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TEXTOS E

NARRATIVAS
SAGRADAS
Origens históricas
da criação dos
livros sagrados
Rodrigo Rocha Rezende de Oliveira

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Relacionar elementos da Torá no texto do Antigo Testamento.


> Identificar as diferentes versões da Bíblia e suas adaptações modernas.
> Reconhecer princípios do judaísmo e do cristianismo na construção do
Alcorão.

Introdução
Na cultura humana há muitas formas de expressão. Seja por meio das artes,
da convivência política e social ou da sua religiosidade, o ser humano busca
incessantemente formas de compartilhar com o mundo ao seu redor símbolos e
códigos referentes aos mais profundos sentimentos de sua alma. A escrita, como
base para muitas das manifestações humanas, é capaz de englobar aspectos que
são pertinentes aos múltiplos campos da cultura, propagando e consolidando
conhecimentos. Com a manifestação religiosa, talvez a mais espiritual de todas as
interfaces culturais, isso não poderia ser de outro modo. Ou seja, para transformar
a experiência da religião em linguagem compartilhada, o ser humano criou as
escrituras sagradas, em variados registros culturais.
Neste capítulo, você vai refletir sobre diferentes narrativas cosmogônicas, que
narram os princípios da construção da deidade de cada cultura monoteísta, e vai ter
a oportunidade de comparar as versões pela ótica crítica. Você vai encontrar uma
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base para que desenvolva sua própria leitura e interpretação sobre as narrativas
em torno do sagrado a partir da ótica interdisciplinar. Serão abordados temas de
cunho literário, sociológico e filosófico que são pertinentes no tratamento dos
textos sacros.

A Torá e o Antigo Testamento: um marco


nas escrituras míticas
A Bíblia, o mais popular dos livros publicados ao redor do mundo, representa
uma manifestação da religiosidade por meio da escrita. Também há outros
modos de manifestação religiosa, como, por exemplo, transmissões orais
e momentos ritualísticos presentes nas mais diversas culturas. Mesmo nas
origens dos textos sagrados, o entrecruzamento de oralidade e grafia está
presente.
Do ponto de vista religioso, as duas dimensões resguardam a mesma im-
portância e valor; contudo, se pensarmos no tratamento dos códigos, segundo
uma leitura analítica, o texto escrito marca uma perspectiva metodológica.
É a observação e a comparação das fortunas literárias e suas características
específicas que serão nossa base para tratarmos das convergências entre a
Torá e o Antigo Testamento.
Podemos dividir o conjunto dos livros que compõem a Bíblia, no sentido
mais amplo, em, basicamente, duas partes. A primeira, chamada “Antigo Tes-
tamento”, reúne os textos do Pentateuco, o Livro dos Profetas e as Escrituras,
a que também se dá o nome de “Bíblia Hebraica”, ou “Torá”. Por sua vez, a
segunda parte, conhecida como “Novo Testamento”, é composta pelos textos
dos chamados “Evangelhos”.
A distinção entre a narrativa que encontramos na Torá e o Antigo Tes-
tamento é pautada pelo modo como judeus e cristão leem e interpretam
os textos. Apesar do compartilhamento de fontes comuns, ao tratarem as
escrituras sagradas desde funções distintas, reconhecidas apenas dentro do
seu respectivo sistema religioso, o sentido final da mensagem se transforma.
Precisamos ter em mente que textos homônimos, como no caso do Antigo
Testamento e da Torá, resguardam não somente diferenças interpretativas,
mas também questões relacionadas às escolhas de tradução dos originais,
que indicam diferenças fundamentais. Como afirma Guertzenstein (2019), o
que diferenciaria da melhor maneira o que identificamos como Bíblia He-
braica e Antigo Testamento seriam nuances propriamente literárias. Ou seja,
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a observação sobre qual versão literária está sendo referendada, a partir


dos estudos bíblicos, pode ser determinante para estabelecer inclusive a
subdivisão do material abordado.
Além de todas as diferenças, criar uma relação entre personagens, pas-
sagens e símbolos, que são aproximativos nas tradições judaica e cristã, é
parte do exercício de interpretação comparativo nessa literatura. Por exemplo,
entre as centenas de personagens bíblicos, Moisés é central para falarmos
de elementos identificáveis em ambas as narrativas. Considerado por judeus
o profeta que anuncia os ensinamentos previstos na Torá, teve sua vida e
discurso assimilados igualmente por cristãos na abordagem que fizeram
seus intérpretes e tradutores.

Para além das questões literárias e linguísticas atreladas às tradu-


ções, deve ser considerado o aspecto temporal que difere o Antigo
do Novo Testamento. Como ressalta Guertzenstein (2019, p. 23):
O que conhecemos como Bíblia é a união da literatura bíblica hebraica (redigida em
hebraico e aramaico babilônico), traduzida ao grego (no século II antes da era comum)
e traduzida ao aramaico (no início da era comum) como “Primeiro Testamento”.

A sucessão da narrativa mosaica, que encontramos no Antigo Testamento


e que iria trazer à tona o nascimento e a vida de Jesus Cristo como, digamos,
profeta pós-Moisés, seria considerada para cristãos de um modo completamente
diferente do que o seria para judeus, seguidores de Moisés.

O profeta Moisés como figura central para judeus


e cristãos
Moisés é o profeta que aparece no conjunto dos livros intitulados “Pentateuco”
como aquele que anuncia os ensinamentos que tais livros sustentam aos seus
seguidores. Josué, como primeiro de tais seguidores, deveria passar adiante
os preceitos proféticos, e todos que participam dessa linhagem constituem,
assim, uma tradição mosaica, relativa justamente a Moisés. Segundo Pacheco
(2019), além de tratar da vida e jornada de Moisés, as antigas escrituras têm
sua escrita atribuída ao personagem.
Para a tradição judaica, relida posteriormente pela tradição cristã, foi
Moisés quem escreveu o Pentateuco, que corresponde aos cinco primeiros
livros da Bíblia Hebraica (UNTERMAN, 2003). Além disso, estudiosos, intérpretes
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das mais variadas ordens e doutrinadores das diversas religiões se referem ao


profeta Moisés como central em tais narrativas. Na interpretação de Pacheco
(2019), isso traz à figura de Moisés uma dupla importância, direta e indireta,
como personagem fundamental nas escrituras em que ele aparece.
Presente nos dois contextos de leitura, judeu e cristão, a origem do
mito referente à figura de Moisés tem um lugar-comum a ser observado.
Um dos pontos que configura determinada relação entre o contexto do
surgimento dos personagens Moisés e José, que foi o pai de Jesus Cristo,
é o êxodo semita. O trânsito, portanto, de hebreus, assírios, aramaicos,
fenícios e árabes, todos semitas, do qual participam tais personagens do
Antigo Testamento, demonstra uma afinidade central entre os dois cenários
(SILVA, 2021). Como aponta Pacheco (2019), não restam dúvidas da trajetória
de Moisés por parte das tradições judaica e cristã, assim como está posto
nas Escrituras Sagradas.
A vertente mantém certa precaução com relação aos feitos do profeta,
se tomados como acontecimentos históricos; afinal, é difícil conceber uma
travessia em meio aos oceanos. Porém, há uma tendência em aceitar o mo-
vimento migratório liderado por Moisés nos seguintes termos: a liderança
forte que levou os escravizados e explorados do Egito para a Palestina
(PACHECO, 2019).
Apesar de estar diretamente atrelado a transformações substanciais na
estrutura social, acima de qualquer motivo, o processo migratório que foi
descrito é uma característica justificada pela narrativa mítica. Seu principal
motivo foi o exílio babilônico, em que o povo judeu foge do Egito após sa-
queamentos e opressões causadas sobre o Reino de Judá, sua terra natal.
Não há consenso quanto ao período histórico em que isso pode ter acon-
tecido, até porque as incongruências entre as leituras bíblica, arqueológica
e histórica, mais propriamente, é um problema irresoluto (PACHECO, 2019).
Fatos da trajetória, conforme aparecem nas narrativas míticas, como, por
exemplo, a Travessia do Mar Vermelho, são pontos de tensão entre a realidade
e o imaginário (HUBNER, 2012).
Nesse sentido, vale-nos mais uma abertura para a indagação do que um
encerramento, uma conclusão final e acabada, uma vez que se percebe que
os estudos seguem nesse sentido, ou seja, no sentido da abertura interpreta-
tiva. Como bem destaca Pacheco (2019), desde que o estudioso bíblico Julius
Wellhausen desenvolveu, no século XIX, a hipótese documental, designando
a origem do texto bíblico a estilos literários múltiplos, isso é um princípio
interpretativo.
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Mesmo guardadas as possíveis defasagens nessa leitura desenvolvida,


sobretudo, pelo alemão Wellhausen, uma coisa é certa: a pluralidade de
fontes literárias em jogo. Como acentuam Pury e Römer (1996), não restariam
dúvidas sobre o caráter plural das vertentes literárias que compõem as antigas
escrituras, partindo até mesmo de tradições religiosas variantes. Todos esses
elementos nos dirigem a um estudo transversal, que nos confere uma tarefa
de leitura mais ampliada. No contexto, a própria imagem que formamos do
profeta, segundo Pacheco (2019), poderá estar comprometida, se considerar-
mos a fragmentação de sua origem.
Portanto, uma série de conhecimentos acaba tornando a pesquisa natural-
mente interdisciplinar, uma vez que sociologia, teologia, filosofia, literatura,
etc. formam um complexo entre as exigências do leitor. Tomar por princípio
um recorte, a fim de traçar determinada agenda de leitura inicial, deve ser
o método de aproximação mais acertado — é claro, sem deixar de lado o
cultivo das múltiplas possibilidades de leitura que devem surgir no contato
direto com as fontes.

A origem do personagem Moisés não parece ser um consenso entre


teólogos, historiadores ou arqueólogos. A definição do local onde ele
nasceu e sua etnia pode influenciar até mesmo o nome aceito e seu significado.
Caso se considere que sua origem é hebraica, de acordo com a língua da própria
escritura sagrada dos judeus, o significado de seu nome seria “aquele que foi
retirado das águas”. Se, por outro lado, sua origem fosse egípcia, o sentido
etimológico de seu nome poderia ser “filho que foi concedido”, sendo identi-
ficado a um profeta não judeu, que seguiria, na verdade, Akhenaten, “[...] cuja
dinastia introduziu a religião de Aton, primeiro deus monoteísta da história das
civilizações” (MARTINS, 2018, p. 142). Enfim, ele também poderia ser um profeta
de origem egípcia sem designação precisa para seu nome.

Nesta seção, refletimos sobre algumas das intersecções entre as antigas


escrituras e sua importância, sobretudo, para judeus e cristãos, sendo tais
aproximações retidas como uma fonte para uma leitura comparada que
possibilite o estudo da sua diversidade. Afinal, é a partir da necessidade
de se colocar às vistas determinada comunidade na diferença que tecemos
comparações em nossas análises textuais. Além disso, no segundo movimento
da seção, você conheceu um pouco mais a figura de Moisés, o profeta pro-
tagonista de tais textos que se tornou articulador entre suas diferenças. A
seguir, vamos abordar mais detidamente matrizes de interpretação diversas
que se complementam na sua especificidade, indo, cada qual na sua própria
direção, ao encontro de uma leitura complexa do fenômeno religioso.
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Conflitos e alianças na historiografia


e interpretação bíblica
A Bíblia tem sua origem na convergência de duas grandes tradições religiosas:
a religião judaica e a religião cristã. Se pensarmos na divisão das escrituras
bíblicas em dois blocos, o Antigo e o Novo Testamento, identificamos o primeiro
dos dois como pertinente também aos ensinamentos da Torá, regimento sacro
judaico. Mas, se pensarmos na composição total dos livros, temos uma leitura
sumamente cristã, que tende a considerar os dois blocos na sua unidade final.
Para especificação da divisão entre os dois grandes blocos, Antigo e
Novo Testamento, uma questão linguística de tradução deve ser ressaltada.
Se, por um lado, para os judeus a Bíblia Hebraica, do primeiro testamento,
é escrita nas línguas hebraica e aramaica, por outro, a versão católica cristã
é parte da reunião de traduções para o grego daqueles escritos. De acordo
com Guertzenstein (2019), a Igreja Católica Apostólica Romana tomou por
base as traduções para o grego, o que acarretou, até certa medida, uma
marginalização de outras fontes anteriores, de traduções em outras versões.
Tais escolhas determinam aspectos religiosos, místicos, interpretativos,
mas não somente, porque isso não poderia escapar à questão geopolítica
e social. Para que possamos identificar essas camadas mais profundas na
relação da leitura e o que exatamente elas provocam nesse sentido ampliado,
pesam valores atribuídos a uma ou outra forma de enxergar as narrativas.
Na interpretação de Marczyk (2010), por exemplo, o recurso foi utilizado por
Justino e Tertuliano para afastar as interpretações judaicas dos modelos
desenvolvidos pelos cristãos.
Mas, afinal, com que objetivo seriam realizadas tais distinções? Conforme
complementa Marczyk (2010, documento on-line), “[...] ao lado dessa operação
de afastamento, demonstram um empenho em desmantelar a experiência
religiosa dos grupos judaicos, numa época proselitista, marcada por perse-
guições religiosas”. Trata-se, portanto, de uma distinção que tinha nas suas
intenções diferentes motivos, sociais, religiosos, etc.
A partir de uma visão crítica sobre tais metodologias de leitura, podemos
enxergar o quanto uma versão acerca dos textos bíblicos é passível da ob-
servação de uma série de caracteres. Os interesses, os motivos e as posições
dos leitores envolvidos em cada versão devem ser considerados, do ponto
de vista filosófico e científico, como constituintes da síntese mais acabada
entre as múltiplas versões.
Se enfatizamos em primeiro lugar as duas grandes religiões, judaica e
cristã, como pontos de partida para discussão em torno das origens do
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texto sagrado bíblico, devemos falar das traduções posteriores que provêm
desse núcleo. Esse próximo movimento deve ter em conta principalmente o
quanto elas se afastam das línguas e culturas que marcaram o nascimento
dessa extensa narrativa.

O livro sagrado para todas as línguas


A perpetuação dos ensinamentos bíblicos através dos tempos foi necessaria-
mente pautada pela escrita do texto. O núcleo do conhecimento, os valores e
a história que a tradição, de um modo mais geral, sustentou por intermédio
do livro sagrado depende do retorno incessante às origens linguísticas desse
registro. Para cada nova adaptação, as medidas de seu vínculo são retomadas
desde as línguas originárias.
Traduções da Bíblia serviram como maneira de vencer empecilhos colo-
cados justamente pela barreira do desconhecimento das línguas originárias,
o hebraico e o aramaico. O grego acabou sendo uma língua que serviu como
centralizadora na reunião de diferentes gerações. Isso aconteceu em função
da sua maior popularidade em determinado momento histórico.
Outro motivo para que houvesse a necessidade de realizar as traduções
para uma língua cada vez mais acessível foi, é claro, a doutrinação. Para que
pudessem levar adiante os ensinamentos bíblicos, novos missionários, igrejas
e crentes exigiam a propagação da palavra sagrada em sua própria língua.
Assim relata Walter (1998, p. 409):

Os primeiros missionários cristãos que levaram um texto da Septuaginta (ou uma


Bíblia hebraica) e o Novo Testamento em grego (ou alguma de suas porções) em
idiomas que dominavam, sempre saíram das igrejas primitivas em Jerusalém e
Antioquia, a respeito das quais lemos em Atos.

O missionarismo, como articulador da doutrinação, precisou, a cada nova


empreitada, assumir a língua que comunicava à pluralidade dos povos, apro-
priando-se de línguas e territórios (WALTER, 1998). Sendo assim, a apropriação
de novos imaginários, tomados pela doutrinação bíblica, também significava
dominar novos lugares e povos. Podemos depreender de tal necessidade,
inclusive, o avanço da tradução como fundamental para a propagação da
palavra doutrinária, sem o qual a religião não poderia ser transmitida.
Uma segunda virada, também de cunho linguístico, levou a uma nova
paginação na história das traduções para o texto bíblico — quando o grego
antigo perdeu sua popularidade nesse meio, e o latim se tornou a língua sacra
principal. Com isso, outro aspecto social também fica evidente: a tentativa
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de fixar a interpretação dos textos bíblicos como exclusividade do clero. De


acordo com Walter (1998), a primeira onda de traduções estaria mais preocu-
pada em levar adiante o desejo doutrinário do que um cuidado textual mais
detido. Qualquer esforço de tradução seria bem-vindo.
Uma das condições que afetou diretamente a história das traduções
bíblicas foi de cunho linguístico, com o abandono do grego como vernáculo
e a introdução do latim nos estudos sacros. O latim passou a ser a língua
predominante, ao passo que o grego perdeu proporcionalmente sua impor-
tância, o que é refletido diretamente nas formas da tradução bíblica. Essa
transformação, é claro, teve também suas razões sociais, uma vez que o
latim era de domínio do clero mais erudito naquele momento (WALTER, 1998).
Acerca disso, é válido sublinhar o que diz Walter (1998, p. 411): “[...] enquanto
os sacerdotes soubessem ler os textos latinos e falar a liturgia em latim (pelo
menos em um nível aceitável), não havia mais motivação significativa para
que fossem feitas traduções para o vernáculo”. Um isolamento das escrituras,
provocado pela defesa de um tratamento cada vez mais hermético dos textos,
teve suas repercussões sociais e culturais.
No entanto, houve um hiato entre o que significou a valorização do latim,
a retirada da leitura bíblica das mãos dos incultos e, num terceiro momento, a
Reforma Protestante e a chegada da imprensa, com a invenção tipográfica de
Gutenberg — responsável pela divulgação da Bíblia na proporção transversal
que vemos até hoje. Nesse intervalo de tempo, o crescimento do islamismo
foi o que mais se destacou no cenário religioso. Mais especificamente no
norte da África e na Palestina, o islamismo avançava de maneira progressiva
(WALTER, 1998).
O islamismo surge depois da constituição do judaísmo e do cristianismo,
após a morte de Maomé, e a instauração da religião foi marcada por fortes
ondas de iconoclastia, ou seja, de destruição de templos sagrados. Conforme
registra Walter (1998, p. 412):

Entrementes, na Palestina e no norte da África, a marcha inexorável do islamismo


mudava a constituição religiosa dos litorais oriental e sul do Mediterrâneo. Dentro
do prazo de cem anos após a morte de Maomé, em 632 (nascido em 570), mais de
900 igrejas haviam sido destruídas e o Alcorão tinha se tornado a “bíblia” no grande
círculo que se formara a partir das muralhas da rota fortificada de Bizâncio em
direção ao Oeste — à extremidade espanhola da Europa.

Portanto, considerando a importância linguística, social, política e tec-


nológica na história das versões bíblicas, vemos que em nenhuma leitura
dos livros sagrados, em suas variadas versões, escapa-nos uma extensa e
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interdisciplinar análise de sua constituição. O esforço deve ser no sentido de


encontrar uma composição entre os elementos, embora fazer um afastamento
crítico em sua plenitude, no ato de leitura, seja algo idealizado.
Em termos filosóficos, isso seria o que Edmund Husserl (1859–1938), na
construção do método fenomenológico, chamou de “redução fenomenológica”:
um completo afastamento do objeto de pesquisa em função da sobrecarga
empírica. Em outras palavras, segundo essa noção, para que não tornemos
o objeto inelegível, por uma imposição exagerada de nossa experiência,
procuramos esvaziar nossa mente para reaprender a ver o mundo a partir
do ponto zero. Como diria outro fenomenólogo, o intelectual contemporâneo
Maurice Merleau-Ponty (1908–1961), deveríamos voltar a ver o mundo com
olhos de criança (PONTY, 2011).

A distância das línguas tradicionais, que podemos encontrar nas


origens das escrituras sagradas, significa um afastamento também
geográfico, e seu processo é o de traduzir para o mais longe. Toda expansão
doutrinária depende, é claro, da disposição e do alcance dos processos, sendo
essa uma condição imposta à tradição.
Walter (1998, p. 409) busca esclarecer isso criando a seguinte imagem:
Para formarmos um quadro da maneira como a Bíblia chegou aos diferentes povos do
mundo, abra um mapa do hemisfério oriental e imagine a Palestina como o centro de
uma lagoa. Pense sobre a revelação de Deus feita de si mesmo através dos profetas,
de Jesus e dos apóstolos como uma pedra lançada no centro daquela porção de
água. Com os olhos da mente observe o avanço dos círculos concêntricos indo em
direção à borda do pequeno lago do mundo palestino e nomeie as línguas cobertas
pela veloz difusão da ondulação d’água: ao Sol, o copta, o árabe, o etiópico; a Oeste,
o grego, o latim, o gótico, o inglês; ao Norte, o armênio, o georgiano, o eslavo; e a
Leste, em direção da nascente do Sol, o siríaco. Quanto mais distante a Bíblia foi
se afastando do seu centro hebraico/aramaico/grego na Palestina, mais tardia foi
a data de sua tradução para mais outro idioma.

Nesta seção, você pôde compreender o quanto as versões, traduções e


adaptações para o texto bíblico passaram por conflituosas escolhas social-
mente, politicamente e culturalmente contextualizadas. Ou seja, vimos que,
a cada escolha propriamente textual, outras questões, em suas múltiplas
interfaces e motivos interdisciplinares, também acabam sendo decisivas.
Também refletimos sobre a crise nas traduções bíblicas com a passagem entre
o grego e o latim e, paralelamente, com o nascimento do islamismo. A seguir,
veremos como a religião monoteísta que precede o judaísmo e o cristianismo
desenvolve sua própria narrativa e a relaciona com as referências que tais
escrituras marcaram, cada uma em sua tradição.
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O Alcorão como síntese do judaísmo


e do cristianismo
A religião islâmica, seguida pelo povo árabe, tem como livro sagrado o cha-
mado “Alcorão”, livro em que Maomé (Muhammad) profetiza as leis religiosas
do islamismo. Sua doutrina assume que a diversidade dos povos se adequa a
uma série de profecias relativas a cada uma das narrativas correspondentes.
Outras religiões teriam seu encontro com seus respectivos profetas condi-
cionados ao tempo, de acordo com seu contato específico com uma tradição
de profetas. Conforme destaca Maçaneiro (2013), para o islã, outras religiões
tiveram seus profetas, como Abraão e Moisés, para os israelitas, mas isso faz
parte de uma gradual enunciação da divindade aos povos todos.
O aspecto de reconhecimento relacionado às demais religiões — no caso,
judaica e cristã — vai além de uma simples demonstração de tolerância reli-
giosa, assegurando uma vertente profunda na constituição de seus dogmas.
Para os muçulmanos, o Alcorão seria uma espécie de síntese perfeita do que
antes havia sido propagado por judeus e cristãos, respectivamente, na Torá e
na Bíblia. Como aponta Lima (2019), o reconhecimento dos judeus e cristãos
por parte dos seguidores do islã, como detentores de conhecimento de suas
escrituras, é algo dado. Ou seja, a princípio, se aceitarmos tal premissa, há um
reconhecimento cultural importante, mas também existem ressalvas decisivas.
Segundo outro estudioso, Bachmann (2017), apesar do reconhecimento de
outras tradições de escrituras sacras, para os muçulmanos, o Alcorão teria
destaque sobre quaisquer outras versões. Nesse sentido, os livros das outras
religiões não muçulmanas teriam suas revelações em narrativas particulares,
com significado restrito a cada cultura. O Alcorão, por sua vez, teria mantido
uma doutrina mais universal e intocada, perfeita e pura na sua essência, já
que não teria sofrido modificações e adaptações gerais.
A hipótese de que uma originalidade maior deve ser conferida ao Alcorão
a partir do critério de sua não modificação e transformação, tradutória ou de
ordem temporal, é descrita por Lima (2019) como desconfiança com relação à
série inestimada de modificações que porventura outras escrituras tenham
sofrido, de acordo com sua datação a perder de vista. Contudo, isso não
significa, é claro, que não poderíamos estabelecer traços em comum entre
as escrituras em questão.
Algumas regras bem claras são consideradas fundamentais para tecer tais
traços de afinidade entre as escrituras e narrativas monoteístas. Segundo
Lima (2019), a regra para estabelecer aquilo que há de afinidade entre os livros
sagrados, a ser de fato considerado, deve ser sua conformidade em maior
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grau com as palavras do Alcorão. Ainda, para a hipótese de Bachmann (2017),


as outras escrituras somente são validadas a partir de sua conferência com
relação ao Alcorão, que estaria acima de todos na sua certeza. São critérios,
portanto, autorreferentes, que se colocam em relação de uma forma centrífuga,
ou seja, estando o centro em relação aos demais, permitindo concessões
desde que esteja nesse lugar de referência.

A afinidade entre o islamismo e as outras religiões monoteístas é


evidente a partir de determinados exemplos que podemos elencar,
como a crença em anjos bons e maus. Nas palavras do Alcorão, apresentadas
por Lima (2019, documento on-line):
De acordo com a teologia islâmica os anjos são criaturas de Allah que foram formados
antes do homem. Eles foram constituídos de luz, e em sua maioria são belos por
natureza (ALCORÃO 12.31). Mas existem anjos que possuem uma forma assustadora,
pois são responsáveis pelo castigo e pelo inferno (ALCORÃO 66.6).

Outro exemplo a ser destacado de um caractere que é comum nos diferentes


registros narrativos dos livros sagrados das religiões monoteístas é a crença
nos mensageiros, que levam a palavra divina aos povos. Como destaca Ur-Rahim
(1979), no Alcorão encontramos 25 mensageiros: Adam (Adão), Idris (Enoc), Nuh
(Noé), Hud (Heber), Saléh, Ibrahim (Abraão), Lut (Ló), Ismail (Ismael), Ishaq (Isaac),
Yaqub (Jacó), Yusef (José), Xuaib (Jetro), Aiub (Jó), Zul-kafil (Ezequiel), Mussa
(Moisés), Harum (Araão), Daud (Davi), Sulaiman (Salomão), IIias (Elias), Aliassa
(Eliseu), Iunus (Jonas), Zacaria (Zacarias), Yáhia (João Batista), Issa (Jesus) e
Mohammed (UR-RAHIM,1979).

Neste capítulo, estabelecemos uma série de paralelismos entre o judaísmo,


o cristianismo e o islamismo. No caso deste último, vimos que sua tendência é
admitir sua versão sacra como sintética em relação às demais. Ou seja, mesmo
se admitirmos que todas as religiões se alimentam das tradições de outras já
existentes, no caso do islamismo, como parte da leitura de seu livro sagrado,
o Alcorão, é preciso afirmar seu caráter centralizador perante as demais.
Além disso, pudemos concluir que há elementos em comum presentes no
Alcorão, na Torá e na Bíblia: a crença em uma única divindade, denominada
Allah; a crença em dois lados para a realidade, um bom e outro mal, sendo,
portanto, maniqueísta; a crença na revelação dos seus ensinamentos, re-
gistrados pela escrita do Alcorão; a crença no Juízo Final, dia em que serão
redimidos os bons e queimados os maus.
Todos os elementos citados podem ser objeto da aproximação entre as
diferentes crenças monoteístas, mas, é claro, sempre a partir da ressalva de
que esse exercício é analítico. Se considerarmos, finalmente, que a dimensão
12 Origens históricas da criação dos livros sagrados

hermenêutica, ou seja, interpretativa, e a dimensão doutrinária são de ordem


radicalmente distinta, isso será determinante para uma síntese da questão.
Ou seja, apesar de ambos, o estudioso e o crente, estarem debruçados sobre
os textos para seu entendimento, o resultado pode tomar direções até mesmo
inconciliáveis.

Referências
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