Você está na página 1de 8

4.

O ROMANCE HISTÓRICO DE ALEXANDRE HERCULANO (Artigo – Maria Fátima


Marinho)

- Início do século XIX:


Manifesta-se um novo interesse pelo passado, sobretudo nacional, e pela sua reconstituição,
fenómeno, este, influenciado, em primeira instância, pelas convulsões e instabilidades sócio-
políticas, iniciadas nos finais do século anterior (século XVIII), em contexto europeu, as quais se
traduzem, de forma geral, na queda dos regimes absolutistas, os quais vigoraram, até então, nas
nações europeias.
Assim sendo, dadas as circunstâncias anteriormente referidas, verificou-se uma certa
necessidade de resgatar das épocas pretéritas da existência humana, a identidade nacional dos
povos, a qual teria ficado, então, abalada, sendo, deste modo, necessário/urgente recuar à Idade
Média, período histórico, no qual teve, por definição, lugar a génese desta consciência coletiva de
pertença a um agregado populacional, regido, entre outros fatores, por uma mesma fonte de poder
político.
A Idade Média torna-se, então, um marco histórico aliciante, sendo por muitos eruditos,
nomeadamente, por Alexandre Herculano, considerada a chave para a prosperidade das nações,
passando a ser defendida a ideia de que estas, quando libertas do poder absoluto, apenas poderiam
progredir, caso adotados certos modelos governativos e administrativos importados de tal época.
Não será, por isso, de estranhar que, sob as roupagens da História narrada neste tipo de obra
romântica, seja exaltada, neste sentido, a importância do Municipalismo - “Deste modo, a aliança
tríplice da unidade monárquica, da ciência e do princípio da associação, cuja forma mais bela, mais
enérgica, mais vivaz tem sido e será sempre o município, era uma colisão que se tornava em toda a
Europa cada vez mais ameaçadora para a casta privilegiada, mas que em Portugal atuava com
dobrada violência na época de D. João I (...)” (Alexandre Herculano – O Monge de Cister, Tomo II,
p.80).
Assim, os estudos históricos, impulsionados, não só pela séria preocupação de estabelecer a
cientificidade de um disciplina, que, até então, vivia da confusão entre a realidade factual e a lenda
(motivo impulsionador da efabulação), esta última, produto da imaginação humana, como, também,
pelo intrínseco desejo de conhecer o passado, aliam-se, de modo indiscutível, à arte literária, a qual,
por sua vez, se liberta dos padrões clássicos, condicionantes, restritivos e normativos e, de certa
forma, universais que, até então, teriam impedido a individualização das várias artes nacionais, as
quais se tornam, finalmente, autónomas, residindo esta autonomia, embora regida por certos
princípios programáticos semelhantes/ comuns (analisados posteriormente neste resumo), no forte
pendor nacionalista, já mencionado.
Deste modo, surge, então, um novo género literário, o Romance Histórico, cuja
originalidade, caraterística típica romântica, derivada da modernidade e rutura com os padrões
arcádicos, residiria, não na situação da ação e das suas personagens no passado, técnica já utilizada,
mas, sim, na tentativa de reconstituição histórica do ambiente ( processo fulcral, sem o qual é
possível pensar em romance histórico, assente nos topoi de espaço e tempo) evocado, por via da Cor
Local e dos elementos que a acentuam (linguagem, vestuário, descrição de cidades), os quais não
seriam, por exemplo, valorizados nas obras seiscentistas e setecentistas. Parte-se, portanto do
princípio que a indistinção espácio-temporal se encontra, por definição, excluída deste tipo de
obras.
Sendo o Romance Histórico um género literário, tal como o próprio nome indica, capaz de
fazer culminar, em si próprio, dois domínios distintos do conhecimento humano, ou seja a História e
a Literatura, natural é, então, que as suas caraterísticas, embora, em parte, contraditórias, dado que o
primeiro, enquanto ciência, assegura a fidelidade ao real ou factual e o segundo, enquanto criação
artística, pressupõe uma certa liberdade do autor e, por isso, um certo afastamento da realidade,
entrando no domínio do ficcional, não apenas se encontrem, simultaneamente, presentes, como,
também, sejam, de igual modo, reproduzidas neste tipo de obras. Nesta linha de pensamento, é
possível, então, concluir que o romancista vive numa determinada oscilação entre o real e o
ficcional, possuindo a perfeita noção de que apenas poderá construir o seu passado se aceitar o
desafio da dialética entre verdadeiro e verosímil, entre o que viu realmente documentado e o que
imaginariamente afirma ter visto. Neste sentido, poder-se-á dizer que o próprio passado histórico se
abre, por si só, à efabulação, sendo considerado, meramente, como um ponto de referência (ideia de
Vigny – a história deve submeter-se à Literatura), quando transposto para a obra de arte e, aí,
convertido em passado arquetípico. Herculano, recorrendo à dificuldade, já referida, e até então
recorrente, de separação entre história (real) e lenda (fabuloso), afirma, então, aproveitar de cada
um, os aspetos mais úteis à concretização da sua narrativa - “Deste modo, sendo hoje dificultoso
separar, em relação àquelas eras, o histórico do fabuloso, aproveitei de um de outro o que me
pareceu mais apropriado” (Alexandre Herculano - Eurico, o Presbítero, p.308) -, resolvendo
rapidamente este par dicotómico. Deste modo, decide, então, assegurar a veracidade da sua
narrativa, não permitindo, ao mesmo tempo, que a sua liberdade seja condicionada e, para tal, ativa
determinados mecanismos.
Por um lado, mantém o velho tópico da veracidade e da sua atestação, empregues, já, por
Cervantes, Horace Walpole e, até outros autores de narrativas históricas, os quais lhe servem de
modelo, como Scott, Manzoni ou Victor Hugo (coloca-se na esteira destes). Para isto, o autor refere
manuscritos e documentos, supostamente verídicos e encontrados em conventos ou bibliotecas, dos
quais acaba por usufruir na construção da sua obra e, afirmando-se, o autor, como um mero
intérprete de textos escritos por outrem, se apresentam, ao público, como fontes fidedignas do
conhecimento histórico transporto à ficção.
Exemplo:
O Monge de Cister – Herculano afirma tratar-se de uma “história tirada de um manuscrito
que só eu vi, o que lhe dá certo perfume de santo mistério”.
Lendas e Narrativas - “Se a conto, é porque a li num livro muito velho. E o autor do livro
velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo (...)”

No entanto, Herculano, apesar de seguir os modelos que antecedem a sua obra, apresenta
uma exagerada predisposição/ tendência para a atestação da veracidade dos seus escritos, chegando,
por vezes, em Lendas e Narrativas, a transcrever, quase ou mesmo na íntegra, em linguagem
moderna, textos das crónicas medievais.

Exemplo:
1. Arrhas por Foro d’Hespanha – narrativa sobre as motivações que levaram, no ano de
1372, à guerra luso-castelhana, durante o reinado de D. Fernando
- trata-se de uma transcrição fidedigna da Crónica de D. Fernando, de Fernão Lopes,
apesar de existir a invenção de uma personagem inexistente no texto medieval, Frei Roy
(princípio da liberdade de efabulação)

2. O Castelo de Faria – lenda do ano de 1373 sobre o sacrifício do governador de Faria


para impedir que as terras portuguesas fossem tomadas pelos Castelhanos
- QUASE transcrição fidedigna de capítulos da Crónica de D. Fernando, de Fernão Lopes

3. O Bispo Negro – lenda, do ano de 1170, sobre o nobre Gonçalo Mendes da Maia, que
decidiu celebrar o seu 95º aniversário com um ataque aos mouros, tendo noção de que os
seus exércitos seriam menores, em número
- QUASE transcrição fidedigna da Crónica de D. Fernando, de Fernão Lopes, e da Crónica
de D. Afonso Henriques, de Duarte Galvão

Por outro lado, constrói o seu romance histórico, recorrendo a personagens ou heróis
inventados, arrastando, para segundo plano, as personagens referenciais, as quais, constituindo
figuras históricas de maior relevância e existência definida, como reis e estadistas, poderiam
condicionar a liberdade de escrita/ efabulação. Assim sendo, utiliza personagens totalmente
inventadas, mais livres de agir de acordo com os seus propósitos, enquanto protagonistas dos seus
enredos, sendo, estes aliás, portadores de caraterísticas modernas, românticas (analisadas mais à
frente, neste resumo), que se distanciam, consequentemente, do ambiente medieval.

NOTA:
Deste modo, na produção ficcional de Herculano, podemos destacar duas grandes
tendências:
1. Romance Histórico – personagens inventadas, que se movimentam no passado
2. os textos de Lendas e Narrativas – quase transcrição de capítulos das crónicas medievais

Assim sendo, no que diz respeito ao romance histórico, é possível afirmar que, tendo em
conta a natureza estrutural das personagens, a História funciona como um simples pano de fundo
da ação, sob o qual esta se desenrola, não apresentando um estatuto de primordial relevância. De
modo a cumprir o requisito de afastamento, relativamente ao tempo de enunciação da trama, o
autor recorre, através de uma descrição dos traços superficiais , a uma espécie de saturação de
informação do ambiente que evoca, imbuindo-lhe, por sua vez, um caráter medieval.

Elementos de Cor Local:


1. Linguagem:
- utilização de arcaísmos e dialetos
Exemplo: dialeto escocês, nas obras de Scott, na transcrição de falas de classes menos
cultas

2. Vestuário:
- pormenorização da indumentária
Exemplo:
- Herculano, o mouro Alle, de O Monge Cister
- Scott, surge como elemento de distinção entre as culturas escocesa e inglesa e as religiões
cristã e islâmica

3. Exaustivas descrições do espaço da cidade:


- arquitetura – A Abóbada
- topografia da cidade do Porto – Arrhas por Foro d’Hespanha
- manifestações populares – torneios (O Bobo), saraus (O Monge de Cister)
WALTER SCOTT (MODELO) E ALEXANDRE HERCULANO (Semelhanças e diferenças)

NOTA INTRODUTÓRIA:
Walter Scott – pai do Romance Histórico – publicação de Waverley, 1814
Nota 1 de Eurico, o Presbítero – Herculano refere Scott como sendo “modelo e
desesperação de todos os romancistas”

- Outros autores-modelo de Herculano:


- Alfred de Vigny
- Victor Hugo – referência no prefácio ao Arco de Santana
- Alessandro Manzoni
- Balzac

1. TRÊS PARALELISMOS ENTRE OS ROMANCES HISTÓRICOS PORTUGUESES E


EUROPEUS
1.1.
Eurico, o Presbítero – ataque dos árabes ao mosteiro
The Monastery (romance de Walter Scott, um dos romances de Waverley, situado nas
fronteiras da Escócia, centrado na Abadia de Melrose, na década de 1550 – véspera da
reforma protestante) – assalto das forças protestantes ao convento católico

1.2. (mesmos romances)


A Dama Pé de Cabra (mulher-demónio) apresenta reminiscências da White Lady (mulher-
anjo)

1.3.
Eurico, o Presbítero – profecia da morte de D. Fernando
Quentin Durwart (1823) ( romance de Walter Scott sobre um arqueiro a serviço de Luís XI,
na esteira das perturbações causadas na Europa pela Revolução Francesa e pela ascensão
de Napoleão) – profecias do astrólogo de Luís XI, predição de Guy Mannering
- Embora não sejam caraterísticas específicas deste género de romance, as premunições
servem, para além de mecanismos de antecipação da narrativa, para a integração do
narrador no espírito supersticioso, próprio da época que retrata
1.4.
Busca de Asilo na Igreja (Igreja = Asilo)
Notre- Dame de Paris – Esmeralda
O Monge de Cister – Fernando Afonso
Embora ambos procurem asilo na igreja, é necessário notar que tal justificação surge como
falaciosa no romance de Herculano, Fernando Afonso pretende, apenas, constatar a morte
de Beatriz e a respetiva vingança de Vasco

2. DIEGESE E PERSONAGENS

SCOTT HERCULANO
PAPEL DA HISTÓRIA (enquanto domínio/ ciência diferente de ação)
- na maior parte dos seus romances, a - a História é utilizada para intensificar o
História funciona como um assunto enredo ficcional, as personagens não são
primordial do texto símbolos dos processos históricos, funcionam,
apenas, como foco das emoções do leitor, dos
seus medos e das suas esperanças
ROMANCE CONJUNTIVO ROMANCE DISJUNTIVO
- o herói vê o seu destino confundido - o herói vê a sua vida seguindo um caminho
com a História, as suas ações interferem independente da conjuntura histórica
na História - destino das personagens é indiferente para o
curso da História
PERSONAGENS REFERENCIAIS (mais condicionantes da liberdade)
- segundo plano, sempre envoltas numa 2 MODOS DE INCLUSÃO:
certa obscuridade - Lendas e Narrativas – protagonistas, heróis e
heroínas
- Romances - segundo plano, sempre envoltas
numa certa obscuridade
HERÓIS E HEROÍNAS
MODERAÇÃO EXCITAÇÃO
Esta diferença nas personagens condiciona o final das tramas.
Se em Scott, os acontecimentos são de molde a torná-las felizes, no fim dos romances,
em Herculano, são também os acontecimentos que as tornam desgraçadas.
Segundo Lukacs, o herói scottiano é moderado, nunca se deixa envolver por uma paixão
que lhe retire a capacidade de discernimento e atuação -”a relação amorosa nunca é
suficientemente absorvente a ponto de transformar o herói ou de o fazer desviar-se do
seu caminho” - “ personagens isentas daquele desenfreado grau de paixão” - por isso as
narrativas de Scott terminam bem
As personagens de Herculano apresentam caraterísticas mais românticas, que
condicionam o desenlace
2.1. HEROÍNAS
As heroínas de Herculano, seguem, em geral, o padrão literário europeu, das heroínas
scottianas, distanciando-se, meramente, num último instante, no qual se dá o desenlace,
deste modelo.
- mulher + calma, + moderada, + resolvida, + passiva
2.1.1. Hermengarda – aceita, PASSIVAMENTE (moderação), a recusa do pai ao seu
casamento com um cavaleiro de inferior condição social, conformada até ao desenlace,
momento no qual reage, assumindo um desespero que a leva à loucura ( excitação – afasta-
se da heroína de Scott – perde o grau de discernimento)

2.1.2. Dulce (+ ativa) – tenta agir de acordo com as emoções, fazendo tudo para libertar
Egas
- movida pela paixão, subjuga-se a esta e suprime os seus ideais / convicções íntimas
( perde o grau de discernimento)

2.1.3. Diana Vernon (Rob Roy), Catherine Seyton (The Abbot) – colocam os seus ideais
acima das suas tendências pessoais ou sentimentos (NÃO perdem o grau de discernimento
ou de atuação)

2.2. HERÓIS
– naturalmente, românticos, partilhando, por isso, das caraterísticas inerentes à estética
romântica, estética esta que os afasta do contexto histórico, no qual se movimentam.

TEORIA DE DAVID T. GIES – a estética romântica assenta sob um paradigma de


contrastes ou oposições centrais do vocabulário:
- vida/ morte
- amor/ ódio
- luz/ escuridão
- anjo/ diabo
- Deus/ Satanás
- céu/ inferno
- salvação/ condenação
Se o par positivo recai, como vimos, no lado feminino, que se revela angelical, o mesmo
não se poderá afirmar do lado masculino, sob o qual recai o par negativo, de tal modo que ,
nos heróis, se manifesta, sobretudo o lado diabólico.

TÓPICO DA FATALIDADE
- são vítimas das circunstâncias infelizes do seu percurso - batem-se por uma causa que a
priori está irremediavelmente perdida
– são incapazes de se libertarem ou de fugir ao seu destino, para o qual concorrem, sem
nada poderem fazer para o evitar. Embora surjam, nas tramas, certas tentativas de correção
desse mesmo destino, as chamadas tentativas de evasão (como, por exemplo, o tópico do
simulacro, como tentativa de descarregar todas as pulsões negativas e agressivas – Eurico
transfigura-se em cavaleiro negro, assumindo uma outra personalidade), arrastam-se para
situações cada vez mais negativas (sem capacidade de sublimação), resultando as suas
atitudes no inverso do que pretendiam
- entregam-se à vida religiosa - a figura do monge não tem nada a ver com a execução do
ministério religioso nem com o maravilhoso ligado às solenidades da Igreja. O autor de O
Bobo pretende, através dos seus monges, sem vocação, demonstrar, por um lado, a terrível
solidão monástica e, por outro, o erro em que as personagens incorrem ao abraçar uma vida
para que não foram talhadas
- levados pelo desespero ontológico, Eurico entrega-se à morte e Vasco ao desejo de
VINGANÇA, negando confissão a Fernando Afonso (suprema vingança à luz da moral
cristã)

NOTA FINAL:

- Muito mais desesperadas do que os moderados e fleumáticos heróis scottianos, as


personagens do escritor português batem-se sempre por uma causa que a priori está
irremediavelmente perdida. Levadas por uma fatalidade esmagadora, elas caminham para
uma morte angustiada e violenta. Não são os movimentos sociais ou as crises sócio-
políticas que interessam. A invasão dos árabes, a luta entre D. Afonso Henriques e D.
Teresa ou a política de D. João I são meros acidentes na vida desses heróis que correm
vertiginosamente para um abismo que nunca tentam evitar.

- O estudo das caraterísticas românticas das personagens enfatiza, mais uma vez, a
superficialidade da reconstituição do passado histórico, assente, meramente, na descrição
das caraterísticas exteriores do ambiente evocado.

Você também pode gostar