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nas Tusculanas e nas Partitiones, centra-se nas figuras de Crasso e António, os dois grandes oradores da geração
anterior a Cícero; discute duas questões, qual a cultura que deve possuir o orador, qual a natureza da sua arte.
Entram em contradição duas teses, a de Crasso, que o domínio da eloquência se estende a todas as actividades
humanas donde se segue que a cultura do orador deve ser enciclopédica; a tese mais restritiva de António que
circunscreve a acção do orador a três officia: probare (pelas provas lógicas dos loci argumentorum, lógos),
conciliare (por meio das provas éticas, ethos do orador, o delectare, agradar), permouere (com as provas
psicológicas, pathos do ouvinte, o flectere), da qual decorre apenas a exigência de uma formação técnica. Do
debate resulta a afirmação da eloquência como fundamento da civilização humana, e no caso romano como um
dos pilares da ordem republicana, a libertas da Respublica, res populi supõe o poder da toga não o poder das
armas.
Cícero recorre à fonte grega, como confessa em carta a Lêntulo (Ad familiares, 1.9) «compus à maneira de Aristóteles três
livros sobre o Orador sob a forma de diálogo, (…) reúnem toda a doutrina dos antigos, tanto de Isócrates, como
de Aristóteles».
No entanto Cícero antepõe à autoridade dos gregos, a sabedoria dos homens experientes, dos romanos,
procurando atingir ainda outro objectivo de interesse nacional, dotar a língua latina da pureza e brilho que a
tornassem digna companheira do poderio romano.
é um ancião, Céfalo, quem convida Sócrates para o debate, figura que tb abandona o diálogo depois de ter
limitado os termos da discussão.
Caracterização de Crasso:
- um novo Górgias, um sofista redivivo? O próprio Crasso (1. 112) afasta essa acusação, mas não em nome do
espírito socrático, sim em nome do espírito romano.
- ou o Sócrates romano? O Livro I toma como modelo o Fedro platónico, substituído no Livro III pelo Fédon
ao tratar-se da questão da imortalidade da alma, o Fédon com a Apologia era o testamento de Sócrates, seria o
Livro III do De oratore o 'canto do cisne' de Crasso? De novo ganha importância o preâmbulo deste Livro III,
aí Cícero considera o último discurso de Crasso contra Filipe a causa da morte do protagonista do diálogo,
designando essa última oratio como cycnea uox, 'canto do cisne', aproxima os últimos momentos de ambos,
Sócrates e Crasso esperam o pior, ambos fazem a sua defesa de tal modo que de réus se transformam em
acusadores, ambos mostram a mesma atitude de desafio, a mesma indiferença perante a morte. Crasso é
caracterizado com os traços do herói filósofo; é expressamente colocado na galeria dos mártires filósofos,
recordam-se os casos de Anaxarco e de Zenão de Eleia, além claro está do caso de Sócrates.
Objecções à aproximação Crasso/Sócrates:
- o Livro III do De oratore não pode em rigor ser considerado o canto de cisne de Crasso, apenas sofreria tal
comparação o discurso relatado por Cícero no prefácio, no corpo do Livro III trata-se da elocução e da acção,
questões retóricas
- A semelhança com os heróis filósofos pode ser fortuita, Cícero provavelmente altera os factos históricos para
aumentar a glória do seu herói, forçando através da selecção criteriosa dos acontecimentos, a aproximação do
cônsul Filipe aos juízes de Sócrates e de Crasso ao filósofo. Temos afinal o mesmo processo de idealização do
protagonista do diálogo que encontrámos na República relativamente a Cipião Emiliano.
Conclusão: Talvez seja mais acertado, na esteira da maioria dos comentadores desta obra, considerar Crasso como
representação indirecta do próprio Cícero, na caracterização de Crasso confluem elementos da biografia do
autor latino, no final do prefácio do Livro III Cícero afirma explicitamente que está preparado para sofrer pela
República, pelo bem-comum.
Há pois uma teia de relações intertextuais e contextuais que tornam o protagonista do diálogo ponto de encontro de figuras da
história literária e política, cruzamento de várias memórias do passado remoto, literário, do passado próximo,
histórico, do presente dramático, literário, e do presente tempo da composição, histórico, de tal forma que
literatura e vida se mostram existencialmente implicadas, superando-se assim a aridez habitual dos tratados
técnicos de retórica, de maneira que Cícero, pospondo o didactismo do género, eleva o debate, do ponto de vista
formal e intelectual, às alturas do diálogo filosófico.
Esquema de W. GÖRLER:
CRASSO
CRASSO
Bibliografia
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3.5.7. A humanitas ciceroniana, um programa de cultura intelectual.
De oratore, 1.5.17, 1.6.20, Romana, 'O perfeito orador', p. 25.
Estamos no prefácio do Livro I, Cícero justificando a composição do seu diálogo, aduz agora as causas da escassez de grandes
oradores, muitas e variadas qualidades, profundos e múltiplos conhecimentos são necessários num só homem
para fazer o orador perfeito.
De oratore, 1.34.158-159, Romana, 'A formação do orador', p. 26.
Na segunda parte do Livro I discute-se a formação dos orador, nos §§ 131-157 anteriores a este trecho Crasso expõe a tríade
pedagógica que vinha desde Isócrates, condições que deve satisfazer o orador perfeito, talento, arte, prática,
neste ponto recomenda os exercícios orais e escritos como prática frequente, a melhor forma de aprender a falar
bem é escrever, Stilus optimus et praestantissimus dicendi effector ac magister 'a pena é o melhor e o mais
eficiente mestre da arte de falar' (1.33.150), a leitura de poetas e oradores, a exercitação da memória e da
pronuntiatio, o hábito de falar em público, a redacção de discursos a favor e contra, o estudo do direito e da
ciência política, a procura de um estilo agudo e agradável.
Aristóteles, na Retórica 1.4 e 8, enumera os conhecimentos que considera indispensáveis ao orador para falar na assembleia,
necessários portanto à oratória deliberativa: economia, direito, ciência política, estratégia militar (guerra e
defesa da paz, protecção do território).
No Do orador de Cícero o programa de formação do orador é muito mais vasto:
leitura dos poetas, conhecimento da literatura, estudo da história, estudo do direito e das coisas antigas, das
tradições do Senado, teoria política, tratados e convenções, conhecimento da alma humana, estudo da
psicologia,
procura-se a união da filosofia e da eloquência, o orador deve possuir uma cultura universal, realizar a síntese entre a retórica
e a filosofia.
ao orador perfeito exige-se dotes naturais, ingenium, amor e conhecimento da arte, studium, ars, prática oratória, exercitatio,
além de uma cultura enciclopédica, a doctrina. Crasso e António como declara Cícero no prefácio ao livro II
satisfaziam essas três condições, apesar de afectarem, por respeito ao preconceito romano, desprezo pelo
helenismo, a verdade é que ambos possuíam essa cultura geral, essa doctrina.
Romana, 'O valor da oratória', pp. 27-28.
Da tríade pedagógica, Cícero, todavia, valoriza sobretudo as qualidades naturais, o ingenium, a técnica, a arte, tem valor
limitado, não foi a eloquência que nasceu das regras, mas as regras que nasceram da eloquência. Mais, à
autoridade dos gregos Cícero antepõe o saber dos homens experientes, a tradição romana, donde o lugar de
relevo agora concedido ao direito, a Lei das XII Tábuas ultrapassa em autoridade e utilidade as bibliotecas dos
filósofos, Romana, p. 26.
A maior contribuição ciceroniana para a história da retórica, além dos seus discursos, foi a sua concepção dos officia oratoris,
dos deveres do orador, valendo-se dos três modos de prova, retóricos, éticos e psicológicos, que estavam na
Retórica de Aristóteles, Cícero aponta (De oratore, Orator) como deveres do orador: probare, delectare,
flectere, provar, agradar, comover, a que correspondem os três géneros de estilo, humilde, médio e elevado,
concepção que será retomada por Quintiliano e sobretudo por Santo Agostinho.
Contribuições de Cícero para o desenvolvimento da retórica: O orador deve ter uma boa preparação intelectual; recusa da
superficialidade; exaltação da oratória a actividade intelectual mais excelente; relação entre as três funções do
orador e os três níveis de estilo; a retórica com Cícero transformou-se num fim em si mesma; como observa
Atkins (II, p. 27) foi o primeiro a ter uma noção clara da importância da tradição anterior, o primeiro a olhar
para a Antiguidade.
F. WEHRLI: «o aprofundamento de um programa de educação retórica até ser o modelo do homem de Estado romano é o
contributo pessoal de Cícero no De oratore», cf. «Studien zu Cicero De oratore», Museum Helveticum 35
(1978), p. 89.
O tema da aliança entre eloquentia e sapientia está no centro do debate do De oratore
No Livro III, 20-21, Crasso enuncia as razões da sua posição intransigente quanto ao binómio sapientia/eloquentia, citando
Platão (illa Platonis uera et… certe non incondita uox) reitera a ideia de que as ingenuae et humanae artes estão
ligadas por um vínculo comum uno quodam societatis uinculo contineri, a eloquência é só uma e uma só, ideia
que, aliás, já Cícero desenvolvera no Pro Archia, 1, 2, a propósito do conceito de humanitas.
No De oratore, I. 185-191, quando se trata do orator sapiens, surge a mais antiga alusão ao conceito de ægkúklioç paideía
no sentido de erudição em todos os domínios servindo uma educação propedêutica, prévia e indispensável a
toda a actividade especializada, 'ensino corrente, cultura geral', cf. M. DE RIJK, «\Egkúklioç paideía. A