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GUIA DIDÁTICO

ATOS E AS ORIGENS DO CRISTIANISMO

DENISON MATOS

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................... 4

CAPÍTULO 1 - A FORMAÇÃO DO MUNDO NEOTESTAMENTÁRIO .......... 5

1.1 Os gregos................................................................................................. 5

A. A língua grega ........................................................................................... 5

B. A helenização ............................................................................................ 6

1.1.1 A revolta dos Macabeus ........................................................................ 9

1.1.2 A dinastia Asmoneia ........................................................................... 11

1.2 Os romanos............................................................................................ 13

1.3 A dominação Romana na Palestina ....................................................... 17

1.3.1 Roma Invade a Palestina .................................................................... 18

1.3.2 A Sucessão de Herodes...................................................................... 20

CAPÍTULO II – JESUS E SEU TEMPO ....................................................... 23

2.1 os grupos políticos e religiosos do tempo de jesus ................................ 23

2.1.1 Fariseus .............................................................................................. 24

2.1.2 Saduceus ............................................................................................ 25

2.1.3 Essênios.............................................................................................. 27

2.1.4 Zelotes ................................................................................................ 28

2.2 Jesus e os grupos políticos e religiosos ................................................. 29

2.3 Jesus, as mulheres e os marginalizados................................................ 30

2.4 Jesus, o Mestre ...................................................................................... 33

CAPÍTULO III – EVANGELHOS SINÓTICOS E JOÃO ............................... 39

3.3 Introdução aos Quatro Evangelhos ........................................................ 46

3.3.1 Evangelho de Marcos .................................................................... 46


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3.3.2 A estrutura do Evangelho .................................................................... 48

3.3.3 Evangelho de Mateus .................................................................... 48

3.3.4 A estrutura do Evangelho .................................................................... 50

3.3.5 Evangelho de Lucas ...................................................................... 50

3.3.6 A estrutura do Evangelho de Lucas .................................................... 52

3.3.7 Evangelho de João ........................................................................ 53

3.3.8 Estrutura do Evangelho ....................................................................... 54

CAPÍTULO IV - LUCAS E ATOS: INTRODUÇÃO DE UM REGISTRO


SINGULAR .................................................................................................. 56

Referências .................................................................................................. 68

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INTRODUÇÃO

Caros alunos e alunas,

É com imenso prazer que damos início às aulas da disciplina: Atos e


Origens do Cristianismo. Para tal, é interessante entender de que se trata esta
disciplina.

A disciplina de Atos e Origens do Cristianismo visa estudar os principais


textos do início do cristianismo primitivo, a saber, Os Evangelhos e Atos dos
Apóstolos. Os primeiros livros que compõem o cânon neotestamentário são
fundamentais para compreender como os cristãos identificaram em Jesus a
figura do Messias aguardado, bem como o desenvolvimento da mensagem do
Reino de Deus foi estabelecida através da figura dos Apóstolos e da igreja
cristã primitiva.

Assim, com o intuito de apresentar, da melhor maneira possível, as


principais características desse bloco de textos, organizamos esse guia
didático como segue. No primeiro capítulo trataremos do contexto histórico-
social do mundo neotestamentário. Nele, apresentaremos o pano de fundo
que contribuiu para a produção dos Evangelhos, a saber, os impérios que
dominaram a Palestina e os conflitos externos e internos que contribuíram
para a construção do cenário descrito nos Evangelhos e Atos dos Apóstolos.
No segundo capítulo, trataremos do período de Jesus, bem como da influência
do cenário e dos antecedentes históricos que estão intrinsicamente ligados ao
ministério de Jesus. No terceiro capítulo, passaremos para a análise dos
textos, para uma análise literária dos Evangelhos. Apresentaremos, agora, as
críticas da Forma, das Fontes e da Redação dos Evangelhos, bem como os
elementos ligados ao processo de produção literária dos Evangelhos sinóticos
e João. Por fim, no último capítulo, falaremos de forma panorâmica do livro de
Atos dos Apóstolos, descrevendo seu processo de produção literária e sua
história e teologia das primeiras décadas da igreja cristã primitiva.

Bons estudos!

Prof. Denilson Matos.

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CAPÍTULO 1 - A FORMAÇÃO DO MUNDO
NEOTESTAMENTÁRIO

A fé cristã surgiu num momento singular da história da humanidade em


face da convergência da providência divina claramente observadas nas
importantes contribuições dos povos gregos e romanos. A interpretação da
teologia cristã para “a plenitude dos tempos” entende a declaração do
apóstolo Paulo como sendo o momento exato no qual o mundo estava
gestacional maduro para o nascimento de uma nova era, não só do ponto de
vista espiritual, mas também social, econômica, filosófica e culturalmente
preparado para então receber a encarnação do Senhor Jesus Cristo.

Observaremos neste capítulo, mesmo que de maneira resumida, como


esses povos contribuíram de maneira fundante para o contexto histórico no
qual surgiu o cristianismo, desde Jerusalém, e os acontecimentos
antecedentes que propiciaram sua expansão até alcançar a cidade de Roma,
capital do império.

1.1 OS GREGOS

A civilização grega, em seu apogeu (VI – II séc. a.C.), teve grande


influência na formação das condições que contribuíram de maneira fundante
para a formação do mundo do primeiro século e o contexto histórico no qual
aconteceu o surgimento e a expansão do cristianismo.

A. A LÍNGUA GREGA

Nos cinco séculos que antecederam o nascimento do Senhor Jesus


Cristo, o mundo estava sendo organizado através da cultura grega,
especialmente pelo ensino insistente para a disseminação de sua língua,
imposta pelos gregos aos povos dominados, numa tentativa de facilitar a

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dominação política e imposição da forma de pensar e da cultura através da
ação bastante proativa para possibilitar a capitalização de seu idioma em
todas as regiões do império como língua universal e oficial. A ideia dos
dominadores gregos era simples: unificar a língua e a cultura para facilitar e
assim fortalecer a unificação do império.
Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), imperador da Macedônia,
dominou desde a Europa até a Índia, vencendo os persas e conquistando uma
grande extensão territorial e inúmeros povos e culturas. Para facilitar o
comércio, o intercâmbio e a política, os gregos ensinavam sua língua, pelo
menos para as elites, trazendo para a humanidade o primeiro modelo de uma
língua universal.
Tal imposição favoreceu bastante o surgimento e a expansão do
cristianismo, visto que teve como resultado prático mais importante favorecer
a pregação da salvação em Cristo numa língua unificada, o chamado “grego
koine”, “grego comum” ou “grego popular”. A importância deste elemento, a
comunicação, pode ser resumido assim:
a) o grego era uma linguagem universal e, especialmente, língua oficial
dos povos mediterrâneos;
b) o grego foi a língua dos primeiros pregadores missionários;
c) a tradução do texto bíblico, “as Escrituras”, do hebraico para o grego.

B. A HELENIZAÇÃO

Com a morte de Alexandre, seu império foi dividido entre seus generais
(a organização persa em Satrapias serviu como base para essa divisão). A
dinastia egípcia foi lidera pelo general Ptolomeu I, que fundou sua dinastia no
ano de 323 a.C., com sua capita em Alexandria no Egito. A outra dinastia que
surgiu com a fragmentação do império de Alexandre, e que é importante para
nosso estudo, é a dinastia dos Selêucidas, na Síria, fundada por Selêuco I em
312 a.C., com capital em Antioquia. Até o ano de 198 a.C., a Judeia fez parte
dos territórios dos Ptolomeus.

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No período de dominação helênica na Palestina, região da Judeia
desfrutava de um grau razoável de autonomia interna. De acordo com F.F
Bruce (2019, p.16),

O país era controlado por um governador imperial, e o povo


tinha de pagar impostos ao cobrador do império; mas a Judeia
em si – que consistia em uma área restrita a poucos
quilômetros em torno de Jerusalém – era organizada como
um estado-templo, cuja constituição havia sido definida na lei
sacerdotal do Pentateuco. O sumo sacerdote, como chefe da
administração do templo, era chefe da administração interna
do minúsculo estado judaico. Havia muitos judeus fora da
Judeia – na Babilônia e na Ásia Menor, em Alexandria e em
Antioquia – e suas ofertas ajudavam a custear o Templo de
Jerusalém e sua administração; mas somente os judeus que
moravam na Judeia estavam diretamente debaixo da
jurisdição do sumo sacerdote.

Se na Judeia havia uma centralização na vida religiosa judaica, em


especial na figura do sumo sacerdote e do templo, nas demais regiões da
Palestina, o processo de helenização já estava em curso há muitos anos.
Algumas cidades foram reconstruídas como colônias gregas no período dos
Ptolomeus e Selêucidas, tais como: Ptolemaida, antiga Aco, Iavneh, Ascalon
e Gaza; ao sul e ao leste do mar da Galileia, as cidades que mais tarde
passaram a fazer parte da decápole: Pela, Filadélfia, Gadara, Citópolis,
Selêucia, em Bashan, e especialmente Gerasa, reconstruída por Antíoco IV
como Antioquia, tornando-se a cidade mais grandiosa dessa região.

Os habitantes dessas cidades eram macedônios e gregos, bem como


semitas helenizados: sírios, fenícios, árabes e israelitas. Além da importação
de elementos culturais gregos e orientais helenizados, a religião grega
também era cultivada nessa região, deuses como Dionísio, e Astarte e
Afrodite eram reverenciados nas principais cidades helenizadas.

Diante das grandes disputas entre as dinastias dos Ptolomeus e


Selêucidas pelos territórios da Palestina, os Selêucidas acabaram saindo
vitoriosos e passaram a dominar a região da Judeia no início do II séc. a.C.
Com o avanço e crescimento do império romano como potência mundial, os
Selêucidas foram entrando em colapso no mundo Egeu, e foram derrotados
na famosa batalha de Magnésia em 190 a.C. Essa derrota se somaria às

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perdas de suas ricas províncias na Ásia Menor, e a imposição de pesados
impostos e indenizações que deveriam ser pagas em parcelas anuais.
Durante a segunda metade do século III a.C., duas famílias abastadas da
Judeia passaram a rivalizar quanto à organização e participação no governo
da Judeia, a saber, os Oníadas e os Tobíadas.

Os Oníadas compunham uma família de sumos sacerdotes que


contestavam a crescente helenização da vida judaica. O Tobíada José, filho
de um comandante do exército ptolemaico na Transjordânia, cuja mãe era
filha do sumo sacerdote de Jerusalém, exerceu a função de ministro das
finanças egípcias do Sul da Síria durante vinte e dois anos. Embora fosse
israelita, José se revela um magnata helenístico que aceitava o estilo de vida
grego como elemento coadjuvante ao poder político e econômico.

Os Tobíadas eram apoiadores dos ptolomeus e bem mais favoráveis à


cultura grega. A tensão entre as duas famílias continuou por vários séculos.
As principais famílias sacerdotais da Transjordânia, Jerusalém e Samaria
eram praticamente todas helenizadas.

Havia em Jerusalém um partido pró-Selêucida antes da conquista por


Antíoco III. Entre seus líderes estavam o Sumo Sacerdote Simão (Talvez
Simão, o Justo) e os filhos mais velhos do Tobíada José. Quando em 198 a.C.
o governante selêucida Antíoco III assumiu o trono, ele foi bem recebido pelos
súditos judeus e confirmou “As leis dos pais”, a base administrativa teocrática
e da vida religiosa do povo. Ele reinou até o ano de 187 a.C. E Seleuco IV
reinou em seu lugar até o ano 175 a.C.

Com a morte de Seleuco IV, ascendeu ao trono Antíoco IV, em 175 a.C.
Logo no início de seu reinado, ele começou de modo significativo alterar a
relação cordial anterior entre os selêucidas e os judeus em Israel. Segundo
Bloomberg (2009, p.28),

Ele aumentou bastante os impostos para tentar manter o


ritmo dos pagamentos a Roma. Mas também começou de
forma mais ativa a promover a helenização, chegando ao
extremo de se proclamar um deus – Antíoco Epífaneo (do
termo grego para “manifesto”).

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O contraste entre religião tradicional e a helenização não foi em si a
causa suficiente para a revolução sangrenta. As dissensões políticas entre as
famílias sacerdotais dirigentes exerceram um papel considerável nos eventos.

Os movimentos contra a aristocracia abastada foram liderados por


pessoas pobres do interior. Tudo indica que o que aconteceu foi uma
divergência entre os partidos pró-Sírio e pró-Egípcio com relação à função
Sumo Sacerdotal e ao controle dos interesses financeiros do Templo.

1.1.1 A REVOLTA DOS MACABEUS

O assassinato do rei Sírio Seleuco IV em 175 a.C. deu aos Tobíadas


mais velhos e a seus partidários a oportunidade de opor Onías e nomear
Jasão Sumo Sacerdote em seu lugar, apoiado pelo novo rei Antíoco IV
Epífanes de quem Jasão havia comprado o cargo de Sumo Sacerdote. Jasão
recebeu permissão do rei para reconstruir Jerusalém como cidade grega, e
ser chamada de Antioquia. Ao invés de um conselho de anciãos uma
assembleia de votantes seria instalada; um ginásio e um plano de educação
para os epheboi, seria constituído. O intuito de Jasão e dos círculos que
promoveram sua instalação era transformar Jerusalém em uma pólis
helenística.

Surge um movimento político, conhecido como os assideus


(hassidistas) “piedosos”, que incluía a família dos Macabeus e outros
simpatizantes que mais tarde ficaram conhecidos como essênios, e
provavelmente também os fariseus. Em 169-168 a.C., o partido conservador
toma a cidade e prende Menelau. Antíoco reagiu imediatamente. Ele tomou
Jerusalém e assassinou os judeus residentes e transformou Jerusalém numa
Katoikia, isto é, uma cidade habitada por soldados, por veteranos e por outros
colonizadores. Só então o governador Apolônio passou a perseguir os
devotos judeus, não apenas por razões religiosas, mas para submeter um
povo revoltado.

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De acordo com Bloomberg (BLOOMBERG, 2009, p.28), após pilhar
Jerusalém pela primeira vez, levado o tesouro do templo e supostamente
matado cerca de 40 mil judeus em um único dia, ele,

Depois de uma nova expedição para ao Egito, Antíoco pilhou


Jerusalém novamente, e incendiou partes da cidade e matou
muitos homens – tudo num sábado, dia em que os judeus não
resistiam. Ele ainda tornou, virtualmente ilegais todos os
símbolos do judaísmo e transgrediu suas leis mais sagradas
ao renomear o templo para Zeus Olimpo, instalando um ali
altar pagão em que eram sacrificados suínos (o mais sujo dos
animais aos olhos dos judeus). Proibiu a circuncisão, a
observância do sábado e a leitura da Torá, além de queimar
suas cópias. Por fim, ordenou sacrifícios a deuses pagãos em
vários altares em todo o país.

A partir de agora o Templo, Chamado Zeus Olimpo desde a reforma,


tornou-se lugar do culto a um deus sírio superficialmente helenizado, Zeus
Baal Shamain, que substituiu Deus. Sua pedra sagrada foi levada para o
Templo onde ele foi cultuado com seus iguais “Atena” e “Dionísio”. As leis dos
pais foram anuladas: não serviam como constituição dos cidadãos sírios-
gregos da Katoikia Jerusalém-Antioquia, em 167 a.C. Baniu-se a prática da
religião de Israel em Jerusalém e Judéia. É difícil avaliar a dimensão da
perseguição. Antíoco, porém, obrigou os cidadãos a participarem do culto
pagão e proibiu a circuncisão. A carne de porco transformou-se em teste de
fidelidade, e quem se recusasse a comer demonstrava a sua participação na
revolta.

O sacerdote Matatias e seus cinco filhos fugiram para as montanhas


da Judeia e organizaram um grupo de judeus rebeldes. Houve uma fuga muito
grande de pessoas que se juntaram às guerrilhas nas montanhas da Judéia.
O Sacerdote Matatias morre no ano 166 a.C., mas seu filho Judas, chamado
de Macabeu (o martelo), continuou conduzindo os ataques aos selêucidas.
Mais tarde alguns dos assideus romperam com Judas, dentre eles os
essênios e os fariseus, quando ambicionaram e conseguiram tanto o poder
político quanto o do Templo. Em contrapartida, Antíoco conseguiu apoio de
todas as cidades gregas, a população não judia das regiões circunvizinhas,
os samaritanos, e os habitantes de Israel que haviam favorecido a

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helenização e queriam manter uma coexistência pacífica a todo povo da
Palestina.

Após quatro anos de guerras (168-164), e subsequentes derrotas,


Antíoco é convencido de revogar as leis contra o exercício da religião
tradicional, e garantias de retorno com liberdade religiosa. No dia 24 de
Quisleu, em 164 a.C. aconteceu a “Purificação do Templo”, que ainda é
celebrada pelos judeus a cada dezembro, na festa do Chanucá (festa da
dedicação).

Porém, pouco depois dos editos revogados, Judas conquistou


Jerusalém, e os helenistas se retiraram novamente para Acra fortificada. Após
a morte de Antíoco em 163, Judas faz um acordo com o novo rei Antíoco V
Eupátor, O templo de Jerusalém foi devolvido oficialmente ao culto tradicional
(162) e Menelau foi executado. O Sumo Sacerdote Alcimo não foi reconhecido
por Judas por causa de sua simpatia pelo helenismo.

1.1.2 A DINASTIA ASMONEIA

O Objetivo da família dos Asmoneus não era apenas recuperar a


liberdade religiosa para o seu povo. Eles não se contentaram com essa
conquista. Eles continuaram a lutar contra os governantes e aproveitaram as
diversas disputas dinásticas e civis no âmbito selêucida, até que, por fim,
conseguiram retomar o a autonomia nacional de Israel (142 a.C.) sob a
liderança de Simão, o último sobrevivente da dinastia dos filhos de Matatias.

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Simão assumiu o oficio de líder civil e militar após a morte de seu irmão
Jônatas em 143 a.C. Em uma assembleia popular decidiu que assumiria,
também, o cargo de “sumo sacerdote, perpetuamente, até a vinda de um
profeta fiel”(1Mc 14,41). Até que a figura do profeta não viesse, o oficio de
sumo sacerdote deveria ser exercido por Simão e seus descendentes. Bruce
(2019, p.19), aponta que os primeiros anos da dinastia asmoneia foi muito
próspero:

O início do governo da dinastia dos asmoneus foi marcado


por prosperidade e alegria na nação. Depois de uma breve
tentativa dos selêucidas para voltar a impor sua autoridade
sobre a Judeia, o poder desse império decaiu rapidamente,
em parte por causa de campanhas militares contra os partos
que não levaram a nada, e em parte por causa de lutas
armadas na disputa pelo trono. Os asmoneus, que até pouco
mal conseguiam a simples sobrevivência da nação, agora
viam oportunidades de expansão nunca sonhadas.

Sob a liderança de João Hircano (134-104 a.C), filho de Simão, Israel


alcança autonomia e recupera todos os territórios de Israel que estavam sob
domínio Sírio, e obrigam todos os residentes a se converterem ao judaísmo.

Aristóbulo I (104-103 a.C) e Alexandre Janeu (103-76 a.C), filhos de


Hircano, começam uma disputa pelo trono do pai. Após a morte de Aristóbulo,

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Alexandre assume o sacerdócio e continua as propostas imperialistas de seu
pai. O reino da Judeia, desde o litoral do Mediterrâneo, a oeste, até a
Transjordânia, a leste, tornou-se quase tão grande quanto ao reinado de Davi
e Salomão. Entretanto, aponta Bruce (2019, p.19):

Esses reis eram homens sem escrúpulos e imitadores dos


soberanos helênicos de pouca importância, sem, contudo, a
pretensão de resgatar a cultura grega. Janeu, em particular,
cercando e destruindo cidades helenistas uma após a outra,
no perímetro de seu reino, revelou-se um perfeito vândalo.

Após sua morte, sua esposa Salomé Alexandra (76-67 a.C.) assumiu o
governo como rainha, e nomeou se filho Hircano II como sumo sacerdote, haja
vista que não podia assumir o cargo pessoalmente. O seu filho Aristóbulo II,
recebeu da parte da mãe o domínio militar. O reinado curto da rainha Salomé
é considerado uma era dourada.

Quando Salomé morreu, estourou uma disputa entre os irmãos em


torno do trono da rainha. Hircano, o mais velho, que já era sumo sacerdote,
tinha mais direito, contudo, seu irmão Aristóbulo II venceu seu irmão perto de
Jericó e este foi obrigado a entregar o seu cargo. Aristóbulo II (67-63 a.C.)
tornou-se rei e sumo sacerdote. Aristóbulo, entretanto, se depararia com a
força de Roma, que estava prestes a organizar a situação do Oriente de
acordo com seus interesses.

1.2 OS ROMANOS

A civilização romana foi tão importante quanto a civilização grega na


formação do contexto social, histórico e cultural que fundaram as bases do
mundo neotestamentário. Segundo a lenda, o povo romano teve seu início
com os irmãos Remo e Rômulo, por volta do século VIII a.C. Abandonados
para morrer ao lado do rio Tibre, que atravessa grande extensão do território
da atual Itália, foram salvos e amamentados por uma loba. Esta origem no
inconsciente coletivo ajudou a construir a identidade de um povo guerreiro e
resistente às contrariedades da vida.
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A dominação dos romanos em seu ápice (I séc. a.C. ao V séc. d.C.),
estendeu-se desde a Europa até a Ásia, alcançando também o norte da
África, numa extensão territorial que se aproveitou bastante das conquistas
gregas realizadas por Alexandre, o Grande (356 a.C. – 323 a.C.), agora
sobrepujadas pelos guerreiros e expansionistas dos imperadores de Roma.

Seguindo um esquema proposto por Gundry (1991, p. 11), os


imperadores relacionados às narrativas do Novo Testamento são:

a) Augusto (27 a.C. – 14 d.C.), sob quem aconteceram os fatos


relacionados ao nascimento do Senhor Jesus Cristo; foi Augusto, o primeiro
a ser nomeado de César, o maior disseminador do “culto ao imperador”;

b) Tibério (14 d.C. – 37 d.C.), sob quem Nosso Senhor Jesus Cristo
efetuou seu ministério público, morte e ressurreição;

c) Calígula (37 d.C. – 41 d.C.), reinou durante o período descrito em


torno da Igreja de Jerusalém; conhecido por sua extravagância e
perversidade. Foi morto “misteriosamente” pela guarda pretoriana após ter
ordenado a colocação de sua estátua no Templo de Jerusalém e antes de
ver sua ordem cumprida;

d) Cláudio (41 d.C. – 54 d.C.), reinou durante as viagens missionárias


do Apóstolo Paulo;

e) Nero (54 d.C. – 68 d.C.), o mais famoso perseguidor dos cristãos;


conhecido por sua perversidade e loucura, assassinou a própria mãe,
executou a primeira esposa por “infertilidade” e anulou o poder do Senado,
e sob quem repousa a ordem de martírio do Apóstolo Pedro e Apóstolo
Paulo;

f) Vespasiano (69 d.C. – 79 d.C.), que ordenou o general Tito a invadir


e destruir Jerusalém (70 d.C.);

g) Domiciano (81 d.C. – 96 d.C.), estendeu a perseguição aos cristãos,


cujo cenário político é o contexto do livro de Apocalipse.

É importante lembrar e ressaltar que os romanos dominavam o mundo e


a Palestina do primeiro século, ou seja, quando o cristianismo nasce, Roma

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governa de maneira forte, absoluta, efetiva e inteligente a Ásia Menor e
regiões muito prósperas adjacentes ao Mar Mediterrâneo, localidades muito
importantes e que formam o pano de fundo para a compreensão contextual
do Novo Testamento.

O Império romano estabeleceu condições, já consideradas e agora


somadas às influências gregas, que contribuíram para a expansão cristã, a
saber:

a. O domínio político unificador – “César é senhor!”

Os romanos unificaram o poder, portanto a lei romana era aplicada em


todas as regiões. Esta unidade favoreceu que, em todas as regiões
dominadas, um único governo, uma única lei e a percepção de que, em
qualquer lugar do domínio romano, deveria haver ordem e sujeição. Havia
apenas um imperador, “César, o senhor!”.

O culto imperial foi introduzido na cultura romana por César Augusto (63
a.C. a 14 d.C.), alcançando grande importância no processo de centralização
do poder e a consequente unificação do império, alcançando rapidamente um
lugar especial na maioria das principais províncias.

Este elemento unificador de um culto ao imperador, transformou-se em


uma política de Estado, dando aos imperadores o status divino. Foi o contexto
de uma religiosidade “unificada” no território do império romano que, em boa
parte, a mensagem cristã de um único Senhor, Jesus Cristo, alcançou suas
primeiras conquistas

b. A unificação política e comercial – “todos os caminhos levam


à Roma”

Os romanos sustentavam seu rico império e exército através dos


impostos cobrados dos povos dominados. Sendo assim, facilitaram e
incentivaram o comércio e estabeleceram sistemas para um fluxo de
mercadorias que, ao mesmo tempo, favorecia o intercâmbio de pessoas e
ideias em direção às suas províncias, numa via de mão dupla, indo e voltando
de Roma.

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O cuidado com a estabilidade política e o incentivo para o comércio
entre as várias regiões mediterrâneas e mesopotâmicas, facilitaram também
múltiplos fluxos migratórios e o conhecimento entre os povos. Quando surge
o cristianismo, a unificação política e comercial sob a dominação de Roma
contribuiu de maneira especial para a divulgação da fé, conforme
encontramos registrado no livro de Atos dos Apóstolos.

Até os dias de hoje, quando desejamos expressar que várias


alternativas podem estar corretas para a mesma questão, é comum dizer-se
“todos os caminhos levam à Roma”. Isso remonta aos tempos desse
majestoso império, que dominou desde a atual Inglaterra até o extremo do
atual Irã, chegando a possuir 80.000 de estradas interligadas, um orgulho dos
romanos chamado à época de “cursus publicus”, meio pelo qual se
consolidavam a comunicação, comércio, viagens, mensagens.

As estradas e o exército romano foram sem precedentes na história da


humanidade, não só para a antiguidade, mas para qualquer parâmetro
contemporâneo também, como aponta Suana (2019, p.22):

Essas estradas facilitaram não só o intercâmbio comercial


entre os povos, como também os caminhos dos primeiros
missionários. O próprio apóstolo Paulo utilizou essas
estradas na conquista do mundo gentio. Teria sido muito mais
difícil ou mesmo impossível realizar sua carreia missionária
sem esta facilidade de trânsito possibilitada pelas estradas
romanas.

c. A paz universal – “paz pela espada”

Também chamada de “Pax Romana”, a paz universal do império,


preservada pela força da espada, trouxe uma estabilidade e segurança jamais
vistas em nenhum outro momento da história da humanidade, até então. As
guerras praticamente foram eliminadas, agora a paz entre as nações, a
segurança das viagens comerciais, o combate à pirataria, a pacificação de
regiões e tribos inimigas, o fluxo de pessoas e ideias eram amplamente
garantidas.

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O poder de Roma garantiu a tranquilidade mínima, pondo quase que
um fim completo às guerras entre as nações dominadas, visto que a cobrança
de impostos era vital e dependia, em boa parte, da paz que era a garantia o
fluxo de pessoas e mercadorias, ou seja, na “pax romana” o comércio e a
arrecadação eram cuidadosamente observados. Disso dependia a
manutenção financeira de um gigantesco império.

Os perigos que os viajantes missionários do primeiro século


enfrentaram foram com heresias, naufrágios e doenças, nunca de pirataria,
guerras ou segurança contra ladrões, que tinham atuação muito restrita em
comparação com os tempos antigos, o que a soberania de Deus usou a fim
de que a mensagem da salvação chegasse e circulasse muito rapidamente
entre todos os povos. Como aponta Nichols (2004, p. 18), “Essa paz entre os
povos favoreceu extraordinariamente a disseminação do evangelho entre as
nações”.

1.3 A DOMINAÇÃO ROMANA NA PALESTINA

Desde que expulsou seu último rei, Tarquínio Soberbo, em 510 a.C.
Roma iniciou seu processo de expansão territorial e política. Internamente,
entretanto, lidou por muitos séculos com lutas entre suas classes, que
ocasionou num equilíbrio político como Estado semidemocrático. Após a
extinção da realeza, Roma passou a ser dominada pelas famílias patrícias
que controlavam a maioria das terras cultiváveis. Os chefes das famílias dos
Patrícios constituíam o Senado, que obtinham o poder de nomear sacerdotes
e preencher vagas em cargos públicos. As diversas disputas e ameaças dos
plebeus surtiram efeito, e paulatinamente Roma foi abrindo espaço para o
povo acessar funções importantes no desenvolvimento do império.

Após as guerras púnicas, Roma tornou-se a maior potência no


Mediterrâneo ocidental e daí em diante passou a perseguir uma política
abertamente expansionista. Roma enfrentou, entretanto, um século de guerra

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civil, o que impediu que Roma conquistasse muito mais territórios que
conquistou, e em uma rapidez maior.

Sua reorganização ficou a cargo de líderes militares importantes, tais


como Mário, Sula e Pompeu. Pompeu era filho de uma família que havia
recentemente alcançado uma vaga entre a classe dos patrícios. Era general
habilidoso, recebendo de seus soldados o título de “Magno”. Diante de
ameaças de Sartório, na Espanha; de piratas que haviam se fortalecido muito;
e Mitridates que ameaçava Roma do Oriente, Pompeu consegue a vitória na
Espanha (71 a.C.), submeteu os piratas em 67 a.C. em apenas 49 dias; e a
guerra que elevou Pompeu ao ápice da fama foi a vitória sobre o último rei do
Ponto em 75 a.C.

1.3.1 ROMA INVADE A PALESTINA

Quando Pompeu chegou à Jerusalém, Aristóbulo II tentou resistir, mas


foi prontamente derrotado. Antonius H.J Gunneweg (2005, p.282), descreve a
força empregada por Pompeu para conter os inimigos que resistiam:

Este tentou defender-se contra os romanos, porém precisou


reconhecer logo a impossibilidade desse empreendimento.
Seus adeptos, em Jerusalém, não estavam dispostos a
entregar a cidade aos romanos sem luta. No entanto, eles
eram apenas uma minoria, e a maioria do povo, influenciada
pelos fariseus, foi contra a guerra e abriu as portas da cidade
a Pompeu. Os adeptos de Aristóbulo, porém, retiraram-se
para o recinto fortificado do templo, e Pompeu foi obrigado a
sitiá-los. Depois de três meses, a resistência foi quebrada e,
então, castigada com um banho de sangue entre os
defensores e sacerdotes. Para horror das pessoas fiéis à lei,
Pompeu e seu cortejo entraram no Templo e no santo dos
santos.

Pompeu restabeleceu Hircano II no cargo de sumo sacerdote, e


Aristóbulo juntamente com seus dois filhos Alexandre e Antígono foram levado
à Roma cativos. Hircano, no entanto, devia pagar impostos a Roma e havia
perdido todos os territórios gregos e samaritanos vizinhos que seus
antepassados asmoneus haviam conquistado. Um idumeu de nome Antípater

18
(63-43 a.C) passou a ser o poder oculto por trás de seu reinado, e estreitou
cada vez mais sua relação com os romanos, em especial com Júlio César,
após salvá-lo de um atentado no palácio de Alexandria, durante o inverno de
48-47 a.C. Essa lealdade refletiu de forma direta na administração da Judeia,
aponta Bruce (2019, p.25):

Em reconhecimento aos serviços prestados por Antípater,


César tornou-o cidadão romano isento de taxas e deu-lhe o
título de procurador da Judeia. Ele recebeu permissão de
reconstruir os muros de Jerusalém, que Pompeu havia
derrubado; os tributos pagos pela Judeia foram reduzidos, e
várias outras concessões foram feitas aos judeus.

A conspiração e assassinato de Júlio César em 44 a.C. soou como um


golpe para os Judeus, mas a lealdade de Antípater seguiu aos representantes
do triunvirato Otávio e Marco Antônio. Em 43 a.C. Antípater foi assassinado,
mas seus filhos, Fasael e Herodes, deram continuidade à política do pai.
Quando os partidários de César derrotaram o exército opositor em Filipos, em
42 a.C., eles nomearam Fasael e Herodes tetrarcas adjuntos.

Mas, por volta do ano 40 a.C., os partos invadiram as províncias da


Síria e da Judeia e colocaram Antígono (filho de Aristóbulo II) no trono de
Jerusalém, como rei-sacerdote dos judeus. Fasael foi capturado e morto,
Herodes, porém, conseguiu escapar e fugiu para Roma, onde o senado,
acatando a sugestão de Marco Antônio e Otávio, o declarou rei dos Judeus.

A Judeia foi reconquistada em 37 a.C., depois de um cerco que durou


três meses. Antígono foi enviado para Marco Antônio em Antioquia, e foi
executado a pedido de Herodes. O reinado de Herodes (37 - 4 a.C.) começou
de forma polêmica, uma vez que para tentar agradar a seus súditos ele
escolheu como rainha a princesa asmoneia Mariane (neta de seus rivais,
Hircano II e Aristóbulo II). Sua atitude não conseguiu aplacar o sentimento de
arrogância que os judeus cultivavam acerca dele, por destronar um rei
legítimo, Antígono. Porém, aponta Bruce (2019, p.26):

Herodes, ainda que cruel, revelou-se um administrador


talentoso e, durante todo o seu reinado, os romanos não
tiveram razões para se arrepender do dia em que o
nomearam rei dos judeus. Ele sempre defendeu os interesses
de Roma, tanto dentro quanto fora de seu território, sem ver

19
contradição entre os interesses de Roma e os de seu reino e
seus súditos, cujas propriedades, incluindo a preservação da
liberdade religiosa, seriam mais bem atendidas, segundo ele
cria, pelo caminho da integração com a esfera de influência
romana.

Herodes recebe o título de “o Grande”, devido seus grandes projetos


de construções e reconstruções, dentro e fora de Israel. O projeto mais
surpreendente foi o templo em Jerusalém, reconstruído praticamente do chão
após a destruição das velhas ruínas. Além disso,

Nos primeiros anos de seu reinado, ele reconstruiu a fortaleza


dos asmoneus em Baris, a noroeste da área do Templo de
Jerusalém, e deu-lhe o nome de Antônia, inspirado em seu
amigo e aliado Marco Antônio. Outras defesas foram
construídas para Jerusalém e também para Jericó;
edificaram-se as fortalezas de Massada (sudoeste do Mar
Morto), Maquero (Leste do mar Morto), Heródio (próximo a
Jerusalém), outra Heródio (na fronteira com a nabateia) e
Alexândrio (perto de Jericó) (BLOOMBERG, 2009, p.36).

1.3.2 A SUCESSÃO DE HERODES

No fim de sua vida, Herodes foi tomado por uma paranoica suspeita de
golpes contra sua vida e mandou executar alguns de seus filhos e sua esposa
Mariane. Herodes tinhas outros filhos com outras esposas. Dentre eles,
Antípater que era filho de Herodes com Doris, sua primeira esposa, e foi
nomeado como rei adjunto. Algum tempo depois foi destituído de seu cargo.
Antipas, filho caçula de Herodes era, agora, o escolhido para assumir o trono.
Antipas era filho de Maltace, uma samaritana e esposa secundária de
Herodes. Além de Antipas, eles tinham outro filho juntos, Arquelau, que fora
rejeitado pelo pai por suspeita de envolvimento com Antípater, seu meio-
irmão.

Alguns dias antes de sua morte, Herodes ordenou a execução de


Antípater, e mudou de ideia quanto à sucessão, e dividiu o seu reino entre três
de seus filhos: Antipas deveria governar como tetrarca sobre a Galileia e a

20
Pereia; Arquelau governaria sobre a Judeia (incluindo Samaria e Idumeia) e
herdaria o título real; e Filipe, foi nomeado tetrarca das províncias que
Herodes havia recebido de César, ao norte e a leste do mar da Galileia
(BLOOMBERG, 2009, p.35).

(BLOOMBERG, 2009, p.36)

O reinado de Antipas na Galileia foi mais benigno. Seus interesses


estavam alinhados aos interesses de Roma. Em sua região não são
identificados conflitos ou revoltas de graus mais elevados. Ele é considerado
o filho mais habilidoso de Herodes, em especial por seu incentivo da cultura
helenista e grande construtor. Antipas reconstruiu a cidade de Séforis e
edificou uma nova cidade, a mais notável cidade de Tiberíades às margens
do mar da Galileia, batizada com esse nome em homenagem ao imperador
Tibério César (c.22 d.C.).

A tetrarquia de Filipe é apresentada pelo Evangelho de Lucas 3,1 como


sendo a “região da Itureia e Traconites”. A cidade de Paneion foi ampliada por

21
Filipe e foi rebatizada por ele de Cesaréia, em homenagem ao imperador; para
distingui-la da Cesaréia mais conhecida, que estava localizada no litoral da
Judeia, no Mar mediterrâneo, passou a ser reconhecida como “Cesaréia de
Filipe”. Bruce (2019, p.36) atesta que,

Filipe era um soberano moderado e tolerante, o mais tranquilo


dos filhos de Herodes. Ele passava a maior parte do tempo
em sua tetrarquia. Periodicamente, ele saía com alguns
poucos amigos escolhidos a fim de percorrer o circuito,
levando consigo um trono de julgamento portátil. Os casos
trazidos à sua apreciação eram julgados in loco, e ele
pronunciava sentenças sobre criminosos culpados e
inocentava os que haviam sido acusados injustamente, de
modo que ninguém podia reclamar de demora na justiça.

Já Arquelau, causou muitos conflitos e discórdias em sua região devido


sua falta de habilidade administrativa e diplomática. Ele escandalizou muito
os judeus com seus casamentos, em especial, o casamento com Glafira, uma
rainha capadócia, que havia sido casada com seu meio-irmão Alexandre, um
dos filhos de Mariane. Sua tirania no governo da Judeia, bem como sua falta
de competência administrativa, resultou em seu banimento, como atesta
Bruce (2019, p.35):

A deposição de Arquelau ocorreu após a chegada de duas


delegações a Roma, uma da Judeia e outra de Samaria,
ambas manifestando extraordinária unanimidade no protesto
contra o governo tirânico de Arquelau e no apelo para que ele
fosse afastado. Ele foi tirado do cargo – tendo sido enviado
para Vienne, no vale do Ródano – e a Judeia foi reorganizada
como província romana sob o controle de um prefeito ou
procurador nomeado pelo imperador e com poder de exercer
jurisdição capital, além de comandar um grupo de tropas
auxiliares (6 d.C.).

A Judeia passou a ser governada por procuradores e governadores


designados por Roma, com o intuito de garantir uma ligação mais direta entre
os romanos e sua província na Judeia. O mais famoso deles, devido a sua
menção na Bíblia, é Poncio Pilatos (26-36 d.C), procurador responsável pela
Judeia por ocasião da crucificação de Jesus.

22
CAPÍTULO II – JESUS E SEU TEMPO

O estudo acerca de Jesus e seu ambiente sócio histórico e literário é


fundamental para a compreensão dos eventos que são descritos nos
Evangelhos. O momento em que Jesus exerce seu ministério profético e
messiânico é marcado por tensões políticas e sociais, que são reflexos de
anos de conflitos e alianças estabelecidas desde o período asmoneu.

A organização social e política, os grupos religiosos existentes no


período de Jesus, bem como o diálogo e afastamento de Jesus em relação a
esses fatos, são fruto de intensa discórdia dentro do próprio judaísmo do
tempo de Jesus. Por isso, em muitas pesquisas modernas acerca do judaísmo
do primeiro século, chegam a dizer que a forma mais coerente a se falar seria
no plural, “judaísmos” do primeiro século, devido a variedade grupos e
crenças entre eles.

2.1 OS GRUPOS POLÍTICOS E RELIGIOSOS DO


TEMPO DE JESUS

A origem dos grupos políticos e religiosos do tempo de Jesus remontam


o período persa. Desde o período do pós-exílio, na Judeia surgiram grupos de
judeus piedosos que começaram a se reunir em busca de incentivo mútuo. É
entre esses grupos que podemos identificar as origens dos Hasidim, o “povo
piedoso”, que teria uma participação importante no II a.C., na revolta política
e crise religiosa de Israel. De acordo com Bruce (2019, p.36),

Os Hasidim deploravam as influências do modo de vida


helenístico sobre o judaísmo da época dos ptolomeus e
selêucidas, mas sua desaprovação não resolvia muita coisa.
Os jovens que, até nas famílias sacerdotais, competiam uns
com os outros seguindo as novas tendências, olhavam para
os hasidim como estraga-prazeres fora de moda. Mas,
quando o helenismo mostrou seu outro lado na tentativa de
Antíoco Epifânio e seus conselheiros de eliminar os
elementos que distinguiam a religião e a nação judaica, os
hasidim se mantiveram firmes e se recusaram a fazer
concessões.

23
Com as concessões que os governantes asmoneus, bem como a
ocupação do cargo de sumo sacerdote por aqueles que não pertenciam à
linhagem sumo sacerdotal, fizeram com que os hasidim rompessem com o
governo.

2.1.1 FARISEUS

Com João Hircano, filho de Simão, a aliança com os hasidim foi


desfeita. Diante da atuação do governante, os hasidim romperam com rei e
se separam da aliança feita com os asmoneus por ocasião da crise com os
helenistas. O nome “Fariseu" significa "separatistas". Perushim poderia ser
uma classificação negativa contra a auto avaliação dos fariseus como
"aqueles que diferem com rigor", porque tanto Flavio Josefo (Vita 191), como
o Novo Testamento (At 22,3; 26,5), caracterizam os fariseus pelo rigor e
precisão.

Os fariseus, cujas origens remontam ao período Asmoneu, deixou de


ser um partido político para ser um movimento religioso: da política à Piedade.
É verdade que o caráter religioso do movimento fariseu é acentuado no século
I d. C. Josefo descreve suas crenças: entre outros, a fé na ressurreição e
fidelidade às "tradições ancestrais". Segundo Bruce (2019, p.80), para os
Fariseus, as tradições surgiram de uma interpretação particular recebida pelo
próprio Moisés no Sinai:

No decurso de seu estudo da lei, eles formularam um volume


de interpretações e aplicações tradicionais que, com o passar
do tempo, assumiu a condição de verdade sacrossanta, a
exemplo da própria lei escrita. Gerações posteriores de
rabinos chegavam a dizer que essa lei oral procedia de
Moisés, que a recebeu no Sinai juntamente com a lei escrita;
esta foi transmitida por copistas, mas a lei oral foi transmitida
de boca em boca, de uma geração para outra - de Moisés
para Josué, daí para os anciãos, para os profetas, para os
homens da grande Sinagoga e de Simão, o Justo, um dos
últimos sobreviventes da Grande Sinagoga, para Antígono de
Socó, que por sua vez a entregou a sucessivas duplas de

24
estudiosos, geração após geração – José ben Joezer e José
Ben Joanã; Josué ben Parakiá e Nitrai, o arbelita; Judá Ben
Tabai e Simeão Ben Shetak (70 a.C); Semaías e Abtalião
(c.40 a.C.) Hilel e Shammai (c.10 a.C.).

A Imagem que Josefo descreve sobre os Fariseus é confirmada no


Novo Testamento: a fé na ressurreição separa os fariseus e saduceus (Atos
23,6-8). Os fariseus enfatizam as "tradições ancestrais"; estritamente
observar os preceitos da Sábado (Mc 2,23-36) e sobre a pureza ritual, e os
dízimos de produtos pequenos (Mt 23,23s; Lc 18,12).

Esta mesma imagem dos fariseus aparece indiretamente confirmada


por escritos rabínicos posteriores. A partir deles, tradições, leis e disputas que
podem ser rastreadas de algum momento antes do ano 70 d. C., com o
seguinte resultado: basicamente eram as regras de pureza, dízimos e
feriados.

Isso não era exatamente espírito religioso apolítico. As regras de


pureza ritual foram estratégias de segregação social. No século I d.C., tais
padrões estão focados para um ambiente ideal para um molde de pessoas,
mas foram submetidos politicamente: privacidade com as suas orientações
em alimentos, sexualidade e ruptura festiva. Os fariseus, que aparecem na
era dos Asmoneus como um grupo político-religioso ativo, agora escolhe uma
estratégia defensiva para preservar a identidade judaica contra a arrogância
política e cultural de estrangeiros. Não fez, então, nenhuma mudança "da
política à piedade", mas sim uma mudança de estratégia.

2.1.2 SADUCEUS

O termo "Saduceus" (Saddoukaioi) provavelmente deriva de

"Zadoque," o antepassado da alta linhagem sacerdotal do "sadocitas" (1 Cr


5,27ss, 24, 1). A transformação de "Zadoque" em "Saduc" aparece também
documentada na LXX (Ed 7, 2, por exemplo) e em Josefo. Menos provável é
a derivação do hebraico (Tsadiq = "justo").

25
Os saduceus aparecem pela primeira vez sob João Hircano (134-104
a. C), depois da ruptura desse com os fariseus, que tinham criticado a falta de
legitimidade dinástica. Talvez, João Hircano conseguiu ganhar o apoio dos
legítimos representantes da antiga linhagem de sumos sacerdotes para suas
reivindicações.

Os sumo-sacerdotes que eram escolhidos no período herodiano e


romano, eram da família dos Saduceus. Eles eram fiadores do extremo
cumprimento das leis religiosas e do culto do templo, segundo a codificação
na lei escrita. Sua obrigação era interpretar a lei, que insistiam apenas na
leitura literal da mesma, bem como a manutenção do serviço religioso no
templo.

O grupo dos Saduceus dominou o cenário político na era dos


Asmoneus até que a rainha Alexandra Salomé (76-67 a.C.) devolveu o poder
e a influência dos fariseus, precisamente no tempo em que a política de
expansão dos Asmoneus resultou na reunificação da Iduméia, Samaria e
Galileia na pátria judaica.

Os saduceus rejeitavam as formas religiosas do judaísmo contidas nas


"tradições ancestrais", acrescentadas à Torá; bem como as doutrinas da
ressurreição física e da atribuição de recompensas e castigos num julgamento
pós-morte, por considerá-las inovações advindas do zoroastrismo, juntamente
com a crença em hierarquias angelicais e demoníacas.

Os Saduceus assumiam uma postura fundamentalmente


conservadora, como atesta Klaus-Michael Bull (2009, p.214), postura tal,

Que os tornava defensores do status quo político e religioso.


De forma interessante, no entanto, esse conservadorismo
podia unir-se perfeitamente com uma postura mais aberta em
relação às influências culturais do helenismo. Disso dão um
claro testemunho, não por último, os achados arqueológicos
da Jerusalém do século I d.C.

26
2.1.3 ESSÊNIOS

A origem dos Essênios possivelmente seja a mesma dos Fariseus.


Muitos pesquisadores sugerem que os Essênios faziam parte do grupo dos
hasidim “piedosos” que lutaram juntamente com os asmoneus contra a
helenização da Palestina. Muitos hasidim tinham a convicção que estavam
lutando de acordo com o plano divino, sob a bandeira de Deus (2Mc 8,23).

Com o avanço das guerras e vitórias dos asmoneus sobre os


Selêucidas, os governantes passaram a seguir caminhos inapropriados,
segundo a visão dos hasidim. Richard A. Horsley (1995, p.39) aponta que,

Os hasidim haviam lutado ombro a ombro com os asmoneus


(contra os exércitos Selêucidas) para recuperar a liberdade
dos Judeus da opressão selêucida, certamente na convicção
de que a teocracia e suas instituições sagradas estavam
prestes a ser restauradas. O sumo sacerdócio sempre tinha
sido ocupado por um sadoquita. A sucessão legítima só fora
rompida pela reforma helenística. Os asmoneus eram uma
família sacerdotal, mas não sadoquita. Por isso quando
Jonatas aceitou a nomeação para o sumo sacerdócio e,
depois, quando Simão se fez proclamar sumo sacerdote por
uma assembleia nacional (advertindo contra qualquer
oposição e proibindo assembleia pública na sua ausência),
muitos hasidim devem ter ficado decepcionados.

Assim, os sacerdotes da família sadoquita, bem como os hasidim


decepcionados com a nomeação ilegítima do sumo sacerdote, separaram-se
dos demais judeus de Jerusalém e do templo para organizarem uma teocracia
sacerdotal ideal no deserto, um “Israel verdadeiro”, dirigido pelo único
sacerdócio “legítimo”. Estabeleceram, assim, uma comunidade ascética
utópica na região junto ao mar Morto.

O nome “essênios” deriva do aramaico hazem, que significa “limpo,


santo”. No caso do grupo dos Essênios, há um consenso que esse grupo é o
mesmo que organizou a comunidade chamada de Qumrã, cujos textos foram
encontrados nas cavernas no entorno do sitio arqueológico destruído pelas
legiões romanas no final do ano 70 d.C. no fim da revolta Judaica. As
descobertas dos Manuscritos do Mar Morto contribuíram para desnudar
alguns aspectos peculiares dessa comunidade sectária judaica, que

27
preservou diversos comentários e regras ligados a organização da
comunidade, bem como as regras de aceitação e pureza. De acordo com Bull
(2009, p.217):

A meta dos essênios era uma vida de acordo com a


orientação (da Torá) de Deus, para cujo estudo, segundo
informações da Regra da Seita, era dedicado 1/3 das noites.
A rigorosa interpretação dos mandamentos de purificação
também levou que as mulheres desempenhassem um papel
completamente secundário entre os essênios. Pelo menos
parte do movimento essênio parece tê-las banido
completamente de suas fileiras. Pelo fato de as mulheres
valerem potencialmente como impuras para o culto, elas
foram, segundo a apresentação dos textos de Qumrã,
excluídas ao menos das refeições em comum.

A comunidade dos Essênios acreditava que eles pertenciam a um


grupo de remanescentes de Deus, cuja a vida de santidade os permitiria lutar
em um futuro bem próximo, lado a lado com Deus e seus anjos na guerra
escatológica entre Deus e as forças do mal.

2.1.4 ZELOTES

O grupo dos Zelotes podem ser caracterizados mais pelas suas


pretensões e ações políticas do que religiosas. Entretanto, sua leitura da
situação social do primeiro século d.C. representa um descontentamento com
a dominação romana, pois, para eles o Reino de Deus não tolera outra

soberania. O nome “Zelotes” vem do grego “zhloth,j” que significa “zeloso”.

Segundo a narrativa de Flavio Josefo, o grupo dos Zelotes surgiu da


resistência contra o censo efetuado pelos romanos na Samaria, Judeia, e
Idumeia, depois de terem incorporado essas regiões no ano 6 d.C. na
procuradoria imperatorial da Judeia, sob seu domínio direto. O centro “político”
dos Zelotes era a Galileia, e era chefiado pelo escriba Judas, denominado
Galileum juntamente com o fariseu Zadoque.

28
Bull (2009, p.219 afirma que as pretensões dos Zelotes eram
predominantemente política:

Os grupos zelotes operavam a partir de regiões inacessíveis.


Eles tentavam atingir as forças de ocupação romanas por
meio de “incursões bélicas pontuais”. Por outro lado, também
não tinham escrúpulos para influenciar com violência a
população em seu favor. O grupo dos sicários (do latim sica
– o punhal) foi, inclusive, tão longe, a ponto de assassinar
opositores ou colaboradores políticos isolados.

Os Zelotes recrutavam seus adeptos das regiões rurais empobrecidas


da Galileia, que sofriam da maneira mais amarga pela miséria econômica da
região. Esse grupo atuou de forma mais contundente nos eventos que
resultaram na Guerra Judaica (66-70 d.C.), liderando a insurreição contra os
romanos.

2.2 JESUS E OS GRUPOS POLÍTICOS E RELIGIOSOS

Jesus compartilhou as crenças religiosas básicas dos fariseus: Ele


acreditava na ressurreição (cf. Mc 12: 18-27; Mt 12, 41 s), embora esta
questão estava em segundo plano na expectativa do reino de Deus. Ele
acreditou em demônios como eles (cf. At 23, 8); Ele esperou, sim, o seu
desaparecimento com a chegada do Reino de Deus. Ele confiou em um
sinergismo entre Deus e o homem como eles: ambos cooperam, como um
agricultor tem que "cooperar" com a terra para nascer o fruto (Mc 4, 26-29).

Jesus, no entanto, se opôs às regras práticas defendidas pelos


fariseus, como o preceito do sábado e o preceito de pureza ritual. As "velhas
tradições" não eram para ele princípios sacrossantos, mas os submeteram à
crítica. O pagamento do dízimo era um dever irrelevante em comparação com
os princípios éticos fundamentais de justiça, a misericórdia e a fidelidade (Mt
3, 23). Em outras palavras, Jesus não partilhou estratégia segregacionista dos
fariseus contra todos estrangeiros, com base em preceitos rituais.

29
Sua defesa contra a ideia de pureza apoiaram a ideia de uma pureza
"ativa": impureza não pega, mas a pureza. Assim, ele poderia se aproximar
do doente imundo, comer com pecadores, entrar em contato com pessoas de
fora e em Mc 7.15, relativizar completamente a ideia de pureza ritual:
encarnou uma pureza de influência carismática.

Esta ideia de pureza através de influências carismáticas é encontrada


principalmente no discurso da missão: os discípulos levam as casas em que
são abraçadas uma "paz" com efeito especial (Lc 10,5ss). Eles podem comer
tudo o que lhe oferecem, independentemente de iguarias (10,7ss), e têm o
poder para curar o doente (10,9)

Os saduceus tendiam se sentir atacados por críticas de Jesus ao


templo. Seus interesses estão totalmente no templo. Se os saduceus do
Sinédrio eram os verdadeiros inimigos de Jesus, isto explica que a história da
paixão não faz nenhuma menção de seus oponentes 'típicos', os fariseus, mas
também estavam representados no Sinédrio.

Jesus também relativizou o ascetismo próprio dos essênios, o


imediatismo dos zelotes e questionou as formas político-religiosas, em
especial as dos saduceus, que, ao invés de proclamar o amor de Deus,
marginalizavam as pessoas que mantinham convicções diferentes. Esse
questionamento é defendido pelas parábolas, como por exemplo, Lc 15 e 18.

Jesus confrontou as autoridades religiosas pela centralização do poder,


pela cristalização das doutrinas, pela dogmatização e absolutização das
idéias teológicas (a Lei) e pela supremacia da dimensão institucional em
detrimento da vida humana. Em decorrência dessa postura foi assassinado.
O fim violento de Jesus estava na lógica de seu posicionamento perante Deus
e o ser humano. A violenta paixão foi reação dos guardas da lei, do Templo,
do direito e da moral à ação não-violenta e à defesa da justiça efetuadas por
Jesus.

2.3 JESUS, AS MULHERES E OS MARGINALIZADOS

30
A mulher em tudo era inferior ao homem, era considerada menor
casada ou viúva. Na sinagoga as mulheres ocupavam em lugares especiais,
atrás das grades ou nos matroneus. Não podiam ler, nem falar, nem explicar
a lei. Não constavam como testemunha, não podiam ensinar as crianças, nem
sequer fazer a oração à mesa. Não podiam aprender a Lei. “Quem ensinar a
lei à sua filha é como lhe ensinasse libidinagem”; “é melhor queimar a Lei
Santa do que entregá-la a uma mulher”. Não podia aparecer em público,
especialmente seguir e ouvir rabinos. Nem mesmo o marido lhe dirigia a
palavra em público ou diante da visita numa casa.

Segundo a teologia rabínica um judeu deve dar graças a Deus todos


os dias por:

a) Por Deus não os ter feito pagãos;

b) por não ter nascido mulher;

c) por não pertencer aos ignorantes da lei.

Como se comporta Jesus diante dessa tradição discriminatória? Deixa


que venha atrás de si um grupo de mulheres da Galileia:

E aconteceu, depois disto, que andava de cidade em cidade,


e de aldeia em aldeia, pregando e anunciando o evangelho
do reino de Deus; e os doze iam com ele, E algumas mulheres
que haviam sido curadas de espíritos malignos e de
enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saíram
sete demônios; E Joana, mulher de Cuza, procurador de
Herodes, e Suzana, e muitas outras que o serviam com seus
bens (Lc 8:1-3).
E todos os seus conhecidos, e as mulheres que juntamente o
haviam seguido desde a Galileia, estavam de longe vendo
estas coisas (Lc 23:49).
E também ali estavam algumas mulheres, olhando de longe,
entre as quais também Maria Madalena, e Maria, mãe de
Tiago, o menor, e de José, e Salomé; As quais também o
seguiam, e o serviam, quando estava na Galiléia; e muitas
outras, que tinham subido com ele a Jerusalém (Mc
15:40,41)1

1Todas as referências bíblica são extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada. Quando
a versão utilizada for diferente será utilizado uma nota de rodapé com a referência da versão
da Bíblia.

31
Apesar do escândalo dos apóstolos conversa com uma mulher
samaritana (Jo 4); na narrativa da grande pecadora que com suas lágrimas
lava os seus pés não enxerga a prostituta, mas o ser humano que precisa de
acolhimento e perdão (Lc 7,36-50).

Em João 8, a mulher adúltera recebe a misericórdia de Jesus. Muitas


outras mulheres ele auxiliou e curou: A sogra de Pedro (Mt 8,14-15); a mãe
desconsolada de Naim (Lc 7,11-17); a filha morta de Jairo (Mt 9,18-26); a
mulher que estava 18 anos encurvada (Lc 13,10-17); a mulher Siro-Fenícia
que Jesus diz encarecidamente: “Mulher, grande é a tua fé”; a mulher do fluxo
de sangue que havia doze anos sofria com sua doença, impura e socialmente
desprezível (Mc 5,25-35), mas a despeito das leis de purificação ele a cura
publicamente.

A atitude de Jesus com Marta e Maria (Lc 10,38-42), o que um rabino


ortodoxo jamais faria, fez com toda a simplicidade: explicar questões
teológicas a uma mulher que, como um discípulo, se senta aos pés do mestre:

E aconteceu que, indo eles de caminho, entrou Jesus numa


aldeia; e certa mulher, por nome Marta, o recebeu em sua
casa; E tinha esta uma irmã chamada Maria, a qual,
assentando-se também aos pés de Jesus, ouvia a sua
palavra. Marta, porém, andava distraída em muitos serviços;
e, aproximando-se, disse: Senhor, não se te dá de que minha
irmã me deixe servir só? Dize-lhe que me ajude. E
respondendo Jesus, disse-lhe: Marta, Marta, estás ansiosa e
afadigada com muitas coisas, mas uma só é necessária; E
Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada (Lc
10:38-42).

Assim, Jesus é um mestre diferente dos seus contemporâneos judeus.


Enquanto eles restringiam o ensino a poucos, aos melhores, Jesus oferece
seu ensino a todos, inclusive às mulheres.

Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu


vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim,
que sou manso e humilde de coração; e encontrareis
descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave
e o meu fardo é leve (Mt 11:28-30).

32
Num dos seus maiores recursos didáticos, a saber, as parábolas, têm
as mulheres como protagonistas (Mt 25,1-13; Lc 15,8-10; Mt 13,33; Lc 18,1-
8; Lc 21,1-4; Lc 20,27-40; Mt 22, 23-33; Mt 12, 41-42; Lc 11, 31-32; Lc 4,25-
27), algo que não identificamos em nenhum exemplo existente entre os
rabinos judeus.

2.4 JESUS, O MESTRE

“Percorria Jesus toda a Galileia, ensinando nas sinagogas,


pregando o Evangelho do reino e curando toda a sorte de
doenças e enfermidades entre o povo”. (Mt 4,23)

Em muitas ocasiões Jesus foi reconhecido como mestre. O termo

dida,skaloj (didáskalos: mestre; professor) abrange todos aqueles que se


dedicam com regularidade ao ensino de determinado conhecimento ou
técnica. O termo ocorre 59 vezes no Novo Testamento, tendo como mais
ocorrência os Evangelhos, sendo utilizada 41 vezes para Jesus.

Segundo Lothar Coenen e Colin Brown (2000, p.641), a forma vocativa

dida,skalh (mestre) é meramente uma tradução do hebraico rabbi, conforme


Jo 1,38; 20,16. E acrescenta que,

O emprego de “Rabi” como forma de se dirigir a Jesus talvez


seja historicamente autêntico, pois, segundo a tradição, tinha
todas as marcas do rabino; pede-se da parte dEle diretrizes
acerca de questões disputadas da Lei (Lc 12:13-14), e sobre
questões doutrinárias (Mc 12:18 e segs., a respeito da
ressurreição); além disso, tem alunos. As condições
posteriores para ter o título de rabino, a saber: o estudo e a
ordenação, ainda não eram obrigatórios nos tempos de
Jesus.

Julio Zabatiero (2009) reforça que o ministério de ensino proposto por


Jesus abarcava o ser humano na sua integralidade, em todos os aspectos da

33
vida. Assim, propõe olharmos para a pratica educativa de Jesus a partir de
três aspectos:

1) Onde, quando e a quem Jesus ensinava;

2) Como Jesus ensinava;

3) O que Jesus ensinava.

Jesus ensinava aos sábados nas sinagogas (Mc 1,21), nos montes (Mt
5,1), nas planícies (Lc 6,17), à beira da praia (Lc 5,3), nas casas (Mc 2,1-3).
Isso demonstra que, indistintamente, Jesus ensinava conforme a ocasião, “em
todos os lugares possíveis e a qualquer momento em que fosse necessário
ensinar” (ZABATIERO, 2009, p. 67).

O Evangelho de Mateus é a narrativa que mais evidencia o ministério


didático de Jesus, lembra-nos George (1993). Ele intercala seus blocos
narrativos entre os ensinos de Jesus, que na sua totalidade chegam a cinco:

1) Discurso no Monte (Mt 5-7);


2) Discurso sobre Missão (Mt 10);
3) Parábola do Reino (Mt 13);
4) Discurso sobre Disciplina (Mt 18);
5) Discurso sobre o fim e o Julgamento (Mt 23-25).

A relação de Jesus com seu compromisso o motivava a ensinar no


necessário. Sua postura revela a preocupação com a necessidade das
pessoas que o procuravam para terem suas carências resolvidas. Zabatiero
(2009), ao analisar a passagem de Mc 6,30-44, conhecida como a
multiplicação dos pães, aponta para o objetivo de Jesus ao ir para o deserto
com seus discípulos, descansar. Porém, ao chegar no lugar escolhido para
repouso, “viu Jesus uma grande multidão e compadeceu-se deles, porque

34
eram como ovelhas que não têm pastor. E passou a ensinar-lhes muitas
coisas” (Mc 6,34).

Jesus corria risco de morte, mas não desistia de ensinar nas sinagogas
da Galileia. No Evangelho de Marcos (3,1-6) Jesus está numa sinagoga.
Havia um homem com mãos ressequidas. Era sábado, e os homens que
estavam na sinagoga esperavam para a ver se Jesus curaria o homem
naquele dia de sábado. Jesus diz ao homem: Vem para o meio (v.3). Esse
gesto de Jesus é representativo, pois, no meio da sinagoga ficava a Lei de
Moisés. Jesus ao chamar o homem para o meio estava colocando a Lei e a
vida no centro. Jesus ensina por meio dos gestos. Seu ensino baseia-se na
vida. Sua pergunta: É licito salvar a vida ou tirá-la no sábado? Jesus ensina a
importância da vida e sua centralidade na Lei, pois, se a Lei não servir para
instruir a vida está sendo usada de forma equivocada.

Jesus ensinava a todos, sem exceção. Ele ensinava,

Aos frequentadores das sinagogas, aos seus discípulos, às


multidões. Ensinava também a indivíduos, tanto pessoas
comuns como figurões importantes. Mais de uma vez discutiu
pedagogicamente com os fariseus (Mc 7.1ss) e com os
mestres da Lei (Mc 12,28-34). Em seu ministério, Jesus
ensinava a quem quer que precisasse ouvi-lo (ZABATIERO,
2009, p.68).

Os rabinos do tempo de Jesus ensinavam apenas os homens, como


atestado anteriormente, e escolhiam os melhores, os que se destacavam nas
escolas para serem os futuros mestres de Israel.

Como Jesus ensinava? Jesus utilizou muitos métodos e técnicas de


ensino que já estavam em curso em seu tempo e cultura. Zabatiero (2009,
p.68) enumera alguns:

Aulas expositivas (o sermão do monte), aulas práticas


(lavando os pés dos discípulos para mostrar-lhes o que
deveriam fazer), parábolas (Mc 4.1ss), perguntas como
respostas a outras perguntas (Mc 10.17-18), conversas (Mc
10.23-31), debates com seus oponentes (Mc 7,1ss) e até
técnicas corpóreas (pegava crianças no colo etc.).
George (1993, p.59) destaca a importância da relação professor-aluno-
mensagem, no ministério de Jesus. Havia uma relação muito profunda entre
professor-aluno, ou seja, Jesus ensinava e os discípulos participavam de

35
forma ativa no processo. O processo, muitas vezes, acontecia por meio de
perguntas, o que George (1993) nomeia de “pedagogia da pergunta”. Ele
destaca o encontro de Jesus com o doutor da Lei em Lc 10,25-37, cuja
pergunta do mesmo é respondida com outras perguntas: o que está escrito
na Lei? Como interpretas?

Mediante a resposta do doutor da lei, Jesus lança mão de outro recurso


didático, a parábola. A discussão sobre a definição de parábola é intensa e
imensa, e não se enquadra ao objetivo desse material, contudo,
apresentaremos uma definição que leve em consideração sua função.
Joachim Jeremias (1963, p.20) observa o seguinte acerca das parábolas de
Jesus:

Esta parábola pode significar, na linguagem comum do


judaísmo pós-bíblico, sem que se recorra a uma classificação
formal, formas figurativas de linguagem de todos os tipos:
parábola, símile, alegoria, fábula, provérbio, revelação
apocalíptica, enigma, símbolo, pseudônimo, pessoa fictícia,
exemplo, tema, argumento, apologia, refutação, anedota.

Kenneth Bailey (1995, p.14) reforça que as parábolas não são


ilustrações repletas de declarações abstratas, mas, pelo contrário, as
parábolas carregam confrontações dramáticas, que são expressas de forma
breve, que são, segundo ele, inesquecíveis. E reforça,

Um impacto é causado no ouvinte/leitor que demanda uma


reação. As implicações teológicas obrigam a mente a sair
deste centro compacto, em inúmeras direções. Não foi
registrada a resposta do discípulo original. O leitor precisa
responder agora. Tudo acontece a uma só vez, em uma
confrontação intensa e dramática. As parábolas de Jesus são
uma forma concreta e dramática de linguagem teológica que
força o ouvinte a reagir. Elas revelam a natureza do reino de
Deus e/ou indicam como um filho do reino deve agir.

Zabatiero (2009, p.69), contudo, sugere que na didática de Jesus as


técnicas não eram a coisa mais importante. O que importava para Jesus eram,
segundo ele, três aspectos:

 a pessoa ser ensinada


 o conteúdo ensinado e;

36
 a circunstância do ensino.

As formas de ensino que Jesus utilizava não eram diferentes daquelas


utilizadas pelos doutores de Israel. Porém, Jesus não ensinava como eles,
seu ensino era contagiante, profundo e com autoridade.

“Maravilhavam-se da sua doutrina, porque os ensinava como


quem tem autoridade, e não como os escribas” (Mc 1,22). Um
erro de interpretação muito comum desse texto é derivar a
autoridade pedagógica de Jesus de seu poder milagroso, de
sua autoridade para expulsar espíritos impuros (Mc 1,27). No
entanto, é preciso prestar atenção: no verso 21, lemos que
Jesus ensinava, em um sábado, numa sinagoga. Ouvindo-o,
as pessoas se admiravam de sua autoridade pedagógica
(v.22). Somente depois do ensino – “não tardou que…” (v.23)
– é que Jesus liberta o homem possesso, causando nova
admiração (v.27).

O evangelista Marcos afirma que Jesus não ensinava como os escribas


(Mc 1,22), o que aponta para o diferencial do ensino de Jesus. Sua autoridade
não deriva da autoridade dos anciãos, na “tradição”, como se baseavam os
escribas e fariseus. Os escribas sempre recorriam às tradições para
responderem e ensinarem acerca de qualquer assunto solicitado. A base para
a interpretação era a Mishná e a Guemará. Assim, seu comentário sempre se
baseava em um comentário dos mestres antigos, o que fazia do seu ensino
algo sem vida e autoridade. Jesus, contudo, não se fundamentava em
ninguém, ele possuía opinião e autoridade própria, o que causava admiração
em todos que o ouvia.

Jesus vivia o que ensinava, Jesus se compadecia das


pessoas a quem ensinava, Jesus se indignava com algumas
pessoas a quem ensinava. Em suma, Jesus tinha autoridade
pedagógica porque seu ensino nascia da Palavra de Deus,
entrava em sua própria vida, levava a sério a vida e as lutas
das pessoas a quem ensinava e era relevante para a situação
social em que ele se encontrava. Seu ensino não era
meramente “teórico”, ou “tradicional”. Era um ensino integro e
integral: toda a Palavra para toda a pessoa! (ZABATIERO,
2009, p.71).

37
O que Jesus ensinava, a ponto de ser tão cativante? O tema principal

do ensino de Jesus era o reino de Deus (basilei,a tou/ qeou/ - Basileía


tu teu). Jesus anuncia sua irrupção iminente, que se manifesta já, agora.

Vimos que a grande preocupação de Jesus era proporcionar o


entendimento acerca do reinado de Deus que já se fazia presente. Além disso,
exigia um profundo comprometimento com o reino. Note-se que a mensagem
do reino de Deus proposta por Jesus não estava desvinculada da vida das
pessoas, os temas utilizados por Jesus transpassam toda a realidade deles,
aponta Zabatiero (2009, p.71-72):

Jesus ensinava sobre o projeto de Deus para a sua criação,


especialmente para a humanidade (parceira nesse projeto),
em relação ao trabalho, à família, aos costumes religiosos, ao
lazer, à relação com a natureza. Tratava de temas polêmicos,
como a violência, o adultério, a política. Instruía a respeito dos
problemas sociais e religiosos do povo judeu, oferecendo
uma visão crítica da liderança judaica, do papel da Lei, da
visão religiosa sobre os portadores de deficiência e das
opiniões preconceituosas em relação aos estrangeiros,
mulheres, crianças, adúlteros.

Em suma, a pedagogia proposta por Jesus é inovadora e


transformadora. Sua preocupação não era o espaço, tampouco as técnicas,
mas as pessoas que careciam de seu ensino. Jesus nos faz olhar para a
principal necessidade de seu tempo, – que se apresenta como nossa também
– o ensino acerca da atuação de Deus no mundo (reino de Deus), e o convite
a participação desse projeto divino, de restauração e salvação de toda a
humanidade. Seu ensino é inovador, transformador, mas é, também, integral.
Jesus ensina toda a palavra de Deus para o homem todo.

38
CAPÍTULO III – EVANGELHOS SINÓTICOS E JOÃO

Quando os livros bíblicos foram escritos os meios conhecidos para a


produção de textos eram bem diferentes. Naturalmente, os “textos” mais
comuns eram pequenas inscrições em cacos de cerâmica, contratos e cartas
em folhas de papiro, e outras formas de textos que tinham a brevidade em
comum.

Os primeiros livros eram na verdade rolos, feitos quando se costuravam


folhas de papiro ou de couro, e essa forma propiciou a produção de textos
maiores, que na verdade não eram produzidos de maneira contínua, mas que
eram grandes ajuntamentos de diferentes fragmentos de pequenos textos.
Esses fragmentos são o que hoje chamamos de perícopes, pequenas
unidades textuais completas em si mesmas, que quando reunidas, formam
livros como os que temos na Bíblia.

Nos Evangelhos podemos encontrar esta maneira de produção


literária. Os Evangelhos são frutos de um processo redacional dessas
pequenas perícopes. Assim, o papel desempenhado pelos Evangelistas
aproxima-se mais a de um redator do que um autor propriamente dito. Os
Evangelhos são, portanto, um construto teológico de cada autor.

Os primeiros seguidores de Jesus, bem como a liderança religiosa de


sua época, durante seu ministério terreno, não viram nele as características
do Messias esperado. É notório que, em determinadas passagens dos
Evangelhos Sinóticos, vemos a identificação de Jesus com a figura do
Messias, ou muitas vezes, com a figura do Filho do Homem. Somente após a
morte e ressureição de Jesus, bem como seu aparecimento aos discípulos e
seu comissionamento, que se inicia o processo de identificação de Jesus
como o Messias/Cristo. Assim, se inicia o processo de produção dos
Evangelhos e a organização dos relatos existentes sobre seu ministério.

39
3.1 O gênero literário dos Evangelhos

A palavra eὐagge,lion (euangelion) simplesmente designava a

palavra salvífica de Jesus, significava “mensagem, pregação”; e tal pregação


era entendida como pregação oral de Jesus. Como esta expressão passou a
designar os “livros” que designavam o “todo” do ministério de Jesus?

Nos escritos dos pais da Igreja do primeiro século não há uma


indicação clara de que nesse período, como alguns sugerem, já houvesse a
equiparação da palavra “Evangelho” como correspondendo às obras:

Na maioria das vezes eὐagge,lion não tem sentido literário nos


pais apostólicos. Mas em cinco passagens o termo aparece
em fórmulas de citação. No entanto, a fórmula Did 8.2, que
introduz o Pai-Nosso, "como o Senhor ordenou em seu
Evangelho", não se refere a um livro, e, sim, à pregação oral
de Jesus; isso poderia constar igualmente em Did 15.4
("como vocês o têm no Evangelho de nosso Senhor"), se a
fórmula imediatamente precedente 15.3 não usasse o termo
de modo absoluto ("como vocês o têm no Evangelho"),
apontando com isso aparentemente para um documento
literário. Em Did 11.3 certamente a expressão “os
mandamentos do Evangelho” se referem à pregação oral. Em
contrapartida, a fórmula de citação em 2Clem 8.5 ("pois o
Senhor diz no Evangelho"), a qual introduz uma reprodução
quase idêntica a Mt 25.21-23; Lc 16.1012, refere-se
inequivocamente a um documento literário, ainda que não
seja certo a qual. Se também nesta passagem, como também
nas passagens semelhantes de Did 15.3s., "Evangelho"
ainda se refere ao conteúdo não a um livro, fica, não obstante,
a pergunta como se tornou possível referir o termo a um livro.
Como as citações assim introduzidas não procedem de
Marcos, como Did e 2Clem evidentemente não conhecem
Marcos-", esse emprego de eὐagge,lion não pode remontar
diretamente a Me 1.1, e tem que ter outra origem - essa,
porém, não pode ser determinada claramente" (CARSON;
MOO; MORRIS, 2017, p. 80).

40
Apenas no II séc. Justino emprega o termo “Evangelho”, e, até mesmo
no plural “Evangelhos”, para designar o gênero literário que designa
evangelho-livro.

3.2 Por que eles são chamados de Sinóticos?

Os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, são considerados, e


também conhecidos, como Evangelhos sinóticos. A origem do termo

“sinóptico” é grega, oriunda de duas palavras: sin (Sin, “junto”) e opsij (opsis,

“ver”), ou, seja, eles apresentam material paralelo, uma mesma visão, uma
visão de conjunto. O Evangelho de João não é considerado como sinótico,
pois, assemelha-se na narrativa da paixão, nas demais sequências de
narrativas se distancia de forma contundente dos demais evangelhos, tendo
como fonte para seu evangelho um material que somente ele teve acesso,
acerca dos feitos e ensinamentos de Jesus.

Os esforços para harmonizar as narrativas dos quatro evangelhos


remontam à meados do II d.C. (150 d.C.), quando o apologista sírio Taciano
concluiu sua obra conhecida como “Diatessaron” (Quadruplo), tentando
aplainar todas as diferenças para produzir um único relato fluente e uniforme
dos evangelhos. George Eldon Ladd (2003), vê nesses esforços, o de Tácito
e dos demais que surgiram após ele, uma violação da própria tradição da
Igreja, pois:

O objetivo de tais esforços geralmente é o de produzir (se


podemos explorar o idioma musical) não a “harmonia”, mas o
uníssono; ou seja, fazer com que os quatro evangelhos
toquem juntos a mesma nota. A verdadeira harmonia é
alcançada quando cada um dos quatro toca uma linha
diferente da música, e os quatro, juntos, harmonizam-se em
algo bem mais rico e completo do que um mero uníssono
jamais poderia ser. Deixando a metáfora musical de lado,
precisamos aceitar e receber bem o fato de que a Igreja não
recebeu uma única “biografia autorizada” de Jesus, mas
quatro evangelhos canônicos, relacionados entre si, sendo,
contudo, diferentes, como testemunhas complementares da

41
verdade a respeito de Jesus. Para fazer justiça a tal
revelação, é importante que ouçamos cada testemunha
individualmente, assim como o conjunto de todas elas.

Ao longo dos anos, e também com o grande crescimento das pesquisas


acerca dos Evangelhos Sinóticos, surgiram diversas perguntas que
questionavam como os evangelhos foram escritos. Algumas surgiram na
tentativa de explicar o porquê das semelhanças e também das diferenças
entre eles.

Tendo como base o trecho de um dos evangelistas, podemos traçar um


caminho para entender o processo de produção e organização dos
Evangelhos, vejamos:

Tendo, pois, muitos empreendido pôr em ordem a narração


dos fatos que entre nós se cumpriram, segundo nos
transmitiram os mesmos que os presenciaram desde o
princípio, e foram ministros da palavra, pareceu-me também
a mim conveniente descrevê-los a ti, ó excelente Teófilo, por
sua ordem, havendo-me já informado minuciosamente de
tudo desde o princípio; para que conheças a certeza das
coisas de que já estás informado (Lc 1:1-4).

Nesta breve introdução sobre o seu relato, o evangelista Lucas nos


fornece três etapas na origem de sua obra (o que pode ser seguido para os
demais Evangelhos), a saber: 1) a transmissão daqueles que foram
testemunhas oculares; 2) a identificação dos “muitos que haviam
empreendido pôr em ordem a narração” (Mateus, Marcos e João) e; 3) o
evangelista Lucas que, após uma acurada investigação, “pôs em ordem” o
seu próprio relato. Assim, temos: a crítica da forma, a crítica da fonte e a crítica
da redação.

3.2.1 As críticas e suas hipóteses

A crítica da forma (Formgeschichte) concentra seu olhar ao período da


transmissão oral dos Evangelhos. No início do século XX, autores como K.L
Smith, Martin Dibelius e Rudolf Bultmann iniciaram esse caminho de análise

42
dos Evangelhos como pequenos fragmentos de textos (perícopes), que
incluíam parábolas, histórias de milagres, narrativas de pronunciamento, ditos
e discursos longos.

Bloomberg (2009, p.113), destaque que há a possibilidade de defender


a tradição oral das palavras e obras de Jesus pelo menos em peças de
evidências:

1. A memorização era altamente cultivada na cultura judaica do século


I. O método era predominante na educação elementar dos meninos.
Os discípulos dos profetas memorizavam e transmitiam as palavras
dos seus mestres. Os veneráveis rabinos por vezes decoravam toda
Bíblia (Antigo Testamento).
2. A permanente presença de testemunhas oculares das palavras e
obras de Cristo, incluindo as hostis, ao longo de todo o período da
tradição oral, teria funcionado como um controle contra as
narrativas que corriam soltas ou eram produzidas no vácuo.

Da transmissão oral de pequenas fontes, seguimos para as primeiras


longas narrativas escritas sobre a vida de Jesus. Passamos, portanto, da
crítica das formas para a crítica das fontes.

A identificação de materiais paralelos nos Evangelhos canônicos,


especialmente naqueles conhecidos como sinóticos, gerou uma vasta
discussão sobre a relação literária entre eles. Os paralelismos encontrados
nos sinóticos revelam que há uma relação muito próxima entre os textos,
como aponta Bloomberg (2009, p.117):

Dos 661 versículos em Marcos, 500 reaparecem em Mateus


de forma paralela e 350 reaparecem em Lucas. Além disso,
há outros 235 versículos comuns a Mateus e Lucas que não
são encontrados em Marcos. O paralelismo não ocorre
apenas com os ensinos de Jesus, o que poderia ser explicado
simplesmente pela memorização da Igreja primitiva, mas
também com os relatos narrativos do que Cristo fez.

Tendo em vista a probabilidade dos sinóticos estarem relacionados em


um nível literário, como esta relação se deu? Para responder essa pergunta

43
surgiram algumas hipóteses acadêmicas para tentar resolver o problema
sinótico, como aponta Koester (2005, p.48-51). Vejamos:

I. A primeira hipótese, a de Johan Jacob Griesbach, sustentava que o


Evangelho de Mateus havia sido escrito primeiro e, portanto, foi
utilizado por Lucas para a construção de seu Evangelho, bem como o
Evangelho de Marcos seria uma versão resumida de Mateus.

II. A segunda hipótese é a do Evangelho Primitivo. Essa hipótese afirma


que no princípio havia um único Evangelho contendo todas as
narrativas existentes acerca da vida e do ministério de Jesus, e que os
Evangelista utilizaram as narrativas que desejaram para construírem
os seus textos.

III. A terceira hipótese é a do Fragmento, de Friedrich Scheleirmacher.


Essa hipótese sugere que haviam fragmentos de diversos gêneros, tais
como ditos de Jesus, histórias de Milagres, narrativa da paixão, e que
os Evangelista tiveram acessos a esses blocos de textos para
organizarem seus Evangelhos.

IV. Em 1838, Christian Gottob e Christian Hermann Weisse, demonstraram


que o Evangelho de Marcos teria sido o Evangelho mais antigo, e que,
portanto, serviu de fonte tanto para Mateus como para Lucas. Essa
hipótese é conhecida como Prioridade de Marcos.

V. Pouco depois, Heinrich Julius Holtzmann aprofundou essa proposta,


ou seja, que Mateus e Lucas devem ter usado, além do Evangelho de
Marcos, outra fonte desconhecida deste Evangelista, a fonte dos “Ditos
Sinóticos”, que ficou conhecida como fonte “Q” (Em alemão “Quelle” é
fonte). A fonte “Q” se constitui de Ditos de Sabedoria de Jesus, surgida
aproximadamente no ano 50 d.C.

44
Assim, juntando a hipótese da prioridade de Marcos e a fonte “Q” como
material para produção dos Evangelhos sinóticos temos o seguinte quadro:

Essa hipótese ficou conhecida como “Hipótese das duas fontes, ou


Teoria das duas Fontes”. Além das duas fontes (Marco e Q) temos a fonte “M”
para Mateus e a fonte “L” para Lucas. Essas siglas representam o material
exclusivo que cada evangelista utilizou. Ou seja, Ao lado das duas fontes, os
Evangelistas incluem materiais diferentes, considerados como “fontes
próprias” ou “particulares”.

É importante lembrar que a teoria das duas fontes oferece a melhor


explicação global para o relacionamento literário entre os Evangelhos,
contudo, nenhuma hipótese, ainda que seja a mais complexa, pode oferecer
uma resposta cabal para o problema sinótico.

Passamos, portanto, para a última etapa do processo, a crítica da


redação. Se na crítica das formas olhamos para o modo como as memórias e
relatos acerca de Jesus circularam no cristianismo primitivo e; na crítica das
fontes discutimos a relação literárias entre os evangelistas e suas fontes, na
crítica da redação nosso olhar se volta para o texto final e o papel dos
evangelistas no processo de redação de seus escritos. Portanto, a crítica da

45
redação procura descrever os objetivos teológicos dos evangelistas, como
reuniram tradições e fontes e as moldaram dando ênfases específicas à
história de Jesus.

3.3 INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS

3.3.1 Evangelho de Marcos

Embora ele não seja o primeiro Evangelho na sequência do cânon


neotestamentário, o Evangelho de Marcos foi o primeiro Evangelho a ser
escrito. Ele é considerado o Evangelho mais antigo da Igreja. Como os títulos
dos livros foram acrescentados posteriormente, nós dependemos da tradição
antiga para atribuirmos a autoria dos livros neotestamentários e,
consequentemente dos evangelhos.

O Evangelho de Marcos, aponta D.A Carson, Douglas J. Moo e Leon


Morris (2017), tem sua autoria discutida, contudo, evidenciada em muitos
autores da tradição cristã primitiva. O Evangelho é atribuído a João Marcos,
mencionado em Atos dos Apóstolos (12.12-25; 13.5; 15.37), e em quatro
epístolas do Novo Testamento (Cl 4,10; Fm 24; 2Tm 4.11; 1Pe 5,13). Dentre
os testemunhos mais antigos, talvez o mais importante, está o de Papias, que
foi bispo de Hierápolis, região da Frígia por volta do ano 130 d.C. Sua
afirmação sobre a autoria do Evangelho segundo Marcos se encontra no livro
História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia, escrita por volta de 325 d.C.
Vejamos o que Papias escreve:

E o presbítero costumava dizer isso: “Marcos tornou-se


intérprete de Pedro e escreveu com exatidão tudo aquilo que
ele se lembrava, é verdade que não em ordem, das coisas
ditas ou feitas pelo Senhor. Pois ele não tinha ouvido o
Senhor nem havia-o seguido, mas mais tarde, de acordo com
o que eu disse, seguiu Pedro, que costumava ministrar ensino
conforme se tornava necessário, mas não organizando, por
assim dizer, os pronunciamentos do Senhor, de sorte que
Marcos nada fez de errado ao pôr por escrito fatos isolados à
medida que se lembrava deles. De uma coisa ele cuidou: não
deixar de fora nada do que ouvira e não fazer nenhuma
afirmação falha (H.E 3.39.15).

46
Além de Papias, Irineu, Clemente de Alexandria, Orígenes e Jerônimo,
também apoiam a autoria de João Marcos para o Evangelho em associação
com Pedro (GUNDRY, 2008). Alguns estudiosos modernos contestam a
afirmação de Papias, sugerindo que ele inventou a relação entre João Marcos
e Pedro para defender a canonicidade do Evangelho (CARSON, MOO,
MORRIS, 2017).

Quanto ao local de escrita, uma das hipóteses sugerem a localização


em Roma por alguns motivos. Marcos traduz algumas expressões aramaicas
em seu texto (3.17; 5.41; 7.34; 14.36; 15.34). Ele também explicou expressões
gregas usando equivalentes latinos (12.42; 15.16). Gundry (2008, p.178)
aponta outras provas extrínsecas que testemunham a favor dessa hipótese, a
saber:

1) A presença de Marcos em Roma (simbolicamente chamada


“Babilônia”), de acordo com 1Pedro 5.13;
2) A combinação da declaração de Papias, segundo a qual Marcos foi
o intérprete de Pedro, com a antiga tradição sobre o martírio de
Pedro em Roma;
3) A indicação, no prólogo antimarcionista de Marcos, de que Marcos
teria escrito seu evangelho na Itália;
4) Declarações posteriores feitas por Clemente de Alexandria e por
Ireneu.

Todavia, tendo em vista a hipótese da Guerra Judaica (66-70 d.C.)


como catalisadora para a composição do Evangelho, a região da Galileia
também é sugerida como local de escrita do Evangelho. Entretanto, a hipótese
acerca da cidade de Roma figura como a hipótese mais privilegiada pela
pesquisa atual.

A datação proposta para o livro gira em torno dos eventos da Guerra


Judaica, que aconteceu no ano 70 d.C., contudo, levando em consideração a
relação de Marcos e Pedro, e supondo que Marcos escreveu seu evangelho
durante a vida de Pedro e sendo possível acreditar na tradição da Igreja que
afirma que Pedro foi martirizado no período de Nero, antes de 68 d.C., Marcos

47
deve ter composto seu evangelho em algum período anterior a essa data (64-
65 d.C.) quando a perseguição de Nero estava começando.

3.3.2 A estrutura do Evangelho

O evangelista Marcos dividiu seu evangelho em duas partes: A primeira


se estende até a confissão de Pedro em Cesaréia de Felipe (8,27-30); a
segunda começa com o primeiro anúncio da paixão (8,31) e termina com o
sepultamento (15,42-47) e com a ressurreição (16).

Na primeira parte, Marcos enfatiza o ministério de Jesus na Galileia


enfatizando a pregação vigorosa de Jesus, derrotas dos seus adversários em
debates, expulsão de demônios, curas de enfermos e demonstrações de seu
poder sobre as forças da natureza.

Na segunda parte, Marcos introduz uma mudança no cenário do


ministério de Jesus. Após o primeiro anúncio da paixão (8,31), que é seguido
por mais dois anúncios (9,30-32; 10,32-34), Jesus sai da Galileia em direção
a Judeia onde terá o seu fim trágico. Nesse segundo bloco, no Evangelho de
Marcos, predominam orientações aos discípulos e o kerigma do Evangelho, a
narrativa da paixão e ressurreição (14-16).

3.3.3 Evangelho de Mateus

O Evangelho é atribuído a Mateus, também chamado de Levi, cobrador


de impostos (Mt 10.3; 9.9-13). A evidência externa para essa afirmação é
Papias, citado por Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica (3.39.16).
É Papias que sugere que o Evangelho de Mateus foi composto em hebraico
e, logo em seguida, traduzido para o grego (BLOOMBERG, 2009, p. 179).

Gundry (2008), contudo, destaca que não possuímos nenhum


manuscrito do Evangelho de Mateus em hebraico/aramaico, e o atual

48
evangelho que possuímos em língua grega não parece ser uma cópia de um
original semítico. Assim, podemos sugerir a autoria do apóstolo para o
Evangelho, contudo, não há evidências o suficiente para afirmar que este
evangelho circulou primeiramente em língua hebraica/aramaica.

O Evangelho de Mateus é associado com a região da Palestina por


causa da hipótese de sua escrita em aramaico. Jerônimo, assim, sugere que
o local de origem da redação do Evangelho é a Judéia (CARSON; MOO;
MORRIS, 2017). Contudo, aponta os autores:

Hoje em dia, no entanto, a maioria dos estudiosos opta pela


Síria como local de origem deste evangelho. Essa escolha
depende basicamente de dois fatores: 1) a adoção de uma
data posterior a 70 d.C., quando a maior parte da Palestina
estava destruída; 2) a influência de Streeter, que defendeu
Antioquia como o local de procedência desse evangelho
(CARSON; MOO; MORRIS, 2017, p.85).

Destaca-se que ambos argumentos são subjetivos, mesmo


reconhecendo que a região da Síria seja uma sugestão plausível. Assim, não
é possível determinar qual é a procedência geográfica do evangelho, contudo,
nada importante no evangelho dependa dessa decisão.

A datação proposta para a produção literária do Evangelho de Mateus


é bastante debatida. A principal hipótese sugere que o Evangelho foi escrito
após o ano 70 d.C. Essa data é proposta pelo fato de que Mateus utilizou
como fonte o Evangelho de Marcos, que apareceu na sua forma final apenas
em meados dos anos 60 d.C. Além disso, o Evangelho de Mateus é citado por
Inácio de Antioquia por volta do ano 100 d.C., o que pressupõe que ele foi
composto em um espaço de tempo antes da década de 80 d.C.

Alguns estudiosos sustentam que o Evangelho de Mateus é marcado


por sua proximidade com o mundo do Judaísmo Formativo, tais como Geza
Verner (1996) e J. Andrew Overman (1997). É, latente, no evangelho a
preocupação com temas judaicos, bem como a descrição de Jesus como
cumprimento de todas as coisas judaicas.

49
3.3.4 A estrutura do Evangelho

A composição e o esquema do Evangelho de Mateus diferem


fundamentalmente do seu precursor Marcos. Enquanto o último tinha a
narrativa da Paixão como fundamental, em Mateus ela deixa de ser
predominante, e o ministério de Jesus deixa de ser um prelúdio para a paixão.
O ministério de Jesus em si é salientado como um ministério de ensino, em
Mateus, Jesus é um Rabbi.

Predomina no Jesus de Mateus os ensinamentos, que o evangelista


apresenta especialmente, mas não exclusivamente, em cinco grandes
discursos: O Sermão da Montanha (5-7); O discurso do envio dos doze (9,35-
11,1); o discurso das parábolas (13,1-53); o discurso sobre a vida comunitária
(18,1-19,1) e o discurso escatológico (24,1-26,1). Cada um desses discursos
termina com as palavras: “Quando Jesus terminou essas palavras...”. O último
discurso, porém, finda com a frase: “Quando Jesus terminou todas essas
palavras”, segue-se imediatamente o conselho dos hierarcas (26,1-2).

A ênfase de Mateus a cinco discursos de Jesus pode efetivamente


relembrar os cinco livros de Moisés, mas Jesus não é designado como um
novo Moisés. Antes, Jesus é um intérprete que radicaliza a lei mosaica e exige
uma obediência mais perfeita, embora essa exigência não deva ser vista
como obrigação difícil. Ao mesmo tempo Mateus segue a estrutura biográfica,
inclusive a amplia, começando seu evangelho com a genealogia de Jesus, o
que faz dele um verdadeiro filho de Abraão.

3.3.5 Evangelho de Lucas

O Evangelho de Lucas é considerado, pela pesquisa bíblica, a primeira


parte de uma obra composta. A segunda parte da obra, Atos dos Apóstolos,
também foi escrita pelo mesmo autor, conhecido como Lucas, o médico. Por
algum motivo, e não sabemos qual (provavelmente por questões de
agrupamento dos textos por gênero literário), os dois tomos foram separados

50
e intercalados pelo quarto evangelho, o Evangelho de João. Contudo, é
latente que, na obra, o evangelista Lucas deseja oferecer um relato
organizado a Teófilo, uma figura que não possuímos informações sobre ele
(Lc 1.3-4).

O evangelista Lucas era natural da Antioquia da Síria, “o médico amado


de Paulo” mencionado em Colossenses 4.14, e, por algum tempo,
companheiro de Paulo na missão aos gentios. Segundo Bloomberg (2009,
p.203), entre os proponentes que afirma ser esse Lucas o autor do Evangelho
e do Livro de Atos dos Apóstolos, “estão o cânone Muratoriano, o prólogo anti-
marcionista, Irineu, Clemente de Alexandria, Orígenes e Tertuliano”.

De acordo com o testemunho do prólogo antimarcionista, Lucas era


natural de Antioquia e, consequentemente escreveu seu Evangelho na região
da Acaia. A hipótese sugere que Lucas ficou com Paulo em Roma até o seu
martírio, partindo, então, para a Grécia para escrever o seu evangelho
(CARSON; MOO; MORRIS; 2017). Entretanto, aqueles que localizam o
evangelho antes da destruição de Jerusalém no ano 70 d.C. sugerem a
localização de Roma como origem do texto, tendo sido escrito antes da morte
do Apóstolo Paulo (GUNDRY, 2008, p.271).

Precisamos considerar a data do Evangelho juntamente coma data do


Livro de Atos, uma vez que o Evangelho não pode ser posterior a seu segundo
volume. Carson, Moo e Morris (2017) sugerem algumas considerações que
podem sustentar uma datação no início dos anos 60 d.C., a saber:

1) Atos não menciona a perseguição por Nero, nem


acontecimentos como a destruição de Jerusalém ou as
mortes de Paulo ou Tiago (62 d.C.). Não se menciona
qualquer evento posterior ao ano 62 d.C.
2) Lucas provavelmente teria mencionado a soltura ou a
execução de Paulo, se ela já acontecera. Mas ele concluiu
o livro de Atos com o apóstolo na prisão em Roma.
3) Está registrado que a profecia de Ágabo se cumpriu (At
11.28), mas não a profecia de Jesus sobre a queda de
Jerusalém (Lc 21.20). A inferência é que ela ainda não
ocorrera.
4) 2 Timóteo 1.18 registra uma visita de Paulo a Éfeso, mas
Atos 20.25,38 registra as palavras de Paulo de que não
tornaria a ver os efésios. Argumenta-se que, se essa visita
posterior já tivesse acontecido, Lucas teria feito um
comentário apropriado.

51
5) As epístolas paulinas foram evidentemente tidas em
grande valor pela igreja primitiva, mas não são aludidas
em Atos. Quanto mais tarde colocarmos Atos, mais difícil
é explicar isso.
6) É improvável que, depois da perseguição de Nero, um
escritor cristão não apresentaria uma descrição favorável
de Roma como a que aparece em Lucas-Atos.

Outros estudiosos apontam que essas sugestões dependem daquilo


que acreditamos que Lucas teria escrito ou não, e preferem uma data
posterior, localizando-o nos anos subsequentes à Guerra Judaica, ou seja,
após os anos 70 d.C. Nesta visão, Lucas deixa bem claro no prólogo de seu
evangelho que depende dos representantes da primeira geração cristã,
concretamente dos testemunhos oculares, possivelmente de alguns
discípulos pertencentes a segunda geração de discípulos, como no caso do
Evangelho de Marcos (Lc 1,1-2). Assim, essa hipótese tende a datar o
conjunto da obra Lucana (Lucas-Atos) entre os anos 75-85 d.C.

3.3.6 A estrutura do Evangelho de Lucas

Lucas enfatiza em seu evangelho o aspecto da história da salvação.


Ele conecta Jesus com a tradição de Israel e com o Antigo Testamento. Jesus
faz a transição dos períodos da “Lei e dos profetas” para a era do “Evangelho
do Reino de Deus” (Lc 16,16), ou seja, nós temos um tempo de promessa e
expectativa, seguido por um tempo de realização e salvação, que o autor
apresenta em dois estágios compreendidos de Jesus a subsequente obra do
Espirito delegada à Igreja. Se nos demais evangelhos Jerusalém é apenas o
local do fim trágico de Jesus, em Lucas ela se constitui como central (Lc 1,5-
23; 2,22-38; 2,41-51; etc.).

Um conjunto mais extenso é a tão conhecida narrativa da viagem, cujo


material de 9,51-19,44, Jesus está a caminho de Jerusalém para sua
sentença final. Além disso, as palavras finais de Jesus no Evangelho em 24.
46-49 predizem uma proclamação mundial “começando por Jerusalém”.
Jesus ordena aos seus discípulos a permanecerem em Jerusalém “até que do

52
alto sejam revestidos com poder” para realizar tal missão. Essa centralização
em Jerusalém caracteriza tanto o Evangelho de Lucas quanto o livro de Atos
dos Apóstolos, como ilustrado na missão de Jesus afirmadas em At 1,8 que
exige uma proclamação empoderada pelo Espírito “até os confins da terra”.

Ao mesmo tempo Luca/Atos se baseiam num termo forte, o significado


universal de Jesus. A genealogia de Jesus remonta-se a Adão, e não apenas
à linhagem abraamica, ou seja, a linhagem de Israel. A missão dos Setenta
(10,1-12), bem como a missão dos doze discípulos (9,1-6), prefigura a
proclamação do Evangelho para todas as nações. A ascensão de Jesus em
Lucas/Atos serve como ênfase para o panorama do programa divino da
salvação, ou seja, fazendo a transição do próprio período de Jesus para a
atividade das primeiras Igrejas na Ásia.

3.3.7 Evangelho de João

A autoria desse evangelho é atribuída a João, irmão de Tiago, filho de


Zebedeu, que no evangelho é conhecido como “discípulo amado” (13,23;
19,26; 20,2; 21,7-20). Muitos pais da Igreja atestam a autoria de João para o
quarto evangelho, dentre eles Policarpo, Papias e Irineu, e esse escrevendo
a Florino, destaca:

Recordo-me dos acontecimentos daqueles dias com mais


clareza do que daqueles que têm ocorrido recentemente, pois
aquilo que aprendemos enquanto somos crianças, cresce
junto com a alma e fica unido a ela, de modo que posso falar
até mesmo do lugar em o abençoado Policarpo se sentava
para os debates, como entrava e como saía, o caráter da sua
vida, a aparência do seu corpo, a mensagem que pregava ao
povo, como contava suas conversas com João e os outros
que haviam visto o Senhor, como se lembrava das palavras
deles, quais eram as coisas concernentes ao Senhor que
ouvira deles, inclusive os milagres e os ensinos dele, e como
Policarpo havia recebido isso da parte das testemunhas
oculares da palavra da vida e relatou todas as coisas de
conformidade com as Escrituras (H.E 5.20.5-6).

53
Internamente, o autor do Evangelho afirma ter sido testemunha ocular
do ministério de Jesus (cf. 1.4; 19.35; 21.24,25), e revela um estilo de escrita
semita e muito conhecimento dos costumes judaicos, tais como, aqueles
ligados à Festa dos Tabernáculos, o que contribui para a atribuição do
Evangelho ao Apóstolo João.

Esse evangelho não é conhecido como sinótico, pois ele difere de


modo geral dos demais evangelhos existentes. Ele também não partilha das
mesmas fontes utilizadas pelos evangelhos sinóticos, sendo, assim, uma
versão exclusiva da vida de Jesus, elaborada a partir de fontes que só o
evangelista João teve acesso. O Evangelho de João foi o último evangelho a
ser escrito, e é comumente datado entre os anos 80-90 d.C., sendo, assim,
um dos textos mais tardios de todo o Novo Testamento.

Há muitas discussões sobre a localização geográfica para a produção


do evangelho. Alguns pesquisadores consideram as várias comunidades
espalhadas pelas diversas regiões, cuja memória joanina é cultivada.
Entretanto, a hipótese principal é de que o Evangelho tenha sido escrito em
Éfeso, a partir das evidências patrísticas, que quase unanimemente indicam
a cidade de Éfeso como a origem do Evangelho de João (CARSON; MOO;
MORRIS; 2017).

3.3.8 Estrutura do Evangelho

A estrutura literária do Evangelho de João é tecida em duas grandes


partes, a saber, o livro dos sinais (2-12), sendo sete sinais ao todo: sinal das
bodas de Caná (2,1-12); cura do filho do funcionário do rei (4,46-54); Paralitico
no tanque de Betesda (5,1-18); multiplicação dos pães e peixes (6,1-15);
Jesus anda sobre o mar (6,16-21); cego de nascença (9,1-41); ressurreição
de Lázaro (11.1-45); e o discurso que precede o relato da paixão (13-17).
Temos, assim duas partes envolvidas por uma moldura redacional (capítulo
1: prólogo e o capítulo 21: conclusão) que dá unidade ao conjunto do
Evangelho.

54
Aceitamos a vigência dessa estrutura presente no texto, mas isso não
significa que os relatos dos sinais só expressem a etapa primitiva da redação
ou que o discurso de despedida não contenha confissões de fé características
do que se vivia no tempo da primeira. Com isso pretendemos sair de uma
visão que nos torna refém de um retalhamento do texto e compromete a sua
unidade final.

55
CAPÍTULO IV - LUCAS E ATOS: INTRODUÇÃO
DE UM REGISTRO SINGULAR

“Atos é a obra prima do Novo


Testamento.” (Anthony Ash)

Lucas, considerado desde a mais antiga tradição da igreja primitiva o


autor do Livro de Atos dos Apóstolos, registrou uma continuação do
Evangelho que leva seu nome, fazendo menção ao mesmo destinatário para
as duas obras (Lc 1.3/At 1.1; Cl 4.14) “Teófilo”, provavelmente um nobre
romano, ao qual desejava instruir nas questões básicas da fé.

Outras evidências da autoria de Lucas são de natureza redacional e


técnica: o vocabulário, o estilo, o extenso uso de termos médicos, o interesse
peculiar no registro de nomes, governantes, regiões e cidades, todos
cuidadosamente citados, revelam a relação com um historiador. A mais
importante das evidências internas, recentemente melhor explorada, acerca
da sequência do Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos, é a relação
estreitamente paralela das cenas finais do evangelho e cenas iniciais do livro
de Atos do Apóstolos.

Seguindo um modelo proposto por Kistemaker (2006, p.51), temos uma


forte indicação de uma mesma autoria.

Vejamos: Ele foi levado para os céus


Orando a Deus
Lucas 24.42-53
Comeram
Promessa do Pai Atos 1.4-14
Revestidos de poder Comeram
Testemunhas Promessa do Pai
Ficar “perto” (Betânia) Recebereis poder

56
Testemunhas Ele foi levado para os céus
“Perto” (Monte das Oliveiras) Louvando a Deus
Com o objetivo de registrar o início, a formação, o crescimento e a
expansão da igreja, desde de “Jerusalém até aos confins da terra”, este livro
narra de um ponto de vista histórico privilegiado a expansão da pregação do
evangelho dentro da geração apostólica, partindo de Jerusalém até a “capital
do império”, Roma.

No livro de Atos dos Apóstolos vemos que a soberana vontade de Deus


está agindo, livre e determinadamente com lutas e oposição, mas sem
nenhum tipo de impedimento ao poder do Espírito Santo, cumprindo Sua
promessa de “abençoar todas as famílias da terra”. Nesse processo, profecia
e cumprimento, promessa e concretização (At 2. 1-21), podem ser vistas a
cada cidade alcançada, a cada gentio convertido, em cada igreja fundada e
em todas as viagens missionárias.

Lucas observa que como a montagem de um grande quebra-cabeças,


que vai vigorosamente sendo completado em cada peça, através desse
importante registro histórico da pregação do Cristo vivo, alcança diversas
direções, desde Jerusalém, Samaria, Judéia, Antioquia, Ásia Menor, Grécia e
Roma.

Assim, Atos 1.8 torna-se um tipo de esboço simplificado de todo o livro


e seus principais desdobramentos e acontecimentos. Em todas essas
sessões do esboço aparecem trinta e uma vezes as expressões
“testemunhas” ou “dando testemunho”, ou seja, a designação de Nosso
Senhor fazendo-os testemunhas pelo poder do Espírito Santo (At 1.8-2.1-5),
foi fielmente cumprida na expansão conquistada através da Igreja primitiva.

A família de Deus agora inclui todas as nações, deixando de uma única


etnia, para tornar-se universal, de todos os povos (Gn 12.3; Sl 97.6-7; Gl 3.7).

4.1 – Atos, história ou teologia?

57
Entre os primeiros comentaristas que se detiveram na tarefa
hermenêutica de abordar o livro de Atos dos Apóstolos, fica claro que os textos
de Lucas sempre foram tidos como um rigoroso registro histórico. Sendo
assim, ele é geralmente descrito como um historiador, e sua obra como um
registro histórico, somente. Apenas no final do século XIX e começo século
XX aparecem as primeiras propostas para que Atos receba uma atenção de
viés mais teológico, em questões fundantes da eclesiologia, e mais
claramente, em Pneumatologia, com ênfase na Pessoa do Espírito Santo,
suas manifestações, abordado especialmente entre os teólogos os
pentecostais.

É importante ressaltar que nenhuma das posições, isoladas, fazem


justiça ao texto que temos em Atos dos Apóstolos. Na verdade, o historiador
e o teólogo se complementam, embora em alguns momentos do texto, o
pêndulo pareça estar um pouco mais de um lado que do que do outro, ou seja,
ora é possível perceber o escritor procurando mostrar em seu registro o modo
como Deus está agindo, lançando luz sob o aspecto teológico, ora registrando
os aspectos terrenos e históricos. Portanto, história e teologia fazem parte da
essência do livro de Atos dos Apóstolos, visto que a rigor, todos os livros que
compõem o cânon das Escrituras Sagradas, de uma maneira ou de outra,
servem para fundamentar a nossa fé e, quando apropriadamente usados,
servem para se fazer teologia.

4.1.1 – Atos: o registro de um historiador

A singularidade de Atos sempre girou em torno do profundo cuidado


com os registros históricos narrados nesta obra. Portanto, sua principal
característica é sua forma e abordagem dos importantes detalhes que
comprovam a historicidade e a veracidade dos eventos narrados por ele.
Conforme aponta Hoover (2019, p.165-166),

Atos é um registro histórico, ocorrido em várias regiões do


mundo bíblico do I século, nas terras da Palestina,
percorrendo a Ásia Menor, Macedônia, e regiões
circunvizinhas, e terminando em Roma, a capital do Império
Romano. A narrativa de Atos trata da história preservada e do
êxito dos primeiros crentes que desbravavam terras inóspitas

58
e incrédulas, onde anunciaram a mensagem de vida
abundante e eterna, por meio de Jesus Cristo.

Lucas procura organizar uma cronologia dos fatos, bem como um


comentário sintético e descritivo para explicar algumas cenas que
aconteceram individualmente, contudo, sempre em busca de uma narrativa
sequencialmente coerente, resumindo os eventos, sem jamais deixar de lado
seu propósito inicial, ou seja, registrar a expansão da mensagem do
evangelho até os confins da terra, como aponta Kistemaker (2006, p. 50):

Ele, Lucas, capta este pensamento no último versículo de


Atos: é a obra da pregação do reino de Deus e o ensino das
coisas concernentes ao Senhor Jesus Cristo (28.31). Assim,
Atos é a história da continuação da obra de redenção que
Jesus começou a fazer e a ensinar enquanto estava na terra
(1.1).

Devemos também perceber a preocupação de Lucas em fornecer aos


seus escritos uma base segura de informações que garantam a historicidade
dos fatos descritos em sua obra. Já no evangelho os fatos históricos são
detalhadamente destacados: “Nos dias de Herodes, rei da Judéia” (1.5);
“naqueles dias saiu um decreto por parte de César Augusto” (2.1); “No décimo
quinto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos governador da
Judéia, Herodes, tetrarca da Galileia, seu irmão Filipe, tetrarca da região da
Ituréia e Traconites, e Lisânias, tetrarca de Abilene, sendo sumos sacerdotes
Anás e Caifás” (3.1-2).

Lucas faz questão de registrar nomes, datas, decretos e regiões,


garantindo assim a credibilidade dos eventos narrados por ele. Recentes
descobertas arqueológicas têm confirmado a exatidão histórica de Atos. De
maneira surpreendente hoje sabemos que o autor fez menção a títulos de
várias patentes e escalões de oficiais locais de uso exclusivo, além dos
registros de governantes e suas províncias: procuradores, cônsules, pretores,
politarcas, asiarcas, entre outros (GUNDRY, 1970, p. 238).

59
4.1.2 – Um registro teológico: Uma Igreja que nasce no
Poder do Espírito Santo e no Fundamento dos
Apóstolos

O livro de Atos dos Apóstolos não é singular apenas como continuação


de um Evangelho ou como um tesouro acerca da fundamentação histórica da
fé cristã. É claro que isso, por si só, já seria suficiente para apontar sua
importância e singularidade. Todavia, conforme, já discutimos anteriormente,
Lucas nos apresenta, ao mesmo tempo em que conta a história de boa parte
da igreja cristã do primeiro século, uma narrativa de cunho teológico, pois
observa de maneira acurada elementos e características que vão além dos
eventos em si, mas relaciona cada um deles com a operação do Espírito Santo
atuando de maneira singular na vida e acontecimentos em torno dos
Apóstolos do Senhor Jesus Cristo.

Vielhauer (2012, p. 429), aponta que:

Tendo resumido os acontecimentos acontecidos desde a


ascensão e pentecostes até a chegada de Paulo em Roma
em uma unidade, o autor caracterizou esse período como um
todo coeso; e ao tê-los colocado sob o ponto de vista de 1.8
– o curso do Evangelho de Jerusalém a Roma, interpretou
teologicamente essa história como uma época especial da
história salvífica. Nos discursos ele constantemente conecta
essa época com duas outras, a do tempo de Jesus e a do
tempo de Israel; novamente mostra como na história de Jesus
e na história da Igreja se cumpriram e se cumprem as
promessas, que Deus executa seu plano. Reiteradamente
conecta essa época histórico-salvífica com a história mundial,
mencionado personalidades e fatos importantes da vida
política daqueles tempos.

Considerando Atos 1.8 como um dos versículos chaves para a


compreensão da mensagem de todo o livro de Atos, entendemos que Lucas
está apresentando o tema e o esboço da mensagem que vai desenvolver nos
capítulos subsequentes de sua obra. O tema é o poder do Espírito Santo; o
esboço é: a mensagem de salvação, progressivamente, alcançará os confins
da terra pelo poder da promessa cumprida.

60
Através da promessa de Cristo feita a seus discípulos, podemos
observar um paralelo entre o ministério de Jesus e de seus apóstolos através
da total dependência do Espírito Santo para capacitar pessoas na obra de
proclamação do evangelho. Quando Nosso Senhor foi batizado, o Espírito
desceu sobre ele e o fortaleceu em poder para proclamar o reino e vencer
Satanás (Lc 3.21).

É claro que antes que a igreja apostólica pudesse sair de Jerusalém


em direção à conquista de todo o império romano, vencendo todos os
obstáculos humanos e espirituais, eles necessitavam receber, primeiro, o
poder Espírito Santo para testemunhar.

Somente desta maneira poderiam ter a capacitação para executar, não


sem lutas, a tarefa de construir a igreja cristã. As “testemunhas” só podem
testemunhar quando o Espírito os habilitar. O cenário para o cumprimento da
promessa não poderia ser mais significativo, espiritual e simbolicamente: A
Festa do Pentecoste.

Os judeus celebravam o “Pentecoste”, no quinquagésimo dia após a


celebração da Páscoa. Essa festa ocupava lugar central na fé bíblico-
veterotestamentária, onde estava em ligação direta com a Páscoa, momento
no qual era detalhadamente relembrado o sacrifício do cordeiro, libertando o
povo da morte e da escravidão do Egito (Êx 12). A festa tinha início no primeiro
dia subsequente a sete semanas a contar da Páscoa. Nas semanas de espera
entre os dois eventos acontecia a colheita, ocasião em que se comemorava
em Israel a memória do sustento e provisão de Deus abençoando com
proteção e alimento o povo que saíra do Egito em direção à Terra Prometida
(Êx 23.16).

Conforme observado por Lucas, foi exatamente no Pentecostes que a


promessa do derramamento de Espírito Santo foi cumprida (At 2.1-7). Nesse
momento singular para a história da igreja, temos registrado muitas
manifestações inegavelmente perceptíveis a todos os presentes, som, vento,
línguas como que de fogo, milagrosamente foram derramadas sobre o povo,
mesmo com olhar incrédulo de alguns presentes (At 2.12-13).

61
Hoover (2019, p. 171), comenta assim acerca da singularidade desse
dia:

O pensamento mais defendido pelos teólogos ortodoxos é o


de que a igreja cristã nasceu no evento do Pentecostes (At
2). Deus, soberanamente, orquestrou justamente para aquele
dia o derramamento do Seu Espírito, quando povos de várias
províncias romanas estariam congregados em Jerusalém, e,
posteriormente, regressariam aos seus países e territórios
levando as Novas do Evangelho aos seus concidadãos. Ao
verificar a distância entre Jerusalém e as nacionalidades
mencionadas, notamos que a mais próxima era o Egito (250
km), e a mais distante a capital do Império Romano (2 mil km).

Ainda que alguns não tenham dado a devida atenção, é aqui que temos
o pêndulo entre história e teologia mais claramente equilibrado nos escritos
de Lucas:

a) o historiador registra: nomes, datas, cidades, números;

b) o teólogo registra: a igreja cristã só existe por causa da obra de


Cristo pelo poder do Espírito do Espírito Santo (At 2.38). Essa é a essência
da Pneumatologia Lucana.

4.2 – A primeira viagem missionária

Enviados, pois, pelo Espírito Santo, desceram a Selêucia e


dali navegaram para Chipre. Chegados a Salamina,
anunciavam a palavra de Deus nas sinagogas judaicas;
tinham também João como auxiliar. Havendo atravessado
toda a ilha até Pafos... (Atos 13.4-6).

62
A primeira viagem de
Paulo, juntamente com
Barnabé e João Marcos, é
registrada em Atos dos
Apóstolos nos capítulos
13.1-14.28. As datas
aproximadas estão
provavelmente entre 45 e 47 d.C. Eles Alcançaram neste primeiro
empreendimento a região da Ásia Menor, atual Turquia, percorrendo as
cidades de Selêucida (At 13.4), Salamina (At 13.5), Pafos (At 13.6), Perge (At
13.13), Antioquia da Psídia (At 13.14), Icônio (At 14.1), Listra (At 14.8), Derbe
(At 14.20), Atalia (At 14.25), retornando ao ponto de partida, Antioquia da Síria
(At 14.46), num percurso aproximado de 900 quilômetros, fazendo a viagem
de retorno pelas mesmas cidades já visitadas com o objetivo de fortalecer a
fé dos irmãos.

VIAGEM INFORMAÇÕES
A primeira viagem missionária
de Paulo e Barnabé se
encontram registradas no livro
Primeira viagem missionária de Atos 13-14. Eles passaram
(45-47 d.C). por Chipre, Salamina, Pafos
Panfília, Perge, Antioquia da
Psídia, Icônio, Listra, Derbe,
Atalia;
A segunda viagem missionária
de Paulo se encontra registrada
Segunda viagem missionária no livro de Atos 15,36-18,22.
(48-51 d.C) Passaram por Tarso, Derbe,
Listra, Icônio e Antioquia da
Psídia, Frígia e Galácia, Trôade,

63
Filipos, Tessalônica, Beréia,
Atenas, Corinto, Éfeso,
Antioquia e Jerusalém;
Terceira viagem de Paulo se
encontra registrada em Atos
18,23-21,16. Passou pela Frígia,
Terceira viagem missionária Galácia, Éfeso, desta vez por
(52-57 d.C) três anos, Macedônia, Trôade, e
Mileto, e partiu para Jerusalém
com a coleta para os irmãos da
Judéia.

Foi uma viagem frutífera, mas não sem lutas. Conforme o padrão
apostólico. O Espírito operou milagres através do apóstolo Paulo (At 14)
curando um coxo, curiosamente da mesma forma como fizera Pedro (At 3), o
que representa que a fé apostólica é a mesma fé entre judeus e gentios, em
Jerusalém e nos confins da terra.

4.3 – A segunda viagem missionária

A segunda viagem de
Paulo está registrada em Atos
15.36 a 18.22. Suas datas
aproximadas estão
provavelmente entre os anos de
48 a 51 d.C. Em face da resolução
do Concílio de Jerusalém
envolver diretamente as igrejas gentílicas (At 15), o apóstolo Paulo leva a
mensagem da decisão apostólica para a região da Ásia Menor, voltando ao
roteiro da primeira viagem, mas ampliando seu alcance: “Depois de algum
tempo, Paulo disse a Barnabé: retornemos e visitemos os irmãos em cada

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cidade onde pregamos a palavra do Senhor e vejamos como eles estão” (At
15.36).

De maneira interessante, o início do segundo empreendimento


missionário de Paulo começa com um conflito. Barnabé aceita a sugestão de
Paulo, e ambos começam os preparativos para a segunda viagem
missionária, porém acrescenta que gostaria de levar consigo João Marcos,
seu primo (Cl 4.10). Paulo, agora como líder da missão, “insiste” em não
relacionar João Marcos com o grupo (At 15.38), atitude que gera uma forte
reação em Barnabé, ocasionando “tal desavença” (At 15.39), gerando uma
divisão irremediável naquele momento, a ponto de Barnabé abandonar Paulo
e assumir outro projeto, navegando para Chipre (At 15.39), enquanto Paulo
segue o plano inicial formando dupla com Silas (At 15.40).

É provável que a direção soberana do Espírito estivesse transformando


aquele problema em bênção: “Na providência de Deus, não uma equipe de
missionários, mas duas partem de Antioquia” (KISTEMAKER, 2006, p. 104).
A trajetória da igreja em missão desse novo empreendimento chegou à Listra
(At 15.40), Trôade (At 16.6), Filipos (16.11), Tessalônica (16.40), Beréia
(17.10), Atenas (17.14), Corinto (18.1), Éfeso (18.18-19) e, por fim, Jerusalém
(18.21).

A audiência de Paulo em sua segunda viagem foi bastante variado:


soldados romanos, sinagogas e filósofos. A missão alcança seu propósito
glorioso, sempre, independente das reações humanas: a) existem muitos
escarnecedores, incrédulos: “Uns escarneciam...” (At 17.32); b) existem
também os indecisos: “Acerca disso te ouviremos outra vez...” (At 17.32); e,
finalmente, sempre existem os convertidos: “Todavia, chegando alguns
homens a ele, creram...” (17.34).

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4.4 – A terceira viagem missionária

Paulo inicia sua terceira


viagem missionária
aproximadamente por volta dos
anos 52 a 57 d.C., tendo a cidade
de Éfeso como destino principal
inicial, onde passou três anos (At
20.17-35). A trajetória dessa
viagem se dá após um período de alguns meses de permanência,
provavelmente para descanso, do apóstolo em Antioquia, sua principal base
de apoio.

De maneira cuidadosamente especial, Lucas registra no relato da


terceira viagem um acontecimento que já demonstrava o amadurecimento de
algumas igrejas gentílicas e a expansão da mensagem da fé cristã através de
personagens desconhecidos, crentes da segunda geração. Apolo, um
alexandrino conhecedor de Moisés chegou a Éfeso já convertido ao Senhor
Jesus, e é fortalecido ainda mais na mensagem da graça através do apoio de
Priscila e Áquila, discípulos experimentados na Palavra (At 18.24-28), que o
preparam para pregar mais profundamente ainda sobre o evangelho de Jesus:
“porque, com grande poder, convencia publicamente os judeus, provando, por
meio das Escrituras, que o Cristo é Jesus” (At 18.28). A obra de Deus agora
está sendo expandida não apenas pelo círculo apostólico, mas também pelas
igrejas gentias plantadas na primeira viagem.

Nesse empreendimento Paulo alcançou a Galácia (18.22), Éfeso


(19.1), Corinto (20.1-2), Trôade (20.3-6), Mileto (At 20.13), Tiro (21.1-3),
grandes e importantes cidades mediterrâneas, terminado em Jerusalém (21.7-
15), onde se deu sua prisão final que acabaria, ao que tudo indica, levado o
herói da fé universal para seu martírio em Roma.

As viagens missionárias empreendidas pelo apóstolo Paulo


abarcaram um período de cerca de doze anos, ou seja, 45 a
57 d.C. Durante esse espaço e tempo o evangelho libertador
de Cristo alcançou as mais importantes cidades da Ásia

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Menor, da Galácia e da Espanha. Seja como for, a imagem
que temos da Igreja Primitiva nos seus primeiros anos de
história, a partir do livro de Atos dos Apóstolos, é de uma
comunidade em plena efervescência e que, dia após dia, seja
através de projetos missionários (13.1-3), ou simplesmente
pelo trabalho solitário de apenas um homem, como Filipe
(8.26-40), vai se expandindo e alcançando diversas partes do
mundo (REIS, 2019, p. 145).

Jesus Cristo cumpriu Sua


promessa e abençoou a igreja
em missão; O Espírito Santo
capacitou a igreja para executar
a missão; e, por fim, os
apóstolos, lideraram uma igreja
em missão.

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REFERÊNCIAS

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