertence à majestade algum fruto, quanto vejo enobrecido o auditório presente
daquele lugar, e nada à piedade deste. Uma das coisas com a autoridade de tantos ministros de todos os maiores
que diz o texto é que foram sentenciados em Jerusalém tribunais, sobre cujo conselho e consciência se costumam
dois ladrões, e ambos condenados, ambos executados, descarregar as dos reis.
ambos crucificados e mortos, sem lhes valer procurador
nem embargos. Permite isto a misericórdia de Lisboa?
Não. A primeira diligência que faz é eleger por III
procurador das cadeias um irmão de grande autoridade, E para que um discurso tão importante e tão grave vá
poder e indústria, e o primeiro timbre deste procurador é assentado sobre fundamentos sólidos e irrefragáveis,
fazer honra de que nenhum malfeitor seja justiçado em suponho primeiramente que sem restituição do alheio não
seu tempo. Logo esta parte da história não pertence à pode haver salvação. Assim o resolvem com Santo
Misericórdia de Lisboa. A outra parte — que é a que Tomás todos os teólogos, e assim está definido no
tomei por tema — toda pertence ao Paço e à Capela Real. capítulo Si res aliena, com palavras tiradas de Santo
Nela se fala com o rei: Domine; nela se trata do seu reino: Agostinho, que são estas: Si res aliena propter quam
cum veneris in regnum tuum; nela se lhe presentam peccatum est, reddi potest, et non redditur, poenitentia
memoriais: memento mei; e nela os despacha o mesmo non agitur sed simulatur. Si autem veraciter agitur non
rei logo, e sem remissão, a outros tribunais: Hodie remittitur peccatum, nisi restituatur ablatum, si, ut dixi,
mecum eris in Paradiso. O que me podia retrair de pregar restitui potest. Quer dizer: Se o alheio, que se tomou ou
sobre esta matéria, era não dizer a doutrina com o lugar. retém, se pode restituir, e não se restitui, a penitência
Mas deste escrúpulo, em que muitos pregadores não deste e dos outros pecados não é verdadeira penitência,
reparam, me livrou a pregação de Jonas. Não pregou senão simulada e fingida, porque se não perdoa o pecado
Jonas no paço, senão pelas ruas de Nínive, cidade de mais sem se restituir o roubado, quando quem o roubou tem
longes que esta nossa, e diz o texto sagrado que logo a possibilidade de o restituir. — Esta única exceção da
sua pregação chegou aos ouvidos do rei: Pervenit verbum regra foi a felicidade do Bom Ladrão, e esta a razão por
ad regem (Jon. 3,6). Bem quisera eu que o que hoje que ele se salvou, e também o mau se pudera salvar sem
determino pregar chegara a todos os reis, e mais ainda restituírem. Como ambos saíram do naufrágio desta vida
aos estrangeiros que aos nossos. Todos devem imitar ao despidos e pegados a um pau, só esta sua extrema
Rei dos reis, e todos têm muito que aprender nesta última pobreza os podia absolver dos latrocínios que tinham
ação de sua vida. Pediu o Bom Ladrão a Cristo que se cometido, porque, impossibilitados à restituição, ficavam
lembrasse dele no seu reino: Domine, memento mei, cum desobrigados dela. Porém, se o Bom Ladrão tivera bens
veneris in regnum tuum. E a lembrança que o Senhor teve com que restituir, ou em todo, ou em parte o que roubou,
dele foi que ambos se vissem juntos no Paraíso: Hodie toda a sua fé e toda a sua penitência, tão celebrada dos
mecum eris in Paradiso. Esta é a lembrança que devem santos, não bastara a o salvar, se não restituísse. Duas
ter todos os reis, e a que eu quisera lhes persuadissem os coisas lhe faltavam a este venturoso homem para se
que são ouvidos de mais perto. Que se lembrem não só de salvar: uma como ladrão que tinha sido, outra como
levar os ladrões ao Paraíso, senão de os levar consigo: cristão que começava a ser. Como ladrão que tinha sido,
Mecum. Nem os reis podem ir ao paraíso sem levar faltava-lhe com que restituir; como cristão que começava
consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno a ser, faltava-lhe o Batismo; mas assim como o sangue
sem levar consigo os reis. Isto é o que hei de pregar. Ave que derramou na cruz lhe supriu o Batismo, assim a sua
Maria. desnudez e a sua impossibilidade lhe supriu a restituição,
e por isso se salvou. Vejam agora, de caminho, os que
roubaram na vida, e nem na vida, nem na morte
II restituíram, antes na morte testaram de muitos bens e
Levarem os reis consigo ao Paraíso ladrões não só não é deixaram grossas heranças a seus sucessores, vejam onde
companhia indecente, mas ação tão gloriosa e irão ou terão ido suas almas, e se se podiam salvar.
verdadeiramente real, que com ela coroou e provou o Era tão rigoroso este preceito da restituição na lei velha,
mesmo Cristo a verdade do seu reinado, tanto que que, se o que furtou não tinha com que restituir, mandava
admitiu na cruz o título de rei. Mas o que vemos praticar Deus que fosse vendido, e restituísse com o preço de si
em todos os reinos do mundo é tanto pelo contrário que, mesmo: Si non habuerit quod pro furto reddat, ipse
em vez de os reis levarem consigo os ladrões ao Paraíso, venundabitur (Êx. 22,3). De modo que, enquanto um
os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno. E homem era seu, e possuidor da sua liberdade, posto que
se isto é assim, como logo mostrarei com evidência, não tivesse outra coisa, até que não vendesse a própria
ninguém me pode estranhar a clareza ou publicidade com pessoa, e restituísse o que podia com o preço de si
que falo e falarei, em matéria que envolve tão soberanos mesmo, não o julgava a lei por impossibilitado à
respeitos, antes admirar o silêncio, e condenar a restituição, nem o desobrigava dela. Que uma tal lei fosse
desatenção com que os pregadores dissimulam uma tão justa não se pode duvidar, porque era lei de Deus, e posto
necessária doutrina, sendo a que devera ser mais ouvida e que o mesmo Deus na lei da graça derrogou esta
declamada nos púlpitos. Seja, pois, novo hoje o assunto, circunstância de rigor, que era de direito positivo; porém
20

na lei natural, que é indispensável, e manda restituir a com tantos obséquios, e na dos pobres com tantos
quem pode e tem com que, tão fora esteve de variar ou empenhos, se vos convidastes a ser seu hóspede para o
moderar coisa alguma, que nem o mesmo Cristo na cruz salvar, e a sua salvação é a importância que vos trouxe à
prometeria o Paraíso ao ladrão, em tal caso, sem que sua casa, se o chamastes, e acudiu com tanta diligência,
primeiro restituísse. Ponhamos outro ladrão à vista deste, se lhe dissestes que se apressasse: Festinans
e vejamos admiravelmente no juízo do mesmo Cristo a descende (6), e ele se não deteve um momento, por que
diferença de um caso a outro. lhe dilatais tanto a mesma graça que lhe desejais fazer,
Assim como Cristo, Senhor nosso, disse a Dimas: Hodie por que o não acabais de absolver, por que lhe não
mecum eris in Paradiso: Hoje serás comigo no Paraíso segurais a salvação?
— assim disse a Zaqueu: Hodie salus domui huic facta Porque este mesmo Zaqueu, como cabeça de publicanos:
est (Lc. 19,9): Hoje entrou a salvação nesta tua casa. — Princeps publicanorum, tinha roubado a muitos, e como
Mas o que muito se deve notar é que a Dimas prometeu- rico que era: Et ipse dives, tinha com que restituir o que
lhe o Senhor a salvação logo, e a Zaqueu não logo, senão roubara, e enquanto estava devedor e não restituía o
muito depois. E por que, se ambos eram ladrões, e ambos alheio, por mais boas obras que fizesse, nem o mesmo
convertidos? Porque Dimas era ladrão pobre, e não tinha Cristo o podia absolver, e por mais fazenda que
com que restituir o que roubara; Zaqueu era ladrão rico, e despendesse piamente, nem o mesmo Cristo o podia
tinha muito com que restituir: Zacheus princeps erat salvar. Todas as outras obras, que depois daquela
publicanorum, et ipse dives, diz o evangelista (2). E ainda venturosa vista fazia Zaqueu, eram muito louváveis; mas
que ele o não dissera, o estado de um e outro ladrão o enquanto não chegava a fazer a da restituição, não estava
declarava assaz. Por quê? Porque Dimas era ladrão capaz da salvação. Restitua, e logo será salvo: e assim
condenado, e se ele fora rico, claro está que não havia de foi. Acrescentou Zaqueu que tudo o que tinha mal
chegar à forca; porém Zaqueu era ladrão tolerado, e a sua adquirido restituía em quatro dobros: Et si aliquem
mesma riqueza era a imunidade que tinha para roubar defraudavi, reddo quadruplum(7). E no mesmo ponto o
sem castigo, e ainda sem culpa. E como Dimas era ladrão Senhor, que até ali tinha calado, desfechou os tesouros de
pobre, e não tinha com que restituir, também não tinha sua graça e lhe anunciou a salvação: Hodie salus domui
impedimento a sua salvação, e por isso Cristo lha huic facta est (8). De sorte que, ainda que entrou o
concedeu no mesmo momento. Pelo contrário, Zaqueu, Salvador em casa de Zaqueu, a salvação ficou de fora,
como era ladrão rico, e tinha muito com que restituir, não porque, enquanto não saiu da mesma casa a restituição,
lhe podia Cristo segurar a salvação antes que restituísse, e não podia entrar nela a salvação. A salvação não pode
por isso lhe dilatou a promessa. A mesma narração do entrar sem se perdoar o pecado, e o pecado não se pode
Evangelho é a melhor prova desta diferença. perdoar sem se restituir o roubado: Non dimittitur
Conhecia Zaqueu a Cristo só por fama, e desejava muito peccatum, nisi restituatur ablatum.
vê-lo. Passou o Senhor pela sua terra, e como era
pequeno de estatura, e o concurso muito, sem reparar na
autoridade da pessoa e do ofício: Princeps publicanorum, IV
subiu-se a uma árvore para o ver, e não só viu, mas foi Suposta esta primeira verdade certa e infalível, a segunda
visto, e muito bem visto. Pôs nele o Senhor aqueles coisa que suponho com a mesma certeza é que a
divinos olhos, chamou-o por seu nome, e disse-lhe que se restituição do alheio, sob pena da salvação, não só obriga
descesse logo da árvore, porque lhe importava ser seu aos súditos e particulares, senão também aos cetros e às
hóspede naquele dia: Zachee, festinans descende, quia coroas. Cuidam ou devem cuidar alguns príncipes que,
hodie in domo tua oportet me manere (3). Entrou, pois, o assim como são superiores a todos, assim são senhores de
Salvador em casa de Zaqueu, e aqui parece que cabia tudo, e é engano. A lei da restituição é lei natural e lei
bem o dizer-lhe, que então entrara a salvação em sua divina. Enquanto lei natural obriga aos reis, porque a
casa; mas nem isto, nem outra palavra disse o Senhor. natureza fez iguais a todos; e enquanto lei divina também
Recebeu-o Zaqueu e festejou a sua vinda com todas as os obriga, porque Deus, que os fez maiores que os outros,
demonstrações de alegria: Excepit illum gaudens (4), e é maior que eles. Esta verdade só tem contra si a prática e
guardou o Senhor o mesmo silêncio. Assentou-se à mesa o uso. Mas por parte deste mesmo uso argumenta assim
abundante de iguarias, e muito mais de boa vontade, que Santo Tomás, o qual é hoje o meu doutor, e nestas
é o melhor prato para Cristo, e prosseguiu na mesma matérias o de maior autoridade: Terrarum principes
suspensão. Sobretudo disse Zaqueu que ele dava aos multa a suis subditis violenter extorquent, quod videtur
pobres a metade de todos seus bens: Ecce dimidium ad rationem rapinae pertinere; grave autem videtur
bonorum meorum do pauperibus (5). E sendo o Senhor dicere, quod in hoc peccent, quia sic fere omnes
aquele que no dia do Juízo só aos merecimentos da principes damnarentur. Ergo rapina in aliquo quo casu
esmola há de premiar com o reino do céu, quem não est licita. Quer dizer: A rapina ou roubo é tomar o alheio
havia de cuidar que a este grande ato de liberalidade com violentamente contra a vontade de seu dono; os príncipes
os pobres responderia logo a promessa da salvação? Mas tomam muitas coisas a seus vassalos violentamente, e
nem aqui mereceu ouvir Zaqueu o que depois lhe disse contra sua vontade: logo, parece que o roubo é lícito em
Cristo. — Pois, Senhor, se vossa piedade e verdade tem alguns casos, porque, se dissermos que os príncipes
dito tantas vezes que o que se faz aos pobres se faz a vós pecam nisto, todos eles, ou quase todos se condenariam:
mesmo, e este homem na vossa pessoa vos está servindo Fere omnes principes damnarentur. Oh! que terrível e
21

temerosa conseqüência, e quão digna de que a de andar em tão mau ofício; porém, ele, que não era
considerem profundamente os príncipes, e os que têm medroso nem lerdo, respondeu assim. — Basta, senhor,
parte em suas resoluções e conselhos! Responde ao seu que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós,
argumento o mesmo Doutor Angélico, e, posto que não porque roubais em uma armada, sois imperador? —
costumo molestar os ouvintes com latins largos, hei de Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é
referir as suas próprias palavras: Dicendum, quod si grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o
principes a subditis exigunt quod eis secundum justitiam roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia
debetur propter bonum commune conservandum, etiam si bem distinguir as qualidades e interpretar as
violentia adhibeatur; non est rapina. Si vero aliquid significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome:
principes idebite extorqueant, rapina est, sicut et Eodem loco pone latronem et piratam, quo regem
latrocinium. Unde ad restitutionem tenentur sicut et animum latronis et piratae habentem. Se o Rei de
latrones. Et tanto gravius peccant quam latrones, quanto Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e
periculosius et communius contra publicam justitiam o pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo
agunt, cujus custodes sunt positi: Respondo — diz Santo lugar, e merecem o mesmo nome.
Tomás — que se os príncipes tiram dos súditos o que Quando li isto em Sêneca, não me admirei tanto de que
segundo justiça lhes é devido para conversação do bem um filósofo estóico se atrevesse a escrever uma tal
comum, ainda que o executem com violência, não é sentença em Roma, reinando nela Nero; o que mais me
rapina ou roubo. Porém, se os príncipes tomarem por admirou, e quase envergonhou, foi que os nossos
violência o que se lhes não deve, é rapina e latrocínio. oradores evangélicos, em tempo de príncipes católicos e
Donde se segue que estão obrigado à restituição, como os timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não
ladrões, e que pecam tanto mais gravemente que os preguem a mesma doutrina. Saibam estes eloqüentes
mesmos ladrões, quanto é mais perigoso e mais comum o mudos que mais ofendem os reis com o que calam, que
dano com que ofendem a justiça pública, de que eles com o que disserem, porque a confiança com que isto se
estão postos por defensores. diz é sinal que lhes não toca e que se não podem ofender;
Até aqui acerca dos príncipes o Príncipe dos Teólogos. E e a cautela com que se cala é argumento de que se
por que a palavra rapina e latrocínio, aplicada a sujeitos ofenderão, porque lhes pode tocar. Mas passemos
da suprema esfera, é tão alheia das lisonjas que estão brevemente à terceira e última suposição, que todas três
costumados a ouvir, que parece conter alguma são necessárias para chegarmos ao ponto.
dissonância, escusa tacitamente o seu modo de falar, e
prova a sua doutrina o santo Doutor com dois textos
alheios, um divino, do profeta Ezequiel, e outro pouco V
menos que divino, de Santo Agostinho. O texto de Suponho finalmente que os ladrões de que falo não são
Ezequiel é parte do relatório das culpas por que Deus aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua
castigou tão severamente os dois reinos de Israel e Judá, fortuna condenou a este gênero de vida, porque a mesma
um com o cativeiro dos assírios, e outro com o dos sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz
babilônios; e a causa que dá, e muito pondera, é que os Salomão: Non grandis est culpa, cum quis furatus fuerit:
seus príncipes, em vez de guardarem os povos como furatur enim ut esurientem impleat animam. (10).O
pastores, os roubavam como lobos: Principes ejus in ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno;
medio illius, quasi lupi rapientes praedam (9).Só dois os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros
reis elegeu Deus por si mesmo, que foram Saul e Davi, e ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais
a ambos os tirou de pastores, para que, pela experiência debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento,
dos rebanhos que guardavam, soubessem como haviam distingue muito bem S. Basílio Magno: Non est
de tratar os vassalos; mas seus sucessores, por ambição e intelligendum fures esse solum bursarum incisores, vel
cobiça, degeneraram tanto deste amor e deste cuidado latrocinantes in balneis; sed et qui duces legionum
que, em vez de os guardar e apascentar como ovelhas, os statuti, vel qui commisso sibi regimine civitatum, aut
roubavam e comiam como lobos: Quasi lupi rapientes gentium, hoc quidem furtim tollunt, hoc vero vi et publice
praedam. exigunt: Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam
O texto de Santo Agostinho fala geralmente de todos os bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes
reinos, em que são ordinárias semelhantes opressões e colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente
injustiças, e diz que, entre os tais reinos e as covas dos merecem este título são aqueles a quem os reis
ladrões — a que o santo chama latrocínios — só há uma encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das
diferença. E qual é? Que os reinos são latrocínios, ou províncias, ou a administração das cidades, os quais já
ladroeiras grandes, e os latrocínios, ou ladroeiras, são com manha, já com força, roubam e despojam os povos.
reinos pequenos: Sublata justitia, quid sunt regna, nisi — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam
magna latrocinia? Quia et latrocinia quid sunt, nisi cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco:
parva regna? É o que disse o outro pirata a Alexandre estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são
Magno. Navegava Alexandre em uma poderosa armada enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo
pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse via com mais aguda vista que os outros homens, viu que
trazido à sua presença um pirata que por ali andava uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam
roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os
22

ladrões grandes a enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia, roubos, sejam eleições e feituras suas, para que os
que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se príncipes hajam de pagar o que eles fizeram. Ponhamos o
nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas exemplo da culpa, onde a não pode haver. Pôs Deus a
vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado Adão no Paraíso, com jurisdição e poder sobre todos os
um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um viventes, e com senhorio absoluto de todas as coisas
cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E criadas, excepta somente uma árvore. Faltavam-lhe
quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões poucas letras a Adão para ladrão, e ao fruto para furto não
triunfantes? De um, chamado Seronato, disse com lhe faltava nenhuma. Enfim, ele e sua mulher — que
discreta contraposição Sidônio Apolinar: Nou cessat muitas vezes são as terceiras — aquela só coisa que havia
simul furta, vel punire, vel facere: Seronato está sempre no mundo que não fosse sua, essa roubaram. Já temos a
ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os Adão eleito, já o temos com ofício, já o temos ladrão. E
fazer. — Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria quem foi o que pagou o furto? Caso sobre todos
tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só. admirável! Pagou o furto quem elegeu e quem deu o
VI ofício ao ladrão. Quem elegeu e quem deu o ofício a
Declarado assim por palavras não minhas, senão de muito Adão foi Deus: e Deus foi o que pagou o furto tanto à sua
bons autores, quão honrados e autorizados sejam os custa, como sabemos. O mesmo Deus o disse assim,
ladrões de que falo, estes são os que disse e digo que referindo o muito que lhe custara a satisfação do furto e
levam consigo os reis ao inferno. Que eles fossem lá sós, dos danos dele: Quae non rapui, tunc exolvebam (12).
e o diabo os levasse a eles, seja muito na má hora, pois Vistes o corpo humano de que me vesti, sendo Deus;
assim o querem; mas que hajam de levar consigo os reis é vistes o muito que padeci, vistes o sangue que derramei,
uma dor que se não pode sofrer, e por isso nem calar. vistes a morte a que fui condenado, entre ladrões. Pois,
Mas se os reis tão fora estão de tomar o alheio, que antes então, e com tudo isso, pagava o que não furtei. Adão foi
eles são os roubados, e os mais roubados de todos, como o que furtou, e eu o que paguei: Quae non rapui, tunc
levam ao inferno consigo estes maus ladrões a estes bons exolvebam.
reis? Não por um só, senão por muitos modos, os quais Pois, Senhor meu, que culpa teve vossa divina Majestade
parecem insensíveis e ocultos, e são muito claros e no furto de Adão? — Nenhuma culpa tive, nem a tivera,
manifestos. O primeiro, porque os reis lhes dão os ofícios ainda que não fora Deus, porque na eleição daquele
e poderes com que roubam; o segundo, porque os reis os homem, e no ofício que lhe dei, em tudo procedi com a
conservam neles; o terceiro, porque os reis os adiantam e circunspecção, prudência e providência com que o devera
promovem a outros maiores; e, finalmente, porque, sendo e deve fazer o príncipe mais atento a suas obrigações,
os reis obrigados, sob pena de salvação, a restituir todos mais considerado e mais justo. Primeiramente, quando o
estes danos, nem na vida, nem na morte os restituem. E fiz, não foi com império despótico, como as outras
quem diz isto já se sabe que há de ser Santo Tomás. Faz criaturas, senão com maduro conselho, e por consulta de
questão Santo Tomás, se a pessoa que não furtou, nem pessoas não humanas, senão divinas: Faciamus hominem
recebeu ou possui coisa alguma do furto, pode ter ad imaginem et similitudinem nostram, et praesit (13). As
obrigação de o restituir. E não só resolve que sim, mas, partes e qualidades que concorriam no eleito eram as
para maior expressão do que vou dizendo, põe o exemplo mais adequadas ao ofício que se podiam desejar nem
nos reis. Vai o texto: Tenetur ille restituere, qui non imaginar, porque era o mais sábio de todos os homens,
obstat, cum obstare teneatur. Sicut principes, qui justo sem vício, reto sem injustiça, e senhor de todas suas
tenentur custodire justitiam in terra, si per eorum paixões, as quais tinha sujeitas e obedientes à razão. Só
defectum latrones increscant, ad restitutionem tenentur, lhe faltava a experiência, nem houve concurso de outros
quia redditus, quos habent, sunt quasi stipendia ad hoc sujeitos na sua eleição, mas ambas estas coisas não as
instituta, ut justitiam conservent in terra: Aquele que tem podia então haver, porque era o primeiro homem, e o
obrigação de impedir que se não furte, se o não impediu, único. — Pois, se a vossa eleição, Senhor, foi tão justa e
fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os tão justificada, que bastava ser vossa para o ser, por que
príncipes, que por sua culpa deixarem crescer os ladrões, haveis vós de pagar o furto que ele fez, sendo toda a
são obrigados à restituição, porquanto as rendas, com que culpa sua? — Porque quero dar este exemplo e
os povos os servem e assistem, são como estipêndios documento aos príncipes, e porque não convém que fique
instituídos e consignados por eles, para que os príncipes no mundo tão má e perniciosa conseqüência, como seria,
os guardem e mantenham em justiça. — É tão natural e se os príncipes se persuadissem em algum caso que não
tão clara esta teologia, que até Agamenão, rei gentio, a eram obrigados a pagar e satisfazer o que seus ministros
conheceu, quando disse: Qui non vetat peccare, cum roubassem.
possit, jubet (11).
E se nesta obrigação de restituir incorrem os príncipes
pelos furtos que cometem os ladrões casuais e VII
involuntários, que será pelos que eles mesmos, e por Mas estou vendo que com este mesmo exemplo de Deus
própria eleição, armaram de jurisdições e poderes, com se desculpam ou podem desculpar os reis, porque, se a
que roubam os mesmos povos? A tenção dos príncipes Deus lhe sucedeu tão mal com Adão, conhecendo muito
não é nem pode ser essa; mas basta que esses oficiais, ou bem Deus o que ele havia de ser, que muito é que suceda
de Guerra, ou de Fazenda, ou de Justiça, que cometem os o mesmo aos reis, com os homens que elegem para os
23

ofícios, se eles não sabem nem podem saber o que depois Dizem que, fazendo sua obrigação, todos lhe ficam
farão? A desculpa é aparente, mas tão falsa como mal devendo dinheiro: e como lho não hão de dever, se lho
fundada, porque Deus não faz eleição dos homens pelo tomaram? Deixo os que sobem aos postos pelos cabelos,
que sabe que hão de ser, senão pelo que de presente são. e não com as forças de Sansão, senão com os favores de
Bem sabia Cristo que Judas havia de ser ladrão; mas Dalila. Deixo os que, com voz conhecida de Jacó, levam
quando o elegeu para o ofício em que o foi, não só não a bênção de Esaú, e não com as luvas calçadas, senão
era ladrão, mas muito digno de se lhe fiar o cuidado de dadas ou prometidas. Deixo os que, sendo mais leprosos
guardar e distribuir as esmolas dos pobres. Elejam assim que Naamã Siro, se alimparam da lepra, e não com as
os reis as pessoas, e provejam assim os ofícios, e Deus os águas do Jordão, senão com as do Rio da Prata. É isto, e o
desobrigará nesta parte da restituição. Porém as eleições e mais que se podia dizer, entrar pela porta? Claro está que
provimentos que se usam não se fazem assim. Querem não. Pois se nada disto se faz: Sicut fur in nocte (18),
saber os reis se os que provêem nos ofícios são ladrões ou senão na face do sol, e na luz do meio-dia, como se pode
não? Observem a regra de Cristo: Qui non intral per escusar quem ao menos firma os provimentos de que não
ostium, jur est et latro (14). A porta por onde conhecia serem ladrões os que por estes meios foram
legitimamente se entra ao ofício, é só o merecimento. E providos? Finalmente, ou os conhecia, ou não: se os não
todo o que não entra pela porta, não só diz Cristo que é conhecia, como os proveu sem os conhecer? E se os
ladrão, senão ladrão e ladrão: Fur est latro. E por que é conhecia, como os proveu conhecendo-os? Mas vamos
duas vezes ladrão? Uma vez porque furta o ofício, e outra aos providos com expresso conhecimento de suas
vez porque há de furtar com ele. O que entra pela porta qualidades.
poderá vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já
o são. Uns entram pelo parentesco, outros pela amizade,
outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela VIII
negociação. E quem negocia não há mister outra prova: já Dom Fulano — diz a piedade bem-intencionada — é um
se sabe que não vai a perder. Agora será ladrão oculto, fidalgo pobre: dê-se-lhe um governo.
mas depois ladrão descoberto, que essa é, como diz S. — E quantas impiedades, ou advertidas ou não, se
Jerônimo, a diferença de fur a latro. contém nesta piedade? Se é pobre, dêem-lhe uma esmola
Coisa é certo maravilhosa ver a alguns tão introduzidos e honestada com o nome de tença, e tenha com que viver.
tão entrados, não entrando pela porta nem podendo entrar Mas por que é pobre, um governo, para que vá
por ela. Se entraram pelas janelas, como aqueles ladrões desempobrecer à custa dos que governar? E para que vá
de que faz menção Joel: Per fenestras intrabunt quasi fazer muitos pobres à conta de tornar muito rico? Isto
fur (15), grande desgraça é que, sendo as janelas feitas quer quem o elege por este motivo. Vamos aos do
para entrar a luz e o ar, entrem por elas as trevas e os prêmio, e também aos do castigo. Certo capitão mais
desares. Se entraram minando a casa do pai de famílias, antigo tem muitos anos de serviço: dêem-lhe uma
como o ladrão da parábola de Cristo: Si sciret pater fortaleza nas conquistas. Mas se estes anos de serviço
familias qua hora fur veniret, non sineret perfodi domum assentam sobre um sujeito que os primeiros despojos que
suam(16), ainda seria maior desgraça que o sono, ou tomava na guerra, eram a farda e a ração dos seus
letargo do dono da casa fosse tão pesado que, minando- próprios soldados, despidos e mortos de fome, que há de
se-lhe as paredes, não o espertassem os golpes. Mas o que fazer em Sofala ou em Mascate? Tal graduado em leis leu
excede toda a admiração é que haja quem, achando a com grande aplauso no Paço; porém, em duas judicaturas
porta fechada, empreenda entrar por cima dos telhados, e e uma correição não deu boa conta de si: pois vá
o consiga, e mais sem ter pés, nem mãos, quanto mais degradado para a Índia com uma beca. E se na Beira e
asas. Estava Cristo, Senhor nosso, curando Além-Tejo, onde não há diamantes nem rubis, se lhe
milagrosamente os enfermos dentro em uma casa, e era pegavam as mãos a este doutor, que será na relação de
tanto o concurso que, não podendo os que levavam um Goa?
paralítico entrar pela porta, subiram-se com ele ao Encomendou el-rei D. João, o Terceiro, a S. Francisco
telhado, e por cima do telhado o introduziram. Ainda e Xavier o informasse do estado da Índia, por via de seu
mais admirável a consideração do sujeito, que o modo e companheiro, que era mestre do Príncipe; e o que o santo
lugar da introdução. Um homem que entrasse por cima escreveu de lá, sem nomear ofícios nem pessoas, foi que
dos telhados, quem não havia de julgar que era caído do o verbo rapio (19) na Índia se conjugava por todos os
céu: Tertius e caelo cecidit Cato? (17) E o tal homem era modos. A frase parece jocosa em negócio tão sério, mas
um paralítico que não tinha pés, nem mãos, nem sentido, falou o servo de Deus como fala Deus, que em uma
nem movimento, mas teve com que pagar a quatro palavra diz tudo. Nicolau de Lira, sobre aquelas palavras
homens, que o tomaram às costas, e o subiram tão alto. de Daniel: Nabucodonosor rex misit ad congregandos
E como os que trazem às costas semelhantes sujeitos satrapas, magistratus et judices(20), declarando a
estão tão pagos deles, que muito é que digam e informem etimologia de sátrapas, que eram os governadores das
— posto que sejam tão incapazes — que lhes sobejam províncias, diz que este nome foi composto de sat e de
merecimentos por cima dos telhados. Como não podem rapio: Dicuntur satrapae quasi satis rapientes, quia
alegar façanhas de quem não tem mãos, dizem virtudes e solent bona inferiorum rapere: Chamam-se sátrapas,
bondades. Dizem que, com seus procedimentos, cativa a porque costumam roubar assaz. E este assaz é o que
todos. E como não havia de cativar, se os comprou? especificou melhor S. Francisco Xavier, dizendo que
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conjugam o verbo rapio por todos os modos. O que eu marca. Isto mesmo valem as provisões, quando se dão
posso acrescentar, pela experiência que tenho, é que não aos que eram mais dignos da marca que da carta. Por mar
só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também das padecem os moradores das conquistas a pirataria dos
partes daquém, se usa igualmente a mesma conjugação. corsários estrangeiros, que é contingente; na terra
Conjugam por todos os modos o verbo rapio, porque suportam a dos naturais, que é certa e infalível. E se
furtam por todos os modos da arte, não falando em outros alguém duvida qual seja maior, note a diferença de uns a
novos e esquisitos, que não conheceu Donato nem outros. O pirata do mar não rouba aos da sua república:
Despautério. os da terra roubam os vassalos do mesmo rei, em cujas
Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo mãos juraram homenagem; do corsário do mar posso me
indicativo, porque a primeira informação que pedem aos defender: aos da terra não posso resistir; do corsário do
práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por mar posso fugir: dos da terra não me posso esconder; o
onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, corsário do mar depende dos ventos; os da terra sempre
porque, como têm o mero e misto império, todo ele têm por si a monção; enfim, o corsário do mar pode o que
aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pode: os da terra podem o que querem, e por isso
pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes nenhuma presa lhes escapa. Se houvesse um ladrão
mandam, e, para que mandem todos, os que não mandam onipotente, que vos parece que faria a cobiça junta com a
não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque onipotência? Pois isso é o que fazem estes corsários.
desejam quanto lhes parece bem e, gabando as coisas IX
desejadas aos donos delas, por cortesia, sem vontade, as Dos que obram o contrário com singular inteireza de
fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque justiça e limpeza de interesse, alguns exemplos temos,
ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que posto que poucos. Mas folgara eu saber quantos
manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça, para exemplos há, não digo já dos que fossem justiçados como
serem quando menos meeiros na ganância. Furtam pelo tão insignes ladrões, mas dos que fossem privados do
modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimônia, governo por estes roubos. Pois, se eles furtam com os
usam de potência. Furtam pelo modo permissivo, porque ofícios, e os consentem e conservam nos mesmos ofícios,
permitem que outros furtem, e estes compram as como não hão de levar consigo ao inferno os que os
permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem consentem? O meu Santo Tomás o diz, e alega com o
o fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam texto de São Paulo: Digni sunt morte, non solum qui
raízes em que se vão continuando os furtos. Estes faciunt, sed etiam qui consentiunt facientibus (21). E
mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a porque o rigor deste texto se entende não de qualquer
primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus consentidor, senão daqueles que, por razão de seu ofício
criados, e as terceiras quantas para isso têm indústria e ou estado, tem obrigação de impedir, faz logo a mesma
consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, limitação o santo Doutor, e põe o exemplo
porque do presente — que é o seu tempo — colhem nomeadamente nos príncipes: Sed solum quando
quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o incumbit alicui ex officio, sicut principibus terrae (22).
pretérito e futuro, do pretérito desenterram crimes, de que Verdadeiramente não sei como não reparam muito os
vendem os perdões, e dívidas esquecidas, de que se príncipes em matéria de tanta importância, e como os não
pagam inteiramente, e do futuro empenham as rendas e fazem reparar os que no foro exterior, ou no da alma, têm
antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído cargo de descarregar suas consciências. Vejam uns e
lhes vem a cair nas mãos. Finalmente, nos mesmos outros como a todos ensinou Cristo, que o ladrão que
tempos, não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plus furta com o oficio, nem um momento se há de consentir
quam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, ou conservar nele.
furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, Havia um senhor rico, diz o divino Mestre, o qual tinha
se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta um criado, que com ofício de ecônomo ou administrador,
rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: governava as suas herdades — tal é o nome no original
a furtar para furtar. E quando eles têm conjugado assim grego, que responde ao villico da Vulgata. — Infamado
toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado pois o administrador de que se aproveitava da
toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes administração e roubava, tanto que chegou a primeira
serviços, tornam carregados de despojos e ricos, e elas notícia ao Senhor, mandou-o logo vir diante de si, e
ficam roubadas e consumidas. disse-lhe que desse contas, porque já não havia de
É certo que os reis não querem isto, antes mandam em exercitar o ofício. Ainda a resolução foi mais apertada,
seus regimentos tudo o contrário; mas como as patentes porque não só disse que não havia, senão que não podia:
se dão aos gramáticos destas conjugações, tão peritos ou Jam enim non poteris villicare (23). Não tem palavra esta
tão cadimos nelas, que outros efeitos se podem esperar parábola que não esteja cheia de notáveis doutrinas a
dos seus governos? Cada patente destas, em própria nosso propósito. Primeiramente diz que este senhor era
significação, vem a ser uma licença geral in scriptis, ou um homem rico: Homo quidem erat dives (Lc. 16,1),
um passaporte para furtar. Em Holanda, onde há tantos porque não será homem quem não tiver resolução, nem
armadores de corsários, repartem-se as costas da África, será rico, por mais herdades que tenha, quem não tiver
da Ásia e da América com tempo limitado, e nenhum cuidado, e grande cuidado, de não consentir que lhas
pode sair a roubar sem passaporte, a que chamam carta de governem ladrões. Diz mais que, para privar a este ladrão
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do ofício, bastou somente a fama, sem outras inquirições: do sexto Mandamento teologicamente não há mínimos,
Et hic diffamatus est apud illum (24), porque se em tais assim os deve não haver politicamente nas matérias do
casos houverem de mandar buscar informações à Índia ou sétimo, porque quem furtou e se desonrou no pouco,
ao Brasil, primeiro que elas cheguem, e se lhes ponha muito mais facilmente o fará no muito. E se não, vede-o
remédio, não haverá Brasil nem Índia. Não se diz, porém, nesse mesmo quase ladrão. Tanto que se viu notificado
nem se sabe quem fossem os autores ou delatores desta para não servir o ofício, ainda teve traça para se servir
fama, porque a estes há-lhes de guardar segredo o senhor dele e furtar mais do que tinha furtado. Manda chamar
inviolavelmente, sob pena de não haver quem se atreva a muito à pressa os rendeiros, rompe os escritos das
o avisar, temendo justamente a ira dos poderosos. Diz dívidas, faz outros de novo com antedatas, a uns diminui
mais, que mandou vir o delatado diante de si: Et vocavit a metade, a outros a quinta parte, e por este modo,
eum, porque semelhantes averiguações, se se cometem a roubando ao tempo os dias, às escrituras a verdade, e ao
outros, e não as faz o mesmo senhor por sua própria amo o dinheiro, aquele que só tinha sido quase ladrão,
pessoa, com dar o ladrão parte do que roubou, prova que enquanto encartado no ofício, com a opinião que só tinha
está inocente. Finalmente, desengana-o e notifica-lhe que de o ter, foi mais que ladrão depois. Aqui acabei de
não há de exercitar jamais o ofício, nem pode: Jam enim entender a ênfase com que disse a pastora dos Cantares:
non poteris villicare, porque nem o ladrão conhecido Tulerunt pallium meum mihi (Cânt. 5,7): Tomaram-me a
deve continuar o ofício em que foi ladrão, nem o senhor, minha capa a mim — porque se pode roubar a capa a um
ainda que quisesse, o pode consentir e conservar nele, se homem, tomando-a não a ele, senão a outrem. Assim o
não se quer condenar. fez a astúcia deste ladrão, que roubou o dinheiro a seu
Com tudo isto ser assim, eu ainda tenho uns embargos amo, tomando-o não a ele senão aos que lho deviam. De
que alegar, por parte deste ladrão, diante do Senhor e sorte que o que dantes era um ladrão, depois foi muitos
autor da mesma parábola, que é Cristo. Provará que nem ladrões, não se contentando de o ser ele só, senão de fazer
o furto, por sua quantidade, nem a pessoa, por seu talento, a outros. Mas vá ele muito embora ao inferno, e vão os
parecem merecedores de privação do ofício para sempre. outros com ele, e os príncipes imitem ao Senhor, que se
Este homem, Senhor, posto que cometesse este erro, é um livrou de ir também, com o privar do ofício tão
sujeito de grande talento, de grande indústria, de grande prontamente.
entendimento e prudência, como vós mesmo X
confessastes, e ainda louvastes, que é mais: Laudavit Esta doutrina em geral, pois é de Cristo, nenhum
Dominus villicum iniquitatis, quia prudenter entendimento cristão haverá que a não venere. Haverá,
fecisset (25); pois, se é homem de tanto préstimo, e tem porém, algum político tão especulativo que a queira
capacidade e talentos para vos tornardes a servir dele, por limitar a certo gênero de sujeitos, e que funde as exceções
que o haveis de privar para sempre do vosso serviço: Jam no mesmo texto. O sujeito em que se fez esta execução,
enim non poteris villicare? Suspendei-o agora por alguns chama-lhe o texto villico: logo, em pessoas vis, ou de
meses, como se usa, e depois o tomareis a restituir, para inferior condição, será bem que se executem estes e
que nem vós o percais, nem ele fique perdido. -Não, diz semelhantes rigores, e não em outras de diferente
Cristo. Uma vez que é ladrão conhecido, não só há de ser suposição, com as quais, por sua qualidade e outras
suspenso ou privado do ofício ad tempus, senão para dependências, é lícito e conveniente que os reis
sempre e para nunca jamais entrar ou poder entrar: Jam dissimulem. Oh! como está o inferno cheio dos que com
enim non poteris, porque o uso ou abuso dessas estas e outras interpretações, por adularem os grandes e
restituições, ainda que parece piedade, é manifesta os supremos, não reparam em os condenar! Mas, para que
injustiça. De maneira que, em vez de o ladrão restituir o não creiam a aduladores, creiam a Deus, e ouçam.
que furtou no ofício, restitui-se o ladrão ao ofício, para Revelou Deus a Josué que se tinha cometido um furto nos
que furte ainda mais? Não são essas as restituições pelas despojos de Jericó, depois de lho ter bem custosamente
quais se perdoa o pecado, senão aquelas por que se significado, com o infeliz sucesso do seu exército. E
condenam os restituídos, e também quem os restitui. mandou-lhe que, descoberto o ladrão, fosse queimado.
Perca-se embora um homem já perdido, e não se percam Fez-se diligência exata, e achou-se que um, chamado Acã
os muitos que se podem perder e perdem na confiança de tinha furtado uma capa de grã, uma regra de ouro, e
semelhantes exemplos. algumas moedas de prata, que tudo não valia cem
Suposto que este primeiro artigo dos meus embargos não cruzados. Mas quem era este Acã? Era porventura algum
pegou, passemos a outro. Os furtos deste homem foram homem vil, ou algum soldadinho da fortuna,
tão leves, e a quantidade tão limitada, que o mesmo texto desconhecido e nascido das ervas? Não era menos que do
lhes não dá nome de furtos absolutamente, senão de sangue real de Judá, e por linha masculina, quarto neto
quase furtos: Quasi dissipasset bona ipsius (26). Pois em seu. Pois, uma pessoa de tão alta qualidade, que ninguém
um mundo, Senhor, e em um tempo em que se vêm era ilustre em todo Israel, senão pelo parentesco que tinha
tolerados nos ofícios tantos ladrões, e premiados, que é com ele, há de morrer queimado por ladrão? E por um
mais, os plus quam ladrões, será bem que seja privado do furto, que hoje seria venial, há de ficar afrontada para
seu ofício, e privado para sempre, um homem que só sempre uma casa tão ilustre? Vós direis que era bem se
chegou a ser quase ladrão? — Sim, torna a dizer Cristo, dissimulasse; mas Deus, que o entende melhor que vós,
para emenda dos mesmos tempos, e para que conheça o julgou que não. Em matéria de furtar não há exceção de
mesmo mundo quão errado vai. Assim como nas matérias pessoas, e quem se abateu a tais vilezas, perdeu todos os
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foros. Executou-se com efeito a lei, foi justiçado e mais se sinalavam em destruir cidades e acumular
queimado Acã, ficou o povo ensinado com o exemplo, e despojos, e daqui se faziam os Nabusardões, os
ele foi venturoso no mesmo castigo, porque, como notam Holofernes, e os outros flagelos do mundo. Porém os reis,
graves autores, comutou-lhe Deus aquele fogo temporal que tratam os vassalos como seus, e os Estados, posto que
pelo que havia de padecer no inferno, felicidade que distantes, como fazenda própria, e não alheia, lede o
impedem aos ladrões os que dissimulam com eles. Evangelho, e vereis quais são os sujeitos, e quão úteis a
E quanto à dissimulação que se diz devem ter os reis com quem encomendam o governo deles.
pessoas de grande suposição, de quem talvez depende a Um rei, diz Cristo, Senhor nosso, fazendo ausência do
conservação do bem público, e são mui necessárias a seu seu reino à conquista de outro, encomendou a
serviço, respondo com distinção. Quando o delito é digno administração da sua fazenda a três criados. O primeiro
de morte, pode-se dissimular o castigo e conceder-se às acrescentou-a dez vezes mais do que era, e o rei, depois
tais pessoas a vida; mas quando o caso é de furto, não se de o louvar, o promoveu ao governo de dez cidades:
lhes pode dissimular a ocasião, mas logo logo devem ser Euge bone serve, quia in modico fuisti fidelis, eris
privadas do posto. Ambas estas circunstâncias potestatem habens super decem civitates (29). O segundo
concorreram no crime de Adão. Pôs-lhe Deus preceito também acrescentou à parte que lhe coube cinco vezes
que não comesse da árvore vedada, sob pena de que mais, e com a mesma proporção o fez o rei governador de
morreria no mesmo dia: In quocumque die comederis, cinco cidades: Et tu esto super quinque civitates(30). De
morte morieris (27). Não guardou Adão o preceito, sorte que os que o rei acrescenta e deve acrescentar nos
roubou o fruto, e ficou sujeito, ipso facto, à pena de governos, segundo a doutrina de Cristo, são os que
morte. Mas, que fez Deus neste caso? Lançou-o logo do acrescentam a fazenda do mesmo rei, e não a sua. Mas
Paraíso, e concedeu-lhe a vida por muitos anos. Pois, se vamos ao terceiro criado. Este tornou a entregar quanto o
Deus o lançou do Paraíso pelo furto que tinha cometido, rei lhe tinha encomendado, sem diminuição alguma, mas
por que não executou também nele a pena de morte a que também sem melhoramento, e no mesmo ponto, sem mais
ficou sujeito? Porque da vida de Adão dependia a réplica, foi privado da administração: Auferte ab illo
conservação e propagação do mundo, e quando as mnam (31). Oh! que ditosos foram os nossos tempos, se
pessoas são de tanta importância, e tão necessárias ao as culpas por que este criado foi privado do ofício foram
bem público, justo é que, ainda que mereçam a morte, se os serviços e merecimentos por que os dagora são
lhes permita e conceda a vida. Porém, se juntamente são acrescentados! Se o que não tomou um real para si, e
ladrões, de nenhum modo se pode consentir nem deixou as coisas no estado em que lhas entregaram,
dissimular que continuem no posto e lugar onde o foram, merece privação do cargo, os que as deixam destruídas e
para que não continuem a o ser. Assim o fez Deus, e perdidas, e tão diminuídas e desbaratadas, que já não têm
assim o disse. Pôs um querubim com uma espada de fogo semelhança do que foram, que merecem? Merecem que
à porta do Paraíso, com ordem que de nenhum modo os despachem, que os acrescentem e que lhes
deixasse entrar a Adão. E por quê? Porque assim como encarreguem outras maiores, para que também as
tinha furtado da árvore da ciência, não furtasse também consumam e tudo se acabe? Eu cuidava que, assim como
da árvore da vida: Ne forte mittat manum suam, et sumat Cristo introduziu na sua parábola dois criados que
etiam de ligno vitae(28), Quem foi mau uma vez, acrescentaram a fazenda do rei, e um que a não
presume o Direito que o será outras, e que o será sempre. acrescentou, assim havia de introduzir outro que a
Saia pois Adão do lugar onde furtou, e não torne a entrar roubasse, com que ficava a divisão inteira. Mas não
nele, para que não tenha ocasião de fazer outros furtos, introduziu o divino Mestre tal criado, porque falava de
como fez o primeiro. E notai que Adão, depois de ser um rei prudente e justo, e os que têm estas qualidades —
privado do Paraíso, viveu novecentos e trinta anos. Pois, como devem ter, sob pena de não serem reis — nem
a um homem castigado e arrependido, não lhe bastaram admitem em seu serviço, nem fiam a sua fazenda a
cem anos de privação do posto, não lhe bastarão duzentos sujeitos que lha possam roubar: a algum que não lha
ou trezentos? Não. Ainda que haja de viver novecentos acrescente, poderá ser, mas um só; porém a quem lhe
anos, e houvesse de viver nove mil, uma vez que roubou, roube, ou a sua, ou a dos seus vassalos — que não deve
e é conhecido por ladrão, nunca mais deve ser restituído, distinguir da sua — não é justo, nem reis quem tal
nem há de entrar no mesmo posto. consente. E que seria se estes, depois de roubarem uma
XI cidade, fossem promovidos ao governo de cinco, e,
Assim o fez Deus com o primeiro homem do mundo, e depois de roubarem cinco, ao governo de dez?
assim o devem executar com todos os que estão em lugar Que mais havia de fazer um príncipe cristão, se fora
de Deus. Mas que seria se não só víssemos os ladrões como aqueles príncipes infiéis, de quem diz Isaías:
conservados nos lugares onde roubam, senão, depois de Principes tui infideles, socii furum (Is. 1, 23): Os
roubarem, promovidos a outros maiores? Acabaram-se- príncipes de Jerusalém não são fiéis, senão infiéis, porque
me aqui as Escrituras, porque não há nelas exemplo são companheiros dos ladrões. — Pois saiba o profeta
semelhante. De reis que mandassem conquistar inimigos, que há príncipes fiéis e cristãos, que ainda são mais
sim, mas de reis que mandassem governar vassalos, não miseráveis e mais infelizes que estes, porque um príncipe
se lê tal coisa. Os Assueros, os Nabucos, os Ciros, que que entrasse em companhia com os ladrões: Socii furum,
dilatavam por armas os seus impérios, desta maneira havia de ter também a sua parte no que se roubasse; mas
premiavam os capitães, acrescentando em postos os que estes estão tão fora de ter parte no que se rouba, que eles
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são os primeiros, os mais roubados. Pois, se são os os mesmos reis, se quiserem, podem levar consigo os
roubados estes príncipes, como são ou podem ser ladrões ao Paraíso. Parecerá a alguém, pelo que fica dito,
companheiros dos mesmos ladrões: Principes tui socii que será coisa muito dificultosa, e que se não pode
furum? Será porventura porque talvez os que conseguir sem grandes despesas, mas eu vos afirmo, e
acompanham e assistem aos príncipes são ladrões? Se mostrarei brevemente, que é coisa muito fácil, e que sem
assim fosse, não seria coisa nova. Antigamente os que nenhuma despesa de sua fazenda, antes com muitos
assistiam ao lado dos príncipes, chamavam-se laterones. aumentos dela, o podem fazer os reis. E de que modo?
E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Com uma palavra, mas palavra de rei. Mandando que os
Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria se mesmos ladrões, os quais não costumam restituir,
assim, como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem restituam efetivamente tudo o que roubaram.
também os que o mesmo vocábulo significa? Mas eu nem Executando-o assim, salvar-se-ão os ladrões e salvar-se-
digo nem cuido tal coisa. O que só digo e sei, por ser ão os reis. Os ladrões salvar-se-ão, porque restituirão o
teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode que têm roubado, e os reis salvar-se-ão também, porque
verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: restituindo os ladrões, não terão eles obrigação de
Principes tui socii furum: Os teus príncipes são restituir. Pode haver ação mais justa, mais útil e mais
companheiros dos ladrões. — E por quê? São necessária a todos? Só quem não tiver fé, nem
companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são consciência, nem juízo, o pode negar.
companheiros dos ladrões, porque os consentem; são E porque os mesmos ladrões se não sintam de haverem de
companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e os perder por este modo o fruto das suas indústrias,
poderes; são companheiros dos ladrões porque talvez os considerem que, ainda que sejam tão maus como o mau
defendem, e são, finalmente, seus companheiros, porque ladrão, não só deviam abraçar e desejar esta execução,
os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mas pedi-la aos mesmos reis. O bom ladrão pediu a
mesmos ladrões os levam consigo. Cristo, como a rei, que se lembrasse dele no seu reino, e o
Ouvi a ameaça e sentença de Deus contra estes tais: Si mau ladrão, que lhe pediu? Si tu es Christus, salvum fac
videbas furem, currebas cum eo (32); o hebreu lê temetipsum et nos (Lc. 23,39): Se sois o rei prometido,
concurrebas, e tudo é, porque há príncipes que correm como crê meu companheiro, salvai-vos a vós e a nós. —
com os ladrões e concorrem com eles. Correm com eles, Isto pediu o mau ladrão a Cristo, e o mesmo devem pedir
porque os admitem à sua familiaridade e graça, e todos os ladrões a seu rei, posto que sejam tão maus
concorrem com eles, porque, dando-lhes autoridade e como o mau ladrão. Nem Vossa Majestade, Senhor, se
jurisdições, concorrem para o que eles furtam. E a maior pode salvar, nem nós nos podemos salvar sem restituir:
circunstância desta gravíssima culpa consiste no Si nós não temos ânimo nem valor para fazer a restituição,
videbas. Se estes ladrões foram ocultos, e o que corre e como nenhum a faz, nem na vida, nem na morte; mande-
concorre com eles não os conhecera, alguma desculpa a, pois, fazer executivamente Vossa Majestade, e, por
tinha; mas se eles são ladrões públicos e conhecidos, se este modo, posto que para nós seja violento, salvar-se-á
roubam sem rebuço e à cara descoberta, se todos os vêem Vossa Majestade a si, e mais a nós: Salvum fac
roubar, e o mesmo que os consente e apóia o está vendo: temetipsum et nos. Creio que nenhuma consciência
Si videbas furem, que desculpa pode ter diante de Deus e haverá cristã, que não aprove este meio. E para que não
do mundo? Existimasti inique quod ero tui similis (Sl. 49, fique em generalidade, que é o mesmo que no ar,
21): Cuidas tu, ó injusto — diz Deus — que hei de ser desçamos à prática dele, e vejamos como se há de fazer.
semelhante a ti — e que, assim como tu dissimulas com Queira Deus que se faça!
estes ladrões, hei eu de dissimular contigo? — Enganas- O que costumam furtar nestes ofícios e governos os
te. Arguam te, et statuam contra faciam tuam: Dessas ladrões de que falamos, ou é a fazenda real, ou a dos
mesmas ladroíces, que tu vês e consentes, hei de fazer um particulares, e uma e outra têm obrigação de restituir
espelho em que te vejas — e quando vires que és tão réu depois de roubada, não só os ladrões que a roubaram,
de todos esses furtos, como os mesmos ladrões, porque os senão também os reis, ou seja porque dissimularam e
não impedes, e mais que os mesmos ladrões, porque tens consentiram os furtos quando se faziam, ou somente —
obrigação jurada de os impedir, então conhecerás que que isto basta — por serem sabedores deles depois de
tanto, e mais justamente que a eles, te condeno ao feitos. E aqui se deve advertir uma notável diferença —
inferno. Assim o declara com última e temerosa sentença em que se não repara — entre a fazenda dos reis e a dos
a paráfrase caldaica do mesmo texto: Arguam te in hoc particulares. Os particulares, se lhes roubam a sua
saeculo, et ordinabo judicium Gehennae in futuro coram fazenda, não só não são obrigados à restituição, antes
te: Neste mundo argüirei a tua consciência, como agora a terão nisso grande merecimento, se o levarem com
estou argüindo, e no outro mundo condenarei a tua alma paciência, e podem perdoar o furto a quem os roubou. Os
ao inferno, como se verá no dia do Juízo. reis são de muito pior condição nesta parte, porque,
depois de roubados, têm eles obrigação de restituir a
própria fazenda roubada, nem a podem dimitir ou perdoar
XII aos que a roubaram. A razão da diferença é porque a
Grande lástima será naquele dia, senhores, ver como os fazenda do particular é sua: a do rei não é sua, senão da
ladrões levam consigo muitos reis ao inferno; e para que República. E assim como o depositário, ou tutor, não
esta sorte se troque em uns e outros, vejamos agora como pode deixar alienar a fazenda que lhe está encomendada e
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teria obrigação de a restituir,assim tem a mesma mas faltava-lhe a melhor, como injusto e tirano que era,
obrigação o rei, que é tutor e como depositário dos bens e porque tudo o que espremia das esponjas não o havia de
erário da República, a qual seria obrigado a gravar com tomar para si, senão restituí-lo às mesmas províncias
novos tributos, se deixasse alienar ou perder as suas donde se tinha roubado. Isto é o que são obrigados a fazer
rendas ordinárias. em consciência os reis que se desejam salvar, e não
O modo pois com que as restituições da fazenda real se cuidar que satisfazem ao zelo e obrigação da justiça, com
podem fazer facilmente, ensinou aos reis um monge, o mandar prender em um castelo o que roubou a cidade, a
qual, assim como soube furtar, soube também restituir. província, o estado. Que importa que por alguns dias ou
Refere o caso Mayolo, Crantzio e outros. Chamava-se o meses se lhe dê esta sombra de castigo, se passados eles
monge frei Teodorico, e porque era homem de grande se vai lograr do que trouxe roubado, e os que padeceram
inteligência e indústria, cometeu-lhe o imperador Carlos os danos não são restituídos.
Quinto algumas negociações de importância, em que ele Há nesta, que parece justiça, um engano gravíssimo, com
se aproveitou de maneira que competia em riquezas com que nem o castigado, nem o que castiga se livram da
os grandes senhores. Advertido o imperador, mandou-o condenação eterna; e para que se entenda ou queira
chamar à sua presença, e disse-lhe que se aparelhasse entender este engano, é necessário que se declare. Quem
para dar contas. Que faria o pobre, ou rico monge? tomou o alheio fica sujeito a duas satisfações: à pena da
Respondeu sem se assustar que já estava aparelhado, que lei e à restituição do que tomou. Na pena, pode dispensar
naquele mesmo ponto as daria, e disse assim: — Eu, o rei como legislador; na restituição não pode, porque é
César, entrei no serviço de Vossa Majestade com este indispensável. E obra-se tanto pelo contrário, ainda
hábito, e dez ou doze tostões na bolsa, da esmola das quando se faz ou se cuida que se faz justiça, que só se
minhas Missas; deixe-me Vossa Majestade o meu hábito executa a pena, ou alguma parte da pena, e a restituição
e os meus tostões, e tudo o mais que possuo, mande-o não lembra, nem se faz dela caso. Acabemos com Santo
Vossa Majestade receber, que é seu, e tenho dado contas. Tomás. Põe o Santo doutor em questão: Utrum sufficiat
— Com tanta facilidade como isto fez a sua restituição o restituere simplim quod injuste ablatum est: Se, para
monge, e ele ficou guardando os seus votos, e o satisfazer à restituição, basta restituir outro tanto quanto
imperador a sua fazenda. Reis e príncipes mal servidos, foi o que se tomou? — E depois de resolver que basta,
se quereis salvar a alma e recuperar a fazenda, introduzi, porque a restituição é ato de justiça, e a justiça consiste
sem exceção de pessoas, as restituições de frei Teodorico. em igualdade, argumenta contra a mesma resolução, com
Saiba-se com que entrou cada um; o de mais torne para a lei do capítulo vinte e dois do Êxodo, em que Deus
donde saiu, e salvem-se todos. mandava que quem furtasse um boi restituísse cinco;
logo, ou não basta restituir tanto por tanto, senão muito
mais do que se furtou; ou, se basta, como está resoluto, de
XIII que modo se há de entender esta lei? Há-se de entender,
A restituição que igualmente se deve fazer aos diz o santo, distinguindo na mesma lei duas partes: uma
particulares parece que não pode ser tão pronta nem tão enquanto lei natural, pelo que pertence à restituição, e
exata, porque se tomou a fazenda a muitos e a províncias outra enquanto lei positiva, pelo que pertence à pena. A
inteiras. Mas como estes pescadores do alto usaram de lei natural, para guardar a igualdade do dano, só manda
redes varredouras, use-se também com eles das mesmas. que se restitua tanto por tanto; a lei positiva, para castigar
Se trazem muito, como ordinariamente trazem, já se sabe o crime do furto, acrescentou em pena mais quatro anos,
que foi adquirido contra a lei de Deus, ou contra as leis e e por isso manda pagar cinco por um. Há-se porém de
regimentos reais, e por qualquer destas cabeças, ou por advertir, acrescenta o santo Doutor, que entre a
ambas, injustamente. Assim se tiram da Índia quinhentos restituição e a pena há uma grande diferença, porque à
mil cruzados, de Angola duzentos, do Brasil trezentos, e satisfação da pena não está obrigado o criminoso antes da
até do pobre Maranhão mais do que vale todo ele. E que sentença, porém à restituição do que roubou, ainda que o
se há de fazer desta fazenda? Aplicá-la o rei à sua alma e não sentenciem nem obriguem, sempre está obrigado.
às dos que a roubaram, para que umas e outras se salvem. Daqui se vê claramente o manifesto engano ainda dessa
Dos governadores que mandava a diversas províncias o pouca justiça, que poucas vezes se usa. Prende-se o que
Imperador Maximino, se dizia com galante e bem roubou, e mete-se em livramento. Mas que se segue daí?
apropriada semelhança, que eram esponjas. A traça ou O preso, tanto que se livrou da pena do crime, fica muito
astúcia com que usava destes instrumentos era toda contente; o rei cuida que satisfez à obrigação da justiça, e
encaminhada a fartar a sede da sua cobiça, porque eles, ainda se não tem feito nada, porque ambos ficam
como esponjas, chupavam das províncias que obrigados à inteira restituição dos mesmos roubos, sob
governavam tudo quanto podiam, e o imperador, quando pena de se não poderem salvar. O réu porque não restitui,
tornavam, espremia as esponjas, e tomava para o fisco e o rei porque o não faz restituir. Tire, pois, o rei
real quanto tinham roubado, com que ele ficava rico, e executivamente a fazenda a todos os que a roubaram, e
eles castigados. Uma coisa fazia mal este imperador, faça as restituições por si mesmo, pois eles as não fazem,
outra bem, e faltava-lhe a melhor. Em mandar nem hão de fazer, e deste modo — que não há, nem pode
governadores às províncias homens que fossem esponjas haver outro — em vez de os ladrões levarem os reis ao
fazia mal; em espremer as esponjas quando tornavam, e inferno, como fazem, os reis levarão os ladrões ao
lhes confiscar o que traziam, fazia bem, e justamente; Paraíso, como fez Cristo: Hodie mecum eris in Paradiso.
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deixais? O que dais, é o que não tínheis; o que deixais é o


que não podeis levar convosco, e por isso vos perdeis. Nu
XIV entrei neste mundo, e nu hei de sair dele, dizia Jó, e assim
Tenho acabado, senhores, o meu discurso, e parece-me saíram o bom e o mau ladrão. Pois, se assim há de ser,
que demonstrado o que prometi, de que não estou queirais ou não queirais, despido por despido, não é
arrependido. Se a alguém pareceu que me atrevi a dizer o melhor ir com o bom ladrão ao Paraíso, que com o mau
que fora mais reverência calar, respondo com Santo ao inferno?
Hilário: Quae loqui non audemus, silere non possumus: Rei dos reis e Senhor dos senhores, que morrestes entre
Oque se não pode calar com boa consciência, ainda que ladrões para pagar o furto do primeiro ladrão, e o
seja com repugnância, é força que se diga. — Ouvinte primeiro a quem prometestes o Paraíso foi outro ladrão,
coroado era aquele a quem o Batista disse: Non licet para que os ladrões e os reis se salvem, ensinai com vosso
tibi (33), e coroado também, posto que não ouvinte, exemplo, e inspirai com vossa graça a todos os reis, que,
aquele a quem Cristo mandou dizer: Dicite vulpi illi (34). não elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem
Assim o fez animosamente Jeremias, porque era mandado aumentando ladrões, de tal maneira impidam os furtos
por pregador Regibus Juda, et Principibus ejus (35). E se futuros, e façam restituir os passados, que em lugar de os
Isaías o tivera feito assim, não se arrependera depois, ladrões os levarem consigo, como levam, ao inferno,
quando disse: Vae mihi, quia tacui (36). Os médicos dos levem eles consigo os ladrões ao Paraíso, como vós
reis com tanta e maior liberdade lhes devem receitar a fizestes hoje: Hodie mecum eris in Paradiso.
eles o que importa à sua saúde e vida, como aos que
curam nos hospitais. Nos particulares, cura-se um (1) Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu
homem; nos reis, toda a República. reino: Hoje serás comigo no Paraíso (Lc. 23,42s).
Resumindo pois o que tenho dito, nem os reis, nem os (2) Zaqueu era um dos principais entre os publicanos, e
ladrões, nem os roubados se podem molestar da doutrina pessoa rica (Lc. 19,2).
que preguei, porque a todos está bem. Está bem aos (3) Zaqueu, desce depressa, porque importa que eu fique
roubados, porque ficarão restituídos do que tinham hoje em tua casa (Lc. 19,5).
perdido; está bem aos reis, porque sem perda, antes com (4) Recebeu-o alegremente (Lc. 19,6).
aumento da sua fazenda, desencarregarão suas almas. E, (5) Eu estou para dar aos pobres a metade de meus bens
finalmente, os mesmos ladrões, que parecem os mais (Lc. 19,8).
prejudicados, são os que mais interessam. Ou roubaram (6) Desce depressa (Lc. 19,5).
com tenção de restituir, ou não: se com tenção de (7) Naquilo em que eu tiver defraudado a alguém, pagar-
restituir, isso é o que eu lhes digo, e que o façam a tempo. lho-ei quadruplicado (Lc. 19,8).
Se o fizeram sem essa tenção, fizeram logo conta de ir ao (8) Hoje entrou a salvação nesta casa (Lc. 19,9).
inferno, e não podem estar tão cegos que não tenham por (9) Os seus príncipes eram no meio dela como uns lobos
melhor ir ao Paraíso. Só lhes pode fazer medo haverem que arrebatam a sua presa (Ez. 22,27).
de ser despojados do que despojaram aos outros, mas, (10) Não é grande furta quando algum furtar porque
assim como estes tiveram paciência por força, tenham-na furtar para saciar a sua esfaimada alma (Prov. 6,30).
eles com merecimento. Se os esmoleres compram o céu (11) Quem, podendo, não impede o pecado, ordena-o.
com o próprio, por que se não contentarão os ladrões de o (12) Paguei então o que não tinha roubado (Sl. 68,5).
comprar com o alheio? A fazenda alheia e a própria toda (13) Façamos o homem à nossa imagem e semalhança, o
se alija ao mar, sem dor, no tempo da tempestade. E qual presida (Gên. 1,26).
quem há que, salvando-se do naufrágio a nado e despido, (14) O que não entra pela porta, esse é ladrão e roubador
não mande pintar a sua boa fortuna, e a dedique aos (Jo. 10,1).
altares com ação de graças? Toda a sua fazenda dará o (15) Entrarão pelas janelas como um ladrão (Jl. 2,9)
homem de boa vontade por salvar a vida, diz o Espírito (16) Se o pai de famílias soubesse a hora em que viria o
Santo, e quanto de melhor vontade deve dar a fazenda, ladrão, não deixaria minar a sua casa (Lc. 12,39).
que não é sua, por salvar, não a vida temporal, senão a (17) Caiu-nos do céu um terceiro Catão (Juvenal, Sátira
eterna? O que está sentenciado à morte e à fogueira, não II, v. 40).
se teria por muito venturoso, se lhe aceitassem por (18) Como um ladrão de noite (1 Tes. 5,2).
partido a confiscação só dos bens? Considere-se cada um (19) Furtar.
na hora da morte, e com o fogo do inferno à vista, e verá (20) Despachou o rei Nabucodonosor correios para que se
se é bom partido o que lhe persuado. Se as vossas mãos e ajustem os sátrapas, os magistrados e os juízes (Dan. 3,2).
os vossos pés são causa de vossa condenação, cortai-os, e (21) São dignos de morte, não somente os que estas
se os vossos olhos, arrancai-os, diz Cristo, porque melhor coisas fazem, senão também os que consentem aos que as
vos está ir ao Paraíso manco, aleijado e cego, que com fazem (Rom. 1,32).
todos os membros inteiros ao inferno. É isto verdade, ou (22) Somente, porém, quando obriga a alguém ex officio,
não? Acabemos de ter fé, acabemos de crer que há como aos príncipes da terra.
inferno, acabemos de entender que sem restituir ninguém (23) Pois já não poderais ser meu feitor (Lc. 16,2).
se pode salvar. Vede, vede, ainda humanamente, o que (24) E este foi acusado diante dele (Lc. 16,1).
perdeis, e por quê. Nesta restituição, ou forçosa, ou (25) E o amo louvou este feitor iníquo, por haver obrado
forçada, que não quereis fazer, que é o que dais e o que como homem de juízo (Lc. 16,8).
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(26) Como quem havia dissipado os seus bens (Lc. 16,1).


(27) Em qualquer dia que comeres dele, morrerás de
morte (Gên. 2,17).
(28) Para que não suceda que ele lance a sua mão, e tome
também da árvore da vida (Gên. 3,22).
(29) Está bem, servo bom: porque foste fiel no pouco,
serás governador de dez cidades (Lc. 19,17).
(30) Sê tu também governador de cinco cidades (Lc.
19,19).
(31) Tirai-lhe o marco de prata (Lc. 19,24).
(32) Se vias um bom ladrão, corrias com ele (Sl. 49,18).
(33) Não te é lícito (Mc. 6,18).
(34) Dizei a esse raposo (Lc. 13,32).
(35) Aos reis de Judá e aos seus príncipes (Jer. 1,18).
(36) Ai de mim, porque me calei (Is. 6,5).

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