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3.5. Do orador.

3.5.1. A composição do De oratore.


Em Setembro de 57 Cícero regressa do exílio, cheio de ilusões quanto ao seu reingresso na actividade política, no ano seguinte
desenvolve intensa actividade no foro (Pro Sestio, In Vatinium, Pro Caelio, Pro Balbo); em 55 vem a desilusão,
celebra-se o primeiro triunvirato entre Crasso, César e Pompeu, Roma é devastada pelos bandos de Milão e
Clódio, Cícero afasta-se do Senado e do Forum entregando-se ao otium, assim em Novembro de 55 numa carta
a Ático informa que tem pronto o De oratore.
O Do orador apresenta-se por um lado como um balanço da actividade oratória de Cícero, e por outro como um programa
completo de cultura intelectual; o diálogo, diálogo narrativo, como a República, ≠ do diálogo dramático usado

nas Tusculanas e nas Partitiones, centra-se nas figuras de Crasso e António, os dois grandes oradores da geração
anterior a Cícero; discute duas questões, qual a cultura que deve possuir o orador, qual a natureza da sua arte.
Entram em contradição duas teses, a de Crasso, que o domínio da eloquência se estende a todas as actividades
humanas donde se segue que a cultura do orador deve ser enciclopédica; a tese mais restritiva de António que
circunscreve a acção do orador a três officia: probare (pelas provas lógicas dos loci argumentorum, lógos),
conciliare (por meio das provas éticas, ethos do orador, o delectare, agradar), permouere (com as provas
psicológicas, pathos do ouvinte, o flectere), da qual decorre apenas a exigência de uma formação técnica. Do
debate resulta a afirmação da eloquência como fundamento da civilização humana, e no caso romano como um
dos pilares da ordem republicana, a libertas da Respublica, res populi supõe o poder da toga não o poder das
armas.
Cícero recorre à fonte grega, como confessa em carta a Lêntulo (Ad familiares, 1.9) «compus à maneira de Aristóteles três
livros sobre o Orador sob a forma de diálogo, (…) reúnem toda a doutrina dos antigos, tanto de Isócrates, como
de Aristóteles».
No entanto Cícero antepõe à autoridade dos gregos, a sabedoria dos homens experientes, dos romanos,
procurando atingir ainda outro objectivo de interesse nacional, dotar a língua latina da pureza e brilho que a
tornassem digna companheira do poderio romano.

3.5.2. As figuras do diálogo


Personagens principais: Crasso e António
Lúcio Licínio Crasso (140-91 a. C.), surgiu na vida pública jovem de 21 anos, acusando um antigo partidário dos Gracos,
comprometendo-se politicamente com a facção dos optimates, em 109 desempenhou a cargo de questor na
província da Ásia, aproveitando no regresso para ouvir os mais afamados retores e filósofos atenienses, vai
firmando o seu nome no forum com discursos de que temos apenas os trechos citados por Cícero, no ano 100
pega em armas juntando-se aos optimates contra Saturnino, finalmente em 95 alcança o consulado tendo como
colega Quinto Múcio Cévola, o Pontífice, uma das leis, a que expulsava de Roma todos os latinas que
houvessem obtido ilegalmente a cidadania, contribuirá para desencadear a Guerra Social. De 93 é o processo
mais célebre em que interveio, a causa Curiana, processo que ganhou a Cévola opondo o espírito da lei à letra
da lei, continuou a envolver-se nos conflitos que opunham os optimates aos equites, vindo a morrer em 91
pouco depois de ter pronunciado o seu último discurso contra o cônsul Filipe, chefe dos equites, portanto logo
a seguir às feriae em que decorre a acção do De oratore.
Marco António (143-87 a. C.), pai do colega de Cícero no consulado e avô do triúnviro, pretor em 103 e procônsul na Cilícia,
obteve o triunfo no seu regresso a Roma por ter destruído os piratas que ameaçavam o litoral da Ásia Menor,
cônsul em 99 tomou parte activa ao lado dos optimates nas convulsões políticas do tempo, vindo a morrer em
87 vítima do ódio de Mário (cf. Plutarco).
Ao lado destas duas figuras, Cícero coloca dois dos seus discípulos mais distintos, Sulpício e Cota.
Públio Sulpício Rufo (124-88), nascido numa família da mais antiga aristocracia romana, era uma das esperanças mais
promissoras dos optimates, porém veio a inclinar-se para a facção dos populares; a ponto de vir a ser uma das
vítimas das proscrições de Sila. Cícero, no Bruto 55. 203, considera-o o maior entre todos os oradores que
ouviu.
Gaio Aurélio Cota (124-), mantinha com António a mesma relação discípulo/mestre que havia entre Sulpício e Crasso;
aristocrata moderado acabou por se ver compelido ao exílio pelo apoio que deu aos projectos de Druso contra
os equites; Sila proporcionou-lhe o regresso do exílio em 82, vindo a obter o consulado em 75; interessava-se
pela filosofia grega em especial pelas doutrinas da Nova Academia de orientação céptica, Cícero escolhe-o
como porta-voz desta corrente filosófica no De natura deorum.
Estas são as quatro personagens que participam em todo o debate; no Livro I toma parte no diálogo outro vulto da história
romana, Quinto Múcio Cévola Áugure, veneranda figura de ancião depois substituída nos Livros II e III por
dois jovens patrícios, os meio irmãos Cátulo e César Vopisco.
Quinto Múcio Cévola Áugure (160-c. 84), o agnomen distingue-o do seu contemporâneo Múcio Cévola Pontífice que foi colega
de consulado de Crasso. No momento da acção do de oratore devia ter à roda de 70 anos, genro de Lélio
representa a geração anterior do tempo do círculo dos Cipiões; como era da tradição familiar celebrou-se como
jurisconsulto, aderindo igualmente à filosofia estóica, foi próximo de Panécio. Cônsul em 117 participou ainda
nas lutas contra Saturnino do ano 100. Era sogro de Crasso e, apesar da idade, sobreviveu aos outros
intervenientes no diálogo, à excepção de Cota.
Quinto Lutácio Cátulo e Gaio Júlio César Vopisco são dois jovens partidários do partido senatorial que como António foram
igualmente vítimas de Mário.

3.5.3. A elaboração do tempo e do espaço


No início do Livro I (24-29) precisa-se o momento e o lugar da acção: os Ludi Romani de Setembro de 91 a. C., um ano após
o édito contra os retores latinos promulgado pelo próprio protagonista do diálogo. O episódio é referido por
Suetónio, Aulo Gélio e Tácito. Eles terão sido expulsos e a escola encerrada por impudentia et audacia. O De
oratore dá-nos nas falas de Crasso a justificação. As personagens do diálogo, figuras da vida pública romana,
aproveitam as férias do Senado para descansarem na uilla tusculana de Licínio Crasso. Trata-se pois de um
tempo legitimamente dedicado ao otium, como sucede também na República cuja acção, como vimos, decorre
durante as Feriae Latinae. A analogia com o tempo da composição do tratado é evidente, também Cícero se
retirara para a paz das suas casas de campo, longe dos tumultos da Urbe devastada então pelos bandos de Clódio
e Milão. Cícero, portanto, situa a acção deste diálogo num tempo e num local determinado, situa-o na história
romana.
O espaço dramático é pois a casa de campo de Crasso em Túsculo com os seus parques e jardins, refúgio propício à meditação
que reflecte também a elegância do seu proprietário, a distinção de Crasso. Mas essa paisagem de Túsculo evoca
um outro espaço, a paisagem literária do Fedro platónico logo recordado por Cévola (1.7.28-29). Desta forma
se inculca a erudição helenizante das personagens do diálogo como também se declara o modelo grego imitado,
o Fedro de Platão. A sombra do plátano da quinta de Crasso sugere a Cévola recordações do Fedro platónico,
e motiva o diálogo romano, Crasso manda vir almofadas, sentam-se nos bancos de mármore que estão à sombra
da árvore e inicia-se o debate. O plátano era uma árvore de prestígio por andar associada à Academia de Platão,
na Academia ateniense havia muitos plátanos, famosos pelo seu tamanho. Há, porém, diferenças significativas
relativamente ao espaço do Fedro, aí Sócrates e o seu amigo Fedro conversam no meio do vale do Ilissos, fora
dos muros de Atenas, numa paisagem natural que ainda não sofrera a acção do homem, ouve-se o murmurar
das águas frescas de um ribeiro, o canto da cigarra, sente-se o calor abafado da tarde. Ao invés no diálogo
ciceroniano a paisagem é artificial, trata-se de um jardim sofisticado, enquanto Sócrates caminha descalço e
cansado se estende no chão depois de encontrar esse lugar ameno, Cévola e os seus amigos calçam elegantes
sandálias, não têm que procurar a sombra, sentam-se em bancos de mármore providos de almofadas. Significam
estas diferenças entre outras coisas que Cícero não pode ignorar a tradição grega literária e filosófica, para uns
que é um epígono (GÖRLER), perde a frescura e irreverência do modelo grego; para outros que é original
respeita a verosimilhança adapta o cenário ao particularismo romano, embora cometa um anacronismo, o hábito
de construir essas uillae requintadas foi introduzido por Pompeu (P. GRIMAL). Assim para muitos, na descrição
da uilla tusculana de Crasso, Cícero inspira-se na casa de campo que ele próprio possuía em Túsculo.

3.5.4. Os prefácios e a estrutura do diálogo.


O preâmbulo do Livro I, redigido na primeira pessoa, serve de introdução e justificação de todo o tratado, ligando-se
estreitamente à matéria do diálogo. Trata-se de 1 carta dedicatória dirigida a Quinto Cícero, o irmão do autor,
que aqui representa o leitor visado, o público que Cícero pretende atingir. Começa Cícero por recordar as tempos
em que a república florescia, quando o Estado era mais bem governado e os cidadãos mais eminentes, cobertos
de honrarias, podiam decidir o rumo da sua vida, então era possível viver no activo sem perigo ou retirado, mas
com dignidade, uel in negotio sine periculo uel in otio cum dignitate. Com esse tempo ideal contrasta o momento
presente e Cícero lembra as perturbações civis a que assistiu, o fim da velha constituição romana com a guerra
civil entre Mário e Sila, e aqueles em que tomou parte, a ano do seu consulado, a revolta de Catilina, e as
convulsões mais recentes, não pôde pois gozar do otium cum dignitate, quando muito de um otium forçado.
Depois apresenta o tratado como resposta às solicitações do irmão, justificando a sua obra com o estado
incipiente dos estudos retóricos, apesar do fascínio que exercem sobre a juventude, Romana, p. 24. Enumera as
'artes médias', as mediocres artes/ artes minores, criadas pelos Gregos, para afirmar que em todas elas, na
filosofia, na matemática, na música, na gramática e mesmo na poesia houve muitos e bons autores; mas
passando às maximae artes, à política, à arte militar e à eloquência, considera que só nas primeiras Roma rivaliza
com a Grécia, não assim na oratória. O tópico das armas e das letras, Romana, 'O orador e o general', p. 24, e
pp. 50-51.
Explana já neste prefácio algumas das ideias mais importantes do diálogo a respeito da eloquência e da formação
do orador, Romana, 'O perfeito orador', p. 25.
No prefácio ao Livro I Cícero eleva a sua autobiografia, os prefácios no autor latino são geralmente de tonalidade
autobiográfica, à dignidade da História, à oposição histórica, objectiva entre Crasso e António, renovada no
presente entre Cícero e o seu irmão, o autor contrapõe a ligação subjectiva que o une a Crasso numa relação de
discípulo a mestre. Desta forma o preâmbulo anuncia o próprio epílogo do diálogo, segundo a noção de que o
passado dá vida e ilumina o presente.
Livro I, depois do prefácio, vem uma introdução ao diálogo com a apresentação do tempo, do lugar, das personagens e dos
temas do 1º dia do debate (24-29). Segue-se na primeira parte deste livro a discussão sobre a matéria da
eloquência e seus limites (30-95), e, na segunda parte, discute-se a formação do orador (107-265).
O preâmbulo do Livro II serve para Cícero exaltar as qualidades oratórias dos contendores Crasso e António, ambos tinham
atingido as culminâncias da eloquência quer pelo talento, quer pela prática, mas também pela sua vasta cultura,
apesar de a ocultarem por respeito ao preconceito romano que concedia a primazia às maximae artes.
O Livro II desenvolve mais detalhadamente as questões enunciadas anteriormente, e constitui ocasião precisamente para se
revelar essa vasta cultura e os dotes oratórios de ambos os interlocutores. No livro I Crasso postulara a história
como um dos ramos do saber que o orador ideal deve dominar na sua cultura enciclopédica. Neste livro II
António toma a palavra, para fazer a sua palinódia, corrige as afirmações anteriores e adopta o ponto de vista
de Crasso. Entram em cena os dois jovens Cátulo e César Vopisco, contribuindo com a sua curiosidade juvenil
para que o diálogo não se torne um simples protréptico. Este Livro II ganha pois um cariz mais técnico com a
discussão das partes da retórica, são tratadas a invenção, a disposição e a memória, para a tarde do segundo dia
do diálogo, para o Livro III, ficam a elocução e a acção. Assim temos no Livro I a discussão dos fundamentos
da arte com a presença do velho Cévola, nos Livros II e III, formando uma unidade, o debate sobre as questões
técnicas estimulado pelas intervenções dos dois jovens, Romana, ‘Apreço dos antigos Romanos pela filosofia
grega', p. 29.
No preâmbulo do Livro III Cícero evoca sentidamente a morte de Crasso e as circunstâncias que a rodearam. Cícero retoma a
ideia do prefácio do Livro I, muito mais felizes foram os homens da geração de Crasso e António, porque
puderam decidir o rumo da sua própria vida e foram poupados ao espectáculo da ruína da República. Declara
assim o autor o propósito de erguer neste último livro, ao relatar a tarde do segundo dia do diálogo, erguer um
monumento de gratidão a Crasso. No entanto o Livro III trata das restantes partes da retórica, a elocução e a
acção.
3.5.5. A história, 'luz da verdade, mestra da vida' (De oratore 2.9.36)
Romana, 'História e oratória, p. 28.
O sentido ideológico deste diálogo arranca precisamente do pano de fundo histórico que lhe subjaz; a história entendida como
lugar ideal, magistra uitae, Cícero, no diálogo em que expressa mais claramente o seu pensamento retórico e
político, escolhe como tempo dramático um momento decisivo na evolução das instituições políticas romanas;
no Livro I encontramos, em contraste com a agitação que marcava a época, o quadro tranquilo do encontro
cordial entre cinco estadistas proeminentes ligados entre si pelas preferências políticas e pela amizade. O
diálogo apresenta-nos um cenáculo intelectual centrado na figura de Crasso, que permitirá ao autor representar
uma série de relações literárias e políticas que unem passado e presente.
Na oposição Crasso/António condensam-se dimensões que relevam para a literatura historiográfica (oposição Crasso-António),
para a tratadística retórica (oposição teoria-prática), para o género epistolar (oposição Quinto Cícero-Marco
Cícero); o valor histórico da debate une passado e presente, numa concepção reiterada pela prevalência da
isotopia da memória, sobretudo nos preâmbulos do diálogo. Cícero inscreve-se pessoalmente nessa tradição,
como sucessor de Crasso será ele a concretizar o ideal de orador exposto no diálogo, Cícero partilha as mesmas
concepções retóricas e políticas, finalmente o mesmo destino. Assim o prefácio do Livro I situa o tratado no
mundo do próprio autor e a retórica no centro do debate político e na história da cultura romana.
Note-se que quem responde ao elogio da eloquência feito por Crasso na primeira parte do Livro I não é António, o adversário
de Crasso ao longo do diálogo, mas sim Múcio Cévola, o velho homem de Estado, romano de antiga cepa,
formado segundo a tradição romana no estudo do direito. Logo na primeira apologia da retórica se faz sentir a
reacção romana, Cévola corrige Crasso, notando que a civilização não surgiu por obra dos homens eloquentes
mas sim por acção dos homens prudentes. Assim, legitimada a discussão aos olhos de um romano da velha
estirpe, no fim do Livro I Cévola retira-se. Para M. RUCH mudança no elenco das personagens sucede para
evitar que o debate se tornasse uma disputa escolar, a verdade é que havia outras razões como declara o próprio
Cícero em carta a Ático (4.16.3), fecit idem in Πολιτεία deus ille noster Plato. De facto na República de Platão

é um ancião, Céfalo, quem convida Sócrates para o debate, figura que tb abandona o diálogo depois de ter
limitado os termos da discussão.
Caracterização de Crasso:
- um novo Górgias, um sofista redivivo? O próprio Crasso (1. 112) afasta essa acusação, mas não em nome do
espírito socrático, sim em nome do espírito romano.
- ou o Sócrates romano? O Livro I toma como modelo o Fedro platónico, substituído no Livro III pelo Fédon
ao tratar-se da questão da imortalidade da alma, o Fédon com a Apologia era o testamento de Sócrates, seria o
Livro III do De oratore o 'canto do cisne' de Crasso? De novo ganha importância o preâmbulo deste Livro III,
aí Cícero considera o último discurso de Crasso contra Filipe a causa da morte do protagonista do diálogo,
designando essa última oratio como cycnea uox, 'canto do cisne', aproxima os últimos momentos de ambos,
Sócrates e Crasso esperam o pior, ambos fazem a sua defesa de tal modo que de réus se transformam em
acusadores, ambos mostram a mesma atitude de desafio, a mesma indiferença perante a morte. Crasso é
caracterizado com os traços do herói filósofo; é expressamente colocado na galeria dos mártires filósofos,
recordam-se os casos de Anaxarco e de Zenão de Eleia, além claro está do caso de Sócrates.
Objecções à aproximação Crasso/Sócrates:
- o Livro III do De oratore não pode em rigor ser considerado o canto de cisne de Crasso, apenas sofreria tal
comparação o discurso relatado por Cícero no prefácio, no corpo do Livro III trata-se da elocução e da acção,
questões retóricas
- A semelhança com os heróis filósofos pode ser fortuita, Cícero provavelmente altera os factos históricos para
aumentar a glória do seu herói, forçando através da selecção criteriosa dos acontecimentos, a aproximação do
cônsul Filipe aos juízes de Sócrates e de Crasso ao filósofo. Temos afinal o mesmo processo de idealização do
protagonista do diálogo que encontrámos na República relativamente a Cipião Emiliano.
Conclusão: Talvez seja mais acertado, na esteira da maioria dos comentadores desta obra, considerar Crasso como
representação indirecta do próprio Cícero, na caracterização de Crasso confluem elementos da biografia do
autor latino, no final do prefácio do Livro III Cícero afirma explicitamente que está preparado para sofrer pela
República, pelo bem-comum.
Há pois uma teia de relações intertextuais e contextuais que tornam o protagonista do diálogo ponto de encontro de figuras da
história literária e política, cruzamento de várias memórias do passado remoto, literário, do passado próximo,
histórico, do presente dramático, literário, e do presente tempo da composição, histórico, de tal forma que
literatura e vida se mostram existencialmente implicadas, superando-se assim a aridez habitual dos tratados
técnicos de retórica, de maneira que Cícero, pospondo o didactismo do género, eleva o debate, do ponto de vista
formal e intelectual, às alturas do diálogo filosófico.

Esquema de W. GÖRLER:

Platão Sócrates (Fedro) Sócrates (Fédon) Anaxarco


Zenão de Eleia
Sócrates (Apologia)

CRASSO
CRASSO

Cícero Cícero (estadista, orador, filósofo) Cícero


(escritor) (55 a. C.) (63, 58…43)

3.5.6. Imitação e originalidade no De oratore.


No séc. passado, e ainda nas primeiras décadas deste, fruto da atitude hipercrítica relativamente a Cícero, que o via como
divulgador das doutrinas helenísticas, incapaz de aceder às obras mais profundas da filósofos do período
clássico, procuraram-se para o De oratore fontes helenísticas, propostas fundadas, por vezes apenas em vagos
títulos de obras perdidas; editores e comentadores mais recentes vão noutro sentido, sugerindo a aproximação
à obra de Platão., e ultimamente vai-se mais longe, não só é possível encontrar no De oratore temas e motivos
que estavam nos diálogos platónicos, como também um certo paralelismo de construção, na estrutura das falas,
na selecção das personagens, na disposição das ideias.
Presença de temas, motivos, tópicos do Fedro e de outros diálogos platónicos, por vezes até à citação ipsis verbis; como no
Fedro recorre-se à palinódia, uma das personagens principais corrige afirmações anteriores, Sócrates a respeito
do amor, António no livro II abandona a sua posição restritiva relativamente à eloquência e adopta as ideias de
Crasso, fazendo a apologia da eloquência (2.28-38), termina «não há assunto que não seja da competência do
orador desde que se exponha com elegância e gravidade»; o elogio de Isócrates por Sócrates no Fedro tem
paralelo no panegírico de Hortênsio feito por Cátulo e Crasso; como no Fédon temos o motivo do canto do
cisne; como na República de Platão, há um ancião que se retira para dar lugar aos mais jovens; a relutância de
Sócrates em expor as suas ideias reproduz-se na caracterização de Crasso; a estrutura dramática parece ser
tomada do Górgias: o elogio da eloquência feito por um orador afamado (Crasso/Górgias) é examinado por
uma personagem mais velha (Múcio Cévola/Sócrates), crítica que suscita a intervenção de figuras mais jovens
e mais radicais, Polo estranha as concessões de Górgias, António as de Cévola; no Górgias e no Do orador
temos a mesma sequência, uma exortação ao estudo da eloquência que serve de ponto de partida para o debate
subsequente.
Originalidade, primado do direito, substituição do debate especulativo sobre a justiça pela exigência do conhecimento do direito
definição romana do orador, tomada de Catão, uir bonus dicendi peritus.
teoria retórica alicerçada na experiência do autor no forum e no Senado.

Bibliografia
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3.5.7. A humanitas ciceroniana, um programa de cultura intelectual.
De oratore, 1.5.17, 1.6.20, Romana, 'O perfeito orador', p. 25.
Estamos no prefácio do Livro I, Cícero justificando a composição do seu diálogo, aduz agora as causas da escassez de grandes
oradores, muitas e variadas qualidades, profundos e múltiplos conhecimentos são necessários num só homem
para fazer o orador perfeito.
De oratore, 1.34.158-159, Romana, 'A formação do orador', p. 26.
Na segunda parte do Livro I discute-se a formação dos orador, nos §§ 131-157 anteriores a este trecho Crasso expõe a tríade
pedagógica que vinha desde Isócrates, condições que deve satisfazer o orador perfeito, talento, arte, prática,
neste ponto recomenda os exercícios orais e escritos como prática frequente, a melhor forma de aprender a falar
bem é escrever, Stilus optimus et praestantissimus dicendi effector ac magister 'a pena é o melhor e o mais
eficiente mestre da arte de falar' (1.33.150), a leitura de poetas e oradores, a exercitação da memória e da
pronuntiatio, o hábito de falar em público, a redacção de discursos a favor e contra, o estudo do direito e da
ciência política, a procura de um estilo agudo e agradável.
Aristóteles, na Retórica 1.4 e 8, enumera os conhecimentos que considera indispensáveis ao orador para falar na assembleia,
necessários portanto à oratória deliberativa: economia, direito, ciência política, estratégia militar (guerra e
defesa da paz, protecção do território).
No Do orador de Cícero o programa de formação do orador é muito mais vasto:
leitura dos poetas, conhecimento da literatura, estudo da história, estudo do direito e das coisas antigas, das
tradições do Senado, teoria política, tratados e convenções, conhecimento da alma humana, estudo da
psicologia,
procura-se a união da filosofia e da eloquência, o orador deve possuir uma cultura universal, realizar a síntese entre a retórica
e a filosofia.
ao orador perfeito exige-se dotes naturais, ingenium, amor e conhecimento da arte, studium, ars, prática oratória, exercitatio,
além de uma cultura enciclopédica, a doctrina. Crasso e António como declara Cícero no prefácio ao livro II
satisfaziam essas três condições, apesar de afectarem, por respeito ao preconceito romano, desprezo pelo
helenismo, a verdade é que ambos possuíam essa cultura geral, essa doctrina.
Romana, 'O valor da oratória', pp. 27-28.
Da tríade pedagógica, Cícero, todavia, valoriza sobretudo as qualidades naturais, o ingenium, a técnica, a arte, tem valor
limitado, não foi a eloquência que nasceu das regras, mas as regras que nasceram da eloquência. Mais, à
autoridade dos gregos Cícero antepõe o saber dos homens experientes, a tradição romana, donde o lugar de
relevo agora concedido ao direito, a Lei das XII Tábuas ultrapassa em autoridade e utilidade as bibliotecas dos
filósofos, Romana, p. 26.
A maior contribuição ciceroniana para a história da retórica, além dos seus discursos, foi a sua concepção dos officia oratoris,
dos deveres do orador, valendo-se dos três modos de prova, retóricos, éticos e psicológicos, que estavam na
Retórica de Aristóteles, Cícero aponta (De oratore, Orator) como deveres do orador: probare, delectare,
flectere, provar, agradar, comover, a que correspondem os três géneros de estilo, humilde, médio e elevado,
concepção que será retomada por Quintiliano e sobretudo por Santo Agostinho.
Contribuições de Cícero para o desenvolvimento da retórica: O orador deve ter uma boa preparação intelectual; recusa da
superficialidade; exaltação da oratória a actividade intelectual mais excelente; relação entre as três funções do
orador e os três níveis de estilo; a retórica com Cícero transformou-se num fim em si mesma; como observa
Atkins (II, p. 27) foi o primeiro a ter uma noção clara da importância da tradição anterior, o primeiro a olhar
para a Antiguidade.
F. WEHRLI: «o aprofundamento de um programa de educação retórica até ser o modelo do homem de Estado romano é o
contributo pessoal de Cícero no De oratore», cf. «Studien zu Cicero De oratore», Museum Helveticum 35
(1978), p. 89.
O tema da aliança entre eloquentia e sapientia está no centro do debate do De oratore
No Livro III, 20-21, Crasso enuncia as razões da sua posição intransigente quanto ao binómio sapientia/eloquentia, citando
Platão (illa Platonis uera et… certe non incondita uox) reitera a ideia de que as ingenuae et humanae artes estão
ligadas por um vínculo comum uno quodam societatis uinculo contineri, a eloquência é só uma e uma só, ideia
que, aliás, já Cícero desenvolvera no Pro Archia, 1, 2, a propósito do conceito de humanitas.
No De oratore, I. 185-191, quando se trata do orator sapiens, surge a mais antiga alusão ao conceito de ægkúklioç paideía

no sentido de erudição em todos os domínios servindo uma educação propedêutica, prévia e indispensável a
toda a actividade especializada, 'ensino corrente, cultura geral', cf. M. DE RIJK, «\Egkúklioç paideía. A

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