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3.6. Teoria política, o De Republica.

Uma das obras onde melhor se pode avaliar o grau de originalidade dos tratados filosóficos de Cícero é justamente o De
republica, tratado de ciência política composto entre 54 e 51 a. C., que sucede cronologicamente ao De oratore
e é o primeiro tratado filosófico composto por Cícero e também um dos mais originais. A história da transmissão
deste texto é um dos casos mais curiosos da Cultura Ocidental: no tempo de S. Isidoro ainda se podia ler na
íntegra toda a obra; na Idade Média desapareceu, à excepção do final do tratado (o Somnium Scipionis
preservado integralmente por Macróbio). Petrarca e outros humanistas do Renascimento bem o procuraram de
convento em convento, mas só foi reencontrado no séc. XIX por Angelo Mai, num palimpsesto da Vaticana.
Embora o autor designe esta obra de variadas formas (De Republica disputatio, De optima Republica, De optimo Reipublicae
statu, De optimo ciuitatis statu et de optimo ciue), o título que veio a prevalecer na tradição estabelece desde
logo correspondência com o modelo grego mais evidente embora não o único, a Politeia, A República de Platão.
Cícero, regressado do exílio, luta pela conservação e renovação de um regime, das instituições republicanas, que já não
satisfaziam as necessidades criadas pelas conquistas e pelo império, simboliza as últimas lutas pela liberdade
em Roma (Alain MICHEL). Antes de Cícero não há em Roma verdadeiramente ciência política; é o primeiro a
confrontar sistematicamente as necessidades da acção política com a reflexão filosófica. O pensamento político
de Cícero não cabe nos estreitos limites da oposição partidária do tempo, optimates/populares; cavaleiro da
nova aristocracia provinciana (eques, equitis), Cícero é um homo nouus, que procura abrir espaço para a
participação deste ordo na vida política. Quando cônsul, Cícero procura seguir um programa subordinado ao
princípio da concordia ordinum, aliança entre essa nova aristocracia das províncias, os equites, os cavaleiros e
o Senado. O fracasso relativo da sua actuação leva Cícero, depois do exílio, a elaborar uma nova fórmula, o
consensus uniuersorum bonorum. Sobretudo no De republica e no De legibus, mas também no De oratore e no
Orator, Cícero aborda aspectos desse empreendimento mais geral: fundar os alicerces de uma ciência e de uma
prática políticas. No De Republica, partindo de um modelo grego procura adequar a discussão das doutrinas
gregas à realidade da política romana.
São muitas as personagens do diálogo, embora todas girem à volta de Cipião Emiliano e Lélio. O protagonista é Cipião
Emiliano, porta-voz do pensamento do autor que apenas expressa as suas ideias na primeira pessoa nos
preâmbulos do diálogo; este Cipião é o filho de Paulo Emílio, adoptado pelos Cipiões, estadista e general que
pôs fim às guerras púnicas e que se destacou ainda como pacificador da Hispânia, apesar de casado com
Semprónia, irmã dos Gracos, aprovou o assassínio de Tibério Graco em 129 a. C., ano em que se passa a acção
do diálogo, a data dramática do diálogo são as Férias Latinas de 129; Cipião estaria nesta altura pelos 55 anos,
vindo a morrer pouco depois em circunstâncias um tanto misteriosas.
Outras personagens do diálogo: Quinto Élio Túbero, sobrinho de Cipião, uma das figuras mais jovens, cultiva a filosofia com
paixão, professando o estoicismo; Lúcio Fúrio Filo, amigo de Cipião e Lélio, grande admirador da cultura grega
como o atesta o seu cognome, era tido na conta de grande orador e perfilhava o academismo; Públio Rutílio
Rufo, admodo adolescens, era aluno de Panécio, mais tarde, exilado em Esmirna, mostrou-se firme na sua
preferência pelo estoicismo, aí viveu até morrer entregue ao estudo; Gaio Lélio, mais velho que Cipião é o seu
grande companheiro, foi também cônsul e áugure, e igualmente seguidor dos estóicos Diógenes e Panécio;
Espúrio Múmio, irmão do vencedor da Grécia, acompanhou Cipião ao Oriente e foi também estudioso do
estoicismo; Gaio Fânio, genro de Lélio, participou na conquista de Cartago, foi igualmente cônsul e aluno de
Panécio, além de historiador e orador; Quinto Múcio Cévola, outro genro de Lélio, ainda cônsul e discípulo de
Panécio, foi notável jurista e o primeiro patrono de Cícero; Mânio Manílio, como outras figuras históricas deste
diálogo alcançou o consulado e combateu em África sob as ordens de Cipião, destacou-se também como jurista.
Todas estas personagens pertenciam à história romana, como igualmente históricos eram os laços que os uniam, laços de sangue,
familiares, políticos ou simplesmente de amizade. Cícero, no entanto, dá de todos eles uma imagem idealizada,
destacando sobretudo a figura de Cipião Emiliano que noutras fontes (Políbio, Tito Lívio e Ápio) não surge tão
favorecida. Cícero oculta, por exemplo, o comportamento de Cipião para com os povos vencidos, a dureza e
crueldade de que deu provas em Cartago e Numância contraditavam a nobreza humanista com que nos é
apresentado no De Republica.
Estrutura e temática do diálogo - como noutros tratados (Dos Limites Extremos, Tusculanas, Do orador, Dos Deveres) Cícero
antepõe a cada livro um prefácio em que se expressa na primeira pessoa, nesses preâmbulos procura justificar a
sua acção.
No prefácio ao Livro I rejeitando as doutrinas epicuristas que recomendavam a abstenção da vida pública, exalta como forma
superior da virtude a participação no governo da cidade, partindo do ideal estóico do sapiens identificado com
o estadista, afirma a superioridade do homem público sobre a filosofia meramente especulativa, justifica a
composição de um tratado de ciência política enquanto forma de pôr o otium ao serviço do bem comum,
Romana, pp. 29-32, 'A suprema virtude exerce-se na governação', 'O sábio e a política', 'Justificação deste
tratado'.
A discussão inicia-se a propósito do prodígio meteorológico que então assombrara os romanos, vira-se um duplo sol, fenómeno
logo interpretado como sinal da divisão gerada pela acção política de Tibério Graco e pela sua morte, divisão
que opunha o Senado ao povo. Este tema anuncia em ring-composition a apoteose final do diálogo (a descrição
no Somnium Scipionis do Universo com as suas nove esferas e a Terra ao centro), em que o destino do herói e
o destino de Roma são integrados no devir do universo, numa visão que situa a acção do estadista ideal no plano
celeste e divino. A acção dos heróis é anunciada, como na predestinação estóica, através de fenómenos
atmosféricos e meteorológicos.
Desenvolve-se o assunto do diálogo proposto no prefácio: o tema da conciliação ideal da teoria e da prática, qual a melhor
constituição política. Cipião, como princeps da República, com a autoridade que lhe advém da sua experiência
política conjugada com o conhecimento teórico das doutrinas dos gregos, defende a velha constituição romana.
Note-se desde já que as qualidades que autorizam Cipião a expor o tema são as mesmas que Cícero reivindica para escrever
este tratado, aliás, as circunstâncias políticas de 129 eram muito semelhantes às do tempo da composição do
diálogo (54-51 a. C.).
Cipião define Res publica como res populi, e populus como reunião de indivíduos, querida pela natureza, que se associam iuris
consensu et utilitatis communione, pela sua adesão a uma lei e pela comunhão de interesses, definição estóica e
aristotélica em que avultam os conceitos de natureza e direito. Romana, 'Res publica', p. 35, 'Res publica res
populi', p. 33. Refuta-se a teoria utilitarista da origem das cidades, a concórdia como aspiração natural (C.
NICOLET), no De oratore oratio/ratio são factores de civilização.
Cipião distingue as várias constituições, os três regimes puros da tradição grega: monarquia, quando o consilium é confiado a
um só, aristocracia se confiado a alguns, democracia quando confiado a todos, Cícero procura substituir as
designações gregas por equivalentes latinas, regnum, ciuitas optimatium, ciuitas popularis, Romana, 'Formas
de constituição política', pp. 33-34.
Mas, mesmo que o poder seja exercido com justiça, difícil será conciliar aequabilitas, direito a igualdade de tratamento, com
dignitas, direito ao reconhecimento de serviços individuais, p. 34.
Estes regimes facilmente degeneram em 3 formas de dominação: tirania de 1 só, de 1 grupo ou da multidão, pondo em causa a
libertas só possível com a concordia, Romana, p. 34.
Ainda aqui é evidente a influência grega sobretudo de Platão, modelo deste diálogo. Cipião à pergunta de Lélio responde que
se tivesse de escolher preferiria o regime monárquico, por ser mais conforme à organização dos deuses, do
mundo, da família e da própria alma. A novidade romana surge na conclusão, a melhor das constituições é a
romana, a permixta constitutio, por combinar elementos dos três regimes puros, por conjugar libertas, p. 34,
aequabilitas 'direito a igualdade de tratamento', com dignitas 'direito ao reconhecimento dos serviços prestados',
e assim evitar a degeneração em formas de dominação, do tirano, da facção ou da turbamulta, obtendo-se a
estabilidade, Romana, 'A constituição ideal é a romana', p. 35-36.
Cipião defende uma 4ª forma de constituição, o genus mixtum, a constituição mista elaborada pelos antigos romanos. É que os
romanos não são bárbaros, desde os tempos primitivos que tinham acolhido a cultura grega, p. 37, 'A cultura
grega no tempo de Anco Márcio (fundador de Óstia)'; no tempo de Cipião a cultura romana é já autónoma e
neste ponto em nada é inferior à grega, Romana, 'Os Romanos não são bárbaros', p. 35. Com este esforço em
igualar a língua latina à grega, utraque lingua, de que resulta uma equivalência cultural entre Grécia e Roma,
lançam-se as bases da unidade cultural hoje chamada Antiguidade Clássica. Através de Cipião Emiliano, Cícero
procura demonstrar que a melhor forma de constituição existiu realmente e se desenvolveu em Roma no período
que medeia entre o primeiro rei e o surgimento da Lei das Doze Tábuas.
O Livro II ilustra com múltiplos exemplos a história da organização política de Roma desde a fundação da cidade até à redacção
da Lei das XII Tábuas, aproximando-se «de facto, de um ensaio de história de Roma» (F. OLIVEIRA).
Contrapõe-se à cidade imaginária do grego Platão, a constituição concreta descrita pelo romano Cipião,
comparada a um organismo vivo. Ao contrário de Platão, Cícero não descreve uma cidade ideal, utópica, que
não existe, que cada um pode «fundar para si mesmo», na sua alma («cidade nova imaginada em livros», De
oratore 1.51.224), mas sim uma cidade real, a república romana, um Estado notabilíssimo, «a superioridade da
constituição romana e a sua identificação com uma constituição mista tornam-se verdades nacionais,
dispensando de qualquer exercício de utopia política»:
De Rep. 2.3.: «Por esse motivo, como ele costumava fazer, assim agora a minha exposição recordará a origem
do povo romano; de facto, de bom grado eu uso até as palavras de Catão. Ora, se vos mostrara a nossa república
a nascer, a crescer, no seu estado adulto e já firme e robusta, alcançarei o que me propus mais facilmente do que
se, para mim, eu criar uma ficção, como Sócrates em Platão» (F: OLIVEIRA).
Vd. ainda Romana, 'a cidade ideal de Platão e a cidade real de Cícero', p. 38.
Todo este livro é essencialmente romano. Cipião acolhe-se à autoridade de Catão e, sonegando a oposição entre filelenismo e
anti-helenismo, representada pelos Cipiões e Catão, sublinha a especificidade e originalidade romanas, a sua
organização política formou-se pouco a pouco ao longo de gerações, não foi totalmente criada e imposta ao
povo por um legislador como sucedera nas poleis gregas, Romana, 'A República Romana', pp. 36-37.
De entre os reis dos tempos primitivos de Roma destaca-se a figura de Sérvio Túlio e a dita 'constituição serviana' com a sua
organização censitária, por já conferir uma certa igualdade aos diferentes corpos da população, prefigurando a
constituição mista (2.40: «(…) ninguém era privado do sufrágio e, no sufrágio, valia mais aquele a quem mais
interessava que a cidade estivesse na melhor situação»). Na história romana colhe Cipião exemplos modelares
do estadista ideal, o quasi tutor et procurator rei publicae, 'uma espécie de tutor e procurador do Estado»,
contraposto ao tirano que os romanos confundiam com o rei, perspectiva histórica que faltava aos filósofos-
guardiões da cidade utópica de Platão. O regime misto da constituição romana, regido pela concordia, é
comparado à harmonia das vozes de um coro, ou à harmonia que resulta da execução da música de vários
instrumentos, assim condição do optimus status rei publicae é o equilíbrio que gera a concórdia, que só é
possível com a justiça.
A exigência de concordia evidencia-se na ideia de consenso que aproxima Catão dos Cipiões, que não corresponde inteiramente
à realidade histórica (F. OLIVEIRA), e ainda no aproveitamento das lendas romanas como o rapto das Sabinas
que toma como exemplo de concórdia, neste caso princípio de política externa, ou a superioridade romana
evidenciada no estabelecimento do princípio da monarquia electiva, após a morte de Rómulo, segundo a ideia
de que o povo é fonte de poder, concepção presente ainda nas referências a Tulo Hostílio.
Ora, o tema do Livro III é precisamente a questão da justiça no Estado. No preâmbulo deste livro Cícero retoma algumas ideias
do estoicismo: o homem primitivo, débil e inerme, possui uma chama divina, inteligência inata que da miséria
original o leva de progresso em progresso a constituir formas de organização social e política, graças sobretudo
à descoberta da linguagem, da escrita e do cálculo. O fundamento do direito é a lei natural, a recta razão, trecho
citado pelo novo Catecismo da Igreja Católica, p. 39. Seguiam-se neste livro III, de acordo com resumos feitos
por Santo Agostinho (o códice da Vaticana encontra-se neste livro muito mutilado), três discursos sobre a
justiça, discursos contra e a favor da justiça à maneira de Carnéades, cabendo o primeiro a Lúcio Fúrio Filo e o
segundo A Lélio. No último discurso, a cargo de Cipião defende-se a ideia de que sem justiça não há respublica
nem populus. Como observa A. MICHEL, procura-se «conciliar mais uma vez as conclusões estóicas com os
métodos da dúvida académica».
Do Livro IV o palimpsesto dá-nos apenas quatro fólios; o elemento principal neste livro é a oposição alma/corpo, a propósito
da qual se discorre sobre algumas ideias romanas como mos maiorum, uerecundia 'o respeito por si mesmo e
pelos outros', fides. Depois passa-se ao tema da educação que deve estar na base da organização política romana,
da constituição mista; Cícero neste ponto tem presente, como ele próprio reconhece, o desenvolvimento do tema
na República de Platão. Há porém algumas notas tipicamente romanas: Cipião elogia a educação familiar e
privada, insurge-se em nome da uerecundia contra a prática grega de os adolescentes se exercitarem nus no
ginásio, ainda em nome da continentia e da pudicitia recusam-se as ideias platónicas da educação das crianças
pelo Estado, da educação mista e das comunidades de mulheres e de crianças. Passa-se assim à história dos
costumes em Roma, destacando-se a criação da magistratura encarregada de velar pela uerecundia, a censura.
É ainda em nome da uerecundia, que Cipião critica, ainda que de forma mais moderada do que em Platão, as
comédias e a música por ultrapassarem por vezes os limites da decência. Trata-se pois de uma virtude do próprio
Estado Romano, surgindo assim a uerecundia, o respeito por si mesmo e pelos outros, associada a outro valor
romano, a fides, 'garantia' no latim republicano, 'confiança' a partir de Cícero, isto é, a 'boa fé, lealdade', que
deve regular as relações entre os romanos mas também as relações de Roma com os outros povos mesmo com
os inimigos.
Do Livro V temos somente três folhas no palimpsesto. No preâmbulo Cícero opõe o presente, no qual a República só existe de
nome, aos tempos em que, nas palavras de Énio, o Estado Romano subsistia graças aos costumes de outrora e
graças aos homens formados nesses costumes, Romana, 'O valor dos costumes tradicionais', p. 39-40.
O tema deste livro é justamente qual a formação que deve receber o homem de Estado, o rector et gubernator ciuitatis por
outras palavras o quasi tutor et procurator rei publicae. Formado nos exemplos do passado, deve o estadista
espelhar virtudes como uerecundia, iustitia e frugalitas, a parcimónia. Neste ponto o De Republica aproxima-
se do De oratore quando neste tratado de retórica Cícero se ocupa da formação do orador , aliás, o orador ideal
é aí apresentado como homem político, como estadista.
Da primeira parte do Livro VI restam-nos escassos fragmentos. A discussão centrar-se-ia ainda sobre a figura do rector rei
publicae, identificado com o optimus ciuis. A segunda parte do livro VI éo famoso epílogo que circulou,
ininterruptamente, sob o título de Somnium Scipionis.
O Sonho de Cipião apresenta-se como grandioso finale, réplica do mito de Er, mito escatológico com que Platão termina a sua
República. O ponto de partida de Cícero é o mesmo: há no além uma recompensa para os que praticaram a
justiça e a sabedoria, embora se acrescente um valor romano, a pietas. Paulo Emílio recomenda ao filho que
pratique a justiça e a pietas por forma a alcançar depois da morte o prémio eterno, recomendação em que há já
uma cor romana. Há porém outras diferenças relativamente ao modelo grego: em vez de 1 experiência feita no
além por 1 desconhecido, o Er da Arménia platónico, temos uma revelação feita em sonhos por uma das
personagens mais ilustres da história romana, Cipião o Africano Maior, alteração que concorda com o fundo
romano de todo o diálogo.
Depois de uma breve introdução formada pelo encontro de Cipião Emiliano com Massinissa, principia o sonho com a aparição
de Cipião-o-Africano Maior. Primeiro faz-se uma exortação à uirtus, porque para aqueles que socorreram,
salvaram e dilataram a pátria, está no céu reservado um lugar de bem-aventurança eterna. Depois descreve-se o
universo com as suas nove esferas com a Terra ao centro. Desta contemplação decorre o motivo do desprezo da
glória terrena por limitada no espaço e no tempo, Romana, 'O sonho de Cipião', pp. 40-47.
As fontes principais do diálogo são a República, o Fedro e o Fédon de Platão, os escritos de Panécio e Políbio. O Sonho de
Cipião, por sua vez, para muitos autores (USENER, BIGNONE, LEEMANN), teria como modelo principal o
Protreptikon de Aristóteles, texto hoje perdido. Karl BÜCHNER, porém, contesta essa aproximação, analisando
os fragmentos conhecidos, considera reduzido o seu influxo no Somnium, concluindo tratar-se de um texto
profundamente unitário que se articula na perfeição com as questões debatidas ao longo do diálogo. Identifica
no Sonho múltiplas crenças tradicionais que sob diferentes formas se encontravam em Énio e Lucrécio, nos
pitagóricos, em Platão e Heraclides Pôntico, no helenismo (Karl BÜCHNER, Somnium Scipionis, Wiesbaden,
F. Steiner, 1976, p. 18). Cícero, ao conceder a primazia aos estadistas em detrimento dos filósofos, estaria a ser
original, aproximando-se mais das doutrinas dos estóicos, pois é esse o pano de fundo do Somnium, as doutrinas
estóicas sobre o universo e sobre a alma, às quais Cícero acrescenta noções tradicionais como a música das
esferas, a harmonia universal, ligando o destino do optimus ciuis do homem de Estado, ao destino da Respublica
e o destino desta ao do próprio universo, conferindo dimensão cósmica à acção do estadista.
Para M. H. ROCHA-PEREIRA há no Somnium uma desvalorização da glória «bem ao invés da prática usual ciceroniana» (cf.
Pro Archia ); mas no Somnium não se trata tanto de desvalorizar a glória quanto de distinguir, à maneira
platónica, a verdadeira glória da aparência de glória, desvaloriza-se não a glória mas sim a falsa glória, a glória
terrena, em nome da verdadeira glória; a oposição entre verdadeiro e falso, autêntico e aparente é um
procedimento habitual em Cícero, v.g., a oposição entre o útil e a aparência de utilidade, o falso útil no De
officiis. Por outro lado não se pode especular muito sobre esta questão porque nos faltam elementos essenciais,
o tratado em Cícero se ocupa deste assunto, o De gloria, perdeu-se.

1. Textos
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2. Estudos
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