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O mundo

judaico
em que
Jesus viveu
João Duarte Lourenço
1
INTRODUÇÃO
O interesse pelos estudos bíblicos conheceu, no decorrer do século passado e, mormente, nas últimas décadas,
um forte incremento, como facilmente se pode comprovar pelas inúmeras obras que vêm sendo publicadas nas mais
diversificadas áreas científicas e com especial incidência no período intertestamentário. Este facto deve-se não
apenas aos novos recursos científicos disponíveis que nos permitem hoje uma melhor aproximação às fontes
antigas, mas fundamentalmente à descoberta de novos elementos como sejam aqueles que dizem respeito aos
achados arqueológicos e a textos e manuscritos que nos vieram transmitir dados e elementos que até há bem pouco
tempo eram por nós desconhecidos. Dentre tais dados, importa salientar o contributo significativo que representam
os manuscritos de Qumrán e do deserto da Judeia, assim como outras fontes de carácter literário que enriqueceram,
de forma notável, o espólio cultural que o judaísmo nos legou. Este legado contempla um amplo conjunto de
elementos de carácter social, cultural e religioso que estão na génese do NT e cujo conhecimento se torna
imprescindível para a sua compreensão.
Ao debruçar-nos sobre o ambiente sociocultural do mundo judaico em que Jesus viveu, não pretendemos nem é
nossa intenção estudar as origens do judaísmo, nem a sua abrangência cultural ou religiosa enquanto tal. O nosso
objectivo pretende apenas apresentar e enquadrar os grandes grupos e movimentos que no interior do judaísmo
«condicionam» o contexto cultural e social que está na origem do NT, procurando situar Jesus e a sua mensagem
nesse contexto. Todos sentimos, hoje mais que nunca, que a compreensão da Sagrada Escritura pressupõe cada vez
mais um bom conhecimento do mundo cultural que envolve o judaísmo, mormente no que diz respeito às suas
componentes sociais e aos grupos e movimentos religiosos que contribuíram para a pluralidade de uma cultura tão
rica e diversificada como é o judaísmo do período intertestamentário e da época do NT. Tendo nós acesso ao texto
bíblico, faltam-nos muitas vezes os parâmetros culturais bem como o contexto social e histórico que nos permitam a
compreensão plena do seu sentido e do seu alcance teológico. Para minorar tais inconvenientes, há que recorrer
àquilo a que poderemos dar o nome de «instrumentos complementares», constituindo a literatura extra-bíblica um
desses instrumentos mais valiosos, já que ela nos fornece muitos elementos imprescindíveis para essa compreensão
e que nos eram desconhecidos até há poucas décadas atrás.
Efectivamente, podemos constatar que os últimos séculos do AT e do período intertestamentário legaram-nos
uma cultura judaica muito rica e diversificada, tanto nas suas formas de expressão (literatura) como na pluralidade
dos movimentos e dos grupos de pensamento (as chamadas «seitas» judaicas). É fundamental conhecer não apenas
os movimentos, as suas ideias e perspectivas teológicas, mas também o impacto cultural e social que os mesmos
tiveram no seu tempo, pois vamos encontrar muitos ecos dessa problemática nos livros bíblicos. Bastaria citar aqui
alguns exemplos: os livros dos Macabeus, o livro da Sabedoria, os textos do NT (mormente os Evangelhos). No
entanto, a riqueza do judaísmo alarga-se a muitos outros domínios que estão para além dos livros canónicos, dentre
os quais está a literatura como um dos mais expressivos. Aí podemos recolher muitos dados que nos permitem uma
melhor compreensão dos problemas sociais e religiosos do tempo do NT, das leis e costumes desse período bem
como das tradições religiosas e normativo-jurídicas da época. Sem esse conhecimento, continua a ser difícil integrar
muitos dos aspectos inovadores da mensagem do NT e, mais ainda, a saber situá-los no seu verdadeiro contexto.
Conhecendo nós a Bíblia, por vezes pensamos que ela é o único «produto» literário de uma cultura milenar, rica
de valores humanos e espirituais. Todavia, a realidade não é essa. Para além do texto bíblico, o judaísmo legou-nos
um património rico e plural que tem a sua expressão, para além de outras formas, na chamada «literatura judaica
extrabíblica». Trata-se de um universo muito diversificado e que abarca obras de diversos grupos e movimentos, de
diferentes estilos e correntes de pensamento, cobrindo um período de vários séculos. Aí podem-se encontrar, para
além das perspectivas teológicas e doutrinais dos diversos movimentos, os ecos de um período de grandes
convulsões históricas e culturais que marcam a nossa cultura e que, de certa forma, configuraram a nossa própria
história. O contacto com tais obras é de grande importância e imprescindível para a compreensão do mundo do NT,
das tensões sociais da época e da própria teologia neotestamentária.
Um dos problemas mais importantes no que diz respeito ao conhecimento do judaísmo, especialmente do
período intertestamentário, tem a ver com a complexidade da situação política e social que decorria da ocupação
romana e que depois se repercutia de forma tão intensa e gravosa no espaço do mundo religioso de então. Embora
as fontes disponíveis para a compreensão desta época continuem a ser escassas e quase sempre condicionadas por
pressupostos de natureza religiosa e cultural, vamos procurar pôr em realce alguns dos elementos que a tradição
nos legou, situando os acontecimentos desse período no contexto das coordenadas sociais e culturais desta época.

2
I - O MUNDO POLÍTICO DO PERÍODO
INTERTESTAMENTÁRIO
O período intertestamentário tem sido objecto de longos e inúmeros estudos, feitos a partir de diferentes
perspectivas e valorizando diferentes componentes. Esse estudo é fundamental não apenas para compreender o
judaísmo da época, mas sobretudo para podermos situar o cristianismo e a singularidade da mensagem
neotestamentária.
Ao abordarmos esta questão pretendemos, antes de mais, pôr em evidência as coordenadas sociais, culturais e
religiosas que se fazem sentir nos últimos três séculos que precederam a nossa era, especialmente após a conquista
de Alexandre Magno, em 332, com a introdução do helenismo e o seu impacto no confronto com o judaísmo. É este
o principal objectivo do primeiro capítulo deste nosso trabalho.

1.O contexto cultural do periodo intertestamentá rio


Antes de mais, vamos debruçar-nos sobre o problema das fontes históricas. Não se trata apenas de fontes em
sentido literário; a questão é mais ampla e alarga-se a outros domínios que têm uma forte incidência no que diz
respeito ao estudo e compreensão deste período histórico que abarca um espaço de cerca de 8 a 9 séculos, ou seja,
desde o séc. III a. C. até aos sécs. V ou VI d. C. Trata-se de um período difícil e muito agitado para o judaísmo, tanto
no que respeita à situação interna da «nação judaica» como naquilo a que se refere a realidade política
internacional. Muitas das obras literárias que chegaram até nós são fruto dos conflitos existentes dentro do
judaísmo da época, da luta pela sua sobrevivência e pela sua identidade nacional e religiosa. Nisto reside muito da
sua singularidade.

a) Fontes histó ricas para o estudo do período intertestamentá rio


Um dos aspectos mais importantes para o estudo e compreensão desta época tem a ver com as fontes
disponíveis e a avaliação dos dados que essas mesmas fontes nos facultam. Muitos desses dados estão
condicionados por objectivos bem específicos, uma vez que chegaram até nós por motivos apologéticos ou
obedecendo a critérios de natureza religiosa que presidiram à sua redacção. Outros, por seu lado, estão
condicionados por opções de natureza política ou religioso-partidária.
Entre os primeiros, temos naturalmente os textos neotestamentários, verdadeiros mananciais de informação,
bem como os textos judaicos que nos descrevem a vida na Judeia no período intertestamentário, sendo de destacar,
pela sua importância e novidade, os textos de Qumrán, bem como os textos apócrifos e pseudo-epigráficos dessa
época. No entanto, importa ter sempre presente que estes textos não são neutros, pelo que se impõe uma avaliação
rigorosa dos seus dados em função dos objectivos que presidiram à sua redacção.
No que ao segundo grupo diz respeito, não se podem hoje ignorar as obras do escritor judeu Flávio Josefo, nem
os textos de Filão de Alexandria, bem como outros historiadores romanos que nos deixaram alguns informes sobre o
tempo de Jesus.
Ao longo dos tempos, as obras de Flávio Josefo constituíram como que o ponto de referência para o
conhecimento histórico do séc. I da nossa era, mormente em tudo aquilo que tem a ver com a presença romana na
Palestina e a subsequente reacção da parte dos judeus. Hoje, e sabendo-se da empatia que este historiador nutria
pelos romanos, tem havido um esforço para complementar as informações de Flávio Josefo com outros dados,
mormente com aqueles que nos vêm das fontes judaicas, incluindo os livros bíblicos do período intertestamentário.
É que muitas das situações que vamos encontrar neste período têm as suas causas e motivações na época anterior,
ou seja, ao tempo da reacção macabaica e asmoneia contra o domínio dos Selêucidas da Síria a que aqueles puseram
fim já na segunda metade do séc. II a. C.
Para bem conhecer esse período e as tensões que a partir dele se foram desenhando, temos os informes dos
textos dos Macabeus (tanto dos 2 livros canónicos) como dos outros dois que não tiveram aceitação no Cânon. Esta
diversificada literatura pode ainda ser complementada por outras informações de tipo arqueológico ou
numismático, o que constitui um manancial notável para os estudos do tempo do NT e da pessoa de Jesus enquanto
tal, embora nem sempre sejam tidas em conta quando nos debruçamos sobre esse periodo e acabamos, muitas

3
vezes, por criar uma espécie de tempo angélico que em nada contribui para um verdadeiro conhecimento da pessoa
de Jesus e da sua missão salvadora e libertadora1.

b) Coordenadas sociais e políticas do período intertestamentá rio


Creio que podemos fazer remontar aos meados do séc. II a. C. as principais causas daquela que será a situação
que se prolonga no séc. I e que se vai estender até ao fim do séc. I da nossa era. Na sequência do desmantelamento
do império de Alexandre, a Judeia passou por dias conturbados, ora dependente da dinastia dos Lágides do Egipto,
onde os judeus de forma geral tiveram bom acolhimento e alcançaram notáveis sucessos tanto em termos politicos
como económicos2, ora subjugados ao poder dos Selêucidas da Síria que sempre exerceram uma política hostil para
com os judeus, mormente pela imposição forçada da cultura helenística e a supressão dos privilégios que gozavam já
desde a época do Império Persa.
É este estado de coisas que leva a família dos macabeus, chefiada por Matatias, em meados do séc. II a. C., a
desencadear o grito de revolta e a mover uma luta de guerrilhas contra a presença dos «gregos», luta esta que se
fundamentava essencialmente na rejeição da cultura helenística e na salvaguarda das tradiçãos pátrias e que veio a
ser coroada de sucesso ao tempos de Jonatas e Simão Macabeu, filhos de Matatias, já no início da segunda metade
do séc. II a. C.
A partir daqui, estamos a um passo da restauração do estado judaico que tinha desaparecido em 587 às mãos
dos babilónios, por altura das invasões de Nabucodonosor e que não mais tinha sido restaurado, apesar do estatuto
especial de que a Judeia gozou durante o Império Persa e, em parte, durante algum tempo do Império Helenístico.
Beneficiando de uma aliança estratégica com Roma e com Esparta, Simão Macabeu vê-se finalmente proclamado
chefe em 140 a. C.3, congregando em si os títulos de «sumo sacerdote», «comandante» e «etnarca» dos judeus,
dando assim origem a uma dinastia reinante que veio a ser conhecida como a «dinastia dos asmoneus». Esta
conheceu o seu apogeu ao tempo do rei João Hircano (134-105 a. C.) que não só deu continuidade à obra do pai
(Simão Macabeu) na luta pela autonomia total face aos Selêucidas da Síria, como também levou a cabo uma bem-
sucedida política de expansão territorial e domínio das mais importantes cidades da região. É particularmente
significativa a tomada da Samaria em 128 a. C. e a consequente destruição do Templo samaritano do Garizim que,
segundo algumas fontes, teria sido reconstruído após a conquista de Alexandre Magno (332) como reconhecimento
pela ajuda recebida da parte dos habitantes da Samaria na altura da tomada de Tiro, na Fenícia. Mais tarde, o
mesmo João Hircano fará o mesmo à cidade de Siquém (em 109)4. Esta investida do rei asmoneu em território
samaritano marcará para sempre as relações entre samaritanos e judeus, tal como nós as conhecemos ao tempo de
Jesus e nos são apresentadas nas fontes judaicas. Estas conquistas e a resistência às investidas das tropas do Império
Selêucida só se tornaram possíveis devido ao apoio dado por Roma, mediante a renovação da antiga aliança feita
pelos seus antecessores, o que levou os romanos, desejosos de se apossarem da região, a interditarem ao exército
selêucida de se apossar dos territórios dos seus «amigos e aliados» judeus5.
Ao mesmo tempo que procedia à expansão do reino, Hircano procedeu igualmente a uma política de
consolidação da cultura helenística de que, mais tarde, os seus sucessores, especialmente Alexandre Janeu (103-76)
se tornaria o mais lídimo representante. Ora, foi em virtude desta orientação política levada a cabo pela realeza, que
a sociedade judaica, até então bastante solidária com as opções dos seus governantes, começou a dividir-se e a
fraccionar-se em grupos de natureza religiosa e política que vão marcar para sempre o futuro do judaísmo e também
condicionar o ambiente cultural e social em que Jesus viveu. É na sequência da divisão que se seguiu à morte de

1
Para uma boa informação histórica, cientffica e criteriosamente elaborada, sugiro o estudo em 2 volumes de E. SCHÜRER,
The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ, new edition by G. Vermes, E Miller and M. Black. Edimbourg, 1973-
1979. Esta obra é considerada por muitos autores corno o melhor estudo sobre a época em causa.
2
A presença de judeus no Egipto é antiga e está bem documentada, remontando essa presença à época da conquista dos
Assírios (722). Por sua vez, os papiros de Elefantina aludem à existência de urna colónia militar de judeus no Egipto no séc. V,
embora os indícios dessa presença remontem à época que antecedeu a conquista persiana, levada a cabo por Cambises, que
ocupou o Egipto em 525 (cf. J. A. SOGGIN, Introduzione all Antico Testamento, Paideia, Brescia, 1987, 4.a ed., 581s). A presença
desta colónia militar teria como missão fundamental ajudar na defesa das fronteiras, devido à constante ameaça dos Núbios na
parte sul do Egípto. Mais recentemente, o caso de maior sucesso é o da comunidade de Alexandria e tudo o que representa a
sua presença aí em termos culturais e económicos, para além do Templo autónomo de Leontópolis, onde pontificava tanto em
termos religiosos como políticos, numa espécie de autonomia favorecida pelos Ptolomeus, o sacerdote Onias IV, cf FLÁVIO
JOSEFO, Antiquitates Judaicae, 13, 284-287; Carta de Aristeia, 12-14.
3
Cf. 1 Mac 14, 16-24.
4
Cf. J. LOURENÇO, «Os Samaritanos: um enigma na história bíblica», Didaskalia, XV (1985), 49-72.
5
FLÁVIO JOSEFO, Antiquitates Judaicae, 13, 259-266.
4
Alexandre Janeu e da sua esposa, a rainha Alexandra Salomé (76-63), uma vez que os seus filhos Hircano e Aristóbulo
não foram capazes de se entenderem, que as legiões romanas comandadas por Pompeu aproveitaram a ocasião e
entraram na Palestina com o objectivo de restabelecer a paz na região, já que consideravam que a instabilidade aí
reinante contribuía para colocar em perigo o seu controlo da Síria. Estamos em 63 a. C., data esta que marcará para
sempre o futuro da Judeia e condicionará, como nenhuma outra, a situação social e política ao tempo de Jesus.

c) Situaçã o social e política do período intertestamentá rio


Tendo como cenário este quadro de fundo, vejamos como a sociedade judaica se comporta e reage face ao
evoluir da situação. Antes de mais, deparamos com um judaísmo que não é já aquele que perdurou nos séculos
posteriores ao regresso de Babilónia, subordinado à autoridade suprema do sumo sacerdote, orientado pelas
determinações do Sinédrio e uniformizado no empenho pela sua sobrevivência face à força da cultura helénica que
lhe contrapunha toda uma outra ordem de valores e de princípios, já não centralizados em Deus nem no Templo,
mas no homem e na polis, com os seus próprios espaços de lazer. A «liturgia» do mundo judaico deste período já
não se realiza exclusivamente no Templo nem se confina à sinagoga; pelo contrário, é o ginásio, o hipódromo, o
teatro ou as actividades da cultura estética que começam a sobrepor-se, provocando assim uma autêntica crise de
identidade como nunca havia sucedido, uma vez que a luta agora não era imposta de fora nem pela força das armas,
mas partia de dentro e cabia a cada judeu fazer a sua própria escolha6 face aos preceitos da Lei. Começam então a
emergir os diversos movimentos ou seitas dentro do judaísmo que vão conhecer o seu apogeu durante o último
século da era que nos precedeu e no primeiro da nossa, pondo fim a um judaísmo unitário e uniforme como por
vezes se pretende fazer crer, mesmo à revelia das formas que até nós chegaram. Remontam certamente a este
período, para além de outros, os movimentos judaicos dos saduceus e dos fariseus, tendo estes grupos, de acordo
com circunstâncias históricas concretas, tomado partido e alternado o seu apoio a alguns dos monarcas asmoneus 7.
Com a entrada em cena dos romanos, emerge neste conturbado mundo da Judeia um nova clã político que tem
como figura central Antípatro. E, deste clã, vai assumir papel preponderante um dos seus filhos: Herodes, o Grande.
De ascendência idumeia, Herodes fora educado em Roma e aí estabelecera contacto com alguns daqueles que
viriam a ser os chefes do império, acabando por ser proclamado «rei dos judeus», vassalo e amigo, em 37 (até 4 a.
C.), com a missão explícita de restabelecer a paz entre os judeus e pôr cobro às lutas internas entre os diversos
grupos que continuavam em cena e que traziam a instabilidade ao império, enfraquecendo-o numa das suas
fronteiras mais vulneráveis. Para além disso, Herodes procurou igualmente desempenhar um papel determinante na
região, como no-lo mostra a sua aliança com Marco António e Cleópatra na luta destes contra Octávio (na Batalha de
Accium, em 31 a. C.).
Fiel a este compromisso e desejoso de ganhar a benevolência dos seus protectores, Herodes desenvolveu toda a
sua política assente em 3 grandes pilares:
— Procurar ganhar a simpatia dos judeus através de um notável programa de grandes obras e construções,
mormente no Templo, valendo-se dos recursos económicos da tribo dos idumeus que eram ricos comerciantes;
— Perseguição sangrenta e implacável contra todos os inimigos internos, não apenas contra aqueles que
dificultavam o seu governo, mas também contra os que se opunham à ocupação romana, a fim de ganhar as boas
graças dos que lhe tinham outorgado o governo da região;
— Redução e esvaziamento dos poderes das autoridades tradicionais da região, mormente dos grupos
religiosos e sacerdotais, do Sinédrio e do sumo sacerdote, concedendo o estatuto de «cidade autónoma» a muitas
localidades que assim ficavam isentas dos preceitos normativos do judaísmo.
Se é verdade que Herodes obteve notáveis êxitos na execução deste ambicioso programa, também não deixa de
o ser o facto de que isso lhe trouxe custos muito elevados, uma vez que, para o pôr em marcha, se viu forçado a
sobrecarregar os habitantes do país com pesados impostos, criando assim entre a população uma vaga de
descontentamento e hostilidade sem precedentes. Da grandeza do seu reinado falam as construções que nos legou
e que ainda hoje se podem admirar, mormente aquelas que embelezavam Jerusalém e a zona do Templo, bem como

6
1 Mac 1, 11-15. 41-51.
7
É conhecida a forma dura e punitiva como os fariseus foram tratados por Alexandre Janeu e a simpatia que vieram a
encontrar junto da rainha Alexandra Salomé que, por sua vez, se mostrou hostil aos saduceus que tinham sido os preferidos de
seu marido e antecessor.
5
as cidades de Jericó, da Samaria, de Cesareia Marítima e ainda as fortalezas de Massada, de Machronte8 e de
Herodion, entre outras9.
Morto pelo ano 4 (antes da nossa era), sucederam-lhe os filhos (Arquelau, Herodes Antipas e Herodes Filipe) 10, já
não com o estatuto de reis, como habilmente ele mesmo tinha tentado obter reconhecimento por parte das
autoridades do império, mas agora como meros governadores e administradores das províncias que tinham
constituído o reino do pai, remetidos assim para figuras de segundo plano no xadrez político da região. Logo no ano
6 d. C., Arquelau, que tinha sido nomeado governador da Judeia, Samaria e Idumeia, foi deposto e deportado para a
Gália, uma vez que a sua actuação violenta contra os nacionalistas judeus tinha desagradado aos romanos. No
entanto, a presença da família herodiana marcará o cenário politico e administrativo da Palestina até aos finais do
séc.I da nossa era, dando origem a um novo movimento político que conhecemos tanto dos evangelhos como da
literatura judaica: o grupo dos herodianos ou partidários de Herodes.
Na continuação da política de ocupação levada a cabo por Roma, mormente através dos chamados
«Procuradores» (de 6 a 67 da nossa era)11 12, quase sempre recrutados da função militar e cujo objectivo era a
manutenção da paz, a gestão dos assuntos internos da região e a cobrança dos impostos para o tesouro do império,
foi crescendo um novo movimento de resistência a essa ocupação, os chamados «zelotas» (e sicários) que se opõem
abertamente e através da luta armada à presença romana, incluindo também todos aqueles que eram considerados
cúmplices ou colaboradores nessa ocupação.
Dentro deste quadro, temos então os grandes movimentos e grupos em que a sociedade judaica se encontra
dividida ao tempo de Jesus e que assumem importante papel nas narrativas dos evangelhos: saduceus, fariseus,
herodianos, zelotas. Para completar a lista, falta-nos aludir a um quinto grupo que não parece desempenhar papel
de relevo nos textos neotestamentários, mas que hoje, após as descobertas de Qumrãn e o conhecimento da sua
literatura, mormente o Código de Damasco e a Regra da Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas,
sabemos que é de capital importância: os essénios. Trata-se de um grupo cujos elos comuns têm mais a ver com uma
identidade própria e uma espiritualidade tipicamente messiânica que os leva a rejeitar o judaísmo oficial tal como
ele era vivido pelas altas classes da sociedade e celebrado na liturgia do Templo, levando-os a afastar-se dos
ambientes oficiais e a procurar uma estada recatada no deserto. São estes cinco movimentos que acabam por
emprestar à época de Jesus uma diversidade muito complexa, com os quais Jesus se enfrenta tanto nas práticas
judaicas por eles levadas a cabo como na ordem dos princípios que norteara o comportamento dos seus membros e
simpatizantes.
Como sabemos, não foram pacíficos os contactos entre estes grupos e o movimento de Jesus, embora ele
mesmo estivesse aberto à adesão de todos e encontremos referências elogiosas a alguns deles nas palavras do
Mestre. Temos também a presença de ex-membros de outros grupos entre os seus, tal como é o caso de Simão, o
zelota. Mas é sobretudo contra a ética farisaica e a forma como os saduceus se «colavam» ao poder político
dominante na Judeia que Jesus enfrenta, reagindo a partir de uma perspectiva de fé e na busca de uma verdadeira
motivação que valorizasse os valores de Deus e não os interesses dos homens. Apesar de sabermos hoje todo o
drama da sua vida e a forma como ele se desenrolou, a grande preocupação de Jesus foi sempre a de pautar o seu
projecto de vida numa atitude de grande liberdade interior, procurando obedecer mais a Deus do que aos homens
(Act 5,29).

2. A diá spora judaica


Um dos elementos fundamentais para a compreensão desta época tem a ver com o pluralismo dos grupos e dos
movimentos judaicos existentes, tanto na Palestina como na diáspora. No que diz respeito à diáspora, temos
8
FLÁVIO JOSEFO, Bellum Judaicum, 7, 171-209.
9
A grandeza e a notável perfeição destas obras é ainda hoje objecto do nosso espanto e têm constituído alguns dos
melhores espólios que a arqueologia palestinense nos tem legado. Ao contrário de outros períodos históricos, quase sem
testemunhos de valor em termos arqueológicos, em parte devido ao facto do judaísmo não construir outros templos nem
grandes palácios, o tempo de Herodes é de grande riqueza e esplendor, mostrando quanto ele foi grande na arte de construir e
déspota na forma de governar.
10
Após a morte de Herodes, o governo da província da Palestina (o antigo reino de Herodes) ficou assim organizado: ano 4 a
6 — Arquelau é Etnarca da Judeia; ano 6 a 41 — Procuradores (Província Procuratoriana, com capital em Cesareia); ano 41 a 44
— Agripa (neto de Herodes) é nomeado rei (tal como Herodes); ano 44 a 66 — Procuradores; em 66 os rebeldes apossam-se da
cidade e instauram um governo próprio; no 70 temos a revolta declarada e o cerco, com a tomada de Jerusalém pot Tito, sendo
a Judeia declarada Província imperial.
11
A nomenclatura não é uniforme e encontramos uma grande diversidade de designações, indo desde «prefeito», «tutor»,
«chefe» até «curador» e outras, tratando-se sempre de uma função administrativa.
6
situações de diáspora forçada, em que grupos de israelitas foram deportados ou forçados a emigrar e outros casos
em que essas migrações aconteceram de forma voluntária. Trata-se de um fenómeno antigo que teve grande
repercussão na vida interna da Palestina e que perdurou ao longo de séculos, com graves consequências na vida
cultural do judaism o.

a) A diá spora oriental


Um dos primeiros movimentos dessa diáspora (que ruma em direcção ao Oriente) remonta ao séc. VIII a. C.,
após a queda do reino do Norte (Samaria) às mãos dos imperadores da Assíria, Tiglat-Pileser III (733) e Sargão II
(721), de acordo com os dados de 2 Re 17.
A esta primeira etapa da diáspora forçada segue-se uma outra, em 587, com a destruição de Jerusalém (fim do
reino de Judá) e a deportação dos judeus para Babilónia. Tanto num caso como no outro, esta diáspora é a
consequência directa dos condicionalismos políticos e das mudanças de xadrez político dos diversos impérios que se
sucedem no Médio Oriente durante o 1º milénio que precede a nossa era (Assírio, Babilónio, Persa, Helenístico,
etc.).
Temos, assim, que muitos dos grupos de deportados dão início nessas paragens a uma nova fase da sua
caminhada histórica, reorganizando aí a sua vida, de modo que na altura do regresso (em 538) nem todos voltaram.
Muitos preferiram continuar em Babilónia ou em outras cidades do Império Persa e aí começaram a desenvolver as
suas actividades. Dessa forma nasceu uma grande comunidade judaica que desempenhará um importante papel ao
longo dos séculos de que são testemunho o Talmud de Babilónia com todas as suas ricas tradições, bem como
muitos comentários midráshicos e targúmicos que tiveram grande repercussão, inclusive na própria Palestina. As
escolas rabínicas de Babilónia e de Sura desempenharam um papel determinante na fixação das tradições judaicas e
grandes mestres nelas exerceram o seu ministério.
Os judeus de Babilónia, bem como de outras comunidades da região, embora se tenham deixado assimilar,
nunca perderam a sua identidade; nomes hebraicos, crenças e tradições judaicas testemunham bem essa realidade.
Os livros de Tobias, de Ester e mesmo o de Jonas, todos eles mostram bem como havia intensos contactos entre
essas comunidades da diáspora e a pátria-mãe.

b) A diá spora egípcia


Segundo a Carta de Aristeia, «foram mandados judeus na qualidade de tropas auxiliares a combater ao serviço
de Psammético, contra o rei da Etiópia»12. Trata-se do faraó Psammético I que fundou a 26ª dinastia (por volta de
664 a. C.) e que procurou reforçar a defesa do Egipto depois da invasão de Senaquerib (os oráculos de Jr 42-43
podem ser uma alusão a esta ida de judeus para o Egipto). Para concretizar as suas opções, Psammético chamou
operários gregos, marinheiros fenícios e mercenários hebreus para defender a fronteira sul contra a Núbia (Etiópia).
A este grupo, um outro ter-se-á juntado ao tempo de Psammético II (594-589), ou seja, por altura das invasões de
Nabucodonosor e da deportação para Babilónia. Pode tratar-se inclusive de judeus que fugiram da Palestina nessa
altura com medo das consequências da tomada de Jerusalém. Mais do que uma guarnição no sentido moderno do
termo, A. Paul diz que se trata de uma colónia militar «Os fundadores da colónia, chegados a Elefantina como
mercenários, não demoraram a tornar-se colonos e a viver em parte dos produtos das terras que lhes tinham sido
atribuídas.»13 No entanto, é sobretudo ao tempo dos ptolomeus, já na época helenística (como veremos mais
adiante), que a emigração judia para o Egipto se tornou mais forte.
Assim, estabeleceu-se uma grande colónia judaica em Elefantina,à beira da 1ª catarata do Nilo, junto à cidade de
Sun (em Ez 29,10 temos Syene), hoje Assuão, tal como nos recordam os papiros de Elefantina (escritos em
aramaico). Tais papiros foram encontrados no início do séc. XX e deram-nos a possibilidade de conhecer melhor esta
comunidade, bem como as suas relações com os judeus da Palestina. Por eles sabemos que a comunidade tinha um
grande templo dedicado a Yahwé, onde se procedia ao culto sacrificial, imolando cordeiros à semelhança do que
sucedia em Jerusalém, o que motivou uma grande disputa com um grupo egípcio cujo seu deus — o deus Knub —
tinha a forma de cordeiro. Sabemos também que, já na altura do domínio persa no Egipto14, os sacerdotes egípcios
do deus Knub queimaram e destruíram o Templo dos judeus, tudo isto com a ajuda do governador persa Waidrang 15.

12
Carta de Aristeia, 13.
13
Cf. Dictionnaire de la Bible Supplément, II, 983.
14
Cambises, sucessor de Ciro, conquista o Egipto em 523, incorporando-o no Império Persa.
15
Temos aqui alusão ao templo que já existiria em Elefantina, na célebre colónia judaica do Sul do Egipto, de acordo com o
papiro 40 da edição de COWLEY. Estaríamos em 411 a. C.
7
Este Templo nunca mais fora reconstruído, apesar da comunidade judaica se manter aí e continuar a celebrar o seu
culto, mesmo sem Templo.
Um outro papiro16 dá-nos uma lista de dons oferecidos ao Templo e, para além de Yahwé, fala-nos de outras
divindades que ai seriam veneradas também: Ashambethel e Anathbethel. Terá isto a ver com o sincretismo
samaritano de que nos fala 2 Re 17? O papiro 21, por sua vez, alude à celebração da Páscoa; é a única festa que aí
vem mencionada.
A maioria dos documentos de Elefantina estão datados; o mais antigo, remonta ao ano 27 do império de Dário I,
ou seja, a 495, enquanto o mais recente seria de 399. Trata-se, portanto, de documentos de um século de história e
com dados preciosos. O conteúdo da maior parte destes documentos é de carácter privado: contratos matrimoniais,
transmissões de propriedade, libertação de escravos, etc. Por estes textos facilmente se pode constatar como os
contactos desta comunidade com Jerusalém eram intensos, pois aí é pedida ajuda nas disputas com os sacerdotes
egípcios do deus Knub. Temos também referências e alusões aos governadores da província da Samaria (como é o
caso de Sanballat que é igualmente referido no livro de Neemias: 2,10.19; 3,33). Trata-se de um personagem
amonita que, juntamente com o governador da Samaria de então, se opunha à reconstrução de Jerusalém,
procurando induzir o governo da 5ª Satrapia (do Império Persa, a «Abar-Nahara» ou «Além do Rio», no caso, o
Eufrates) a não autorizar que as muralhas e o Templo fossem reconstruidos.

c) A diá spora no período helenístico


A conquista de Alexandre (em 332) alterou profundamente a estrutura política, social e cultural de todo o Médio
Oriente. Pela primeira vez, um grande império vindo do Ocidente marchava para Oriente, alterando a tradição que
até então tinha sido inversa. Iniciava-se assim a primeira marcha da cultura ocidental em direcção ao Oriente,
deixando marcas profundas e inovadoras.
Uma das motivações da conquista de Alexandre, depois continuada pelos seus sucessores, foi a difusão da
cultura grega (helénica) nas terras conquistadas. Dessa difusão cultural nasceu uma nova forma de vida e um novo
modus vivendi cultural e social nas terras que foram incorporadas no novo império. É o helenismo: trata-se de um
sistema cultural que coloca o homem no centro (antropocéntrico) e tem como expressão máxima a harmonia das
formas e a estética. O próprio Alexandre fundou no delta do Nilo uma nova cidade que fosse o reflexo da sua própria
grandeza e da nova forma de estar no mundo: Alexandria. Aos judeus foi então consignada uma zona da nova cidade
junto ao mar17 com todos os direitos civis e religiosos. A crer na Carta de Aristeia, a comunidade judaica tinha a sua
organização própria, com grande autonomia, e conheceu um período de grande progresso e poder político. Possuía
uma grande sinagoga (com 71 cadeiras de ouro - tantas quantos os membros do seu Conselho «Sinédrio») 18.
Sabemos que havia gente rica e que existiam fortes ligações com a comunidade de Jerusalém. Um tal Nicanor de
Alexandria tinha oferecido uma porta de bronze para o Templo19 e em Jerusalém vamos encontrar ao tempo do NT
uma sinagoga de judeus alexandrinos (Act 6,9). Segundo Flávio Josefo, esta comunidade de Alexandria ajuda a
comunidade de Jerusalém20.
Esta comunidade de Alexandria recebeu grandes benefícios e privilégios dos sucessores de Alexandre: os
ptolomeus. A Carta de Aristeia, embora possamos dizer que se trata de uma forma narrativa algo fantasiosa, fala-nos
da Tradução Grega dos LXX (ao tempo de Ptolomeu II, Filadelfo), mostrando como os judeus gozavam de grande
simpatia junto do poder central. Para além desta tradução que é a grande fonte de inspiração e de referência para a
comunidade cristã e para o NT, a comunidade judaica de Alexandria legou outras obras importantes, tais como o
livro da Sabedoria, alguns textos apócrifos (4 Macabeus, Joseph e Aséneth), bem como a grande obra literária de
Filão de Alexandria. Um dos objectivos desta literatura era o de mostrar que o judaísmo era compatível e podia
dialogar com os valores de outras culturas, designadamente com o helenismo reinante em Alexandria, embora esse
diálogo nem sempre se tenha manifestado fácil.
Ao tempo de Ptolomeu VI (181-145), e como consequência da política hostil dos selêucidas da Síria na Palestina,
todo o Egipto foi aberto aos judeus. Aí é acolhido Onias IV, provavelmente filho de Onias III (filho de Simão II: Ecl

16
Trata-se do papiro 22 da ed. de COWLEY.
17
Contra Apionem, II, 36.
18
Cf. T. Sukkah 4,6; Suk 51b.
19
Mid 1,4; 2,3; Yoma 3,10.
20
Antiquitates Judaicae, 18,4,3.
8
50,121) que se refugiou no Egipto e para quem o imperador construiu um templo, em Leontópolis, perto de
Memphis22, fazendo-o também comandante de uma unidade militar autónoma. Onias pertencia a uma notável
família que desde longa data exercia o sumo sacerdócio e que, devido à luta entre os diversos grupos judaicos, fora
deposto pelos partidários da helenização da Palestina que estava sendo promovida pelos selêucidas,
designadamente por Antíoco Epifanes.
Com a morte de Ptolomeu VI (145), Onias e o seu exército envolveram-se nas lutas pela sucessão, tomando o
partido de Cleópatra II, viúva de Ptolomeu, contra o cunhado Evergetes II, depois Ptolomeu VII. Com a vitória deste,
iniciou-se aquela que poderemos designar como a primeira perseguição aos judeus de Alexandria no período
helenístico23. No entanto, com o casamento de Ptolomeu VII com a sua ex-cunhada a situação voltou à normalidade
e a comunidade judaica pôde retomar a sua vida normal. O templo de Leontópolis manteve a sua actividade até ao
ano 73, altura em que foi encerrada por ordem dos romanos.
Para além da situação de privilégio que viviam em Alexandria, também a comunidade judaica de Leontópolis
manteve por muito tempo uma autonomia assinalável, constituindo uma espécie de pequeno estado dentro de
outro estado. Os próprios filhos de Onias IV mantiveram não apenas o comando das forças militares do seu exército,
mas também dos exércitos de Cleópatra III (116-110), exercendo uma forte influência junto do poder central. A
história da comunidade de Leontópolis não termina aqui, pois vamos encontrar mais tarde os judeus aliados aos
romanos na conquista do Egipto (com Pompeu em 55 a. C.) e também ao lado de Antípatro (pai de Herodes, o
Grande) que se coloca ao lado de César para manter o domínio romano (48-47)24. Isso mostra de forma clara como a
política oriental do império conduzida por César foi nitidamente favorável aos judeus. O mesmo será feito pelos seus
sucessores Marco António e César Augusto.
Um pouco ao contrário da diáspora oriental que manteve uma relação bastante discreta com a Palestina,
mormente em questões de natureza política e cultural, só sentidas mais tarde já na época rabínica, com a literatura
midráshica e talmúdica, a diáspora do Egipto manteve constantemente uma forte ligação a Jerusalém e um grande
envolvimento na política regional. As influências em Jerusalém são sentidas permanentemente e o envolvimento dos
judeus com a terra dos faraós é constante. Na época helenística esse envolvimento vai ser ainda mais acentuado,
culminando com o esforço comum dos judeus em todo o império para se revoltarem, dando assim origem à política
hostil de Roma na segunda metade do séc. I.

3. As consequências da helenizaçã o da Palestina


Com a conquista de Alexandre inicia-se, como já referimos, uma nova página na história de todo o Médio
Oriente e, consequentemente, também na do povo judeu, alterando profundamente os hábitos e tradições
ancestrais da comunidade de Jerusalém do pós-exílio. Numa primeira fase, esta alteração da situação não teve a ver
com o estatuto político da comunidade judaica, já que esta continuará como antes numa relação de dependência
directa do império (ora dos ptolomeus do Egipto, ora dos selêucidas da Síria) até à conquista levada a cabo pelos
macabeus (iniciada em 167) e à formação do reino asmoneu (em 141).
Após a morte de Alexandre, a Palestina ficou integrada no império dos Ptolomeus do Egipto até 200 a. C., altura
em que, após a Batalha de Banias (ou Panias, junto às nascentes do Jordão, no Hermón), o controlo efectivo da zona
passou para os selêucidas da Síria que, ao contrário do que sucedera anteriormente, forçaram a helenização do
judaísmo através da imposição de medidas que restringiam a autonomia da Judeia. Para além do uso da força e da
ocupação militar, os gregos recorreram a outros instrumentos para impor o helenismo:
 Criação de cidades livres — independentes do poder religioso e com um estatuto autónomo. Gozando de
diversos privilégios, num regime democrático de tipo grego, com senado próprio, podiam cunhar moeda
e os seus governadores respondiam directamente perante o poder central do império ou da respectiva
província. Este modelo teve grande êxito na Palestina, com as chamadas cidades da Decápole (Betshean,
Abilla, Gadara, Pella, Hippos, Jerasah, etc.);
 Imposição de uma cultura de tipo humanista — centrada no homem e na beleza artística, que tinha por
centro a polis (a ágora) e já não o Templo. Temos as festas pagãs às divindades locais, os teatros, o

21
De acordo com o livro de Neemias, Simão I (?) teria afastado do poder os Tobíades, inimigos dos judeus junto do poder
central.
22
AJ 13,6; BJ 7,422-432.
23
Temos ecos destas perseguições no 3º livro dos Macabeus e também em FLÁVIO JOSEFO, Contra Apionem, II, 53-55.
24
Temos diversas referencias a esta guerra que é conduzida por César com o apoio dos judeus em Antiquitates Judaicas, 14,
127-136. Ver também A. PAUL, Le monde des juifi à l'heure de Jésus. Histoire politique, Paris, 1981, 41-43.
9
hipódromo, os jogos, os ginásios. Desenvolve-se a beleza fisica e a estética do corpo, com seus ginásios,
hipódromo e demais recintos para o desporto e o exercício físico, em detrimento do cuidado que devia
ser consagrado ao culto e ao Templo;
 Combate activo às tradições religiosas locais — procura-se suprimir e retirar os privilégios legais que
determinadas comunidades ou grupos detinham no âmbito do império. Temos aqui o caso de Jerusalém,
tal como também os samaritanos (tinham obtido idêntico estatuto). No caso do judaísmo é-lhe negada a
autonomia para fazer do Pentateuco (da Torah) a lei civil; os judeus, tal como os demais povos, tinham
de aceitar e viver de acordo com as leis do império. A nomeação de sumos sacerdotes de cultura grega,
afectos ao poder imperial, traduz bem a forma como esse combate era realizado.
Promovida durante o tempo dos ptolomeus e nos primeiros anos do Império Selêucida, a helenização foi
imposta de forma violenta a partir de 167, com a tentativa de impor um maior controlo sobre a Palestina por parte
de Antíoco Epifânio25. Já antes, alguns sumos sacerdotes do partido helenista tinham forçado uma certa helenização
de Jerusalém26. Porém, a hostilidade encontrada junto das camadas populares e de diversos grupos levou à
intervenção activa do poder central, determinando penas graves, até a própria morte, para todos aqueles que não
aceitassem os decretos reais. A reacção a tais medidas não se fez esperar e dela se fazem eco os livros dos
Macabeus: 1 Mac 1,10.-15.21-28.41-64. 1 Mac 2 é um capitulo que se faz eco da reacção do grupo mais hostil a essa
helenização que foi o grupo designado por Hasidim (os justos que cumprem a Lei, face ao grupo dos helenistas que
são designados por «ímpios»).
Chefiados por Matatias Macabeu, o grupo nacionalista dos Hasidim terminará por vencer e conquistar não
apenas a liberdade religiosa que lhe é reconhecida em 163 por Antíoco V, o que lhes permite regerem-se pela sua
própria Lei (Torah)27. Na sequência desta conquista é-lhes também concedida autonomia política ao tempo de Simão
Macabeu que se vê confirmado como rei dos judeus em 142-141. Para o conseguir, Simão aproveitou não apenas o
período de decadência do império, mas beneficiou também das alianças com Roma e Esparta 28, tomando para si o
título de «príncipe e etnarca dos judeus». Para consolidar o seu poder, Simão, apesar de não ser de família
sacerdotal, faz-se proclamar também sumo sacerdote, o que veio a causar grande descontentamento entre o
próprio movimento dos Hasidim. Esta autoproclamação de Simão como sumo sacerdote, feita em parte à rebelia do
povo, assenta no que poderemos chamar de «um direito tradicional» que lhe é conferido pela comunidade dos
judeus (1 Mac 14,47), embora se aguarde a «chegada de um profeta acreditado» que possa então confirmar esta
designação.
Com Simão consolida-se e concentra-se o poder político e religioso na mesma pessoa, dado que ao
reconhecimento político por parte do império e das potências aliadas se junta agora o poder religioso que lhe é
conferido pelo povo judeu. Nasce aqui o que se tornará numa característica do estado asmoneu e que nunca antes
tinha existido em Israel: a junção do poder político e religioso numa única pessoa. João Hircano e Alexandre Janeu
serão as duas figuras que representam o apogeu desta união dos dois poderes na mesma figura. Este estatuto
manteve-se até ao ano 76, altura em que morre Alexandre Janeu e lhe sucede a sua esposa Alexandra Salomé que,
pelo facto de ser mulher, teve de delegar o poder religioso num dos seus filhos. Será em 64, com a conquista de
Pompeu que se põe fim a esta união dos dois poderes.
Durante este período, para além das lutas e guerras internas, tiveram lugar outros acontecimentos importantes
que vão marcar definitivamente o judaísmo do período intertestamentário e que tiveram uma influência
determinante no que concerne à cultura hebraica que nós conhecemos. Dentre esses acontecimentos destaca-se,
por meados do séc. II a. C., a formação da comunidade essénia de que conhecemos melhor o grupo de Qumrãn29.
Trata-se de um grupo, provavelmente de Hasidim, que se desvinculam do judaísmo oficial para viverem de forma
mais intensa de acordo com as suas tradições. As razões para este corte com o judaísmo oficial não são ainda hoje
totalmente conhecidas, mas é de crer que entre estas esteja o facto de se oporem à usurpação do sacerdócio pelos
descendestes de Matatias Macabeu, o que a seus olhos sempre foi considerado como uma impiedade. Dai que os
escritos de Qumrãn abordem, quase todos eles, o tema do «sacerdote ímpio» que combate o «mestre de justiça» (o
mestre justo) e procura dar-lhe a morte. Estamos em 152, altura em que a nomeação de Jonatas Macabeu como
sumo sacerdote por Alexandre Balas (1 Mac 10,15-21) motivou a fuga de Onias III (para Leontópolis) e também a

25
O próprio nome do imperador «Epifánio» (manifestação da divindade, divino) era já uma afronta para o judaísmo,
fazendo assim crescer ainda mais a oposição ao Império Seléucida.
26
Temos o caso de Jasão: 175-172.
27
1 Mac 6,31s; 2 Mac 11,22-26; 2 Mac 13.
28
1 Mac 14,16s; 15,15s.
29
Cf Antiquitates Judaicae 13,171s.
10
cessação dos essénios que se opõem a essa designação, apesar dos macabeus terem ainda uma ascendência
sacerdotal, de Yehoyarib, chefe de uma família sacerdotal (1 Mac 2,1.54). Todavia, esta atribuição do sumo
sacerdócio aos macabeus e seus descendentes fora aceite com uma ressalva: «Até que aparecesse um profeta digno
de fé» (1 Mac 14,41). Assim, o judaísmo aspirava pelo regresso da profecia para poder decidir sobre o sacerdócio e
outros assuntos importantes que careciam de ser iluminados nesta nova fase de vida da comunidade judaica (1 Mac
4, 46).
Um outro acontecimento que vai marcar o judaísmo desta época foi a destruição do Templo samaritano do
monte Garizim, levada a cabo por João Hircano (sucessor de Simão), no ano 127 a. C. Este facto contribuiu de forma
decisiva para acentuar ainda mais o fosso que separava judeus e samaritanos que se viria a consumar em 109
quando o mesmo Hircano destrói a cidade da Samaria (Sicar), símbolo da identidade samaritana. Estes
acontecimentos mostram bem o clima de tensão que existia entre as duas comunidades ao tempo de Jesus: Jo 4,5s;
8,48; Lc 9,52-55.
Apesar da dinastia dos asmoneus (com Hircano e especialmente com Alexandre Janeu: 103-76) ter conquistado
de novo a autonomia política face aos dois impérios rivais (selêucidas a norte, na Síria, e ptolomeus a sul, no Egipto)
e alargado o império até limites nunca antes alcançados30, salvo o período de David e Salomão, nem por isso a
sociedade judaica ficou mais pacificada e reconciliada com a monarquia reinante. A forma e os costumes helenísticos
adoptados pelos soberanos bem como a usurpação do sumo sacerdócio nunca foram bem aceites entre os judeus
pelos grupos mais populares. Esta oposição foi conduzida particularmente de forma activa pelo grupo dos fariseus (o
partido dos Hasidim) que não suportavam a junção do sacerdócio e da realeza na mesma pessoa, uma vez que os
asmoneus não eram de ascendência sadoquita (de Sadoc).
Neste contexto, para além da instabilidade do poder politico que se vai acentuar durante a primeira metade do
séc. I a. C. até à conquista romana, em 64, por Pompeu, assistimos também a uma deterioração da situação interna
no que diz respeito ao poder religioso e à convivência entre os diversos grupos dentro do judaísmo. Para além do
sumo sacerdote, o poder religioso era exercido pelo Sinédrio, composto por saduceus (oriundos das famílias nobres
e sacerdotais) e fariseus (ligados ao povo e às classes sociais mais desfavorecidas). A convivência entre estes e outros
grupos não será pacífica e criará muitas tensões ao poder constituido. O poder civil apoia-se ora num ora noutro
grupo, tal como sucede com Alexandre Janeu que favoreceu os saduceus e a sua sucessora (e esposa) apostou nos
fariseus31. Esta luta vai continuar durante a dominação romana até ao fim da revolta judaica de 70 d. C.
É nesta complexa situação social e política que emerge uma figura que ocupará a cena política da Palestina na
parte final do séc. I a. C. e cujos descendentes deixaram uma marca muito forte ao tempo do NT. Trata-se de
Herodes, o Grande, e de seus familiares. Herodes era filho de um ministro de Hircano (filho de Alexandre Janeu que
sucedera a sua mãe, Alexandra Salomé), de nome Antípatro, que era idumeu32. Por isso, Herodes não era judeu e
nunca foi uma figura grada aos judeus, apesar de inúmeras e grandiosas obras que fez em Jerusalém e em outras
cidades da Palestina. Estudou em Roma e aí ganhou a simpatia dos romanos que se serviram dele para controlar a
situação política e social na Palestina. Começa por ser governador da Galileia (strategos), alia-se a Marco António e a
Cleópatra, o que lhe vai valer a desconfiança de Augusto, embora depois tenha sabido refazer-se do sucedido,
recebendo dele o título de rei-vassalo dos romanos (em 37 a. C.), com o governo da Galileia, da Judeia, da Samaria e
das outras regiões da Província. A época de Herodes e dos seus descendentes marcará de forma decisiva o judaísmo
do tempo de Jesus e deixará consequências que se prolongarão durante todo o séc.I da nossa era. Com a morte de
Herodes e a divisão do seu reino pelos seus 3 filhos (Arquelau, etnarca da Judeia; Herodes Antipas, tetrarca da
Galileia e Pereia; Herodes Filipe, tetrarca da Gaulanitide, Bataneia e regiões adjacentes do Norte), os romanos não
conferiram aos filhos o estatuto atribuído ao pai nem estes desfrutaram da autonomia que àquele tinha sido
concedida, o que vai contribuir para que a Judeia seja declarada Província Procuratorial com a capital em Cesareia
Marítima (no ano 6 d. C., após a destituição de Arquelau e que se manteve até ao ano 41), governada por um
Procurador, tal como é o caso, por nós bem conhecido, de Pilatos.

30
Tanto Hircano como Alexandre Janeu chegaram mesmo a anexar partes significativas da Transjordânia e a destruir
diversas cidades gregas autónomas como represália por viverem segundo urn status que contrariava as tradições judaicas.
31
Segundo FLÁVIO JOSEFO (AJ 13,401), o testamento deixado por Alexandre Janeu à sua esposa, Alexandra Salomé, apelava
a uma reconciliação com o grupo dos fariseus, o que terá acontecido.
32
Trata-se de uma tribo do Sul da Palestina, que eram grandes comerciantes e que exerceram alguma importância política
na zona nos finais do séc. I a. C. É particularmente devido ao comércio vindo da zona arábica que era transportado até ao mar
Mediterrâneo, nos portos da costa sul, como era Gaza, que esta tribo vem a desempenhar um papel notável na região, tal como
depois vai suceder com os nabateus, também eles aliados dos romanos para a defesa a sul dos limites do império. O
desenvolvimento do Neguev (a zona sul de Israel) no periodo romano e bizantino colhe aqui a sua razão de ser.
11
No ano 41, Roma concede de novo o título de rei a Herodes Agripa33, com poder sobre a Judeia e a Samaria,
tendo este desencadeado uma das primeiras e mais violentas perseguições contra os cristãos de Jerusalém, com a
decapitação de S. Tiago, irmão de S. João, e mandado prender Pedro (Act 12). A expansão do cristianismo para além
das fronteiras da Judeia deve-se, sem dúvida, a este clima de perseguições e à conversão de S. Paulo que realiza a
sua primeira missão ad gentes de 46 a 48, levando a fé cristã para o mundo grego.
O permanente clima de revolta na Judeia e nas comunidades judaicas do império (por exemplo, em Alexandria,
em 66), bem como a incapacidade do poder romano em lidar com os «assuntos internos» do judaísmo conduziu ao
eclodir da 1ª revolta judaica em 66 que se espalhou rapidamente por todo o país, tendo os sicários e os zelosas
desempenhado aí um importante papel que os levou à reconquista de Jerusalém e à expulsão dos oficiais do
império. Esta revolta terá um fim trágico para o judaísmo com a destruição de Jerusalém e do Templo no ano 70, às
mãos de Tito, filho de Vespasiano que, entretanto, tinha sido feito imperador em Roma. A aclamação de Tito em
Roma, no ano 71, como o conquistador dos romanos significa o fim da Judeia e de uma importante etapa do
judaísmo. A importância que esta vitória de Tito teve para o império está bem documentada no Arco de triunfo de
Tito, em Roma, onde se podem ver gravadas as insígnias do judaísmo, mormente o Candelabro da Menorah e outros
despojos do Templo.
Alguns escritos apócrifos (4 Esdras, 2 Baruc) fazem-se eco desta catástrofe que determinará não apenas o fim do
judaísmo como o conhecemos dos escritos bíblicos, centrado no Templo e com toda a sua estrutura sacerdotal, mas
também determinará de forma definitiva o futuro do cristianismo, uma vez que a comunidade cristã se tinha
dissociado da revolta judaica e partiu em diáspora, tendo uma parte dessa comunidade encontrado refúgio em Pella,
na Transjordânia, uma das cidades helenísticas da Decápole.
No entanto, a derrota dos judeus em 70 às mãos de Tito e a declaração da Judeia como província imperial não
trouxeram consigo a paz para a Palestina (Judeia e Jerusalém). Em 132, chefiados por Bar Kokba, os judeus insurgem-
se de novo contra Roma e conseguem ocupar Jerusalém e aí restaurar um regime autónomo. Serão apenas vencidos
em 135, por Adriano, que impõe o desterro da cidade para todos os judeus e transforma Jerusalém numa cidade
romana, com o nome pagão: «Aelia Capitolina»34.
Era então o fim do judaísmo e da nação judaica como identidade nacional. Inicia-se a grande dispersão que vai
levar os judeus aos mais recônditos cantos da terra. Esta diáspora perdurou séculos e conheceu períodos terríveis
para a sua sobrevivência: a invasão árabe do séc. VII; as cruzadas dos séculos XII e XIII; a expulsão dos judeus de
Espanha e Portugal nos séculos XV e XVI e, por último, a perseguição nazi ao tempo do 3º Reich de Hitler.

4. O CONTEXTO RELIGIOSO DO JUDAISMO INTERTESTAMENTÁ RIO


Como já antes referimos, durante um período de cerca de 300 anos (os dois últimos séculos do AT e o primeiro
século da nossa era) não se pode falar de «um judaísmo» uniforme e singular, nem de uma comunidade judaica
«monocolor» na forma e na vivência das suas tradições religiosas e culturais. Pelo contrário, estamos em presença
de comunidades e grupos muito diversificados tanto na sua expressão cultural como na vivência da sua fé. Temos
um judaísmo pluralista nos seus grupos, nas suas concepções religiosas, nas suas tradições e formas de interpretar
os preceitos da Torah e nas suas expressões culturais e literárias. Um olhar sobre a literatura judaica, mesmo que
seja de relance, permite-nos constatar imediatamente que no interior do judaísmo existia uma grande agitação e um
fervilhar de grupos e movimentos em busca de um espaço e de uma identidade própria. Nas comunidades da
diáspora assiste-se então a uma fase de grande proselitismo, procurando apresentar a religião judaica como algo
compatível com as formas de vida e os valores de outras culturas e religiões35. Dentre estas tentativas sobressai a
Tradução Grega dos LXX que representa, ao mesmo tempo, uma forma de diálogo com a cultura helenística não
apenas em Alexandria, mas aberta a todo o império.
Antes de se transformar na religião da Torah, consequência da destruição do Templo e da diáspora forçada dos
finais do séc. I da nossa era, o judaísmo palestinense era composto por uma grande diversidade de grupos e de
movimentos, com suas tradições e formas de expressão religiosa. Temos uma pluralidade de seitas: fariseus,
saduceus, essénios, zelosas, samaritanos, grupos baptistas, movimentos apocalípticos e místicos. As mais diversas
33
Agripa era neto de Herodes, filho de Aristóbulo que fora morto por Herodes, o Grande, como um daqueles que
conspiravam contra si, mas que fora educado em Roma e se tornara amigo de Caligula, contribuindo para que este ascendesse à
chefia do império.
34
Este nome pode traduzir-se por «Cidade do deus-sol do Capitólio», significando assim a sua subjugação ao poder imperial
de Roma (do Capitólio). A cidade funcionará agora de acordo com o estatuto de uma cidade pagã.
35
O exemplo mais perfeito deste proselitismo encontramo-lo na Carta de Aristeia e na forma como apresenta os valores da
cultura judaica, consignados na Lei, superando todos os costumes e tradições mitológicas dos demais povos (167-171).
12
doutrinas cresciam e coabitavam lado a lado no interior do judaísmo e todas elas tinham as suas referências bíblicas,
mormente ligadas à interpretação da Torah.
No entanto, para além desta pluralidade e no que diz respeito à interpretação da Lei e à moral quotidiana, duas
«escolas» se impuseram na sociedade judaica: a escola de Shammai (de características mais rigoristas) e a de Hillel
(mais humanista). Destas duas «escolas» que deram continuidade à tradição judaica manter-se-á apenas a tradição
farisaica da «escola» de Hillel que foi capaz de superar as consequências da revolta judaica do ano 70, já que os
saduceus e a «escola» de Shammai tinham assumido fortes posições contra a ocupação romana. No entanto, com o
acentuar da crise no confronto com Roma todos estes movimentos que emprestavam ao judaísmo uma coloração
pluralista e polifacetada entraram em profunda crise, restando apenas o movimento farisaico da «escola» de Hillel e
pequenos grupos de tipo apocalíptico que pouco a pouco se diluíram sem deixar grande representatividade.

a) Consequências da revolta do ano 70


Após a derrota do ano 70 às mãos de Tito e a consequente destruição do Templo, o fim do culto judaico e a
eliminação dos sacerdotes do movimento dos saduceus que eram os pilares da tradição judaica de então, o judaísmo
teve de repensar a sua sobrevivência. Agora já não havia Templo, nem culto, nem sacrificios, nem sacerdócio e até o
solo pátrio em breve não seria mais do que uma saudade ou uma esperança num regresso desejado.
Face a este cenário, foi o rabbi Yohanán Ben Zakkai que procurou reorganizar o judaísmo para a sua
sobrevivência. Para tal, fez reunir os «Mestres» em Yabné (no célebre concílio dos finais do séc. I) para poder unificar
o que restava e estabelecer as novas formas de vida. Aí prevaleceu a corrente farisaica da «escola» de HilIel que
impôs as suas perspectivas em detrimento de outras tendências. Assim, foram eliminados os saduceus, os fariseus
da «escola» de Shammai, os zelosas (responsabilizados pela catástrofe nacional que tinha acontecido), bem como os
essénios e os grupos de tendências apocalípticas, uma vez que a sobrevivência exigia a unificação de todas as forças.
Subsistirão com a sua autonomia apenas os samaritanos que já se tinham afastado há muito do judaísmo como tal.
Embora haja razões circunstanciais que decorrem da derrota de 70, também é verdade que muitas das razões
que estão na génese das lutas no interior do judaísmo que agora tiveram o seu epílogo em Yabné remontam a
meados do séc. II a. C., especialmente ao conflito entre simpatizantes do helenismo e os Hasidim que
desencadearam a revolta dos macabeus. A helenização forçada por Antíioco Epífanes e apoiada pelo grupo dos hele-
nistas (1 Mac 2,27) deixou profundas marcas na sociedade judaica. A designação de sumos sacerdotes que não eram
de ascendência sacerdotal (sadoquitas) teve como consequência o «cisma» da comunidade essénia que está na
origem dos nossos bem conhecidos manuscritos de Qumrãn. Aí está bem patente o conflito entre o «Mestre de
Justiça» (chefe dos essénios) e o movimento dos macabeus, sendo o «sacerdote ímpio» a expressão desse cisma. No
entanto, o conflito existente não se limitou apenas a esta separação. Ele é mais profundo e atinge igualmente outros
grupos e movimentos. De acordo com Flávio Josefo remonta a este período a divisão entre fariseus, saduceus e
essénios36.

b) Os ecos da literatura da época


De todos estes movimentos e grupos chegou até nós uma abundante literatura que não só complementa e
interpreta os textos bíblicos, mas também nos ajuda a compreender história de então. Grande parte dessa literatura
dita «apócrifa»37, especialmente a de carácter apocalíptico, reflecte bem as tensões que ao longo do período
intertestamentário se foram acumulando no interior do judaísmo, mormente por parte dos Hasidim que romperam
com os asmoneus por estes se terem apossado, indevidamente, do sacerdócio.
Todavia, convém realçar que nem toda a literatura apócrifa ou de tendências apocalípticas surgiu nos grupos
pietistas (Hasidim), opositores violentos ao exercício do poder por parte dos descendentes dos macabeus
(asmoneus). Importa referir que alguns destes grupos eram marginais, de pouca ou nula influência dentro do
judaísmo. Além disso, até finais do séc. I da nossa era (Concilio de Yabné que fixou e organizou a ortodoxia judaica)
não se pode falar de um judaísmo oficial ou de uma ortodoxia judaica, mas apenas de uma ortopraxis que consistia
em cumprir a Lei de Moisés.
Neste aspecto, os apócrifos, tanto de tendência apocalíptica como escritos narrativos, manifestam, sem
excepção, uma grande estima e devoção à Torah. A apocalíptica não é um fenómeno marginal ou secundário dentro

36
Antiquitates Judaicae 13,5,171.
37
O adjectivo «apócrifo» não quer dizer falso ou sem valor; significa sim que esta literatura não é canónica, não faz parte do
Cânon, embora contenha notáveis informações e constitui para nós hoje a melhor fonte de informação sobre estes 3 agitados
séculos de judaísmo.
13
do judaísmo, reservado apenas a grupos esotéricos. Ela floresceu um pouco em todos os grupos e movimentos,
expressão e forma de manifestar as esperanças e anseios que tais grupos acalentavam. Por exemplo, nos escritos de
Qumrãn temos fortes indícios de tendências apocalípticas, já que o seu conteúdo alimentava a vivência da
comunidade, dando estimulo e motivação aos seus membros. O pensamento apocalíptico conheceu uma grande
difusão neste período intertestamentário e não se limita a este ou àquele grupo. Como que percorre de forma
transversal toda a sociedade judaica de então que se vê confrontada quer com o domínio grego dos selêucidas
primeiro, com a tirania dos asmoneus depois e, finalmente, com a opressão romana. Isto explica a grande difusão
das doutrinas apocalípticas e a empatia que estes movimentos conhecem junto da população em geral.
No entanto, e apesar desta difusão, não é fácil distinguir quais as camadas da população que mais se
identificavam com os movimentos apocalípticos, estando um pouco presente em todos os grupos que se
manifestavam contra a situação social e política deste período. Por exemplo, a crer nos ecos e testemunhos que até
nós chegaram, os Livros de Henoc, 4 Esdras, 2 Baruc, entre outros, encontraram uma grande audiência e difusão na
população em geral. O cristianismo conservou, nos seus primeiros tempos e no seio das primeiras comunidades,
ecos destes escritos e dos respectivos movimentos enquanto o judaísmo pós-Yabné foi excluindo progressivamente
todas as seitas e movimentos que não seguissem rigidamente a ortodoxia fixada no concilio.

c) As instituiçõ es judaicas
Dentre as diversas instituições judaicas há três que assumem papel predominante e de grande interesse para o
conhecimento do ambiente religioso deste período. São elas: o Templo, o Sinédrio e o Sacerdócio.
Impõe-se, por isso, uma breve descrição de cada uma delas, já que a sua centralidade na vida judaica é
determinante para a própria história do judaísmo como tal.
No que diz respeito ao Templo, trata-se do lugar central e do coração do judaísmo como tal. O Templo existente
ao tempo de Jesus é, em geral, chamado de 2º Templo, pelo facto do 1º, construído por Salomão, ter sido destruido
na altura da tomada de Jerusalém por Nabucodonosor (em 587/586). Foi este 2º Templo, reconstruído por Esdras e
Neemias, que Herodes mandou alargar e engrandecer nos seus diversos aposentos. São abundantes as referências
ao Templo e às funções que nele eram exercidas. Para além dos textos da Torah e daqueles alusivos à sua
construção (do tempo de David e Salomão), temos o livro de Esdras, 2 Mac e Flávio Josefo38.
Desde o tempo de Salomão que o Templo de Jerusalém era o santuário oficial do reino. Os livros de Samuel e
dos Reis, escritos na perspectiva do Deuteronomista, sublinham como prioridade absoluta do culto a unicidade do
Templo, unicidade esta que apenas conheceu momentos muito breves, uma vez que o politeísmo cultual foi uma
constante ao tempo da realeza. O quadro ideal descrito em 1 Cr 23-26 é reflexo da situação do período pós-exílio e
não do tempo da monarquia, uma vez que a divisão do reino após a morte de Salomão teve como consequência a
existência de outros templos, especialmente o de Bethel39.
Reconstruído no regresso do exílio (Esd 3,3; 7,10), a dedicação do Templo teve lugar em 515, tendo Ciro
procedido à devolução dos objectos sagrados que tinham sido levados para Babilónia (Esd 1,9-10)40. A essas riquezas,
outras se foram ajuntando, de forma que o Templo era depositário de um notável tesouro (1 Mac 1,21-23),
constituindo por isso objecto de cobiça por parte dos conquistadores. É essa uma das razões que está na génese da
crise de 167 a. C., ao tempo de Antioco Epífanes e que deu origem à revolta macabaica.
Formado por diversos compartimentos e átrios, são de destacar o «Santo dos Santos», onde apenas uma vez ao
ano entrava o sumo sacerdote, no dia do Yom Kippur (Expiação) para oferecer o incenso, o átrio dos sacerdotes, o
das mulheres e o recinto dos gentios41, para além do qual estes não podiam entrar. Para além disso, existiam
inúmeras salas dos serviços do Templo. Um episódio pitoresco, narrado por F. Josefo42, diz-nos que Alexandre Janeu,

38
Antiquitatae Judaicae 11,121; 297-298; 12,43-44; 20,261.
39
Um dos textos que melhor ilustra esta divisão cultual entre os dois santuários reais é o texto de Am 7,10-17 (Jerusalém e
Bethel), suportados pelas duas casas reais (Jerusalém e Samaria). Este texto de Amós ilustra igualmente o conflito latente no
judaísmo entre o sacerdócio e a profecia.
40
Embora Esdras aponte a data de 515 como sendo a da dedicação do Templo, tudo parece indicar que se trata apenas de
uma primeira cerimónia para o início do culto, já que os dados referidos apontam para uma data muito posterior: Ne 2,1, seria o
ano de 446; Ne 2,19, estaríamos em 410 (e ainda estava em construção); Ne 13,6, seria o ano de 433.
41
1 Mac 9,54-56 alude ao facto do sumo sacerdote Alcimo ter sido aí ferido por ter ordenado a demolição de um muro
interior de separação (provavelmente de separação do átrio dos gentios, uma vez que se trata de um sumo sacerdote
profundamente helenista).
42
AntiquitatesJudaicae 13,372-373.
14
que além de rei era também sumo sacerdote, mandou isolar o pátio dos sacerdotes, pois tinha sido atacado com
limões (citrinos) na altura da festa das Tendas pelos seus opositores, uma vez que derramara sobre os seus pés, e
não sobre o altar, a água que tinha sido trazida em procissão da piscina de Siloé e que se destinava a implorar as
chuvas de Outono.
Como Templo oficial, aí decorriam as grandes festas, os sacrifícios, as ofertas, as peregrinações dos crentes
judaicos que deviam subir a Jerusalém uma vez ao ano, por ocasião de uma das três festas de peregrinação (Hag
harregalîm): Páscoa (Pesah), Pentecostes (Shabbuôt ou festa das Semanas) e Tendas (Sukkôt ou Tabernáculos). Além
disso, o Templo era também o espaço do exercício do poder sacerdotal que se alargava em muito para além dos
muros que limitavam o recinto sagrado. A Mishná dá-nos43 informações preciosas sobre a vida no Templo e sobre o
exercício do serviço sacerdotal, com suas classes e funções.
Quanto ao Sinédrio, toma este nome a partir da época dos asmoneus, pois tratava-se da «Assembleia dos
Anciãos»44. A sua composição incluía os representantes das grandes famílias sacerdotais, fariseus e mestres da Lei.
Os sacerdotes estariam também presentes através dos saduceus. No início, os sacerdotes constituiriam a maioria,
mas pouco a pouco a composição foi sendo alterada, conforme o poder político que sempre teve a tendência em
condicionar o seu funcionamento. Durante o tempo da realeza asmoneia, a presidência era exercida pelo rei que era
simultaneamente sumo sacerdote e o Sinédrio funcionava como uma espécie de conselho para os assuntos
públicos45. De acordo com o texto de T. Sanh 3,4, a nomeação do rei e do sumo sacerdote devia ser aprovada pelo
Sinédrio, o que nos parece de difícil execução, uma vez que os asmoneus exerciam as duas funções em simultâneo.
No entanto, quando os fariseus, em luta contra Alexandre Janeu, conseguiram a supremacia procederam à alteração
da lei, tal como diz a Mishná: «O rei não pode tomar assento como juiz e não deve ser submetido à justiça. Ele não
pode testemunhar em justiça e não se pode testemunhar contra ele.»46 Sob o reino de Alexandra Salomé (76-67),
altura em que os fariseus assumiram maior importância, os sacerdotes saduceus foram excluídos do Sinédrio, o que
motivou uma nova interpretação da sua composição47, passando este a ocupar-se apenas dos assuntos do culto e do
Templo. Com Herodes, o Sinédrio perdeu toda a importância, já que este destituía e nomeava a seu bel-prazer os
seus membros. A partir de Hillel a presidência do Sinédrio tornou-se hereditária. Pelo que sabemos, ao tempo de
Jesus o Sinédrio era composto de 71 membros (fariseus e saduceus, Act 23,6), cabendo a sua presidência ao sumo
sacerdote que era, em geral, do grupo dos saduceus.
Competia ao Sinédrio não apenas determinar e interpretar as leis judaicas e julgar as questões de direito
decorrente das tradições (halakah), mas também intervir na fixação do calendário das festas e dar orientações para
as comunidades da diáspora. isso explica, pelo menos em parte, os fortes contactos que existiam entre Jerusalém e
diversas dessas comunidades48, uma vez que estas se viam confrontadas com muitos outros problemas decorrentes
da sua inserção noutras culturas. Estamos, portanto, perante o supremo tribunal judaico, o que levou muitas vezes
os governantes estrangeiros a interferir no seu funcionamento, retirando-lhe poder de intervenção 49 ou designando
directamente o seu presidente através da nomeação de um sumo sacerdote da sua confiança. Portanto, é no
domínio da halakah (normas de conduta e comportamentos) que o Sinédrio tinha autoridade sobre todo Israel: «É
daí que os sábios difundem a Lei para todo o Israel.» (Sanh 11,4.) Para além do exercício da jurisprudência
quotidiana, cabia ao Sinédrio proceder sua difusão junto da população.
No que concerne à prática da justiça criminal, nem sempre as interpretações das duas tendências
predominantes no Sinédrio (fariseus e saduceus) era coincidente, embora pareça que a interpretação (a halakah)
dos saduceus fosse a mais seguida. Todavia, a práxis nem sempre era conciliável entre os dois grupos, o que
originava cenas estranhas como a que nos é narrada pela T. Parah 3,6, em que o sumo sacerdote (por alturas do ano

43
Em diversos tratados, mormente nos tratados Middot (medidas), Tamid (sacrifício quotidiano), Yoma (dia de expiação) e
Perahim (Páscoa). Para conhecer o que era a actividade dos sacerdotes no Templo e como era a «jornada» de um sacerdote ver:
P. MANNS, Le judaïsme. Milieu et Mémoire du Nouveau Testament, Jerusalém, 1992, 59-69.
44
A Mishná legou-nos um tratado que aborda as normas de composição e funcionamento, Sanhédrin. É a melhor fonte de
que dispomos para conhecer a forma como funcionava e quais as suas atribuições.
45
Sanh 1,5: «Não se toma uma decisão sobre uma guerra ofensiva senão depois de ouvir o 'tribunal de 71 membros'. Não se
aumenta a superficie da cidade e as dependências do Templo senão depois de ouvir o 'tribunal de 71 membros'.»
46
Sanh 2,2.
47
O texto da Mishná (Sanh 4,2) que define a composição dos diversos tribunais foi reinterpretado pelo texto do Sifré Dt 17,9
para justificar esta nova composição.
48
J Sanh 6,9,23c.
49
Temos o caso de diversas cidades gregas da Palestina, por exemplo da Decápole, que estavam isentas do poder do
Sinédrio de Jerusalém não tendo que obedecer às leis determinadas pelo tribunal judaico.
15
60) teve de imolar duas vacas no dia da expiação (na festa de Yom Kippur), uma para contentar os fariseus e outra de
acordo com a halakah dos saduceus, uma vez que os dois grupos tinham interpretações divergentes da lei.
Quanto ao Sacerdócio, diz-nos o Cronista que David tinha instituído 24 classes de sacerdotes, os cantores e os
porteiros (1 Cr 24-26). No entanto, com o exílio, a maioria do clero sadoquita foi deportada, embora uma parte da
tribo de Levi tenha permanecido na Judeia, permitindo assim que estes continuassem a oficiar nos santuários. No
regresso do exílio, tanto Esdras (2,36-40) como Neemias (7,39-42) apresentam o número dos sacerdotes regressados
e oferecem-nos inúmeros textos alusivos à reorganização do culto e do sacerdócio. O texto de Esd 7,12 diz que
Esdras era sacerdote e em 7,16-17 são-lhe atribuídas funções sacerdotais através da expressão «hakohen» (sumo
sacerdote) o que faz supor que tenha exercido essa missão. Depois da morte de Esdras, a família de Josué retoma o
controlo do Templo e do Sacerdócio (Ne 12).
Após Esdras e Neemias, teremos de esperar mais de um século para obter novos dados sobre o estado do clero
em Jerusalém. Em 1 Cr 1-9 e 23-27 temos uma longa narrativa sobre a importância do Sacerdócio e dos levitas no
culto do Templo. Idêntico testemunho pode ser encontrado em muitos dos textos apócrifos.
Quanto à lista das 24 classes de sacerdotes que é apresentada em 1 Cr 24,7-18, esta remonta sem dúvida ao
tempo dos macabeus, já que a primeira classe, a de Yehoyarib, é o antepassado dos macabeus (1 Mac 2,1), razão
pela qual eles não só se apossaram do sumo sacerdócio, mas também foram aceites nessa função.
Missão dos sacerdotes era a de oficiar no culto em Jerusalém, cabendo a cada classe 2 semanas ao ano. A eles
competia orientar toda a organização do Templo e do culto (‘abodah). O tratado Tamid descreve-nos os diversos
serviços que os sacerdotes tinham de exercer no Templo50, a maioria dos quais tinham a ver com os sacrificios, as
festas e as oferendas. Não competia aos sacerdotes o serviço da Sinagoga nem o ensino ou a interpretação da Lei.
Essas funções eram da competência dos rabbis e dos Doutores da Lei (e do Sinédrio). A sua missão restringia-se ao
culto oficial do Templo.
51
49

50
Ver L. GINZBERG, «Tamid. The Oldest Treatise of the Mishnah», Journal of Jewish Lore and Philosophy, 1 (1919), 42-44; E
MANNS, Pour lire la Mishna, Jerusalém, 1984, 204-210. Para além dos elementos que nos faculta o tratado Tamid há outros
textos importantes que nos podem oferecer uma preciosa ajuda para a compreensão de algumas passagens do NT,
especialmente a Carta aos Hebreus, no que diz respeito ao culto e à interpretação de Jesus como novo sumo sacerdote dos bens
eternos. Temos, neste caso, o tratado Middot (medidas do Templo) que nos apresenta uma descrição do Templo e dos seus
espaços, constituindo uma das nossas melhores fontes de informação de que ainda hoje dispomos sobre o Templo e as suas
diversas estruturas.
16
II - LITERATURA JUDAICA
Ao abordarmos a questão da «literatura judaica» impõem-se, antes de mais, algumas precisões terminológicas,
uma vez que se trata de um campo tão amplo e vasto que qualquer designação que venha a ser usada contém em si
possíveis equívocos e mal-entendidos. Por «literatura judaica» pode supor-se, num primeiro sentido, toda a
literatura que foi produzida pelo povo judeu ao longo da sua história. Porém, nesta nossa abordagem queremos
referir-nos, fundamentalmente, à literatura extrabíblica nas suas várias tendências, sem excluir dessa designação as
obras mais representativas de algumas das comunidades judaicas da diáspora, mormente de Alexandria e de
Babilónia.

a. Enquadramento de referência
Embora se trate da literatura extrabiblica, a verdade é que a Bíblia é, para toda esta literatura, o quadro de
referência, sem o qual seria impossível compreender e enquadrar toda a riqueza que estes escritos nos legaram. Por
isso, importa ter presente que o facto de ser «extrabíblica» não quer dizer que esteja para além da Bíblia, que
desconheça a sua mensagem ou que se situe fora do mundo bíblico. Significa, tão-somente, que não se trata, do
nosso ponto de referência, de literatura canónica ou normativa do judaísmo, embora muitas vezes tenha
desempenhado um importante papel na consolidação da comunidade e possa ter sido também o resultado de
momentos determinantes que a comunidade viveu.
Um dos elementos importantes que importa realçar é o facto de muitos destes escritos nascerem num contexto
preciso, com objectivos muito concretos e obedecendo a cânones muito rijos. É que na sua maioria, estes escritos
foram «literatura apologética», ou do judaísmo em geral ou de grupos específicos que através deles pretendiam
difundir as suas ideias e mensagens. Mas o carácter apologético deve ser aqui entendido como um instrumento
activo e dinâmico ao serviço de uma causa que eram os objectivos que o grupo pretendia alcançar ou difundir. Neste
sentido, podemos dizer, de modo geral, que os escritos judaicos «extrabíblicos» são uma literatura de combate de
que os movimentos e grupos religiosos ou de tendências políticas se servem para difundirem a sua mensagem,
fundamentando-a na Escritura ou partindo de hermenêuticas próprias que esses grupos emprestam ao texto bíblico.
Há, igualmente, um ramo muito importante desta literatura que é essencialmente «normativa» e canónica do
judaísmo. Também esta é de extrema importância para o nosso objectivo: ajudar-nos a conhecer melhor o mundo
do período intertestamentário e a compreender o ambiente subjacente aos textos do NT.
Seja qual for o ponto de partida que se tome na análise e avaliação da literatura judaica, é necessário ter sempre
presente que esta mais não é do que o resultado de um processo exegético e hermenêutico do texto bíblico que lhe
serve de motivação. Quando falamos de texto bíblico, incluímos aí, naturalmente, as personagens bíblicas, os
cenários e contextos do AT que lhes estão subjacentes, bem como as tradições extrabíblicas que se foram
«aglutinando» à volta dessas personagens ao longo dos séculos. Por outro lado, os grupos e movimentos
desenvolveram, segundo cânones próprios, as suas tradições, seleccionando umas em detrimento de outras, de
forma a conseguir os fins a que se propunham.
Embora seja difícil, como dissemos acima, encontrar uma classificação que não comporte em si equívocos ou
ambiguidades, vamos dividir este vastissimo universo literário em três grandes áreas, conscientes que as mesmas
carecem de explicitações subsequentes. Temos assim três ramos da literatura judaica:
1. Literatura apócrifa ou/e pseudo-epigráfica
2. Literatura rabínica (de carácter normativo)
3. Literatura de Qumrãn.
Qualquer um dos designativos (ou nomes) propostos carregam consigo várias limitações e carecem de ulteriores
explicitações que tentaremos desenvolver na abordagem a cada um destes três sectores. Se exceptuarmos o caso
especifico de Qumran, qualquer outra fórmula usada para classificar ou abranger essa literatura estará sempre
sujeita a diversos equívocos, resultantes não apenas do significado dos termos usados, mas também do próprio
conteúdo dos textos que incluímos em cada um desses grupos.

b. Precisã o terminologica51
51
Vamos analisar aqui alguns dos termos mais comummente usados na classificação destes ramos da literatura judaica. O
objectivo é tentar fornecer um quadro que ajude o leitor a perceber as diferentes intencionalidades que cada um dos termos
usados encerra em si.
17
É comum encontrarmos em manuais ou escritos que se dedicam ao estudo desta literatura uma pluralidade de
qualificativos muito diversificada, cada um obedecendo a critérios muito subjectivos de cada autor e em geral muito
pouco claros. Este problema decorre, em boa parte, da própria natureza destes escritos, difíceis de agrupar e
classificar, tal é a sua natureza e diversidade temáticas. Por outro lado, os próprios géneros literários, como é do
conhecimento geral, não são realidades estáticas, mas dinâmicas, que evoluem de época para época, sempre
sujeitos a precisões que muitas vezes dependiam das circunstâncias históricas e sociais em que os próprios grupos
onde esta literatura teve origem se viam envolvidos. Há autores que, nas suas classificações, reforçam a questão do
género literário ou, então, tomam como referência o período histórico ou os objectivos declarados dos respectivos
escritos. Outros, por sua vez, reportam-se mais aos grupos ou movimentos que deram origem a essa literatura.
Assim se explica, por exemplo, a classificação de «literatura rabínica» ou «literatura de Qumrãn», formulações que
aludem à proveniência, mas nada nos dizem do seu conteúdo nem da natureza da mesma.
Seria para nós mais fácil adoptar um critério que tivesse por base, como sucede nestes casos acima referidos, a
origem ou proveniência desses escritos. Sucede, porém, que para muitos deles essa «paternidade» é-nos
desconhecida; outros, chegaram até por via indirecta, ou seja, através de citações ou versões já tardias que
dificilmente podem ser atribuídas com rigor científico.
Para além disso, os próprios adjectivos usados, também eles carecem de ser clarificados, uma vez que o seu
significado e abrangência não são pacíficos nem isentos de ambiguidades. Temos o caso de apócrifo. O uso deste
termo foi e é objecto de discussão entre os especialistas52 e comporta em si um significado que não pode passar
despercebido. O uso que lhe damos aqui quer simplesmente dizer que se trata de livros que não fazem parte do
Cânon das Escrituras tal como nós o entendemos e aceitamos, embora alguns grupos eclesiais possam ter uma
compreensão diferente dos mesmos. É por isso que, para evitar algum mal-entendido, acrescentamos a classificação
de pseudo-epigráfica, embora este vocábulo seja ainda mais ambíguo que o anterior.
Tratando-se de um conjunto muito amplo e diversificado de obras, qualquer um destes classificativos comporta
em si uma grande limitação. São obras que em geral provêm de ambientes muito diversos, com objectivos que têm
uma mesma finalidade, mas usando géneros e formas literárias nem sempre fáceis de classificar. Autores há que
enquadram este tipo de literatura, de uma forma geral, no género de escritos de carácter apocalíptico. Sucede, no
entanto, que os escritos de carácter apocalíptico constituem um género muito especifico, com objectivos muito
determinados e obedecem a parámetros muito singulares, o que em si nem todos comportam. A própria palavra
«apocalíptica» é, já de si, ambígua e objecto de múltiplas interpretações. Não se pode negar nem desconhecer que,
na realidade, uma boa parte desta literatura dita «apócrifa» ou «pseudo-epigráfica» cultiva o género apocalíptico,
explorando, com mestria, as imagens e figuras que fazem dele um dos mais belos e sedutores de toda a literatura
judaica. Florescem, em geral, em ambientes marginais ao judaísmo oficial, de que nós pouco ou nada conhecemos.
No entanto, a apocalíptica também foi cultivada em Qumrãn e por outros movimentos ou grupos que se
integravam no judaísmo oficial. A própria literatura chamada «rabínica» comporta escritos do género apocalíptico,
mas não foi, certamente, a este que o rabinismo dedicou mais atenção, uma vez que estava ocupado e preocupado
com a salvaguarda da sua identidade e da Lei, mais do que com a reacção aos acontecimentos políticos ou sociais
que marcaram a «agenda» política dos séculos que medeiam o período intertestamentário.
Por isso, uma classificação mais precisa, mesmo que não seja exaustiva, deve ter em conta algumas subdivisões
destas três grandes áreas que apontamos. Deve contemplar também não apenas o conteúdo das obras em si, mas a
sua finalidade e os objectivos que estas se propõem atingir. Tentaremos também precisar melhor, mesmo que isso
nem sempre seja fácil, o período histórico em que estas obras foram escritas, bem como a possível identidade dos
seus autores ou dos grupos onde surgiram. Esse cenário, em muitas delas, é um elemento precioso para a sua
avaliação e ajudar-nos-á também a perceber qual o seu contributo para o objectivo final que nos propomos: a
compreensão do mundo e dos escritos do NT

I. Literatura apó crifa ou pseudo-epigrá fica53


O termo «apócrifo» foi usado por Cirilo de Jerusalém (315-386) para designar os livros do mundo bíblico que não
faziam parte do Cânon, ou seja, aqueles que eram estranhos ao Cânon (podíamos chamar-lhes: «The Outside
Books»). De acordo com 2 Esd 14 (um escrito pseudo-epigráfico), existiam no judaísmo 94 livros que foram ditados a

52
Não nos referimos apenas à discussão entre Católicos e Reformados (acerca da Bíblia) no que diz respeito ao valor de
alguns livros face ao Cânon das Escrituras.
53
Nesta classificação e análise não trataremos dos chamados «Deutero-Canónicos» a que as versões da Biblia adoptadas
pelas Igrejas da Reforma ou a Bíblia hebraica atribuem a classificação de apócrifos.
18
Esdras54, 24 desses eram públicos (isto é, eram canónicos, fazendo parte das Escrituras que assim tinham na pessoa
de Esdras o seu grande escriba) e os restantes 70 eram só para «sábios», isto é, para os iniciados que tinham
recebido o carisma próprio para acederem aos seus mistérios. Não eram obras que estavam ao alcance do crente
comum, mas sim reservados para os «eleitos» ou esotéricos que tinham sido iniciados na sua linguagem e na
compreensão dos seus segredos, já que estes faziam parte da mensagem específica que o grupo professava.
Durante os séculos que precederam a Reforma (séc. XVI), o termo passa a aplicar-se aos livros que não faziam
parte da versão grega dos LXX, que tinha passado a constituir o paradigma do Cânon do cristianismo ocidental. O
confronto desta versão com a Bíblia hebraica levou os Reformadores a aplicar este termo «apócrifo» aos livros que
estando nos LXX não faziam parte do Cânon hebraico. Assim, neste contexto o termo veio a ser aplicado pelos
autores da Reforma aos livros que nós conhecemos como Deutero-Canónicos das Bíblias de origem latina. É a partir
destes dados e com o objectivo de evitar a ambiguidade que resultava desta situação que se recorreu então ao
termo, talvez mais correcto e expressivo, de pseudo-epígrafes55, ou seja, uma atribuição de autoria que não
corresponde ou não está documentada como pertencendo ao nome do autor que é mencionado. Trata-se de uma
espécie de recurso a «pseudónimos», mesmo que neste caso os pseudónimos sejam muito singulares: invoca-se
sempre um autor ou uma personalidade célebre da antiguidade56.
Que significa esta designação?
Antes de mais, importa ter presente que se trata de um leque muito amplo e diversificado, tanto na forma como
no conteúdo, de obras que, em geral, são atribuídas a personagens representativas da antiguidade a fim de assim
obterem maior credibilidade e difusão. São escritos de quem não conhecemos a autoria e, na maioria dos casos, os
próprios autores não se identificam. Pelo contrário, e pretendendo fazer realçar a sua mensagem, os autores de tais
escritos recorrem à autoridade das grandes personagens do AT, atribuindo a elas as suas obras. Os exemplos são
diversos: Adão e Eva, Henoc, Moisés, Salomão, Esdras, Baruc, etc. Trata-se sempre de nomes ou de atribuições
significativas e emblemáticas, mormente no aspecto da apocalíptica e de uma mundividência esotérica. O recurso a
personalidades do judaísmo antigo tem como objectivo apenas reforçar a mensagem apresentada e, ao mesmo
tempo, tratando-se de períodos de perseguição ou de domínio estrangeiro tenta-se desta forma atrair os judeus
para as causas defendidas nas respectivas obras. Além disso, tendo em conta a importância que a Torah foi
assumindo no judaísmo dos últimos séculos do AT, estava proibido o exercício da profecia e de novas mensagens
(especulações) que podiam pôr em causa a centralidade da Lei. Daí que se pretenda fazer passar tais obras como
sendo antigas, pelo menos algumas, remontando a personalidades notáveis da antiguidade, para assim mostrarem
que não estavam contra a Torah, mas até eram anteriores à própria Lei.
Ora, para além de serem recentes, muitas destas obras foram objecto de adições e acrescentos posteriores,
inclusive por anónimos autores cristãos, de modo que, em determinadas alturas, chegaram mesmo a ser tidos e
tratados como Escritura canónica por alguns grupos (tanto judeus como cristãos), embora não tenham obtido a
consequente aceitação da comunidade como tal para passarem a fazer parte do conjunto do Cânon (tanto do AT
como do NT).
Este abundante manancial de literatura pseudo-epigráfica cobre um período de cerca de 4 séculos, embora os
seus ecos se tenham alargado muito para além desse espaço de tempo. Trata-se de um período em que o judaísmo
passou por uma grave crise que tem a sua origem em diversos factores, dentre os quais salientamos:
 O confronto com o helenismo que era atraente e seduziu muitos judeus;
 As tensões políticas devido ao domínio dos diversos impérios estrangeiros na Palestina;
 As lutas entre os diversos grupos e movimentos de carácter religioso no interior do judaísmo;
 A reacção hostil de uma parte da sociedade judaica ao facto da dinastia macabaico-asmoneia se ter
apossado do sumo sacerdócio e ter exercido um intenso controlo sobre o seu exercício.
54
O grande mérito de Esdras dentro do judaísmo foi o de ter conseguido, junto do poder persa (carta de Artaxerxes, Esd
7,26) que a Lei judaica tivesse força de lei de estado e assim fosse reconhecida a singularidade do judaísmo dentro do império.
Isso não só lhe granjeou grande mérito como também fez dele uma espécie de segundo Moisés a quem o judaísmo sempre
referenciará como o grande promotor da Escritura.
55
O termo «pseudo-epigrafico» foi introduzido no séc. XVIII por J. A. Fabricius nos círculos da Reforma, embora já antes
autores como S. Jerónimo, Cassiodoro e outros o tivessem utilizado na antiguidade, cf. M. SCHMIDT, Die jüdische Apocalyptik,
Neukirchen-Vluyn, 1976, 2ª ed., 65.
56
Este processo, por si só, também não ajuda a vencer a ambiguidade, uma vez que ele é utilizado nos próprios textos
bíblicos como sucede na atribuição dos Salmos a David, da Sabedoria a Salomão, do Pentateuco a Moisés, do Deutero e Trito
Isaias ao profeta do séc. VIII, etc. Há, por isso, uma certa ambiguidade no uso destes termos, dependendo a sua significação de
quem a usa e com que finalidade.
19
1.1. Género literá rio destas obras
A classificação que atribuímos a esta literatura apenas põe em evidência a questão da sua autoria, mas nada nos
diz do seu conteúdo e menos ainda dos diversos géneros literários que abarca. Trata-se de obras muito diversas,
tanto no conteúdo como na forma. Apontamos algumas das mais frequentes57:
 Testamentos — textos que pretendem transmitir uma espécie de «legado» aos seus leitores, exortando-
os a cumprir tudo quanto aí é determinado. As obras são atribuidas a importantes personagens do
passado com o objectivo de conferir autoridade a esses escritos e fazer com que a mensagem proposta
seja difundida e aceite;
 Apocalipses — obras que seguem o género apocalíptico, com números e imagens simbólicas, enredos e
perspectivas para o futuro e que tinham como objectivo preparar os crentes para o «fim» (em geral, esse
fim é apresentado como a chegada do «reino de Yahwé») que deve ser apressado pela intervenção
activa dos crentes;
 Salmos e orações — em geral, em poesia, pretendem alimentar e estimular a fidelidade dos crentes nos
tempos difíceis e de combate que se avizinham, preparando-os para enfrentar com coragem os perigos
que a sua fidelidade pressupõe. O recurso ao género «salmo» leva a supor que estes textos podiam ter
também como finalidade a oração;
 Textos de sabedoria — pretendem ajudar e iluminar os crentes sobre as situações difíceis em que vivem
ou que se prevêem para um futuro próximo, procurando interpelá-los através da mensagem «sapiencial
ou iluminadora» que estes escritos apresentam;
 Histórias edificantes — desenvolvem-se à volta de um herói da antiguidade que assim serve de exemplo
e motiva para os combates do futuro. Os seus actos e a sua fé são apresentados como modelo a seguir,
louvando a sua fidelidade e a sua valentia;
 Histórias pós-bíblicas — ao contrário das anteriores (que nos falam do passado), estas apontam para
personagens que hão-de vir para revelar os segredos e os mistérios escondidos e que no fim dos tempos
se manifestarão aos eleitos e escolhidos.

1.2. Divisã o por períodos histó ricos


Embora na generalidade esta literatura se possa incluir no período histórico já referido, a verdade é que a sua
datação com mais precisão ajudar-nos-á a melhor compreender e situar a problemática dos respectivos textos,
encontrando em muitos deles um óptimo retrato das vicissitudes históricas e sociais da respectiva época 58. Aliás,
considero ser este critério de índole cronológica uma das melhores formas de classificação, já que ele constitui,
como elemento de carácter histórico, um cenário que nos ajuda a situar no tempo e no espaço o conteúdo das
referidas obras. Os judeus, por sua vez, classificam estes livros de «extracanónicos», incluindo aqui todos aqueles
que não fazem parte do Cânon, mesmo os chamados «Deutero-Canónicos», o que nos parece demasiado ambíguo e
generalista. Portanto, estas diversas tentativas de classificação têm aspectos positivos e negativos e cada uma delas
oferece-nos uma perspectiva complementar.
Vamos dividir esta literatura em três grandes períodos, correspondendo às três grandes etapas do judaísmo
intertestamentário, tendo por contexto os acontecimentos politicos e sociais que agitaram a Palestina durante este
período:

a) Obras do período macabaico-asmoneu (165-63 a. C.)


 1 Henoc (caps. 37-71, também conhecido como Henoc etiópico)
 Testamento dos Doze Patriarcas
 Oráculos Sibilinos
 Livro dos Jubileus
 1 Baruc
 Carta de Jeremias
 Carta de Aristeia (judaísmo helenista)

b) Obras do período herodiano e romano (63 a. C. a 70 d. C.)


57
Este ramo da literatura judaica contempla um leque muito alargado de géneros literários, alguns dos quais se servem de
linguagens muito difíceis de serem decifradas e que, por isso mesmo, eram sedutoras já que permitiam leituras abertas a
diferentes perspectivas de encarar o futuro.
58
De 200 a. C. até cerca dos finais do séc. II da nossa era, embora haja obras anteriores e posteriores a estas datas.
20
 Salmos de Salomão
 3 Macabeus
 Assunção de Moisés
 Vida de Adão e Eva
 4 Macabeus
 Martírio de Isaías
 Testamento de Job
 Testamento de Abraão
 2 Henoc (conhecido como Henoc eslavo)
 Oração de Manassés

c) Obras posteriores ao ano 70


 Antiguidades Bíblicas do Pseudo-Filão
 Vida dos Profetas
 Apocalipse de Abraão
 2 Esdras
 2 Baruc (ou Apocalipse grego de Baruc)
 3 Baruc (ou Apocalipse siríaco de Baruc)
 Oráculos Sibilinos (partes 4ª e 5ª)
Embora não seja exaustivo nem inclua os escritos apócrifos do NT, este elenco engloba as principais obras da
literatura judaica, situando-as no tempo, embora algumas sejam de difícil datação.

1.3. Literatura apó crifa de cará cter apocaliptico


Uma boa parte das obras acima mencionadas e que constituem por si a maioria da chamada «literatura
apócrifa» ou «pseudo-epigráfica» cultiva o género apocalíptico. A apocalíptica, doutrina que conheceu grande
difusão e foi muito cultivada por diversos grupos e movimentos no período do judaísmo intertestamentário,
representa uma perspectiva de pensamento que procura estimular e manter viva a esperança na imediata irrupção
do «reino de Yahwé». É uma literatura de «revelação» que transmite verdades referentes à escatologia individual e
colectiva, humana e cósmica que afectam este mundo e o mundo futuro. A esta perspectiva doutrinal correspondia
uma forma de se situar face às realidades do mundo presente e, acima de tudo, uma forma de viver por parte dos
grupos e movimentos mais imbuídos por essa expectativa.
Como sabemos, no interior do próprio Cânon das Escrituras temos diversas obras que cultivam este género
literário e se situam neste campo doutrinal. Basta recordar o livro de Daniel, o Deutero-Zacarias (Zc 9-13), o
«pequeno apocalipse de Isaías (caps. 35-36)» e, sobretudo, o livro do Apocalipse do NT. Trata-se, também aqui, de
textos que são atribuidos a determinados autores, embora na realidade sejam posteriores, sendo a sua autoria
apenas uma forma de reforçar e conferir autoridade à mensagem que é proposta.
No conjunto desta literatura pseudo-epigráfica temos diversos textos de natureza apocalíptica, de entre os quais
destacaria os seguintes:
 4 Esdras
 1 Henoc (caps. 37-71, conhecido por Henoc etiópico)
 Oráculos Sibilinos
 2 Baruc (Baruc siríaco)
 3 Baruc (Baruc grego)
 2 Henoc (Henoc eslavo ou livro dos segredos de Henoc)
 Apocalipse de Abraão
 Livro dos Jubileus
 Testamento dos Doze Patriarcas
Toda esta literatura, tendo em conta as semelhanças que apresenta em relação aos textos apocalípticos
canónicos, constitui um dos mais importantes ramos de todos os escritos judaicos, especialmente pela sua forma
peculiar de fazer exegese do passado e de antever e preparar o futuro. No entanto, a sua leitura e compreensão não
é tarefa fácil, uma vez que a hermenêutica apocalíptica recorre ao simbolismo e serve-se de formas narrativas
profundamente estranhas aos demais livros bíblicos, sem nos ter legado princípios hermenêuticos claros sobre a

21
interpretação do texto bíblico. A base destes escritos é, naturalmente, a Sagrada Escritura e as suas personagens
recolhem daí a sua identidade. No entanto, o recurso constante à «analogia verbal» (em hebraico: gezerá shawa), à
alegoria e a símbolos esotéricos só acessíveis a iniciados e a membros dos respectivos grupos tornam a sua
compreensão restritiva, contribuindo por isso para aumentar a própria autoridade e sedução deste tipo de escritos.

a) Relação entre Lei escrita (Torah) e Lei oral


O judaísmo oficial admitia unicamente a revelação da Torah feita por Deus a Moisés, quer se trate da Lei escrita
(a Torah) quer se trate da Lei oral, entendida como «Tradição» e que mais tarde será compendiada na Mishná59. Os
autores dos escritos apocalípticos, para além destas formas de revelação, admitiam a revelação das Sete Tábuas
(número simbólico) escondidas no céu e que tinham sido reveladas apenas a Moisés, aos Patriarcas, aos Profetas e
ao Mestre de Justiça de Qumrãn. Moisés, por sua vez, apenas revelara duas dessas Tábuas (Ex 31,18), estando
muitas . outras coisas para serem reveladas ou reveladas de novo. Sendo assim, para a apocalíptica a revelação não
tinha acabado nem estava concluída; estava aberta e era preciso pôr isso por escrito. Os autores dos escritos
apocalípticos (e os membros desses movimentos) são os escolhidos e os eleitos para receberem. essa revelação. O
nome de «apocalíptica» em grego designa isso mesmo, ou seja, «revelação». À semelhança dos antigos profetas e
patriarcas, os «apocalípticos» são agora os novos depositários da revelação, são eles os detentores dos mistérios
comidos nas referidas «Tábuas».
No fundo, de tudo isto pode deduzir-se que estes movimentos não se preocupam com a procura do sentido da
Escritura (com o derash = busca, procura), com a descoberta do sentido do texto ou com a justificação dos preceitos
e normas práticas (halakah — halakót = princípios normativos e éticos de comportamento) através dos textos da
Escritura. Ao contrário, aquilo que é específico dos movimentos apocalípticos e da sua exegese (de que se fazem
ecos os escritos que até nós chegaram) é a revelação dos «mistérios» escondidos no céu, das tábuas ainda não
reveladas. Para confirmar tais revelações, a apocalíptica recorre então à escrita, servindo-se dos textos bíblicos de
acordo com os princípios que professa.

b) Fundamentação bíblica dos textos apocalípticos


A apocalíptica, como já o referimos, serve-se da Bíblia de forma livre, seguindo processos e recorrendo a formas
que têm um cunho muito próprio. O seu primeiro objectivo é dar a conhecer os segredos e os mistérios que ainda
não foram revelados. Por isso, tanto na interpretação da Escritura como na narrativa das suas «visões» e revelações,
os autores apocalípticos praticam, de modo especial, uma exegese alegórica de tipo escatológico, com o recurso
permanente a uma linguagem própria, figurativa, com símbolos e imagens de seres que não fazem parte do mundo
corrente. Temos também os números simbólicos, muitas vezes de leitura dúbia ou ambígua no seu significado. O
processo é sempre o mesmo: visões, sonhos, revelações nocturnas, inspiração e transferência para um espaço fora
do mundo sensível.
A revelação proposta por eles assenta, fundamentalmente, na interpretação dos mistérios escondidos e não
revelados que só eles têm o dom e a capacidade de dar a conhecer. São eles os agentes dessa manifestação. De
entre esses mistérios sobressai o de interpretar e dar a conhecer o sentido da História. Apesar de parecer que esta
revelação é meta-histórica (ou que está para além da história), a verdade é que a revelação dada a conhecer pelos
escritos apocalípticos é, essencialmente, uma manifestação da história e do seu sentido. É o mistério da história e do
seu futuro que estes textos procuram dar a conhecer, fazendo-o de acordo com uma linguagem própria e singular.
Deus revelou aos antigos e através destes escritos eles revelam agora aos seus contemporâneos o verdadeiro curso
da história e tudo aquilo que está reservado para o futuro60. Trata-se de uma revelação que não tem a ver apenas
com o povo de Israel; ela abarca a história universal. Daí que os povos, no seu todo61, venham a sofrer as
consequências desta intervenção de Deus, já que muitas vezes essa intervenção é motivada pelo mau proceder
desses povos em relação ao povo de Israel. Deus traçou um plano para a história e este cumprir-se-á à risca, pois
59
Basta ler o 1º capítulo do Pirqé Aboth para compreender o que o judaísmo entendia nestas duas componentes da
revelação. Trata-se de um texto que recolhe as «máximas» dos Mestres que ocupam um lugar de primazia na transmissão da
«Traditio» judaica. As referencias aos «Pais (Mestres)» cobrem um período de cerca de 500 anos, ou seja, desde 300 a. C. até
200 d. C., constituindo a invocação dos seus nomes uma fonte de autoridade. A importância do texto é ainda mais significativa
pelo facto de condensar em si toda a riqueza da tradição oral que é garantida até à compilação por escrito da Mishná.
60
Não esquecer que os autores dos livros apocalípticos são sempre notáveis personagens do passado, nomes revestidos de
grande auréola e prestigio e que eram detentores de tais mistérios que agora, no tempo oportuno, são dados a conhecer aos
seus eleitos, aos membros dos respectivos movimentos onde estas obras surgiram.
61
Aqueles que têm contacto com Israel ou que dominam o povo eleito também esses vão sofrer as consequências que
decorrem desta intervenção de Deus na história.
22
tudo está já predeterminado. Uma das características mais típicas da apocalíptica é esta predeterminação que
marca, apesar de apenas ser conhecida pelos «eleitos», o decurso da história da salvação.
Na verdade, Deus determina o curso da história; o passado não é mais que uma figura ou imagem do futuro, ou
seja, da escatologia na qual os apocalípticos já vivem desde agora. Podemos dizer que, para esta literatura, não
existe presente, mas apenas passado que antecipa o futuro. A história faz-se sem presente, pois o presente é
sinónimo do mal e deve ser pura e simplesmente ignorado. É o tempo do mal e da perseguição. Por exemplo: o
dilúvio bíblico não é mais do que uma prefiguração do dilúvio escatológico do qual apenas se salvarão os «santos e
eleitos» que mais não são que os membros dos movimentos apocalípticos. Os patriarcas que eram, segundo os
cânones da apocalíptica, profetas e conhecedores dos mistérios da história, são o protótipo dos fiéis dos tempos
escatológicos. O passado é tipo do tempo actual e, ao mesmo tempo, antecipação do futuro. Porém, é sempre um
passado idealizado e com referências a algo misterioso que o próprio passado em si contém. O actual, por sua vez, é
confirmação do passado, embora o tempo presente seja transitório e sempre marcado por contingências em que os
eleitos não se devem envolver.

c) Principais características dos textos apocalípticos


Embora seja difícil estabelecer uma uniformidade de critérios que nos permita avaliar os principais textos da
apocalíptica, pode-se, no entanto, encontrar aí algumas características que são mais ou menos comuns às diversas
obras que até nós chegaram e que estão igualmente presentes nos textos canónicos de carácter apocalíptico. Vamos
destacar aquelas que, no seu conjunto, nos parecem mais significativas:
 Uma exegese tipológica e escatológica cujo objectivo principal é a interpretação do plano de Deus na
história, com base num esquema de 4 momentos:
 O tempo presente é mau; em vez do bem, existe o mal, o sofrimento, a perseguição (estamos no éon da
perversidade). Assim acontece desde o começo da criação. No início existia o caos (a desordem
primordial) que, segundo a Escritura, será vencido no fim dos tempos;
 Deus intervém na história (através do seu Messias ou de um personagem do passado) e tudo será levado
a bom termo, à semelhança do que sucedeu com o caos primitivo, com o dilúvio, com o cativeiro do
Egipto ou de Babilónia. Ora, tal como no passado, também o final da História (o Escathon) será
conduzido a bom termo e, segundo os apocalípticos, esse termo já se iniciou. Por isso, o Escathon é obra
de Deus e os homens nada ou pouco podem fazer para o alterar;
 Os ímpios serão castigados62. Todas as profecias terão o seu cumprimento pleno e Deus intervirá para
castigar os infiéis. Para o mostrar, estes escritos desenvolvem as cenas de juízo, em que Yahwé é
apresentado como juiz supremo que exerce a Sua justiça de forma absoluta. Temos a intervenção dos
anjos que devem executar os castigos que o supremo juiz decretou. Muitos desses castigos envolvem
fogo, um elemento sempre presente nesta literatura. Está também presente, de forma muito insistente,
o tema do «fim dos tempos». Fala-se, inclusive, da guerra escatológica entre os eleitos e os ímpios (entre
os anjos e satanás; entre o Messias e o chefe ímpio; entre o Mestre de justiça e o sacerdote ímpio, etc.);
 Os justos serão recompensados. Ao contrário dos ímpios, os justos serão recompensados de todos os
seus sofrimentos e não terão de suportar qualquer castigo. Será então que terá início uma nova era, a
era messiânica e o repouso do «sábado eterno».

d) O sentido da História
Uma outra característica da literatura apocalíptica e que a diferencia, de forma acentuada, da exegese do
judaísmo clássico diz respeito à forma como os apocalípticos estabeleciam os ritmos da história da salvação. Para os
crentes destes movimentos, Deus tinha dividido a história em períodos de tempo, em ciclos de anos que têm um
significado simbólico. Por exemplo, o Livro dos Jubileu63 divide a história ou cataloga os diversos acontecimentos em
unidades temporais que têm como padrão um «jubileu» ou um dos seus múltiplos. Para os cômputos dos ritmos
jubilares, os apocalípticos utilizavam o calendário solar, à semelhança do que sucedia em Qumrãn 64. Assim, a lei de

62
Dan 7,23-27; Ez 38-39; Is 59,1-21; Sl 69,2-4.
63
O nome deriva precisamente do facto da história ser apresentada como uma série de jubileus, durante os quais Deus
concederá a salvação aos seus eleitos. Trata-se de um livro muito importante e que teve uma forte influência no judaísmo,
mormente nos ambientes de tipo apocalíptico, já que o seu conteúdo e o próprio calendário jubilar prestavam-se às mil
maravilhas para o desenvolvimento deste tipo de mensagem.
64
S. João, no seu evangelho, parece utilizar também o calendário solar, ao contrário dos demais evangelistas que seguem o
calendário lunar que era considerado como sendo o calendário do judaísmo oficial, mormente para as solenidades do Templo.
23
Moisés foi dada num «jubileu de jubileus»: 49x49 = 2401 anos depois da criação do mundo. Todos os grandes
acontecimentos da história têm lugar em anos de «jubileu» e estes não cessarão sem que o mal desapareça da terra
e dê lugar ao bem. Então, terá início o reino escatológico, em que Deus habitará com os seus eleitos, tanto Ele como
os seus anjos.
Para além de algumas destas características que singularizam este tipo de escritos, há também na apocalíptica
muitos princípios e procedimentos exegéticos que coincidem com o judaísmo clássico. Por exemplo: explicar a Bíblia
pela Bíblia, desculpar as personagens da história bíblica, pôr em evidência as qualidades destas, realçar a
omnipotência de Deus e a Sua obra criadora, mostrar como o bem triunfa do mal, etc.
Como pseudo-epigrafia, a literatura apocalíptica atribui a personagens famosos da Bíblia o resultado das suas
revelações que, no fundo, mais não são do que fruto da «imaginação criadora» dos seus autores, embora estes se
julguem de boa-fé inspirados pelo Espírito.

e) A teologia dos escritos apocalípticos


Para além do que já referimos acerca da escatologia desta literatura judaica, impõe-se uma palavra, mesmo que
breve e genérica, sobre algumas das principais orientações da teologia destes textos. Assim, podemos dizer que a
literatura apocalíptica foca os seus pontos de interesse em Deus e no Mundo.
Em relação à questão de Deus, os apocalípticos preocupam-se, sobretudo, com o tema da justiça divina, já que
esta constituía a sua última esperança: Deus intervém para exercer a Sua justiça, castigando os ímpios e salvando os
justos. Trata-se de uma justiça retributiva e nunca de uma justiça oblativa, gratificante, como havia sido anunciada
por Oseias. A justiça de Deus consiste em castigar, mais do que em salvar. Ele é justo porque não deixa passar em
claro a maldade dos ímpios. Além disso, EIe é justo porque castiga os infiéis, os pagãos e salva e liberta o seu povo. A
acção de Deus exerce-se como num círculo fechado em diversos níveis: no mundo, castiga os pagãos e salva Israel;
em Israel, castiga os ímpios e salva os justos; no universo apocalíptico, castiga os que não são membros do grupo e
salva os eleitos (os membros do grupo, os verdadeiramente justos).
Para além da acção de Deus, a apocalíptica põe também em evidência a acção e o agir de Deus através dos seus
mediadores: os anjos. A angeologia conheceu nestes escritos um grande desenvolvimento, uma vez que se
procurava, por um lado, pôr em realce a capacidade de Deus intervir no mundo e na história e, por outro, a Sua
transcendência que está para além das vicissitudes do tempo presente. Assim, são os anjos que servem de
mediadores da acção de Deus; a eles compete intervir para regular o decurso da história e para aplicar a justiça
divina.
Quanto à questão do Mundo, o que mesmo caracteriza a apocalíptica é o seu dualismo: há dois mundos, duas
realidades antagónicas que se confrontam e se combatem constantemente. Este dualismo é permanente e está
presente em tudo, determinando a leitura e a interpretação das realidades temporais. Há um dualismo escatológico:
este mundo (holam ha-ze’) e o mundo futuro (holam ha-báh); há um dualismo ético: os bons (os eleitos, membros
do grupo ligado ao escrito em causa) e os maus (todos aqueles que não fazem parte desse movimento); há um
dualismo espacial: céu (o espaço futuro dos eleitos) e terra (o espaço presente dos ímpios); existe um dualismo
antropológico: corpo e alma. A superação deste dualismo apenas terá lugar pela irrupção do Reino de Deus que
surgirá como um acto da justiça divina em favor dos justos e como castigo dos ímpios.

1.4. Importâ ncia da literatura apocalíptica


Atendendo a um tão grande número de obras que até nós chegaram, é de crer que esta literatura conheceu uma
grande difusão no período do judaísmo intertestamentário e, posteriormente, em muitos ambientes não judaicos. A
tese defendida por alguns autores (Foot Moore, Travers Herford, M. Smith65, entre outros) de que esta literatura
pertencia a grupos marginais ou marginalizados pelo judaísmo oficial não tem hoje qualquer credibilidade nem é
possível continuar a sustentá-la. Para estes autores, esta literatura só fazia sucesso em períodos de crise e
convulsões. No entanto, é fácil constatar que estas obras não combatem nem fazem oposição ao farisaísmo,
mormente naquilo que este tinha de mais especifico: a devoção à Lei de Moisés (a Torah). Neste aspecto, os
apocalípticos são mais radicais que o próprio farisaísmo. Por exemplo, Charles66 diz que o Testamento dos Doze
Patriarcas é o livro mais universalista e ético de toda a literatura apocalíptica, sendo também o modelo mais perfeito
de devoção à Lei. Para este autor, partindo da premissa de que a «pseudon€mia é uma constante na apocalíptica
65
Cf. Judaism in the First Centuries of the Christian Era (2 Vols.: 1927-1930), ed. Schocken Paperback, New York, 1971, 127-
131.
66
R. H. CHARLES, The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament, II, Oxford, 1913, VIIIs.
24
judaica desde o séc. III a. C., pode deduzir-se como explicação disso o facto de a Lei de Moisés já então estar
oficialmente canonizada»67. O mesmo Charles acrescenta também que o Livro dos Jubileus é «o mais rigoroso que o
judaísmo legalista produziu», apesar de se tratar de uma das obras mais representativas da literatura apocalíptica. A
profecia e a «especulação mística» deviam cessar para que a Torah assumisse a sua centralidade no judaísmo de
então.
Portanto, e apesar da singularidade específica desta literatura, nada há nela que ponha em causa ou contradiga
os princípios mais genuínos do farisaísmo, mormente no que diz respeito à devoção à Torah e ao seu lugar central
em toda a dinâmica da comunidade judaica. É claro que, com o desaparecimento do culto, esta centralidade assume
ainda uma maior importância que passa, então, a ser exclusiva. Com as derrotas dos anos 70 e 132-135 (de Bar
Kokba) às mãos dos romanos e as decisões do Sínodo de Yabné, o farisaísmo concentrou toda a vivência judaica no
cumprimento da Torah e no «seguidismo absoluto» dos seus preceitos, combatendo por isso mesmo as
especulações apocalípticas. De entre estas, temos aquelas que versavam sobre os cálculos acerca da chegada do
Messias, algo que era necessário combater, já que isso era contrário à centralidade da Torah. É bem significativo o
texto do Talmud68: «Diz o rabbi Shemmel Bar Nahmán, citando a rabbi Yonatan: ‘seguem-se os ossos daqueles que
calculam o final dos tempos, pois dirão (acerca do Messias) como não veio ao cumprir-se o tempo, já não virá nunca
mais’.»
Foram especulações deste tipo que cavaram e acentuaram o fosso entre o farisaísmo (centrado na Lei) e a
apocalíptica (centrada no irrompimento do Reino messiânico), fazendo com que aquele (o farisaísmo) se
apresentasse cada vez mais como a corrente do judaísmo oficial. Por outro lado, ao deixar-se imbuir de outras
perspectivas, inclusive de tendências cristãs, a apocalíptica foi-se afastando e tornando cada vez mais estranha ao
farisaísmo, acabando por ser considerada como inimiga e opositora à Lei mosaica.
Porém, e apesar desta ruptura, o judaísmo pós-bíblico (o chamado «judaísmo rabínico») de que são eco algumas
das mais importantes obras que até nós chegaram69 e também em parte o próprio cristianismo ficaram a dever
muitos dos seus conceitos (e valores espirituais) à apocalíptica. Por exemplo, o rabinismo aceitou facilmente os
esquemas escatológicos da apocalíptica: as dores de parto dos tempos messiânicos, o regresso dos exilados
(dispersos em diáspora um pouco por toda a parte), os dias do Messias, a nova Jerusalém, o juízo universal, a
linguagem escatológica (fogo, geena, inferno)70. Um outro tema, nascido e desenvolvido nos círculos apocalípticos e
que encontra muitos ecos nesta literatura, é o da «ressurreição», tendo entrado facilmente nos esquemas teológicos
do judaísmo pós-bíblico.
O esquema da teologia rabínica que assenta no binómio «este mundo» e «o mundo futuro» (esta geração e a
geração futura; o tempo presente e o tempo que há-de vir) reflecte, no fundo, o dualismo da apocalíptica do holam
ha-ze’ (o mundo presente, o agora, a presente geração) e do holam ha-báh (o século futuro, o mundo que há-de vir,
o mundo futuro). Encontramos, por isso, inúmeros temas que se prolongam e até se desenvolvem no judaísmo
rabínico que tinham constituído o núcleo central da teologia apocalíptica.
Todavia, não é possível ignorar que o rabinismo tenta também estabelecer uma ruptura com a apocalíptica em
si. Para consolidar esta ruptura, contribuiu também o aparecimento do cristianismo, já que muitos dos escritos da
apocalíptica cristã circulavam nos ambientes judaicos e conheciam aí grande aceitação. Além disso, o Cânon cristão,
em muitas comunidades, aceitou facilmente os livros «deutero-canónicos» que não figuravam no Cânon fixado pelo
rabinismo pós-Yabné nem eram aceites pelas comunidades judaicas. Esta aparente autonomia dos escritos aceite
pelos cristãos punha em causa o legalismo farisaico e as suas especulações eram vistas como uma ameaça à
centralidade da Torah.
Estamos, desta forma, num momento de viragem em que se demarcam o cristianismo e o judaísmo, tendo como
motivo dessa demarcação um tema (ou temas) que não estavam na sua essência. Além disso, o judaísmo oficial (do
período posterior a 70 d. C.) saído do sínodo de Yabné foi manifestando progressivamente uma grande desconfiança
para com apocalíptica, especialmente porque esta insistia na vinda iminente do Reino de Deus, socorrendo-se da
exegese especulativa de textos bíblicos e de números simbólicos, processos que o judaísmo rabínico nunca
defendeu. A exclusão de todos os livros de carácter apocalíptico do canon judaico, excepto Daniel, mostra bem o

67
Cf. A. DÍEZ MACHO, Apócrifos del Antiguo Testamento. I: Introducción General, Madrid, 1984, 28.
68
Sanh 78b.
69
Cito, como expressão desse judaísmo rabinico a Mishná e o Talmud (Palestinense e de Babilónia).
70
Muitos destes temas entraram também na doutrina corrente e nas tradições populares da teologia cristã e constituem o
veículo de comunicação para a mensagem cristã acerca da ressurreição.
25
desprezo e falta de apreço que o rabinismo dedicava a estes escritos71. O próprio rabbi Aqiba chegou a ameaçar com
a exclusão da vida eterna para aqueles que lessem e dessem créditos a essas obras.
Por sua vez, o cristianismo tomou uma posição bem diferente face a toda a literatura judaica extracanónica,
especialmente no que diz respeito aos escritos de carácter apocalíptico, já que diversas destas obras ofereciam um
excelente enquadramento para muitos dos conceitos da fé cristã. Basta recordar aqui o que se refere à questão da
escatologia cristã. Isso justifica, em boa parte, que muitos desses escritos judaicos tenham sido objecto de
interpolações por parte de anónimos autores cristãos. Assim se compreende que esta literatura tenha suscitado
reacções tão opostas; objecto de desprezo por parte do judaísmo, apreço e acolhimento por parte do cristianismo.
Por exemplo, 1Henoc foi objecto de tal estima por parte do cristianismo que passou a fazer parte do cânon da Igreja
de Abissinia, enquanto o judaísmo desprestigiou e pôs em causa a condição de justo desta venerável figura
patriarcal72. Aliás, uma significativa parte desta literatura apócrifa, de carácter apocalíptico, conservou-se e chegou
até nós graças ao empenho e ao acolhimento que encontrou junto de diversas Igrejas cristãs, especialmente as
Igrejas orientais, razão pela qual as versões que conhecemos tenham sido conservadas em grego, copta, eslavo,
etiópico ou armeno.
Falamos do acolhimento e desenvolvimento que estes escritos encontraram nos ambientes cristãos. Convém, no
entanto, realçar que não foi sempre assim nem podemos generalizar, pois encontram-se também ecos de
hostilidade e afrontamento contra estes escritos em algumas das obras mais significativas das origens cristãs. Por
exemplo, as Constituiçóes Apostólicas já preveniam contra os apócrifos, acusando-os de serem corruptos e inimigos
da verdade. Por isso, convém ter presente que a reacção a essa literatura depende muito das comunidades
concretas, chegando alguns escritos destes a ser totalmente banidos dos ambientes cristãos. Apenas nos nossos
dias, com a sua revalorização e a descoberta da sua importância para o conhecimento do judaísmo que serve de
enquadramento às origens do cristianismo, é que assistimos à reabilitação destes escritos, o que fez com que, quer
judeus quer cristãos, voltassem a olhar de forma diferente para todo este leque de escritos e vissem, com olhos
diferentes, os dados que eles nos facultam.
O contributo decisivo para esta nova perspectiva foi dado pelas descobertas dos manuscritos de Qumrãn,
iniciadas em 1949 e continuadas depois com diversos outros manuscritos no deserto da Judeia, muitos deles
remontando ao período que medeia as duas revoltas judaicas entre 66 e 135. O conteúdo de muitos destes textos
assemelha-se ao dos escritos apócrifos e pseudo-epigráficos que já eram conhecidos, mas que agora assumem uma
relevância muito maior. Para nós, cristãos, interessa-nos, fundamentalmente, conhecer o ambiente social e religioso
da época e, nisso, muitos destes textos são um verdadeiro manancial de informação. Conforme diz G. Vesmes 73,
«hoje é evidente para muitos, ao menos em teoria, que o conhecimento do fundo judaico do Novo Testamento não
é um luxo opcional; antes, sem ele é inconcebível uma interpretação correcta das fontes cristãs».
É evidente que este interesse não se limita apenas aos escritos apócrifos ou de carácter apocalíptico. Ele alarga-
se a toda a literatura judaica do período intertestamentário e mesmo do período seguinte (judaísmo rabínico), já que
muitas obras, apesar de terem sido compostas em época mais recente, fazem-se eco e recolhem tradições
anteriores que nos transmitem os ecos da sociedade palestinense desse período. É importante ter presente que a
data da redacção destes escritos em nada limita a sua importância, uma vez que o processo de composição era lento
e passou, em muitos casos, por diversas gerações.

2. LITERATURA RABÍNICA (DE CARÁ CTER NORMATIVO)


Tal como o nome o deixa entender, a literatura rabínica tem uma proveniência muito específica e corresponde a
uma fase do judaísmo muito concreta e determinada. À semelhança do que já atrás dissemos, mas aqui ainda com
mais precisão, podemos referir que a sua composição se alarga por séculos e a idade das tradições veiculadas nestes
escritos perde-se na memória das gerações que lhes deram forma e conteúdo. Trata-se de um universo, grande e
complexo, tanto pela problemática como pela quantidade das obras que chegaram até nós. Aqui vamos tentar
apenas oferecer uma breve síntese, em jeito de introdução, enumerando algumas das principais questões que dizem
respeito a este conjunto de escritos.

2.1. O significado da designaçã o «rabínica»

71
O judaísmo chamou a esses livros de «Hisonim», ou seja, livros não canónicos, «exteriores, profanos, livros de fora» em
oposição a sagrados, «livros de dentro».
72
Cf. F. MANNS, «L'affrontement entre le judaïsme rabbinique et le judéo-chistianisme», Antonianum, 54 (1979), 232-234.
73
G. VERMES, «Jewish studies and New Testament Interpretation», JJS 51 (1980), 13.
26
Não é tarefa fácil encontrar uma designação que seja clara e abrangente para esta literatura. Ao escolhermos
este nome, temos consciência das limitações que ele acarreta e das dificuldades que ele acrescenta ao próprio
estudo dos textos. No entanto, ele permite-nos aclarar alguns conceitos e define uma época, com seus processos
hermenêuticos e uma exegese própria que perdurará por alguns séculos e que deixou traços bem vincados na
história do judaísmo.
Qual, portanto, a razão desta designação?
Antes de mais, convém referir que se trata da literatura dos «Mestres» (dos rabbis), isto é, dos «comentadores
da Escritura e da Tradição Oral». São estas as duas fontes da revelação (Tradição escrita = Torah e Tradição oral) que
são comentadas e desenvolvidas nestas obras, uma vez que para o judaísmo rabínico o que havia a fazer era
comentar a Lei e explicitar o seu conteúdo. Tal como nos refere Mt 5,17-19, o serviço dos Mestres era o de comentar
e explicitar para os crentes o conteúdo da Lei, de forma que estes a pusessem em prática.
Ora, sendo assim, podemos dizer que a literatura rabínica não é mais do que o conjunto das obras que
comentam e explicitam o conteúdo da revelação, entendida esta nas suas duas formas: Torah e Tradição oral. A
grande preocupação do judaísmo rabínico é a de aprofundar e desenvolver o sentido da Lei, especialmente a partir
do momento em que a Torah passou a constituir o elemento fundamental da vida do povo de Israel, ou seja, depois
da destruição do Templo de Jerusalém (em 70), com a cessação do culto sacrificial e na sequência das determinações
do sínodo de Yabné. A Torah passou então a ser o centro do judaísmo e o seu estudo a principal actividade dos
crentes judeus. Por isso, a partir da Lei surgiram inúmeras obras, quase todas com um acentuado cunho normativo
(jurídico-moral), embora haja também escritos de carácter litúrgico e comentários de tipo exortativo e parenético.
Eis um texto que constitui um belo exemplo disso mesmo:
«Ben Bag Bag (discípulo de Hillel) dizia: mexe e remexe (na Lei), porque tudo está nela; estuda-a, faz-te velho
com ela, gasta-a, não te afastes dela, já que não tens coisa melhor que ela.»74
E depois acrescentava ainda, de forma a precisar melhor:
«À medida do esforço será a recompensa.»75
Este texto é muito elucidativo no que diz respeito aos objectivos fundamentais de toda esta literatura: comentar
a Lei, pondo em realce o seu conteúdo como caminho de salvação. Por isso, «gastar» a vida na ocupação da Lei era o
ideal de todo e qualquer mestre (rabbi) judeu. Mas, quando o judaísmo fala de Lei, não se refere apenas à Lei
escrita, mas também à Lei oral que gozava de idêntico estatuto, formando um todo. O judaísmo da época rabínica
não estabelecia distinção entre as duas; elas eram as duas partes de um todo, ou seja, as duas faces da mesma
realidade, vendo-as como dois momentos ou duas formas que se completavam e iluminavam mutuamente. Por isso,
tanto à Torah escrita como a Tradição oral eram dignas da mesma veneração e idênticas no prestígio que alcançaram
nas escolas e academias judaicas. Por isso, a Lei oral (Tradição oral) era também atribuida a Deus que a tinha dado a
Moisés e este tinha-a confiado aos seus continuadores na condução do povo de Israel. Era através dessa Tradição
oral que se mantinha a fidelidade da transmissão da Lei. Vejamos:
«Moisés recebeu a Torah no Sinai e transmitiu-a a Josué, Josué transmitiu-a aos Anciãos, os
Anciãos aos Profetas e os Profetas transmitiram-na aos Homens da Grande Assembleia. Estes
diziam três coisas: ‘Sede prudentes no julgar, fazei muitos discípulos, organizai uma protecção para
defender a Torah.’»76
O interesse à volta da Lei e a sua defesa não são preocupações que emergem apenas no fim do séc. I d. C. ou por
causa da destruição de Jerusalém e do Templo. São preocupações muito anteriores e remontam, sem sombra de
dúvida, à crise e ao choque provocados pela introdução do helenismo na Palestina nos séculos anteriores. Daí que
tenha surgido a grande preocupação da defesa da Lei a fim de evitar que esta perdesse a sua identidade e assim o
judaísmo perdesse igualmente a sua razão de ser. Na verdade, o contacto com o helenismo levara à urgência em
preservar a diferença e reforçar a identidade judaica, já que a força atractiva da cultura grega constituía um
verdadeiro perigo para a singularidade da cultura bíblica e do modus vivendi do judaísmo. Disso se fazem eco,
como vimos, os Iivros dos Macabeus. Com a vitória dos Hasidim sobre o Império Selêucida e os partidários do
helenismo, esse perigo foi contido por algum tempo, mas a conversão dos asmoneus à cultura grega e a forma como
estes se apossaram do sacerdócio fez renascer de novo o medo que a Lei fosse corrompida e que se perdesse aquilo

74
Mishná, Abot 5,22.
75
Idem, 5,23.
76
Mishná Abot 1,1.
27
que havia de único e singular na fé judaica. Por isso, havia que acentuar o seu carácter divino, pondo em relevo que
ela fora dada directamente por Deus a Moisés, incluindo a Tradição oral, pois esta completava a Lei escrita.
Para conseguir que esta «protecção» da Lei fosse alcançada, o judaísmo rabínico criou inúmeras instituições com
esse objectivo. O próprio NT já nos fala da sua existência. Entre outras, e para além da Sinagoga, temos: as escolas
(Yeshibas), os doutores da Lei, os escribas. Todas elas tinham como finalidade oferecer a verdadeira interpretação da
Lei e preservar a sua defesa. Esta interpretação conduzia, naturalmente, a uma praxis, à formulação de normas de
conduta e de uma moral prática e ritualista que garantia aos crentes que esta era a verdadeira forma de proceder de
acordo com os preceitos da Lei. Para estas instituições, não importava o «espírito» da Lei, mas apenas a norma
decretada conforme a letra.

2.2. As «escolas» de Shammai e Hillel


Quando reunidos em Yabné, no fim do séc. I da nossa era, os rabbis decidiram reorganizar o judaísmo, Yohanán
Ben Zakkay impôs, juntamente com os outros Mestres, que tudo devia ser retomado a partir de Shammai e HiIlel 77. É
desta forma que todo o judaísmo posterior acabou por ficar dependente das influências daqueles dois grandes
Mestres e das suas respectivas escolas que perpetuaram na Tradição oral as lições dos respectivos Mestres, fazendo
delas como que norma definitiva, razão pela qual aqui lhes dedicamos uma breve referência.
Shammai e Hillel são mais ou menos contemporâneos, tendo vivido e ensinado ao tempo do rei Herodes. Desde
63 a. C. que a Palestina tinha sido ocupada pelo Império Romano e desde 37 que o poder era exercido pelo idumeu
Herodes como rei aliado e delegado do poder imperial. Diante desta situação, o judaísmo viu-se confrontado com o
seguinte dilema: suportar passivamente o pesado jugo do domínio romano ou, então, mobilizar o povo para um
levantamento generalizado a fim de expulsar os romanos.
Ora, diante desta situação, Hillel e Shammai não puderam esquivar-se a enfrentar o dilema. Por isso, os
discípulos de Shammai eram partidários da resistência activa, enquanto os de Hillel tomaram uma posição mais
pacifista. Mas eis que urna nova problemática emerge no seio do judaísmo: qual a atitude que os judeus devem
tomar em relação aos pagãos quando tiverem de viver no meio deles? Também aqui, a resposta que é dada pelas
duas escolas é diferente; Shammai preconizava o afastamento e isolamento em relação aos pagãos enquanto Hillel
se mostrava partidário do diálogo. Shammai era rigorista e sempre oposto a qualquer compromisso, mas era
igualmente severo em relação a si mesmo no que diz respeito à interpretação e cumprimento da Lei. Segundo o
tratado Abot, Shammai costumava dizer:
«Que a Lei seja a tua ocupação constante; fala pouco, mas age muito; acolhe toda a gente com cortesia.» 78
Temos assim que Shammai combina, no que diz respeito à Lei, alguma inflexibilidade com uma certa indulgência.
Por exemplo, em caso de guerra, ele admitia a violação do repouso sabático (Shabbat), manifestando igual
indulgência no que diz respeito aos banhos rituais. Muitas vezes, Shammai toma a defesa dos pobres, defendendo
que os bens deixados em abandono deviam reverter em benefício dos pobres. Porém, Hillel, pelo contrário,
sustentava que os ricos também deviam beneficiar desses bens79.
No que diz respeito à atenção que deve ser dispensada aos pobres, Shammai incluía também as mulheres, já que
estas no mundo antigo tinham um estatuto muito semelhante aos escravos. Por exemplo, opunha-se ao casamento
forçado das jovens, defendendo que «não se disponha das filhas de Israel como de uma propriedade deixada ao
abandono»80. É igualmente bem conhecida a sua posição face ao divórcio: um homem não pode repudiar a sua
esposa sem o seu consentimento quando ela não é culpável da sua má conduta. Hillel, pelo contrário, aceitava o
divórcio por qualquer motivo fútil como, por exemplo, partir um prato da cozinha81, não saber cozinhar ou mesmo
encontrar uma outra mais bonita que a própria esposa.
Sobre o problema do divórcio, o Talmud refere alguns casos muito curiosos. Por exemplo, um marido desejava
separar-se da sua esposa, mas, nos termos do contrato de matrimónio, devia restituir-lhe uma grande soma de
dinheiro. Para o conseguir, o marido começava por acusá-la de adultério, o que, nos termos da Lei, a privava dos
77
Eduyot 1,1; Shab 138b.
78
Mishná, Abot 1,15.
79
Para ilustrar um pouco a diferença de perspectivas entre os dois grupos, e embora pareça um pouco anedótico, vejamos
um caso exemplar que nos mostra o espírito do judaísmo deste período e como reagiam a ele as duas escolas; os discípulos de
Shammai defendiam que se podia consumir, de imediato, um ovo que fosse posto em dia de sábado, enquanto os seguidores de
Hillel achavam que isso não era permitido.
80
Yebamot 13,1.
81
Gittin 9,10.
28
seus direitos a receber o respectivo dinheiro. Por vezes, o marido fornecia falsas provas. Tratando-se de uma
sociedade em que os direitos da mulher eram quase inexistentes, provar o contrário era quase sempre impossível.
De acordo com um texto do Talmud, certo dia Baba Ben Bouta, discípulo de Shammai, baseando-se nos
ensinamentos do mestre, demonstrou a falsidade das provas fornecidas. O marido foi então condenado à flagelação
e ao pagamento de toda a soma inscrita no contrato de casamento82. Shammai e seus discípulos tomavam sempre o
partido da mulher quando discutiam problemas de matrimónio com a escola de Hillel83.
Uma outra questão, também ela cara ao judaísmo, dividia as duas escolas: a dos prosélitos. O Talmud cita alguns
casos que mostram bem como os dois grupos se confrontavam no que diz respeito às atitudes a ter face a essa
questão:
«Um dia, um pagão foi ter com Shammai e perguntou-lhe: Quantas leis tendes? Duas,
respondeu-lhe Shammai; a Lei escrita e a Lei oral. Converte-me e eu estudarei a Lei escrita.
Shammai enfureceu-se contra ele e despediu-o. O pagão foi, então, ter com Hillel que o aceitou e
fez dele um prosélito.»84
Um outro candidato que se apresentou a Shammai foi por este recusado. Hillel, porém, ensinou-lhe a regra de
ouro: «Não faças aos outros o que não querias que te fizessem a ti.» Sobre um terceiro candidato que colocava
como exigência vir um dia a ser sumo sacerdote, Hillel aceitou-o. Quando no decurso dos seus estudos o prosélito
chegou às leis referentes ao sumo sacerdócio ele deu-se conta, por ele mesmo, que era impossível vir a ser um dia
sumo sacerdote.
No que diz respeito aos prosélitos, podemos dizer que Shammai mostrava-se severo e intransigente, enquanto
Hillel era mais indulgente e compreensivo. Aliás, estas atitudes acerca dos prosélitos não tinham fundamentação de
carácter religioso; tinham antes, como condicionante, uma questão política. Shammai sempre fora um adversário
dos romanos e opositor ao seu domínio na Palestina. Por conseguinte, a sua oposição aos pagãos tinham como
fundamento a sua posição política e social, mesmo quando aqueles pretendiam converter-se ao judaísmo e fazer-se
prosélitos. Hillel, ao contrário, sempre foi mais contemporizador e menos hostil ao domínio romano.
Segundo a tradição, Hillel era natural de Babilónia e seria de ascendência davídica 85. Admite-se inclusive que ele
tenha chegado a ser presidente do Sinédrio, embora não haja documentação explícita sobre isso. Shammai, por sua
vez, nunca teria passado de vice-presidente. Todavia, um texto da Mishná86 sugere que a situação fora inversa e que
teria sido Shammai e não Hillel a presidir ao Sinédrio. Seja como for, a verdade é que a figura de Hillel, mais do que a
de Shammai, marcou o judaísmo posterior, tanto pelas suas posições pessoais de benevolência e humanismo, como
pelos princípios exegéticos que usou e ensinou aos seus discípulos. Efectivamente, e segundo a tradição da sua
escola, Hillel legou-nos 7 regras hermenêuticas, as famosas «regras de Hillel»87, que determinaram a exegese judaica
futura e cujos ecos estão presentes em textos do NT.
Por tudo isto, podemos dizer que estes dois grandes mestres marcaram o judaísmo do séc. I (da era que nos
precedeu), mas os seus ecos estendem-se muito para além dessa época, mormente a figura e a influência de Hillel, já
que serão os fariseus da sua escola que vão dar continuidade ao judaísmo após a destruição do Templo no ano 70.

2.3. Os modos de citar a literatura rabínica


A literatura rabínica, como já antes referimos, compreende um amplo conjunto de textos muito diversificados,
tanto na sua origem como nas diversas formas que apresenta. Muitas dessas obras tinham um objectivo
essencialmente didáctico; nasceram como fruto do ensino dos «Mestres» nas diversas escolas que se formaram logo
no séc. I da nossa era ou que surgiram depois da destruição do Templo e da reorganização do judaísmo após Yabné.
Outras, pelo contrário, nasceram de contextos litúrgicos, mais orientadas para a exortação dos fiéis ou para o uso na
oração sinagogal. No entanto, tanto umas como outras, todas elas têm como base a Sagrada Escritura, mormente a
Torah que se tornara o centro da vida judaica. Portanto, podemos dizer que temos obras que apresentam um cunho
mais «académico», orientadas para o ensino, e outras que têm uma orientação mais litúrgica nos seus comentários
ao texto bíblico.

82
Gittin 57a.
83
Yeb 1,4; 3,5; Ket 5,6; 8,1; Sota 4,2; Git 8,4.9. É interessante comparar esta posição com a atitude de Jesus no caso da
mulher adúltera (Jo 8,1-11).
84
Shab 31a.
85
Ket 62b.
86
Hagiga 2,2.
87
T Sanh 7,11.
29
Um dos problemas que esta literatura em geral coloca aos seus leitores diz respeito à forma de a citar, já que os
temas são retomados, em geral, por quase todos os escritos e todos eles obedecem a uma cadeia sequencial de
mútua dependência. Por exemplo, vamos encontrar os mesmos nomes dos tratados na Mishná, no Talmud e na
Tosefta. No caso do Talmud, o problema é ainda mais complexo, pois temos duas versões do Talmud: Talmud
Palestinense e Talmud de Babilónia.
Por isso, é importante conhecermos o código que nos permita, quando nos enfrentamos com alguma citação,
decifrar qual é a obra citada e qual é o tratado referido, mesmo que, muitas vezes, isso não seja tarefa fácil. A
compreensão correcta das citações encontradas ajudar-nos-á a identificar a obra em causa e a situar as tradições
que aí são veiculadas no seu devido contexto, o que constitui uma tarefa prioritária no contacto com esta literatura.
Vamos referir, em breve síntese, as principais orientações que devemos seguir para identificar as obras mais
significativas:
— Mishná — Um texto da Mishná é citado da seguinte forma: nome do tratado, o capítulo e o versículo.
Exemplos:
— Sanh 6,1— Temos o tratado sobre o Sinédrio, o capítulo é o 6º e o versículo é o 1º
— Ket 1,1— Temos o tratado de Ketoubot (escritos, de katab = escrever) sobre o contrato de matrimónio,
capítulo 1º e versículo 1º
Em resumo, como obra fundamental que é, as citações da Mishna são as mais simples: nome do tratado,
número do capítulo e do versículo.
— Talmud — Neste caso, a forma de citar já se apresenta mais problemática, uma vez que temos duas versões
do Talmud: Talmud de Jerusalém (ou Palestinense) e Talmud de Babilónia.
— Talmud de Babilónia — Cita-se o tratado (com nomes idênticos aos da Mishná) com o versículo e depois o
fólio (toma-se como referência a edição de Bomberg, Veneza, 1558, que serve de edição-mãe para todas as edições
modernas que têm sido apresentadas) e a página. Exemplos:
— Shab 31a — Trata-se do tratado Shabbat, o fólio é 31 e a página é a.
— Ket 626— O tratado é Ketoubot, fólio 62 e página b.
— Talmud de Jerusalém — Cita-se, colocando um J (Jerusalém) ou um P (Palestinense) antes do tratado,
segue-se o capítulo, o fólio e a coluna. Esta forma de citar tem como referência a edição de Veneza ou Cracóvia que
é aceite como padrão para as edições posteriores. Exemplos:
— J Mak 2,31d (ou P Mak 2,31d) — Talmud de Jerusalém ou Palestinense, tratado Makot, capítulo 2º
folio 31, coluna d
Em relação à Tosefta88, a citação é idêntica à da Mishná, sendo apenas antecedida pelo acrescento da indicação
da Tosefta que pode ser tanto Tos como T Exemplo:
— Tos Pe a 1,4 (ou então, T Pe a 1,4).
No que concerne a outros casos da literatura rabínica, especialmente no âmbito dos escritos de carácter
litúrgico, as citações já são mais claras e mais fáceis de identificar, uma vez que essas obras já não se prestam a estas
ambiguidades como as que referimos antes. Por exemplo, os Targums têm sempre as iniciais Tg antes do respectivo
nome. Caso concreto: Tg O = Targum Onquelos ou de Babilónia; Tg N Targum Neofiti.
Quanto ao Midrash, temos midrashs que são únicos e temos midrashs que são de colecção. Por exemplo: Ex
Rabbah. Trata-se do Midrash ao livro do Êxodo que faz parte da grande colecção Rabbah. Esta colecção engloba
comentários a quase todos os livros bíblicos. Alguns livros da Escritura, pela importância que tiveram no período do
judaísmo rabínico, têm comentários89 singulares. É o caso do Sifrá: comentário jurídico ao livro do Levitico90 que
remonta ao período dos Tannaítas91 (rabinos comentadores da Escritura que exerceram a sua actividade no período

88
A Tosefta é uma adição de tradições tanaitas à Mishná e que segue a mesma ordem. Em muitos casos, trata-se de referir
casos concretos que mostram como se concretizaram as determinações da Mishná.
89
O Midrash é, antes de mais, um comentário de tipo homilético para os fiéis e que nasceu no ambiente sinagogal, cf. F.
MANNS, Le Midrash: Approche et commentaire de l'Écriture, Jerusalém, 2001.
90
Trata-se de um livro que teve uma grande importância no período do judaísmo rabínico, pois tratava-se de defender e
manter a pureza do judaísmo face ao paganismo. Daí o empenho com que foi comentado.
30
que vai desde a destruição do Templo, ano 70, até à composição da Mishná, pelo ano 220). O mesmo sucede com o
Sifrê: comentário jurídico ao livro dos Números e do Deuteronómio que remonta ao período do Tannaítas.

2.4. As principais obras (ou colecçõ es) da literatura rabínica


Para além da complexidade das obras em si e do seu conteúdo, esta literatura comporta ainda uma outra
dificuldade que diz respeito à compreensão e abrangência de cada uma das grandes obras (ou colecções de obras)
de que é composta. Por isso, o recurso a um dicionário de judaísmo é por vezes o único meio que nos permite
aclarar os conceitos e os nomes das diferentes obras que chegaram até nós. Muitos desses escritos mantiveram ao
longo dos séculos o nome aramaico (ou hebraico) que receberam na sua origem, apesar dessa designação, em
alguns casos, nada ter a ver com o conteúdo. Tratava-se de pôr em realce o processo da sua elaboração ou o
objectivo porque foi composta, bem como a finalidade educativa e pedagógica que presidiu a essa composição. Para
podermos continuar a usar estas designações que, entretanto, perderam na nossa cultura qualquer ressonância,
temos de aclarar os conceitos que nos permitam remontar às origens e situar cada uma destas obras no seu
verdadeiro contexto.
Vamos, por isso, começando pelo escrito mais antigo e que maior influência exerceu no judaísmo, referir
algumas dessas obras, procurando datá-las no tempo e indicar as «traves mestras» do seu conteúdo.

a) Mishná
É o conjunto da Tradição oral, recolhida e transmitida pelos Mestres, ou seja, pelos Tannaítas que a ensinavam
aos discípulos nas «escolas» e que constitui o primeiro grande comentário, de tipo normativo, à Torah. É uma
espécie de «compêndio» de toda a «Traditio» oral que passa de geração em geração.
Segundo a tradição judaica, a Lei oral que será compendiada na Mishná fora já entregue por Deus a Moisés, no
Sinai. Vejamos como o Talmud de Babilónia comenta o texto de Ex 24,12:
«Porque está escrito: O Senhor disse a Moisés: Sobe à minha presença na montanha e
permanece aí, que eu vou entregar-te as tábuas de pedra, a Lei e o mandamento que eu escrevi
para a instrução deles. As tábuas, são os dez mandamentos; a Lei é a Escritura, o mandamento é a
Mishná que eu escrevi, são os Profetas e os Hagiógrafos; para a instrução deles é a Guemara.
Assim, podemos ver que tudo isto foi entregue a Moisés no Sinai.»92
O Talmud de Jerusalém vai mais longe ao afirmar:
«O Senhor deu-me as duas tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus, e portanto todas as
palavras (Dt 9,10). Isto significa absolutamente tudo: Escritura, Mishná, Talmud, Aggadah...» 93
O que significam estes textos que fazem remontar a entrega da Mishná a Moisés no Sinai? Acima de tudo,
pretende-se mostrar que ela tem uma autoridade idêntica à Lei escrita (Torah) e que as duas tiveram a mesma
origem. Diversos autores puseram em evidência indícios que pretendem mostrar como a Tradição oral tinha a
mesma origem e era tão antiga como a Lei escrita94. Não se tratava, por isso, de um corpus menor ou de segunda
importância. Trata-se sim de um conjunto coerente de leis que ajudam a esclarecer e iluminam a Escritura.
A palavra mishná (msnh — hnViÛm) aparece traduzida em alguns Padres da Igreja por δευτέρωσις, ou seja,
«repetição». A raiz da palavra é o hebraico hnV que significa «repetir». Porém, no uso linguístico corrente do
hebraico posterior o verbo tomou o sentido de «ensinar ou aprender a Lei oral» através do processo da repetição. O
mestre (o rabbi) recitava o tema da instrução e os discípulos repetiam para aprender. Como consequência deste
processo, a mishná (repetição) evoluiu até passar a ser o «ensino ou estudo da Lei» por excelência, isto é, o estudo e
ensino da Lei oral como algo distinto e complementar da Lei escrita (da Torah).
Os Mestres (rabinos) que estão na génese das tradições e dos comentários da Mishná são chamados
«Tannaítas» . Foram eles que deram corpo a esta transmissão da «Traditio» e que orientaram o judaísmo até à
91
O dicionário de MARCUS JASTROW, A Dictionary of the Targumim, the Talmud Babli and Yerushalmi, and the Midrashic
Literature, p. 1679, define Tannaítas como «aqueles mestres que na Mishná repetem as tradições que eles tinham aprendido».
O termo «Tannah» significa «repetir», pelo que podemos dizer que se trata de «repetidores» que ensinam os discípulos,
repetindo o que tinham ouvido e assim transmitem a Tradição. É o processo que vigorava nas «escolas» judaicas de então e que
ainda hoje perdura nas yeshibas (escolas) dos diversos grupos e movimentos do judaísmo actual.
92
Ber 5a.
93
Meg 4,1,74d.
94
Cf. F. MANNS, Pour lire la Mishna, Jerusalém, 1984, 139-141.
31
redacção da Mishná por alturas de 220. Os seus nomes encontram-se na Mishná, especialmente ligados ao
comentário de tradições ou à interpretação de preceitos práticos. Tannaíta ou Taneh é um termo aramaico que
significa «mestre» ou «ensinaste», embora etimologicamente signifique «repetidor». Como o aramaico não tinha o V
que era substituído pelo t (temos hnt em vez de hnV= repetir, os repetidores), os rabinos da Mishná (repetição) são
os Tannaîm ou Tannaítas (os repetidores). São eles que dão forma a esta notável composição que sintetiza toda a
tradição que fora recolhida e transmitida pelas escolas rabínicas num periodo importante e determinante para o
futuro do judaísmo. Foi o rabbi Yehudá haNassi (rabbiJudá, o príncipe ou patriarca) que presidiu a esta elaboração e
que dele recebeu autoridade para se impor.

a.a) A estrutura da Mishná


Pela importância que assume para o judaísmo e pelos dados que nos oferece como fonte para o conhecimento
dos primeiros séculos da nossa era, a Mishná merece-nos uma atenção mais detalhada, mormente no que diz
respeito à sua estrutura. Esta compõe-se de seis partes que recebem o nome de «Ordens». Cada uma destas
«Ordens» divide-se em «tratados» e estes em capitulas. Por sua vez, os capítulos são compostos de «tradições» ou
mishnaiot. Assim, temos, em síntese, esta estrutura:
 Ordem das Sementes - Alguns tratados mais importantes: Berakot (Bênçãos; trata de Dt 6,4-9; 8,10;
11,13.18-20); Pea' (sobre a origem dos proveitos destinados aos pobres: Lv 19,9-10; 23,22; Dt 14,28-29;
24,19-22); Teroumot (Proveitos destinados aos sacerdotes: Nm 18,8.11-12,25-32; Dt 12,6; 18,4; Lv 22,10-
14); Bikkourim (Oferta das primicias no Templo: Ex 23,19; 34,26; Nm. 18,13; Dt 26,1-11).
 Ordem das Festas - Shabbat (sobre o Sábado: Gn, 2,1-3; Ex 16,22-26,29-30; 20,8-11; 31,12-17; 35,2-3; Lv
19,3; 23,3; Nm 15,32-36; Dt 5,12-15); Pesahim (a Páscoa, desenvolvendo as prescrições de: Ex 12,1-28;
13,3-10; Lv 23,5-8; Nm 9,1-14; 28,16-25; Dt 16,1-8); Sheqalim (o Imposto a pagar ao Templo por cada
judeu: Ex 30,11-18; 2 Re 12,5-17); Yoma (o dia da Expiação, cerimónias no Templo no dia do Yom Kippur:
Lv 16,1-34; 23,32; Nm 29,7-11); Soukka (festa das Tendas: Lv 23,33-34; Nm 29,12-28; Dt 16,13-15); Rosh
hashaná. (festa do início do ano, ou seja, o «Ano Novo»: Ex 12; 1-2; 23,19; Lv 23,1-2; 23,23-25; Dt 31,10);
Ta'anit (os dias de jejum para além do dia da expiação, segundo Nm 10,9); Megilla (o rolo ou livro de
Ester e o seu uso na liturgia do Templo); Hagiga (trata das festas de peregrinação que são: Páscoa,
Pentecostes e Tendas, de acordo com Ex 23,14-18; 34,23-24; Dt 16,14-16).
 Ordem das Mulheres - Aborda as questões do casamento e divórcio. Alguns dos tratatos: Jebamot (as
Cunhadas, regras do levirato e uniões interditas: Gn 38,8; Dr 25,5-10); Kekoubot (Documento de
casamento: Ex 22,16-17; Dt 22, 13-21,28-29); Nedarim (Votos: Nm 30,2-17); Nazir (Nazirato: Nm 6,1-21);
Sota (a mulher acusada de adultério: Nm 5,11-21; Dt 20,1-9; 21,1-9; 24,5); Gittin (acto de Divórcio: Dt
24,1-4); Qiddoushin (Santificação e legislação do casamento).
 Ordem dos Danos - Trata dos delitos, dos castigos e tribunais de julgamento. Três tratados com os
seguintes nomes: Baba Qama, Baba Mesia e Baba Batra (são uma espécie de tribunais de apelo acerca
das questões mais diversas da vida corrente, tais como: roubos, agressões, contratos de trabalho,
partilhas, pesos e medidas, direitos de sucessão. São inúmeros os textos que servem de base a estes
tratados: Ex 21,28-36; 22,4-14,25-26; 23,4-5; Lv 5,20-26; 19,13.25-26; 24,18-20; 25,14.35-37; Dt 5,5-8;
21,15-17; 22,1-4; 23,20-26; 24,14-19; 25,13-16; 27,8-11); Sanhédrin (competências do Sinédrio em
termos de direito criminal: Lv 21,10-12; Dt 16,18-20; 17,6-20; 21,22-23); Eduyot (recolhe os testemunhos
dos Mestres em favor da Tradição); Aboda Zara (Idolatria, referente a Ex 23,13; 24; 34,12-16; Dt 7,1-5;
12,1-3); Abot (os «Pais», conjunto de máximas que remontam aos Tannaítas); Horayot (Decisões
jurídicas tomadas por engano; completa o tratado Sanhedrin: Lv 4,1-5; 13-23; Nm 15,22-29).
 Ordem das Coisas Santas - Zebahim (Sacrifícios sangrentos, regras referentes aos diversos sacrifícios em
que se imolavam animais: Lv 1,1-9. 14-17; 3,1-5; 4,27-31; 7,1-8); Menahot (Ofertas: Lv 2,1-3; 6,7-11; 7,9-
10); Hulin (Coisas profanas: Lv 17,13-14; 22,28; Dt 12,20-24; 17,21; 18,3-4); Bekorot (Primogénitos: Ex
13,11-13; 22,28-29; 34,19-20; Nm 3,13; 18,16-18; Dt 15,19-23); Arakin (disposições referentes aos votos
que alguém faz de entregar ao Templo uma determinada quantia, tal como determina Lv 27,1-8,16-24;
Nm 18,14); Temourot (Substituições de um animal destinado ao sacrifício: Lv 27,9-10,22-23); Tamid
(Sacrifício quotidiano e perpétuo: Ex 30,7-8; Nm 28,3-8); Middot (Medidas e estruturas do Templo 95,
dando-nos a sua descrição); Kinim (fala dos diversos sacrifícios de aves: Lv 12,8; Nm 15,14-16).

95
Trata-se, juntamente com o tratado Tamia de um dos mais importantes de toda a Mishná, pois é uma das fontes mais
significativas para o conhecimento do 2º Templo e da sua estrutura. cf. F. MANNS, Pour lire la Mishna, 204-211. São
essencialmente informações sobre as medidas dos diversos compartimentos que formavam todo o complexo do Templo, bem
como das dependências respectivas e das finalidades para que se destinavam os diversos aposentos.
32
 Ordem das Regras de Pureza— Kelim (regras de Pureza para os utensílios: Lv 11,29-35; 15,4-6.9-12.19-
27; Nm 19,14-16; 31,19-24); Ohalot (Tendas, fala da impureza no contacto com um cadáver: Nm
19,11.14-17.22); Nega’im (Chagas, sobre as diversas espécies de lepra: Lv 13 e 14); Pará (Trata da
preparação da Vaca para o sacrifício de expiação, de acordo com Nm 19,1-22); Mikwaot (Banhos rituais,
conforme Lv 14,8; 15,5; Nm 31,23); Nidá (apresenta as disposições sobre a pureza da mulher no período
da menstruação e na altura do parto, tendo como fundo bíblico as normas de Lv 12,1-5; 15, 19-24);
Yadaim (refere-se à impureza ritual das mãos e às regras de purificação).
Abordamos aqui, de forma sucinta, os tratados mais significativos da Mishná, referindo os temas respectivos e a
sua fundamentação bíblica. Pode-se constatar facilmente que muitos deles tocam problemas com que Jesus se viu
confrontado no seu tempo. Conhecer as disposições desses tratados ajudar-nos-á a melhor entender a problemática
subjacente a essas questões, bem como a singularidade das respostas que Jesus dá àqueles que o confrontam com a
tradição. Neste aspecto, a Mishná é, certamente, a melhor fonte de documentação de que dispomos. Isso mostra-
nos não só a sua importância para o judaísmo, mas também para o conhecimento do mundo e dos costumes do NT.

b) O Talmud
A palavra {talmud» significa também «estudo», «estudar»; é um termo que deriva da dml que descreve uma
actividade teórica em oposição à acção prática que se diz hf’î[m, do verbo hf’î] (fazer algo concreto). O substantivo
talmud deriva da forma verbal Pi’el (limad, ensinar, instruir) e daí «instrução», «máximas» dadas pelos rabinos que
procuravam explicitar para os seus discípulos os conteúdos da Mishnd. Por isso, há uma relação muito próxima entre
a Mishná e o Talmud. Embora seja um texto jurídico, tal como a Mishná, os comentários do Talmud (Gemara)
incluem material halákico e agádico, com acrescentos de contos, poemas, legendas, alegorias, reflexões
moralizantes. Podemos, por isso mesmo, dizer que o Talmud é formado por duas partes que se complementam
entre si, tal como texto e comentário:
— a Mishna, seguindo a mesma ordem e estrutura;
— a Gemara, é o comentário que é feito ao texto da Mishná pelos Amoraim96, acrescentando agora novas
orientações conforme as diferentes «escolas» e que vão mais tarde constituir a singularidade do Talmud.
A palavra gemara deriva do verbo «gemar» (da raiz aramaica rmg) e significa «completar, terminar». Assim, a
gemara é aquilo que é completado, adquirido através do estudo. Os Mestres (os rabinos) posteriores a 220
continuaram a comentar a Lei oral, ou seja, a Mishná, e explicavam os seus conteúdos em função do ensino aos
discípulos, dando assim origem a uma nova obra literária de grande envergadura, a maior e mais completa que o
judaísmo produziu ao longo da sua história. Esse ensino era muitas vezes motivado pelas novas situações com que o
judaísmo se via confrontado, tendo de oferecer orientações aos seus crentes que os ajudassem a manter a fidelidade
à Lei.
Temos, como já atrás referimos, duas versões do Talmud cada uma delas com a sua Gemara própria, conforme
as tradições que aí tinham sido recolhidas. O Talmud de Jerusalém foi redigido no fim do séc. III ou durante o séc. IV
e é o resultado das discussões jurídicas das escolas da Palestina, especialmente da grande academia de Tiberíades
para onde se retirara o Sinédrio e onde já tinha sido composta a Mishná, pois aí pontificavam os grandes Mestres de
então. A Gemara do Talmud de Jerusalém compreende 39 tratados.
Quanto ao Talmud de Babilónia, começou a ser compilado no séc. V, embora só no séc. VI a obra tenha sido
concluida. Tal como sucede com o Talmud de Jerusalém, o de Babilónia é o conjunto de discussões jurídicas emitidas
pela escola de Babilónia com as suas tradições e interpretações em resposta aos problemas com que a comunidade
se enfrentava. A Gemara de Babilónia compreende 37 tratados e é muito mais desenvolvida do que a do
Palestinense, o que torna esta obra muito volumosa. Ao contrário da Mishná, redigida em hebraico, o Talmud foi
escrito em aramaico, fruto da Tradição oral das comunidades de Babilónia.
Os Mestres que contribuíram para a redacção do Talmud são os Amoraím (ou Amoraitas), derivando a palavra do
verbo rma (falar, dizer). Podemos afirmar, assim, que os Mestres do Talmud são «os que transmitem e comentam
(dizem) as tradições da Mishná».

c) Tosefta

96
São os rabinos que comentam a Mishná, ou seja, aqueles que dão continuidade à Tradição após a composição da Mishná
(em 220), tradição esta que foi depois recolhida no Talmua quer na Palestina quer em Babilónia.
33
A palavra em si significa «adição» e trata-se de um acrescento ou, se preferirmos, de um apêndice à Mishná,
realizado pelos Tannaítas, embora tenha sido acrescentado apenas mais tarde, já no séc. IV. Trata-se de um
comentário a todos os tratados, excepto 4; Abot, Tamia Middot e Kinim. O próprio termo Tosefia significa
«suplemento», isto é, são máximas contemporâneas das da Mishná, mas que não tinham sido recolhidas aí. Em
geral, são referidos casos concretos que estão na origem e servem de justificação às determinações tomadas pelos
Tannaítas.

d) Midrash
O termo midrash vem da raiz hebraica darash (frd) que significa «examinar, procurar, buscar o sentido». Em
geral, este verbo encontra-se na Bíblia tendo a Deus como objecto97 e traduz a acção de procurar ou dirigir-se a Deus
através de um profeta. Nos Salmos e livros Sapienciais este verbo é muito usado para expressar a acção de procurar
a Deus quando se está em dificuldade. Todavia, no Sl 119,155 o termo aparece com o sentido de «obedecer» ou
«cumprir» a Lei e ainda no mesmo Salmo (119,18) encontramos esta prece: «Abre-me os olhos para que possa
contemplar as maravilhas da Tua Lei.» Por sua vez, Esd 7,10 usa o verbo darash em referência à interpretação da Lei
de Yahwé. Ora, Esdras é um escriba que se ocupa da Lei, procurando interpretá-la para a ensinar e fazer cumprir.
Também em Ne 8,7, após o regresso do exílio e numa grande assembleia do povo, os levitas lêem a Lei e explicam o
texto aos fiéis para que estes a compreendam. Já em Ben Sirá 32,18 o termo é aplicado, tal como no uso original,
com o sentido de procurar a Deus.
Ora, a explicação da Lei está associada à tarefa dos escribas que deviam encontrar o seu verdadeiro sentido para
o comunicar ao povo e assim orientar os fiéis na busca de Yahwé. Por isso, a busca do sentido da Lei e a procura de
Deus estão intimamente associadas e o judaísmo rabínico acentua, de forma intencional, o cumprimento da Lei
como caminho único para encontrar a Deus. Uma passagem do Talmud98 faz notar que o centro do Pentateuco (da
Lei), para quem faz o cômputo das palavras, está no meio do verbo duplicado darosh darash em Lv 10,16. Esta
centralidade, segundo as técnicas rabínicas, não seria fortuita mas intencional, pois visa reforçar a ideia de que o
sentido da Lei só se revela àquele que o aprofunda através do estudo.
No entanto, é só no 2º livro das Crónicas que nós vamos encontrar o termo Midrash. Em 2 Cr 13,22 fala-se do
«midrash do profeta lddo» e em 2 Cr 24,27 alude-se ao «midrash do livro dos Reis». Talvez aqui o termo seja
sinónimo de «livro», de «escrito». Efectivamente, os LXX traduziram o termo por «biblion» e «graphe» 99. No livro de
Ben Sirá encontramos, pela 1ª vez, a expressão Beth Midrash que os LXX traduziram por oikos paideias100. A Bet
Midrash é definida como o «local onde se tem acesso à sabedoria»101. Neste contexto, podemos dizer que a raiz
darash é empregue em diversos sentidos: Busca de Deus, busca do sentido da Lei (Midrash), casa de estudo da Lei
(Beth Midrash).
Ao contrário das obras antes referidas que tinham todas elas, como característica comum, um carácter jurídico-
normativo, tanto no que concerne à explicitação da Tradição oral como da Lei escrita, o Midrash é acima de tudo um
género de tipo exortativo, mais homilético que jurídico. A Mishná, o Talmud e a Tosefta são essencialmente obras
que codificam e sistematizam a Tradição. O Midrash, ao contrário, é o comentário da Bíblia, versículo a versículo,
procurando ilustrar para os fiéis o sentido do texto, actualizando-o. A sua orientação é essencialmente litúrgica e não
propriamente jurídica no sentido corrente do termo.
Como método que é, o Midrash tem regras; trata-se de uma «escola de interpretação» — Beth haMidrash —
que segue determinados princípios, determinadas regras e técnicas, de acordo com a respectiva escola onde essa
interpretação é feita. Estas técnicas do midrash são já perceptíveis nos últimos livros do AT, designadamente no livro
das Crónicas e na Sabedoria102. Temos três principais «escolas» ou conjuntos de técnicas de interpretação:

97
O seu uso é muito frequente. Alguns exemplos: Gn 25,22; FA 18,15; 1 Sam 9,9; 1 Re 22,8; 1 Cr 10,14; 2 Cr 16,12; Ez 20,1.
98
Qid 30a.
99
S. LIEBERMAN, Hellenism in Jewish Palestine, New York, 1962, 48. Como também refere R. BLOCH, o uso que o «Cronista
faz do termo poderia constituir uma alusão a obras históricas que usavam a Escritura com o objectivo de a aplicar à instrução e
edificação» dos fiéis, cf. «Midrash», DBS V, 1264.
100
Trata-se de uma orientação tipicamente pedagógica que vamos também encontrar nos escritos sapienciais, pondo em
relevo a função de ensino que esta actividade revestia, pois através dela os discípulos tinham acesso à doutrina dos Mestres.
Embora o seu carácter não seja tão «escolástico» (de escola), o midrash não deixa de ser uma actividade de estudo, de pesquisa
do sentido da Escritura que decorre, por excelência, na sinagoga e nas funções litúrgicas.
101
F. MANNS, Le Midrash: Approche et Commentaire de l'Ecriture, Jerusalém, 2001, 10.
102
O Midrash é uma realidade já bem presente no interior da própria Bíblia que, em muitas passagens, vai fazendo a
actualização de si mesma. O caso mais típico é o do livro das Crónicas que faz a actualização da obra do Deuteronomista,
34
 As célebres Middot de Hillel que são sete (7);
 As treze (13) regras de rabbi Ismael (são as 7 de Hillel ampliadas);
 As trinta e duas (32) regras de rabbi Eliezer.
Para além das diferentes regras ou técnicas aplicadas na interpretação, actualização e exposição do sentido da
Escritura, o Midrash pode também assumir duas orientações diferentes, ou seja, duas perspectivas de interpretação
e actualização do texto, conforme o objectivo que se pretende alcançar:
 Midrash aggádico;
 Midrash halákico.
Em relação ao primeiro que referimos (midrash aggádico), trata-se de uma interpretação do texto numa
perspectiva essencialmente exortativa e edificante para os fiéis. A palavra deriva de dgh (narrar, contar). Temos a
palavra aggadá (narrativa). A aggadá é um conceito denso que percorre todos os temas da literatura judaica que não
é legislativa (jurídica), tais como: crenças fundamentais (acerca de Deus), prémios e castigos, liberdade do homem,
angeologia, profecia, imortalidade, messianismo, ressurreição dos mortos. É uma narrativa de tipo homilético que
recorre a histórias edificantes, a exemplos mais significativos de tipo parenético. A sua exposição não resulta tanto
do estudo académico da Lei, mas antes dos sermões ou homilias edificantes que tinham lugar na Sinagoga e que
pretendiam actualizar para os fiéis o sentido do texto que era exposto. As regras a que aludimos (de Hillel, de R.
Ismael ou de R. Eliezer) mais não eram do que recursos metodológicos para deduzir conclusões e exortações a partir
do texto da Escritura.
No que diz respeito ao midrash halákico, a palavra deriva do verbo hlk (andar, seguir, ir), indicando que se trata
da exposição do sentido da Escritura numa perspectiva normativa: oferecer aos fiéis o sentido, o caminho para o seu
agir moral conforme à Escritura. Por isso, a exposição do sentido do texto é feita numa perspectiva prática de
aplicação à vida. Também aqui se aplicam as mesmas regras, o método é o mesmo, apenas se diferenciam na sua
aplicação (mais prática, o halákico; mais edificante o aggádico). Dependente da história e dos diversos movimentos
judaicos, a Halakah expõe o sentido da Escritura de acordo com critérios que visam orientar os fiéis desses mesmos
grupos para procedimentos práticos e «normativas» que estejam de acordo com os princípios éticos e teológicos
que defendem. Esta interpretação que dava suporte à legislação bíblica enquanto tal estava, muitas vezes,
dependente das perspectivas próprias dos «mestres» que a propunham e a defendiam.
Podemos dizer que a tradução grega dos LXX, em muitos dos seus livros, mais nuns que outros, apresenta já
fortes indícios de comentários de tipo midráshico, ou seja, denotam-se já tentativas não só de traduzir o texto, mas
de apresentar uma interpretação do seu sentido, em função de uma aplicação de carácter mais prático ou
exortativo. Isso mostra que os tradutores tinham já como preocupação a explicação e actualização do sentido do
texto. O mesmo se pode constatar em muitos dos escritos de Qumrãn em que o texto da Escritura é aplicado de
forma directa à vida da comunidade.
O Midrash conheceu um grande desenvolvimento com os fariseus, no período rabínico por diversas razões, de
entre as quais se pode salientar:
1. O facto dos fariseus admitirem, ao contrário dos saduceus, a Lei oral (a Tradição) leva a que esta deva
ser harmonizada com a Lei escrita, nascendo aí uma importante fonte para a actualização do sentido do
texto;
2. As novas circunstâncias em que o judaísmo se encontra após o ano 70 conduzem a um aprofundamento
do sentido do Torah, para que esta possa ser agora vivida e aplicada num contexto politico e social
totalmente diferente;
3. A centralidade da Lei na piedade sinagogal motiva o seu estudo e compreensão por parte das diversas
«escolas» em ordem à sua aplicação na vida prática. A liturgia judaica da sinagoga, intimamente ligada
ao ensino na transmissão da Traditio, foi, sem dúvida, um dos «lugares» que mais contribuiu para o
desenvolvimento do Midrash.

d.a) As regras de Hillel e outros recursos exegéticos


Não é possível compreender o género midráshico sem termos uma ideia, mesmo que sucinta, acerca das suas
técnicas de desenvolvimento. Tal como sucedia com os clássicos gregos, também o judaísmo tinha o seu sistema de
análise dos textos, apesar de nem sempre ser possível aplicar na língua hebraica uma exegese rigorosa semelhante à

aplicando-a à realidade pós-exílio, vivida agora pela comunidade de Jerusalém. Cf. F. DREYFUS, «L'actualisation à l'intérieur de la
Bible», RB 83 (1976), 161-202 ; B. S. CHILDS, «Psalm Titles and Midrashic Exegesis», JSS 16 (1971), 137-158.
35
lógica aristotélica. Um dos sistemas que maior influência teve nesse processo de aperfeiçoamento do género
midráshico foi o das 7 regras hermenêuticas de Hillel que são, no fundo, a base de desenvolvimento de outros
conjuntos de técnicas a que fizemos referência anteriormente.
Efectivamente, as 7 regras atribuidas a Hillel103 são as mais antigas, sendo depois mais detalhadamente
desenvolvidas por R. Ismael. Eis as regras de Hillel em breve síntese:
1ª — Qal wahomer (ligeiro e pesado): do menor ao maior. Trata-se de comparar duas situações em que uma é
apresentada como mais leve em relação a outra. Aplica-se tanto no midrash halákico como no aggádico. Exemplo de
T. Pes 9,32: «Belo é o silêncio para os sábios. Por muito maior razão (qal wahomer) para os estúpidos.» Assim diz a
Escritura: «O próprio insensato quando faz silêncio passa por ser um sábio.»
2ª — Gezerah shewá (decisão idêntica): analogia de textos ou verbal. Trata-se de textos diferentes que têm um
termo igual ou análogo que fundamenta a decisão. No entanto, não se pode estabelecer uma Gezerah Shewá por
iniciativa própria. O raciocínio só é válido «quando justifica uma decisão jurídica já aceite pela tradição». Além disso,
a norma da Gezerah Shewá para fundamentar uma analogia entre dois textos só pode apoiar-se em palavras que
são, aparentemente, supérfluas num dos textos. O rabbi Aqiba, que é um daqueles que mais cultiva esta técnica
hermenêutica, atribuía uma grande importância às palavras supérfluas, especialmente às partículas gam (também,
assim), ‘et (com, junto de...), ky (porque, quem), im (com, se).
3ª — Bynyan ‘ab mi-katub ehad (construção principal): é a formação de um grupo ou família de textos a partir de
um texto. A palavra ‘ab designa aqui princípio (origem) para a construção de uma analogia de textos a partir de um,
servindo-se de uma palavra semelhante ou de uma situação jurídica idêntica. A base do argumento usado para
fundamentar essa relação é sempre a analogia. Por vezes, generaliza-se o que é dito de um particular e estende-se
como norma o que era um caso singular. Eis um exemplo tomado do Midrash Sifré Dt 17,2:
«Se se encontra (Dt 17,2): esse texto diz respeito aos testemunhos a partir do principio, porque foi dito: ‘a
decisão será estabelecida sobre a palavra de dois ou três testemunhos’ (19,15). Em qualquer lugar em que esteja
escrito: ‘Se se encontra’, a Escritura fala de dois ou três testemunhos.»
4ª — O princípio Bynyan ‘ab pode também ser fundamentado em dois textos da Escritura, procurando deduzir o
que é essencial nas duas situações jurídicas análogas. Nesse caso, temos Bynyan ‘ab mi-shene ketubim: a formação
de um grupo ou família de textos a partir de dois textos que conferem então consistência a uma decisão jurídica.
— 5ª — Kelal upherat (geral e particular). Podemos conceber esta regra da seguinte forma: No caso de um
enunciado geral ser seguido de um enunciado particular, o conteúdo do enunciado geral fica limitado ao conteúdo
do particular, ou seja, fazer de um regra geral uma aplicação a um caso particular. Desta forma, quando um
enunciado geral é seguido por uma especificação particular (singular) o que fica determinado é apenas o que é
referido nesse enunciado particular. Este princípio pode também revestir a forma oposta: Perat ukelal (particular e
geral)104. Neste caso, «quando um enunciado geral conclui uma série de enunciados particulares, cada particular
deve ser compreendido de acordo com a noção do enunciado geral»105. Vejamos este exempla retirado da Mekilta
de R. Ismael106 a Ex 22,9:
«Se alguém confia a outrem a guarda de um asno, de um boi ou de uma ovelha (Ex 22,9). Não se trata senão do
asno, do boi e da ovelha. Será que este enunciado refere-se a todos os animais? O texto conclui ‘ou qualquer outro
animal’. Se fossem apenas pronunciadas as últimas palavras, eu poderia entender: Isso não me diz respeito a não ser
quando me está confiado todo o gado. Mas está especificado ‘asno, boi e ovelha’ para especificar acerca de cada
um. Porquê então acrescentar no fim ‘toda a espécie de gado’? É para recordar que se um enunciado geral se
acrescenta a enunciados particulares, cada caso particular deve ser compreendido de acordo com a noção do geral.»
6ª — Kayose bô bemaqom aher (tal como se encontra em outro lugar): Trata-se de explicar uma passagem
obscura através de uma outra que é clara e evidente. Neste caso, a solução para a questão em debate deve ser

103
Encontram-se na T Sanh 7,11 e em Aboth Rabbi Nathan 37,10.
104
Trata-se de uma técnica muito comum na literatura rabínica em que se passa do geral ao particular e do particular ao
geral, bastando para isso encontrar uma base no texto bíblico. Como já referimos, a hermenéutica judaica não assenta em bases
de rigor lógico como acontecia na cultura grega (helenística), mas apenas em deduções de carácter especulativo com base no
texto bíblico ou nas «singularidades» da língua hebraica, como já anteriormente referimos a respeito de algumas partículas e
conjunções.
105
F. MANNS, Le Midrash, 99.
106
Trata-se de um comentário midráshico de tipo halákico ao Êxodo, realizado no séc. II e que constitui um dos mais
representativos deste grande exegeta rabínico.
36
iluminada ou explicada através da comparação com uma outra situação que se apresenta clara. Vejamos Ex 13,6,
quando «determina que se deve comer pães ázimos durante 7 dias, enquanto em Dt 16,8 se fala apenas de 6 dias. O
segundo texto (Dt) significa que os 6 dias devem ser contados excluindo o primeiro, cuja solenidade já antes tinha
sido referida»107.
7ª — Dabar halamed meynyano (sentido do texto a partir do contexto). Trata-se, fundamentalmente, de advertir
para a importância do contexto da situação em causa.
Para além destes princípios atribuídos a Hillel e, posteriormente, desenvolvidos por R. Ismael e R. Eliezer, a
hermenêutica rabínica servia-se de outros recursos, mormente ligados à interpretação do texto bíblico, que tiveram
grande impacto nas obras que até nós chegaram. Citamos apenas alguns dos mais frequentes:
— al tiqra— consistia apenas em mudar as vogais do texto108, o que era muito usual. O próprio nome desta
norma (Não leias...), significa que se lia com outra vogal donde resultava um significado diferente, embora dentro do
respectivo contexto.
— Tartey mashma — explorar o duplo sentido de uma palavra.
— Notaricon — propor uma divisão diferente da palavra (de grande frequência na análise feita pelos rabinos ao
texto bíblico).
— Gematria— recurso ao valor numérico das palavas, mediante a soma do valor correspondente a cada letra
que componha o termo. É uma técnica muito comum e usual na exegese dos grupos apocalípticos e também na
exegese cristã dos Padres da Igreja.
Também era dada grande atenção ao tempo dos verbos, o que para o judaísmo não é um mero acaso, mas algo
fundamental, tal como a assonância entre palavras. Foi com todos estes recursos a que o judaísmo recorreu que
foram elaboradas todas estas obras que até nós chegaram e que constituem uma notável herança cultural.

e) Targum
Um outro ramo da literatura rabínica é constituído pelo Targum. Trata-se de um conjunto notável de obras, de
carácter litúrgico, que tem o seu Sitz in Leben na sinagoga e se destinava, fundamentalmente, à instrução dos fiéis. A
palavra targum deriva do verbo mgrtl (traduzir, interpretar) e encontra-se já em Ne 8,9. O Targum é, antes de mais,
uma tradução-interpretação da Escritura, feita em aramaico, que era a língua comum usada na sinagoga. Como o
povo não entendia o hebraico e uma vez que a liturgia sinagogal exigia a leitura da Torah em hebraico 109, era
imperioso proceder à sua tradução para aramaico.
Após a leitura do texto (em hebraico), o tradutor (meturgeman) procedia à tradução-exposição do texto,
fazendo a sua adaptação para o povo, tendo em conta as circunstâncias concretas da comunidade. Por isso, para
além de ser uma tradução, o Targum é também uma interpretação do texto, com sentido actualizante. Chegaram
até nós diversos Targumim; uns com origem no ambiente (comunidades) palestinense e outros com proveniência
das comunidades de Babilónia. Embora as diferenças não sejam substanciais, cada um reflecte situações concretas
vividas pelas respectivas comunidades, o que empresta a estes textos uma importância acrescida, uma vez que nos
oferecem muitos elementos para a compreensão da vivência judaica dessas comunidades.

2.5. A Halakah do judaísmo rabínico


Como já atrás referimos, de forma breve, a Halakah é um processo exegético, uma forma de interpretar e dar
sentido à Lei e à Tradição oral. Estando intimamente ligada à história de Israel, a Halakah adapta-se aos
condicionalismos sociais da comunidade judaica. Por outro lado, cada grupo ou movimento tinha a sua Halakah, a
sua forma de interpretar o texto e de retirar dele perspectivas orientadoras para os seus membros, sendo diferente
se se tratava de essénios, de fariseus, saduceus ou zelotas, uma vez que cada um deles tinha as suas perspectivas
teológicas.

107
F. MANNS, Le Midrash, 100.
108
O texto hebraico não tinha representação gráfica das vogais. Por isso, era muito fácil proceder à sua alteração, lendo de
outra forma.
109
O hebraico deixou de ser língua corrente a partir da expansão do Império Persa que usava o aramaico como «língua
franca» do império. Um dos instrumentos de unidade do Império Persa passa por aqui. Por isso, paulatinamente, o hebraico
ficou reduzido ao culto e era obrigatório que a leitura da Torah fosse feita em hebraico, podendo as demais leituras ser feitas em
aramaico ou outra língua acessível aos fiéis.
37
Esta diversidade e pluralidade de interpretações foram fortemente restringidas pelas decisões normativas de
Yabné que pretendiam «normalizar» o judaísmo posterior à destruição do Templo, impondo uma Halakah de
tendências farisaicas. No entanto, importa referir que essa diversidade era antiga, remontando ao período em que o
judaísmo se sentiu confrontado com o helenismo. Em relação à época helenística (330-167), há diversos tópicos que
já então nos permitem comparar a Halakah normativa e jurídica com as interpretações dos Apócrifos, incluindo os
livros dos Macabeus, a tradução grega dos LXX e alguns papiros gregos desse período110. Por exemplo, a adopção de
costumes gregos, a relação com estrangeiros, as questões ligadas ao sacerdócio.
Quanto ao período asmoneu e romano (até à destruição do Templo), possuímos hoje várias fontes que nos
permitem comparar a Halakah judaica. Para além dos manuscritos de Qumrãn, sem dúvida alguns dos documentos
mais importantes da época, temos Filão de Alexandria, Flávio Josefo, diversos Apócrifos e os Evangelhos, de onde
podemos retirar preciosas informações sobre as diversas interpretações que eram dadas a diversos textos. O mesmo
sucede no que diz respeito ao período posterior, ou seja, à época dos Tannaítas (de Yabné até à redacção da Mishná,
em 220). Neste caso, são os Padres da Igreja, designadamente os chamados Padres Apostólicos (S. Justino no Diálogo
com Trifão, a Carta de Barnabé, a Didaskalia) que nos oferecem uma fonte preciosa de comparação com a Halakah
judaica.
No que diz respeito à Halakah, o grande problema é o da datação das tradições que chegaram até nós, pois entre
a sua redacção e a sua origem medeia, por vezes, um longo período de tempo. São as fontes não judaicas que muitas
vezes nos permitem fazer essa datação, embora nem sempre isso seja possível.

a) As «fontes» da Halakahxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
A semelhança de outros ramos da literatura judaica111, também aqui se coloca a questão de saber quais as fontes
da Halakah. Onde tem a sua origem e quais os critérios que presidem à interpretação dos textos? Alguns autores
pensam que a génese da Halakah está no «raciocínio» ou na lógica humana. Seria uma espécie de «lógica ou
sofística» grega. Vejamos um texto da Mishná (Baba Mesia 59b):
«Se eu tenho razão, argumentava R. Eliezer, que isso seja provado do céu. Então, uma voz celeste fez-se ouvir:
`Que tendes vós contra R. Eliezar, ele que tem sempre razão?' R. Joshua levantou-se e disse:
112
'A Lei não é do céu' (Dt 30,12). Que é que isso significa? R. Jeremias respondeu: `Foi a nós que ela foi dada sobre
o monte Sinai.' Portanto, não temos de ter em conta qualquer voz celeste. Não está dito na Lei que é a opinião da
maioria que permanece (Ex 23,2)?»
Já as escolas de Shammai e Hillel tinham debatido a validade da «voz celeste (bath kól)». A escola de Shammai
dizia: «Uma voz celeste não é um testemunho.» Ao contrário, a de Hillel argumentava: «Uma voz celeste é um
testemunho.» Assim, se a escola de Hillel determinava algo com valor normativo, isso pressupõe a confirmação
celeste para assumir força de Lei 113
Um grande número de estudiosos do judaísmo pensa que a Halakah remonta à época que precede os macabeus
e que teria sido influenciada pela lógica e pela retórica grega. Era, assim, uma espécie de contraposição à «arte
jurídica» da cultura helenista que pouco a pouco se foi divulgando no mundo judaico por força da imposição da
cultura grega. As suas principais fontes seriam:
— A Tradição transmitida de geração em geração que remonta a Moisés (conforme o tratado Abot, 1,1);
— A interpretação da Lei (que se designa como derasha) que do texto escrito deduz regras concretas para os
procedimentos quotidianos;
— Determinadas decisões e decretos jurídicos tomados pelas autoridades competentes (Sinédrio ou grandes
Mestres) são também elementos constitutivos da Halakah;
— O costume e a tradição são igualmente uma fonte importante; — O raciocínio é a base de fixação da
Halakah.
No fundo, o que caracteriza a Halakah (a lei normativa) é a sua evolução constante e a sua adaptação
permanente ãs circunstâncias históricas e sociais, variando e adaptando-se, muitas vezes, a essas mesmas

110
Temos o caso dos papiros de Zenão e do Waddi-ed-Daleyed.
111
Por exemplo: a apocalíptica. Qual é a origem desta literatura? O que está na sua génese? Ou, no que se refere à
escatologia, até onde remonta? Quais são os limites da sua especulação?
38
circunstâncias. Apesar das mutações acidentais que essa evolução implicava, os rabinos salientavam sempre que
havia uma perfeita continuidade entre as leis (entre as diversas normas que davam corpo à Halakah).
113 Podemos confrontar esta perspectiva com os textos dos Evangelhos que recorrem à «voz celeste» para
confirmar Jesus como Messias: Mt 3,17; 17,5; Mc 1,11; Lc 3,22.
Assim se compreende, nesta linha de continuidade, a forma como o judaísmo salientava o facto de Moisés ter
recebido no Sinai duas Leis: a Lei escrita e a Lei oral. Esta Lei oral, dita Tradição, é a grande fonte da interpretação
normativa, da Halakah. Esta, por sua vez, permaneceu sempre como algo pouco sólido, pouco fixa, uma vez que era
proibido dar-lhe forma escrita, o que justificava a sua permanente evolução.
Por sua vez, a tradição rabínica defendia que Deus teria ensinado a Lei oral a Moisés durante os 40 dias que este
permaneceu no Sinai. Toda esta ginástica interpretativa e justificativa tinha como finalidade dar importância e
consistência à Halakah. A partir dos asmoneus, o Sinédrio era a instituição suprema que determinava as leis: «É lá
que os sábios determinam a Lei para todo o Israel.» Temos, por exempla, as determinações acerca da pena de
morte. O Sinédrio podia determinar quatro tipos de pena de morte: lapidação, fogo, decapitação e o
estrangulamento (Sanh 7,1). No entanto, muitas vezes, o poder civil não dava execução ds normas emanadas do
Sinédrio, como sucedeu, com frequência, ao tempo de Herodes. Por isso, a Halakah tinha um forte poder vinculativo
junto do povo, mas nem sempre era posta em execução por parte dos poderes políticos do tempo.

3. Literatura essénia de Qumrã n112


A descoberta dos manuscritos essénios de Qumrãn constituem, sem sombra de dúvida, o maior e mais
importante achado no campo arqueológico e literário em relação ao conhecimento do mundo do período inter-
testamentário, do judaísmo e do contexto que está na origem do cristianismo. Tais descobertas iniciaram-se em
1949 e prolongaram-se durante vários anos, já que aos primeiros achados outros se seguiram, um pouco por todo o
deserto da Judeia, envolvendo não apenas escritos essénios, mas também de outras origens, como sejam os escritos
de Bar Kokba, referentes ao período da 2ª revolta, os escritos dos zelotas em Massada e os do período que medeia
entre as duas guerras judairas (70 e 135). Todos eles constituem um notável espólio ainda em processo de estudo.
Parte deste achado ficou a dever-se, no seu início, a um acontecimento fortuito e insignificante. Uma cabra, que
fazia parte de um rebanho pertencente a uma tribo árabe, de semibeduinos da zona de Belém, afastou-se dos outros
animais e acabou por entrar numa gruta, de forma que foi necessário ir buscá-la. Foi então que dois dos pastores
que guardavam o rebanho subiram à gruta e aí encontraram as jarras de barro onde estavam contidos alguns dos
mais preciosos manuscritos. Abertas as jarras, estas guardavam o «rolo de Isaías», o «comentário (Pesher) de
Habacuc», o «manual de disciplina ou regra da comunidade». Trata-se de alguns dos mais significativos e melhor
conservados manuscritos que chegaram até nós e que constituem preciosos instrumentos para o estudo da vida da
comunidade e para a crítica do texto bíblico.

3.1. Quem são os essénios?


Como nos refere Flávio Josefo, os essénios são um dos quatro grupos ou movimentos que compunham o
judaísmo do seu tempo e que ele chama de «Filosofias»113 115. Quanta ao significado do nome, diversas hipóteses
têm sido levantadas, embora continue ainda um pouco envolto em mistério. De facto, este nome é-lhes atribuído
pelos de fora, pois os membros da seita jamais se servem dele para se autodefinirem. O nome que atribuem a si
mesmos é o de «Filhos da Luz». Também, nunca se apresentam como sendo um grupo ou movimento que se opõe
ao judaísmo oficial; pelo contrário, eles têm consciência de serem o verdadeiro Israel de Deus, os únicos que estão
prontos para a vinda messiânica. Encontramos também as designações de «Puros», «Santos» e «Piedosos» que
derivam da etimologia de «essénio». No entanto, não foi apresentada até hoje uma explicação clara para o nome.
Talvez a origem e a história do grupo explicite melhor o verdadeiro significado do movimento.
Como já referimos anteriormente, as origens dos essénios remontam à formação do movimento dos Hasidim,
por volta de 150 a. C., quando uma parte do grupo se separa por causa de Jonathan se ter apossado do sacerdócio.

112
Existe hoje uma abundante literatura sobre Qumrãn, tanto no que diz respeito aos manuscritos e ao seu conteúdo como
no que se refere ao movimento dos essénios. Importa, no entanto, referir que os manuscritos continuam a ser objecto de
estudo e, dada a sua importância, julgamos que este estudo se prolongará por muito mais tempo, uma vez que o seu contributo
para o conhecimento do texto bíblico e do mundo cultural do judaísmo da época é muito importante, cf. Le Monde de la Bible,
nº 4: Qumrãn, trente ans après, Paris, 1978.
113
As outras seriam: os fariseus, os saduceus e os zelotas. As referências de Flávio Josefo encontram-se em: BJ 2,119-161; AJ
18,18-22; Autobiografia (apêndice à 2ª edição de AJ, pelo ano 100) 7-12.
39
Este episódio explica, em grande parte, urn dos temas que vamos encontrar com mais frequência nos escritos do
grupo: as lutas entre o «Mestre de justiça» e o «sacerdote ímpio». Podemos dizer que ele perpassa quase todos os
textos que nos falam da vida da comunidade114. Este grupo refugia-se então em Kirbeth Qumran, nas proximidades
do mar Morto, tendo fundado e habitado aí no primeiro cenóbio entre 135-104, altura em que devido ao afluxo de
candidatos foi necessário ampliar as instalações da comunidade. Pelo ano 31, devido a um possível tremor de terra,
as instalações foram abandonadas, tendo sido reconstruidas novamente entre os anos 4 a. C. e 6 d. C. e reocupadas
de novo.
Durante a 1.a guerra judaica (pelo ano 68), a décima legião romana ocupou a zona de Jericó e as tropas
auxiliares instalam-se em Qumran, o que motivou o abandono das instalações e a fuga dos essénios, tendo estes
previamente procedido ao esconderijo em grutas de alguns dos manuscritos que vieram a ser encontrados agora em
meados do séc. xx. Por volta de 135, os zelotas procederam a uma nova ocupação, durante a 2.a revolta, mas esta
foi muito curta, pois a derrota judaica apressou o fim da ocupação.
Como foi possível que estes manuscritos se tivessem conservado por tanto tempo? A razão é simples. A zona de
Qumran tem condições únicas para guardar estes materiais, uma vez que se trata de uma área muito seca, com
pouca pluviosidade, onde existem muitas grutas nas falésias calcárias nas quais foi possível guardar os manuscritos.
Além disso, tratando-se de uma zona agreste e inóspita, as condições de habitabilidade ou de cultivo são quase
nulas, o que justifica o abandono total da localidade, salvo a permanência de um ou outro eremita mais dedicado à
contemplação ou propenso à mortificação corporal.

3.2. Fontes históricas sobre os essénios


As principais informações históricas que chegaram até nás sobre os essénios provêm de três autores antigos. São
eles: Plínio, o Velho (morreu em 79 d. C.), Filão de Alexandria (cerca de 30 a. C. até aproximadamente 40 d. C.) e
Flávio Josefo (2.a metado do séc. I).
Quanto a Plínio115, as informações são esrassas, mas muito significativas. Ele explica o nome de essénios pelo
grego hostoi (os santos ou puros). Vejamos a descrição que Plinio nos deixou:
«Do lado ocidental do mar Morto, mas a uma distância onde nada há a temer devido ãs exalações, vivem os
essénios, gente solitária, muito mais estranha que os demais, sem mulheres, sem amor, sem dinheiro, tendo apenas
as palmeiras por companhia. Esta comunidade renova-se cada dia graças à chegada de novos elementos; é
alimentada em abundância por aqueles que, cansados de viver, são levados pelo flutuar da sorte a adoptar este
modo de vida... a penitência deles é tão fecunda que outros vêm ali reparar a vida cansada.»
Como vemos, este autor fala-nos dos qumranitas como sendo uma seita ou um grupo de «monges» que vivem
um estilo de vida em tudo singular, mostrando-nos também que a comunidade exercia grande influência e atracção.
Quanto a Filão de Alexandria, as suas informações sobre os essénios chegaram até nós através de duas das suas
obras: Apologia pro Judaeis116 e Quod omnis probus liber sit, 75-91. Afirma este autor que os essénios se distinguiam
pela sua dedicação a Deus, vivendo em comunidade onde só eram admitidas pessoas já maduras. Dedicavam-se ao
estudo da Lei, à prática das boas obras e à estrita guarda do sábado. Segundo Filão, haveria cerca de 4000 na
Palestina. Embora vivendo em Alexandria, Filão é contemporâneo do movimento e parece ter mantido fortes
contactos com o grupo, pelo que as suas informações são preciosas.
No que diz respeito a Flávio Josefo117, ele apresenta-nos os essénios como sendo um grupo de pessoas que
viviam em comunidades, guardavam rigorosamente o sábado e que não era composto apenas de homens maduros,
mas incluiria também crianças adoptadas e o casamento, em princípio, não parece que fosse rejeitado. Quando
viajavam, para se defenderem dos inimigos e dos bandidos, faziam-no armados. Não ofereciam sacrifícios no
Templo, mas apenas entre eles. Acreditavam na imortalidade do espírito, viviam em diversas cidades e tinham
grande veneração por Moisés, o legislador.

114
Jonathan ocupou o posto de sumo sacerdote entre 159-152 e foi morto por Trifão (general selêucida) em 143 conforme
os dados dos livros dos Macabeus (1 Mac 12,48). Os textos de 1 QpHab 9,9-12 e 4 QpPs 37, 1.18-19 aludem a estas disputas
entre o «Mestre de justiça» e o «sacerdote ímpio».
115
Historia Naturalis, V, 17,4.
116
Este escrito é citado por Eusébio de Cesareia na sua obra Praeparatio Evangelica, VIII, 11.
117
As informações bastante detalhadas que Flávio nos oferece acerca do movimento levou alguns autores a pensar que ele
teria sido membro da seita ou, pelo menos, teria permanecido algum tempo entre eles.
40
Como se pode constatar, há um grande desacordo entre alguns dos dados referidos por Flávio Josefo e aqueles
que nos transmite Filão, talvez devido ao facto de também existirem essénios em Alexandria que poderiam ter aí
formas de vida diferentes daquelas que Flávio conhece da Palestina e que ele incorpora no conjunto dos
movimentos judaicos do seu tempo. Esse mesmo desacordo pode também ser constatado em relação a outras
fontes judaicas.

3.3. A comunidade de Qumrãn e a sua história


Os acontecimentos que estão na origem da comunidade de Qumran, tal como já acima aludimos, têm a ver com
a nomeação de Jonathan, irmão e sucessor de Judas macabeu, para sumo sacerdote. Isto aconteceu após o cargo ter
sido ocupado por três sumos sacerdotes helenistas (Jasão — nome helenista de Jesus, Menelau e Alcimo), nomeados
pelos imperadores selêucidas Antíoco IV e Demétrio IV118. Estas nomeações foram consideradas pelos judeus como
uma violação do direito sacerdotal e um atentado ao seu estatuto político que remontava ao período persa e que
jamais alguém pusera em questão 121 E para fazer frente a estes crimes que um grupo dos Hasidim, guiado pelo
«Mestre de justiça» (Moreh Sedeq), se retira para o deserto da Judeia. A situação agrava-se quando Jonathan 122 é
declarado ou se apossa do sumo sacerdócio. Embora ele tenha sido morto em 143-142 por ordem de Trifão 123,
nem por isso a situação se alterou, pois seu irmão Simão manteve o mesmo estatuto.
121 1 Mac 1,41-63.
122 Deve ser a Jonathan que se refere a designação de «sacerdote ímpio» dos textos de Qumrãn.
123 As referências a estes acontecimentos são abundantes: 1 Mac 12,48; 13,23; 1QpHab 9,9-12; 4 QpSI 37,1.18-
20.
Nesta altura, os partos invadiram Babilónia (141-140) e muitos dos judeus que ali viviam refugiaram-se na
Palestina. Perto de Damasco, alguns destes refugiados juntaram-se ao grupo dos Hasidim (partidários do «Mestre de
justiça») e deram origem ao movimento essénio. Uma parte destes instala-se em Qumrãn, juntando-se
provavelmente a um outro grupo que já antes, por volta de 140, altura em que Simão macabeu se tinha apossado do
sacerdócio, aí se tinha refugiado. Uma parte desse primeiro grupo seria de sacerdotes do Templo que se instalam
sobre as ruinas da «cidade do sol» (Jos 15,62), junto ao mar Morto.
O grande desenvolvimento da comunidade de Qumrãn aconteceu durante o reinado de João Hircano (134-104),
devido à polftica «mus-culada» deste rei, supondo-se que foi já na parte final do reinado deste monarca que terá
morrido o «Mestre de justiça». Alexandre Janeu, seu sucessor (103-76), continuou a sua luta impiedosa contra os
fariseus, o que terá contribuído para uma nova etapa de desenvolvimento do grupo como um foco de resistência ao
poder da realeza asmoneia.
Quando em 64 Pompeu entrou na Palestina e conquista Jerusalém, Qumrãn é já uma grande comunidade que se
gere por princípios próprios e que se tinha separado do judaísmo oficial do Templo. No entanto, os documentos
encontrados referem-se largamente à presença hostil dos romanos que aí são chamados de «Kittim». Tal como
acima referimos, e talvez devido a um tremor de terra, os essénios abandonam Qumran ao tempo de Herodes,
tendo regressado apenas já durante o mandato de Arguelau (entre 4 a. C. e 6 d. C.).
Os qumranitas consideravam-se coma a autêntica «comunidade da aliança» (Yahad há-berit: 1 Q S 5,5),
constituindo assim o verdadeiro Israel, ou seja, o «resto fiel» do povo eleito. Nos manuscritos existe uma pluralidade
de expressões para traduzir essa consciência de serem o «Israel querido por Deus». Mais do que comunidade, Yahad
quer dizer comunhão e isso significa que essa condição é reservada a poucos, só a alguns que eram seleccionados
por um rigoroso sistema de admissão à comunidade, uma espécie de «noviciado» que era imposto a todos os
candidatos antes de serem admitidos. Por isso, a comunidade qualifica-se a si mesma como «santa — Yahad godesh
(1 Q S 9,2)», comunidade «fiel e pobre — Yahad emet wanawat (1 Q S 2,24)», comunidade de Deus — Yahad E1(1 Q
S 1,12; 2,22) e ainda como «comunidade eterna — Yahad ólam».
Embora esta consciência de serem uma comunidade eleita e escolhida fosse muito forte, os qumranitas
estabeleciam uma distinção dentro do próprio movimento. Assim, por um lado, existia uma comunidade restrita,
muito selectiva, uma espécie de comunidade original de eleitos que era designada exactamente pelo termo Yahad
Por outro, há uma comunidade mais ampla, destinada a abarcar todos os verdadeiros israelitas num futuro
118
2 Mac 4 descreve-nos uma série de acções levadas a cabo em Jerusalém e na Judeia por estes sumos sacerdotes para
forçarem a helenização e assim obterem as boas graças do imperador. Entre essas façanhas destaca-se o assassinato de Onias
(por volta do ano 170 a. C.) e a perseguição movida ao seu filho Onias IV que se refugia no Egipto e aí funda o Templo de
Leontópolis.
41
escatológico que já se realiza, em parte, na comunidade de Qumrãn e que é designada por edah. Esta comunidade
universal (`edah) era depois dividida em comunidades menores, dispersas um pouco por toda a parte. Por exemplo,
a comunidade de Damasco seria um exemplo dessa comunidade mais universal a que podiam aderir todos os
verdadeiros israelitas. Também era uma comunidade rigorosa e profundamente ascética e entre as suas normas
destaca-se aquela que proibia a poligamia. No Egipto, próximo de Alexandria, existia outra comunidade de essénios
que aqui tinha o nome de «Terapeutas», uma espécie de mosteiro duplo, masculino e feminino, mas separados e
onde se praticava o celibato, tal como na Palestina, conforme tudo leva a crer. Estas comunidades menores, que
poderíamos apelidar de «filiais» eram visitadas por «episcopus», no que pode ter havido uma certa semelhança com
as primitivas comunidades cristãs.
Em relação ao judaísmo oficial do tempo, podemos dizer que Qumrãn é uma comunidade cismática, separada,
que não aceita o sacerdócio oficial de Jerusalém, nem compartilha com os demais grupos da sociedade judaica de
então: fariseus, saduceus ou escribas. Além disso, também não aceitavam a substituição do calendário solar pelo
lunar que Jonathan tinha imposto 124
Portanto, para pertencer a esta comunidade não bastava ser israelita por nascimento; era necessário ser «eleito
de Deus», chamado por Ele a esta comunidade de salvação. Por isso, os qumranitas julgavam-se como sendo os
detentores exclusivos da verdadeira revelação, os autênticos continuadores e fiéis depositários da revelação
comunicada aos Patriarcas e aos Profetas. Eles são a comunidade da «nova aliança», da «aliança definitiva», os
«filhos da luz» aos quais era comunicada uma revelação secreta, cheia de mistérios
124 Ë interessante constatar como muitos grupos apocalípticos seguiam também o calendário solar e não o
lunar que era o oficial do Templo. O Livro dos Jubileus é um daqueles que segue o calendário solar.
que, em grande parte, se referiam à história e que só eles sabiam interpretar e desvendar. Tratava-se, por isso,
de uma comunidade escatológica.
Tal como já antes referimos, na literatura de Qumrãn há muitos indícios de tipo apocalíptico. Por exemplo,
admite-se a predestinação para o bem e para o mal e que Deus escreve, antecipadamente, a história do mundo e
dos homens. Assim, os essénios eram predestinados para a comunidade dos «filhos da luz» e isso constituía uma
eleição gratuita que Deus realizava por sua iniciativa. Por outro lado, a comunidade tinha-se separado do templo de
Jerusalém e do culto que ai era praticado. Não era necessário o templo material, mas apenas o espiritual. Os
próprios textos fazem apelo apenas aos sacrifícios espirituais e não aos rituais. Era através deles que se expiavam os
pecados da comunidade. Segundo Filão, este culto espiritual tinha um horizonte universal, abarcando e beneficiando
todos os homens.
Podemos, por isso, afirmar que a comunidade de Qumrãn era uma «koinonia» ou comunhão de irmãos. Mas era
também uma comunidade muito dualista e sectária (filhos da luz e filhos das trevas), já que os seus membros tinham
um ódio profundo e um desprezo total por todos aqueles que não faziam parte do movimento. Este ódio era quase
um «mandamento» (1 Q S 9,16), ódio que devia ser proporcional à impiedade dos não aderentes aos ideais da
comunidade (1 Q S 1,9-11). Ao ingressar na comunidade, os aderentes juravam amar o que Deus escolheu e odiar o
que Ele despreza (1 Q S 1,3-4). Ora, os escolhidos de Deus são os membros da comunidade da «Nova Aliança», pelo
que eles são responsáveis uns pelos outros e uma das manifestações dessa responsabilidade mútua é a correcção
fraterna que se realiza sempre com humildade, verdade e amor leal. Esta comunidade tem consciência de viver os
últimos tempos, de pertencer à geração última, aos 40 anos que restam para a chegada plena do fim e ao triunfo dos
filhos da luz sobre os filhos das trevas. A estada da comunidade em Qumrãn, no deserto, era apenas a preparação
para esse fim iminente, para a chegada do Messias que era aguardado a todo o momenta.

3.4. Alguns princípios da hermenêutica de Qumrãn


Os qumranitas praticavam uma hermenêutica de tipo apocalíptico, baseada no dualismo entre «filhos da luz» e
«filhos das trevas», em que os primeiros eram os predestinados de Yahwé para a salvação e os outros para a
condenação eterna. Este dualismo percorre todos os escritos e encontra a sua melhor expressão nos textos em que
o «Mestre de justiça» se lamenta da perseguição e do sofrimento que lhe causa o «sacerdote ímpio». Não se trata
de um dualismo metafisico, mas sim de um dualismo de ordem moral. Partindo dai, todos aqueles que não fazem
parte da comunidade são ímpias que devem sofrer a condenação eterna, enquanto eles são os eleitos dos últimos
dias.
Uma outra perspectiva que os seus escritos deixam transparecer de forma bem clara é a oposição ao judaísmo
oficial, quer se trate dos fariseus ou dos saduceus. A oposição é constante e reflecte-se de forma mais evidente no

42
que diz respeito ao culto que, segundo eles, está profanado e é inválido e ilegítimo. Já aludimos a isso quando nos
referimos à doutrina sobre os sacrifícios.
Um aspecto muito interessante e que aproxima este movimento dos grupos apocalípticos diz respeito à leitura
que os qumranitas fazem da história. Esta é sempre lida a partir da vida da comunidade e é a comunidade que
detém o segredo da sua interpretação. A divisão da história em ciclos, com um fim iminente, tal como sucede com o
Livro dos Jubileus, encontra aqui um espaço muito propício. Por isso, a comunidade aplica o juízo escatológico a
todos aqueles que não aderem à seita e, consequentemente, o castigo punitivo, pois não seguem os princípios dos
«filhos da luz». Neste aspecto, o movimento não se diferencia de outras tendências apocalípticas do judaísmo
intertestamentário, deixando-o bem claro nos seus escritos. Para tal, recorre a uma leitura aplicada da Bíblia,
tentando explicar a vida da comunidade como uma concretização da Escritura. À semelhança de outros grupos, os
essénios vivem como sendo eles os concretizadores da palavra de Deus e aqueles que realizam plenamente as
profecias. A comunidade dos «filhos da luz» realiza a plenitude da revelação.
Esta tensão apocalíptica traduz-se também nos escritos de Qumrãn por uma forte expectativa messiânica que
aguarda, como iminente, a vinda do Messias. Isso está bem presente nos escritos do «Mestre de justiça», alguns dos
quais deixam quase entender que ele terá idealizado a sua missão em perspectivas messiânicas. Há por isso uma
relação muito estreita entre a vida da comunidade e a vinda do Messias.
Também a angeologia ocupa um lugar central na vida da comunidade e na teologia do movimento. A revelação
do nome dos anjos fazia parte dos segredos da comunidade (1 QM 9,15-16)

3.5. Os manuscritos de Qumrán


No seu conjunto, as grutas de Qumrãn e do deserto da Judeia legaram-nos uma enorme quantidade de
documentos essénios, uns mais significativos, outros de menor importância 125. Temos textos bíblicos ou
comentários a textos bíblicos e textos não bíblicos, abordando temas ligados à vida da comunidade como sejam as
regras de vida dos membros do grupo. Ao todo, foram encontrados manuscritos em 11 grutas, num total de 173
manuscritos de livros do cânon hebraico, faltando apenas testemunhos do livro de Ester 126. Para além disso, há
ainda fragmentos de diversos outros livros, como sejam targums aramaicos de Lv e Job, textos dos LXX do Ex, Lv e
Nm e ainda pequenos vestígios do Ben Sirá em hebraico e do original aramaico de Tobias.

a) Manuscritos bíblicos
O mais célebre de todos os manuscritos bíblicos encontrados em Qumrãn é o rolo de Isaías (1 Q Isa) I27.
Também nessa mesma gruta foi encontrado um segundo manuscrito de Isaías, mas este incompleto (1 Q Isb). Em
relação a Isa, trata-se de um rolo de 7,34 m, contendo 54 colunas, bem conservado e datável de 125-100 a. C. Apesar
das inúmeras variantes que apresenta em relação ao texto massorético (TM), elas não alteram em substância o texto
e, por vezes, estão mais próximas da tradução grega dos LXX e da tradução sirfaca da Peshitta do que do próprio
texto massorético. Isto mostra que muitas das variantes de Qumrãn eram conhecidas pelos LXX e pelo texto do
Pentateuco samaritano, podendo inclusive ter por base versões diferentes do texto hebraico original.
Significativo é também o manuscrito dos Salmos (11 Q Psa), parcialmente conservado e muito próximo do texto
massorético que chegou até nós. Temos também um manuscrito do Eclesiástico, encontrado em
125 Se tivermos em conta os pequenos fragmentos, o total de documentos pode rondar os 15 mil, embora uma
parte significativa seja constituida por pequenos fragmentos, muitos deles ainda não estudados e de difícil contextua
ização.
12G Esta auséncia de vestigios do livro de Ester deve ser motivada pelo facto dos qumranitas se oporem ao
casamento entre judeus e estrangeiros, o que no fundo é o tema do livro de Ester. Esta oposição constitui um dos
tópicos que mais evidenciam o dualismo dos essénios.
127 Trata-se do manuscrito completo encontrado na 1.a gruta de Qumrãn.
Massada; trata-se de um texto precioso, uma vez que até este achado não era conhecido qualquer texto original
hebraico deste livro, mas apenas das suas versões em grego. Temos igualmente inúmeros fragmentos menores de
todos os livros em hebraico ou em aramaico do AT 128. E de salientar também o manuscrito do Targum de Job
(11QTg Job).

b) Manuscritos nã o-bíblicos

43
Trata-se, na sua maioria, de comentários de tipo midráshico aos livros do AT, de regulamentos jurídicos acerca
da vida da comunidade, de meditações poéticas e composições de carácter litúrgico e autobiográfico como sejam os
Hódayot (hinos). Foram também encontrados em Qumran uma série de fragmentos de livros apócrifos,
designadamente do livro em ara-maico de Henoc, do livro hebraico dos Jubileus, do apócrifo dos Génesis do
Testamento de Levi e do Testamento de Nefetali, da Oração de Nabónide e ainda textos referentes a Melchisedek e
às Visões de Amram 129,
Quanto a comentários bíblicos, temos diversos textos que seguem um método muito singular a que os autores
dão o nome de Pesher (no plural Pesharim). Trata-se de comentar determinado livro, fazendo a sua aplicação à
situação presente da comunidade, facultando-nos assim muitos dados de carácter histórico e de interesse para o
conhecimento do grupo. Temos: Pesher de Habacuc (1 QpHab); Pesher de Nahum (4 QpNah); Pesher do Salmo 37 (4
QpSI 37).
O termo Pesher deriva do aramaico — e significa «explicar, interpretar». Encontramos já o termo em Dn 2,4; 4,4;
5,16, em que o vidente deve explicar o sonho ao rei. Trata-se de uma explicação-interpretação em que apenas o
vidente conhece o mistério contido no texto. O mesmo sucede aqui: os qumranitas conhecem o segredo dos textos e
fazem a sua interpretação de uma forma directa, aplicando-os à comunidade.
Em relação a textos de carácter jurídico, provenientes da comunidade, estes dizem respeito à organização do
grupo, determinando o modus
128 Incluem-se neste grupo também fragmentos do livro de Tobias, em aramaico. Quanto aos demais apenas
faltam vestígios do livro de Ester (pelas razões já acima referidas, nota 117) e do 1.° livro dos Macabeus por causa da
oposição dos essénios à dinastia asmoneia em virtude desta se ter apossado do sacerdócio.
129 Estes textos são também mencionados por Origens numa das suas homilias (a 35.a) sobre o evangelho de S.
Lucas.
vivendi dos seus membros. Destes se destacam: o Documento de Damasco (que era já conhecido desde a Idade
Média e dos achados da Genizá do Cairo e que agora pode ser comparado com os manuscritos aqui encontrados), a
Regra da Comunidade e a Regra da Guerra. Podemos dizer que são os três grandes códigos dos essénios e da
organização social de Qumrãn. É através destes escritos que hoje podemos dizer que se conhece uma boa parte da
estrutura orgânica do movimento essénio.
Quanto ao Código de Damasco (CD), eram já conhecidos dois manuscritos provenientes da Genizá do Cairo e que
agora foram igualmente encontrados em Qumrãn, nas grutas 4, 5 e 6, num total de 13 fragmentos do mesmo texto.
Compreende uma parte mais exortativa e um conjunto de leis. A primeira retoma «os temas proféticos da impiedade
de Israel, do castigo, da misericórdia de Deus e da salvação concedida ao resto» 130. Trata-se de um texto muito
importante para a compreensão da história do movimento. Seguindo a análise de E Manns 131, vejamos duas
passagens do documento:
— CD 1,7 — Faz referência a um periodo de 390 anos depois de Nabucodonosor, após o qual Deus fez brotar a
raiz de uma planta para Israel e Aarão. Trata-se aqui de uma releitura de Ez 4,5, em que o número de dias é
substituído por anos. Segundo o Midrash Seder Olam Rabba, R. José contava 387 anos desde o exílio de Babilónia até
à tomada do poder por Herodes, o Grande. A raiz da planta composta de sacerdotes e leigos que aí é referida seria,
portanto, o grupo dos Hasidim132.
— CD 1,11 — Situa o início do ministério do «Mestre de justiça» 20 anos após a aparição da raiz de uma planta,
20 anos durante os quais o grupo andou errante como cegos e como pessoas que procuram, às apalpadelas, o seu
caminho 133. Este perfodo faz alusão às convulsões provocadas desde 175, aquando da sucessão dos sacerdotes
Jasão, Menelau e Alcimo, até 152, altura em que Alexandre Balas constituiu Jonathan sumo sacerdote da nação (1
Mac 10,20-21). Uma outra referência cronológica encontra-se em CD 20,13-15.
'3° Cf. F. MANNs, Le Judaisme, 178.
131 Ibident.
132 1 Mac 2,42 e 7,13-17.
133 As alusões ao «Mestre de justiça» são uma constante nos textos de Qumrãn. Algumas das mais
significativas: 1 QpHab 8,3-13; 11,2-8; 1 QH 2,7-19; 7,6-25 (HBd4yot— Hinos).
Podemos sintetizar a doutrina do CD em três grandes pontos: o tema bíblico do «resto» (CD 1,4; 19,10-13), o
tema da «nova aliança» (CD 6,19-8,21; 19,33) e o do «messias de Aarão e de Israel» (CD 12,33; 19,10; 20,1).
44
Em relação à Regra da Comunidade (1 QS), foram encontrados diversos manuscritos; na gruta n.° 1 (1Q) foi
descoberto um manuscrito com 11 colunas e, mais tarde, identificados mais 10 manuscritos fragmentários,
enquanto em 5Q foi encontrado mais um outro manuscrito. No seu conjunto, o conteúdo destes textos diz respeito,
essencialmente, à vida da comunidade (1,1-15), à admissão de candidatos (1,6-3,12), à organização interna (5,1-7,25
e 8,1-9,11) e à formação dos novos membros (9,12-11,22) 134. Aí é feita alusão a uma série de personagens que
exerciam importantes funções na vida da comunidade, das quais se destacam:
— O Maskil (3,13; 9,12.21) que é apresentado como sendo o «mestre de sabedoria» e o instrutor dos membros
da comunidade. A ele competia escolher os candidatos e fazê-los progredir na sabedoria, como filhos da luz (3,13-
15)135.
— O Pakid (6,14-15) é o chefe dos rabbim (do grupo). Ele deve proceder ao exame dos candidatos que devem
provar por obras e por sabedoria a sua admissão. A aceitação definitiva, todavia, dependerá sempre da comunidade
(6,16-18).
— O Mebaqqer (6,12; 9,20) é um leigo que examina os candidatos. Em 1 QS 6,3 supõe-se que existam grupos de
leigos que têm como chefe um sacerdote. Estas funções de Pakid e Mebaqqer não aparecem explícitas nos textos
mais antigos. No caso do Mebaqqer tratar-se-ia de um escriba que deve ensinar o «sentido exacto da Lei» (CD 13,7)
e é diante dele que devem reconhecer as faltas cometidas (CD 9,18). Trata-se de alguém que é tido como um pai
espiritual da comunidade e que toma o cuidado dos seus filhos como um pai (CD 13,9).
134 Esta estrutura apresentada por P. GUILBERT, La règle de la communauté, Paris, 1961, foi contestada e posta
em causa por outros estudiosos de Qumrãn, especialmente por MURPHY O'COIVNOR, «La genèse de la règle de la
communauts, RB 76 (1969), 547-549, e J. POUILLY, La règle de la communauté de Qumran. Son évolution littéraire,
Paris, 1976.
435 Função idêntica é atribuida aos Hasidim no livro de Daniel (12,2-3), usando para al o mesmo termo:
Maskilâm.
No que se refere à Regra da Guerra (1 QM), trata-se da «guerra dos Filhos da Luz» que deve ser movida contra
os «Filhos das Trevas», numa espécie de combate escatológico. O objectivo deste combate é apressar o fim dos
tempos e a vinda do Messias. O exército dos «Filhos das Trevas» é chefiado por Belial e comporta Edom, Moab,
Ammon, os Kittim e todos aqueles que violam a aliança. Do lado dos «Filhos da Luz» estão os filhos de Levi, de Judá e
de Benjamim, assistidos pelos anjos. O tempo do combate será de seis anos, pois ao sétimo será o triunfo definitivo
de Yahwé. Ë um dos textos que melhor traduz o carácter dualista e apocalíptico do movimento essénio.

c) Os «Hô dayot» (Hinos)


Os Hinos constituem também um dos achados mais significativos de Qumrãn, tanto pela doutrina como pela
forma literária que apresentam. Sukenik publicou 18 colunas num total de 66 fragmentos de hinos que provêm da
gruta n.° 1 (1 QH) 136. Trata-se de um conjunto de composições poéticas de grande beleza. O seu autor é,
certamente, um poeta de talento, sendo apontado como tal o «Mestre de justiça». Estes textos recordam os Salmos
e alguns textos proféticos, revestindo um certo sentido de «lamentação». O autor fala das suas provas pessoais, das
perseguições e injustiças de que se sente vítima e das dificuldades que teve de superar para levar a cabo a sua
missão.
Discute-se sobre qual seria a finalidade dos Hinos. Alguns autores pensam que se destinavam ao culto, tal como
o deixa entender Filão no De Vita Contemplativa, 65. Sabemos também que o estudo da Lei e o culto eram uma das
principais ocupações dos membros da comunidade. Em 1 QS 6,6-8 diz-se que os essénios passavam um terço da
noite a estudar a Lei, a comentá-la e a louvar a Deus.
Em relação a outras composições de carácter litúrgico, temos diversos manuscritos de colecções de bênçãos (1
QSb), a Regra dos Cânticos para o Holocausto de Sábado e o Rótulo do Templo (1 QTemplo), onde se faz uma
pormenorizada descrição do culto sacrificial, das normas a seguir e das festas (sendo mencionadas 4 festas, a saber:
das premissas, do Pentecostes, do vinho novo e a festa do óleo). Faz-se também aí uma descrição do Templo
136 E. SUKENIK, Ot.ear hk megllot hágenuzot, Jerusalém, 1954.
e do calendário litúrgico que se devia seguir. Segundo Y. Yadin, o Rótulo do Templo deve remontar ao período de
Hircano 137.
Como podemos verificar, Qumrãn é uma autêntica «biblioteca», não apenas pela quantidade de manuscritos
que nos legou, mas fundamentalmente pelo que estes textos significam. Para além da história e da teologia de um
45
dos movimentos judaicos mais enigmáticos e talvez um dos mais representativos no que diz respeito ao mundo em
que Jesus se situa, estes textos ajudam-nos a fazer luz igualmente sobre uma das épocas mais conturbadas do
próprio judaísmo: o último século do AT. Para além disso, os manuscritos são um dos mais preciosos instrumentos
de que hoje dispomos em ordem à critica textual e à exegese dos textos bfblicos. Isso justifica em parte o grande
entusiasmo com que estes manuscritos foram acolhidos pelos exegetas e por todos quantos se interessam pelo
judaísmo intertesta-mentário. Pena é que o estudo de muitas destas obras ainda não tenha sido publicado para que
todos possamos beneficiar do precioso conteúdo.
137Y. YADIN, The Temple Scroll The Hidden Law of the Dead Sea Seca London, 1985, 138-140.

46
III - A LITURGIA JUDAICA
Uma das melhores fontes de que dispomos para o estudo e compreensão do judaísmo é, sem sombra de
dúvidas, o culto e a liturgia com suas festas, ritos e textos literários que lhes serviam de suporte e eram usados nos
momentos de oração. Muitos destes textos foram recolhidos nas fontes rabínicas que conhecemos. Outros
chegaram até nós de forma indirecta: através de manuscritos dos grupos apocalípticos e das «seitas» judaicas ou
então nas versões bíblicas da altura, como sejam os Targums e os Midrashs. Trata-se de um manancial de
informação e que nos permite conhecer hoje a liturgia do tempo de Jesus e o seu impacto na vida do povo.

1. As festas e a liturgia judaica


A liturgia judaica do período intertestamentário constitui uma das expressões que melhor traduz a riqueza e a
pluralidade do judaísmo de então. Tanto as festas em si, com seus rituais, como a literatura que lhes está associada
são um dos melhores testemunhos do pluralismo cultural e da vivência que os diversos grupos e movimentos desta
época nos legaram. Os textos bíblicos que chegaram até nós não nos transmitem muitas informações sobre esta
liturgia119, dispondo nós hoje, no entanto, dos textos extrabíblicos que são as verdadeiras fontes onde podemos
recolher elementos para a compreensão desta liturgia. Conhecer as tradições das festas do calendário litúrgico
judaico, o seu significado, os seus ritos e a sua teologia é, certamente, um contributo precioso para a compreensão
da espiritualidade judaica, da sua diversidade cultural e também dos próprios textos neotestamentários e da
teologia que está na génese da sua composição.
Apesar desta ausência de dados, podemos encontrar nos textos do NT diversas alusões à liturgia do Templo de
Jerusalém, em especial no evangelho de S. João que recorre constantemente às festas do calendário judaico para
situar os principais temas da mensagem de Jesus e também na carta aos Hebreus onde se faz uma releitura teológica
de toda a liturgia judaica à luz do Seu mistério pascal, mostrando como essa liturgia não era mais do que uma
«figura» e uma antecipação do verdadeiro culto que em Cristo devemos prestar a Deus120.
Para além destes indícios, os escritos mais significativos sobre a liturgia judaica deste período chegaram até nós
através das fontes rabínicas, tais como a Mishná, os Tragumim, os Midrashs e textos de tipo apocalíptico. Temos
também os escritos samaritanos e os manuscritos de Qumran, especialmente o Rótulo do Templo, onde se descreve
em pormenor a liturgia do movimento essénio do mar Morto.
Como já antes referimos, a grande questão desta literatura, exceptuando o caso singular dos manuscritos de
Qumrãn, diz respeito à datação das tradições que são transmitidas, o que constitui uma condicionante muito
significativa para as conclusões que possamos ter desses escritos. Em muitos deles, há uma grande distância no
tempo entre as tradições que aí são narradas e a sua redacção definitiva, o que constitui também um óbice no
confronto com os elementos que o NT nos oferece, mesmo quando estes possam ser datados com bastante
precisão. Para além disso, as instituições litúrgicas do judaísmo, à semelhança do que sucede com outras religiões,
resultam de uma evolução lenta e conservadora que, por vezes, se prolonga por séculos, condicionadas pelos
próprios acontecimentos históricos do tempo.
No que diz respeito à liturgia judaica, podemos dizer que o período intertestamentário foi uma época difícil, de
contornos muito ambíguos devido à presença do helenismo, marcada por invasões constantes e por duas guerras
contra Roma (em 70, com a destruição do Templo e em 132-135, com a derrota de Bar Kokba e a transformação de
Jerusalém numa cidade romana, Aelia Capitolina). Como consequência temos a abolição da liturgia oficial do Templo
e o incremento da oração e da instrução sinagogal. Esta, por sua vez, deixou marcas profundas, já que impôs, na

119
A razão desta ausência de dados sobre a liturgia tem a ver com o facto dos textos do AT serem anteriores a este período
e os do NT, apesar de aludirem ás festas, pouco ou nada nos dizerem sobre elas, uma vez que, tal como nos diz a carta aos
Hebreus, Cristo aboliu o culto judaico. Ele era de facto o verdadeiro sacerdote, o novo cordeiro (Hb 8) e o Seu corpo ressuscitado
o verdadeiro Templo e santuário da nova aliança e de comunhão com Deus. Com a destruição do Templo em 70, essa ausência
mais se justifica, já que a partir dessa data o culta do Templo tinha sido abolido.
120
No evangelho de João, as festas judaicas marcam o ritmo da sua própria revelação: 2,13; 6,4; 11,55 (temos três alusões à
Páscoa dos judeus enquanto instituição oficial à qual é contraposta a nova Páscoa que é a Sua passagem: 13,1; 18,28; 19,14); em
7,2 (a festa dasTendas que era a celebração messiânica por excelência dentro da tradição judaica); em 5,1 fala-se de festa sem
se explicitar de qual se trata, embora o facto de se fazer referência à água possa ser um indicio de que seria a festa do
Pentecostes (ou das Semanas), uma vez que a água é simbolo do Espirito e da Torah; 10,22 é a festa da dedicação do Templo,
mais conhecida como a festa de Hanukkah, festa da luz (1 Mac 4,36s).
47
sequência das decisões de Yabné, um judaísmo de matriz farisaica segundo a «escola de Hillel». Assistimos, então,
progressivamente ao fim do judaísmo pluralista que conhecemos do período anterior à destruição do Templo.
É neste cenário e em função destes condicionalismos que temos de abordar a questão da liturgia judaica e das
festas, sabendo que muitas das tradições que até nós chegaram estão condicionadas pelas vicissitudes históricas
deste período121.

a) O calendá rio litú rgico


Ao contrário do que sucede na nossa cultura contemporânea, o homem bíblico está muito condicionado pelos
ciclos da natureza e do tempo. As marcas de uma cultura agrária que tem a sua expressão máxima na transumância
e na dependência do ciclo das estações, mormente no que concerne à chuva que é o bem essencial para o cultivo
das terras, exprimem-se e fazem-se repercutir nas convicções culturais e nas celebrações religiosas. A semelhança do
que sucede com os demais povos do Médio Oriente, a vida quotidiana dos israelitas está dependente e sempre
condicionada pelo ritmo sazonal que é vivido e celebrado em determinados momentos de uma forma mais intensiva.
Podemos dizer que as festas são expressão dessa intensidade vivencial, rompendo o ciclo do tempo ordinário para
prolongar no homem a memória do passado. Essa memória retoma formas e repete-se no tempo de forma regular,
fixando-se através de um calendário. Trata-se do calendário litúrgico e celebrativo, fazendo memória do passado,
mas dando também consistência ao presente.
O calendário lunar é, sem dúvida, o mais usado em todos os povos e civilizações, designadamente na zona do
Médio Oriente. Nos primórdios de Israel, o ano começava no Outono, já que o tempo das colheitas encerrava o ciclo
da vida e dava início a um novo ritmo da vida (Ex 23,16; 34,22). Por isso, os nomes dos meses estavam muito ligados
aos produtos da terra122, donde resulta uma estreita relação entre as festas celebradas e as actividades agrícolas que
tinham lugar nesse período. Mais tarde, já com a monarquia, tomou-se como início do ano o período da Primavera
(o mês de Nisán), sendo os nomes designados de forma abstracta por primeiro mês, segundo mês... Porém, a partir
de domínio da Babilónia são introduzidos em Israel os nomes do calendário dos Caldeus para designar os meses 123. Já
no período helenista, com o domínio da cultura grega, é usual encontrarmos também nomes gregos para designar os
meses124.
Na Palestina do período intertestamentário, para além destas diversas designações, coexistiam dois calendários,
dependendo o seu uso dos diversos grupos judaicos e também das autoridades oficiais que regulamentavam o culto
festivo. Embora o calendário lunar, muitas vezes referido no AT (Lv 23,24; Am 8,5), seja o mais difundido e comum
no ordenamento da vida do povo, estava também em uso o calendário solar, um calendário sadoquita usado por
alguns grupos, tal como é possível comprovar através dos escritos de Qumrãn125.
Quanto ao judaísmo «ortodoxo» do início da nossa era, este seguia um calendário semilunar, dito oficial, em que
os meses eram determinados pelas lunações mas que, devido às festas agrícolas, tinha em conta o ritmo solar. Ora,
como a soma dos doze meses lunares (de 29 ou 30 dias) dava um total de 354 dias, tínhamos então que de dois em
dois ou em três anos tinha de ser inserido um mês suplementar. Para esta determinação tinha grande importância a
decisão do Sinédrio que fixava também as datas das festas, bem como o seu termo, no caso de dúvida. Dada a
importância que era conferida à Lua no mundo semita do Médio Oriente, as festas bíblicas eram celebradas na lua
nova (neoménia) ou nos períodos de lua cheia, estando o ritmo da vida condicionado pelas próprias fases da lua.
A data da festa da Páscoa era aquela que criava sempre mais problemas, pois o cumprimento estrito do preceito
bíblico (a noite de 14 ou 15 de Nisãn) era um dos pressupostos fundamentais desta solenidade. Algumas das
questões que o evangelho de S. João nos coloca acerca da data da Páscoa de Jesus tem, certamente, a ver com a
interpretação do calendário que é seguido pelo autor do evangelho.
Quanto ao calendário solar propriamente dito, o seu uso era já conhecido mesmo antes das descobertas de
Qumrãn, uma vez que os livros de Henoc etiópico e o Livro dos Jubileus tinham já posto em questão o calendário
oficial. Estes livros seguiam um calendário de 364 dias, ou seja, de 52 semanas, com quatro trimestres e treze

121
A redacção das fontes rabínicas, tal como vimos antes, prolongou-se no tempo e conheceu diversas etapas, o que
dificulta muito qualquer distinção entre a origem das tradições e a sua redacção.
122
Temos o mês de Abib que significa «espiga», Nisãn «flor».
123
São estes names que acabam por se impor como sendo o calendário oficial que vigora até aos nossos dias. Eis as suas
designações: Tishri, Héshvan, Quisleu, Tevet, Shevat, Adar, Nisãn, Ijar, Sivan, Tammuz, Av, Elul. Quanto ao mês intercalar para
acerto de calendário chamava-se Adar Sheni (segundo Mar).
124
2 Mac 11,21.30.33.38; Tb 2,12.
125
S. TALMON, «Divergences in Calender-Reckoning in Ephraim and Judah», VT 8 (1958), 48-74.
48
semanas cada um. Desta forma, as festas eram celebradas, todos os anos, no mesmo dia da semana, já que havia um
número exacto de semanas.
Com a descoberta e a publicação do Manual de Disciplina de Qumrãn foi possível saber que o movimento
essénio seguia outro calendário litúrgico diferente daquele que era o oficial do Templo e que começava à 4ª feira, já
que tinha sido ao quarto dia que os astros foram criados. Por isso, se o tempo era contado tendo em referência os
astros, então o ritmo do tempo deve ter como ponto de referência o 4º dia126. Ora, para além das referências
retiradas do Rótulo do Templo, encontrado em Qumrãn, também nas descobertas feitas em Massada, em 1963-
1964, um dos achados mais significativos foi um rolo de cânticos litúrgicos que seguem o mesmo calendário e que
teria sido também seguido por Jesus, na ceia pascal, e pelas comunidades cristãs primitivas, tal como se pode
deduzir da Didaskalia dos Apóstolos.
Tendo presentes estes elementos, apesar de escassos, tudo aponta para a existência de mais do que um
calendário litúrgico em uso no judaísmo do período intertestamentário, embora o lunar fosse aquele que era
seguido no Templo, apesar dos ajustes e da intervenção do Sinédrio para dirimir e harmonizar as diferentes
perspectivas que se confrontavam no interior do judaísmo.

b) Os sacrifícios
Os sacrifícios constituem um dos pilares da liturgia judaica que, a par da leitura da Torah, são a melhor expressão
da comunhão e da aliança entre Yahwé e o Seu povo. A Escritura e os textos rabínicos desenvolveram um sistema
jurídico de grande precisão acerca dos sacrifícios a fim de evitar erros ou abusos que fizessem com que estes
perdessem a sua eficácia e o valor expiatório que muitos deles revestiam. A sua primeira função era a de obter a
misericórdia divina e restabelecer a relação de comunhão que muitas vezes era violada pelo povo. Por isso, podemos
dizer que a natureza do sistema litúrgico de Israel é, essencialmente, de tipo expiatório, à qual se junta, desde muito
cedo, a oração que consistia em invocações dirigidas a Deus (1 Sam 1,13s). Como refere Ben Chorin127, no Templo, a
par de uma liturgia da palavra128 que consistia na leitura da Lei, desenvolve-se fundamentalmente um sistema
sacrificial que era a alma do culto judaico.
Os sacrificios cultuais do AT eram, simultaneamente, oferta, expiação e comunhão. Não se tratava de um tributo
como tal; eram antes um gesto de gratuidade e reconhecimento que expressa de forma visível a soberania de Deus
sobre todas as coisas. Podemos constatar isso mesmo pela oferta dos primeiros frutos da terra, das primícias que
assim eram «dessacralizadas» dos ritos de fecundidade para serem retribuirias a Deus como fonte de todas as coisas.
Os texto bíblicos e extrabiblicos referem-nos diversos tipos de sacrifícios, sendo de destacar os holocaustos, os
sacrifícios de comunhão, os sacrifícios expiatórios e as ofertas. De entre todos, assume particular importância no
contexto da liturgia do AT o sacrificio chamado «Tamid» (quotidiano ou diário) que era oferecido no Templo, pela
manhã e à tarde, diariamente sem interrupção129. Neste sacrifício era imolado um cordeiro de um ano, sem defeito.
Esta imolação era acompanhada de um ritual profundamente simbólico e que encontrará grandes ecos na teologia
do NT, logo a começar pela designação de Jesus como «cordeiro de Deus» e como chave de leitura da Sua morte.
Assim, antes de ser conduzido ao matadouro para ser imolado, era dada ao cordeiro água a beber numa taça de
ouro e o seu sangue era recolhido e lançado na base do altar130. Quanto à pele, esta era vendida em beneficio dos
sacerdotes e a carne cortada em doze pedaços que, após salgados, seriam colocados sobre o altar. Os seus ossos não
podiam ser quebrados, prescrição que era também válida para o cordeiro pascal131.
Para além do sentido de expiação, os sacrificios eram também expressão de comunhão entre Deus e o homem.
Por isso, ao serem oferecidos sobre o altar, eles recordavam que este era o símbolo da presença de Deus no meio do

126
Cf. F. MANNS, Le judaïsme, 99.
127
S. BEN CHORIN, Le judaïsme en prière. La liturgie de la Synagogue, Paris, 1984, 25.
128
É a partir do exílio, com Esdras e Neemias que esta «liturgia da Palavra» se vai desenvolver, com a sua proclamaçâo e
explicação ao povo (Ne 8,8-9), embora mais tarde esta «liturgia da Palavra» venha a constituir o núcleo central da oração na
Sinagoga.
129
As determinações de Ex 29,38 e de Nm 28,3 são corroboradas pelo tratado da Mishnk (Tamid) que estabelece as normas
precisas para a sua realisaçãn.
130
O tratado Tiamid descreve todo o ritual do sacrificio e constitui a fonte mais completa de que dispomos sobre o ritual
desse sacrificio.
131
S. João evoca esta mesma prescrição acerca de Jesus (Jo 19,36) a quem apresenta como «cordeiro que tira o pecado do
mundo» (Jo 1,29) e que na sua concepção teológica é agora o verdadeiro «cordeiro pascal».
49
Seu povo, lugar da criação do mundo e da eleição de Isaac que aí fora oferecido e pela sua «aqedah»132 mereceu a
eleição para dar início ao nova povo de Yahwé. Por isso, o culto sacrificial continha não apenas a dimensão
expiatória, mas também uma forte componente de retribuição e comunhão com Deus, ou seja, de reconciliação. A
esta comunhão alude Paulo na 1 Cor 10,18 quando refere: «Os que comem das vítimas acaso não estão em
comunhão com o altar?»
Importa ter presente que, com a destruição do Templo, os sacrifícios foram abolidos e daí a razão da literatura
sobre esta questão não ser muito abundante. As tradições conservadas na Mishná, no tratado Zebajim, constituem
por isso a melhor documentação de que dispomos. O facto do tema ter caído no esquecimento, incluindo na época
talmúdica, porque já não se praticavam sacrificios pode explicar, em parte, a sensação que se tem ao ler este tratado
de que muitas das determinações af contidas são para nós pouco claras quando não carecidas de sentido.

c) O sá bado
O «sábado» é um dos elementos fundamentais no conjunto do universo cultural do judaísmo e um dos pólos
mais significativos da sua liturgia133. Logo em Gn 2,2-3, o «sábado» é apresentado como a coroa da criação, coroa
esta que é dada ao homem, mas da qual também Deus participa: «Deus abençoou o sábado e santificou-o.» O verbo
usado para traduzir esta acção de Deus é lishbot (do verbo tbf) que significa «repousar-se, parar de trabalham. O uso
do termo deu origem a um conceito que vai muito para além do seu significado original, uma vez que o «sábado»
não é apenas a cessação do trabalho, mas antes um dinamismo de santificação que implica essa cessação. Por isso,
diversos textos 153 ao longo da Escritura recordam o repouso de Deus depois da criação (Ex 20,11) e é por esse
repouso que o sábado se tornou sagrado: «Ele é um sinal da Aliança» (Ex 31,17) e da «comunhão de Deus com o Seu
povo» (Ez 20,12). Mais tarde, o Deuteronómio ajunta um novo elemento que confere ao sábado uma nova
dimensão, associando-o à libertação do Egipto como um memorial que perpetua essa «nova criação» (Dt 5,15), já
que a saída da terra do Egipto é o acto fundador do povo de Israel. Por isso, todo aquele que profana ou não
santifica o «sábado» renega a sua identidade de israelita e exclui-se a si mesmo do povo eleito (Ex 31,14.16-17),
assemelhando-se assim aos pagãos.
No período intertestamentário nós estamos já em presença de uma sociedade judaica mais plural, marcada pela
presença do helenismo e pela sedução da sua cultura estética e humanista. Muitas das leis gregas estavam em
oposição clara e directa com os preceitos do «sábado», pelo que o judaísmo sempre procurou, junto dos monarcas
estrangeiros que dominavam a Palestina, obter privilégios especiais no que concerne ao cumprimento do «sábado».
É particularmente com os seléucidas da Síria que esta tensão mais se agudizou (1 Mac 2,43-45). Por isso, todos
aqueles que não
152
153 São inúmeras as alusões ao «sábado», o que faz com que este se tenha tornado não apenas uma instituição
de referência para o judaísmo, mas também um elemento diferenciador face aos demais povos. A essência do
judaísmo passa pelo «sábado», pois é indissociável do conceito de santificação que lhe é inerente, como referem
muitos dos textos bíblicos: Am 8,5; Is 56,1-7; Jr 17,19-27; Ez 20,16-21; Ne 9,13-14; 10,33,34; 13,15-23; 1 Mac 2,31-
41; 2 Mac 15,1-5.
124
1. Ac FESTAS E A LITURGIA JUDAICA
cumpriam o preceito sabático tinham-se passado para o campo inimigo e tornado infiéis à aliança com Deus,
dando origem a uma nova questão no seio do judaísmo: É possível resistir ao inimigo em dia de sábado? É Matatias
Macabeu que decide com o seu grupo defender-se em dia de sábado, no caso de ser atacado 154, o que significava
introduzir uma nova problemática na compreensão teológica do «sábado». O 2º livro dos Macabeus, na verdade,
ignora esta decisão anteriormente tomada e o livro dos Jubileus defenderá a pena de morte para aqueles que
violarem o «sábado». Idêntica problemática se colocará para os judeus que fazem parte de exércitos estrangeiros
que combatem em dia de sábado, o que significa que a questão, ao tempo do NT, não era pacifica nem de fácil
solução.

132
«Aqedah» é o acto de Isaac ser atado em oferecimento sobre o altar para ser imolado por Abraão. Para o judaísmo
rabínico é pela sua disponibilidade que Isaac ganha méritos e fazem do seu gesto o acto constitutivo do novo povo de Deus.
133
O hebraico shabbat (descansar, repousar) traduz um conceito que está muito para além do sentido que a palavra assume
no vocabulário corrente. Trata-se de uma instituição que marca a vida e o ritmo existencial de cada judeu.
50
No que diz respeito à liturgia do «sábado», esta inicia-se com a cerimónia qabbalat hashabbat que, traduzindo à
letra, se pode chamar «a recepção ao sábado» e que consiste numa liturgia familiar, composta por uma refeição
festiva X55 com toda a família ao entardecer de 6.a feira e que é precedida do giddush (a oração da bênção). O pai
de família, no seu regresso da oração sinagogal, «abençoa o pão e o vinho e louva a Deus por ter escolhido o Seu
povo e lhe ter dado o sábado» 156. A recitação desta oração era fundamentada pelos rabinos como um
mandamento (um mitzvá) a partir do próprio texto bfblico quando diz «recorda o dia de sábado para santificá-lo»,
sendo a bênção a expressão dessa santificação a que todo o israelita estava comprometido. A preparação da mesa
era confiada à mãe que a devia ornar com velas acesas conforme a tradição recomendava 1S7.
154 1 Mac 2,39-41; AntiquitatesJudaicae 12,276-277.
155 A tradição rabínica punha muito em evid@ncia o gosto e o sabor especial que as comidas do dia de sábado
tinham, contando-se algumas histórias a tal respeito. Por exemplo, segundo o Talmud, Adriano teria perguntado um
dia a rabbi Yehoshúa ben Janina qual a razão por que as comidas que os judeus preparavam para o shabbat tinham
sempre uma fragãncia especial, ao que o rabbi respondeu: «O judeu possui uma especiaria que se chama shabbat;
isso é o que ele introduz nas comidas e lhes confere esse sabor especial. Dá-me um pouco disso, requereu o
imperador romano ao rabino. Este replicou-lhe: Esta especiaria é só eficaz para aquele que observa o sábado e não
serve para mais ninguém», cf. Shab i i 9a. O mesmo se teria passado entre o rabbi Yehudá e o imperador Antonino,
Bereshit Rabbet 11.
156E MANNS, Le judaüme, 102.
157 0 número de velas podia variar de acordo com diversas tradições: 7 (para recordar os dias da semana), 10
(em memória dos 10 mandamentos), diversas (conforme os filhos da família), uma (recordando o dom da vida), etc.
125
A LITURGIA JUDAICA
Alguns autores referem que as velas a acender deviam ser duas para evocar os dois mandamentos: zakor (Ex
20,8 — recorda-te do dia de sábado para santificá-lo) e shamor (Dt 5,12 — guardarás o dia de sábado para o
santificar), sintetizando em si a espiritualidade do «sábado». Procedia-se também â recitação de Salmos (SI 95-99 e
29) que anunciavam o advento do período messiânico e o repouso definitivo com Deus (ou seja, o eterno sábado
messiânico).
A segunda parte da liturgia do sábado consistia numa cerimónia com o nome de la habdalah (que significa
«separação») e tinha lugar ao final da tarde de sábado, pretendendo com isso estabelecer a «separação» do dia
santificado dos demais dias considerados profanos. Esta cerimónia consiste na recitação das três primeiras bênçãos
do Shemoné eszé, após as quais se acrescentava uma outra bênção chamada ata hibdalta que tem por objectivo
confirmar as diferenças estabelecidas por Deus. A inserção desta oração no conjunto da celebração de «separação»
do «sábado» era objecto de disputa entre os rabinos '58. Vejamos o seu sentido:
«Tu separaste o sagrado do profano, a luz das trevas, Israel das nações, o sétimo dia dos seis dias de trabalho.
Tal como Tu nos separaste das nações do mundo e das famílias da terra, purifica-nos também e afasta de nós todo o
pecado e toda a transgressão. Concede-nos o conhecimento, a inteligência e a sabedoria. Bendito és Tu, Yahwé, que
concedes o conhecimento.» 159
Podemos dizer, em jeito de síntese, que o sábado encerra em si uma tríplice dimensão. Por um lado, ele
transmite e contém em si algo da essência de Deus, já que Deus «descansou e santificou o sábado», devendo o
homem, à imitação do Criador, também descansar e santificar o sábado. Por outro lado, o sábado contém
igualmente, como já referimos, uma dimensão social, pois não apenas os israelitas, mas também os escravos e os
animais beneficiam dessa dimensão, pois partilham também eles da dimensão do Criador (Dt, 5,12-15). Mas, para
além destas, o sábado encerra em si uma terceira dimensão que é a de ser sinal da aliança que os «filhos de Israel
devem guardar de geração em geração como aliança
158 Cf. Mishná, BerakSt 5,2.
159 Seguimos aqui a tradução de S. GOLDSCHMIDT, Seder Rab flmrarn Gaon, Jerusalém, 1971, 81.
126
1. As FESTAS E A LITURGIA JUDAICA
eterna» (Ex 31,16-17). Eis toda a riqueza teológica que o sábado em si encerra.
51
d) Vestes e utensílios da oraçã o
Para além das vestes próprias do sumo sacerdote para cada festa, donde se destacam as que eram empregues
na celebração de Yom Kippur, os israelitas usam diversas vestes e utensilios nas suas festividades e também na
oração sinagogal. Alguns são de uso obrigatório e assumem uma importância notável, razão pela qual nos parece
oportuno deixar aqui uma breve palavra explicativa, já que o seu emprego confere ao momento celebrativo uma
dimensão singular. Para além de outros, tem um especial significado as filactérias e tefalim, a kipa, a mezuza e o talit.
São utensilios que estão ligados à oração na Sinagoga, embora alguns deles remontem, de acordo com a própria
tradição judaica, ao período do 2.° Templo.
As filactérias e tefilîm aparecem já mencionadas nos textos da Torah 160 e podemos constatar a sua existência
ao tempo do NT (Mt 23,5). O seu uso pode também ser documentado pelas descobertas de Qumrãn que remontam
ao período da revolta de Bar Kokba, em 135. 0 termo bíblico para designar as filactérias é totafot que o Targum
traduziu por tefilim, derivado da raiz phalal ou tapha1 significando «separar, dividir ou fixar». Ao usar os tefilim o
crente judeu «testemunha diante do mundo que ele está separado dos outros povos. A separação faz dele um ser à
parte» 161
Trata-se de duas tiras de couro que saem de um pequeno invólucro, uma pequena caixinha, onde está contido
um pequeno escrito com alguns versículos da Torah 162. Nos momentos da oração, nas festas, nas escolas enquanto
aprende a Lei e a recita ou na celebração da maturidade religiosa dos jovens (no chamado Bar Mitzvah, baptismo da
Lei) 163, deve-se usar
16° Ex 13,9.16; Dt 6,8; 11,18.
161 E MANNS, La prière d Israël d l'heure de Jesus, Jeru ca lém, 1986, 107.
162 Na tradição antiga, a pequena caixa dos tefrlîm continha também o decálogo, tal como sucedia nas mezuzât
(que se colocam na entrada das portas). Este uso de introduzir o decálogo foi abandonado devido ao facto dos
cristãos terem assumido os mandamentos como parte fundamental da Escritura, cf S. BEN CIQRIN, Le judaïsme en
prière, 47.
163 Trata-se da festa que confirma que o jovem judeu é já adulto e responsável na vivéncia da sua fé, razão pela
qual a partir desse momento ele deve mostrar a sua fidelidade à Torah, aos mandamentos, assumindo assim a
maioridade como crente diante de Deus.
127
ÌÏI -- A LITURGIA JUDAICA
os Tefilîm para testemunhar que a Torah assume uma total centralidade na fé bíblica. Ern geral, os tefilim são
atribuidos aos jovens por ocasião do seu Bar Mitzvah para assim testemunhar que nesse momento se inicia a sua
maioridade religiosa. Uma das tiras de couro que saem da pequena caixa que se coloca na testa deve ser enrolada à
volta da cabeça e a outra no braço esquerdo, apertando-o junto ao coração. Nessa caixinha são escritos à mão textos
bíblicos de Ex 13,9.16; Dt 6,8-9; 11,18, textos estes que recordam o preceito de trazer diante dos olhos e nas mãos
os preceitos de Yahwé.
Como sucede com a interpretação de outras passagens, também nestas o judaísmo procura materializar aquilo
que era uma ordem do Senhor para que a Lei fosse mais interiorizada no coração do que proferida por palavras.
Todavia, também aqui o suporte material acabou por antepor-se à intenção espiritual, apesar do texto bíblico aludir
sempre a que isso deve ser o sinal de uma realidade vivida e não apenas um rito despido de sentido. São
particularmente significativas as recomendações que as versões targúmicas acrescentam quando comentam as
passagens acima referidas, pondo em evidência que se trata de um mandamento que deve ser um sinal para mostrar
a força libertadora de Yahwé que fez sair o Seu povo do Egipto com a sua mão poderosa 164.
Quanto à kipa, trata-se de um pequeno chapéu ou gorro que é colocado na cabeça para a oração, embora
também seja muito usado pelos homens na vida quotidiana. Este pequeno solidéu cobre a cabeça como sinal de
respeito diante de Deus. Todos os momentos de oração devem ser feitos com a cabeça coberta, pelo que o seu uso é
sempre obrigatório.
No que diz respeito ao talit, é uma espécie de manto ou xaile que deve ser colorado sobre os ombros e as costas
nos momentos de oração. A ele se faz alusão em Mt 23,5, embora o seu uso seja já mencionado em Dt 22,12 e
também em Nm 15,37-40. Trata-se de uma peça branca, com riscas azuis e escuras da qual pendem alguns fios nas
silos pontas. O objectivo destes fios atados às extremidades do talit é o de recordar os mandamentos do Senhor,
52
dados a Israel, e que os israelitas devem ter permanentemente presentes 165. Embora se trate de uma peça que
está profundamente ligada à oração, hoje
164 TgJonathan de Ex 13.9.16 e Dt 11,18.
155 A túnica asem costura» a que alude S. João (19,23) é, segundo S. BEN C-IORIN (Le
judassme en prière, 51), algo semelhante a um tadit
128
2. A FESTA DA P4SCOA JUDAICA
em dia muitos judeus usam na vida corrente uma espécie de escapulário de lã, chamado kanfôt por baixo da
roupa exterior e que substitui o talit.
O uso destas vestes era obrigatório para os homens, mesmo prosélitos, embora conforme a tradição talmúdica
166 a obrigatoriedade desse uso nem sempre tenha sido uniforme.
Uma palavra final sobre a mezuza, um pequeno estojo de metal ou madeira, contendo um pequeno pergaminho
com os textos de Dt 6,4-9; 11; 13-21 que se fixa sobre o montante direito das portas na entrada das casas. Ao entrar,
é habitual beijar a mezuza, manifestando assim a veneração aos preceitos de Yahwé e implorando a sua bênção.

2. A festa da Pá scoa judaica


A festa da Páscoa (Pesah) é de todas a mais significativa do calendário judaico e a primeira das chamadas «festas
de peregrinação» (Hag haRegalim)167. Estas festas celebravam os principais acontecimentos da história da salvação
e, por isso, todo o israelita devia «subir» a Jerusalém por ocasião de uma destas três festas, para aí festejar os dons
de Deus e a Sua aliança. A celebração da Páscoa, na noite de 14 de Nisãn, estava inserida e dava inicio a uma outra
festa, a dos Ázimos que durava sete dias e se concluía com uma convocação solene no 7.° dia da festa (Dt 16,8)168
que encerrava o ciclo da solenidade pascal.
As fontes bíblicas são abundantes no que diz respeito às motivações e à evocação destas festas. A Páscoa era
essencialmente um «memorial» (Ex 12,14) da libertação do Egipto. Em Jos 5,10-11, após a passagem do Jordão, os
israelitas celebraram a 1.a Páscoa já na terra prometida, «comendo dos frutos da terra: pães ázimos e espigas
tostadas». Trata-se, naturalmente, de uma espécie de ritual de «exorcização» do local, para aí manifestar a
supremacia sobre os costumes dos cananeus. Segundo Manns 169, os textos da tradição do Êxodo já combinavam as
diferentes tradições das tribos. Assim, Ex 23,15-19, que tinha a sua origem no Norte
166 Menahot 43a-44a.
167 As outras duas festas eram a do Pentecostes e a das Tendas.
168 As duas festas tinham uma legislação própria conforme os textos de Ex 23 e 34 e Lv 23, embora com o
tempo acabassem por se confundirem ou serem assimiladas mutuamente.
169 F. MANNS, Lejudrdsme, 107.
129
III — A LITURGIA JUDAICA
conhecia a tradição dos ázimos mas desconhecia a Páscoa, enquanto em Ex 34 encontramos já uma conjugação
dos dois ritos, conjugação esta que depois está consagrada em Lv 23,5-8 e Dt 16,1-8. Por sua vez, o livro das Crónicas
faz-se eco de duas celebrações da Páscoa: uma ao tempo de Ezequias (2 Cr 30,1) e a outra na época de Josias (2 Cr
35,1). 0 seu ritual evoca a saída do Egipto com a imolação do cordeiro no Templo e a aspersão do altar com o seu
sangue.
A literatura apócrifa dá igualmente grande relevo à celebração da festa de Páscoa. O Livro dos Jubileus faz
remontar a celebração da Páscoa a Abraão e estabelece uma relação intrínseca entre o sacrifício de Isaac e a festa
(18,13-19). Esta mesma relação encontra-se também no Targum Lv 26,46, em que o sacrifício de Isaac é considerado
como o verdadeiro fundamento da Aliança.
Enquanto o judaísmo palestinense destacava esta relação entre o sacrificio de Isaac e a Páscoa, o judaísmo
alexandrino sublinhava mais o sentido alegórico da festa, como símbolo da primeira criação e anúncio da nova
criação. Ê particularmente Filão de Alexandria l" que desenvolve este sentido alegórico da saída do Egipto, fazendo

53
desta festa um «memorial» e uma «acção de graças» da libertação. Idêntica perspectiva encontra-se no livro da
Sabedoria com um sentido de reactualização do tema do êxodo para a comunidade judaica de Alexandria.
O centro da celebração litúrgica da festa da Páscoa decorria no Templo e nas famílias, com o Seder pascal: a
refeição da família. Ê a partir da reunião familiar que se desenvolve a Aggadah pascal que é, ao mesmo tempo, um
«ordo» da refeição e um memorial do acontecimento celebrado que não se confina apenas à libertação do Egipto,
mas também abarca os principais momentos da história da salvação.
No que diz respeito à liturgia sinagogal, um dos textos mais belos e sugestivos sobre esta festa ë aquele que nos
provém do Targum Neófiti. Trata-se de um comentário de tipo midráshico que encontra o seu desenvolvimento a
partir do facto do autor de Ex 12 referir 4 vezes o termo «noite». Vejamos:
"Quatro são as noites que estão inscritas no livro das memórias. A primeira noite Deus manifestou-se sobre o
mundo para o criar.
170 De specialibus legibus II,18.
130
2. A FESTA DA PÁSCOA JUDAICA
O mundo era confusão e trevas. As trevas cobriam o abismo. A Palavra de Yahwé era a luz e brilhava. Chamou-se
a primeira noite.
A segunda noite, quando Yahwé apareceu a Abraão com a idade de 100 anos e a Sarah, sua esposa, com a idade
de 90 anos, para realizar a Escritura que diz: Será que Abraão, com 100 anos de idade, vai gerar e Sarah, sua esposa,
com 90 anos, vai dar à luz? Isaac tinha 37 anos quando foi oferecido em sacrifício sobre o altar... Chamou-se a
segunda noite.
A terceira noite Yahwé apareceu aos egípcios no meio da noite: a sua mão matou os primogénitos dos egípcios e
a sua direita protegeu os primogénitos de Israel para que se cumprisse a Escritura que diz: Meu filho primogénito, é
Israel... Chamou-se a terceira noite.
A quarta noite o mundo chegará ao seu fim para ser destruído; os jugos de ferro serão destruídos e as gerações
perversas serão aniquiladas. Moisés subirá do meio do deserto e o Rei Messias virá do alto. Um caminhará à frente
do rebanho e o outro caminhará à frente do rebanho e a sua Palavra caminhará entre os dois. Eu e eles
caminharemos lado a lado. É a noite da Páscoa para a libertação de todo o Israel.» 171
Quanto aos textos rabínicos, a Páscoa aparece também bem documentada nessas fontes, particularmente no
tratado Pesahim da Mishnd. Os capítulos 5.° e 10.° oferecem-nos uma detalhada descrição dos ritos fundamentais da
festa segundo a tradição rabínica, mas recolhendo tradições que, provavelmente, são já do período posterior à
destruição do Templo, uma vez que não há alusões à celebração festiva no Templo e os rabinos citados são, en-i
geral, também do período posterior a 70. Os rituais festivos que este tratado nos apresenta têm uma forte
componente alusiva à celebração familiar e assemelham-se em muito às tradições que se perpetuam na Aggadah
pascal que é um texto que condensa em si esse sentido da festa celebrada e vivida na família como memorial da
história da salvação.
Em termos teológicos, a festa de Páscoa é sem dúvida a mais rica de todas do calendário judaico. Nela se cruzam
certamente tradições muito díspares, mas que pouco a pouco se foram cruzando e convergindo para o sentido da
libertação do Egipto, apesar de nem todas as tribos terem tido
171 Targum Neófiti a Ex 1Z42.
131
III — A LITURGIA JUDAICA
a mesma experiência de saída do Egipto nem de passagem pelo Sinai. Poderemos sintetizar a teologia da Páscoa
em 3 grandes perspectivas:

a) Sentido messiâ nico-escatoló gico da celebraçã o pascal


A festa actualiza a saída do Egipto na vida da comunidade e, ao mesmo tempo, antecipa a libertação definitiva. A
simbologia dos ritos festivos têm uma dimensão escatológica, prefigurada no vinho do banquete messiânico, tal
como o deixa entender o Targum do Cântico dos Cânticos. De acordo com Gn 49,11, o vinho tem um sentido

54
profundamente messiânico, pois o Messias lavará as suas vestes no sangue da videira 172. Esta dimensão messiânica
é também confirmada por Pesah 9,11 que refere que «os habitantes de Jerusalém convidavam os pobres para a
refeição pascal, já que Elias se manifestaria sob a forma de um pobre, antes do advento do Messias que deve
acontecer na noite pascal».
A Páscoa é também a festa do anúncio da libertação que Yahwé concede ao seu povo, fazendo-o passar da «casa
da escravidão» que era o Egipto para a libertação que é a Terra Prometida. Não se trata de um anúncio celebrativo,
memória do passado; ele é antes um grito de esperança que percorre toda a história do povo e aberto ao futuro. De
facto, a perspectiva escatológica da liturgia pascal está bem presente num texto atribuído a Rabban Gamaliel 173,
em que cada um dos crentes judeus é convidado a celebrar a festa como se ele próprio tivesse estado presente na
altura da sua instituição. Diz o texto:
«Cada um de nós tem o dever de se considerar como se ele próprio tivesse saído do Egipto, já que está escrito:
Explicarás ao teu filho naquele dia, dizendo: `É pelo que o Senhor fez em meu favor quando sai da terra do Egipto.'
Por isso, estamos obrigados a dar-lhe graças, louvá-lo, cantar, magnificar, exaltar, glorificar, bendizer aquele que fez,
172 Na refeição pascal cada israelita devia beber 4 taças de vinho, de acordo com o rito da Ceia (Sede,), devendo
permanecer uma 5.» taça na mesa em honra de Elias, já que Elias era esperado na noite pascal e devia tomar parte
no banquele celebrativo. Embora se trate de uma prescrição da Halakah, a imaginação popular, como diz BEN
CHORIN (Le Judaisnee en prière, 136), estabeleceu uma «relação entre a taça do profeta Elias e a oração de Jesus no
Getsémani» quando suplica ao Pai: «Meu Pai, se é possível afasta de mim este cálice, (Mt 26,39). Era o cálice que
evoca a chegada dos tempos messiânicos.
[73 Mishná, Pesai, 10,5.
132
2. A FESTA DA PÁSCOA JUDAICA
em favor dos nossos antepassados e por nós, todos estes prodigios. Ele conduziu-nos da escravidão à liberdade,
da tristeza à alegria, do luto à festa, das trevas à luz, da escravidão à redenção. Cantemos em Seu louvor, Aleluia.»
Esta dimensão escatológica da festa é aquela que melhor se coaduna e que mais facilmente foi assumida pela
liturgia cristã. De acordo com os Evangelhos Sinópticos, o próprio Jesus tinha consciência da dimensão escatológica
da Sua ceia pascal, quando após a bênção da taça do vinho acrescenta: «Eu vos asseguro que já não beberei do fruto
da videira até ao dia em que o beba de novo no reino de Deus (Mc 14,25).» 174 Jesus não só conferiu à refeição
pascal com os discípulos este sentido escatológico, mas também a própria comunidade cristã primitiva encontrou
aqui a «chave de leitura» da vida do Mestre. O seu sangue, tal como o do «cordeiro pascal», selou uma nova aliança,
a aliança escatológica que fora proclamada pelos profetas e que agora se concretiza no mistério da sua Páscoa.

b) A Pá scoa como nova criaçã o


O judaísmo alexandrino cultivou muito o método alegórico e simbólico na sequência da tradição platónica.
Muitos dos acontecimentos da história do povo de Israel foram interpretados e comentados como alegorias de
realidades futuras ou, então, como protótipos dos verdadeiros mistérios da salvação 175. Também com a festa da
Páscoa sucede o mesmo. Assim, sendo o mês de Nisãn o primeiro dos meses (Ex 12,2) 176, Filão de Alexandria
interpreta isso como sendo «um memorial da origem do
174A tradição judaica fala das 4 taças de vinho que se deviam beber durante a ceia pascal, às quais era costume
juntar uma quinta, a taça de Elias, o profeta que vinha na noite de Páscoa, evocando assim os tempos messiânicos.
Segundo Malaquias (3,23), Elias é o mensageiro do Messias que vem à frente a preparar-lhe o caminho (Mc 9,11-13).
175 Filão de Alexandria dizia: «As coisas claras que são ditas são símbolos de coisas escondidas e obscuras (De
speciali bus legibus 1, 200).
176 Trata-se do 1.0 mês do ano religioso ou ano cultual, já que o ano civil começa com a festa de Rosh
haShanah, no mês de Tishri que corresponde ao nosso Setembro-Outubro. De facto, a Páscoa era a festa das festas e
dal que fosse ela a marcar o ritmo de toda a liturgia judaica, já que a lua nova de Nisãn determinava todo o ritmo
festivo do ano. Todavia, é bom ter presente que este calendário é tardio, retomando inclusive nomes de alguns
meses do calendário de Babilónia.
133
rrr — A LITURGIA JUDAICA
55
mundo» 177 e a Páscoa, enquanto festa da Primavera, era o memorial da nova criação que Deus realiza,
libertando o Seu povo da escravidão para a liberdade 178. A leitura do Cântico dos Cânticos (Shir haShirim) que era
feita na liturgia pascal confere a esta celebração um sentido de «núpcias festivas» entre Deus e o Seu povo e dessas
núpcias nasce um povo novo, o povo da aliança. A própria tradição rabínica também interpreta o «éxodo como uma
espécie de criação precedendo o nascimento de Israel» 179, já que para certos rabinos a origem do mundo teria tido
lugar no mês de Nisãn. A própria simbologia dos pães ázimos (os matzot) confere o significado de algo novo, original
à celebração, determinando assim o começo de uma realidade que se inicia sem qualquer mácula, ou seja, em
santidade. O mesmo se passa com o «ovo» que se coloca na ceia pascal, simbolizando a origem da vida e, ao mesmo
tempo, a vida nova da ressurreição, já que o ovo contém o gérmen da vida na sua plenitude.
Podemos dizer que a liturgia pascal é, por ela mesma, um apelo à esperança, não só a Israel, mas também a toda
a humanidade, que se renova num novo dinamismo de libertação. É esta a mensagem que o texto de Pesh 10,5 nos
deixa quando diz que a Páscoa é a passagem «das trevas à luz», passagem que o Targum confirma pondo a noite
pascal em ligação com a noite da criação.

c) A Pá scoa e a «Aqedah» de Isaac


A liturgia judaica, tal como se pode constatar pelo texto do Tg Neóf ti a Ex 12,42, estabelecia uma estreita
relação entre a festa da Páscoa e o sacrifício de Isaac. Esta relação foi também assumida pela liturgia cristã que na
noite de Páscoa retoma a leitura de Gn 22 como um dos momentos mais significativos da história da salvação e
prefiguração do sacrifício de Cristo, o novo Isaac.
De facto, a teologia judaica sempre interpretou a entrega de Isaac no país de Moriá como o nascimento do povo
de Israel na pessoa do filho de Abraão. Ë em atenção aos méritos de Isaac que Israel subsiste aos olhos de
177 De specialibus legibus I1,151.168.
178 «A Páscoa tem um sentido universal pela sua relação com a harmonia da natureza. Porque a Primavera
nascente traz com ela uma renovação que recorda a criação» (De specialibus legibus II, 150-155), cE La Pique: fete
juive et feete chrétienne, Le Monde de la Bible 43, Paris, 1986, 19.
179 Cf. E MANNs, Le judaisme, 113.
134
2. A FESTA DA PÁSCOA JUDAICA
Deus. Para o Livro dos Jubileus (18,3), o sacrificio de Isaac teve lugar a 15 de Nisãn. A intenção do autor dos
Jubileus é a de mostrar que as festas judaicas, especialmente a mais importante de todas — a Páscoa — tinham já
uma origem patriarcal através da concretização do apelo que Yahwé lhe fizera. Os sete dias da festa de Páscoa eram
a «memória» dos sete dias da viagem de Abraão até ao país de Moriá. O mesmo se pode deduzir desta Aggadah a Ex
12,2 que diz:
«Este mês será para vós o primeiro dos meses (Ex 12,2). 0 Santo, bendito seja Ele, designou para os israelitas um
mês de redenção no qua' eles foram redimidos do Egipto e no qual eles serão redimidos... Nesse mês nasceu Isaac, e
nesse mês ele foi ligado'.» 180
No entanto, a relação simbólica entre os dois acontecimentos não se restringe apenas à data; é muito mais
profunda. Assim, o cordeiro pascal recorda o cordeiro sacrificado por Abraão em substituição do próprio filho,
embora, como diz o Targum, Isaac é o verdadeiro cordeiro para o sacrificio. Ele mesmo, quando está a ser atado ao
altar, suplica ao pai para que o ate bem, já que não quer remexer-se nem manifestar qualquer recusa da sua
entrega, a fim de que o seu sacrificio não seja inválido e desta forma Israel possa ser redimido pelos seus méritos.
Isaac é assim a perfeita imagem do «cordeiro pascal» que se oferece para merecer a salvação para Israel. Por sua
vez, o Targum de Lv 22,27 reconhece que os cordeiros oferecidos no Templo o eram para «fazer memória» do
sacrificio de Isaac. Desta forma, Isaac é o protótipo do crente israelita que se entrega a Deus para expiar o pecado do
mundo, tal como outrora ele se oferecera no altar. Foi em atenção ao sacrifício de Isaac que Yahwé preservou, na
noite pascal da libertação através do sangue do cordeiro, os primogénitos dos israelitas.
Esta teologia fundada na Agedah de Isaac foi também desenvolvida pelos autores cristãos que a aplicaram ao
sacrifício de Cristo, tal como nos mostra Melitâo de Sardes no seu Peri Pascha. O facto do judaísmo pós-rabínico e
moderno ter transferido o memorial da Agedah de Isaac para a festa de Rosh haShanah (festa do ano novo, no mês
de Tishri) pode ser uma consequência da apropriação feita pelo cristianismo do tema do sacrificio de Isaac e da sua
releitura como chave interpretativa do sacrifício de Cristo, nova Isaac.
56
Aso Ex Rabbah 15,11.
135
rrr -- A LITURGIA JUDAICA

3. A festa do Pentecostes ou das «semanas»


Trata-se de uma solenidade importante do calendário judaico que encerra em si um significado muito
diversificado, já que esta festa foi conhecendo uma evolução muito acentuada ao longo dos tempos e assumindo
significações diversas de acordo com a evolução do próprio judaísmo como tal. O nome mais antigo por que é
conhecida era de «festa das colheitas» (Hag haggrásír. Ex 23,16). 0 seu carácter agrário está ainda bem presente
numa outra designação por que era conhecida: a festa das primícias (Hag haBikkû rim: Ex 34,22). Nela se ofereciam
as primicias do trigo que eram trazidas ao Templo numa atitude de agradecimento pelo dom das colheitas.
O nome de «festa das semanas» ou Hag haShavuôt põe em evidência a relação que existia entre a festa e a
Páscoa. De acordo com Lv 23,15-21, a festa era celebrada sete semanas após os ázimos, com a entrega da oferta do
'orner (o molho de espigas), completando assim aquilo que poderíamos chamar de «quadra pascal» 181. Quanto ã
designação de «festa do Pentecostes», ela tem apenas um sentido temporal e pretende realçar o facto desta
celebração ocorrer no quinquagésimo dia após a Páscoa, apesar
18l Para a tradição judaica, a forma de contar as «sete semanas» que medeiam entre as duas festas nunca foi
passiva nem uniforme, mormente entre saduceus e fariseus. Com a predominância de algum destes grupos no
Sinédrio, a confusão por vezes era manifesta, tal como o deixa entender a diversidade de calendários que «ram
seguidos. Para os saduceus, a interpretação de Lv 23,15 era literal e por isso afirmavam que a Escritura se referia ao
dia seguinte ao primeiro sábado da quadra da Páscoa, a partir do qual se deviam contar os 49 dias (sete semanas).
Desta forma, a festa devia ser celebrada sempre no primeiro dia da semana (ao domingo), no quinquagésimo dia
depois da apresentação do 'orner (molho de espigas). Esta é a tradição que foi retomada pelo cristianismo que
sempre conta quarenta e nove dias entre a Páscoa e o Pentecostes. No entanto, o vocábulo Shabbat do texto de Lv
23,15 que serve de referência para contar as sete semanas pode não indicar o dia semanal (o dia de sábado), mas
antes o «dia de preceito» (dia de repouso — shabbat). Se assim fosse, então o quadragésimo nono dia (as setes
semanas) teria como referência o dia de Páscoa (esta interpretação pode apoiar-se em Jos 5,11). Por sua vez, os
essénios e outros grupos que seguiam o calendário de Qumran, ou seja, o calendário solar, fixavam a data da festa
só a partir do 1.° sábado depois da semana da Páscoa. Como a festa dos ázimos era a 15 de Nisãn e o calendário era
fixo, esta era celebrada sempre a uma 4." feira, pelo que o 1.° sábado depois da semana da Páscoa seria o dia 25 do
mês de Nisãn. Contadas assim as sete semanas, a festa tinha lugar a 15 do 3.° mês do calendário, ou seja, a 15 do
mês de Sivan, tal como se pode deduzir da coi XVIII do Rótulo do Templo encontrado em Qumrãn (cf. Y. YADIN, The
Temple Scroll, 88).
136
3. A FESTA DO PENTECOSTES OU DAS `SEMANAS'
da data não ser uniformemente aceite por todos os grupos judaicos, conforme referimos na nota anterior.
As referências bíblicas a esta celebração são inúmeras 1â2, já que se trata, juntamente com a Páscoa e as
Tendas, de uma das três mais importantes festas do calendário litúrgico, chamadas «festas de peregrinação» (Hag
haRegalim), durante as quais todo o varão israelita devia subir, ao menos uma vez ao ano, a Jerusalém, para aí se
apresentar diante do Senhor, levando consigo as primicias da época em que decorria a respectiva festa 183.
Apesar da sua importância no calendário festivo de Israel, a Mishnd, ao contrário do que sucede com as demais,
não nos oferece qualquer tratado específico sobre esta festa, razão pela qual não dispomos de elementos
significativos que nos ajudem a esclarecer não apenas as questões da sua data-ção e do seu ritual, mas também a
sua interpretação teológica no período intertestamentário e no judaísmo rabínico. Qual a razão desta ausência de
um tratado no conjunto da Mishna' 184? Em geral, os estudiosos do judaísmo pensam que isso se deve à polémica
que existia entre os diversos grupos e movimentos religiosos e sociais no âmbito do judaísmo intertes-tamentário,
não apenas em relação à data, mas fundamentalmente no que diz respeito ao significado da festa enquanto tal.
Efectivamente, as tradições farisaicas procuravam pôr em realce a relação entre a Páscoa e a «festa das semanas»
enquanto os saduceus, por sua vez, reforçavam mais o sentido agrícola da festa, procurando assim valorizar a oferta
das primícias que eram levadas ao Templo. Por sua vez, o Livro dos Jubileus não estabelece qualquer relação entre
estas duas festas, mas faz do Pentecostes a maior solenidade do calendário festivo. Importa ter presente que a

57
teologia dos Jubileus está profundamente ligada aos círculos sacerdotais de Jerusalém e também aos movimentos
essénios e de Qumrãn.
Para além disso, alguns acontecimentos trágicos da história do povo de Israel, mormente ao tempo da 2.a
revolta, estão ligados a esta quadra festiva, o que acabou por conferir a esta quadra um certo ambiente de luto e
1$2 Ex 34,22; Lv 23,15s; Nm 28,26; Dt 16,10; 2 Cr 8,13.
183 0 tratado da Mishná, Bikkurim 3, descreve-nos o processo como decorria a subida a Jerusalém para ai
apresentar no Templo as primícias e entregar aos sacerdotes os primeiros frutos da terra ou dos animais.
184 O judaísmo rabínico tardio deu a esta festa o nome de Azere4 ou seja, «conclusão», pretendendo com isso
mostrar que a festa encerrava o ciclo da Páscoa, cf. Hag 2,4 e também Fukvio JosEFo, Antiquitates III, 252.
137
III — A LITURGIA JUDAICA
de tristeza que esses acontecimentos provocaram. De entre outros, assumiu especial destaque o massacre de
um significativo grupo de discípulos de rabbi Aqiba, ao tempo de Adriano, aquando da revolta de Bar Kokba iS5.

a) A evoluçã o da festa
Originariamente, como já referimos, todo o contexto desta festa apontava para um ambiente agrícola,
profundamente ligado às primeiras colheitas, o que constituía para o povo um momento de grande expectativa e
também de reconhecimento pelos frutos que começavam a ser colhidos. No entanto, progressivamente ela foi
assumindo um significado de carácter histórico ligado ao Sinai como a «festa da renovação» ou a «festa da entrega
da Lei». Esta primeira perspectiva como festa da «renovação da aliança» encontra-se já desenvolvida na tradição
essénia e sacerdotal de que se faz eco o Livro dos Jubileus, enquanto a segunda, «festa da entrega da Torah», é mais
desenvolvida pela tradição rabínica posterior, mormente a partir da altura em que a Torah, devido à destruição do
Templo, assumiu a centralidade da liturgia judaica.
Em Jubileus 15,1, diz-se que Abraão já celebrou a festa das semanas, embora aí se aluda ao seu carácter agrícola,
pondo em realce a oferta das primícias do trigo. Foi então que Yahwé firmou com ele uma aliança (15,4) que deve
ser guardada por ele e por toda a sua descendência (15,11). A alusão às primícias é aqui apenas contextual, uma vez
que a tónica é posta na aliança e na sua teologia. De facto, a festa é apresentada como o início da aliança entre
Yahwé e Abraão e do compromisso mútuo de fidelidade de que a circuncisão será um sinal perpétuo:
«Eu sou o Deus omnipotente, sê-me agradável e perfeito; estabelecerei a minha aliança contigo e te
multiplicarei» (Jub 15,3-4).
A alusão à festa das semanas é explícita em 6,17s, onde se diz que nesta festividade se renovava a aliança todos
os anos. Aliás, a festa tem um acentuado cunho apocalíptico, destacando-se já a sua existência nos céus desde a
criação até à altura em que a sua celebração foi ordenada a Noé (Jub 6,18). Ora, sendo o Livro dos Jubileus um
escrito ligado aos grupos essénios e sacerdotais pré-essénios, é natural que ele deixe transparecer as
185 Cf. S. BEN CxoRIN, Le Judaüme en prière, 137-138.
138
3. A FESTA DO PENTECOSTES OU DAS SEMANAS'
perspectivas teológicas da seita de Qumrãn no que diz respeito a esta celebração. Era nesta altura que se fazia a
admissão dos novos membros na comunidade e se procedia à renovação da aliança 186. Neste sentido, os grandes
acontecimentos da história da salvação tinham tido lugar nesta festa: a aliança com Abraão e a promessa do
nascimento de Isaac (Jub 15,19), o nascimento de Isaac (16,13), as bênçãos a Isaac e Ismael em plena celebração da
festa das semanas {Jub 22).
Como podemos constatar, um dos temas principais do Livro dos Jubileus é a relação entre a festa e a promessa-
aliança com Abraão e seus descendentes, esquecendo assim a sua significação primitiva que era a de uma festa
agrícola para a apresentação das primicias. Efectivamente, ao fazer desta festa a mais importante do ano litúrgico e
ignorando a sua relação com a Páscoa, o movimento dos essénios mostra-nos já uma teologia muito elaborada que
não se fundamenta nos dados bíblicos do Pentateuco, baseando antes as suas motivações nas tradições sacerdotais
extrabíblicas.

58
Em 2 Cro 15,10-15 alude-se a uma festa de renovação da aliança aquando do reinado de `Asa (911-870), o que
poderia constituir para o autor do livro das Crónicas o fundamento de uma tradição sacerdotal sobre a renovação da
aliança do Sinai. Esta festa foi celebrada no 3.° mês, ou seja, no mês de Sivan (2 Cro 15,10) que era o mês de Hag
haShavuót (festa das semanas).
Ora, a tradição sacerdotal do Pentateuco coloca neste mesmo mês a aliança do Sinai entre Deus e Moisés (Ex
19,1). Neste contexto, a celebração a que se refere 2 Cro 15,10-15 poderia ser o primeiro testemunho da evolução
da festa que, paulatinamente, foi perdendo a sua significação agrícola ligada ás primicias, tornando-se, em virtude da
teologia sacerdotal, uma festa ligada ã aliança do Sinai e ao dom da Torah 187.
186 0 rito da admissão dos novos membros na comunidade de Qumran significava, segundo o espírito dos
qumranitas, o início da salvação daqueles que eram admitidos, pois só os membros do grupo, os «filhos da luz» ou
«filhos da aliança» alcançavam a salvação.
187 Importa ter presente que tanto o livro das Crónicas como o dos Jubileus têm a sua origem nos cdreulos
sacerdotais, podendo os dois (Crónicas e Jubileus) testemunhar uma tradição comum que se foi impondo nos grupos
sectários que viviam à margem do judaísmo oficial e do culto do Templo, entre os quais a festa acabou por se impor.
Os dados fornecidos por FILÃO DE ALEXANDRIA (De Vita Contemplativa, 65) sobre a celebração da festa entre os
Terapeutas (seita judaica que vivia em Alexandria) vão no mesmo sentido. Estes celebravam a festa com uma
refeição integrada por um conjunto de ritos que recordam a aliança do Sinai (uma refeição que compreendia um
conjunto de
139
III — A LITURGIA, f UDAICA
A par desta tradição da renovação da aliança sinaitica que provavelmente já existia ao tempo do NT,
encontramos, no séc. 11 d. C., as primeiras referências explícitas que nos atestam uma outra perspectiva teológica
sobre a festa do Pentecostes: o dom da Torah 188. A primeira referência é de rabbi Ben Chalaphta (por 150 d. C.) e
encontra-se no Seder `Olam Rabbah, 5. Assim, da festa das primicias (Hag haBikkurim), nós temos agora a celebração
da entrega da Lei (zeman matan Roratènú) e que passará a constituir o reina central desta festa na liturgia sinagogal.
Para fundamentar esta perspectiva, os rabinos raciocinavam com cálculos baseados nas passagens da Escritura
que aludem à caminhada de Israel através do deserto e à sua chegada ao Sinai, provando que a entrega da Torah a
Moisés no monte Sinai ocorreu a 6 do mês de Sivan 189 que era o 1.° dia da festa das semanas (Hag haShavuót). O
Talmud de Babilónia (Pesah 68b) transmite-nos uma afirmação de R. Eleazar (por volta de 250
d. C.) que relaciona a festa do Pentecostes com o dom da Lei no Sinai: «O Pentecostes é o dia em que foi dada a
Torah.»
Desta forma, facilmente se pode verificar como o carácter originariamente agrário desta festa se foi perdendo,
dando lugar a uma perspectiva
ritos e era composta por pão, sal, água e hissope; pão e sal são o sinal da aliança eterna; a água purifica, tal
como o hissope que recorda o rito da purificação com o qual se concluía a aliança. Além disso, a água é também
símbolo do Espírito que está associado ao dom da Torah).
188 A complexidade das diversas tradições e a falta de elementos dams acerca desta festa não tem
proporcionado aos diferentes autores encontrar urna significação que seja por todos aceite (cf SAFRAI — STERN, The
Jewish People in the First Century, Assen-Amsterdam, 1976, 893, pensa que era uma festa agrícola; M. WEINFELD,
«Pentecost as Festival of the Giving oh the Law», Immanuel 8 (1978), 7-18, diz que se trata da comemoração do dom
da Torah no Sinai).
189 Cf. Shab 86b; Yoma 4b; Mikilta Shemot 9,1-10. Aliás, é interessante o comentário da Pesikta De-Rab Kahana,
Piska 12, ed. De W. Braude e L Kapstein, Philadelphia, 1978 (ed.), 227s que, comentando o texto de Ex 19,1-20,26, a
leitura da festa do Pentecostes, alude aos preceitos da tradição rabínica que representam a explicitação da Torah.
Segundo esta tradição, foram dados a Israel 613 mandamentos, dos quais 248 são positivos (tantos quantos os
membros que compõem o corpo humano) e 365 negativos (tantos como os dias do ano). Tudo isto testemunha já
como a tradição rabínica desenvolveu a sua perspectiva legalista à sombra desta festa, ligando-a ao carácter
normativo da Lei e reforçando a sua centralidade na vida e na piedade judaica. Desta forma, facilmente se pode
deduzir que por trás da celebração da festa há urna tradição muito forte que a liga à recordação da entrega da Torah
no monte Sinai. A Perikta De-Rab Kahana é um midrash formado por um conjunto de homilias para os diversos

59
serviços litúrgicos da sinagoga e a homilia a que aqui aludimos (a Piska 12) era proferida no dia da festa do
Pentecostes. As suas tradições são antigas e, como tal, podem testemunhar um uso do judaísmo já antigo.
140
3. A FESTA DO PENTECOSTES OU DAS SEMANAS'
teológica mais centrada na Torah e na sua entrega a Israel, tal como nos mostram as alusões à renovação da
aliança que encontramos na tradição essénia e sacerdotal. A razão desta evolução de perspectiva teológica tem
certamente muito a ver com a situação histórica do judaísmo após a destruição do Templo. De facto, não fazia
sentido conferir a esta festa uma dimensão que o povo já não podia celebrar, pois não havia Templo, nem culto
oficial, nem sacerdócio, nem apresentação e entrega das primicias, sendo a renovação da aliança apenas um «fazer
memória» agora no presente de algo que não se podia reconfirmar na liturgia sinagogal.
Ao contrário do que sucedera com o culto, a Torah tinha-se tornado, face às circunstâncias de diáspora da
comunidade judaica, o centro do judaísmo; a vida do povo judeu estava agora totalmente centralizada na Lei e nos
comportamentos por ela impostos como expressão vivencial da fé. Assim, da renovação da aliança para o dom da Lei
foi apenas uma pequena evolução confirmada pelas tradições rabínicas acerca da festa do Pentecostes, inserindo-a
desta forma no centro da liturgia sinagogal. Por isso, coma diz Yaacov Vainstein, «Shavuôt traduz plenamente a
eterna verdade que Israel, a Torah e a terra de Israel são uma unidade indivisível» 190

b) A festa na liturgia
Como já atrás referimos, a Mishna não nos legou qualquer tratado sobre a festa do Pentecostes (ou das
semanas). Esta ausência de um tratado específico sobre a celebração de Shavuôt impede-nos de conhecer, com mais
precisão, o carácter e o sentido que a festa tinha na liturgia oficial do Templo. Apenas dispomos de alusões, algo
dispersas por outros tratados da Mishna, mas que pouco ou nada nos dizem da liturgia e da teologia da festa. Na sua
maioria, as referências de que dispomos e que podem remontar ao tempo da liturgia do Templo (antes do ano 70),
aludem claramente ao carácter agricola do Pentecostes, pois o seu conteúdo diz respeito à época e ao modo como
deviam ser apresentadas as primícias 191. Há igualmente algumas alusões ao tema do «julgamento do universo»
192, mas ainda
19° Y. VAINSTEIN, El ciclo del año judio: Un estudio sobre las fiestas y sobre selecciones de los rezos, Jerusalém,
5740/1980.
191 Bik 1,3.6; Bek 9,5.
192 Eduyot2,10; R.osh ha.Shaná 1,2.
141
HI — A LITURGIA JUDAICA
aqui o contexto diz respeito às primícias, já que Deus julga a fidelidade do povo pela abundância ou carência de
frutos que concede ao Seu povo 193.
Para além destas referências, mais ou menos explícitas, à questão das primicias como sendo a grande motivação
que está na génese da festa, há um outro texto muito explícito acerca da importância que a festa assumiu no
período seguinte à destruição do Templo. Trata-se de uma passagem atribuída a R. Eliezer, no tratado Moed Qatan
3,6: «R. Eliezer diz: Depois da destruição do Templo, a festa das semanas é como o sábado.» Esta comparação é
motivada por causa do luto que se devia guardar por um morto e que, segundo a afirmação de R. Eliezer, não devia
ser interrompido, tal como o não era no dia de sábado.
Apesar destes indícios a que aludimos, parece claro que a festa foi perdendo importância depois da destruição
do Templo, não se perpetuando muitos ecos do período anterior, salvo as alusões à apresentação das primícias que
se mantêm na liturgia sinagogal, já que af se lia nesta ocasião o Targum de Ruthi94. Ruth está associada à festa das
colheitas e essa associação tem como fundamento o modo como ela abraçou a religião israelita. Desta forma,
servindo-se do Targum de Ruth, a liturgia sinagogal queria pôr em evidência uma outra realidade: a conversão dos
pagãos à religião de Israel. O texto targúmico é bem explícito ao realçar a atitude de Ruth que «deseja ser prosélita»
X95. Por sua vez, Noemi, sua sogra, recorda-lhe a obrigação de guardar os sábados e os dias de festa, bem como os
«seiscentos e treze preceitos». A fórmula de fé que Ruth profere é: «O teu Deus será o meu Deus.» 196 Numa outra
passagem, o Targum de Ruth alude à protec-

60
193 Há uma tradição rabínica que liga esta festa à memória de David. É um texto de Ruth Rabbah 1,17 que nos
diz que a morte do rei aconteceu no dia da festa de Shavu8t. Esta tradição está também presente em alguns textos
do Talmud (Sanh 1056; j, Hag 2,3). É por esta razão que no decorrer desta festa se faziam orações especiais em
memória de David e no local do seu pretenso túmulo, sobre o monte Sião. É interessante constatar como S. Pedro,
no dia do Pentecostes (Act 2,29), sobre o monte Sião (Cenáculo), alude também ao sepulcro de David, parecendo
com isso confirmar a antiguidade desta tradição e aplicá-la a Jesus como messias.
194 0 Targum de Ruth (tradução-interpretação em aramaico) era lido na festa do Pentecostes, narrando a
história de Ruth (a moabita) que veio a ser a avó de David. Este texto tinha um acentuado cunho messiânico. Um
outro texto que também era lido nesta quadra festiva era o Targum Sheni de Ester (ou seja, o Targum de Ester, 2.a
versão). Era um texto com moitas tradições midráshi-cas antigas, o que confere a este texto um valor muito
representativo.
195 Tg Ruth 1,16.
196 Ruthe Tg Ruth 1,16.
142
3. A FESTA DO PENTECOSTES OU DAS SEMANAS'
ção que a Shekinah (glória — presença) de Yahwé concede aos que se tornam prosélitos e que, por isso, não
serão condenados ao juízo da Geena (2,12).
As tradições targúmicas sobre a festa do Pentecostes são muito abundantes e diversificadas. Por exemplo, o
Targum Ex 24 fala-nos dos primogénitos que pertencem a Yahwé (24,5). Em 24,8 alude-se à aspersão do sangue
sobre o povo e sobre o altar numa referência clara à purificação que antecede a conclusão da aliança, mostrando-
nos assim que a solenidade de Shavuôt mantinha o seu carácter agrícola e recordava, igualmente, a celebração da
aliança no Sinai.
Um outro elemento significativo sobre a festa do Pentecostes é-nos dado pelo Targum de Habacuc 3. Trata-se de
um texto que é uma espécie de complemento a Dt 16,9-12 197. Ora, para além dos textos da Torah 198 que
conferiam a esta festa um profundo significado agrícola, o Targum de Habacuc 3 não alude em nada a esse contexto.
Logo, é de supor que o texto targúmico era utilizado nesta altura porque a celebração de Shavuôt tinha então
recebido uma nova orientação teológica 199.
O Targum de Habacuc por sua vez realça a misericórdia e a paciência de Deus para com os ímpios, esperando e
dando tempo para a sua conversão. Fala-se também da nova criação, de um novo êxodo que Yahwé vai realizar. Os
temas da teofania do Sinai estão muito presentes no Targum, embora não façam parte do texto canónico de
Habacuc. O contexto global da versão targúmica é de aliança (3,10).
Admite-se que este Targum estivesse já em uso no séc. I a. C., pelo que, se assim fosse, tratava-se de um texto
contemporâneo aos textos de Qumran. Aí pressente-se que a perspectiva agrária da festa se foi perdendo,
197 0 Targum de Habacuc 3 servia de nhaphtarah» à passagem do Dt, ou seja, tram-se do texto da secção dos
profetas que era lido na sinagoga como leitura complementar ao texto do Pentateuco e que constituía uma espécie
de comentário a esse texto. No caso aqui referido, o texto do Targum era uma espécie de comentário à pericope de
Dt 16,9-12.
198 Particularmente Lv 23,15-21 e Nm 28,26-31.
199 Um dado muito significativo a este respeito é o facto de ter sido encontrado em Qumain um Pesher de
Habacuc, ou seja, um comentário ao livro deste profeta, o que só por si já testemunha a importância que o
movimento dos essénios dava a este profeta. Todavia, o texto que foi Cnc on trado termina no cap. II e, por isso,
nada nos diz sobre a interpretação que a seita fazia da vis'sin quo Habacuc descreve no cap. III. Aliás, a leitura de Dt
16,9-12 nesta festa parece set uma iturodu tardia (Meg 3,5), tal como Ex 19,1s que remontariam apenas ao séc. n da
nossa era. Segu- Talmuch Ex 19 seria a leitura da Torah para o 1.0 dia da festa, enquanto Dt 16,9-12 seria i! 14(110...
própria para o 2.° dia.
III — A LIÌ URGIA JUDAICA
tomando antes urna significação que aponta para a aliança, tal como aliás já era referido em Dt 16,9-12 com a
alusão explícita à libertação do Egipto e à prática dos preceitos da Lei. Este texto do Targum de Habacuc 3 apresenta
uma série de temas teológicos que estão muito próximos do NT, dos quais saliento: a necessidade e urgência da
61
conversão, o perdão que é concedido aos homens pela misericórdia divina, o anúncio da renovação do mundo no
fim dos tempos 2°0.
Um outro texto da liturgia sinagogal sobre a festa de Shavuôt é o Targum de Ez 1. No entanto, é difícil precisar
quando é que esta perícope começou a ser usada como haphtarah nesta festa. Na Mishnd (Meg 4,10), alude-se à
leitura deste texto, embora se coloquem reservas ao seu uso (Hag 2,1), uma vez que Ez 1 era uma passagem suspeita
para o judaísmo rabínico ~0' . Por volta de 150 d. C., rabbiJudá permitia a sua leitura, enquanto na Tosefta Meg 4,34
diz-se que esse capitulo de Ez podia ser lido, mas não traduzido em língua vulgar, o que quer dizer que não podia ser
usado como targum na liturgia da sinagoga. No entanto, o Targum de Ez 1 parece ser antigo, uma vez que existem
certas ressonâncias das suas tradições no Livro de Henoc202 e as especulações sobre o «carro de Yahwé» eram já
conhecidas também em Qumrãn. Todavia, os rabinos tinham colocado muitas reticências ao uso deste texto, uma
vez que as interpretações de carácter esotérico podiam pôr em questão a orientação que o judaísmo rabínico
pretendia conferir a esta festa.
No seu conjunto, os textos litúrgicos (targúmicos) que aqui referimos mostram-nos que a festa de Shavuôt foi
evoluindo na sua significação, passando do sentido tipicamente agrícola para a comemoração do dom da Lei, tema
este que se tornou muito caro ao judaísmo rabínico, já que a Torah estava no centro de todo o seu sistema religioso.
200 E interessante verificar como todos estes temas estão presentes, de forma mais directa ou indirecta, no
discurso de S. Pedro no dia do Pentecostes (Act 2).
201 As suspeitas que envolvem o texto de Ez 1 referem-se ao tema do «carro de Yahwé» (Merkkabah Yahwé) à
volta do qual se desenvolveram interpretações místicas e esotéricas que punham em questão o judaísmo legalista e
normativo imposto pela reforma levada a cabo no sínodo de Yabné na sequência da destruição do Templo. Este
tema será, mais tarde, amplamente desenvolvido pelas correntes cabalísticas do pensamento judaico medieval.
202 Henoc 14,9; 17,5-
144
3. A FESTA DO PENTECOSTES OU OAS ;S/,MnrvAS'

c) A teologia da festa de Shavuôt no judaísmo


Como temos vindo a referir, o núcleo central das tradições desta celebração apresentam uma dupla perspectiva.
Por um lado, trata-se de uma festa de carácter agrícola, pondo em realce o agradecimento devido a Yahwé pelos
frutos recebidos das primícias das colheitas. Por outro, temos a comemoração do dom da Torah no Sinai à qual se
junta a renovação da aliança. Esta dupla significação não é por si contraditória, já que as duas perspectivas
coabitaram na liturgia sinagogal, embora a celebração do dom da Torah se viesse a impor progressivamente no
judaísmo posterior à reforma levada a cabo em Yabné.
Como sabemos, depois da destruição do Templo por Tito (em 70), o judaísmo fez deslocar o seu centro
unificador que antes passava pelo Templo, agora inexistente, para a Torah. Esta foi assumindo um lugar
preponderante na liturgia sinagogal, na piedade popular e no modus vivendi daqueles que sobreviveram à l.a revolta
contra Roma. Essa preponderância tornou-se tal que nós podemos dizer que o judaísmo se converteu na «religião da
Torah» em oposição à «religião interior do amor» que seria o cristianismo.
Sem pretender realçar em demasia os contrastes que se poderiam estabelecer neste contexto, importa ter bem
presente que este binómio define muito bem a realidade, já que depois das revoltas judaicas dos anos 70 e 135 a
academia rabínica e a sinagoga tornaram-se por si mesmo os dois pólos da vida judaica, estando cada um deles
exclusivamente ao serviço da Torah 203. Assim, a Lei não é apenas o conjunto dos preceitos que orientam o homem
para Deus, mas também o conjunto das tradições orais que se transmitem nas escolas e que vão aclarando aqueles,
fazendo dela coma que um programa de vida onde estão consubstanciados os valores e as crenças que devem ser
levadas à acção. Desta forma, o judaísmo foi perdendo o sentido da criatividade e da «novidade» de Deus, tornando-
se, por
203 0 sentido etimológico da palavra Torah é precisamente «ensinamento» e foi pelo dom desta que Yahwé
rectifica a aliança feita com o povo, mostrando-lhe o caminho que deve seguir para realizar o seu objectivo histórico
como povo eleito: ser testemunho de Yahwé. A Torah é, portanto, o «livro da aliança» (Ex 24,7) que todo o judeu
deve conhecer para viver. O estudo da Torah tornou-se como que urna oração. São significativas a este respeito as
palavras de Hillel: «Quem adquire as palavras da Torah adquire para sia vida eterna» (Abot 2,7).
145
62
rrr — A LITURGL4 JUDAICA
oposição à apocalíptica, a religião do fazer (a religião dos preceitos), ou seja, uma religião normativa onde o agir
humano estava já previamente condicionado.
Porém, importa realçar que a Torah, enquanto centro do judaísmo rabínico, é algo mais do que a simples Lei
normativa e não se pode reduzir, como tantas vezes sucede, a um simples amontoado de normas éticas ou princípios
de natureza moral. Para além da sua componente normativa, a Torah é, antes de mais, um caminho de salvação, a
expressão da aliança de Deus com o homem, ou seja, da revelação do amor de Yahwé e da resposta do homem aos
Seus apelos 204.
Como já referimos anteriormente, a estruturação do judaísmo rabínico foi levada a cabo pelas duas «escolas» de
Shammai e Hillel, tendo esta última prevalecido sobre a primeira porque a sua interpretação da Torah mostrava mais
demência, tolerância e compaixão, fazendo com que a Lei traduzisse melhor a dimensão amorosa de Deus para com
o Seu povo. Neste sentido, é interessante notar que a leitura tradicional da festa de Shavuôt é o livro de Ruth, livro
este que nos apresenta uma história de amor e compaixão humana, ignorando, neste aspecto, os ensinamentos
habituais sobre a pureza ritual ou a afirmação dos preceitos normativos que eram tão comuns em outras
celebrações do calendário festivo.
O conjunto dos indfcios aqui referidos permitem-nos descobrir na festa do Pentecostes uma componente
teológica muito forte que se antepõe a uma mera recordação festiva da entrega da Lei a Israel. De facto, o próprio
carácter agrícola da festa, bem evidente no enfoque que era dado â apresentação das primícias no Templo 2Ó5,
testemunhava já uma atitude de agradecimento a Yahwé pelo dom da terra e pelos frutos por ela produzidos. No
fundo, estes frutos não eram mais do que a expressão do amor e da compaixão de Yahwé pelo Seu povo, tal como o
texto do Targum de Ruth o fazia notar.
A Torah, por sua vez, enquanto centro da vida do povo de Israel a partir da destruição do Templo, tornou-se por
ela mesma o símbolo dessa bondade e dessa benevolência, já que era o exclusivo caminho de salvação
2°4 A componente normativa da Torah é a resultante da Halnkah judaica, isto é, das tradições desenvolvidas nas
diferentes escolas e que resultam do estudo que al se fazia da Lei como resposta aos problemas com que a
comunidade se via confrontada.
205 Lv 23,15-21; Nm 28,26-31.
146
4. A FESTA DAS TENDAS
que Deus propusera ao homem. Por isso, é natural que, com o decorrer dos tempos, o judaísmo rabínico tenha
ligado esta solenidade aos acontecimentos do êxodo e à promulgação da Torah no Sinai. Como diz Lohse 206, a
ocasião imediata desta alteração de significado seria a destrui-çâo do Templo que tornava impossível a oferta das
primícias, bem como a peregrinação que se fazia para as oferecer ao Senhor, em Jerusalém.
Não queremos negar de forma alguma a importância que os acontecimentos trágicos do fim da l.a revolta
judaica tiveram na orientação do judaísmo posterior. Porém, isso não explica tudo, pois há indícios que apontam
para uma perspectiva mais teológica da festa que remontam a um período anterior. Já anteriormente focámos a
teologia do Livro dos Jubileus e as suas conotações com a liturgia essénia de Qumran. Vimos como a festa ocupava
na liturgia do grupo um lugar central, independentemente da sua relação com o tema agrícola da apresentação das
primícias que é muito secundário. Ao contrário, é a festa da aliança, aliança essa que remonta ao próprio Noé que foi
o primeiro a celebrá-la, tendo sido seguido depois pelos patriarcas. Neste contexto, parece razoável poder-se afirmar
que o Pentecostes cristão (Act 2) respira algo da teologia desta festa, sendo apresentado como a resposta da
comunidade cristã que celebra o dom da nova Lei em contraposição à Lei antiga do judaísmo.

4. A festa das Tendas


O ciclo anual das «festas de peregrinação» encerra-se com a celebração de Sukkôt, também conhecida pelo
nome de «festa das Tendas ou Tabernáculos». No que diz respeito ao nome sukkôt, o Midrash retoma muitas vezes
o seu significado, baseando-se nas palavras de R. Aqiba para quem o termo significava «as nuvens da glória que
foram dadas ao povo no deserto para o proteger do sol» 207. Por sua vez o Targum descreve essas sete nuvens de
glória que «protegeram Israel e o transportaram afastando todos os obstáculos» do seu caminho e assim o povo
pôde chegar à terra prometida.

63
Tal como sucede com as festas anteriores, também a origem agrária desta não é contestada pela tradição
bíblica, já que na sua génese está o
206 Cf. E. LOHSE, hPentecoste», Grande Lessico del Nuevo Testamento, IX, Brescia, 1974, 1483.
207 Si/ra Lv 23,42-43.
147
III — A LITURGIA JUDAICA
tema das colheitas de Outono (Ex 23,16) que se celebrava durante oito dias, de 15 a 22 do mês de Tishri (Lv
23,34), correspondendo ao Setembro-Outubro do nosso calendário. O carácter agrícola da festa assume a sua plena
expressão simbólica nas «quatro espécies de ramos de árvores» que os fiéis deviam levar para dar ambiente festivo
a esta solenidade (Lv 23,40) 208. É interessante notar como o Midrash faz uma interpretação desses elementos
vegetais que deviam ser usados na festa das Tendas, ligando o seu simbolismo à Torah e à sua prática, o que
empresta à festa de Sukkôt um carácter profundamente messiânico à volta da Lei e do seu significado para a vivência
do povo 2D9.
Porém, para além desta perspectiva, uma outra sins ideias fundamentais que está associada a esta festa é a da
travessia do deserto que o povo percorreu no seu regresso do Egipto e que, realçando a sua condição de nómada,
deu consistência na alma do povo israelita à ideia de «ser peregrino na terra» que recebera de Yahwé (Lv 23,42-42).
Por isso, subjacente a esta festa está a concepção do povo que é itinerante e que na celebração das tendas, melhor
que em qualquer outra época do calendário litúrgico, vive e sente que a terra é dom de Deus e que a sua condição é
a de peregrino e hommo viator.
No seu início, a celebração desta festa parece ter tido uma certa mobilidade em termos de calendário, tendo
sido fixada a data do seu inicio para o dia 15 do mês de Tishri (equivalente à lua cheia do equinócio de Outono)
apenas no período pós-exílio. Mais tarde, foi acrescentado um
208 0 texto bíblico refere estas quatro espécies de ramos de árvores com os seguintes nomes: êtrog (fruto
semelhante ao limão ou ramo de limoeiro), lulau, hadasim e aravot. Trata-se de árvores típicas da região, entre as
quais a palma, a murta, o limão. O sentido do uso desses ramos era o de traduzir a alegria e o contentamento dos
fiéis como agradecimento do dom das colheitas já recolhidas. Por isso, era uma festa de grande alegria. A própria
saudação que se usa nesta quadra festiva diz bem dessa alegria: Simeghá Torah (alegria da Lei; festas alegres).
Z09 Suk 46b: «Tal como o etrog (ou ramo de limoeiro) tem um bom sabor e uma agradável fra-gância, assim
também entre os israelitas existem homens estudiosos da Torah e que praticam boas acções; um ramo de palmeira,
â semelhança do seu fruto, a tâmara, tem bom sabor embora careça de aroma, assim existem homens que tendo
estudado não praticam o que aprenderam com perfeição; tal como o ramo de murta rem um agradável aroma,
porém é insosso, assim existem homens de boas acções que não possuem instrução; da mesma forma que o molho
de espigas não é comestível nem tem qualquer odor agradável, assim também aqueles homens que não estudaram
nem tão-pouco praticam boas acções.» Temos quatro tipos de pessoas que simbolizam a totalidade dos diversos
grupos que formam uma nação, neste caso o povo de Israel.
148
4. A FESTA DAS TENDAS
8.° dia à celebração (Ne 8,17-18; Lv 23,36), conferindo-lhe um carácter festivo e solene em louvor da Lei e
concluindo desta forma as festas do calendário litúrgico de Israel com um dia de «grande alegria» (Simeghá Torah).
O ambiente de alegria que era conferido a esta solenidade esta bem presente no provérbio que nos é transmitido
pela Mishná, no tratado Sukkah: «Quem não viveu o entusiasmo da `recolha da água 210 jamais conheceu a alegria
na sua vida.» 211 Neste dia completava-se igualmente o «ordo» cíclico das leituras da Torah na Sinagoga, já que no
sábado seguinte ã festa, o chamado Shabbat Bereshit (1.° sábado) se inaugurava um novo ciclo litúrgico com a
leitura dos Génesis.
Quanto à vivencia propriamente dita desta festa, a sua singularidade passa pelo facto de, durante sete dias, todo
o israelita ser obrigado a viver numa cabana ou tenda, devendo af dormir e fazer a comida. Esta obrigação estendia-
se a todo o israelita varão, inclusive crianças, desde que já não precisassem dos cuidados maternos, bem como aos
prosélitos e aos escravos que entretanto tinham alcançado a liberdade, estando dela apenas isentas as mulheres, os
doentes e escravos.

64
Na história bíblica são referidos alguns momentos importantes que coincidiram com a celebração de Sukkôt,
pondo em relevo, desta forma, o carácter universalista que a festa veio a assumir pouco a pouco no judaísmo. Assim,
em 1 Re 8,60-61 diz-se que a dedicação do Templo de Salomão foi realizada por ocasião da festa. Também no
regresso do exílio esta celebração revestia grande solenidade (Esd 3,4; Ne 8,13-18), fazendo-se expressa menção dos
sacrificios e holocaustos que eram oferecidos 212. Além disso, a festa assumiu também uma forte componente
messiânica conforme podemos constatar na palavra do profeta Zacarias que convida «todos os povos a subir a
Jerusalém para a celebrar» (14,16). E talvez por isso mesmo que Flávio Josefo descreve a festa de Sukkôt como
sendo a maior e a mais santa
210 Trata-se do momento em que o sumo sacerdote e todo o povo desciam a Silo para recolher a água que era
solenemente trazida para ser lançada no altar a fim de implorar deYahwé as chuvas de Outono que deviam preparar
os campos para as novas sementeiras.
211 Suk 5,1. A Tosephta (Suk 3) aprofunda o simbolismo que esta cerimónia da procissão da água de Siloé até ao
Templo e a sua libação sobre o altar revestia: »Do cântaro da água lançada sobre o altar safam as águas da criação,
as águas que tinham dessedentado o povo no deserto e as águas escatológicas», cf. F. MAN NNS, Le judaïsme, 120.
212 No tratado Suk 55b (do Talmud de Babilónia) diz-se que eram oferecidos, na altura da festa, 70 bois em
sacrificio pelo bem-estar de todos os povos.
149
ÏII — A LITURGIA JUDAICA
de todas 213. Filão de Alexandria, por sua vez, alude a diversas interpretações, incluindo até uma espécie de
representação simbólica de sentido cósmico: «Sukkôt é a festa das colheitas e do repouso da terra214. Ela
corresponde ao plano da semana cósmica, ao tempo que segue a criação. E a festa do equinócio de Outono que nos
ensina a honrar a igualdade.» 215
No que diz respeito à forma de celebrar e viver esta quadra, a Mishmrí legou-nos um tratada 216 que constitui a
melhor fonte de informação acerca desta festa, dos seus rituais e dos símbolos que eram usados, bem como dos
cantos e dos sacrifícios que eram realizados ao longo dos diversos dias da celebração. Os dados que ai são
apresentados têm como referência o período em que ainda existia o Templo, já que esses rituais aludem
expressamente ás cerimónias que aí eram realizadas. Após a sua destruição, a festa passa a ter lugar na sinagoga, o
que obriga à adaptação de alguns dos seus rituais. Por isso, a festa conheceu uma grande evolução não apenas
ritual, em virtude da destruição do Templo, mas também teológica, uma vez que se foi perdendo a sua referência
agrícola e deixaram de ter lugar alguns dos momentos mais entusiasmantes da sua celebração, como era a solene
recolha da água em Siloé e a sua libação no altar do Templo.

a) Da festa das colheitas à celebraçã o histó rica da Aliança


Embora a primeira característica da festa seja a experiência de viver por sete dias em cabanas, feitas em geral de
ramos entrelaçados de árvores, cabanas estas que eram montadas nas varandas das casas, nos tectos, nas praças e
até no átrio do Templo, a verdade é que a teologia da celebração estava desde muito cedo associada à Aliança e ao
dom da terra. Tal como as demais, também a festa de Sukkôt tinha um enquadramento agrícola ligado aos ritos e
aos cultos de Baal, pois ele era o deus que concedia a chuva e a fertilidade aos campos. A festa das tendas tornava-
se assim a expressão desse agradecimento pelas colheitas dos campos, o que permitia agora aos israelitas
usufruírem na alegria da abundância dos bens recolhidos. Ao integrar esta festa no quadro da sua história, Israel
sentiu a necessidade de a ligar à teologia da Aliança, já que a abundância dos campos e
213 Ant 8,100.
214 De spec-lalíbur legibus 2,204.213.
215 Cf. F. M NNS, Le judaüme, 119.
216 Trata-se do tratado Sukkah, totalmente dedicado à celebraa6o da festa.
150
4. A FESTA DAS TENDAS
dos seus gados era, no fundo, a manifestação da generosidade de Yahwé para com o Seu povo, sinal da sua
fidelidade e da sua bênção.

65
Por outro lado, sentindo a terra como dom, Israel guardou desde sempre a «memória» do seu peregrinar pelo
deserto durante a caminhada do êxodo em direcção à terra prometida como o tempo idílico do seu enamo-ramento
por Deus e de Yahwé pelo Seu povo. Foi essa peregrinação por quarenta anos, vivendo em tendas e acolhendo
Yahwé na «Tenda do Encontro» que Israel descobriu a sua identidade de povo peregrino que a teologia
deuteronomista põe em realce e que os profetas enalteceram como
o «tempo ideal da salvação» 217. Por isso, Israel deve continuar na sua terra como peregrino (Sl 119,19),
vivendo essa comunhão de aliança com Deus, celebrando assim a sua peregrinação de quarenta anos em que
experimentou em tendas a protecção de Yahwé 218.
No entanto, com a sedentarização e a estruturação do culto, a festa de Sukkót assumiu uma nova significação
ligada à teologia da Aliança, embora mantivesse viva a memória do deserto e das colheitas agrícolas, tal como
sucedia com outras festas do calendário. A esta nova dimensão festiva juntou-se uma outra perspectiva, conferindo-
lhe uma dimensão universal, já que a Torah dada a Israel é a Lei para todos os povos. Trata-se assim de uma
celebração que contém, no espirito da própria festa, um significado para todos os povos e encarna um ideal
messiânico aberto à humanidade. O judaísmo tinha consciência desta universalidade, tal como nos diz o tratado
Sukkah, ao «sacrificar 70 bois, durante os sete dias de festa, oferecendo-os pelo bem-estar e pela felicidade das
setenta nações do mundo» 219. Ao fazê-lo, Israel como que recordava às nações que a aliança com Deus não se
esgotava nas fronteiras da sua terra; ao contrário, era uma aliança aberta aos outros povos e para a qual estes
caminhavam também, tal como sucedera com o povo no seu longo itinerário histórico. Esta compreensão
encontrase já presente em Isaias (2,3) e, particularmente, em Zacarias que convida
217 Desta experiência de peregrinação nasce não apenas o acolhimento que deve ser dispensado aos
forasteiros, já que Israel sentiu também essa condição no Egipto (Dt 24,18; Lv, 25,23; 1 Cr 29,13-15), mas também a
experiência da comunhão intima com Yahwé vivida no deserto (Os 2,16-18; 12,10; Am 5,25; Jr 2,2-3; Is 40,3).
218 Lv 23,41-43; Dt 16,13-16. 0 viver em tendas estendeu-se muito para além da tomada da terra e do processo
de sedentarização, pois ainda ao tempo de Jeremias (36,9-10) vamos encontrar
o grupo dos Recabitas, tribo nómada convertida ao monoteísmo bíblico, vivendo em tendas.
219 Y. VAINSTEIN, El ciclo del año judio, 140; Suk 55b, cf. nota 212.
151
III - A LJTURGIA JUDAICA
todos os povos a «subir a Jerusalém para ali celebrarem a festa das Tendas» (14,16). Trata-se de reconhecer a
realeza universal de Yahwé que abarca toda a terra e que de Jerusalém, povo eleito, se estende às outras nações.
Os profetas, mormente no perfodo do pós-exflio, procuraram reforyr as dimensões teológicas das diversas
festas, ultrapassando o carácter agrícola que as fundamentava, de modo a orientar essas celebrações para as origens
históricas de Israel de modo que o povo tomasse consciência da sua identidade de nação escolhida e eleita de
Yahwé. Como bem notamos na palavra de Oseias, Israel sempre teve a «nostalgia» da experiência do deserto e por
isso, no seu horizonte celebrativo, toda a dinâmica das festas de Israel situava-se num esquema histórico-salvífico
em quatro momentos: Libertação, experiência do deserto, aliança, terra prometida. Neste esquema, a aliança era
um momenta decisivo, pois não só confere uma identidade especifica a Israel, mas também fundamenta o mistério
da sua relação com Deus. Por isso, na festa de Sukkôt o povo experimenta este mistério da sua íntima relação com
Yahwé, que é vivida no quadro festivo do Templo, recordando o tempo em que Israel era ainda muito pequeno e o
Senhor o carregou nos Seus braços pelo deserto.
nesta perspectiva de mudança de sentido teológico de festa das colheitas (hag ha'asip) para festa das tendas
(hag haSukkôt) que a celebração assume um novo significado, centrado agora no santuário davídico, em Jerusalém,
onde decorrem as celebrações. Aí acorrem os israelitas de todas as partes para celebrar e renovar a aliança com
Yahwé através de um solene ritual de proclamação da Lei (Dt 31,9-13; 2 Re 23,1s). E neste cenário histórico que
Judas Macabeu escolhe a quadra desta celebração para fazer dela a festa da Dedicação do Templo, depois da
profanação que os selêucidas tinham feito em Jerusalém (2 Mac 1,9.18). 0 sentido messiânico da festa está
igualmente muito presente neste gesto de purificação, pois isso significa o regresso à verdadeira relação de aliança
com Yahwé.

5. As festas de Outono

66
A época de Outono é a quadra mais festiva de Israel, já que, para além da festa das Tendas, também se celebram
no início desta estação mais duas importantes festas do calendário judaico: trata-se da festa de Yom Kippur (dia da
expiação) e da festa de Rosh haShanná (festa do ano novo). Ao contrário das celebrações a que aludimos
anteriormente, estas duas festas são
152
5. AS FESTAS DE ()MATO
celebradas apenas num dia e representam um espírito totalmente diferente, voltadas mais para a dimensão da
grandeza e do fascínio de Yahwé do que para a alegria e o júbilo do povo. No dizer de S. Ben Chorin, estamos em
presença das festas que celebram o mistério tremendo que Yahwé exerce sobre Israel e sobre todos os povos da
terra 22°.
Embora nenhuma destas seja uma «festa de peregrinação», as duas ocupam um lugar de destaque no calendário
litúrgico. No entanto, enquanto a festa de Rosh haShann4 tem um carácter popular e festivo, o Yom Kippur é
essencialmente uma celebração vivida na intimidade e numa relação penitencial com Deus, já que se trata do grande
momento de expiação em que Israel toma consciência da sua condição de povo pecador e implora de Yahwé a sua
misericórdia e o seu perdão.

a) A festa de Rosh haShanná


O nome da festa de Rosh haShanná chegou até nós apenas pela tradição da Mishná, já que a Sagrada Escritura
não conhece este nome como indicativo de qualquer festividade como tal. Foi a partir dai que o name se impôs e a
festa assumiu a sua importância como início do ano dos meses:
«São quatro os inícios do ano. O primeiro de Nisãn é o começo do ano para os reis e para as festas. O primeiro
de Elul é o princípio para o dízimo do gado... O primeiro de Tishri é o início do ano em relação ao cômputo dos anos
(dos anos sabáticos, dos anos do jubileu...). O primeiro de Sevat é o primeiro do ano em relação às árvores.» 221
A festa tinha, então, lugar no primeiro dia do mês de Tishri e era conhecida da Bíblia como o «dia do toque do
Shofar» (Yom Torua`h) ou também como «recordação do tocar o Shofar» (zigaron Torna`h) e ainda como «dia da
memória» (yom zigarón)222. Ao fazer ressoar o som do Shofar, é recordada a ordem dada por Deus a Abraão para
imolar o seu filho Isaac sobre o monte Moriah, evocando assim os méritos e recordando a Israel o momento em
22° S. BEN CHORIN, .Le juda sme era prière 143.
221 Rosh haShanná 1,1.
222 As referências de textos bíblicos a esta festa não são abundantes. Temos apenas em Nm 29,1 a indicação de
que no primeiro dia do séptimo mês deve ser celebrada uma assembleia sagrada e que esse dia deve ser
«proclamado pelo toque de trombetas». A mesma indicação é dada em Lv 23,24, ligando sempre esta festa aos
clamores do Shofar que anunciam a sua realização. Para além
153
rrr— A LITURGIA , JUDAICA
que este se tornou um povo através da aliança firmada entre Yahwé e o povo. Para além disso, a alusão ao
Shofar que é feita em duas lias designações mais usuais da festa tem a ver também com o facto deste momento ser
considerado como o tempo do julgamento divino, em que Yahwé convoca a juizo todos os homens que devem
apresentar-se diante d'Ele. O som do Shofar evoca igualmente outros momentos importantes da história do povo
como sejam a sua presença no monte Sinai, a entrada e tomada de posse da terra prometida, bem como a
proclamação do ano do jubileu que sempre era anunciado pelo som do Shofar no dia de Yom Kippur.
O facto da festa ter o seu início no primeiro dia 223 do séptimo mês parece ter a ver com a reforma do
calendário que se seguiu ao regresso do exílio de Babilónia, embora essa alteração não venha explicada em nenhum
local dos textos bíblicos. Em Babilónia os judeus tinham assistido à festa de intro-nização do deus Marduk que
marcava o início do novo ano, tendo-a depois adaptado ao seu próprio culto. Também esta festa tem uma forte
conotação de «intronização» de Yahwé que se traduz no julgamento que Ele exerce sobre o mundo. Trata-se, por
isso, de celebrar o juízo de Deus acerca de cada israelita e de caria grupo, o que leva o povo a examinar as suas
atitudes de relação com Yahwé e a tomar consciência das suas próprias infidelidades.

67
Quanto à liturgia desta festa 224, ela está centrada, para além da solene proclamação do dia festivo com o toque
do Shofar, num conjunto de orações que versam, fundamentalmente, três tópicos. Temos as orações de
da menção de que deve ser convocada uma «assembleia sagrada», o único elemento que é comum nas alusões à
festa é o toque do Shofar.
223 A tradição bíblica refere esta festa como sendo apenas de um só dia (no 1.. dia do mês de Tishri). No
entanto, ela aparece na tradição pós-bíblica a ser celebrada em dois dias. Esta mudança tem a ver com o processo de
marcação do inicio da lua nova, já que esta podia ser apenas visível numa altura já tardia para a celebração da festa,
mormente em comunidades onde era difícil levar a determinação do Sinédrio que era o órgão competente para
validar a palavra das testemunhas que afirmavam ter visto já a nova fase da lua. A lentidão do processo e para que
todas as comunidades pudessem celebrar a festa conforme as determinações da Lei, esta passou então a ter dois
dias.
224 A Máshnet dedica um tratado (Rash haShand) que faz parte da «2.a Ordem» (Moed— Festas) a esta festa. Aí
é apresentado não apenas o ritual da festa, mas também as diversas tradições rabínicas sobre os diversos rituais e
símbolos da liturgia festiva. A pluralidade de opiniões que ai são expressas mostra-nos que esta festa teve um grande
desenvolvimento no judaísmo pós-destruição do Templo, já que muitos dos Mestres aí mencionados remontam a
esse período. Parece, por isso, tratar-se de uma festa que conheceu um grande desenvolvimento no período do
judaísmo rabínico, mormente ligado à liturgia sinagogal, apPcar da sua essência remontar certamente ao periodo do
2.a Templo.
154
5. As PESTAS DE OU7oNo
Malkuyot para celebrar a realeza de Yahwé sobre as criaturas do universo; os Zikronot que evocam as maravilhas
de Deus, recordando os actos de fé realizados pelos antepassados; e os Shofarot que consistem em súplicas que
imploram a Deus que faça «subir» as preces dos fiéis como o som do Shofar. Este conjunto de orações e de bêncãos
congregam já por si todo o espírito que preside a esta celebração festiva e fazem recordar a Israel o primado de Deus
que não só preside ao tempo como rei mas também convoca a juízo o Seu povo pelas suas acções 225. Temos assim
urna tríplice significação festiva que nos é transmitida pela tradição oral dos sábios e que está associada ao som
festivo do Shofar: o inicio da criação do mundo 226, o dia do juízo e o dia da renovação da aliança entre Deus e
Israel. Com a destruição do Templo, a celebração desta festa centralizou-se na Sinagoga, assumindo então um
ritualismo que se dispersa por inúmeras tradições, muitas delas já mais recentes e que dependem também dos
costumes locais das diversas comunidades judaicas.

b) A festa de Yom Kippur


Uma outra solenidade importante do período de Outono é a festa de Yom Kippur. Embora possamos apelidar
esta celebração de festa, o espírito que a ela preside não coincide, em tudo, com o nosso tradicional sentido de
festa. Ao contrário, trata-se de um momento de grande intimidade com Deus, tanto pessoal como comunitária e
nacional, levando o povo a tomar consciência da sua condição pecadora e implorando de Yahwé o seu perdão e
misericórdia. Entre as duas festas de Outono (Rosh haShannd e Yom Kippur) medeiam dez dias, que são um tempo
de arrependimento ~~7, em que se implora o perdão de Yahwé, já que o sacrifício de Kippur apenas
225 Os dois últimos capítulos do Tratado Rosh haShand são exlusivamente dedicados aos ritos e condições do
uso e toque do Shofar, bem como à recitação das bênçãos já antes referidas.
226 A data memorial da criação do mundo não era um assunto pacifico entre os rabinos. Assim, R. Eliezer (do 1.°
séc. da nossa era) afirmava que sim, que o mundo tinha sido criado no mês de Tishri, enquanto R. Joshua (da mesma
época) dizia que o mundo tinha sido criado no 1.° dia do mês de Nisãn. Isto ajuda-nos a ver como esta festa era
comparada com a Páscoa, tendo como cenário de fundo a criação.
227 Teshuvah é a palavra que designa arrependimento, conversão, regresso a Yahwé. Trata-se de um
substantivo derivado do verbo shub que significa voltar às origens, regressar. Neste caso, o arrependimento é o
regresso a Yahwé, o voltar para Deus.
155
Ill — A LJTURGIA JUDAICA

68
redime os pecados cometidos contra Deus e contra os outros quando deles se tenha implorado o perdão 228. O
sentido destes dias é o de íntima pre-. paração para a celebração do perdão no dia de Yom Kippur, devendo todos
fazê-lo segundo o espírito de Ecl 7,20 e 1 Re 8,46: «Não há nenhum justo sobre a terra que faça o bem sem nunca ter
pecado.»
No que diz respeito à singularidade da celebração do Yom Kippur, basta atender ao facto de se tratar de uma
jornada de total e absoluto jejum que devia ser guardado desde a tarde de véspera até ao entardecer do próprio dia,
sendo proibidos todos os trabalhos, incluindo aqueles que eram admitidos em dia de sábado. Trata-se, por isso, de
uma jornada penitencial no mais genuíno sentido dos seus elementos, já que todo o povo a deve viver e celebrar
como sendo parte integrante da sua identidade. Embora possamos encontrar esta dimensão penitencial em outras
religiões, ela faz parte da essência do judaísmo e atinge aqui uma das suas expressões mais profundas e dramáticas
229.
Esta festa decorre no décimo dia do mês de Tishri e é conhecida na Bíblia como o «dia da expiação» (Yom Kippur
ou também yam haKippurim). Ao contrário do que sucedia com a festa de Rash haShanná, as referências bíblicas a
esta celebração são abundantes e percorrem um pouco toda a Sagrada Escritura. Os textos normativos da festa
encontram-se no Pentateuco 230, embora depois os seus ecos se repercutam em muitos outros livros, mormente na
teologia profética que interpela o povo à conversão e à expiação dos seus pecados (Os 14,2; Am 5,22-24).
O nome da festa resulta da raiz do verbo kappar, na sua conjugação Piel que significa «expiar». Embora a origem
do termo seja desconhecido e objecto de múltiplas interpretações, a verdade é que o seu uso no AT é muito
frequente e na sua forma Piel significa o «resultado da acção realizada», devendo traduzir-se por «realizar a
expiação» 231. Trata-se, portanto,
228 Cf. F. MANNS, Le judaüme, 124.
229 Cf. N. WINTER (ed.), The High Holy Days, Popular Judaica Library, Jerusalém, 1973: «The concept of
atonement is found in other religions as well. Unique to Judaism, of all the world's great faiths, is the setting aside of
a specific day for this purpose. The Bible calls the day Shabbat Shabbaton, a Shabbat of Shabbats. it is not just a
memory of the world's creation but a memory of Creation itself» (p. 54).
230 De entre outros, saliento: Ex 30,10; Lv 23,27-28; 25,9; Nm 29,7-11.
231 E. JENNI-C. WESTERMANN, Diccionario Teológico Manual del Antiguo Testamento, 1 vol., Madrid, 1978,
1155-1158.
156
5. As FESTAS DE OUTONO
de um acto que se faz, oferecendo um sacrificio ou um resgate para assim restabelecer uma relação que
previamente tinha sido quebrada. Quem oferecia este sacrificio era o sacerdote; era ele que fazia a expiação.
Na Sagrada Escritura temos diversos textos que nos falam de expiações colectivas (Dt 21,1-9; 2 Sam 21,1-9) e o
Kippur é um sacrifício do tipo de expiação colectiva que retira o pecado de todo o povo. Trata-se apenas de um rito
sacrificial que por si mesmo realiza a acção de purificar o povo das suas faltas, embora a teologia profética reforce a
dimensão pessoal através da conversão do coração. No que diz respeito à liturgia do Yom Kippur, temos Lv 16, Nm
29,7-11 e Ex 30,10 que nos descrevem o ritual da celebração de acordo com aquilo que seria a prática corrente no
período do 2.° Templo. No entanto, muitos dos elementos desta celebração remontam, certamente, ao período
anterior ao Exílio, embora as tradições que chegaram até nós sejam de época posterior. O facto de Esdras e Neemias
não se referirem a esta solenidade pode constituir um sinal de que ao seu tempo a festa ainda não tinha assumido o
papel que depois veio a ter no calendário festivo.
Confrontando os elementos referidos em Lv 16 com aqueles que nos fornece a Mishná no tratado sobre o «Dia
da Expiação» 232 facilmente se pode verificar que os rituais do Yom Kippur se mantiveram muito constantes e sem
grandes alterações, decorrendo estas apenas das circunstâncias históricas e das consequências que lhe são
inerentes, como sejam a destruição do Templo e a diáspora e a consequente celebração ritual da festa nas sinagogas
e nas casas.
Assim, no período da existência do Templo, o dia de Yom Kippur era o único do ano em que o sumo sacerdote
podia entrar no «Santo dos Santos» para pronunciar aí o nome Yahwé e oferecer o incenso, devendo também ser ele
a oferecer todos os sacrifícios nesse dia 233. As cerimónias

69
232 A Mishná dedica um tratado, no conjunto da 2.» Ordem, a esta festa. Este tratado tem o nome de Yoma (ou
Yom haKippurim), o que manifesta logo a importância que o rabinismo atribuía a esta celebração, pois Yoma significa
«o dia por excelencia». Além deste tratado, também a Tosephta e o Midrash Sifra (acerca do Levitico) comentam as
cerimónias do Kippur.
233 Como tinha de presidir a todos os actos celebrativos da festa, o sumo sacerdote devia permanecer em
privado durante uma semana, de forma a não contrair impureza ritual e a preparar as celebrações. Neste dia, devia
ainda mudar cinco vezes as suas vestes, de forma a realizar os diversos ritos com vestes diferentes, conforme o que
estava determinado. No «Santo dos Santos» apenas podia entrar com vestes brancas de linho e nunca com
ornamentos dourados, para não recordar o
157
III —A LITURGIA jUDAICA
do dia tinham inicio com a oferta do sacrifício Tamid (sacrificio quotidiano) no Templo, após o que lançava as
sortes sobre os dois bodes que deviam ser depois sacrificados: um para Yahwé e o outro para Azazel. O
oferecimento do incenso era o momento alto e emblemático da celebração. Tomando numa das mãos (a direita) um
incensário com brasas retiradas do altar e na outra mão uma paleta com incenso, o sumo sacerdote entrava e
colocava o incenso nas brasas para que o recinto do «Santo dos Santos» ficasse repleto de fumo, saindo fora para
dizer uma oração 234. O tratado Yom haKippurim (Mishná) descreve-nos detalhadamente este momento e mostra-
nos como a forma de proceder era discutida pelas duas grandes facções do judaísmo: fariseus e saduceus. Para
estes, devia ser colocado muito incenso já antes do sumo sacerdote entrar a fim de que ele não chegasse a ver a face
de Yahwé e morresse. Ao contrário, os fariseus diziam que o incenso apenas devia ser colocado quando já estivesse
dentro, pois no santuário não estava Yahwé, mas apenas a sua Shekinah. A estada do sumo sacerdote no interior do
«Santo dos santos» devia ser curta, já que a demora aí poderia significar que algo de anormal se tinha passado.
Terminada a cerimónia do incenso, o sumo sacerdote procede então à imolação de um dos «bodes de
expiação», aquele que tinha sido escolhido para Yahwé, devendo proceder ao seu sacrifício para em seguida ungir o
povo com o seu sangue. Também aqui o ritual assume um sentido singular, pois retoma a cerimónia pascal de ungir
as portas com o sangue do cordeiro. Este rito tinha naturalmente um significado muito profundo, sendo o sangue do
«bode de expiação» o resgate do povo. Quanto ao outro bode, que tinha sido destinado a Azazel e sobre o qual
eram lançados os pecados do povo, era enviado para o deserto para aí ser precipitado num despenhadeiro e as sias
carnes comidas pelas aves do céu. Assim, ficaria Israel livre das suas faltas e o povo purificado dos seus pecados. O
cap. vi do tratado Yom haKippurim descreve-nos alguns momentos dessa correria em direcção ao deserto e deixa
entender que cada etapa era acompanhada por pessoas diferentes para que isso fosse feito no mais breve espaço de
tempo
pecado de Israel ao adorar o bezerro de ouro. Para além dos sacrifícios próprios do dia de expiação, devia
também ser ele a oferecer o «sacrificio quotidiano» (Tamid) que diariamente se fazia no Templo.
234 Yom haKippurim 5,1.
158
5. As FESTAS DE OUTONO
possível. Chegados ao deserto e lançado o bode no despenhadeiro, logo faziam sinais para que em Jerusalém se
soubesse que o povo já estava livre dos seus pecados, devendo o sumo sacerdote dar sinal disso mesmo.
Procedia-se então à leitura da Lei e concluía-se a celebração com diversos ritos de santificação e a recolha dos
diversos instrumentos usados na liturgia da festa. Após a destruição do Templo, a cerimónia passou a ser celebrada
na Sinagoga, assumindo então uma perspectiva mais orientada para a celebração da palavra em vez dos ritos
festivos que tinha quando existia o Templo.
Como já referimos, a festa de Yom Kippur está no âmago da representatividade do judaísmo, razão pela qual
encontramos inúmeros ecos desta celebração em todos os quadrantes da literatura judaica, tanto litúrgica como
normativa, incluindo textos de alguns dos mais notáveis pensadores do judaísmo. Ë paradigmática a descrição que
nos dá Filão de Alexandria acerca do espírito desta celebração:
«O dia santificado é inteiramente dedicado à oração e às súplicas e as pessoas, desde manhã até à noite,
empregam o seu tempo exclusivamente oferecendo petições de humildes súplicas... para remissão dos seus
pecados, voluntários ou involuntários, e tomando em consideração as mais nobres esperanças que se fundamentam
70
não nos méritos pessoais, mas na misericordiosa bondade de Deus, que concede perdão de preferência ao castigo.»
235
Também em Qumrãn foram encontrados fragmentos com orações para o «dia da expiação», mostrando assim
que esta celebração percorria todos os grupos do judaísmo, tal era a abrangência da sua mensagem e das
motivações que lhe servem de suporte. O mesmo acontece na literatura pseudoepigráfica, como é o caso do Livro
dos Jubileus que liga a festa do Yom Kippur ao dia em que Jacob chorou e fez pranto quando foi informado da
suposta morte do seu filho José (Gn 37,31-35). Este momento, para os Jubileus 236, estaria na origem da liturgia do
«dia da expiação». O bode oferecido no Templo como sacrificio de expiação seria a memória do animal que os
irmãos de José mataram para ensanguentarem a camisa
235 FHA() de ALEXANDRIA, De specialibus legibus, II, 194-203.
236Jubileus 34,18-19.
159
rrr -- A LITURGIA JUDAICA
do irmão que foi enviada a Jacob como sinal da morte do seu filho que entretanto eles tinham vendido para o
Egipto 237.

6. Outras festividades do calendá rio


O calendário litúrgico do judaísmo não se esgota no conjunto das festas a que já aludimos. Outras há que
assumem uma importância assinalável no ciclo anual, inclusive com grande impacto nos movimentos judaicos
extrabíblicos e também no NT e na teologia neotestamentária. De entre estas, algumas merecem-nos uma particular
atenção, razão pela qual vamos dedicar breves palavras a duas delas: a «festa da luz», também chamada Hanukkah e
a «festa de Purim». Não sendo as únicas, são certamente aquelas que no passado, e no presente, têm uma maior
representatividade no imaginário festivo do mundo judaico já que congregam em si a memória histórica de alguns
dos momentos mais determinantes da história judaica. Ao contrário das festas a que anteriormente aludimos, estas
sobressaem pela representatividade histórica que lhes está associada e não pela componente agrícola ou nomádica
que lhes possa ter servido de origem.

a) A festa de Hanukkah
A festa de Hanukkah é celebrada no dia 25 do mês de Kisleu que corresponde, em geral, ao nosso mês de
Dezembro, razão pela qual há uma proximidade bastante grande entre esta festa e o Natal. A grande motivação que
preside à Hanukkah é a memória da dedicação do Templo após a profanação levada a cabo por Antioco Epifanes (1
Mac 4,59), por alturas de 175 a. C., com a imposição do helenismo na Palestina. Trata-se, portanto, de uma
festividade que tem como motivação um acontecimento histórico, bem datado e, como tal, com um objectivo
específico: celebrar a dedicação do Templo e de Jerusalém após a reconquista ao tempo dos reis selêucidas, levada a
cabo pela familia de Matatias Macabeu e o grupo dos Hasidim, comandados por Judas. É também conhecida como a
«festa da luz», coincidindo com o solstício de Inverno, o que pode representar uma
237 Cf. N. WINTER (ed.), The High Holy Days, Popular Judaica Library, Jerusalém, 1973, 66 e 88.
160
6. OUTRAS FESTIVIDADES DO CALENDARIO
adaptação de costumes pagãos ancestrais comuns, aliás, em outros povos e tradições culturais 238.
As fontes históricas que nos reportam aos acontecimentos ligados à tomada de Jerusalém e consequente
purificação do Templo e da cidade encontram-se nos livros dos Macabeus que, embora não façam parte do cânon
judaico, são considerados como obras de grande importância para o conhecimento do judaísmo do periodo
intertestamentário.
Embora o livro dos Macabeus não mencione ritos nem celebrações especiais para a dedicação, trata-se de uma
festa que perdura por oito dias, toda ela centrada no simbolismo da luz e retomando o padrão das festas levadas a
cabo por Salomão quando foi feita a dedicação do 1° Templo. O ritual da festa concentra-se no acender rias luzes da
Hanukkah, o candelabro de 8 lâmpadas, uma para cada dia da festa. Cada dia acendia-se uma lâmpada nova da
Menorah de nove braços, simbolizando assim a nova luz que vêm do Templo e que alumia o povo na sua caminhada
239. De acordo com 2 Mac 10,6, a festa de Hanukkah era celebrada à maneira da festa de Sukkot, podendo haver
71
aqui uma alusão implícita às tendas de Sukkot e à Tenda-Templo que é a morada de Yahwé no meio do Seu povo. De
acordo com a tradição popular, quando os asmoneus se apossaram do Templo encontraram apenas uma pequena
ampola de óleo que permanecia intacta e com o selo do sumo sacerdote, já que os gregos tinham consumido todas
as demais. Ora, esse óleo apenas daria para alimentar o candelabro por um dia, tendo então sucedido um autêntico
milagre, já que nessa altura deu para oito, razão pela qual a festa passou a ocupar 8 dias, recordando assim o milagre
realizado. Daqui nasceu então o costume de acender a Hanukkah, o candelabro de oito braços, durante oito dias,
celebrando a purificação do Templo e a vitória do grupo dos macabeus que, apesar de serem poucos, levaram de
vencida o poderoso exército selêucida que ocupava Jerusalém.
238 Na cultura chinesa temos nesta quadra a «festa das lanternas» que consiste em passar a noite vigilantes, em
clima festivo e ambiente familiar, aguardando nas praças e jardins que se possa ver a lua na altura do solstício de
Inverno.
239 De acordo com o Talmud de Babilónia (Shab 2 1b), a forma de acender as lâmpadas era também objecto de
disputa entre as duas principais escolas rabínicas do periodo intertestamentário. Assim, para a escola de Shammai,
no primeiro dia eram acesas todas as lâmpadas, devendo depois apagar-se uma mais em cada dia da festa. Para a
escola de Hillel, ao contrário, no primeiro dia apenas se acendia uma e, depois, progressivamente ia-se acendendo
cada dia uma mais até completar as oito no 8.» dia da festa.
161
III - A LITURGIA JUDAICA
Flávio Josefo chama à Hanukkah a «festa das luzes» 240. A luz tem aqui no cenário desta festa uma dupla
simbologia, já que significa a vida do crente e, ao mesmo tempo, a Lei. Para alcançar a plenitude da vida, o crente
deve abraçar a Torah que é luz para os seus caminhos. Este simbolismo está já bem presente nos Salmos e também
nos textos sapienciais. É particularmente significativa a descrição que o salmista faz no Si 16,$15, bem como no livro
dos Provérbios 6,23 e 20,27, estabelecendo uma profunda relação entre a luz e a vida. É à luz da Torah que o justo
encontra os caminhos de Yahwé e é do Templo que essa luz irradia, tal como já Isaías havia proclamado: «Vinde,
subamos ao monte do Senhor, à casa do Deus de Jacob... pois de Sião virá a Lei... caminhemos à luz do Senhor»
(2,3.5).
Não é explicita a razão por que se chama a esta quadra a «festa da luz». Uma das possíveis motivações estaria na
relação próxima que existe entre esta celebração e a festa de Sukkâte que a cerimónia da dedicação levada a cabo
pelos asmoneus tivesse acontecido num contexto da festa de Sukk it, quando se procedia à recolha da água para ser
lançada sobre o altar. Esta cerimónia, além das danças e cantos, era acompanhada por muitas luzes que lhe
emprestavam um brilho especial. A Lei recorda que em cada casa devia ser acesa uma Hanukkah, embora os mais
zelosos defendessem que devia ser uma por pessoa. O acender da luz ao entardecer era acompanhado por orações
para abençoar a luz, para recordar o milagre da ampola de azeite encontrada no Templo.
S. João, no seu evangelho, menciona a festa de Hanukkah coma um dos cenários em que decorre uma das
manifestações de Jesus em Jerusalém (10,22-23). 0 contexto aponta-nos para Jesus que se manifesta coma a
verdadeira luz. De facto, Ele mesmo havia declarado também que os discf-pulos deviam ser luz, colocando assim no
centro da sua mensagem o tema da luz que percorre todo o AT, desde o Génesis, faça-se a luz, passando pela Torah
que é luz, pela profecia que exorta os povos a caminharem à luz do Senhor, até à luz que ilumina no Templo e é sinal
da presença de Yahwé no meio do seu povo. Trata-se, por isso, de uma festa carregada de simbolismo, já que a luz
significa não só a Lei que ilumina o justo na sua caminhada, mas também a própria alma, o espirito, que é sinal da luz
divina manifesta no mundo.
240 F. JosEFo, 41 12,325.
162
6 OUTRAS FESTIVIDADES DO CALENDARIO

b) A festa de Purim
Tal como em Hanukkah, também a festa de Purim tem como motiva-cão um acontecimento histórico. Embora
seja considerada uma festa menor no conjunto do calendário e não contenha em si qualquer dimensão teológica, a
verdade é que se trata de uma quadra muito alegre e muito querida ao povo judeu, pois faz memória da sua
libertação das mãos de Amin que pretendia eliminar todos os judeus da Pérsia. O texto base que serve de suporte a
esta celebração é o livro de Ester que, por isso mesmo, se tornou como que uma espécie de «manual» festivo desta
72
quadra. A primeira alusão que encontramos à celebração deste dia já referido como festa é em 2 Mac 15,36. Isto
mostra-nos que a festa estava já instituída no período anterior à nossa era e era também celebrada no Templo, uma
vez que o Talmud menciona o facto dos sacerdotes que estavam em serviço no Templo terem de deixar as suas
tarefas para ouvirem a leitura de Ester 241.
A festa de Purim tem lugar no dia 14 do mês de Adar 242, correspondendo em geral ao nosso mês de Fevereiro-
Março e o seu nome deriva da palavra «pur» (rwp) que significa «sorteio ou lançar sortes», recordando assim a
libertação do povo ameaçado pelos perversos planos de Amán 243. A celebração inicia-se na véspera, a 13 de Adar,
com um dia de jejum, em memória do jejum guardado por Ester quando suplicava ao Senhor que a ajudasse a
desmantelar os maquiavélicos planos de Amán. Este era o dia em que estava prevista a eliminação de todos os
judeus do reino de Assuero, da Pérsia, altura em que a rainha Ester pediu a todos que jejuns-sem a fim de que o
decreto real fosse anulado.
O tratado Megillah (o rolo) da Mishná que comenta o livro de Ester traça-nos o quadro desta festa e descreve a
forma litúrgica de a celebrar. Trata-se de uma celebração que comporta duas componentes festivas;
241 Meg 3a-b.
242 l/ o 12.° mês do calendário judaico, se seguirmos o sistema de contar os meses a começar pelo mês de
Nisãn, au seja, de acordo com «o começo do ano para os reis e para as festas» (Rosh haShanná 1,1). Tal como sucede
com outras festas, a tradição rabínica alargou a festa de Purim a dois dias (14 e 15 de Adar) nas cidades com
«muros», ou seja, ãs cidades que eram consideradas como tendo tido muralhas ao tempo de Josué. A
fundamentação desta prerrogativa decorre da interpretação feita a Est 9,19 que diz que a festa deve ser celebrada
no dia 14 nas «cidades não fortificadas». Por isso, naquelas que são fortificadas devem ser dois dias. Jerusalém é um
desses casos.
243 Est 9,26; 3,7.
163
HI — A LITURGIA JUDAICA
uma, tipicamente sinagogal, tem o seu momento alto na leitura do livro de Ester que era assumida como uma
obrigação de todo o crente judeu. Fundamentalmente, o tratado Meguillah versa sobre o modo e as formas como
esse preceito sinagogal deve ser posto em prática, indicando também os textos da Torah e dos Haftarot244 que
deviam acompanhar o oficio sina-gogal desse dia 245. A outra, de cariz popular, tem a sua expressão nas
manifestações folclóricas de rua e nos jogos familiares que decorrem nesse dia. Para tal, além das máscaras alusivas
às personagens referidas no livro de Ester e dos ruídos estridentes que são feitos sempre que o nome de Amán é
pronunciado, é habitual também trocarem-se prendas e manifestações de alegria e de partilha entre amigos e
familiares. Para além dos banquetes festivos (Est 9,17), o dia devia também ser comemorado com esmolas aos
pobres, para que estes pudessem saborear igualmente uma boa comida. Estas manifestações de caridade fraterna
deviam ter lugar antes de se proceder à leitura do texto de Ester. O cenário festivo de Purim comporta muito daquilo
que é costume fazer-se entre nós na altura do Carnaval, razão pela qual se diz que a festa de Purim é o Carnaval
judaico, já que a cultura hebraica não tem nada de semelhante. Trata-se, por isso, de uma festa que tem um
acentuado carácter profano, tendo hoje perdido já muito daquela mística alusiva à libertação a que aludem as
referências do livro de Ester.

7. As festas judaicas e o Novo Testamento


Em jeito de conclusão, podemos dizer que este breve percurso que fizemos pelas principais festas do calendário
judaico ajudou-nos a ter mais presente uma realidade que cada vez se confirma mais no nosso horizonte
244 São os textos dos Profetas e dos Escritos que deviam servir de complemento às leituras do dia. É
interessante verificar o conjunto de advertências que o tratado faz para proibir a leitura oule a tradução de
determinados textos. Exemplos: «A história de Ruben (Gn 35,22) pode ser lida, mas não traduzida»; «A história de
Tamar (Gn 38,13ss) pode ser lida e traduzida»; «A primeira história do bezerro (Gn 32,1-20) pode ler-se e traduzir-
se»; «A bênção dos sacerdotes (Nm 6,24-26), a história de David (2 Sam 11,2-17) e de Amón (2 Sam 13,1s) não se
podem ler nem traduzir»; «Não se pode concluir com o carro (Ez 1,4s)n.
245 A leitura neste dia do livro de Ester na sinagoga era tão importante que a tradição judaica impôe até às
mulheres a obrigação de a escutarem, tendo em conta a sua participação no acontecimento, cf. Meg4a.
164
73
7. As FESTAS JUDAICAS E O Novo TESTAMENTO
cultural e espiritual: são inúmeras as incidências e coincidências entre as festas judaicas e o cenário da revelação
neotestamentária, mormente através de muitas das categorias linguisticas e teológicas que lhe servem de contexto.
Esta realidade torna-se evidente quando analisamos o Evangelho de S. João e verificamos como a manifestação
decorre ao ritmo clns próprias celebrações do calendário judaico, num ritmo que marca não apenas a
contextualização dessa revelação (Jerusalém e os grandes temas do AT), mas também numa progressão contínua em
direcção a uma meta que o autor se propõe como itinerário para sua obra e, acima de tudo, como metodologia para
dar a conhecer a plena identidade do Mestre. Temos esse ciclo bem estruturado em 3 momentos significativos:
— Jo 2,13 — A Páscoa.
— Jo 5,1 — Talvez a festa das «Semanas» (Pentecostes)?
— Jo 7,2 — Festa das Tendas.
— Jo 10,22 — Festa de Hanukkah.
Cada um destes cenários representa um momento crescente na revelação de Jesus, servindo-se do tema da
própria festa que era celebrada. Este recurso às festas judaicas para explicitar a mensagem neotestamentária
mostra-nos não apenas a riqueza teológica da liturgia judaica, mas enquadra igualmente algumas das temáticas
escolhidas por S. João para nos dar a conhecer a Jesus na sua relação com o AT. Portanto, e apesar da autonomia do
judaísmo versus cristianismo e vice-versa, a verdade é que há uma estreita relação de continuidade e de
complementaridade que não podemos esquecer e, muito menos, ignorar. A santidade de Yahwé e a Sua glória que
constituíam o núcleo central de toda a liturgia judaica, tal como a proclamou o profeta Isaías no relato da sua
vocação 246, é a mesma santidade que a Igreja proclama no seu louvor quando convocada pela manifestação do
Senhor Jesus ressuscitado e glorificado. É esta santidade festiva, vivida e testemunhada na liturgia, que une e dá
continuidade à mensagem revelada e empresta ao culto cristão a dimensão que o torna um lugar teológico do nosso
encontro com o mesmo Deus de Jesus Cristo.
Apesar de alguma distância, por vezes motivada por desconfianças ou equívocos, a verdade é que a dimensão
festiva do culto judaico e do culto
246 Is 6,3.
165
rrr - A r,rTURGrA JUDAlCA
cristão comungam e pertilham a mesma santidade e fazem dela o lugar comum do encontro de Deus, tal como
Jesus através dele se deu a conhecer aos homens. Por isso, num movimento de convergência, ontem como hoje,
o culto festivo continua a ser esse espaço do encontro e da comunhão.
Por isso, importa olhar o culto festivo e litúrgico do judaísmo como um espaço onde se pode fazer a experiência
comum do encontro com Deus e não como uma oposição de manifestações rituais assumidas por qualquer das
partes. Todavia, importa ter presente que esta complementaridade a que aludimos não é apenas funcional, nem
metodológica. Não está em função do conhecimento do NT nem condicionada por uma maior ou menor
proximidade aos textos veterotestamentários. Ela é essencial por ela mesma, por tudo quanto nos revela e deixa
partilhar da essência do Deus do AT que era celebrado no culto e que, para nós cristãos, assume a sua plenitude no
acto festivo que é o nosso encontro com Cristo.

8. Algumas oraçõ es mais significativas do judaísmo


Embora muitas vezes se diga que o judaísmo é a religião do Livro, a verdade é que ele é também a religião da
oração, tal é o significado que os momentos de oração assumem e determinam o ritmo da vida do crente israelita.
No entanto, o conhecimento da oração judaica e das suas preces mais representativas não é apenas importante para
o judaísmo; é-o também para o cristianismo, pois a nossa oração cristã é filha e herdeira da tradição judaica e colhe
aí os seus elementos mais representativos: os Salmos. Estes são como que a «alma da oração» da fé bíblica que
percorre o tempo e a história do povo de Israel, traduzindo as múltiplos matizes da sua vivência.
Não nos vamos ocupar da oração em geral, uma vez que isso exigiria uma longa e árdua tarefa de pesquisa que
não está prevista no âmbito deste nosso trabalho. Ocupar-nos-emos, sim, de algumas das preces que melhor
traduzem os elementos principais da espiritualidade judaica, como sejam: a santificação do Nome, a presença da

74
Shekinah, a intercessão, a bênção, o memorial das acções de Yahwé, o mérito dos «pais». Para além de mais
significativas, estas orações representam, igualmente, o que de mais essencial existe no judaísmo. Destacamos,
entre outras: o Shemá Israe4 o Shemoné Esré e o Qiddush. Trata-se de três orações que definem a identidade da fé
judaica e testemunham igualmente o ritmo da sua vivência.
1.66
8. ALGUMAS ORAÇÓES MAIS SIGNIFICATIVAS DO ]UDA1SMO
Em relação ao Shemd Israe4 mais do que uma oração propriamente dita, trata-se de uma profissão de fé que
retoma o texto de Dt 6,4, afirmando uma das verdades fundamentais da fé biblica: a unicidade de Deus em
contraposição a todos os deuses. Trata-se, por isso, de uma espécie de credo que o judeu crente deve recitar duas
vezes ao dia: de manhã e ã tarde 247. Esta recitação do Shemá deve ser acompanhada por duas bênçãos uma antes
e uma depois, quando é rezada de manhã e por duas bênçãos uma antes e duas depois, na oração da tarde.
A primeira das bênçãos da manhã — ao Criador da luz - é um texto muito belo que vale a pena referir aqui:
«Ilumina Sião de uma nova luz. Faz que todos nós mereçamos em breve esta nova luz. Bendito sejas Tu, Senhor,
que criaste a luz... Bendito sejas Tu, Senhor, que escolheste o Teu povo Israel por amor.»
Ë partindo desta bênção que se introduz o Shemá, em que se proclama o amor a Deus e se declara que Ele deve
ser amado «com todo o coração, com toda a alma e com todo o entendimento» 24$. O texto do Shemá junta em si
referências a três passagens bíblicas (Dt 6,4-9; Dt 11,13-21 e Nm 15,37-41) que atestam o compromisso do amor a
Deus como fundamento da fé biblica. Trata-se do compromisso da aliança, em que o povo testemunha o amor a
Deus como o primeiro dos mandamentos. A tradição judaica249 faz remontar esta profissão de fé ao momento da
morte do patriarca Jacob quando abençoava os seus filhos antes de morrer (Gn 49). Por sua vez, o Targum faz já uma
interpretação do texto do Dt 6,5, de forma que esta se impôs no judaísmo e assume um carácter normativo na
Mishná, Berakot 9,5. Vejamos o texto:
«Ë preciso bendizer a Deus, tanto pelo mal como pelo bem, porque está dito: Amarás ao Senhor teu Deus com
todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as forças do teu coração; com as tuas duas inclinações, a boa e
a má.»
247 Berakot 1,4.
248 Cf. Mc 12,29-30 e Lc 10,25-27.
249 Cf. Tg Néofiri a Dt 6,4 e a Gn 49,2. Segundo esta versão do Targum, enquanto os filhos recitavam o Shemd na
altura da morte do pai, Jacob proclamava solenemente o nome de Deus: «Bendito seja o seu Nome glorioso por toda
a eternidade.» Segundo o Talmud(Pesah 56a), na altura em que Moisés recebia no Sinai a Lei, os anjos recitaram a
mesma benção, o que pode constituir um belo cenário que ajuda a compreender a proclamação dos anjos aos
pastores na noite de Belém.
167
III — A LITURGIA JUDAICA
Esta fórmula do Targum era certamente antiga e foi-se impondo como núcleo central da própria tradição judaica
que era proposta aos crentes, juntando numa breve síntese os três pólos que testemunham o amor no Deuterónimo
(o coração, a alma e as forças). O próprio NT mostra-nos isso mesmo 250
O texto da primeira parte do Shemá, elaborado a partir do Dt 6,4-9, e que é designado como a «aceitação do
jugo do Reino dos céus» 251, mostra-nos como deve haver um profundo empenhamento do crente em viver e
aplicar os preceitos práticos da Lei na vida do dia-a-dia. Esses preceitos são cinco: «amar a Deus, ensinar a Lei aos
filhos, falar da Lei sempre que possível, usar as filactérias e pôr a mezuza nos batentes das portas» 252. Trata-se de
orientações muito práticas e concretas, o que testemunha assim uma relação muito próxima do crente na vivência
da Lei. Não é apenas um compromisso pessoal; o crente assume igualmente o dever de inculcar esse preceito aos
filhos, aos da sua «casa».
Em relação à 2.a parte, formada pelos versículos de Dt 11,13-21, o texto do Shemd acentua fundamentalmente a
aceitação dos mandamentos por parte dos crentes que rezavam o Shemcí, afirmando o principio da recompensa
para aqueles que punham em prática os preceitos da Torah ou do castigo para aqueles que os recusavam, seguindo
o esquema habitual numa perspectiva didáctica de contrapor «a bênção à maldição». O texto recorda os benefícios

75
de Yahwé que testemunham o amor ao Seu povo, mormente o dom da chuva, esperando por isso ver retribuído esse
amor, numa espécie de contrato entre Deus e Israel, tal como nos refere esta passagem de Dt Rabbah 4,4:
«Deus diz ao homem: a minha luz está na tua mão e a tua luz está na minha mão. A minha luz é a Torah, a tua luz
é a tua alma. Se tu guardas a minha luz, eu guardarei a tua luz. Se tu extingues a minha luz, eu extinguirei a tua luz.»
250 Os textos de Mt 22,34-40 e Lc 10,25-28 confirmam esta perspectiva, mostrando como nesta benção se fazia
unia espécie de síntese da Torah. Embora referida nos tres Sinópticos, o texto de Lucas desenvolve esta perspectiva
do amor a Deus na sua concretização ao próximo, já que apresenta esta interpretação como uma espécie de
introdução à parábola do «Bom Samaritano».
251 F. MANNs, La prière d'Isra4 131.
252 Cf. E MANNs, La prière d7s7114 132.
168
8. ALGUMAS ORAÇÕES MAIS SIGNIFICATIVAS DO JUDAÍSMO
Como se pode constatar, o judaísmo sempre reforça esta relação recíproca entre Deus e os crentes, uma
reciprocidade que confere a Yahwé a iniciativa, mas que pressupõe a colaboraçcão activa e empenhada do homem.
Há, por isso, uma estreita relação entre a acção de Deus e o empenho do crente em aprender e viver a Torah que é a
luz de Deus.
Quanto à 3.a parte do Shemá, retomada de Nm 15,37-41, aí se prescreve o uso das franjas (tzitzit) nos quatro
ângulos do xaile da oração (taut) como sinal da aceitação da Torah e recordação dos mandamentos 253 A insistência
nesta prescrição de usar as franjas para recordar os mandamentos visa, como diz Ben Chorin 254, «advertir o
homem para que não siga as más inclinações do seu coração e dos seus olhos», tal como está escrito: «Vós sereis
consagrados ao Senhor, vosso Deus» (Nm 15,40). O texto termina com uma evocação que recorda o inicio do
Decálogo: «Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos fez sair da terra do Egipto...» Esta alusão final à libertação do
Egipto e à bênção redentora de Yahwé mantém viva a esperança do povo numa restauração definitiva e a chegada
do reino escatológico.
No que diz respeito à recitação do Shemá, o texto de Mc 12,29-33 a que já fizemos referência associa a sua
recitação à dos mandamentos, o que parece ter sido um uso antigo, embora o judaísmo posterior, por razões da
polémica anticristã, tenha dissociado a leitura das duns orações 255.
A oração de Shemoné Esré constitui o núcleo central da oração quotidiana e era recitada na sequência do
Shemá, pelo que é também conhecida pelo nome de Tephild, isto é: «A oração» por excelência. A tradição judaica
sublinha a sua antiguidade, já que o tratado Berakot 33a, do Talmud de Babilónia, diz que a oração de Shemoné Esré
remonta aos «Homens da Grande Assembleia», ou seja, à geração pós-exílica256, na redacção da qual teriam
colaborado uma centena de profetas 257. A preocupação em funda-
253 O termo tzitzit é um «Hapax legomenon» que apenas aparece uma vez na Escritura (Nm 15,37), aludindo-se
também ao seu uso em Mt 23,5.
254 S. BEN CHORIN, Le judaïsme en prière, 52.
255 A recitação do Shemá e dos mandamentos é ainda comprovada pela Mishnd, no tratado Tamid 5,1.
256 Apesar desta menção do Talmud, em Berakot 28b diz-se igualmente que a redacção definitiva desta oração
é obra de R. Gamaliel II e terá sido fixada depois da destruição do Templo, cerca do ano 100 (da nossa era) e na
sequéncia do sinodo de Yabné.
257 S. BEN CHORIN, Le judaïsme en prière, 53.
169
HI — A LITURGIA JUAAICA
mentar as origens da oração de Shemoné Esré num período tão determinante para o judaísmo e de fazê-la
remontar ao tempo de Esdras e Neemias e dos profetas Ageu e Zacarias é um testemunho claro da importância que
esta tinha para a piedade judaica que nela se revia e sentia o cerne da sua própria identidade.
Embora continue a ser designada como a oração das «dezoito bênçãos», na verdade trata-se de dezanove, já
que, em Yabné, os rabinos teriam acrescentado uma nova bênção, a actual 12.a, às dezoito já existentes. Esta nova

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bênção tinha um objectivo muito explícito, pois visava identificar a presença de «Nosrim» e de «Minim» 258 nas
reuniões sinago-gais. De facto, no sínodo de Yabné os judeus determinaram acrescentar uma nova oração ás dezoito
existentes para que fossem identificados os «Minim» que acreditavam em Jesus, mas que continuavam a frequentar
a sinagoga. O objectivo era, naturalmente, o de impedir que eles pudessem anunciar aí que Jesus era o Messias.
Desta forma, ao evitarem recitar uma bênção contra eles mesmos, seriam identificados e excluídos da comunidade,
de forma que o judaísmo podia excluir assim todos aqueles que atentavam contra a ortodoxia farisaica que se tinha
imposto após a destruição do Templo 259 e que fora consagrada em Yabné como a Cínica corrente oficial judaica.
A literatura judaica legou-nos diversas versões da oração de Shemoné Esré, tanto da tradição palestinense coma
de Babilónia. No entanto, as diversas versões do texto mantêm o essencial da oração, tratando-se de um misto de
louvores e de petições e fazendo desta prece uma espécie de síntese histórica da própria existência do Povo. A
oração começa com a menção do SI 51,17 — abre, Senhor, os meus lábios e a minha boca publicará os teus louvores
— e faz imediatamente alusão ao «Deus dos Pais», invocando os Patriarcas. Em seguida, faz-se uma série de
petições, invocando os dons da aliança e as promessas feitas por Yahwé ao Seu povo. Ë nessa confiança que os fiéis
se dirigem a Ele e d'Ele imploram a demência, o dom
258 Por «Nosrim» e «Minim» são assim conhecidos os judeo-cristãos das primeiras gerações que continuavam a
frequentar as sinagogas, embora seguindo os ritos judaicos na sua grande maioria. Trata-se de um acrescento bem
identificado no tempo, já que resulta de uma decisão de Yabné e foi redigida por R. Shemuel, o Jovem, a pedido de
Raban Gamaliel lI (Ber 28a; Talmud de Jerusalém, Ber 2,4).
259 Esta perspectiva é defendida plenamente por J. HEINEMANN, «Structure et contenu de la liturgie juive»,
Conciliam 98 (1974), 45-46.
170
8. ALGUMAS OPAcOPs MAIS SIGNIFICATIVAS DO JUDAÍSMO
do entendimento da Torah, o perdão e, por último, a paz. F. Manns apresenta a estrutura da oração da seguinte
forma: 3 bênçãos iniciais de louvor, 12 pedidos (individuais e colectivos) e 3 bênçãos finais de agradecimento 260,
numa sequência lógica e bem ordenada, remontando cada uma destas partes a épocas diferentes.
Para além da «memória dos Pais» na primeira oração, importa também referir o tema da «santificação do
nome» de Deus na 3.a bênção. Trata-se de um tema caro ao judaísmo e que esta oração nos mostra como fazendo
parte do 'mago da sua liturgia. De facto, Israel deve santificar o «Nome», pois a sua missão no mundo é fazer com
que o Nome santo de Deus seja santificado. Por isso, a oração recorda a visão de Is 6,3, chamada Qedûsha (a
santificação), invocando três vezes Deus como santo. E na santificação do «Nome» que Israel se santifica e se
converte num povo de santos, tal como determina o Lv 19,2 e 22,32. A promulgação da Torah tem como finalidade
levar Israel a seguir os caminhos que conduzem à sua santificação, santificando o Nome de Deus.
Este preceito da santificação do «Nome» de Deus está presente na Lei e na liturgia, como nos mostram as
orações de Shemoné Esré e de Qaddish, e comporta diversos aspectos que Israel deve pôr em prática a começar pelo
conhecimento de Deus e da Torah. Para além disso, Israel deve também testemunhar diante dos demais povos a
santidade do Nome de Deus. Ora, o estudo da Torah, tal como é referido na oração n.° 4 — sobre o conhecimento da
Lei — dá acesso à santidade de Deus e deve, como diz Manns, «transformar-se numa práxis. É quando Israel observa
os mandamentos que a santidade de Deus se manifesta aos olhos do mundo» 261 Este preceito da santificação do
Nome de Deus está também muito presente na oração cristã e faz parte integrante de muitas fórmulas de conclusão
das nossas orações, mormente da oração do «Glória» e de outras preces eucarísticas, mostrando assim como a
santificação do Nome de Deus que rezamos no «Pai-nosso» também faz parte da espiritualidade cristã. Neste
aspecto, podemos dizer que a nossa oração do «Pai-nosso» prolonga no cristianismo aquilo que era já uma
dimensão forte da espiritualidade judaica. A própria práxis cristã, conforme no-lo mostra
260 Cf. E MANNS, La prière d'fsra64 145-146.
261 E MANNS, «L'Étude de l'Écriture comme santification du Nom. Un aspect de l'herméneutique juive et judéo-
chrétienne», Henoch 1l (1980), 131.
171
III — A LITURGIA JUDAICA
Mt 5,16, é também uma forma de interpelar os outros para santificação do Nome de Deus.

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Quanto à oração do Qiddûsh, o termo deriva da palavra qadosh (que significa «santo» — Is 6,3) e é nele que tem
origem a designação de três orações judaicas: gedûsha, qaddish e giddúsh. No que se refere ao Qiddûsh, trata-se de
uma liturgia familiar que marca a espiritualidade do sábado e a sua importância na vida da comunidade judaica. O
momento central da oração consistia na bênção que o pai de família pronunciava sobre o pão e o vinho, após o seu
regresso da sinagoga, para assim dar início ao sábado ou a outros dias festivos. Esta oração parece ter tido inicio na
liturgia sina-gogal262, concluindo o ofício de vésperas de sábado e consagrando assim solenemente o dia de
repouso. No entanto, é a partir do ambiente familiar que a oração de Qiddûsh ganhou grande importância, já que
por ela se congregava a família para assim receber o «sábado» e recordar os dons de Yahwé ao seu povo. Por isso,
mesmo que fosse recitado na sinagoga, o Qiddûsh devia ser de novo rezado em casa para assim envolver a esposa e
os filhos, congregando toda a Emilia no acolhimento que era dispensado ao «sábado» que era considerado como a
«esposa de Israel».
A celebração tinha início com o acender das velas em casa pela mãe de família enquanto aguardava o regresso
do marido da sinagoga 263. Seguia-se então a bênção sobre o vinho 264, símbolo da alegria e uma outra acerca da
santificação do «sábado», recordando o êxodo e a criação como os dois momentos fundamentais da história da
salvação. Para a teologia judaica, o êxodo é uma nova criação, já que foi pela libertação do Egipto que Yahwé criou o
Seu povo. Desta forma, o Deus criador deu-se a revelar também como Deus salvador, elegendo o Seu povo que por
isso mesmo deve santi-
262 A recitação na sinagoga tinha sentido para os pobres ou sem-abrigo que faziam das sinagogas a sua morada
e parece que era prática corrente ao tempo de Hillel (Mishná, Ber 8,1), tendo continuado ao longo dos tempos.
263 Referimo-nos já anteriormente, quando nos debruçamos sobre a celebração do «sábado», aos principais
momentos da liturgia do sábado. Aqui, procuraremos pôr em evidência a teologia da oração do Qiddúsh, mormente
a sua espiritualidade em relação à eleição de Israel e à aliança entre Deus e o Seu povo, de que o «sábado» é a
expressão mais sublime.
264 Esta oração, em termos gerais, está hoje presente na liturgia eucarística, no ofertório, na apresentação do
vinho, recordando que se trata de um fruto da terra e um dom de Deus. O Tg Jonathan a Gn 27,25 e Targum Ct 8,2
referem o vinho como um simbolo escatológico que está reservado para a refeição dos justos (Is 25,6), sendo assim
um sinal messiânico.
172
8. ALGUMAS ORAÇÕES MAIS SIGNIFICATIVAS LIO frliJAAMO
ficar o Seu nome entre os povos. A oração termina assim de uma forma muito bela em que se faz referência ao
preceito da santificação, de onde deriva o termo Qiddársh:
«Foi a nós que Tu elegeste e santificaste entre todos os povos e foi a nós que Tu deste o Teu santo sábado no
Teu amor e na Tua bondade. Bendito sejas, Senhor, Tu que santificas o sábado.» 265
Esta oração testemunha de modo claro que há uma relação muito estreita entre a celebração do Qiddîash como
forma de acolher e santificar o «sábado» e o tema da eleição de Israel, já que estes eram os dois maiores dons que
Yahwé concedeu ao Seu povo. A teologia da eleição de Israel e a da santificação do «sábado» como que fazem uma
unidade intrínseca entre si, já que Israel é eleito para santificar o «sábado» e este é um sinal da eleição de Israel. É
por isso que o «sábado» foi dado a Israel e não aos outros povos. E foi-lhe dado para que o santifique e se santifique.
Por isso, esta oração é completada com uma outra que se reza na manhã de sábado e que diz assim:
«Senhor nosso Deus, Tu não o (sábado) deste aos outros povos da terra, Tu não o deste aos que servem os
ídolos e os incircuncisos não celebram o Teu dia de repouso. Mas foi ao Teu povo Israel que Tu o deste no Teu amor,
à posteridade de Jacob, Teu eleito.»
Uma vez mais, podemos verificar como se conjuga aqui a eleição de Israel e o dom do «sábado», fazendo
também memória dos «Pais», como fundamento dessa eleição. Por isso, podemos dizer que a oração do Qiddush é
um símbolo da aliança entre Deus e o Seu povo, tal como o próprio texto de Ex 31,16 já o proclama: «Os filhos de
Israel guardaram o sábado e celebraram-no de geração em geração como sinal de aliança eterna.»
De facto, o «sábado» é um sinal da aliança estabelecida entre Deus e o Seu povo, que identifica e separa Israel
dos demais povos. Por isso, o «sábado» é não apenas o dia de repouso, mas essencialmente o dia da santidade de
Deus e da santificação de Israel. A oração de Qiddush, completada com outras preces do oficio de sábado, reafirma

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esta dupla identidade de santificação que deve ser proclamada e que está sempre presente na liturgia do «sábado»:
Yahwé e Israel.
265 S. BEN CHOWN, Le judaïsme en prière, 106.
173

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EXCURSUS: OS SALMOS E A LITURGIA DE
ISRAEL
Israel é um povo marcado por uma longa e dinâmica consciência histórica, um povo em marcha na história com
uma forte perspectiva escatológica aberta ao futuro e a sua caminhada pressupõe um contínuo progresso da
revelação. No fundo, é esta contínua caminhada que recebe o nome de «História da Salvação». Sendo um povo em
marcha, é também um povo que reza, canta e celebra o seu Deus e Salvador. Um dos temas que mais ocupa a
exegese dos Salmos diz respeito à procura do Sitz in Leben litúrgico no que se refere à origem dos Salmos. Porém, o
problema não está apenas na busca e procura desse contexto original, sobre o momento da sua composição ou o
objectivo dessa composição. A questão mais importante acerca do contexto dos Salmos diz respeito também ao
espaço existencial, se assim se pode dizer, em que nasceram os Salmos, ganharam forma e se consolidaram como
expressão da mais genuína oração e piedade do povo de Deus. Esse ambiente foi, sem sombra de dúvida, a liturgia
no mais amplo sentido da palavra.
Sendo um povo com uma forte dinâmica histórica e que celebra a sua própria caminhada, bem cedo vamos
encontrar a aliança dessas duas componentes da vida histórica e da vida espiritual do povo de Israel: a evocação do
canto da Arca (Nm 10,35-36). As grandes etapas dessa caminhada são acompanhadas pelo canto, quer em
momentos de vitória quer em situações de derrota (Ex 15; 2 Sam 1,19-27), bem como as grandes festas litúrgicas da
Páscoa, das Tendas ou da Expiação. Também o canto veicula, igualmente, a poesia amorosa e sentimental, como
sejam o Cântico dos Cânticos e exprime a alegria da vida quotidiana (Is 16,10) ou a fé no regresso dos exilados à
pátria (Is 35,10).
De tudo isto é expressão o Saltério, um microcosmos do universo bíblico que tem o seu habitat na liturgia por
excelência e que encontra a sua melhor forma de expressão na oração quotidiana ou nos momentos solenes que
marcam o ritmo da sua caminhada. A história da exegese ao longo do séc. XX e mesmo dos últimos decénios do séc.
XIX mostra-nos que a interpretação do Saltério tem oscilado entre duas concepções majoritárias:
— Uma pietista e individualista
— Outra colectiva e cultual.
Para uns, o Saltério seria uma colectânea tardia, do pós-exílio e cujos objectivos situavam-se no campo da
instrução sobre a fé e da edificação espiritual do povo. Para outros, ao contrário, o Saltério tem a ver exclusivamente
com a liturgia, com as festas que marcam a história e o ritmo da vida do povo, testemunhando assim um culto já
muito estruturado e desenvolvido. Esta tese é particularmente defendida pelas escolas exegéticas inglesa e
escandinava (A. Bentzen, I. Engnell, G. Widengren, H. Ringgren, S. Mowinckel, etc.), as quais pensam que os Salmos
são um produto exclusivo ou quase exclusivo do culto. De facto, não se pode negar que essa relação exista, embora
seja necessário dosear essa dependência. Efectivamente, o Saltério recolhe no seu interior um repertório muito
variado de cânticos litúrgicos do Templo, ligados às festas e celebrações que of tinham lugar ao longo do ano e no
decorrer do tempo. No fim, a própria himnologia pessoal, a arte de compor Salmos transforma-se numa atitude
cúltica de dimensão comunitária, passando naturalmente por sucessivas adaptações redaccionais. Como diz
Beaucamp, não é possível utilizar os Salmos como simples composições líricas, expressões poéticas de estados de
alma simplesmente individuais; o «Saltério pertence a um tipo específico de literatura, a litúrgica» 134. Isto não
significa que as incidências pessoais estejam ausentes destas composições, já que a piedade individual, se assim se
pode dizer, é inseparável da comunitária (da qahal— da ekklesia) e da aliança entre Deus e o Seu povo.
Muitos autores aludem às possíveis incidências dos Salmos em algumas das supostas festas de Israel. Dentre
estes autores assume particular destaque Mowinckel e outros ligados à chamada «Escola das Religiões», a quem se
deve, aliás, o mérito de terem posto em evidência a relação entre os Salmos e o culto na sua expressão vivência e
cultural. Nem sempre é possível comprovar muitos dos elementos avançados por esses autores. No entanto, são
indiscutíveis as alusões às festas do calendário judaico, às procissões no Templo, às grandes assembleias litúrgicas,
aos sacriffcios, às bênçãos e oráculos sacerdotais, às funções levíticas, tal como se pode verificar pelos próprios
títulos de alguns dos Salmos e pelas referências a esses momentos cultuais contidas no texto dos mesmos.
Todavia, embora essa incidência cultual seja muito forte, não devemos reduzi-la à exclusividade, já que no
Saltério está presente a vida do homem todo, do crente israelita na sua vivência integral, com seus dramas e seus
134
E. BEAUCAMP, «Le Psautier, répertoire des chants liturgiques d'Israel», Science et Esprit 23 (1971), 165.
80
sonhos, com suas misérias e grandezas, com toda a carga do seu pecado e com o sublime das suas nobres virtudes.
Os Salmos são uma espécie de «laboratório» da vida integral e testemunham um equilíbrio muito grande entre o
colectivo e o individual da vida do crente.
Hoje pode afirmar-se que a «vaga cultual» que reduzia tudo exclusivamente ao culto está superada, embora um
grande número de Salmos tenha nascido em contexto cultual e para o culto comunitário, o que não quer dizer que
todos tenham tido a sua origem ligada ao culto ou que todos fossem originariamente colectivos. No entanto,
podemos afirmar que com o decorrer dos séculos e com a estruturação do culto e o seu desenvolvimento posterior
todos eles «ganharam» um lugar no culto, tornando-se, por isso, cultuais. Penso que, neste caso, a importância do
culto está mais em ter sido o ambiente de leitura e de interpretação dos Salmos do que propriamente o espaço
exclusivo da sua génese, embora seja claro que muitos Salmos tiveram aí a sua origem.
É assim que as procissões e peregrinações dão vida aos Salmos das subidas (graduais), aos hinos à glória de
Yahwé e aos Salmos de Sião e de glorificação de Jerusalém enquanto morada de Deus. O mesmo pode-se dizer dos
sacrifícios de acção de graças e dos holocaustos como contexto vital dos Salmos de acção de graças. Quanto às
lamentações e salmos de carácter penitencial, o seu espaço de leitura situa-se nos sacrifícios de expiação e nos dias
de jejum e penitência, incluindo a festa de Yom Kippur. A piedade individual assumia em todo este contexto uma
dimensão colectiva e, para tal, muito contribuíram os Salmos enquanto oração e vida do povo de Deus.

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