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Apresentação da disciplina
Introdução à unidade 1
Introdução à unidade 2
1. Con itos entre Cristianismo e Império Romano
Considerações nais
Introdução à unidade 3
Considerações nais
Introdução à unidade 4
Considerações nais
Apresentação da disciplina
História do Cristianismo I
Nela você estudará prioritariamente aspectos históricos ligados à fé cristã nos períodos antigo e
medieval, buscando também fazer conexões de análise com a realidade da igreja em outras
temporalidades.
A mensagem que teve início na Galileia, passou por Jerusalém, e como Jesus havia predito,
chegou até “aos confins da terra” (At 1:8). A disciplina de História possibilitará compreender
como isso foi possível, guiando-nos numa travessia de 21 séculos pelos caminhos desafiadores
que o tempo desenhou. Você, estudante, é nosso(a) convidado(a) a dar os primeiros passos
nesta fascinante jornada a partir de agora.
Esta unidade tem como principais objetivos conhecer aspectos conceituais que orientam o
estudo da História; identificar aspectos característicos do Cristianismo antigo e medieval;
compreender o contexto em que surgiu e se desenvolveu o Cristianismo; apresentar exemplos
históricos da vivência da fé cristã no ambiente antigo e medieval.
Introdução à unidade
Esta unidade tem como principais objetivos conhecer aspectos conceituais que orientam o
estudo da História; identificar aspectos característicos do Cristianismo antigo e medieval;
compreender o contexto em que surgiu e se desenvolveu o Cristianismo; apresentar exemplos
históricos da vivência da fé cristã no ambiente antigo e medieval.
Um dos termos da língua grega para a palavra “tempo” é kronos – de onde advém cronologia, que
trata das temporalidades históricas. Essas temporalidades são classificadas para melhor
demarcar os períodos históricos. Para definição dessas escalas temporais, que indicam quando
começa e quando termina uma temporalidade, são convencionalmente propostos alguns
marcos ou acontecimentos representativos.
Glossário
atuais.
Fica caracterizado, pelos episódios indicados acima, que os critérios usados são indicativos de
mudanças (com dimensões geralmente políticas ou sociais). Mas isto é algo simbólico, pois não
significa que abruptamente um período se encerra e começa outro absolutamente novo, pois um
determinado período continua existindo ou se estendendo na temporalidade do outro, naquilo
que em História se chama de “continuidades” ou “permanências”.
Também é importante dizer que outros critérios ou circunstâncias podem ser usados para
distinguir uma temporalidade de outra. Veja o texto de apoio, a seguir.
Texto de apoio
Para o estudo da história são fundamentais as fontes, que servem para o historiador buscar
evidências em sua análise e relato. As fontes para estudo do Cristianismo são diversas, como por
exemplo: os próprios textos neotestamentários, as obras de Flávio Josefo, os achados
arqueológicos dos manuscritos de Qumran, a Didaquê, as catacumbas de Roma, registros de
historiadores não cristãos, correspondências, literaturas não canonizadas, dentre outros. Em
geral, as fontes se dividem em três principais categorias: escritas, orais (tradição transmitida
apenas de forma verbal) e materiais (objetos e vestígios estudados, por exemplo, pela
Arqueologia).
Glossário
A história de conquista, poder e domínio do Império Romano começa com a morte de Alexandre,
chamado de Alexandre O Grande, no século IV a.C. Com a morte deste imperador, o Império
grego foi se fragmentando, possibilitando assim a dominação de um outro poder emergente:
Roma. Mantendo a influência da cultura e língua dos gregos, os romanos tornaram-se
sucessores daquela civilização em todos os lugares conhecidos no mundo antigo, passando a
difundir em regiões extensivas de todo o Mar Mediterrâneo, abrangendo o Ocidente, Oriente,
Ásia e África, os valores da então chamada cultura greco-romana (resultante da fusão entre as
duas culturas) por meio da construção e manutenção desse poderoso Império. Segundo o
historiador Martin Dreher, houve um movimento que foi o grande responsável pela unidade
cultural do Império Romano: o helenismo. Basicamente, trata-se da cultura da era de Alexandre,
quando língua, costumes, utensílios, arte, literatura, filosofia e religião dos gregos foram
disseminados em diferentes lugares do mundo antigo.
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Uma inscrição feita na Ásia menor, em 9 a.C., dizia: “Pode-se colocar o início do ano no
aniversário de César, pois a divina providência trouxe à vida dos homens: paz, salvação, abolição
de guerras. O dia do nascimento do deus foi para o mundo o início de boas notícias”. De acordo
com Dreher (1993), a unidade do Império apresentava-se de maneira visível na figura do
Imperador, que reunia na sua pessoa os principais cargos da antiga república romana.
Glossário
Em Roma, Cláudio, no ano 49 (d.C.), fez um decreto contra os judeus devido a conflitos surgidos
entre eles. O testemunho do historiador antigo Suetônio - em sua obra Vidas dos Césares -
apresenta as razões dessa medida adotada: “Expulsou os judeus de Roma, por que causavam
agitação contínua, instigados por um certo Chresto” (apud FABRIS, p. 45). Chresto seria uma
referência a Cristo? As circunstâncias parecem denotar esta interpretação: a pregação sobre
Jesus, anunciado como Cristo, o Messias de Israel, teria provocado divisões e conflitos entre
judeus, uma parte ligada ao judaísmo e outra já convertida ao Cristianismo. Fato é que os judeus
foram expulsos da cidade, havendo lá grande comunidade deles. Foram proibidos a eles o culto e
as reuniões sinagogais. Este decreto também envolveu, portanto, os judeus-cristãos. Mais tarde,
Nero revogaria esse edito.
Glossário
Tácito, historiador antigo, relata as atrocidades praticadas por Nero, mandando, inclusive,
matar membros de sua família; suicidou-se em 68. Tempos depois da morte de Nero, correu o
boato de que na verdade não havia morrido, o que teria sido apenas mais uma de suas
artimanhas. A sua possível reaparição causava terror e pode estar associada à base imaginária
com que o Apocalipse descreve a Besta que ressurge, depois de ter sido “ferida de morte” (Ap
13).
Após sua morte, três generais foram proclamados simultaneamente seus sucessores: Galba
(Espanha); Oto (Roma); Vitélio (Germânia). Nenhum dos três conseguiu aprovação de todo o
Império: o que tornava iminente uma nova guerra civil. Diante disto, Vespasiano (que estava
com suas tropas na Palestina, e com o apoio delas, conseguiu apoderar-se do governo e
estabelecer a ordem, em 69 d.C.
Em 98, Trajano (Filho adotivo de Nerva) ocupa o poder, nele permanecendo até o ano 117.
Desta forma, pelo método da adoção, assegurava-se a escolha do mais capacitado entre os
candidatos.
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Quanto aos gregos, os deuses adorados por eles não estavam separados dos homens por uma
fronteira bem definida. Homens importantes podiam ser elevados da condição humana à divina,
colocados como heróis na comunhão sagrada, como observado nas mitologias. Acreditava-se
que os deuses vinham até onde estavam os humanos ou desciam à terra em forma humana,
semelhante ao que é observado em Atos 14:11: Paulo e Barnabé, em Listra, após a cura de um
paralítico desde a infância, provocaram a reação de que “deuses em forma humana desceram até
nós”. Alexandre Magno, que difundiu o Império grego, no século IV a.C., já era venerado por
muitos de seus súditos. Sobre o chamado culto estatal, as cidades romanas tinham seus deuses
particulares: construíram-lhes esplêndidos templos; a vontade dos deuses determinava a vida
da cidade e do Estado; festas e espetáculos culturais eram realizados durante o ano em sua
homenagem, das quais algumas, por exemplo, estão associadas aos jogos Olímpicos realizados a
cada quatro anos.
Glossário
Por exemplo, o deus da cura Asclépio (ou Apolo), era popularmente muito venerado, cujo
símbolo era a serpente. O culto foi introduzido em 19 a.C., devido à grande peste que ocorrera nas
dimensões do Império. Ao redor dos templos deste deus, existiam vários dormitórios onde os
doentes ficavam hospedados, esperando serem curados durante o sono à noite – especialmente
paralíticos, mudos e cegos.
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O culto a Mitras também se difundiu bastante no Império Romano. Proveniente da Pérsia, esse
culto tratava de luta e vitória, por isso muitos soldados se filiavam a essa religião, levando-a às
fronteiras do Império. Venerado como deus da luz, Mitras era aquele que dissipava as trevas. Era
uma religião de mistério que, ao contrário das demais, só aceitava a filiação de homens, que
eram marcados na fronte com um ferro candente, como um guerreiro. Tornavam-se membros
por meio de um batismo, após o qual podiam participar dos banquetes santos, para os quais a
comunidade se reunia. Após a morte, cada um deveria responder por seus atos perante um
tribunal divino, que os pesaria numa balança antes de permitir-lhes a entrada ou não para o
mundo da luz. Este culto atraía fiéis pelo dever moral que impunha.
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Em síntese, os cultos de mistério: (a) estavam difundidos em todo o Império; (b) ofereciam
proteção contra o mal e ajuda redentora da divindade; (c) concediam benesses mediante os ritos
praticados pelos iniciados.
4. Crescimento do movimento cristão em seus
primórdios
Glossário
Por que os judeus foram para países estrangeiros? Por vários móvitos: devido aos exílios a que
foram submetidos; para seguir as grandes rotas comerciais, estabelecendo-se nas cidades
mercantes ou portos; em razão dos pesados tributos impostos pela dominação estrangeira à
agricultura, cresceu a pobreza e muitos preferiram outra sorte, por isso recorreram ao comércio.
O judaísmo da diáspora também crescia pela conversão de não-judeus.
Podem ser identificados os seguintes locais em que viviam os judeus, em expressivas
aglomerações no mundo antigo: Babilônia; Síria; Ásia menor e Norte da África. Só no Egito,
viviam 1 milhão de judeus, sendo a maior parte em Alexandria.
Em razão disto, após sua morte há uma grande demanda por se fazer a transposição desta
mensagem cristã de cariz rural para o mundo urbano, da pólis (cidade) grega. Para o tempo em
que isto se fez necessário, a providência divina preparou e vocacionou Saulo (depois, Paulo). Este
teria a tarefa de fazer prosseguir a obra de Jesus agora no espaço das grandes cidades. Neste
aspecto, comparativamente, cabe estabelecer um contraponto entre Jesus e Saulo:
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- Saulo, posteriormente, irá elaborar todo o seu ensino tendo como pano de fundo a vida urbana:
suas ilustrações e metáforas têm origem naquilo que é próprio do seu contexto de formação, ou
seja, em seus escritos, encontram-se reflexos de vistas e cenários de Tarso de quando era ainda
jovem, de ser conduzido em “triunfo”, de jogos olímpicos, compara o “tabernáculo terrestre”
desta vida a um edifício de Deus, destaca as correntes filosóficas circulantes nas pólis gregas.
- Seguindo a estratégia de Jesus, Paulo procurou também formar líderes, voltados aos grandes
centros, especialmente com a criação da Escola Paulina de Éfeso, para que os mesmos dessem
continuidade à missão de proclamar o evangelho, principalmente entre os gentios.
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Saulo, depois Paulo, teve, portanto, um papel decisivo na tarefa de introduzir a mensagem cristã
nos espaços das grandes cidades do mundo antigo. O êxito de tal empreitada se pode medir pela
presença da igreja – muitas vezes incômoda - nas principais cidades do mundo antigo até o
século II, como: Roma, Alexandria no Egito, Éfeso, Corinto, além de Jerusalém e Antioquia.
Em relação aos escravos, que compunham basicamente dois terços da população total do
Império Romano, que era de cerca de 70 milhões de pessoas, a pregação cristã falava de
igualdade de relações, como por exemplo: “porque em Cristo não há mais escravo nem livre” (Gl
3:28); quando ao escrever a Filemon, Paulo adverte que o escravo Onésimo fosse tratado como
“irmão caríssimo” e não mais como escravo (Fm 16); dentro da comunidade cristã as distinções
sociais eram niveladas, não havendo mais separação entre senhor e escravo; isso apontava para
o fim da escravidão em escala crescente à medida que o reino de Deus fosse implantado e Jesus
retornasse para reinar.
Em relação aos soldados, a guerra era uma das sinas do Império Romano, expondo
precocemente a vida dos combatentes; desse modo, uma mensagem que falava de um mundo
novo no qual não mais haveria a guerra e a violência, exercia grande fascínio sobre tais
personagens e suas respectivas famílias, que ansiavam por novos valores de preservação da vida.
Quanto à mulher, sua condição de exclusão social foi impactada por uma mensagem de que em
Cristo “não há mais distinção entre homens e mulheres” (Gl 3:28). Segundo Rodney Stark
(2006), as comunidades cristãs se transformaram em espaços de acolhimento de mães em
busca de proteção para as filhas recém-nascidas que, segundo costumes no mundo greco-
romano, poderiam ser “descartadas” (abandonadas) ao nascer quando em uma casa já existisse
uma filha. Abortos e infanticídios de meninas eram comuns naquela sociedade. A igreja
primitiva combateu as práticas abortivas e de infanticídio de meninas, promovendo assim uma
mobilização em favor da vida. As mulheres, com isso, recorreram à comunidade cristã e a dela
passaram a fazer parte, ocasionando desse modo uma presença numericamente muito
expressivas de mulheres nas comunidades cristãs.
Glossário
Referências
COMBY, J.; LEMONON. Vida e religiões no império romano no tempo das primeiras comunidades
FABRIS, Rinaldo. Jesus de Nazaré: história e interpretação. São Paulo: Loyola, 1988.
Paulinas, 2006.
Textos complementares
DREHER, Martin. A igreja no império romano. São Leopoldo: Sinodal, 1993, p.10-21.
Nesta unidade, veremos sobre a expansão do Cristianismo, investigando possíveis razões que
conduziram um movimento religioso de minorias e vinculada a seguidores de condições sociais
menos favorecidas, ao patamar de religião em franca expansão e, por fim, assumindo um
caráter universal em termos de adesão e amplitude. Iniciaremos destacando as perseguições e
martírios que envolveram o movimento cristão pelos conflitos ocasionados em relação ao
Império Romano, com seu poderio e controle. [A1]
Abordaremos também como se delineia a espiritualidade cristã nos quadros da igreja antiga,
usando como base alguns fragmentos de textos espirituais da época, como os do Bispo Hipólito
de Roma. Primeiramente, falaremos sobre como eram as reuniões e cultos na igreja em seus
primórdios. Em seguida, a partir do exemplo de Hipólito, delinearemos algumas das
características da espiritualidade cristã primitiva, mesmo sabendo que elas não se aplicavam a
todos em todos os contextos.
Trataremos também das controvérsias doutrinárias e sobre a atuação dos Pais da Igreja. O
Cristianismo, diferente das religiões pagãs do mundo romano, não nascera como resultado de
mitos e mágicas. Ele teve como base a realidade e o fato histórico. Orígenes, Tertuliano, Justino
Mártir, Agostinho e tantos outros defensores da fé tiveram grande influência em tornar a
mensagem do movimento cristão mais razoável para os intelectuais, levando inclusive muitos
destes à conversão. Teremos, portanto, a oportunidade de estudar e conhecer um pouco mais
sobre a contribuição de alguns deles.
.1. Conflitos entre Cristianismo e Império Romano
Tácito, historiador antigo, descreve as atitudes tomadas por Nero na perseguição aos cristãos:
Além de matá-los (aos cristãos) fê-los servir de diversão para o público. Vestiu-os em peles de animais
para que os cachorros os matassem a dentadas. Outros foram crucificados. E a outros acendeu-lhes fogo
ao cair da noite para que a iluminassem. Nero fez que se abrissem seus jardins para esta exibição, e no
circo ele mesmo ofereceu um espetáculo pois se misturava com as multidões disfarçado de condutor de
Dados históricos e informações preservadas pela tradição antiga referentes ao que ocorrera com
os apóstolos e outros importantes líderes do cristianismo em seus primórdios, também nos
ajudam a entender que o compromisso com o caminho da cruz foi levado até às últimas
consequências. Muitos foram submetidos ao martírio por causa do evangelho de Cristo.
Vejamos primeiramente alguns exemplos envolvendo aqueles que fizeram parte dos doze
discípulos chamados por Jesus (Mc 3:13-19):
André: após a morte e ressurreição de Jesus, foi pregar o evangelho na região do Mar Negro
(hoje parte da Rússia); depois, segundo a tradição, pregou na Grécia, em Acaia, onde foi
martirizado numa cruz em forma de “X”. Daí este instrumento de tortura ter ficado conhecido
como “cruz de Santo André”.
Bartolomeu: pregou inicialmente na Arábia, depois Etiópia, e por fim, ao lado de Tomé, atuou
como missionário na Índia, onde foi martirizado.
Filipe: atribui-se a este apóstolo a fundação da igreja de Bizâncio, cidade mais tarde conhecida
como Constantinopla. Posteriormente, pregou o evangelho na Ásia Menor, na região de
Hierápolis, onde se convertera a mulher de um cônsul romano pela sua pregação. O cônsul,
então furioso por este episódio, mandou prender a Filipe e matá-lo de forma cruel.
Matias: Para o lugar de Judas Iscariotes, que se suicidou, a igreja primitiva escolheu Matias como
seu substituto (At 1:21-26). Segundo a tradição, esse apóstolo se tornou missionário na Síria,
onde acabou sendo queimado numa fogueira por causa do evangelho.
Mateus: desenvolveu grande parte de seu ministério pastoreando a igreja de Antioquia, onde
também escreveu o seu evangelho. Dirigiu- se posteriormente para a Etiópia, onde veio a ser
martirizado por causa da pregação.
Pedro: depois de exercer importante liderança na igreja de Jerusalém, este apóstolo transferiu-
se para a cidade de Roma, capital do Império. No ano 67, durante perseguição imposta por Nero,
Pedro foi preso e condenado a morrer crucificado. Relatos do segundo século afirmam que o
apóstolo, antes de sua execução, disse que não era digno de morrer como morrera Jesus, o seu
Senhor, e pediu para que fosse crucificado de cabeça para baixo, e assim ocorreu.
Paulo: considerado um apóstolo “nascido fora de tempo” (1 Co 15:8), tornara-se o grande líder
da igreja entre os gentios e propagador da “mensagem da cruz” (1Co 1:18-23). Uma carta de
Clemente de Roma, no segundo século, testifica o que ocorrera com este apóstolo:
Paulo esteve preso sete vezes; foi chicoteado, apedrejado; pregou tanto no Oriente quanto no Ocidente,
deixando atrás de si a gloriosa fama de sua fé; e assim, tendo ensinado justiça ao mundo inteiro, e tendo
para esse fim viajado até os mais longínquos confins do Ocidente, sofreu por fim o martírio por ordens
dos governadores, e partiu deste mundo para ir ocupar o seu santo lugar (Anglin e Knight, 1947, p. 13).
No ano 67, quando da perseguição movida por Nero, Paulo foi preso e levado a Roma, onde
recebera o martírio. Pelo fato de possuir cidadania romana, este apóstolo não poderia ser
crucificado (algo humilhante para o cidadão romano), por isso deram-lhe como sentença a
decapitação (morte instantânea). A tradição conservou de forma reverente o lugar da execução
deste apóstolo, juntamente com Pedro: “Desde a mais alta antiguidade, a igreja romana celebrou
juntos os martírios de Pedro e de Paulo no dia 29 de junho” (Comblin, 1993, p. 169,170).
Simão Zelote: desenvolveu seu ministério de evangelização na Pérsia, onde o culto ao deus
Mitras (deus Sol) estava extremamente desenvolvido. Devido a conflitos com seguidores de
Mitras, acabou sendo morto por se negar a oferecer sacrifício a esta divindade.
Tiago (Filho de Alfeu): pregou o evangelho na Síria. Segundo o historiador antigo Flávio Josefo,
foi linchado e apedrejado até a morte (Proença, 2001, p. 103).
Tiago (filho de Zebedeu): segundo tradições antigas, citadas por Justo Gonzalez, este apóstolo
desenvolveu um trabalho missionário na Espanha, pregando na região da Galícia e Zaragoza.
“Seu êxito não foi notável, pois os naturais desses lugares se negaram a aceitar o evangelho”. Ao
regressar para Jerusalém, percorreu o caminho que deu origem ao lugar hoje conhecido como
“Caminho de San Tiago de Compostela”, na Espanha. Em Jerusalém, veio a ser preso, sendo em
seguida, decapitado por ordem de Herodes Agripa, no ano 44 (At 12:1,2) (Proença, 2001, p. 103).
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Tomé: segundo a tradição, desenvolveu sua atividade missionária inicialmente na Índia. Dali
dirigiu-se para o Egito, onde realizou importante trabalho entre os habitantes de língua copta,
ministério este que deu origem à comunidade até hoje lá existente. A Igreja Cristã Copta, como é
conhecida, está separada do catolicismo romano desde o IV século, tendo patriarcas em sua
liderança (Proença, 2001, p. 103).
Além dos apóstolos, outros importantes líderes do Cristianismo primitivo também deram a vida
pela causa do evangelho. É o caso de Timóteo, discípulo de Paulo, que segundo testemunho de
Nicéfero, no segundo século, “foi martirizado durante o reinado de Domiciano, no ano 96 a.D.,
em Éfeso, cidade onde morava quando o apóstolo lhe escreveu as duas cartas” (Anglin, 1947, p.
15).
Também Tiago, conhecido como “o irmão do Senhor”, que exerceu importante liderança na
igreja de Jerusalém, foi martirizado. O historiador Flávio Josefo, que descreveu o sítio desta
cidade pelo exército do general Tito, no ano 70, atribui a destruição de Jerusalém a um “juízo de
Deus sobre os judeus pelo fato de terem assassinado a Tiago, o Justo” (Anglin, 1947, p. 11). De
igual modo, o historiador da igreja, Eusébio, cita um escritor do segundo século, chamado
Hegesipo, que descreve a morte de Tiago. Afirma este autor, que tinha se levantado um conflito
entre os judeus convertidos e os descrentes a respeito de Jesus ser ou não o Messias, e pediram
a Tiago que resolvesse a questão. “Os escribas e fariseus” – diz Hegesipo – “Colocaram Tiago de
um lado do templo e exclamaram, dirigindo-se a ele: visto que o povo é levado em erro a seguir a
Jesus que foi crucificado, declara-nos qual é a porta pela qual se chega a Jesus, o crucificado?”
Ao que ele respondeu em alta voz: “O Filho do Homem está agora assentado nos céus, à mão
direita do grande poder e está para vir nas nuvens do céu”. E como muitos se gloriaram no
testemunho de Tiago, estes mesmos sacerdotes e fariseus tomaram a decisão de levá-lo à parte
alta do templo e de lá o lançaram abaixo, “passando em seguida a apedrejá-lo, visto não ter
morrido logo que caiu no chão, enquanto, ajoelhando-se pedia o perdão de Deus aos seus
agressores”. Deste modo ele sofreu o martírio (Anglin e Knight, 1947, p. 11,12).
Até o terceiro século da era cristã, a cruz realmente pautou a atuação da igreja. E é evidência disto
o fato de tal período ter ficado conhecido como a “era dos mártires”. O historiador Justo
Gonzalez descreve com precisão ainda outros fatos desse período, como por exemplo, o
testemunho de fé demonstrado por Inácio de Antioquia. Discípulo do apóstolo João, viveu no
período de 60 a 117 d.C. Tornou- se célebre pela fidelidade a Cristo em meio às perseguições que
sofrera e às cadeias que enfrentou devido à fé que professava. Sendo levado a Roma, em algumas
paradas obrigatórias, não se esquecia de escrever às igrejas que o recebiam ou lhe enviavam
saudações.
Para testemunhar sobre Jesus Cristo, Inácio está disposto a enfrentar a morte. E, a caminho do martírio,
proferiu as seguintes palavras: “Não quero apenas ser chamado de cristão, quero também me comportar
como tal. Meu amor está crucificado. Não me agrada mais a comida corruptível... mas quero o plano de
Deus que é a carne de Jesus Cristo... e seu sangue quero beber, que é bebida imperecível. Porque quando
eu sofrer, serei livre em Jesus Cristo, e com ele ressuscitarei em liberdade. Sou trigo de Deus, e os dentes
das feras hão de me moer, para que possa ser oferecido como pão limpo de Cristo” (Gonzalez, 1989, p.
66).
As experiências de Inácio e Policarpo retratam bem a disposição dos cristãos de tal período em
dar testemunho de sua fé em obediência a Jesus Cristo, até às últimas consequências. Para a
igreja desse período, a ressurreição foi, sem dúvida, o impulso maior à perseverança e à
fidelidade ao caminho da Cruz.
Ao falar sobre martírios de cristãos, o teólogo Jürgen Moltmann diz que em Cristo aconteceu o
que acontecerá com todos os que trilham o caminho da cruz: nos sofrimentos de Cristo são
antecipados os sofrimentos escatológicos do mundo inteiro. Ele acrescenta que “é Cristo que
sofre através dos seus discípulos mártires, pois na Paixão apostólica pelo evangelho e pela nova
criação está presente o próprio Cristo”. Por isso os sofrimentos apostólicos, como perseguição,
prisão, pobreza e fome, são também sofrimentos de Cristo e, como tais, dores de parto da nova
criação. E finaliza: “Nestes sofrimentos do caminho da cruz, o mundo presente perece e nasce o
novo mundo de Deus” (Moltmann, 1993, p. 216).
Vale destacar algumas das características comuns aos cultos das primeiras comunidades
cristãs, com base nas informações de Justo Gonzalez (1993, p. 150-155). A primeira delas, o
espírito de celebração, que aquela comunidade mantinha em quase todos os cultos. Segundo
Gonzalez, tudo era motivo para celebração: “a comunhão era uma celebração. O tom
característico do culto era o gozo e a gratidão, e não a dor ou a compunção”; sabe-se com
segurança, porém, que o paradigma da comunhão entre os da fé era simbolizado pelo “partir do
pão”, conforme ensinara Jesus. A comunidade se reunia para o culto todo primeiro dia da
semana, impulsionada especialmente pela alegria da comunhão e a celebração do Cristo
ressurreto: “É patente que o maior motivo que levou os primeiros cristãos a cultuarem a Jesus
foi, sem dúvida alguma, a sua ressurreição, a qual autenticou sua origem divina e seu senhorio”
(Proença, 2001, p. 26).
Outra característica comum era a participação da comunhão somente aos batizados. A todos era
permitido assistir os cultos. Todavia, quando se aproximava o momento da ceia, permaneciam
obrigatoriamente no recinto apenas os membros assíduos da igreja, ou seja, apenas os
batizados. Neófitos não batizados e visitantes ficavam de fora.
Gonzalez (1993, p. 152) ressalta ainda outra característica que, desde cedo, fizera parte do
repertório litúrgico daquelas comunidades: a celebração nas catacumbas. A razão pela qual se
davam estas reuniões nestes locais inauditos, era porque ali estavam enterrados os heróis da fé;
e os cristãos criam que a comunhão os unia, não só entre si e com Jesus Cristo, mas também
com seus antepassados na fé.
Contudo, muito mais que nas catacumbas, os cristãos reuniam- se nos lares particulares. Há
inclusive indicações disto nas Escrituras (como, por exemplo, em At 16:40 e Fl 1,2). Gonzalez
afirma que, à medida que as congregações iam crescendo e se expandindo, algumas casas foram
dedicadas exclusivamente aos cultos, e posteriormente foram transformadas em templos (mas
com a devida descrição pública).
Por muito tempo, pode-se dizer que o cristianismo continuou sendo um “braço” do judaísmo,
posto que, mesmo avançando com a doutrina evangélica apostólica, este preservou a tradição
ritualística da lei e dos costumes judaicos. Daí se fala em uma tradição “judaico-cristã”, não
podendo desvincular a segunda da primeira. Um exemplo é que a igreja primitiva possuía duas
vertentes teológicas: a ala judaizante (representada por Pedro), e a ala gentílica, da qual Paulo
fora o mentor. Aliás, de acordo com José Comblin, Paulo foi o verdadeiro fundador do
cristianismo, como movimento religioso independente do judaísmo (Comblin, 1993).
Para melhor traçar o perfil religioso aqui referido, faremos breve menção do caso de um bispo e
pastor da igreja de Roma no século III, Hipólito de Roma (160-235). Exímio escritor e erudito,
Hipólito intentara com seus escritos recuperar para a vida da igreja o que considerava a
“verdadeira tradição apostólica”, difundindo seus comentários e lembranças dos costumes
legados pelos apóstolos, mas que aos poucos vinham sendo deixados de lado.
ressaltar as catástrofes do porvir da humanidade, tira lições, dá conselhos [...] Pretende assim levar à
confiança em Deus, mesmo quando se é perseguido ou incompreendido, fatos esses reais em sua vida
agitada [...] Liga-se de modo escravizante ao texto bíblico como este se encontra, sem interrogar se tal
capítulo fora escrito em hebraico, aramaico ou se encontra apenas em grego [...] Preocupa-se com o
ensinamento que pretende tirar de um texto, como perfeito alegorista, sem tomar em consideração a
Dessa forma, observa-se que a liturgia era a própria vida para os cristãos que seguiam tais
preceitos, e a vida prosseguia sendo regida por normas e orientações de ordem litúrgica.
Exercia-se o sacerdócio sob o controle da tradição apostólica, porém, admitindo paralelamente
a submissão a um legalismo ritualístico, reminiscente do judaísmo. Estabelecia-se, assim, uma
espiritualidade “seletiva”, onde as regras de fé e prática mais aparentavam um código de
posturas moralizante e legalista do que qualquer outra coisa, fato que mais distanciava do que
facilitava a aproximação dos neófitos até Cristo.
3. O desenvolvimento doutrinal do Cristianismo
antigo
De que modo podemos relacionar o problema das controvérsias teológicas e doutrinárias entre a
igreja e outras crenças ou religiosidades do mundo antigo com o desenvolvimento e as facetas
que o cristianismo foi assumindo até a conclusão deste período? Essa pergunta servirá como
problema e orientação para o que será desenvolvido nesse tópico. A ideia básica é a de expor
sobre duas abordagens inter-relacionadas com este problema, a saber: a) caracterização das
crenças e/ou “heresias” principais que fizeram frente ao cristianismo; b) as respostas dadas
pela Igreja, seja contra ou a favor da manifestação dessas crenças.
Conflitos são comuns quando falamos em ser humano e história. Mais ainda, quando esse ser
humano é o crente (tanto no sentido estrito, como lato), e quando essa história é a história da
Igreja. Desde os começos da era cristã, vimos controvérsias de todos os tipos: no tempo de Paulo
foram o gnosticismo, judaísmo e outras doutrinas semelhantes; no século III foi debatida a
questão da readmissão dos “desviados” na igreja. Quer dizer, não faltaram querelas e muito
menos respostas (umas se julgando bem fundamentadas, outras nem tanto) para as principais
questões que envolviam a fé cristã de um modo geral.
Neste tópico, vamos tratar especificamente sobre algumas das crenças e “heresias” que
geraram muitas das controvérsias até o IV século da era cristã. De modo semelhante, também
veremos a atuação dos chamados “Pais da Igreja”, tanto no Oriente como no Ocidente cristão,
nos casos de afirmação ou negação e combate de uma determinada doutrina ou crença.
As perguntas que podemos lançar inicialmente são: quais os fatores que, na história da igreja,
determinaram o surgimento da teologia cristã? O que é uma heresia e como ela se constitui? De
que forma a igreja combateu os “hereges” desse período? Em nome de que ou quem e com que
“armas” ela combateu e por quê? Qual foi o papel dos pais da igreja nesse contexto de conflitos
de interesse e controvérsias doutrinárias? Nosso olhar certamente estará condicionado pelo
presente, mas nunca na intenção de julgar, e sim de compreender (ainda que parcialmente) o
passado, que sempre estará em suspenso e seus fatos nunca poderão ser apreendidos
absolutamente, “tal como aconteceram”.
O que aqui vamos fazer é um breve “passeio” pelos principais movimentos que foram
condenados na era cristã, descrevendo as mais latentes marcas deixadas, tentando exercitar,
antes, uma mentalidade crítica e investigativa, e não condenatória.
a) Gnosticismo (séc. I)
Um dos movimentos provenientes do gnosticismo. Foi fundado em 144 d.C. por Marcião de
Sinope, um cristão religioso que foi denunciado pela igreja como herege. Sustentava em sua
doutrina elementos gnósticos, tais como o dualismo, o docetismo cristológico e a recusa do
Antigo Testamento. Desenvolveu melhor essa doutrina dos dois deuses, representados nos dois
testamentos: A.T. - Demiurgo (justiça/lei); N.T. - Deus Superior (Jesus/Evangelho/amor).
Originou-se entre 160 e 170 na Frígia, através de um certo Montanus, um ex-sacerdote das
religiões de mistério, convertido ao movimento cristão. Ao ser batizado, pelo ano 150,
manifestou a glossolalia (dom de línguas), passando a ensinar, a partir daí, que a direção da
igreja não deveria ser por intermédio de cargos ou ofícios, mas sim, pela “voz do Espírito Santo”
transmitida pela glossolalia. Passou a anunciar o fim do mundo através de suas profecias e
ordenava a seus adeptos a se reunirem em um determinado local — regiões da Frígia, na Ásia
Menor — para aguardar a descida da Jerusalém celestial. Possuía duas discípulas imediatas:
Priscila e Maximila, que serviam como suas intérpretes, quando dizia comunicar-se
verbalizando “línguas espirituais”. Foi um movimento que queria a renovação das realidades
pneumáticas e escatológicas da igreja dos primeiros tempos. Sua doutrina reunia três elementos
principais: escatologia, ascetismo e profetismo.
Foi uma visão cristológica sustentada pelo presbítero Ário (246- 336), que negava a divindade de
Jesus e sua consubstancialidade com o Pai. O início da controvérsia se deu quando o bispo
Alexandre de Alexandria (250-328) começou a debater teologicamente com o pai do arianismo.
A dinâmica do debate é bastante ampla. Seus pontos eram vários e sutis. Mas, como faz lembrar
Justo González (1991, p. 90), “podemos resumir toda a controvérsia à questão de se o Verbo era
co-eterno com o Pai ou não”. O próximo tópico trata, dentre outras coisas, dos desdobramentos
desta controvérsia na vida da igreja da época. Gonzalez resume graficamente o campo de forças
em torno do qual tal querela gravitava:
Ário dizia que o Verbo (Cristo) não era Deus, mas somente a primeira dentre as criaturas.
Alexandre, valendo-se da visão do Evangelho de João, afirmava que o Verbo sempre tinha
existido com o Pai e que, junto com o Pai, ele também era Deus, isto é, tinham a mesma essência
divina, embora não fossem uma e a mesma pessoa. Interessante notar que ambos os partidos
tinham textos bíblicos em que se embasavam e razões lógicas que faziam a posição do oponente
parecer insustentável (Gonzalez, 1990, p. 91).
Segundo Gonzalez (1990, p. 88), “Constantino queria que a igreja fosse o ‘cimento do império’,
e por isso qualquer divisão nela podia ameaçar a unidade do Império”. Assim, quando a
controvérsia ariana se tornou pública, com o risco de dividir toda a igreja oriental, Constantino
resolveu interferir, dando opiniões sobre o assunto. A saída que ele encontrou para resolver esse
e outros impasses e colocar a vida da igreja em estabilidade, foi a de convocar uma grande
assembleia de todos os bispos cristãos.
E foi assim que, em 325, o concílio afinal se reuniu na cidade de Nicéia, na Ásia menor, perto de
Constantinopla. Hoje conhecemos esta assembleia como sendo o primeiro concílio universal da
igreja na história. Não se sabe o número exato de bispos ali reunidos. Como informa Gonzalez,
acredita-se que tenham sido trezentos. Embora a maioria dos cristãos ali congregados não
pertencesse a nenhum dos grupos outrora mencionados, conta-se que a maioria se posicionou
para o lado que defendia a doutrina da Trindade, em oposição à negação da divindade de Jesus
por parte dos arianos. Aliás, a natureza divino-humana, ora apenas divina, ora apenas humana,
de Jesus foi um dos temas mais recorridos desde o primeiro século, como vimos anteriormente.
Em Nicéia, portanto, chega-se ao que podemos chamar de ápice, naquele tempo, das discussões
acerca da natureza de Deus: divino? Humano? Um? Dois? Três? Depois de um processo interno à
reunião, que aqui não cabe narrar, mas que contou, entre outras coisas, com a intervenção de
Constantino, sugerindo que fosse incluída a palavra “consubstancial” (de uma só substância)
no documento final, chegou- se à formulação de uma Doutrina da Trindade através do “Credo
Niceno”, que hoje em dia é tido como o credo cristão mais universalmente aceito.
Pode-se dizer, como finalização deste tópico, que as reações da Igreja a todos estes e outros
movimentos, crenças e “heresias” que surgiram até o fim do período antigo, deram-se através
de quatro principais instâncias:
Nesta unidade, estamos aprendendo um pouco mais sobre como se fazia teologia no período
antigo com a experiência dos chamados Pais da Igreja. A partir deles, veremos que a teologia é
um saber racional, sim, mas que tem uma dimensão espiritual e de reverência para com o sopro
do Espírito. Ao mesmo tempo, concluiremos que teologia é coisa humana, composta a partir de
experiências concretas de fé, luta e busca por iluminação pela vontade de Deus. Sua matéria-
prima é a própria vida e seu chão é a história. A pergunta é: de que maneira homens como
Gregório, Ambrósio, Agostinho ou Jerônimo tornaram-se pais da igreja e em função de que
questões e atuação?
Os Pais da Igreja ficaram assim conhecidos por serem os representantes diretos e indiretos da
tradição apostólica, isto é, a tradição da igreja. Devemos tratar de uma maneira mais específica
sobre quem foram os pais, por quais critérios eles foram assim chamados e as razões pelas quais
os cristãos, hoje, ainda podem e devem recorrer à leitura dos pais. Uma dessas características é o
zelo para com as Escrituras, algo bastante peculiar em se tratando do contexto ao qual acabamos
de estudar, de controvérsias e conflitos doutrinários.
O professor de estudos bíblicos e teológicos do Eastern College, Christopher Hall, afirma que os
pais demonstravam um enorme zelo para com Deus e as Escrituras. E, muitas vezes, como
acontece conosco, seu zelo manifestava-se tanto em suas forças como em suas fraquezas.
Afirma que “eles têm muito a ensinar-nos sobre reverência, santo temor, autosacrifício,
autoconsciência e autodecepção, adoração, respeito, oração, estudo e meditação” (Hall, 2000, p.
53).
Glossário
Dentro da classificação mais ampla dos “pais da igreja”, segundo Hall, encontramos os oito
doutores da igreja: quatro doutores do oriente e quatro doutores do ocidente, aos quais,
baseados neste autor, dedicaremos especial atenção, destacando os principais pontos que
envolvem suas vidas e pensamentos.
Embora fosse amante da academia, sua leitura das escrituras não estava condicionada aos
imperativos racionais. Neste ponto surge seu conflito com os eunomianos, um grupo de
estudiosos que defendia a razão como o maior princípio norteador do conhecimento sobre a
divindade. Gregório combate isso ao dizer que “a saúde espiritual e a argúcia hermenêutica não
podem ser separadas” (Hall, 2000, p. 71).
d) João Crisóstomo (347-407): De todos os pais da igreja, exceto Agostinho, afirma Hall, a
exegese de João é a mais inteligível, acessível e disponível aos leitores modernos. Por sua
inflamada retórica, ficou conhecido como o “boca de ouro” (que significa “Crisóstomo”, em
grego). Possui uma vasta obra teológica, mais concentrada em homilias exegéticas e sermões. É
um dos pais que mais ressaltou a importância de estudar as escrituras. “A raiz de todos os
males”, acreditava ele, “é a falta de conhecimento das escrituras” (Hall, 2000, p. 93).
4.2. Os quatro doutores do Ocidente
a) Ambrósio de Milão (339-397): Nasceu em Tréveros, mudando-se logo depois para Roma,
onde recebeu boa educação, estudando literatura romana e grega, já que provinha de uma família
bem abastada. Era bastante respeitado por sua ética e autoridade moral, fruto de sua vida pública
íntegra no meio político. Assim, com a morte do bispo Auxêncio (que era ariano), Ambrósio foi
escolhido para ser o novo bispo de Milão. Embora não tivesse formação teológica, seus estudos
na língua grega o auxiliaram em sua exegese das Escrituras. Como bispo, não se envolveu muito
em controvérsias teológicas. Era conhecido mais por seu caráter, diplomacia, coerência e
bondade, que por suas ideias e/ou qualidades como teólogo. Teve grande influência na
conversão de Agostinho, a quem batizou tempos depois. A interpretação alegórica das Escrituras
(especialmente do AT) foi sua marca como teólogo.
c) Agostinho (354-430): Um dos mais brilhantes pensadores cristãos de todos os séculos. Seu
pensamento situa-se na transição entre a antiguidade e a medievalidade. Foi um grande “divisor
de águas”, visto que influenciou todo o pensamento teológico posterior na igreja cristã
(medieval e moderna). Teve uma trajetória longa e conflitiva, passando por diversas crenças e
movimentos (que influenciaram a formação de seu pensamento), antes de se converter
definitivamente ao cristianismo: maniqueísmo, ceticismo, astrologia, neoplatonismo. Suas
principais ênfases teológicas foram: Graça, Livre-Arbítrio (embate com Pelágio), Mal (ideia de
pecado original), Autoridade, Verdade, Razão e Fé. Escreveu várias obras teológicas, comentários
bíblicos e sermões. As mais conhecidas são as suas Confissões (397-398) e Cidade de Deus
(iniciado em 413, terminado em 426).
d) Gregório, O Grande (540-604): Quase 150 anos separam o papa Gregório I de Agostinho. Sua
vida parece, como diz Hall, providencialmente ordenada para o papel que desenvolveria na Igreja
Ocidental: seu avô (Felix II) também havia sido papa; assim como Ambrósio, antes de se tornar
monge, ele também passou pela vida política, tendo sido prefeito de Roma; depois de um período
vivido como monge beneditino, foi indicado pelo papa Pelágio II para servir como representante
episcopal na igreja Oriental em Constantinopla. Posteriormente, em seu posto como papa (de
590 a 604), Gregório foi responsável pelo envio de missionários para atuar no mundo anglo-
saxão, e também pela divulgação de uma espécie de canto musical hoje conhecida como canto
gregoriano. Assim, como Ambrósio, ele tinha predileção pela alegoria como forma de
interpretação da Bíblia. Nada podia ser ignorado e desprezado, desde que saudável, como
instrumento de leitura das escrituras. Em uma de suas cartas, ele escreveu que, na
“compreensão da Escritura sagrada, tudo quanto não se opõe a uma fé sadia não deve ser
rejeitado” (Hall, 2000, p. 121). Escreveu muitos sermões sobre diversos livros da Bíblia.
Entre os pais da igreja, vimos tanto consonâncias como discórdias, e um exemplo disso está no
caso da interpretação alegórica das escrituras: enquanto Basílio e Crisóstomo criticaram o uso
da alegoria e defenderam uma interpretação mais literal, Ambrósio e o papa Gregório a
advogaram. Os desentendimentos entre essas importantes figuras mostram a diversidade de
interpretações, visões, e produções teológicas existentes no meio cristão desde os primórdios.
Terá sido isso algo apenas negativo? Deixamos algumas “conclusões inconclusas” sobre as
quais podemos chegar acerca do desenvolvimento teológico e doutrinário nesse período:
Quarto, a Teologia é coisa humana, composta a partir de experiências concretas de fé, luta e
busca por iluminação pela vontade de Deus. Sua matéria-prima é a própria vida.
Considerações finais
A partir do quarto século d. C., outro quadro será vislumbrado. Constantino, que se torna
imperador romano, declara-se cristão por volta do ano 313, após uma experiência mística que
afirma ter-lhe ocorrido, quando se preparava para uma guerra: um sinal de cruz apareceu-lhe
no sol, sob os dizeres “por este sinal vencerá”. Constantino, que era devoto do deus Mitra, após
a vitória na guerra, entendeu ser uma mensagem de mudança. Daí em diante concedeu liberdade
de culto ao cristianismo, doou recursos para construção de templos, remunerou o clero com as
espessas do Estado, conferindo-lhe também poder administrativo no Império, reabriu a Terra
Santa aos cristãos e judeus, cuidou pessoalmente da realização do primeiro grande concílio da
igreja: o de Nicéia, em 325.
Glossário
Mitra: deus do Sol, da sabedoria e da guerra na mitologia persa.
Representava a luz, significando, literalmente, em persa,
"divindade solar". Ao longo dos séculos, foi incorporado à
mitologia hindu e à mitologia romana. No império romano, seu dia
de celebração era 25 de dezembro, em razão do solstício de
inverno.
Parte da igreja entendeu ser Constantino um instrumento divino para ajudar a consolidar
politicamente o reino de Deus na terra. Mais tarde, outro imperador — Teodósio, em 382 —
consolidou o projeto de tornar o cristianismo a religião oficial do Império Romano. Nascia assim
a Igreja Católica Romana. A partir daí a igreja desempenhará em tal sociedade um papel
semelhante ao da velha religião estatal, ou seja, concebendo Cristo apenas como um rei celestial
que dá apoio ao imperador cristão que governava em seu nome.
Mas é preciso ponderar que, mesmo não sendo majoritário, sempre houve um grupo que
resistiu e buscou vias alternativas para preservar as origens apostólicas da mensagem e da
missão cristãs, lutando por um reino de Deus que não se rendia ao reino do poder político e do
dinheiro. A voz profética voltada para o mundo e em favor da vida em sua integralidade, resistiu,
como o veremos em discussões subsequentes deste curso.
Referências
ANGLIN, W.; KNIGHT, A. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Casa Editora Evangélica, 1947.
BORNKAMM, G. Crítica Literária de Filipenses. In: ____. Pablo de Tarso. Salamanca: Sigueme,
1982.
GONZALEZ, Justo. A era dos gigantes. Uma história ilustrada do Cristianismo, Vol. 2. São Paulo:
Vida Nova, 1991.
ROMA, Hipólito de. Liturgia e catequese em Roma no século III. Petrópolis: Vozes, 1981.
Textos complementares:
DREHER, Martin. A igreja no império romano. São Leopoldo: Sinodal, 2002, p.22-32.
HALL, Cristopher A. Lendo as escrituras com os pais da igreja. Viçosa: Ultimato, 2000, p.46-57.
MCGRATH, Alister. Teologia histórica: uma introdução à história do pensamento cristão. São
PINHEIRO, Jorge; SANTOS, Marcelo. A expansão do cristianismo. In: Manual de história da igreja e
Ao lado deste, coexiste e frutifica um outro mito, tão prejudicial quanto aquele, porém, com
tonalidades mais imaginárias: é a idealização e romantização dos tempos medievais, povoados
de heróis cavaleiros investidos em suas armaduras, que percorrem o mundo batalhando pela
justiça e pela fé, como no caso das Cruzadas, pela honra e pelo amor. Consideramos ambas as
posições no sentido de mostrar como a ideia de Idade Média pode ser ao mesmo tempo
complexa e simples, bem como de esclarecer alguns dos preconceitos que gravitam em torno
dela.
Fato é que se trata de um novo período na vida da Igreja, com novas práticas, novas doutrinas,
novos desafios, tanto em sua vida interna, como nas relações externas. A história não se repete,
está sempre se transformando.
Nosso intuito aqui não é abarcar todas as transformações ocorridas nesse período, mas apenas
destacar as principais, no que diz respeito a dogmas e doutrina. Iniciamos, portanto, com as
seguintes perguntas: que transformações sofreu o cristianismo ao tornar-se religião imperial e
que configuração assumirá a partir do momento em que o papado ostenta poderes espirituais e
temporais supremos? Quais foram os processos que culminaram na cristandade medieval? Que
tipo de doutrinas e dogmas são originários desse período?
1. Como se deu o surgimento do catolicismo
romano?
Com a queda do Império em 476, no Ocidente – após um período de quase setenta anos, iniciado
com a invasão e tomada de Roma por Alarico, chefe dos Godos, em 410 – explica Le Go que o
cristianismo será “o principal agente de transmissão da cultura romana ao Ocidente medieval.
Herdara, sem dúvida, de Roma e das suas origens históricas, a tendência para dobrar-se sobre si
próprio” (1994, p. 29).
Saiba mais
Leão I teve um papel importante quando da invasão dos hunos e vândalos, e também nos
resultados a que chegou o Concílio de Calcedônia (451). Porém, os historiadores convencionam
que sua principal contribuição se deu com a “ênfase ao primado de Pedro entre os apóstolos,
tanto no que respeita à fé, quanto no que se refere ao governo, ensinando que o que Pedro
possuíra, havia passado aos sucessores de Pedro”. Para completar, conseguiu com que o
imperador do Ocidente, Valentino III, promulgasse um edito ordenando a todos que
obedecessem ao bispo de Roma (papa), como portador que era do “primado de São Pedro”
(Walker, 1987, p. 180).
Assim, todos os bispos de Roma, a partir de Leão I, passaram a ser reconhecidos como
sucessores do apóstolo Pedro, título cuja argumentação justificatória principal se vale de uma
interpretação das próprias palavras de Jesus, quando declarou: “tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16:18). Outros
bispos vierem após estes. Em suma, vale destacar que os direitos que o papado medieval viria
mais tarde reivindicar para si, já se esboçavam por volta dos séculos V e VI. E, como observa
Walker (1981, p. 181), “só no transcurso dos séculos, e não sem fazer face a muitas vicissitudes,
foi que se deu a plena efetivação do ideal papal”. O papado, enquanto coqueluche da igreja
católica medieval, aparece como fruto de um processo, entre conflitos, impedimentos e avanços.
Fato é que ele se estabeleceu no Ocidente, a partir do V século, e permanece até os dias atuais
como força representativa do poderio máximo da igreja católica e como guardião de seus mais
caros interesses.
Todavia, o reinado da igreja não iria se estabelecer assim, sem conflitos. Estamos falando de um
período em que a ocupação e o domínio do antigo território do império pelos povos bárbaros é
crescente, além de ser fonte de confrontos e mortes por toda parte. Era necessário à igreja, a fim
de manter seus privilégios perante a civilização e influência sobre as questões públicas, fazer
novos acordos e estreitar novas relações, exatamente como fizera com o antigo império, quando
de sua oficialização como religião do imperador. “A relação entre igreja e estado”, afirma David
Bosch (2002, p. 273), “era, efetivamente, a de ‘dar’ e ‘receber’. O regime seria abençoado pela
igreja, e o Estado, em troca, garantiria a esta proteção e apoio”.
Como ilustração, basta mencionar a carta que o imperador carolíngio Carlos Magno escreveu ao
papa Leão III, em 796, na qual reafirmava seu dever de defender, em qualquer lugar, a sagrada
igreja de Cristo contra os assaltos dos pagãos e as devastações dos descrentes.
Saiba mais
Na opinião de Franco Jr. (2006, p. 69), a Idade Média nasceu da articulação que a igreja fez entre
elementos da romanidade e elementos da cultura germânica. Ela foi “o ponto de encontro entre
aqueles povos”. Foi necessária, porém, a criação de uma estrutura e hierarquia próprias,
voltadas ao controle do laicato pelo clero, supervisionando ofícios religiosos, dando orientação
em questões referentes a dogma e doutrina, realizando obras sociais, protegendo os mais
pobres, oferecendo privilégios aos mais ricos, combatendo (e, paradoxalmente, legitimando) o
paganismo.
Glossário
Germânico: referente à atual Alemanha. Do conjunto de línguas
faladas por tribos germânicas é que se originaram o inglês, o
alemão, o neerlandês e as línguas escandinavas.
Nesse momento se acentua o controle dos “bens de salvação” pelo clero. Ocorre o que eu
chamaria de cartada definitiva da hierarquia em relação à exclusão dos leigos (que já vinha
gradativamente ocorrendo), seja na administração dos sacramentos, seja no acesso às
escrituras. O grego, aos poucos, deixa de ser a língua-mãe, língua de acesso, dando lugar ao
latim, língua restritiva, especialmente às camadas populares. A igreja adota o latim como seu
dialeto principal, passa a usar a vulgata, versão em latim da Bíblia, traduzida por Jerônimo, e as
missas (outra instituição desse período) também são realizadas exclusivamente em latim.
De um movimento profético, em suas origens, o cristianismo passa a ser uma religião cada vez
mais institucionalizada e clericalizada. Isso se dava por um processo de legitimação dessa
autoridade junto às camadas leigas. Boreau afirma que a concentração de todas essas atividades
nas mãos de apenas alguns cristãos, era aceita com naturalidade pelo conjunto dos fiéis, já que
tal poder lhes fora atribuído pela própria Divindade: segundo o texto bíblico, Cristo dera aos
apóstolos autoridade para expelir demônios, curar doenças e difundir sua doutrina. Os
apóstolos, por sua vez, transmitiram esse poder aos bispos, isto é, os anciãos da comunidade,
que fizeram o mesmo com seus auxiliares. Logo o clero se formava pela transferência de certo
poder extra-humano por parte de quem possuía, para indivíduos que desde então passavam a
integrar a mesma comunidade sagrada. Desde o princípio, por sua própria natureza, o clero
estava distanciado dos demais cristãos (Boureau, 2002, p. 214). Muito rapidamente, desde o
século III, a organização da igreja foi hierarquizando os ministérios, que antes eram destinados
a todo o povo de Deus, conforme se pode notar nas palavras de Alain Boureau:
Os ofícios carismáticos de profeta, de doutor, de confessor são perdidos ou integrados ao “carisma da
verdade” (charisma veritatis certum) atribuído aos ministérios propriamente sacerdotais. Tal
de bispo e de papa adquirem uma crescente amplitude, ligada a uma espiritualidade específica, mas
também à ausência de um poder imperial forte e à solidez das estruturas territoriais romanas utilizadas
pela rede episcopal. Assim, a igreja ocidental constitui-se efetivamente em garantia da fé, em objeto
Hilário Franco Jr., um historiador, obviamente não considera o fator teológico que envolve a
questão. Mas, apenas para realçar, as lideranças eclesiásticas foram constituídas, desde o tempo
apostólico, para o serviço à igreja, manutenção da ordem, ensino do Evangelho e esclarecimento
frente às crenças e ataques de seu tempo. Com o passar dos séculos ela foi se perdendo em meio
às querelas de poder, prestígio, autoridade e doutrina. E o ministério ordenado, que entre os
primeiros cristãos nasceu sob o signo do serviço e do amor, começa a se desvirtuar e gerar essa
“natureza” de separação e distanciamento, à qual alude Franco Jr, em relação aos demais
cristãos, subvertendo os princípios sob os quais fora instituída (ver 1 Pe 5:1-4).
A cobrança de Pedro em torno dos líderes da igreja, no aludido texto, não era para que se
transformassem em líderes polivalentes, personalistas e gananciosos, como muitos foram
através dos séculos e como alguns hoje, consciente ou inconscientemente, ambicionam se
tornar. Sua tarefa era mais ampla e difícil: conduzir o rebanho com o desejo de servir (não
dominar) e em busca da mútua cooperação, como aconteceu com os primeiros cristãos (At
2:42-47). Não é o pastoreio do isolamento, da imunidade ou superioridade em relação às
ovelhas, mas da sujeição, encarnação e envolvimento dignos de servos participantes dos
sofrimentos e também da glória de Cristo. Veremos, mais adiante, que o monasticismo foi uma
das instituições que, em parte, conseguiu preservar esse ideal do evangelho, a partir do VI
século.
Até aqui, realçamos o mundo de práticas religiosas institucionalizadas; agora, passamos para o
das não institucionalizadas ou, até certo ponto, não reconhecidas pela igreja, e por isso
subversivas; passaremos, portanto, não somente pelos processos que envolvem o poder e a
instituição da igreja, mas principalmente por algumas das crenças e práticas religiosas que vão
sendo reafirmadas, criadas e alimentadas entre os do povo, com ou sem a anuência da ordem,
seus dogmas e doutrinas.
O historiador André Vauchez, em sua obra A Espiritualidade na Idade Média Ocidental, diz que
para falar de espiritualidade na Idade Média é preciso ir além de um pensamento que a postule
como mera adesão a um corpo de doutrinas e dogmas, mas também “uma impregnação dos
indivíduos e das sociedades pelas crenças religiosas que eles professam”. A espiritualidade que
passa a ser desenvolvida nesse momento, especialmente entre as camadas populares (pobres,
artesãos, camponeses), tem mais a ver com expressividades e religiosidades que são fruto de
uma interiorização e individualização da mensagem cristã nas pessoas, em contato com as
crenças pagãs (Vauchez, 1995, p.11).
Pressentimos que a vida espiritual das massas transbordava dos limites obrigatórios da instituição
eclesiástica, e até do dogma cristão. [...] Mesmo nas regiões cristianizadas de mais longa data, a religião
oficial ainda era apenas, em muitos casos, um verniz que recobria superficialmente elementos
A natureza ou o teor dessas práticas também já foi comentada na unidade anterior. Vauchez
destaca algumas novas e velhas práticas que vigoravam nesse momento, como o culto dos
mortos, como mostra, no século IX, a instituição da festa de todos os santos, satisfazendo um dos
caprichos da piedade popular, à medida que enfatizava a vocação para a salvação dos fiéis já
falecidos. Estes ritos foram introduzidos no cânon da missa, mostrando que “a espiritualidade
do clero e a dos fiéis não constituíam nessa época dois mundos sem comunicação”.
Outra prática que só crescia em vigor e prestígio era o culto das relíquias. Relíquias eram os
objetos, ou até supostas partes do corpo, dos santos do passado (apóstolos, mártires), que
passaram a ser veneradas ao representarem o contato desses fiéis com o “outro mundo”,
também pelo “dinamismo benéfico” delas emanado, visto como meio de obtenção de vitórias e
curas nas mais diferentes áreas da vida. Desse modo, a espiritualidade medieval assumia
contornos cada vez mais definidos: o contato com o sobrenatural se dava por meio de gestos,
expressões da alma e sacrifícios feitos pelos fiéis.
Fórmulas, barganhas e promessas: elementos constitutivos de uma religião que se tornava cada
vez mais utilitária e voltada para a satisfação das carências pessoais. Paralelamente, tanto ao
espiritualismo utilitário que se desenvolvia na periferia da igreja, como ao engessamento
institucional e dogmático vislumbrado no centro, desenvolvia-se uma forma “alternativa” de
espiritualidade no período medieval, que é a espiritualidade monástica.
Em síntese, a flexibilização crescente dos costumes e das práticas religiosas no seio da igreja
cristã e à revelia dos dogmas e leis, que supostamente deveriam coibir tais práticas, conduziu a
uma espiritualidade ao mesmo tempo em que mais intimista, também mais utilitária, no sentido
de tentar manipular o sagrado em função dos desejos e anseios humanos. Vimos, portanto, que
a espiritualidade que passa a ser desenvolvida nesse momento, especialmente entre as camadas
populares (pobres, artesãos, camponeses), tem mais a ver com expressividades e religiosidades
que são fruto de uma interiorização e individualização da mensagem cristã nas pessoas, em
contato com as crenças pagãs.
3. Doutrinas e ritos praticados na Idade Média
De acordo com Hilário Franco Jr. (2006, p. 69), estas eram produto do sincretismo que fazia a
força, mas também a fraqueza do cristianismo. De fato, ao reunir e harmonizar componentes de
várias crenças da época, a religião cristã tornava-se mais facilmente assimilável, porém passível
de interpretações discordantes do pensamento oficial do clero cristão. Do ponto de vista deste,
heresia era, portanto, um desvio em relação ao dogma que colocava em perigo a unidade da fé.
Saiba mais
Tentaram conter o avanço dos costumes bárbaros, com a aplicação de disciplinas penitenciais e
da lei canônica (o início do século VI é, simultaneamente à codificação civil, época de realização
de sínodos e concílios). Porém, como observa Le Go , eles mesmos estavam sendo
“barbarizados” e viam-se incapazes de lutar contra as ingerências da barbárie dos grandes
(líderes, chefes dos povos) e do povo. Usaram, assim, a velha tática de guerra do “se não pode
vencê-los, junte-se a eles”. A igreja começa a institucionalizar práticas que até então eram
avidamente rechaçadas como superstições e heresias, ratificando, nas palavras de Le Go
(1994, p. 61), a regressão da espiritualidade e da prática religiosa: “julgamentos de Deus,
inaudito crescimento do culto das relíquias, reforço dos tabus sexuais e alimentares em que a
mais primitiva tradição bíblica se alia aos costumes bárbaros”.
Desde a sua oficialização, no séc. IV, como aponta Leonildo S. Campos, o cristianismo se tornou
um produtor hegemônico de símbolos, práticas e rituais religiosos. Nesse período, com a
abertura ao culto cristão, já vinha ocorrendo um progressivo processo de sincretismo, sob os
olhos do imperador. Como descreve Campos (1997, p. 170), desde então, houve uma espécie de
adaptação do culto cristão aos novos lugares de adoração, alguns deles anteriormente dedicados
aos deuses pagãos. Vários santuários locais foram reconsagrados aos mártires e santos cristãos,
e com o passar dos séculos, um comércio de imagens, ícones e relíquias sagradas se estabeleceu
ao redor deles, práticas essas que constituíram mais de mil anos depois, aos olhos dos
reformadores, evidências claras da “paganização” da Igreja cristã.
Após a desintegração do poder político do Império Romano, a igreja permaneceu como o único
centro de referência capaz de manter a tradição e os costumes do passado. O uso da violência e a
imposição da fé, especialmente sobre uma população rural portadora de crenças mágicas e
pagãs, tornou-se algo comum naquele momento. Entretanto, como acentua Campos, essa
catequese “apenas formou uma camada de verniz sobre uma antiga realidade religiosa”. Como
também aponta Keith Thomas (1991, p. 171), a aristocracia eclesiástica não conseguiu
influenciar profundamente as massas populares, e por toda a parte na Europa, “multiplicavam-
se os cultos às relíquias sagradas, verdadeiros fetiches milagrosos, aos quais se atribuíam poder
de curar enfermidades e proteger as pessoas dos perigos”.
Uma das características da espiritualidade medieval no século VIII foi o retorno ao Antigo
Testamento. Dela, o que marcou profundamente foi a vida espiritual e as mentalidades
religiosas. Na época do Império carolíngio o cristianismo tornara-se mais e mais uma questão
de práticas exteriores e cumprimento de lei e regras espirituais. O moralismo carolíngio e os
costumes bárbaros facilitaram mais um regresso às práticas judaizantes, e a fé cristã corria o
risco de se deformar em credos e costumes supersticiosos.
Glossário
Segundo, houve a inserção do canto gregoriano (forma erudita de canto, bem alheia ao
costumes e cultura do povo);
Terceiro, a adoção do latim como língua cultual; as leituras, especialmente da Bíblia, eram
feitas em latim, tornando impossível a compreensão pela maioria das pessoas, de cultura
germânica;
Quarto, uma separação da relação que havia entre vida cotidiana e sacramento; elimina-se
tudo o que poderia haver de realista e concreto no sacramento. Por ex. A comunhão
(eucaristia) passou a ser dada, não mais na mão do fiel, mas diretamente em sua boca.
Destarte, a igreja, nas palavras de Thomas, atuava como “repositório de poderes sobrenaturais”,
subsidiando crenças sobre as quais nem ela mesma tinha o controle. Esses poderes podiam ser
distribuídos aos fiéis para auxiliá-los em seus problemas do cotidiano. O mais paradoxal é que
essas crenças surgiam, sobretudo, ligadas aos sacramentos tradicionais da igreja, como o
batismo e a eucaristia, além de ritos como a missa (que entra em vigor por volta do século VI), o
culto mariano – que ocorre como uma adaptação do antigo culto à deusa Diana, a partir da
homologação da devoção à Maria como Mãe de Jesus, no concílio de Éfeso em 431 – e o culto aos
mártires ou a adoração dos santos. Essa última, ao lado do culto mariano, tornou-se uma das
formas de devoção popular mais comuns e mais bem difundidas no período medieval.
Acreditava-se na proteção dos santos, que estavam sempre a postos para cuidar de uma
variedade de eventualidades da vida cotidiana.
O historiador Keith Thomas diz que a crença na proteção dos santos conferia um sentido de
identidade e existência corporativa a pequenas instituições que, do contrário, seriam
indiferenciadas. Foi por isso que continuaram a ter popularidade, como nomes para escolas e
universidades mesmo numa era protestante. Mas a adoração dos santos em geral dependia da
crença de que os santos e santas do passado, além de terem sido exemplos de um código ideal de
conduta moral, podiam ainda empregar poderes sobrenaturais para aliviarem as adversidades de
seus devotos na Terra. As doenças, assim como as profissões e localidades, eram atribuídas aos
cuidados especiais de um santo apropriado, pois, na mentalidade popular, os santos eram
usualmente vistos mais como especialistas do que como clínicos gerais (Thomas, 1991, p.37).
Não obstante levarmos em consideração esses elementos, vale ressaltar, segundo Thomas, que
não era a igreja quem oferecia diretamente e deliberadamente esse “corpo mágico” de ritos e
crenças aos leigos. “As principais preocupações da igreja eram espirituais. Em sua maioria, as
alegações de magia na religião eram parasitárias de suas doutrinas” (Thomas, 1991, p. 51). Ou
seja, pela leitura que faz esse historiador, era apenas em âmbito popular que se creditava um
poder mágico a tais doutrinas da igreja; as crenças populares eram, nesse sentido, releituras ou
ressignificações, desde uma perspectiva originária daqueles meios, do corpo ritual e dogmático
tradicional estabelecido e disponibilizado pela igreja. Por isso, pode-se concluir que ela foi em
parte “culpada” por possíveis desvios doutrinários ou “heresias”, e em parte inocente ou mera
expectadora de tudo aquilo. Contudo, a igreja combatia e deixava de combater as chamadas
“superstições” em seu seio conforme as conveniências do momento, adotando uma postura
ambivalente: ora lutando contra as crenças populares, ora endossando ou fazendo “vistas
grossas” frente a elas. É como pressupõe a lógica oferecida por Thomas (1991, p. 54), quando
diz que, se a crença na eficácia mágica da hóstia servia para aumentar o respeito pelo clero e
fazer com que os leigos fossem mais regularmente à igreja, por que não tolerá-la tacitamente?
Práticas como a veneração de relíquias, a recitação de preces ou o uso de talismãs e amuletos
podiam chegar a excessos, entretanto, se o efeito disso fosse unir mais o povo ao que se
considerava a verdadeira igreja e a Deus, prevalecia o argumento de que os fins justificam os
meios. O que contava era a intenção do devoto, e não os meios empregados. Desde que tais
práticas refletissem uma autêntica confiança em Deus e seus santos, delas não poderia advir
dano sério.
Retomando de maneira breve o conteúdo das duas últimas unidades, dada sua interligação:
vimos, em primeiro lugar, que o desenvolvimento do papado foi extremamente relevante para o
fortalecimento institucional do cristianismo em meio a um império em ruínas e as facetas de um
novo mundo (medieval), cheio de “armadilhas” e desafios, que requereria novas posturas e
adaptações por parte da igreja; em um segundo momento, a clericalização dos ministérios e a
exclusão do povo de Deus à mera passividade (pelo menos em tese) foi outra forma que a igreja
encontrou para se articular e se firmar frente às mudanças políticas e sociais na Idade Média.
Em terceiro lugar, fez-se uma observação geral acerca das crenças e doutrinas que emergiram
nesse período, ora sendo combatidas, ora sendo legitimadas, de acordo com a estratégia e/ou a
conveniência do momento. Nisso vemos claramente destacada a capacidade da religião, em um
sentido mais amplo, tanto de dogmatização e intolerância, quanto de flexibilização dos
costumes e práticas que configuram uma vida consagrada. Vislumbramos, de modos diferentes,
essa adaptação sendo feita no cristianismo contemporâneo, seja entre católicos ou protestantes.
A adaptação, seja de que ordem for, não é um problema. O problema ocorre quando essa
adaptação compromete a integridade da mensagem e do testemunho cristãos. E quanto a isso
precisamos estar atentos. O conhecimento histórico, assim, nos ajuda a compreender a
realidade e interpretá-la, construindo diretrizes para novas ações no tempo presente.
Outro fator para o qual precisamos atentar é quanto à nossa tendência ao julgamento. Frisamos
este ponto já na primeira unidade, mas é uma ressalva sempre cabível: avaliar criticamente não
equivale a julgar de forma anacrônica; o julgamento é um dos lugares impróprios da história e da
teologia. Dadas as alternativas históricas que estes cristãos medievais tinham à sua disposição,
as escolhas aqui apresentadas foram as que pareceram ter mais nexo para eles. “É preciso
perguntar se nossas opções, em circunstâncias similares, teriam sido mais adequadas, mesmo
se diferentes” (Bosch, 2002, p. 274).
Glossário
Referências
BOSCH, David. Missão Transformadora. Mudanças de paradigma na teologia da missão. São
BOUREAU, Alain. Fé. In: LE GOFF, J. & SCHIMITT, J. C. Dicionário Temático do Ocidente Medieval.
CAMPOS, Leonildo S. Templo, Teatro e Mercado. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Simpósio e UMESP,
1997.
DREHER, Martin N. A Igreja no Mundo Medieval. Vol. 02. (Coleção História da Igreja). São
FRANCO JR, Hilário. A Idade Média. Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006.
LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Vol. I. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.
THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental. Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro:
Textos complementares
PINHEIRO, Jorge; SANTOS, Marcelo. Manual da história da igreja e do pensamento cristão. São
Paulo: Fonte Editorial, 2013, p.101-111
VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1995, p.11-31.
C O NT I NU E
Introdução à unidade 4
Nos próximos tópicos, vamos estudar outro fenômeno religioso importante da Idade Média: o
monasticismo. Buscamos compreender, em linhas gerais, o que se entende por monasticismo?
Onde ele surgiu e com que proposta? Em que medida ele se diferenciava do modelo de igreja
vigente, e/ou em que medida apenas lhe servia de apoio? Quais são os desdobramentos possíveis
desse movimento? Em que medida o monasticismo pode ser considerado um “agente
missionário” durante esse período? Que tipo de influência exerceu na história do cristianismo,
não apenas na Idade Média, mas também em seu futuro? Em linhas gerais, compreender o que
foi o monasticismo, suas principais correntes e influências no mundo medieval; entender em
que medida o monasticismo pode ser considerado um “agente missionário” durante esse
período. Neste aspecto, cabe destacar seu papel voltado à integralidade da missão: cuidado social
de desvalidos, doentes, órfãos, idosos e viúvas; trabalho educacional oferecido a quem não podia
pagar por ele; produção de livros e formação de bibliotecas, assegurando a preservação e
transmissão de conhecimentos e saberes às gerações futuras; o conhecimento de plantas,
responsável por assegurar tratamento e cura das vítimas mais expostas a um tempo de
epidemias coletivas, salvando assim os que se encontravam mais alijados do amparo social.
Também veremos sobre o Islamismo. Este tem sido, nos dias atuais, assunto recorrente nos
meios de comunicação, assim como tema cada vez mais desafiador nos campos de estudo que
tratam do cenário religioso contemporâneo. O movimento islâmico tem suas raízes históricas
na Idade Média, sendo, já em sua gênese, protagonista de tensões e embates envolvendo
cristianismo e judaísmo, especialmente pelas disputas e controle de territórios sagrados.
Objetivamos conhecer o surgimento do Islamismo; analisar a relação do Islã com o cristianismo
e o judaísmo no contexto medieval; trazer reflexões para o cenário religioso atual que envolve as
religiões monoteístas.
Veremos por que uma reforma passou a ser vista como necessária na Igreja, ainda no período
medieval, culminando na ruptura protestante configurada no século XVI? Por que muitos
cristãos, por diferentes motivos, especialmente a partir do século X, passaram a ver a
necessidade de reforma? Buscaremos conhecer os motivos que levaram cristãos em diferentes
momentos e lugares do contexto medieval a desejarem uma reforma na igreja; identificar e
caracterizar alguns dos aspectos teológico-doutrinários que são vistos como preponderantes
para a busca por reformas; estabelecer noções preparatórias para compreensão dos
movimentos denominados de “pré-reformadores” no período medieval, a serem analisados na
próxima unidade. Diante disto, ainda analisar: O que foram os chamados movimentos pré-
reformadores e por que assim são denominados? Qual a importância deles nesse período de
transição? No que de fato avançaram em relação ao status quo religioso de seu tempo?
Começamos a estudar aqui um período importante na história da igreja, pois os personagens e
acontecimentos desse período precederam e abriram passagem para aquilo que tempos depois
se passou a denominar Reforma Protestante.
1. O surgimento do Islã e as cruzadas medievais
Glossário
Depois disso, um anjo do Senhor apareceu-lhe “no caminho do deserto de Sur” (v.7) ordenando
a Hagar que voltasse para a casa de sua senhora, fazendo-lhe, inclusive, uma promessa:
“Multiplicarei sobremodo a sua descendência [...] Concebeste, e darás à luz um filho a quem
chamarás Ismael [...] Ele será entre os homens como um jumento selvagem; a sua mão será
contra todos, e a mão de todos contra ele”. (Gn 16:9-12). Interessante é notar que as promessas
feitas por Deus a Abrão incluem também Ismael: “Dar-te-ei à tua descendência a terra das tuas
peregrinações, toda a terra de Canaã em possessão perpétua, e serei o seu Deus [...] abençoá-lo-
ei (Ismael), fá-lo-ei fecundo e o multiplicarei extraordinariamente; gerará doze príncipes, e dele
farei uma grande nação” (Gn 17:8,20). Ismael também foi incluído na aliança pelo rito da
circuncisão, juntamente com seu pai (Gn 17: 23-27).
Mais tarde, de forma miraculosa, a estéril Sara também viria a conceber, seria um menino sobre
o qual também repousaria grande e até maior promessa: “Sara tua mulher te dará um filho e lhe
chamarás Isaque: estabelecerei com ele a minha aliança, aliança perpétua para a sua
descendência” (Gn 17:19).
Um novo desentendimento surge quando ocorre o nascimento daquela criança: “Vendo Sara
que o filho de Hagar, a egípcia, caçoava de Isaque, disse a Abraão: rejeita essa escrava e seu filho,
porque o filho dessa escrava não será herdeiro com Isaque meu filho” (Gn 21:9-10).
A escrava então conduziu o seu filho ao deserto, onde se tornou guerreiro, vindo a se casar com
uma egípcia. Ismael morreu com “cento e trinta e sete anos” (Gn 25:17) e a sua descendência
passou a ocupar as regiões da atual Arábia Saudita (v. 18).
No século VI a.C., os hebreus foram submetidos ao duro exílio babilônico, quando também
ocorreu a primeira destruição do templo. Após setenta anos de cativeiro, apenas um terço da
população que fora deportada retornou, o restante espalhou-se nas mais diferentes cidades do
mundo antigo, fato que ficou conhecido como a diáspora (dispersão) judaica. A população que
voltou do exílio, sob a liderança de Esdras e Neemias, teve a difícil tarefa de reerguer a nação,
reconstruir os muros e o antigo templo.
Nos dias de Cristo, da população de 5,5 milhões de judeus, apenas um terço continuava a viver na
sua própria pátria, estando sob o domínio político do Império Romano. Esta presença
estrangeira na sua terra gerava grande desconforto e revolta ao povo que se considerava
legítimo herdeiro daquelas possessões devido às promessas que o próprio Deus havia feito ao
patriarca Abraão. Foi nesse ambiente de insatisfação que, no ano 66 d.C., eclodiu uma revolta
armada dos partidos religiosos judaicos que buscavam a libertação da presença e dominação
romana na Palestina. Após quatro anos de sangrentos combates, finalmente, as legiões
romanas, lideradas pelo general Tito, conseguiram retomar o controle da cidade de Jerusalém,
quando o templo acabou sendo completamente destruído pelos soldados romanos, cumprindo,
assim, o que Cristo havia predito em Mateus 24:1,2.
Neste episódio, no ano 70 d. C., todos os judeus foram definitivamente expulsos da sua terra,
ocasionando a segunda diáspora. A partir disso, o povo judeu passou a existir como nação sem
território e sem Estado. Disperso agora pelo mundo, foi através da religião, centralizada nas
sinagogas, que este povo procurou preservar os seus costumes, tradição e a identidade religiosa.
Os sacrifícios de animais deixaram, então, de ser praticados: não havia mais o templo para este
rito. Um rabino, por volta do ano 90, ao visitar as ruínas da Cidade Santa, interpretou o texto de
Oséias 6:6 (“pois misericórdia quero, e não sacrifício”), dizendo que a partir de então, a “caridade”
iria substituir os sacrifícios até o dia em que aquele espaço sagrado fosse novamente restaurado.
No século IV, Constantino, imperador romano, declarou-se cristão e reconheceu o Cristianismo
como religião lícita em todo o Império. Helena, mãe do imperador, tornou-se uma cristã piedosa
e promoveu a construção de templos na Palestina, em locais considerados sagrados pelos
antigos cristãos: o da Natividade em Belém, onde Jesus nascera, e também o do Santo Sepulcro,
onde se acreditava que o corpo de Cristo havia sido sepultado. A partir daí, nos séculos seguintes,
visitar a Palestina passou a ser o sonho de toda a cristandade, motivada pelos mais diferentes
interesses: conhecer os lugares em que Jesus viveu; batizar-se no Rio Jordão; conseguir objetos
supostamente sagrados (como, pedaços da cruz em que Cristo morrera, ou que tivessem sido
utilizados por algum dos apóstolos, e ainda, pedras do Sinai, água do Rio Jordão etc.), por
acreditarem que os mesmos possuíssem poderes miraculosos contra enfermidades ou para
proteção das casas e dos negócios; pagar votos ou penitências. Também foram construídos
vários mosteiros nestes arredores. Neste tempo, os judeus tiveram nova permissão para visitar a
Terra Santa, na prática, porém, houve dificuldades para ali se estabelecerem devido à presença
em maioria de cristãos que lá se fixaram e ao estigma que os cristãos medievais cultivavam por
eles. Tal embate era basicamente ocasionado por dois motivos: primeiro, eram diretamente
responsabilizados pela morte de Jesus; segundo, haviam perseguido a igreja primitiva, proibindo
os cristãos de se reunirem no templo de Jerusalém e também em muitas das suas sinagogas.
No século V, porém, com a tomada do Império Romano do Ocidente, pelos chamados “povos
bárbaros”, ocorreram profundas turbulências políticas que afetaram o controle da Palestina
pelos cristãos. Mas, foi partir do século VII d. C, quando surgiu a religião fundada por Maomé,
que a disputa religiosa pela Cidade Santa se agravou ainda mais.
Foi a partir daí que começou então a se preocupar com as crenças do seu povo, fato que o levava a
se retirar sistematicamente para as montanhas nas proximidades de Meca, onde, por volta do
ano 610, afirmara ter tido visões e audições nas quais ouvia a voz de Deus e via o arcanjo Gabriel.
Passou a estar convicto de ser um escolhido de Deus (nome que em árabe significa Alá) para ser
o profeta que iria reconduzir o seu povo à verdadeira fé no verdadeiro Deus. Suas primeiras
pregações, em que descrevia em cores vivas o fim do mundo, os castigos do inferno e as alegrias
do paraíso, não obtiveram muito êxito. Conflitos de ordem econômica levaram-no a fugir para
Medina, em 622, onde viria a conquistar muitos seguidores. Como um líder messiânico,
acreditava ser o escolhido para restaurar a verdadeira religião de Abraão; objetivava aperfeiçoar o
Judaísmo e Cristianismo, nos quais via distorções. Tornou-se ferrenho adversário dos judeus
quando estes rejeitaram suas pregações. Por ocasião da sua morte, em 632, Meca já havia sido
por ele conquistada tornando-se a cidade sagrada do Islã e quase toda a Arábia já seguia seus
ensinamentos. O Alcorão (ou Corão), que registra seus ensinos e revelações, veio a ser escrito
algum tempo depois, tornando-se a verdade absoluta a ser obedecida e o fundamento do
Islamismo (“islã” significa “submissão à vontade de Deus”).
Glossário
Após a morte de Maomé, o movimento islâmico passou a ser liderado pelos califas
(“sucessores”), e um objetivo maior passou a ser perseguido: fazer com que todos os homens
reconheçam que Alá é o único Deus e Maomé o seu profeta. Para isso formaram-se exércitos
árabes, pois a verdade do Islã deveria ser propagada, ainda que para isso fosse preciso o auxílio
da espada. Iniciava-se, desta forma, o que viria a se configurar em guerra santa. Em pouco mais
de um século de existência, o Islamismo já havia feito grandes conquistas religiosas e
territoriais. Uma delas foi Jerusalém, com seus lugares sagrados, invadida e dominada pelos
árabes no ano 638, sob a liderança religiosa do califa Omar.
Dois anos depois, com a conquista de Cesareia e Gaza, toda a região estava sob o domínio do Islã.
No início, não houve perseguição nem a cristãos nem a judeus que habitavam a Terra Santa pelo
fato de serem também monoteístas. Ao entrar em Jerusalém, o califa Omar decretou: “os
cristãos terão garantidos os seus bens e suas igrejas ... Os judeus podem morar em Jerusalém
junto com os cristãos, desde que respeitem o Profeta e o Corão”. Proibiu-se, entretanto, que os
cristãos fizessem propagação da sua fé entre os muçulmanos e que estes viessem a se converter
ao Cristianismo ou ao Judaísmo. Mais tarde, no lugar do antigo templo dos judeus, os árabes
construiriam duas mesquitas, sendo a de Omar considerada o terceiro mais importante
santuário do Islã, por acreditarem que daquele lugar o profeta Maomé ascendeu ao céu, logo
depois de sua morte.
Toda a igreja imperial do Oriente sucumbiu perante o Islã: o Egito e o Norte da África, Damasco,
Pérsia; parte da França e Espanha, também trocaram o Evangelho pelas leis do Corão. Os
principais centros da fé cristã antiga, como Jerusalém, Antioquia (Síria), Alexandria (Egito) e
Cartago (África), foram dominados por essa nova religião, restando apenas Roma e
Constantinopla, sendo que esta última viria também a ser conquistada pelos turcos otomanos,
em 1453.
Com o controle das regiões que haviam sido o berço da fé cristã, a partir do século VIII, cristãos e
judeus passaram a ter cada vez mais dificuldades para realizarem peregrinações à Terra Santa.
Por isso, a partir do século XI, os cristãos passaram a organizar movimentos conhecidos como
“Cruzadas”, que duraram dois séculos (1096-1291), visando a libertação daqueles territórios. A
organização da primeira cruzada se deu no ano de 1096, por convocação do Papa Urbano II. Foi
constituída por um exército de cristãos que totalizou 20 mil homens e mulheres, os quais
marcharam para Jerusalém, em uma caminhada que durou mais de dois anos. O historiador
Martin Dreher descreve os episódios e as mobilizações que marcaram algumas das cruzadas:
O primeiro grupo partiu da França e era composto por 20.000 homens e mulheres. Seu líder era um
eremita de nome Pedro de Amiens, um dos muitos pregadores ambulantes da época. Pedro e todos os
seus seguidores queriam ir para Jerusalém, a fim de esperar a libertação de Sião e milagres. Não tinham
dinheiro, nem alimentos, mas muita fome. Houve depredações, saques e mortes por onde passaram.
Depois de muitas dificuldades chegaram à Ásia Menor, onde foram dizimados pelos turcos [...] Em 1097
formou-se um grupo com 12.000 homens e mulheres. A caminhada até Jerusalém levou dois anos. Em 14
de julho de 1099 Jerusalém foi tomada. Como era uma sexta-feira, todos se lembraram da crucificação
de Jesus e, por isso, organizaram uma matança feroz contra a população muçulmana. Não houve
sobreviventes. Os judeus haviam se refugiado em sua sinagoga. Ela foi posta em chamas. Todos
morreram. Finalmente, esse bando, manchado de sangue, entrou na Igreja do Santo Sepulcro para se
Na verdade, o objetivo da libertação da Terra Santa jamais foi alcançado, pois tudo o que
conquistaram voltaram rapidamente a perder. Ainda mais sete cruzadas foram organizadas sem
que obtivessem maiores êxitos, pelo contrário, quase todas tiveram um fim trágico,
principalmente para os cristãos do Ocidente. A partir desse momento, a Palestina ficou
exclusivamente debaixo do controle islâmico, que fez definitivamente de Jerusalém um dos
lugares sagrados de sua fé.
SAIBA MAIS: A Palestina nos dias atuais
Foi neste período que surgiu o líder Yasser Arafat, que criou, no
final dos anos 60, a Fath, movimento guerrilheiro islâmico que se
tornou a espinha dorsal da Organização para a Libertação da
Palestina (OLP). Nos anos 70, ele colocou a questão da Palestina
no centro das atenções mundiais com uma sangrenta campanha
terrorista contra Israel, momento em que os países árabes
chegaram a fazer um boicote nas exportações de petróleo. Porém
no final dos anos 80, desistiu do plano de riscar o Estado judeu do
mapa. Já nos anos 90, Arafat começou a procurar acomodação
com o inimigo, passando a buscar acordos de paz, chegando a
receber, inclusive, o Prêmio Nobel, ganho em parceria com o
israelense Itzhak Rabin pelos acordos de paz assinados em 1993.
Nesses acordos, Rabin concordara em ceder, aos poucos, os
territórios ocupados enquanto a OLP, por sua vez, passaria a
reconhecer o Estado israelense. O assassinato de Itzhak em 1995,
por um judeu fanático, atravancaria novamente os processos de
paz.
A lógica, portanto, foi: se o mundo não era mais o inimigo do cristão, então o cristão é quem
deveria estabelecer inimizade com o mundo. Os eremitas (monges) tornaram-se os novos
mártires, à medida que se afastaram do mundo, opondo-se ao seu sistema e estilo de vida,
optando pelo deserto, cujas expressões eram: fuga, silêncio e oração.
Henri Nouwen (2004, p. 12-13) relata que a fuga para o deserto era o meio de evitar a tentadora
conformidade ao mundo. Antão, Agatão, Macário, Poemen, Teodora, Sara e Sinclética foram
líderes espirituais no deserto. Ali se tornaram um novo tipo de mártires: testemunhas contra os
poderes destrutivos do mal, testemunhas do poder salvífico de Jesus Cristo. Desta forma, seu
objetivo principal era: viver sempre em pureza e morrer em paz!
2.2. Ocidente: monasticismo beneditino
O monasticismo ocidental, por sua vez, nasce por volta do VI século, através do modelo legado
pela regra de Benedito de Núrsia, ou simplesmente São Bento. Inicialmente, bebeu dos ideais e
paradigmas de seu homônimo oriental. Mas logo se distanciou deste, especialmente em quatro
aspectos, destacados por Justo González (1991, p. 39-41):
Primeiro,o espírito prático dos romanos. Muito acostumados com a vida cotidiana,a colocar a
“mão no arado”
,os romanos rejeitavam o espírito ascético oriental,de flagelação do corpo para
elevar o espírito. Para eles o ascetismo deveria servir de apoio e fortalecimento (do corpo) para
os enfrentamentos da vida humana secular.
Quarto,o monasticismo ocidental não vivia em permanente tensão com a igreja hierárquica;
embora fosse uma expressão diferencial dessa igreja,ainda se mantinha fiel aos seus princípios
fundamentais, isto é,submisso à hierarquia eclesiástica.
Era essencialmente comunitário,bem organizado e estruturado. O labor dos monges era algo
extraordinário e exemplar. O trabalho era uma atividade sagrada,obra do Senhor. Havia uma
união entre o trabalho intelectual,o trabalho físico,braçal,na lavoura,nas edificações e serviços
do mosteiro,e o trabalho espiritual,de oração,muito importante aos monges beneditinos. A
oração era o alimento para a vida,para o enfrentamento das intempéries do tempo e das
circunstâncias existenciais.
Segundo Richard Niebuhr (apud Bosch, 2002, p. 283), o monasticismo salvou a igreja medieval
daquilo que seria a petrificação e perda da visão e caráter revolucionários do cristianismo. Bosch
(2002, p. 285-286), por sua vez, aponta algumas razões para isso. Destaca que o monasticismo
pode ser considerado como um agente missionário no mundo medieval devido:
Primeiro, à alta estima que os monges gozavam entre a população geral. Com a Era
Constantiniana, os monges passaram a ocupar o lugar antes reservado aos mártires, aos
olhos dos cristãos. Os monges representavam uma vida cristã austera, e eram aqueles que
repeliam os “inimigos espirituais” dos muros da cidade.
Segundo, ao seu estilo de vida exemplar, que alcançou principalmente os camponeses. Veja
essa frase de um monge celta chamado Columbano (543-615): “Aquele que diz crer em
Cristo deve andar como Cristo andou, pobre, humilde e pregando sempre a verdade”. O
interessante aqui é que, ao invés de arrancar de forma violenta, procurava-se transformar
as crenças dos camponeses, relacionando-as com a liturgia e calendário cristãos.
Terceiro, aos mosteiros, que eram centros de trabalho, mas também de cultura e educação.
Cada mosteiro constituía um vasto complexo de edificações, igrejas, oficinas, armazéns e
asilos que beneficiavam toda a comunidade adjacente. A antiga tradição de estudo
encontrou refúgio nos monastérios. “O monastério incorporou o ideal da ordem espiritual
e da atividade moral disciplinada que, com o tempo, permeou a igreja toda, deveras, a
sociedade em sua íntegra”.
Quarto, paciência, obstinação e perseverança dos monges. Houve ataques dos povos
bárbaros, no séc. VI, que se sentiam atingidos com o sucesso dos mosteiros. Noventa e
nove de cem monastérios poderiam ser destruídos (e vários realmente foram), mas a
teimosia e forte persistência dos monges faziam com que nenhuma causa fosse
considerada perdida. Tudo poderia ser retomado e reconstruído pelos sobreviventes, que,
mesmo em meio a muitas limitações e dificuldades, conseguiam se reerguer e manter viva
a tradição monástica.
Todas essas atitudes eram missionárias, sem pretender sê-las. Ou seja, seguindo Bosch (2002,
p.286), embora essas comunidades monásticas não fossem intencionalmente missionárias,
quer dizer, criadas com o propósito da missão, elas estavam impregnadas de uma dimensão
missionária. Com suas principais marcas: peregrinação, comunidade, reflexão, ascetismo,
contemplação ao Divino e sua Criação, essas comunidades realizaram a missão de Deus. É bom
que isso seja ressaltado, antes que o período medieval passe como um período árido da igreja em
termos de cumprimento dos propósitos para os quais foi criada.
Não restam dúvidas de que a Idade Média foi um período em que a igreja e os cristãos se viram
envoltos em uma série de problemas das mais diversas ordens, como já vimos até aqui. E talvez
esses problemas (e os julgamentos a eles correspondentes) sejam muito mais evidentes para
nós, mesmo enxergando a séculos de distância, que para os cristãos daquela época. A avaliação
sobre este contexto, não pode ser de todo negativa, como ressalta Bosch:
Havia algo errado com a ideia de tentar criar uma civilização cristã, de moldar as leis de acordo com o
indubitável que o paradigma analisado neste capítulo tem seu lado obscuro, mas ele também ofereceu
contribuições positivas. Além disso, precisa-se entender que era lógico as coisas se desenvolverem dessa
maneira após a vitória de Constantino; ademais, era inevitável, dadas as circunstâncias, que assim
lembremos que não nos teríamos havido melhor que eles (2002, p. 291).
Glossário
Como visto nas unidades anteriores deste curso, no período “medieval” ou Idade Média, que
corresponde aos séculos V e XV, desenvolveu-se o catolicismo marcadamente
institucionalizado, com acentuada estrutura hierárquica, sustentada na figura papal e no
clericalismo de bispos e sacerdotes. Nesse mesmo período, também, foi marcante a vivência de
um cristianismo mais popular, folclórico, profundamente arraigado em imaginários religiosos
sincréticos, com fortes raízes fincadas no elemento da magia. Isso porque, especialmente, a
partir do século IV, quando o cristianismo se tornou religião lícita e oficial do Império Romano,
desenvolveu-se um intenso e crescente processo de aculturação entre doutrinas cristãs e
antigas práticas cúlticas que permeavam o universo religioso do mundo greco-romano.
No chamado “período áureo” da Idade Média, verificam-se vários prejuízos à missão da igreja. A
preocupação da igreja voltou-se quase que exclusivamente para a elaboração dogmática da
teologia, fundamentada em categorias filosóficas, sob forte influência da metafísica. O que mais
importava era o Cristo triunfante e transcendental, e não o Jesus histórico. Há também, nesta
época, forte interesse pela vida monástica, a qual levava os cristãos a fugirem do mundo e seus
conflitos, com o propósito de se dedicarem à purificação e contemplação nos desertos.
Diante desse quadro, alguns dos fatores podem ser destacados como preponderantes para um
anseio por mudanças ou reformas, que prepararam, inclusive, o advento da Reforma Protestante
do século XVI.
Segundo, pelas disputas e corrupção do poder. Após Constantino, os clérigos passam a ter
remuneração do Estado, constroem-se suntuosos templos, o poder religioso passa a estar
atrelado ao poder político etc. A igreja alia-se ao Império Romano, contra o qual deixa de exercer
função profética de denúncia e reivindicação — o Estado passa agora a beneficiá-la. A igreja
desempenha em tal sociedade, a partir de então, um papel semelhante ao da velha religião
estatal, ou seja, concebendo Cristo apenas como um rei celestial que dá apoio ao imperador
cristão que governava em seu nome. A missão histórica de Jesus foi por isso obscurecida, e a
missão legítima da igreja também o foi, na mesma proporção.
Terceiro, se observa o que se pode chamar de “adesão sem conversão”, ou seja, inúmeras
pessoas passaram a aderir ao cristianismo por conveniência ou status, afinal, era agora a
“religião do Imperador”. Com isso, trouxeram consigo para o âmbito da igreja antigas crenças,
especialmente as que estavam associadas às divindades femininas no panteão greco-romano.
Foi assim que o culto a Diana, tão popular na cidade de Éfeso, por exemplo, foi substituído a
partir do século V pelo culto a Maria mãe de Jesus; também os antigos deuses protetores das
cidades foram substituídos pelos “santos protetores” cristãos, no caso, os apóstolos e mártires;
e ainda, a veneração de objetos e imagens como elementos do culto.
Quarto, Jesus deixa de ser o único mediador (também a mãe de Jesus e os apóstolos,
especialmente passam a exercer tal função); surge a figura papal, como representante de Cristo
na Terra; a Bíblia passa a ser lida somente em latim e pelos clérigos, ficando, portanto, distante
do povo; a justificação passa a se dar também por obras, daí as penitências, os autoflagelos, as
indulgências como meios de redimir pecados.
Quinto, surge ainda a doutrina do purgatório, mediante a qual era dada a oportunidade de
salvação após a morte àqueles que não se preparam devidamente em vida.
Saiba mais
Sobre o Purgatório: A crença na possibilidade de redimir certos
pecados após a morte não tem fundamentação nas escrituras
bíblicas. Entretanto, alguma expectativa esse respeito pode ser
localizada no livro de origem judaica de 1 Macabeus, não
cononizado pela escola judaica de Jamnia, nos anos 80 d.C., nem
pelo Concílio cristão de Cartago, em 397, que definiu o conjunto
de textos do Novo Testamento. Neste livro, há a seguinte
referência:
43. Em seguida, fez uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de dez mil
46. era esse um bom e religioso pensamento; eis por que ele pediu um
“Se alguém pra ferir alguma palavra contra o Filho do homem ser-
lhe-á perdoado; mas se alguém falar contra o Espírito Santo, não
lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no porvir” (Mt
12:32).
“Antes de tudo, pois, exorta que se use a prática de súplicas,
orações, intercessões, ações de graça, em favor de todos os
homens”. (1 Tm 2:1)
Sexto, pode ser citado ainda o surgimento da Inquisição, que se constituía num tribunal
eclesiástico que dava à igreja o direito de punir e de matar, se preciso fosse, àqueles que
ousassem questionar as doutrinas canônicas ou a verdade que pertencia de forma exclusiva e
absoluta à igreja medieval.
Sétimo, grande apego à magia. Segundo o sociólogo Leonildo Campos, nesse período, a
assimilação da fé cristã pela população rural, mediante a catequese, “formou uma camada de
verniz sobre uma antiga realidade religiosa” (1977, p.170), desencadeando um intenso apego às
relíquias como fetiches de proteção, com caráter mágico, objetos esses que supostamente
teriam sido utilizados pelos apóstolos ou outros mártires do cristianismo e que eram, então,
guardados nos lares dos devotos com o sentido de proteção contra doenças, contra infortúnios
do demônio ou como ajuda contra as intempéries que poderiam ameaçar as colheitas. Esta
“magia” dos objetos desencadeou um verdadeiro comércio de amuletos. Leonildo Campos
descreve este cenário de magia:
Multiplicaram-se os cultos às relíquias sagradas, verdadeiros fetiches milagrosos, aos quais se atribuíam
poder de curar enfermidades e proteger as pessoas dos perigos. Esses objetos, que pensavam terem
pertencido aos santos ou simplesmente por terem sido usados na missa, eram trocados, presenteados,
roubados, vendidos ou comprados. Muitos deles eram empregados com as mais diversas finalidades,
desde o auxílio no trabalho de parto até na cura de peste no gado bovino ou afastar epidemias de seca,
O historiador inglês Keith Thomas (1991, p.36). também afirma que no contexto da Idade Média
as relíquias sagradas tornaram-se fetiches milagrosos, tidos como dotados do poder de curar
enfermidades e proteger contra perigos; atribuía-se igualmente uma eficácia miraculosa às
imagens. A representação de são Cristóvão, que com tanta frequência ornamentava as paredes
das igrejas das aldeias inglesas, supostamente concedia um dia de imunidade à doença ou à
morte a todos os que a fitassem.
Este mesmo autor constata que no mundo medieval havia se desenvolvido um “amplo leque de
fórmulas para atrair a bênção prática de Deus sobre as atividades seculares”, acrescentando.
Keith Thomas descreve algumas destas práticas carregadas de magia e simbolismo:
O ritual básico era o benzimento com sal e água para a saúde do corpo e expulsão dos maus espíritos.
Mas os livros litúrgicos da época também traziam rituais para benzer casas, gados, culturas,
embarcações, ferramentas, armas, cisternas e fornalhas. Havia fórmulas para abençoar homens que se
preparavam para sair em viagem, para travar um duelo, para entrar em batalha ou mudar de casa. Havia
métodos para abençoar os doentes e tratar de animais estéreis, para afastar o trovão e trazer a
fecundidade ao leito matrimonial [...] Fundamentalmente em todo esse procedimento era a ideia de
exorcismo, o esconjuro formal do demônio, expulsando de algum objeto material por meio de preces e
da invocação do nome de Deus. A água benta podia ser utilizada para afastar maus espíritos e vapores
Observa ainda que, no período entre os séculos XVI e XVII, da história inglesa, os objetivos pelos
quais a maioria dos homens recorria a sortilégios e a feiticeiros eram precisamente aqueles para
os quais “não havia alternativa técnica adequada”. Assim, na agricultura, o lavrador que
normalmente confiava em suas próprias habilidades e perícias, quando ficava dependente de
circunstâncias fora do seu controle — a fertilidade do solo, as condições meteorológicas, a
saúde do gado —, ele se mostrava mais propenso a acompanhar suas atividades normais com
alguma precaução mágica. Na ausência de herbicidas, “havia encantamentos para manter a erva
daninha distante das plantações”, e, em lugar de inseticida e raticida, “havia fórmulas mágicas
para afastar as pestes”. Havia também sortilégios para aumentar a fertilidade da terra, além de
precauções rituais que rodeavam a caça e a pesca, “atividades especulativas, isto é, incertas
ambas” (Thomas, 1991, p.175).
Na igreja a situação não era muito diferente. O que se contempla é o declínio da igreja
institucional, que havia se transformado em uma monarquia e rivalizava com as nações-estado
emergentes na época. Emergentes, também, foram alguns movimentos que despontaram da
periferia eclesiástica nesse período. Foram, em parte, movimentos de contestação e, em parte,
de assentimento à ordem estabelecida.
O termo Albigense se deve o local de surgimento deste movimentô a cidade de Albi,na França, no
século XII. Também ficaram conhecidos como Cátaros (termo grego que significa “puros). Um
movimento de leigos os quais começaram a ler a Bíblia,traduzindo trechos do evangelho para a
língua francesa; denunciavam que o papa e os clérigos não tinham exclusivamente acesso a
Deus; criticaram a corrupção do clero; celebravam a ceia,o batismo,negavam a veneração de
imagens. Esse movimento foi responsável pela organização mais sistematizada do tribunal da
Santa Inquisição, sob ordens do papa Inocêncio III, com o intuito de combater como hereges os
albigenses e, em seguida, também os valdenses. Perseguidos da França se espalharam para
outras regiões da Europa,funcionando como “comunidades cristãs secreta .
3.2.2. Os Valdenses
Sua atitude impressionou vivamente seus amigos. Em 1177, um grupo de homens e mulheres
juntou-se a ele, pregando o arrependimento. Eles mesmos se auto-intitulavam “Pobres de
Espírito”. Dirigiram-se ao Concílio Lateranense, em 1179, solicitando a permissão para pregar. O
pedido foi indeferido. Pedro e seus fraternos entenderam aquilo como a “voz do homem em
oposição à voz de Deus” (Walker, 1981, p. 324). Continuaram a pregar. Considerados desertores,
todos foram expulsos da igreja, em 1184, pelo papa Lúcio III (1181-1185).
Vindo a Reforma, os valdenses, que haviam se expandido em meio à forte repressão da igreja
para fora de sua região de origem, aceitaram seus princípios e se tornaram protestantes.
3.2.3. Os Dominicanos
Em 1215, amigos presentearam-no com uma casa em Toulouse. Ali realizou os primeiros
trabalhos de treinamento e discipulado. Com a permissão do Papa Honório III (1216-1227) —
embora não sem resistência e lutas — criou então uma ordem de pregadores, que logo recebeu o
nome de “ordem dos dominicanos”.
Quando Domingos faleceu (1221), a ordem já contava com sessenta casas espalhadas em oito
províncias. Sua marca característica era o zelo no estudo e a ênfase na pregação e no ensino.
Trabalhou nas cidades universitárias e logo se viu bem representada nos corpos docentes das
universidades.
3.2.4. Os Franciscanos
Se grande foi o prestígio dos dominicanos, maior ainda talvez tenha sido a honra e aceitação
popular alcançada pelos franciscanos e, de modo especial, pelo seu fundador Francisco (1182-
1226).
Ele não era monge, nem clérigo; era um leigo, que fazia questão de assim permanecer para
evangelizar os leigos abandonados pastoralmente, em especial, os pobres (Bo , 2002, p. 136).
Surge não do centro do poder, mas da periferia da igreja institucional, como a maioria dos
movimentos de renovação da igreja na história, como ressalta Bo (2002, p. 13): “É na periferia
que eclodiram os grandes profetas, nasceram os movimentos reformadores e onde viceja o
Espírito. A periferia possui um privilégio teológico, pois nela nasceu o filho de Deus”.
Iniciou seu movimento na “igrejinha de Porciúncula”, a mais pobre das igrejas de Assis, cidade
natal de Francisco. Durante uma peregrinação a Roma, em 1206, ele julgou ter ouvido a voz
divina, o próprio Cristo dizendo: “Francisco, vai e repara minha igreja porque, como vês, está em
ruínas”. Foi o que, intuitivamente, ele fez.
O franciscanismo foi um movimento de contestação à igreja, por ser uma ordem monástica das
ruas, fora dos mosteiros, pregando a pobreza voluntária, defendendo o direito dos pobres e
necessitados e vivendo ao lado deles, formando uma comunidade de fraternos e iguais.
Uma de suas petições mais frequentes era para que: “No nosso gênero de vida, ninguém seja
prior, mas todos sejam designados indistintamente como irmãos menores e se lavem os pés
uns dos outros” (apud Bo , 2002, p. 141). Sua contestação se firmava principalmente contra as
formas de poder e controle clerical, e contra as riquezas e benesses usurpadas pela igreja, em
sua associação com os poderes seculares.
Glossário
Há uma história de uma conversa entre o papa (Inocêncio III) e Francisco, em que o primeiro
disse: “Veja, no tempo de Pedro se dizia que a igreja não possuía nem ouro e nem prata. Hoje,
temos ouro e temos prata”, argumentou ele apontando para uma suntuosa basílica recém
edificada; Francisco, por sua vez, respondeu: “Na mesma proporção em que podes afirmar
agora possuir ouro e prata, já não podes, porém, dizer ao paralítico: ‘Levanta-te e anda’”.
Na Inglaterra do séc. XIV surgiu o pré-reformador João Wycli (1328-1384), que estudou e
ensinou em Oxford durante grande parte de sua vida. Ali ele desenvolveu suas atividades como
padre e como professor universitário.
Afirmou em um de seus livros que “Cristo e não o Papa era o chefe da igreja”, e que “a Bíblia e
não a Igreja era a autoridade única para o crente e que a igreja Romana deveria se modelar
segundo o padrão da Igreja do Novo Testamento” (Cairns, 1995, p. 206).
Como suporte a esses ideais, tomou duas importantes medidas: a tradução completa do Novo
Testamento para o inglês; a criação de um grupo de pregadores leigos, os “lolardos”, que deram
continuidade às ideias de Wycli por toda a Inglaterra e região.
Glossário
John Huss (1373-1415), que também era originário da mesma região, tendo estudado e
lecionado na Universidade de Praga, leu e adotou as ideias de Wycli e, tal como ele, também se
propôs a reformar a Igreja Romana em sua região, o que lhe rendeu a inimizade do papa. Muitos
de seus livros foram reproduções quase literais dos livros de Wycli (como a sua obra Sobre a
Igreja, de 1412). Em 1413, um sínodo romano condenou formalmente os escritos de Wycli . Huss
foi condenado à morte e executado (queimado vivo), após haver negado a se retratar de suas
colocações no Concílio de Constança (1415). Jonh Huss foi queimado vivo em 1415. Conta a
história que ao ser levado para a execução teria pronunciado uma frase profética, mais ou menos
nos seguintes termos: “dentro de um século Deus levantará alguém cuja voz não poderão calar”.
Exatamente um século depois, Martinho Lutero deflagraria o golpe final nas estruturas
eclesiásticas que ainda resistiam às reformas que se faziam urgentes.
Todos esses têm sido chamados de precursores da Reforma. Não há dúvidas de que merecem
esse nome visto que representaram, em seu tempo e de maneiras próprias, uma contestação à
igreja: ao defenderem o direito do pobre, ao resistirem à ostentação de poder e riqueza
eclesiástica, ao se preocuparem com a espiritualidade do povo, ao abrirem acesso à Palavra de
Deus, e assim por diante.
Mas também é verdade que todos foram homens e mulheres (visto que alguns movimentos,
como o dos franciscanos, acolheram mulheres) de seu tempo, atendendo a demandas muito
peculiares. E, como tais, tiveram suas limitações, que nos impedem de os associar diretamente à
Reforma do século XVI. Indiretamente, porém, plantou-se uma semente, preparou-se um
terreno.
Diante de um quadro religioso e teológico que não mais se fundamentava nas escrituras bíblicas
como única regra de fé e prática, surgiram movimentos de reforma dentro da própria igreja
medieval, antes mesmo da Reforma Protestante que viria a ocorrer no século XVI.
Como vimos, desde meados do século XII, movimentos que nasceram da periferia da igreja
institucional começaram, através da pregação e, sobretudo, do estilo de vida que passaram a
imprimir, a ser considerados movimentos de contestação à ordem estabelecida. Começando pela
iniciativa de pessoas como Domingos, Francisco, Valdo, Huss, Wycli , dentre outros,
conhecidos ou anônimos, vimos que surgiram aqui e acolá genuínas buscas por servir a Deus e a
seu reino em meio ao governo temporal da igreja (que muitas vezes militou contra o próprio
reino).
BOSCH, David. Missão transformadora. Mudanças de paradigma na teologia da missão. São Leopoldo:
EST; Sinodal, 2002.
BOFF, Leonardo. São Francisco de Assis: ternura e vigor. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
CAIRNS, Earle. O cristianismo através dos séculos. São Paulo: Vida Nova, 1995.
CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento
neopentecostal. Petrópolis: Vozes, 1997.
GONZALEZ, Justo. A era das trevas. São Paulo: Vida Nova, 1988.
GONZALEZ, Justo. A era dos mártires. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992.
VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995.
NOUWEN, Henri. A espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2004.
PROENÇA,Wande de Lara. Terra Santa:o histórico conflito entre as religiões monoteí stas. Revista Voz no
Deserto,2006.
WALKER, W. História da igreja cristã. Vols. I, II. Rio de Janeiro: JUERP, 1981.
Texto complementar
GONZALEZ, Justo. O Monasticismo Beneditino. A era das trevas. Vol. 3. São Paulo: Vida Nova,
p.39-59