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Apostila: História do Cristianismo I (PDF)

Bem-vindo(a) à disciplina de História do Cristianismo I!

Nela você estudará prioritariamente aspectos históricos ligados à fé cristã nos


períodos antigo e medieval, buscando também fazer conexões de análise com a
realidade da igreja em outras temporalidades.

APR ESEN TAÇÃO DA DISCIPLIN A

Apresentação da disciplina

UN IDADE 1 - CR ISTIAN ISMO AN TIGO - PAR TE I

Introdução à unidade 1

1. O estudo da História. O Cristianismo Antigo e Medieval

2. O contexto sociocultural do Cristianismo antigo: o ambiente greco-romano

3. Contexto religioso em que se desenvolveu o Cristianismo antigo

4. Crescimento do movimento cristão em seus primórdios

UN IDADE 2 - CR ISTIAN ISMO AN TIGO - PAR TE II

Introdução à unidade 2
1. Con itos entre Cristianismo e Império Romano

2. Liturgia e espiritualidade na igreja antiga

3. O desenvolvimento doutrinal do Cristianismo antigo

4. O papel dos Pais da igreja: por uma igreja el às origens apostólicas

Considerações nais

UN IDADE 3 - CR ISTIAN ISMO MEDIEVAL

Introdução à unidade 3

1. Como se deu o surgimento do catolicismo romano?

2. Como se caracterizava a igreja medieval institucional e como era a religiosidade do povo?

3. Doutrinas e ritos praticados na Idade Média

Considerações nais

UN IDADE 4 - CR ISTIAN ISMO MEDIEVAL

Introdução à unidade 4

1. O surgimento do Islã e as cruzadas medievais

2 - Vida monástica: por uma espiritualidade voltada à simplicidade e ao próximo

3. Movimentos pré-reformadores: por um retorno doutrinal e eclesiástico às origens apostólicas

Considerações nais
Apresentação da disciplina

História do Cristianismo I

Bem-vindo(a) à disciplina de História do Cristianismo I!

Nela você estudará prioritariamente aspectos históricos ligados à fé cristã nos períodos antigo e
medieval, buscando também fazer conexões de análise com a realidade da igreja em outras
temporalidades.

Dentro da organização curricular da FTSA, a contextualização tem um papel muito


representativo, pois seu ensino está comprometido em oferecer uma educação contextualmente
direcionada às necessidades das igrejas brasileiras e latino-americanas. Para análise da
realidade, o conhecimento histórico é preponderante, pois possibilita a compreensão do
desenvolvimento social, político, cultural religioso que configurou esta realidade. Permite que se
conheça a realidade, fundamente sua interpretação e, por conseguinte, oriente a ação
transformadora em contextos do tempo presente, visto que a missão da igreja é continuidade de
práticas que nos antecederam no transcurso dos tempos. Neste sentido, a FTSA desde suas
origens não abre mão do legado teológico produzido pelo processo histórico no advento da
Reforma Protestante do século XVI, mas, igualmente, considera preponderante que essa
teologia, que deve estar sempre se reformando, seja interpretada e relida a partir das
especificidades do ambiente latino americano.

A história possibilita compreender como a igreja, em outras temporalidades, vivenciou a fé, a


espiritualidade, praticou seu culto, formulou sua teologia e cumpriu sua missão, agindo em favor
de um mundo mais justo e pleno de vida, pelas prerrogativas do reino de Deus, promovendo
assim transformações em perspectiva integral. Deste modo, a disciplina histórica serve de
referência para as demais, pois é transversal aos diferentes conteúdos que compõem a matriz
curricular do curso teológico. Por ser também crítica da realidade, contribui para ensinar que o
movimento cristão experimentou situações de luta, crises e desafiadores comprometimentos;
fala de perseguições sofridas que ameaçaram sua subsistência, assim como de perseguições que
ele mesmo empreendeu, em dados momentos, contra os que se lhe opuseram ou não se
moldaram a seus dogmas.

O trabalho do estudante de história consiste em estabelecer uma relação de interrogação


recíproca entre presente e passado, promovendo uma problematização, evitando os simplismos,
triunfalismos e determinismos, tendo em vista que o presente não é mera repetição de
fenômenos ou acontecimentos passados. Como uma metáfora do estudo da história, das
relações entre passado e presente, ou das permanências e rupturas ocorridas no tempo, os
historiadores costumam citar o exemplo do palimpsesto. Palimpsesto é uma palavra grega usada
para identificar o que ocorria com a escrita em pergaminhos: uma antiga escrita, depois de ser
apagada para dar lugar a um novo registro, com o passar do tempo reaparecia, permitindo sua
leitura interposta ao novo relato, mesmo em tempos muito posteriores. A analogia do
palimpsesto é usada para demonstrar como determinadas práticas podem reaparecer em
tempos subsequentes, não como mera repetição, mas de forma ressignificada, com novos
sentidos, mesmo que já tenha sido considerada superada ou apagada pelo tempo. São os
processos de rupturas e permanências que caracterizam o transcurso histórico.
Na estrutura curricular da FTSA, o curso de história está distribuído em três disciplinas. A parte I
concentra-se nos primórdios do movimento cristão em evidência no ambiente judaico e greco-
romano, avançando até o mundo medieval, quando ocorre a consolidação da cristandade. Em
história II, os conteúdos focam os processos que envolveram a Reforma Protestante e seus
desdobramentos no mundo ocidental, nisto incluindo os movimentos que marcaram os séculos
XVIII e XIX, como avivamento e impulso às missões modernas. E, finalmente, a parte III
abordará a presença do Cristianismo no contexto brasileiro e na América Latina, com
caracterização dos grupos que deram origem ao cenário religioso hoje em evidência: católicos,
protestantes e pentecostais, em suas diversas tipologias.

A mensagem que teve início na Galileia, passou por Jerusalém, e como Jesus havia predito,
chegou até “aos confins da terra” (At 1:8). A disciplina de História possibilitará compreender
como isso foi possível, guiando-nos numa travessia de 21 séculos pelos caminhos desafiadores
que o tempo desenhou. Você, estudante, é nosso(a) convidado(a) a dar os primeiros passos
nesta fascinante jornada a partir de agora.

Prof. Dr. Wander de lara Proença


Introdução à unidade 1

Esta unidade tem como principais objetivos conhecer aspectos conceituais que orientam o
estudo da História; identificar aspectos característicos do Cristianismo antigo e medieval;
compreender o contexto em que surgiu e se desenvolveu o Cristianismo; apresentar exemplos
históricos da vivência da fé cristã no ambiente antigo e medieval.

Apresentaremos alguns dos procedimentos que orientam o estudo da História. Identificaremos


o contexto de surgimento das primeiras comunidades cristãs, assim como as transformações
que envolveram as práticas do Cristianismo nascente a partir do ambiente judaico, grego e
romano.

Estudar a trajetória do movimento cristão nestes primeiros séculos significa incursão em


temáticas historicamente riquíssimas e desafiadoras, como por exemplo: quem e como viviam
os primeiros cristãos? as relações de conflito com o Império Romano? as estratégias que
utilizaram para a propagação de sua fé? quais desafios enfrentaram em um contexto complexo
de mitologias crenças e correntes filosóficas?
1. O estudo da História. O Cristianismo Antigo e
Medieval

Introdução à unidade
Esta unidade tem como principais objetivos conhecer aspectos conceituais que orientam o
estudo da História; identificar aspectos característicos do Cristianismo antigo e medieval;
compreender o contexto em que surgiu e se desenvolveu o Cristianismo; apresentar exemplos
históricos da vivência da fé cristã no ambiente antigo e medieval.

Apresentaremos alguns dos procedimentos que orientam o estudo da História. Identificaremos


o contexto de surgimento das primeiras comunidades cristãs, assim como as transformações
que envolveram as práticas do Cristianismo nascente a partir do ambiente judaico, grego e
romano.

Estudar a trajetória do movimento cristão nestes primeiros séculos significa incursão em


temáticas historicamente riquíssimas e desafiadoras, como por exemplo: quem e como viviam
os primeiros cristãos? as relações de conflito com o Império Romano? as estratégias que
utilizaram para a propagação de sua fé? quais desafios enfrentaram em um contexto complexo
de mitologias crenças e correntes filosóficas?
1.1 Em que consiste o estudo da História?

A História configura-se no campo de conhecimento que estuda o “tempo”, mais


essencialmente, os acontecimentos e as transformações ocorridos ao longo do tempo. Ou ainda,
como afirmou o influente historiador Marc Bloch: “História é o estudo do ser humano no
tempo”.

Um dos termos da língua grega para a palavra “tempo” é kronos – de onde advém cronologia, que
trata das temporalidades históricas. Essas temporalidades são classificadas para melhor
demarcar os períodos históricos. Para definição dessas escalas temporais, que indicam quando
começa e quando termina uma temporalidade, são convencionalmente propostos alguns
marcos ou acontecimentos representativos. 

Glossário

As divisões cronológicas da História:

1. Pré-história: todo o período que antecede a invenção da


escrita em 3 mil a.C.

2. Período antigo: da invenção da escrita, em cerca de 3 mil a.C.,


até a queda do Império Romano no Ocidente, no século V d.C.

3. Período medieval: da queda do Império Romano no Ocidente

até o fim do Império Romano no Oriente, no século XV,


quando em 1453 os muçulmanos tomaram a cidade
Constantinopla (capital do referido Império.

4. Período moderno: desde a tomada de Constantinopla até a


Revolução Francesa, em 1789.

5. Período contemporâneo: da Revolução Francesa aos dias

atuais.
Fica caracterizado, pelos episódios indicados acima, que os critérios usados são indicativos de
mudanças (com dimensões geralmente políticas ou sociais). Mas isto é algo simbólico, pois não
significa que abruptamente um período se encerra e começa outro absolutamente novo, pois um
determinado período continua existindo ou se estendendo na temporalidade do outro, naquilo
que em História se chama de “continuidades” ou “permanências”. 

Também é importante dizer que outros critérios ou circunstâncias podem ser usados para
distinguir uma temporalidade de outra. Veja o texto de apoio, a seguir.

Texto de apoio

O historiador Martin Dreher, por exemplo, apresenta argumentos


pertinentes sobre isto. Ao invés de indicar a queda do Império
Romano no Ocidente como marco divisor, prefere o ano 529,
como referência simbólica. Diz ele: “Onde começa a Idade Média,
onde termina? No ano 529, um decreto do imperador cristão
Justiniano ordenou o fechamento da academia platônica de
Atenas, que ali funcionara sob esse mesmo nome por nove
séculos. No mesmo ano de 529, aconteceu outro fato de maior
relevância: Bento de Núrsia fundou Monte Cassino – o primeiro
mosteiro Beneditino. O ano é, pois, significativo: sinaliza o final de
um período e aponta para o novo. O fechamento da academia
representaria o fim da “filosofia pagã”; mas a fundação do Monte
Cassino representa a preservação do pensamento dos antigos,
pois é nos conventos que o saber da Antiguidade vai ser
preservado, também a filosofia pagã. Do convento vai surgir a
universidade, centro de estudo e pesquisa. Assim, a Idade Média
é também um período de gestação do novo. A Idade Média
começou com a busca por assimilação de todo o mundo da
cultura da Antiguidade. A Idade Média terminou, assim me
parece, quando esse processo de assimilação chegou ao seu final
[...] As novidades trazidas com o descobrimento de novos mundos,
da parte dos europeus, trouxeram crise para o mundo medieval”
(DREHER, Martin. A igreja no mundo medieval. São Leopoldo:
Sinodal, 1994, p.7-9).

Para o estudo da história são fundamentais as fontes, que servem para o historiador buscar
evidências em sua análise e relato. As fontes para estudo do Cristianismo são diversas, como por
exemplo: os próprios textos neotestamentários, as obras de Flávio Josefo, os achados
arqueológicos dos manuscritos de Qumran, a Didaquê, as catacumbas de Roma, registros de
historiadores não cristãos, correspondências, literaturas não canonizadas, dentre outros. Em
geral, as fontes se dividem em três principais categorias: escritas, orais (tradição transmitida
apenas de forma verbal) e materiais (objetos e vestígios estudados, por exemplo, pela
Arqueologia).

Glossário

1 – Fontes históricas: Documentos ou vestígios que, através de


seus sinais e interpretação, permitem ao historiador reconstruir ou
interpretar a história.

2 – Flávio Josefo: Judeu que viveu entre os anos 37 e 100 d.C, e


liderou a revolta judaica contra Roma, na Palestina, no ano 66.
Posteriormente, capturado pelos romanos, tornou-se autor de
obras importantes sobre os episódios do século I, como a História
dos Hebreus.

3 – Manuscritos de Qumran: Conjunto de textos encontrados em


1947, em cavernas nas regiões do Mar Morto, na Judéia,
preservados em jarros de barro, referentes a uma numerosa
comunidade judaica surgida no ano 150 a.C., conhecida como
essênios, e que existiu até a guerra entre judeus e romanos no
ano 66 d.C. Estima-se que João Batista, personagem do Novo
Testamento, tenha sido membro desta comunidade. As literaturas
encontradas correspondem a todos os livros do Antigo
Testamento, exceto o livro de Ester, além de vários manuais
litúrgicos e o modo de vida da comunidade).

4 – Didaquê: Manual litúrgico elaborado por volta do ano 100 d.C.,


usado pelas comunidades cristãs primitivas nas atividades de
culto e práticas de fé.

5 – Catacumbas de Roma: Túmulos de cristãos sepultados em


cemitérios próximos à cidade de Roma, no período de
perseguição sofrida pela igreja nos três primeiros séculos; no
local, preservam-se pinturas representando símbolos da fé cristã
primitiva, que servem de fontes de análise para a pesquisa
histórica. 

6 – Historiadores antigos não cristãos: Tácito, Suetônio, dentre


outros, que no século II registram informações sobre o
movimento cristão nascente e sua relação com o Império
Romano.

7- Correspondências: Cartas trocadas entre o governador Plínio,


da Bitínia, na Ásia Menor, e o imperador romano Trajano, no século
II, sobre como o Estado deveria agir em relação aos cristãos.

8 – Literaturas não canonizadas: Textos cristãos dos séculos I e II,


como o Evangelho de Tomé, que foi achado em 1945, em um
cemitério copta no Egito, que revelam práticas de comunidades
cristãs em diferentes regiões do mundo antigo.
2. O contexto sociocultural do Cristianismo
antigo: o ambiente greco-romano

A história de conquista, poder e domínio do Império Romano começa com a morte de Alexandre,
chamado de Alexandre O Grande, no século IV a.C. Com a morte deste imperador, o Império
grego foi se fragmentando, possibilitando assim a dominação de um outro poder emergente:
Roma. Mantendo a influência da cultura e língua dos gregos, os romanos tornaram-se
sucessores daquela civilização em todos os lugares conhecidos no mundo antigo, passando a
difundir em regiões extensivas de todo o Mar Mediterrâneo, abrangendo o Ocidente, Oriente,
Ásia e África, os valores da então chamada cultura greco-romana (resultante da fusão entre as
duas culturas) por meio da construção e manutenção desse poderoso Império. Segundo o
historiador Martin Dreher, houve um movimento que foi o grande responsável pela unidade
cultural do Império Romano: o helenismo. Basicamente, trata-se da cultura da era de Alexandre,
quando língua, costumes, utensílios, arte, literatura, filosofia e religião dos gregos foram
disseminados em diferentes lugares do mundo antigo.

Saiba Mais

Siglas que identificam temporalidades:

a.C: antes de Cristo

d.C: depois de Cristo

a.D: anno domini (termo que significa “ano do Senhor”, em


referência à era de Cristo)
No período em que se consolidou como imperador romano, nos anos 40 a.C., Otaviano
estabeleceu uma ordem ansiada por muitos, por meio da chamada Pax Romana. Utilizando-se
do controle das legiões armadas, fez cessar os conflitos nas dimensões do Império através do
uso da força. Em 12 a.C. recebeu o altíssimo cargo sacerdotal de “Pontifex Maximus”. Por meio de
uma votação popular o senado lhe acrescentou ainda: “Augusto pater patriae”. Pouco antes de
morrer, Otaviano Augusto apresentou um relatório retrospectivo de sua política, destacando
orgulhosamente os títulos que recebera como homenagem por sua clemência, justiça e piedade.
Os romanos desenvolveram o culto ao imperador a partir do momento em que este passou a
receber o título de “Augusto”.

Uma inscrição feita na Ásia menor,  em 9 a.C., dizia: “Pode-se colocar o início do ano no
aniversário de César, pois a divina providência trouxe à vida dos homens: paz, salvação, abolição
de guerras. O dia do nascimento do deus foi para o mundo o início de boas notícias”. De acordo
com Dreher (1993), a unidade do Império apresentava-se de maneira visível na figura do
Imperador, que reunia na sua pessoa os principais cargos da antiga república romana.

Glossário

Pax Romana: paz romana

Pontifex Maximus: máximo pontífice

Pontífice: líder religioso supremo

Pater Patriae: pai da pátria

Augusto: venerável, digno de culto.

César: título concedido aos imperadores romanos que


sucederam a Caio Júlio César; designava o sucessor do imperador
reinante.
No ano 14 d.C., ocorreu a morte de Augusto (aos 76 anos de idade). Seu filho adotivo Tibério logo
assumiu o governo, com 56 anos. Sob o seu governo, Pôncio Pilatos foi constituído procurador
da Judéia e da Samaria (26-36 d.C.) – Jesus morreu durante o seu reinado. Em 37 d.C., Calígula
assumiu o governo, com 25 anos de idade: vida dissoluta e aspiração exagerada; quis exigir que
sua estátua fosse colocada no templo de Jerusalém. Sua morte súbita, impediu a realização deste
projeto. Em 41 d.C. foi morto numa revolta palaciana, pela guarda pretoriana, a qual proclamou
Cláudio (tio de Calígula), como César (41-54). 

Em Roma, Cláudio, no ano 49 (d.C.), fez um decreto contra os judeus devido a conflitos surgidos
entre eles. O testemunho do historiador antigo Suetônio - em sua obra Vidas dos Césares -
apresenta as razões dessa medida adotada: “Expulsou os judeus de Roma, por que causavam
agitação contínua, instigados por um certo Chresto” (apud FABRIS, p. 45). Chresto seria uma
referência a Cristo? As circunstâncias parecem denotar esta interpretação: a pregação sobre
Jesus, anunciado como Cristo, o Messias de Israel, teria provocado divisões e conflitos entre
judeus, uma parte ligada ao judaísmo e outra já convertida ao Cristianismo. Fato é que os judeus
foram expulsos da cidade, havendo lá grande comunidade deles. Foram proibidos a eles o culto e
as reuniões sinagogais. Este decreto também envolveu, portanto, os judeus-cristãos. Mais tarde,
Nero revogaria esse edito.

Glossário

Sinagoga: etimologicamente significa “casa do livro”, ou seja,


lugar de ensino da Lei e dos costumes judaicos; as sinagogas
surgiram no período do exílio babilônico sofrido pelos judeus, no
século VI a.C., passando a ter um papel importante na diáspora
(dispersão) decorrente daquele exílio, no propósito de manter a
identidade das tradições judaicas, na ausência ou distanciamento
geográfico do Templo de Jerusalém.
No ano 54 d.C., Cláudio foi envenenado por sua esposa Agripina, que o assassinou para
entronizar seu filho Nero, fruto de seu primeiro matrimônio, adotado por Cláudio. Nero tinha
apenas 17 anos, recebendo, por isso, auxílio de outros na condução de seu governo. Tornou-se
depois descomedido: gostava de apresentar-se publicamente como artista; mandou matar sem
escrúpulos quem se opusesse a ele; instigou a primeira perseguição contra os cristãos em Roma,
incendiando a cidade em 64, culpando por isto os cristãos, perseguindo e condenando à morte
os que eram presos. 

Tácito, historiador antigo, relata as atrocidades praticadas por Nero, mandando, inclusive,
matar membros de sua família; suicidou-se em 68. Tempos depois da morte de Nero, correu o
boato de que na verdade não havia morrido, o que teria sido apenas mais uma de suas
artimanhas. A sua possível reaparição causava terror e pode estar associada à base imaginária
com que o Apocalipse descreve a Besta que ressurge, depois de ter sido “ferida de morte” (Ap
13).

Após sua morte, três generais foram proclamados simultaneamente seus sucessores: Galba
(Espanha); Oto (Roma); Vitélio (Germânia). Nenhum dos três conseguiu aprovação de todo o
Império: o que tornava iminente uma nova guerra civil. Diante disto, Vespasiano (que estava
com suas tropas na Palestina, e com o apoio delas, conseguiu apoderar-se do governo e
estabelecer a ordem, em 69 d.C.

Vespasiano impôs a renovação da instituição do “primeiro sucessor”, criada por Augusto,


assegurando assim a sucessão de seus filhos. Em 79, morre; seu filho Tito - o conquistador de
Jerusalém - tornou-se imperador. Em 81, sucedeu-lhe o seu irmão Domiciano (81-96), que:
procurava sublinhar seu poder absoluto; propagava em público a santidade de sua pessoa,
deleitando-se com a aclamação do povo a si e à sua esposa no anfiteatro, no dia do grande
banquete (“salve nosso Senhor e nossa senhora”); exigia de todos uma cega submissão às suas
ordens; sufocava qualquer movimento de resistência; em 96, foi vítima de uma conjuração. Este
é o imperador que ocupa o poder na época em que o livro do Apocalipse foi escrito. Após sua
morte, operou-se uma mudança: o senado elegeu como imperador um descendente de uma
antiga família romana: Nerva (96-98), correspondendo assim à imagem do soberano movida
pelo pensamento estóico: “o melhor deveria governar em função do bem comum”.

        Em 98, Trajano (Filho adotivo de Nerva) ocupa o poder, nele permanecendo até o ano 117.
Desta forma, pelo método da adoção, assegurava-se a escolha do mais capacitado entre os
candidatos.

Saiba Mais

Continue assistindo ao vídeo: O Império Romano – Parte I. (Série


Curiosidades bíblicas e histórias do Cristianismo). Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=d91zM8qIE_E&t=3s
3. Contexto religioso em que se desenvolveu o
Cristianismo antigo

3.1 Crenças e diversidade de cultos no contexto greco-romano


Desde a antiguidade, o Oriente considerava os soberanos como filhos dos deuses. Por exemplo,
no Egito, o Faraó recebia poder, leis e proteção para governar o seu povo; isso legitimava seu
poder como majestade intocável.

Quanto aos gregos, os deuses adorados por eles não estavam separados dos homens por uma
fronteira bem definida. Homens importantes podiam ser elevados da condição humana à divina,
colocados como heróis na comunhão sagrada, como observado nas mitologias. Acreditava-se
que os deuses vinham até onde estavam os humanos ou desciam à terra em forma humana,
semelhante ao que é observado em Atos 14:11: Paulo e Barnabé, em Listra, após a cura de um
paralítico desde a infância, provocaram a reação de que “deuses em forma humana desceram até
nós”. Alexandre Magno, que difundiu o Império grego, no século IV a.C., já era venerado por
muitos de seus súditos. Sobre o chamado culto estatal, as cidades romanas tinham seus deuses
particulares: construíram-lhes esplêndidos templos; a vontade dos deuses determinava a vida
da cidade e do Estado; festas e espetáculos culturais eram realizados durante o ano em sua
homenagem, das quais algumas, por exemplo, estão associadas aos jogos Olímpicos realizados a
cada quatro anos.

Os deuses romanos participavam ativamente da política e da sociedade. O culto era voltado em


torno do Estado, havendo datas pré-estabelecidas pelo calendário. O culto era obrigação civil.
Durante a época de Augusto, muitos templos foram edificados na Grécia, na Itália, no oriente e
norte da África. Tentava-se forjar uma moral a partir da religião, mas a influências externas
culturais eram muito intensas. Também houve forte influência de cultos estrangeiros, trazidos
do oriente para Roma. Valorizavam-se os sacerdotes, cujos oráculos orientavam as batalhas, por
exemplo. O deus Sol (Hélio) ganhou projeção, na época do Novo Testamento, o qual
correspondia a Mitras (deus persa), ao ponto do próprio imperador se identificar como seu
legítimo filho.

No ano 40 a.C., Herodes O Grande, de origem induméia, convertido ao judaísmo e cidadão


hebreu, que governava sobre os judeus, assinou um acordo deste povo com Roma, no qual foram
assegurados três principais benefícios aos judeus: não trabalhar no sábado, não servir ao
exército romano, não cultuar os deuses do Império (apenas fazer orações em favor do
imperador). Nos primeiros anos de sua existência, comunidades cristãs, formadas também por
judeus, beneficiaram-se destas prerrogativas concedidas a este povo no âmbito do Império
Romano, pois eram vistas pelas autoridades como ramificações do judaísmo. Muitos cristãos,
em função disto, optavam inclusive por realizar a circuncisão, como forma de se proteger de
possível questionamento pela não veneração aos deuses romanos ou pela ausência em
cerimônias religiosas obrigatórias. Posteriormente, porém, à medida que os cristãos cresceram,
tendo a adesão de diferentes povos gentílicos – havendo, também, conflitos entre judeus e
cristãos – estas regalias foram desaparecendo, dando lugar a tensões e conflitos.

No Império Romano, um elemento importante destes cultos eram os sacrifícios e oferendas de


animais, feitos, de modo geral, da seguinte maneira: parte era queimada; parte era dada aos
sacerdotes; outra vendida como carne no mercado; parte era distribuída aos pobres em ocasiões
especiais; desse modo, toda carne era de alguma forma sacrificada. Também se faziam
banquetes no templo, com a presença de parentes e amigos. Esperava-se, com isto, que os
deuses favorecessem o destino dos humanos e afugentassem o infortúnio e a ruína das cidades.

Acontecimentos milagrosos também ocorriam por meio de pessoas consideradas dotadas de


poderes especiais, que irradiavam força divina. Por exemplo, quando o imperador Vespasiano
chegou a Alexandria, no início dos anos 70, pouco tempo depois de tomar posse do governo
romano, um cego pediu-lhe que molhasse seus olhos com saliva, e um paralítico que lhe tocasse
a perna com seu calcanhar. Segundo Suetônio, historiador romano, o imperador atendeu a esses
pedidos, transmitindo força curativa aos doentes, que recuperaram a saúde.

3.2 Religiões de mistério


Paralelamente ao culto oficial desenvolveu-se grande religiosidade popular marcada por intenso
misticismo. No século I era muito forte o medo, a ameaça dos poderes demoníacos, de doenças,
infortúnios etc. As pessoas se sentiam indefesas ante as forças sobrenaturais. Havia a busca por
acontecimentos milagrosos. As religiões de mistério se apresentavam para dar segurança e
meios de proteção, prometendo salvação e oferecendo-lhe força curativa.

Glossário

Cultos de mistério: A expressão decorre do fato de os adeptos


reunidos para determinados atos cultuais guardarem silêncio
absoluto sobre tais atos, nada podendo revelar aos que não
fossem iniciados. Os iniciados recebiam fórmulas sagradas e
sinais simbólicos, que ajudavam na identificação mútua.
Celebrava-se ali o renascimento da pessoa para a eternidade;
acreditava que os deuses sofriam, morriam e ressuscitavam. Estes
elementos criaram aproximações entre os adeptos e a
mensagem que ouviram sobre Jesus. Destes cultos participavam
libertos e escravos, homens e mulheres.

Circuncisão: rito praticado pelos judeus a partir de uma aliança


estabelecida entre Deus e este povo, nos primórdios da narrativa
do Antigo Testamento. Para o menino hebreu, determinava-se a
realização deste rito ao oitavo dia de vida; mas era também
praticado na fase adulta aos homens que se convertiam à fé
judaica. A prática consiste em: realizar de uma pequena “cirurgia”
ou corte do prepúcio no órgão genital masculino, possibilitando
melhores condições de higiene, assepsia e saúde, sendo por isso
considerado um “sinal de vida” e longevidade.

Por exemplo, o deus da cura Asclépio (ou Apolo), era popularmente muito venerado, cujo
símbolo era a serpente. O culto foi introduzido em 19 a.C., devido à grande peste que ocorrera nas
dimensões do Império. Ao redor dos templos deste deus, existiam vários dormitórios onde os
doentes ficavam hospedados, esperando serem curados durante o sono à noite – especialmente
paralíticos, mudos e cegos.

Saiba mais

Exemplo de um rito de iniciação nos cultos de mistério

Um dos rituais que envolvia os cultos de Ísis e Apolo dava-se


geralmente da seguinte maneira: o iniciante fazia votos de
ablução (não comer carne por um determinado tempo, por
exemplo, 10 dias); logo após, o noviço vestia uma roupa específica,
ao pôr-do-sol, e era levado ao salão de culto, sendo que ali,
repetia palavras como: “eu cheguei às proximidades da morte e
com a ajuda da divindade estou agora alcançando a luz
verdadeira”; no dia seguinte, ao clarear do dia, terminada a
celebração, o iniciado apresentava-se ao povo, vestido com uma
estola adornada com a figura do deus Sol. Isto significava que,
através da consagração, nasceu agora como ser divino, cheio de
força e rodeado por brilhante luz; estava agora preparado para um
dia se apresentar a Osíris, o juiz dos mortos.

 O culto a Mitras também se difundiu bastante no Império Romano. Proveniente da Pérsia, esse
culto tratava de luta e vitória, por isso muitos soldados se filiavam a essa religião, levando-a às
fronteiras do Império. Venerado como deus da luz, Mitras era aquele que dissipava as trevas. Era
uma religião de mistério que, ao contrário das demais, só aceitava a filiação de homens, que
eram marcados na fronte com um ferro candente, como um guerreiro. Tornavam-se membros
por meio de um batismo, após o qual podiam participar dos banquetes santos, para os quais a
comunidade se reunia. Após a morte, cada um deveria responder por seus atos perante um
tribunal divino, que os pesaria numa balança antes de permitir-lhes a entrada ou não para o
mundo da luz. Este culto atraía fiéis pelo dever moral que impunha. 
Saiba mais

Mitras e o Cristianismo: o culto a Mitras desempenhou uma


acirrada disputa com o Cristianismo pela conquista de adeptos.
Como será visto em detalhes, mais adiante, esse embate
terminou no 4º século, quando o imperador romano Constantino
– adepto de Mitras – declarou-se cristão e ressignificou ritos
deste culto com ritos cristãos, como, por exemplo, a fixação do
dia 25 de dezembro como o natal de Cristo. Por isso, em muitos
lugares construíram-se templos cristãos sobre santuários de
Mitras, simbolizando a vitória de Cristo.

Em síntese, os cultos de mistério: (a) estavam difundidos em todo o Império; (b) ofereciam
proteção contra o mal e ajuda redentora da divindade; (c) concediam benesses mediante os ritos
praticados pelos iniciados. 
4. Crescimento do movimento cristão em seus
primórdios

Mapa: regiões de expansão do cristianismo entre os séculos I e IV

4.1 As contribuições que o Cristianismo recebeu para se expandir


Costuma-se afirmar que três povos ou civilizações acabaram por contribuir para a expansão do
Cristianismo no contexto em que surgiu: os gregos – pela língua grega, que foi difundida pelo
Império de Alexandre o Grande, facilitando assim a comunicação do evangelho (todo o Novo
Testamento, exceto o evangelho de Mateus, foi escrito nessa língua); os romanos – criaram
redes de comunicação por meio das estradas, além da tolerância religiosa geralmente praticada
em relação aos diferentes povos sob seu domínio, o que deu certa liberdade para o Cristianismo
se expandir por um determinado tempo; os judeus – outorgaram ao Cristianismo a fé
monoteísta e a ideia da vinda de um Messias, por meio das inúmeras sinagogas espalhadas no
tempo da diáspora; além do que, o judaísmo é o berço religioso das comunidades cristãs, em
termos de culto e espiritualidade, conforme atestado pelo próprio Novo Testamento.

Glossário

Diáspora: termo que ignifica dispersão. Em relação aos judeus,


dá-se o nome de diáspora às duas grandes dispersões que
envolveram este povo: a primeira ocorrida por ocasião do cativeiro
babilônico, no século VI a.C.; e a segunda quando da destruição
do templo de Jerusalém pelos romanos, no ano 70 d.C. Para o
judeu que vivia fora da Palestina, Jerusalém permaneceu como o
centro da sua fé e referencial de vida. Lá era o local de sacrifícios
ou peregrinações. A Palestina continuava sendo a sua terra,
herança dada por Deus. Fora do país, o povo hebreu estava em
terra alheia ou impura. A diáspora judaica só começou a se
desfazer em 1948, quando houve a reconstrução do Estado de
Israel, por decisão e reconhecimento político da ONU, conforme
se verá com mais detalhes nas disciplinas de história do
Cristianismo, ao longo do curso.

Por que os judeus foram para países estrangeiros? Por vários móvitos: devido aos exílios a que
foram submetidos; para seguir as grandes rotas comerciais, estabelecendo-se nas cidades
mercantes ou portos; em razão dos pesados tributos impostos pela dominação estrangeira à
agricultura, cresceu a pobreza e muitos preferiram outra sorte, por isso recorreram ao comércio.
O judaísmo da diáspora também crescia pela conversão de não-judeus.
Podem ser identificados os seguintes locais em que viviam os judeus, em expressivas
aglomerações no mundo antigo: Babilônia; Síria; Ásia menor e Norte da África. Só no Egito,
viviam 1 milhão de judeus, sendo a maior parte em Alexandria.

Sobre as condições em que viviam os judeus na Diáspora, os seguintes dados se destacam: a)


desfrutavam de isenção do serviço militar; b) não tinham necessidade de comparecer no dia de
sábado perante instituições públicas e tribunais; c) as comunidades tinham certa autonomia
especialmente nas questões de fé; d) todo judeu pagava sua contribuição ao templo, anualmente,
o equivalente a dois dias de trabalho (jornaleiro); quem podia pagava voluntariamente
quantidades mais altas; e) viagem a Jerusalém nas festas religiosas; f) por outro lado, o Templo
mantinha relações com as comunidades judaicas da diáspora; g) falavam quase que
exclusivamente grego; h) sofriam influência do helenismo (iam ao teatro, participavam de
competições esportivas etc.); i) atraíam muitos simpatizantes às sinagogas, identificados com
as pregações e orações, mas o rito da circuncisão se tornava obstáculo para se fazer prosélito; j)
sofriam perseguições e discriminações devido ao seu estilo de vida e costumes.

4.2 Desafios do movimento cristão para se desenvolver no mundo


urbano antigo
O movimento que Jesus inaugurou e liderou ocorreu em um ambiente com traços marcadamente
rurais. Seus ensinos têm como cenário a vida camponesa: fala de sementes na parábola do
semeador, de flores, trigo, pássaros, pescadores, lírios do campo, e assim por diante.

Em razão disto, após sua morte há uma grande demanda por se fazer a transposição desta
mensagem cristã de cariz rural para o mundo urbano, da pólis (cidade) grega. Para o tempo em
que isto se fez necessário, a providência divina preparou e vocacionou Saulo (depois, Paulo). Este
teria a tarefa de fazer prosseguir a obra de Jesus agora no espaço das grandes cidades. Neste
aspecto, comparativamente, cabe estabelecer um contraponto entre Jesus e Saulo:

- Saulo, nascido e formado até os 18 anos na cidade intelectual de Társis, mudou-se em


seguida para Jerusalém para estudos na escola rabínica farisaica, tendo como mestre
Gamaliel. Nesse tempo de estudos, residiu provavelmente na casa de sua irmã, que morava
naquela cidade (At 23:16). Jesus, por sua vez, 90% de sua existência terrena foram vividos
nas regiões rurais da Galileia; não obteve títulos na escola rabínicas do Templo (nem teria
condições financeiras para tal). Saulo era cidadão romano; Jesus, para sobreviver,
trabalhava na carpintaria ou no campo.

Saiba mais

Társis: região da atual Turquia, com uma população de 300 mil


habitantes à época de Paulo. Era considerada o terceiro mais
importante centro da filosofia antiga, ficando atrás somente de
Atenas e Alexandria. Por essa razão, nela circulavam diferentes
correntes de pensamento; uma cidade cosmopolita, ou seja, nela
estavam representados diferentes mundos culturais.

Jerusalém: cidade com cerca de 60 mil habitantes nos dias de


Jesus. Nela estava situado o templo judaico, que abrigava a escola
rabínica (formada por fariseus) e a escola sacerdotal (formada por
saduceus); ambas forneciam membros para compor o Sinédrio
(alta corte jurídica formada por 70 doutores da Lei).

- Saulo, posteriormente, irá elaborar todo o seu ensino tendo como pano de fundo a vida urbana:
suas ilustrações e metáforas têm origem naquilo que é próprio do seu contexto de formação, ou
seja, em seus escritos, encontram-se reflexos de vistas e cenários de Tarso de quando era ainda
jovem, de ser conduzido em “triunfo”, de jogos olímpicos, compara o “tabernáculo terrestre”
desta vida a um edifício de Deus, destaca as correntes filosóficas circulantes nas pólis gregas.

- Seguindo a estratégia de Jesus, Paulo procurou também formar líderes, voltados aos grandes
centros, especialmente com a criação da Escola Paulina de Éfeso, para que os mesmos dessem
continuidade à missão de proclamar o evangelho, principalmente entre os gentios.
Saiba mais

Escola Paulina de Éfeso: Éfeso era a cidade greco-


romana com a segunda maior população do Império
Romano: 500 mil habitantes à época, ficando atrás
apenas de Roma. Ali Paulo permaneceu por cerca de 18
meses (seu maior tempo de fixação em uma cidade,
quando esteve em liberdade) e criou a Escola Paulina,
provavelmente no lugar onde anteriormente funcionara
a Escola de Tirano (At 19:9). A Escola Paulina teve três
importantes funções: )1 treinar e preparar líderes para a
expansão missionária (Tito, Timóteo e Silas são
exemplos destas lideranças ali treinadas); produzir
cópias das cartas paulinas para envio circular a
diferentes comunidades paulinas; 3) preservar a teologa
paulina, voltada aos gentios, fazendo frente às ideias
judaizantes que influenciavam o Cristianismo nascente.

Saulo, depois Paulo, teve, portanto, um papel decisivo na tarefa de introduzir a mensagem cristã
nos espaços das grandes cidades do mundo antigo. O êxito de tal empreitada se pode medir pela
presença da igreja – muitas vezes incômoda - nas principais cidades do mundo antigo até o
século II, como: Roma, Alexandria no Egito, Éfeso, Corinto, além de Jerusalém e Antioquia. 

4.3 Grupos sociais influentes no Império Romano


A mensagem cristã exerceu atração sobre três principais grupos sociais bastante
representativos no Império romano: escravos, soldados e mulheres.

Em relação aos escravos, que compunham basicamente dois terços da população total do
Império Romano, que era de cerca de 70 milhões de pessoas, a pregação cristã falava de
igualdade de relações, como por exemplo: “porque em Cristo não há mais escravo nem livre” (Gl
3:28); quando ao escrever a Filemon, Paulo adverte que o escravo Onésimo fosse tratado como
“irmão caríssimo” e não mais como escravo (Fm 16); dentro da comunidade cristã as distinções
sociais eram niveladas, não havendo mais separação entre senhor e escravo; isso apontava para
o fim da escravidão em escala crescente à medida que o reino de Deus fosse implantado e Jesus
retornasse para reinar.
Em relação aos soldados, a guerra era uma das sinas do Império Romano, expondo
precocemente a vida dos combatentes; desse modo, uma mensagem que falava de um mundo
novo no qual não mais haveria a guerra e a violência, exercia grande fascínio sobre tais
personagens e suas respectivas famílias, que ansiavam por novos valores de preservação da vida.

Quanto à mulher, sua condição de exclusão social foi impactada por uma mensagem de que em
Cristo “não há mais distinção entre homens e mulheres” (Gl 3:28). Segundo Rodney Stark
(2006), as comunidades cristãs se transformaram em espaços de acolhimento de mães em
busca de proteção para as filhas recém-nascidas que, segundo costumes no mundo greco-
romano, poderiam ser “descartadas” (abandonadas) ao nascer quando em uma casa já existisse
uma filha. Abortos e infanticídios de meninas eram comuns naquela sociedade. A igreja
primitiva combateu as práticas abortivas e de infanticídio de meninas, promovendo assim uma
mobilização em favor da vida. As mulheres, com isso, recorreram à comunidade cristã e a dela
passaram a fazer parte, ocasionando desse modo uma presença numericamente muito
expressivas de mulheres nas comunidades cristãs.

Glossário

Androcentrismo: comportamentos, sociedades ou situações em


que o foco é o homem, ou que são controlados por uma
perspectiva masculina.

Samaritanos: Após a morte do rei Salomão, o reino de Israel foi


dividido em reino do Sul (com duas tribos) e reino do Norte (com
10 tribos). O reino do Norte foi invadido em 722 a.C. pelos Assírios,
os quais introduziram naquele território povos estrangeiros, que
se casaram com judeus, além de promover a disseminação de
outros costumes culturais e crenças. Isto fez com que houvesse
uma radical separação com os judeus do reino do Sul,
culminando num isolamento e estado de conflito étnico e
religioso entre os dois grupos irmãos. Estas tensões estavam
presentes até os dias de Jesus, conforme a própria mulher

samaritana reconhece: “porque os judeus não se dão com os


samaritanos” (Jo 4).
Saiba mais

A mulher no mundo antigo

O valor dado à mulher é um aspecto marcante no contexto das


primeiras comunidades cristãs. No ambiente judaico havia se
formatado desde os tempos vétero-testamentários uma
mentalidade patriarcal de absoluta superioridade do homem
sobre a mulher. Exemplo disto era o rigor com que a Lei religiosa
se impunha em relação à mulher, sendo por isso legada sua
participação nos cerimoniais e cultos a uma condição de
inferioridade e submissão. Nestes eventos, havia espaços próprios
e limites para a sua restrita participação, sendo obrigada,
inclusive, a permanecer em silêncio. Tais restrições impostas à
mulher geravam comportamentos até mesmo constrangedores:
estudos mostram que todo judeu piedoso costumava repetir três
vezes ao dia a oração “graças te dou, oh! Deus, porque não nasci
samaritano, nem escravo e nem mulher”. Na filosofia grega à
época também não era muito diferente: a liberdade era atributo
do homem. Platão e Xenofonte, por exemplo, afirmavam que as
mulheres haviam sido criadas exclusivamente para trabalhos
domésticos.

Nesse contexto, foi decisiva para a libertação da mulher a atitude


de Jesus na realização de seu ministério terreno. Ele estabeleceu
um comportamento inaugural ao criar espaços de sociabilidade
em relação às mulheres, razão pela qual muitas passaram a segui-
lo e a servi-lo, como atestam os relatos dos evangelhos (Mt
27:55,56). Esta participação ativa pode ser observada nos
evangelhos, de forma explícita ou não: Jesus valorizou a viúva no
momento do ofertório (Mc 12:41-44); beneficiou-as com milagres e
curas (Mt 9:19-22, 15:21-28); citou-as em seus ensinos (Mt 13:33;
25:1-13); delas recebeu presentes (Mt 26:6-13); no momento em que
celebrou a última páscoa, no cenáculo, lá certamente estavam as
mulheres não apenas servindo na preparação dos elementos, mas
também desfrutando daquele momento de comunhão; no primeiro
anúncio que se faz da ressurreição acontecida, confiou-se a uma
mulher, Maria Madalena, essa nobre tarefa; também quando ocorreu
o envio do Espírito Santo em pentecostes, mulheres também
estavam lá presentes, em oração. Um antigo manuscrito, que se
constatou ser um evangelho escrito pelo apóstolo Tomé, foi
encontrado por arqueólogos no Egito, em 1945, o qual não apenas
registra referências da valorização dada por Jesus à mulher, como
também destaca a participação de liderança feminina no movimento
comandado pelo Filho de Deus.
Quando nasceram inúmeras comunidades cristãs pelo trabalho
apostólico, mulheres também participaram ativamente do
estabelecimento daquela tarefa, constituindo-se também em
membros da liderança que se formava. São exemplos disto: Febe,
diaconisa e líder da igreja existente no porto de Cencréia, na cidade
de Corinto; Trifena, Trifosa e Pérside, que “muito trabalharam” em
comunidades paulinas; Priscila, que juntamente com seu marido,
Áquila, realizou importante trabalho missionário em Roma e, depois,
em Corinto como colaboradores de Paulo, ressaltando-se que há,
inclusive, hipóteses de ter Priscila participado da redação da carta
aos Hebreus; Maria, mãe de Jesus que, segundo tradições da igreja
antiga, teve um importante papel de liderança nas igrejas da Ásia
Menor, desempenhando funções de pregadora e missionária em
toda aquela região, especialmente na cidade de Éfeso, onde
também morou até o final da sua vida junto à família de João
apóstolo.
Em síntese, fica evidente que a mensagem e a práxis cristã no mundo antigo não separaram
alma de corpo, ou o que é espiritual do que é material. Com isso, desenvolveu-se uma missão
contextualizada com as demandas sociais daquele tempo, caracterizando-se, assim, por uma
integralidade no modo de cumprir sua tarefa. O movimento cristão nascente não quis apenas
salvar as almas, mas transformar o mundo pela pregação do Evangelho. 

Referências

BARRO, Jorge H. De cidade em cidade. Londrina: Descoberta, 2002.

COMBLIN, José. Paulo, Apóstolo de Jesus Cristo. Petrópolis: Vozes, 1993.

COMBY, J.; LEMONON. Vida e religiões no império romano no tempo das primeiras comunidades

cristãs. São Paulo: Paulinas, 1988.

DREHER, Martin. A igreja no império romano. São Leopoldo: Sinodal, 1993.

DREHER, Martin. A igreja no mundo medieval. São Leopoldo: Sinodal, 1994.

FABRIS, Rinaldo. Jesus de Nazaré: história e interpretação. São Paulo: Loyola, 1988.

MOULE, C. F. D. As origens do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1979.

STARK, Rodney. O crescimento do cristianismo: um sociólogo reconsidera a história. São Paulo:

Paulinas, 2006.

Textos complementares

DREHER, Martin. A igreja no império romano. São Leopoldo: Sinodal, 1993, p.10-21. 

STARK, Rodney. O crescimento do cristianismo: um sociólogo reconsidera a história. São Paulo:

Paulinas, 2006. Capítulo 5: O papel das mulheres no crescimento cristão (p.109-144)


Introdução à unidade 2

UNIDADE II – CRISTIANISMO ANTIGO

Nesta unidade, veremos sobre a expansão do Cristianismo, investigando possíveis razões que
conduziram um movimento religioso de minorias e vinculada a seguidores de condições sociais
menos favorecidas, ao patamar de religião em franca expansão e, por fim, assumindo um
caráter universal em termos de adesão e amplitude. Iniciaremos destacando as perseguições e
martírios que envolveram o movimento cristão pelos conflitos ocasionados em relação ao
Império Romano, com seu poderio e controle. [A1] 

Abordaremos também como se delineia a espiritualidade cristã nos quadros da igreja antiga,
usando como base alguns fragmentos de textos espirituais da época, como os do Bispo Hipólito
de Roma. Primeiramente, falaremos sobre como eram as reuniões e cultos na igreja em seus
primórdios. Em seguida, a partir do exemplo de Hipólito, delinearemos algumas das
características da espiritualidade cristã primitiva, mesmo sabendo que elas não se aplicavam a
todos em todos os contextos.

Trataremos também das controvérsias doutrinárias e sobre a atuação dos Pais da Igreja. O
Cristianismo, diferente das religiões pagãs do mundo romano, não nascera como resultado de
mitos e mágicas. Ele teve como base a realidade e o fato histórico. Orígenes, Tertuliano, Justino
Mártir, Agostinho e tantos outros defensores da fé tiveram grande influência em tornar a
mensagem do movimento cristão mais razoável para os intelectuais, levando inclusive muitos
destes à conversão. Teremos, portanto, a oportunidade de estudar e conhecer um pouco mais
sobre a contribuição de alguns deles.
.1. Conflitos entre Cristianismo e Império Romano

1. Conflitos entre Cristianismo e Império Romano: os imperadores que


perseguiram e as formas de perseguição
O primeiro imperador a iniciar uma ostensiva perseguição ao cristianismo foi Nero (54-68).
Após o incêndio na cidade de Roma, no ano 64, a mando do próprio imperador, quando dez dos
quatorze bairros foram destruídos, os cristãos passaram a ser acusados como culpados por tal
episódio, sofrendo por isso atroz perseguição.

Tácito, historiador antigo, descreve as atitudes tomadas por Nero na perseguição aos cristãos:

Além de matá-los (aos cristãos) fê-los servir de diversão para o público. Vestiu-os em peles de animais

para que os cachorros os matassem a dentadas. Outros foram crucificados. E a outros acendeu-lhes fogo

ao cair da noite para que a iluminassem. Nero fez que se abrissem seus jardins para esta exibição, e no

circo ele mesmo ofereceu um espetáculo pois se misturava com as multidões disfarçado de condutor de

carruagem (Gonzalez, 1989, p. 56).

Dados históricos e informações preservadas pela tradição antiga referentes ao que ocorrera com
os apóstolos e outros importantes líderes do cristianismo em seus primórdios, também nos
ajudam a entender que o compromisso com o caminho da cruz foi levado até às últimas
consequências. Muitos foram submetidos ao martírio por causa do evangelho de Cristo.

Vejamos primeiramente alguns exemplos envolvendo aqueles que fizeram parte dos doze
discípulos chamados por Jesus (Mc 3:13-19):
André: após a morte e ressurreição de Jesus, foi pregar o evangelho na região do Mar Negro
(hoje parte da Rússia); depois, segundo a tradição, pregou na Grécia, em Acaia, onde foi
martirizado numa cruz em forma de “X”.  Daí este instrumento de tortura ter ficado conhecido
como “cruz de Santo André”.

Bartolomeu: pregou inicialmente na Arábia, depois Etiópia, e por fim, ao lado de Tomé, atuou
como missionário na Índia, onde foi martirizado.

Filipe: atribui-se a este apóstolo a fundação da igreja de Bizâncio, cidade mais tarde conhecida
como Constantinopla. Posteriormente, pregou o evangelho na Ásia Menor, na região de
Hierápolis, onde se convertera a mulher de um cônsul romano pela sua pregação. O cônsul,
então furioso por este episódio, mandou prender a Filipe e matá-lo de forma cruel.

Matias: Para o lugar de Judas Iscariotes, que se suicidou, a igreja primitiva escolheu Matias como
seu substituto (At 1:21-26). Segundo a tradição, esse apóstolo se tornou missionário na Síria,
onde acabou sendo queimado numa fogueira por causa do evangelho. 

Judas Tadeu: segundo a tradição, pregou na Pérsia, onde foi martirizado.

Mateus: desenvolveu grande parte de seu ministério pastoreando a igreja de Antioquia, onde
também escreveu o seu evangelho. Dirigiu- se posteriormente para a Etiópia, onde veio a ser
martirizado por causa da pregação. 

Pedro: depois de exercer importante liderança na igreja de Jerusalém, este apóstolo transferiu-
se para a cidade de Roma, capital do Império. No ano 67, durante perseguição imposta por Nero,
Pedro foi preso e condenado a morrer crucificado. Relatos do segundo século afirmam que o
apóstolo, antes de sua execução, disse que não era digno de morrer como morrera Jesus, o seu
Senhor, e pediu para que fosse crucificado de cabeça para baixo, e assim ocorreu.

Paulo: considerado um apóstolo “nascido fora de tempo” (1 Co 15:8), tornara-se o grande líder
da igreja entre os gentios e propagador da “mensagem da cruz” (1Co 1:18-23). Uma carta de
Clemente de Roma, no segundo século, testifica o que ocorrera com este apóstolo:
Paulo esteve preso sete vezes; foi chicoteado, apedrejado; pregou tanto no Oriente quanto no Ocidente,

deixando atrás de si a gloriosa fama de sua fé; e assim, tendo ensinado justiça ao mundo inteiro, e tendo

para esse fim viajado até os mais longínquos confins do Ocidente, sofreu por fim o martírio por ordens

dos governadores, e partiu deste mundo para ir ocupar o seu santo lugar (Anglin e Knight, 1947, p. 13).

No ano 67, quando da perseguição movida por Nero, Paulo foi preso e levado a Roma, onde
recebera o martírio. Pelo fato de possuir cidadania romana, este apóstolo não poderia ser
crucificado (algo humilhante para o cidadão romano), por isso deram-lhe como sentença a
decapitação (morte instantânea). A tradição conservou de forma reverente o lugar da execução
deste apóstolo, juntamente com Pedro: “Desde a mais alta antiguidade, a igreja romana celebrou
juntos os martírios de Pedro e de Paulo no dia 29 de junho” (Comblin, 1993, p. 169,170). 

Simão Zelote: desenvolveu seu ministério de evangelização na Pérsia, onde o culto ao deus
Mitras (deus Sol) estava extremamente desenvolvido. Devido a conflitos com seguidores de
Mitras, acabou sendo morto por se negar a oferecer sacrifício a esta divindade.

Tiago (Filho de Alfeu): pregou o evangelho na Síria. Segundo o historiador antigo Flávio Josefo,
foi linchado e apedrejado até a morte (Proença, 2001, p. 103).

Tiago (filho de Zebedeu): segundo tradições antigas, citadas por Justo Gonzalez, este apóstolo
desenvolveu um trabalho missionário na Espanha, pregando na região da Galícia e Zaragoza.
“Seu êxito não foi notável, pois os naturais desses lugares se negaram a aceitar o evangelho”. Ao
regressar para Jerusalém, percorreu o caminho que deu origem ao lugar hoje conhecido como
“Caminho de San Tiago de Compostela”, na Espanha. Em Jerusalém, veio a ser preso, sendo em
seguida, decapitado por ordem de Herodes Agripa, no ano 44 (At 12:1,2) (Proença, 2001, p. 103).

Saiba mais

Santiago de Compostela: Os Caminhos de Santiago são os


percursos dos peregrinos que afluem a Santiago de Compostela,
na região noroeste da Espanha, desde o século IX, para venerar as
relíquias do apóstolo Tiago, cujo suposto sepulcro se encontra na
catedral daquela cidade. A peregrinação foi uma das mais
concorridas da Europa medieval, sendo concedida indulgência
plena a quem a fizesse. Ainda hoje, peregrinos de diferentes
matizes religiosas ou espirituais, refazem o percurso desse
caminho motivados por elementos de fé.

Tomé: segundo a tradição, desenvolveu sua atividade missionária inicialmente na Índia. Dali
dirigiu-se para o Egito, onde realizou importante trabalho entre os habitantes de língua copta,
ministério este que deu origem à comunidade até hoje lá existente. A Igreja Cristã Copta, como é
conhecida, está separada do catolicismo romano desde o IV século, tendo patriarcas em sua
liderança (Proença, 2001, p. 103).

João: este é, reconhecidamente pela tradição e pelos depoimentos do cristianismo antigo, o


último apóstolo a morrer. Morreu na velhice, por volta do ano 100, na cidade de Éfeso, onde
morava com sua família. Este apóstolo desenvolveu o seu ministério na Ásia Menor, onde foi
preso nos anos 90, na época da intensa perseguição imposta pelo imperador Domiciano ao
cristianismo, quando acabou deportado à ilha de Patmos, no Mar Egeu, vindo a receber ali a
revelação do Apocalipse, por volta do ano 96. Sendo solto posteriormente, permaneceu em Éfeso
ensinando até ao final da sua vida (Gonzalez, 1989, p. 60).

Além dos apóstolos, outros importantes líderes do Cristianismo primitivo também deram a vida
pela causa do evangelho. É o caso de Timóteo, discípulo de Paulo, que segundo testemunho de
Nicéfero, no segundo século, “foi martirizado durante o reinado de Domiciano, no ano 96 a.D.,
em Éfeso, cidade onde morava quando o apóstolo lhe escreveu as duas cartas” (Anglin, 1947, p.
15).

Também Tiago, conhecido como “o irmão do Senhor”, que exerceu importante liderança na
igreja de Jerusalém, foi martirizado. O historiador Flávio Josefo, que descreveu o sítio desta
cidade pelo exército do general Tito, no ano 70, atribui a destruição de Jerusalém a um “juízo de
Deus sobre os judeus pelo fato de terem assassinado a Tiago, o Justo” (Anglin, 1947, p. 11). De
igual modo, o historiador da igreja, Eusébio, cita um escritor do segundo século, chamado
Hegesipo, que descreve a morte de Tiago. Afirma este autor, que tinha se levantado um conflito
entre os judeus convertidos   e os descrentes a respeito de Jesus ser ou não o Messias, e pediram
a Tiago que resolvesse a questão. “Os escribas e fariseus” – diz Hegesipo – “Colocaram Tiago de
um lado do templo e exclamaram, dirigindo-se a ele: visto que o povo é levado em erro a seguir a
Jesus que foi crucificado, declara-nos qual é a porta pela qual se chega a Jesus, o crucificado?”
Ao que ele respondeu em alta voz: “O Filho do Homem está agora assentado nos céus, à mão
direita do grande poder e está para vir nas nuvens do céu”. E como muitos se gloriaram no
testemunho de Tiago, estes mesmos sacerdotes e fariseus tomaram a decisão de levá-lo à parte
alta do templo e de lá o lançaram abaixo, “passando em seguida a apedrejá-lo, visto não ter
morrido logo que caiu no chão, enquanto, ajoelhando-se pedia o perdão de Deus aos seus
agressores”. Deste modo ele sofreu o martírio (Anglin e Knight, 1947, p. 11,12).

Até o terceiro século da era cristã, a cruz realmente pautou a atuação da igreja. E é evidência disto
o fato de tal período ter ficado conhecido como a “era dos mártires”. O historiador Justo
Gonzalez descreve com precisão ainda outros fatos desse período, como por exemplo, o
testemunho de fé demonstrado por Inácio de Antioquia. Discípulo do apóstolo João, viveu no
período de 60 a 117 d.C. Tornou- se célebre pela fidelidade a Cristo em meio às perseguições que
sofrera e às cadeias que enfrentou devido à fé que professava. Sendo levado a Roma, em algumas
paradas obrigatórias, não se esquecia de escrever às igrejas que o recebiam ou lhe enviavam
saudações.

Para testemunhar sobre Jesus Cristo, Inácio está disposto a enfrentar a morte. E, a caminho do martírio,

proferiu as seguintes palavras: “Não quero apenas ser chamado de cristão, quero também me comportar

como tal. Meu amor está crucificado. Não me agrada mais a comida corruptível... mas quero o plano de

Deus que é a carne de Jesus Cristo... e seu sangue quero beber, que é bebida imperecível. Porque quando

eu sofrer, serei livre em Jesus Cristo, e com ele ressuscitarei em liberdade. Sou trigo de Deus, e os dentes

das feras hão de me moer, para que possa ser oferecido como pão limpo de Cristo” (Gonzalez, 1989, p.

66).

Não é diferente o exemplo de fé de Policarpo de Esmirna, o qual, diante da insistência das


autoridades para que jurasse pelo imperador e maldissesse a Cristo, recebendo em troca disto a
liberdade, respondeu: “vivi oitenta e seis anos servindo-lhe, e nenhum mal me fez, como
poderia eu maldizer ao meu rei, que me salvou?” E estando atado já em meio à fogueira,
Policarpo elevou os olhos ao céu e orou em voz alta: “Senhor Deus Soberano [...] dou-te graças,
porque me consideraste digno deste momento, para que, junto a teus mártires, eu possa ser
parte no cálice de Cristo. Por isso te bendigo e a te glorifico. Amém” (Gonzalez, 1989, p. 71,72).

As experiências de Inácio e Policarpo retratam bem a disposição dos cristãos de tal período em
dar testemunho de sua fé em obediência a Jesus Cristo, até às últimas consequências. Para a
igreja desse período, a ressurreição foi, sem dúvida, o impulso maior à perseverança e à
fidelidade ao caminho da Cruz. 

Ao falar sobre martírios de cristãos, o teólogo Jürgen Moltmann diz que em Cristo aconteceu o
que acontecerá com todos os que trilham o caminho da cruz: nos sofrimentos de Cristo são
antecipados os sofrimentos escatológicos do mundo inteiro. Ele acrescenta que “é Cristo que
sofre através dos seus discípulos mártires, pois na Paixão apostólica pelo evangelho e pela nova
criação está presente o próprio Cristo”. Por isso os sofrimentos apostólicos, como perseguição,
prisão, pobreza e fome, são também sofrimentos de Cristo e, como tais, dores de parto da nova
criação. E finaliza: “Nestes sofrimentos do caminho da cruz, o mundo presente perece e nasce o
novo mundo de Deus” (Moltmann, 1993, p. 216).

Trilhando o caminho da cruz, a igreja primitiva encontra na ressurreição de Cristo a grande


esperança de vitória e transformação, como visto no texto de Apocalipse 12:11: “[...] por causa do
testemunho que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida”; e Apocalipse
20:4, “vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus... viveram e reinaram
com Cristo. Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte nessa ressurreição... sobre estes a
segunda morte não tem autoridade [...]”.
2. Liturgia e espiritualidade na igreja antiga

Na comunidade cristã do primeiro século, iniciou-se um novo paradigma litúrgico, no qual


predominava não os holocaustos expiatórios mosaicos – posto que a cruz era o cerne da fé e da
práxis dos crentes, sendo, portanto, o sacrifício de Cristo suficiente para  a  remissão   dos
 pecados  e à “justificação” do pecador –, mas sim, os atos que provocavam comunhão,
misericórdia e solidariedade entre os fraternos. Esta é uma possibilidade aceita, mesmo
considerando a posição de alguns autores, como N. Lohfink, que alegam que a prestação de culto
a Jesus como Divino no primeiro século é uma hipótese que esbarra na tradição monoteísta
judaica, da qual aqueles primeiros cristãos procediam, fato que leva a ponderar a possibilidade de
ter-se prestado culto a Jesus como “intermediário”, ou seja, um culto que “de Cristo subia
novamente a Deus Pai” (Proença, 2001, p. 24). 

Vale destacar algumas das características comuns aos cultos das primeiras comunidades
cristãs, com base nas informações de Justo Gonzalez (1993, p. 150-155). A primeira delas, o
espírito de celebração, que aquela comunidade mantinha em quase todos os cultos. Segundo
Gonzalez, tudo era motivo para celebração: “a comunhão era uma celebração. O tom
característico do culto era o gozo e a gratidão, e não a dor ou a compunção”; sabe-se com
segurança, porém, que o paradigma da comunhão entre os da fé era simbolizado pelo “partir do
pão”, conforme ensinara Jesus. A comunidade se reunia para o culto todo primeiro dia da
semana, impulsionada especialmente pela alegria da comunhão e a celebração do Cristo
ressurreto: “É patente que o maior motivo que levou os primeiros cristãos a cultuarem a Jesus
foi, sem dúvida alguma, a sua ressurreição, a qual autenticou sua origem divina e seu senhorio”
(Proença, 2001, p. 26).

Outra característica comum era a participação da comunhão somente aos batizados. A todos era
permitido assistir os cultos. Todavia, quando se aproximava o momento da ceia, permaneciam
obrigatoriamente no recinto apenas os membros assíduos da igreja, ou seja, apenas os
batizados. Neófitos não batizados e visitantes ficavam de fora.
Gonzalez (1993, p. 152) ressalta ainda outra característica que, desde cedo, fizera parte do
repertório litúrgico daquelas comunidades: a celebração nas catacumbas. A razão pela qual se
davam estas reuniões nestes locais inauditos, era porque ali estavam enterrados os heróis da fé;
e os cristãos criam que a comunhão os unia, não só entre si e com Jesus Cristo, mas também
com seus antepassados na fé.

Contudo, muito mais que nas catacumbas, os cristãos reuniam- se nos lares particulares. Há
inclusive indicações disto nas Escrituras (como, por exemplo, em At 16:40 e Fl 1,2). Gonzalez
afirma que, à medida que as congregações iam crescendo e se expandindo, algumas casas foram
dedicadas exclusivamente aos cultos, e posteriormente foram transformadas em templos (mas
com a devida descrição pública).

Por muito tempo, pode-se dizer que o cristianismo continuou sendo um “braço” do judaísmo,
posto que, mesmo avançando com a doutrina evangélica apostólica, este preservou a tradição
ritualística da lei e dos costumes judaicos. Daí se fala em uma tradição “judaico-cristã”, não
podendo desvincular a segunda da primeira. Um exemplo é que a igreja primitiva possuía duas
vertentes teológicas: a ala judaizante (representada por Pedro), e a ala gentílica, da qual Paulo
fora o mentor. Aliás, de acordo com José Comblin, Paulo foi o verdadeiro fundador do
cristianismo, como movimento religioso independente do judaísmo (Comblin, 1993).

Para melhor traçar o perfil religioso aqui referido, faremos breve menção do caso de um bispo e
pastor da igreja de Roma no século III, Hipólito de Roma (160-235). Exímio escritor e erudito,
Hipólito intentara com seus escritos recuperar para a vida da igreja o que considerava a
“verdadeira tradição apostólica”, difundindo seus comentários e lembranças dos costumes
legados pelos apóstolos, mas que aos poucos vinham sendo deixados de lado.

A espiritualidade cristã, em Hipólito, resumia-se basicamente em guardar preceitos morais e


costumes religiosos (“místicos”). Nota-se uma observância exagerada aos mínimos detalhes
dos ritos, que regiam a ação humana de forma global. Havia ritos e normas para tudo: quanto ao
“uso” correto da sexualidade, sobre a castidade, sobre casados e solteiros, orientações aos
batizandos, aos catecúmenos, às viúvas, confessores e até crianças. 

Sobre a doutrina de Hipólito, um comentarista, que escreveu a introdução de um de seus


escritos, disse o seguinte:
Torna-se moralista.  Considerada a época crítica e difícil da igreja, comenta o livro de Daniel e, fazendo

ressaltar as catástrofes do porvir da humanidade, tira lições, dá conselhos [...] Pretende assim levar à

confiança em Deus, mesmo quando se é perseguido ou incompreendido, fatos esses reais em sua vida

agitada [...] Liga-se de modo escravizante ao texto bíblico como este se encontra, sem interrogar se tal

capítulo fora escrito em hebraico, aramaico ou se encontra apenas em grego [...] Preocupa-se com o

ensinamento que pretende tirar de um texto, como perfeito alegorista, sem tomar em consideração a

realidade à qual a revelação quer ser resposta (Roma, 1981, p. 08).

Dessa forma, observa-se que a liturgia era a própria vida para os cristãos que seguiam tais
preceitos, e a vida prosseguia sendo regida por normas e orientações de ordem litúrgica.
Exercia-se o sacerdócio sob o controle da tradição apostólica, porém, admitindo paralelamente
a submissão a um legalismo ritualístico, reminiscente do judaísmo. Estabelecia-se, assim, uma
espiritualidade “seletiva”, onde as regras de fé e prática mais aparentavam um código de
posturas moralizante e legalista do que qualquer outra coisa, fato que mais distanciava do que
facilitava a aproximação dos neófitos até Cristo.
3. O desenvolvimento doutrinal do Cristianismo
antigo

De que modo podemos relacionar o problema das controvérsias teológicas e doutrinárias entre a
igreja e outras crenças ou religiosidades do mundo antigo com o desenvolvimento e as facetas
que o cristianismo foi assumindo até a conclusão deste período? Essa pergunta servirá como
problema e orientação para o que será desenvolvido nesse tópico. A ideia básica é a de expor
sobre duas abordagens inter-relacionadas com este problema, a saber: a) caracterização das
crenças e/ou “heresias” principais que fizeram frente ao cristianismo; b) as respostas dadas
pela Igreja, seja contra ou a favor da manifestação dessas crenças. 

Conflitos são comuns quando falamos em ser humano e história. Mais ainda, quando esse ser
humano é o crente (tanto no sentido estrito, como lato), e quando essa história é a história da
Igreja. Desde os começos da era cristã, vimos controvérsias de todos os tipos: no tempo de Paulo
foram o gnosticismo, judaísmo e outras doutrinas semelhantes; no século III foi debatida a
questão da readmissão dos “desviados” na igreja. Quer dizer, não faltaram querelas e muito
menos respostas (umas se julgando bem fundamentadas, outras nem tanto) para as principais
questões que envolviam a fé cristã de um modo geral. 

Neste tópico, vamos tratar especificamente sobre algumas das crenças e “heresias” que
geraram muitas das controvérsias até o IV século da era cristã. De modo semelhante, também
veremos a atuação dos chamados “Pais da Igreja”, tanto no Oriente como no Ocidente cristão,
nos casos de afirmação ou negação e combate de uma determinada doutrina ou crença.

As perguntas que podemos lançar inicialmente são: quais os fatores que, na história da igreja,
determinaram o surgimento da teologia cristã? O que é uma heresia e como ela se constitui? De
que forma a igreja combateu os “hereges” desse período? Em nome de que ou quem e com que
“armas” ela combateu e por quê? Qual foi o papel dos pais da igreja nesse contexto de conflitos
de interesse e controvérsias doutrinárias? Nosso olhar certamente estará condicionado pelo
presente, mas nunca na intenção de julgar, e sim de compreender (ainda que parcialmente) o
passado, que sempre estará em suspenso e seus fatos nunca poderão ser apreendidos
absolutamente, “tal como aconteceram”.

3.1. Os chamados “movimentos heréticos”


Os movimentos chamados “heréticos”, muitas vezes pejorativamente e sem uma devida
investigação, são considerados, na história da igreja, como aqueles que se apresentaram
subversivos à ortodoxia, por defenderem ideias, práticas e doutrinas que ameaçavam a
integridade dogmática e institucional da igreja. Nesse sentido, vale observar que, para a igreja,
bastava algum movimento ou pessoa destoar do que era ensinado e determinado pela regra de fé
ortodoxa, que já poderia ser considerado “herético” e digno de condenação, o que nem sempre
significava avesso à Bíblia e seus ensinamentos. Um exemplo disso está no que aconteceu com
os anabatistas no século XVI, perseguidos pela própria igreja protestante e julgados como
hereges perturbadores da ordem, basicamente porque ansiavam e lutavam por uma reforma
mais profunda (estrutural). Assim, faz-se necessário para nós pesquisadores da igreja,
considerar uma multiplicidade de vertentes que geram um dado movimento e certa crença ou
doutrina, sem condenar de antemão. O julgamento sempre deve ser evitado, especialmente no
estudo da história.

O que aqui vamos fazer é um breve “passeio” pelos principais movimentos que foram
condenados na era cristã, descrevendo as mais latentes marcas deixadas, tentando exercitar,
antes, uma mentalidade crítica e investigativa, e não condenatória.

a) Gnosticismo (séc. I)

Afirmava basear-se no “conhecimento” (gnose), embora não se tratasse do conhecimento


racional (que, por sinal, era rejeitado pelos gnósticos), mas um conhecimento místico,
sobrenatural, transcendental. Defendia uma visão dualista do universo, de origem persa, que
separava pares opostos, irreconciliáveis, como o Deus transcendente dos gnósticos  (criador  da
 realidade  espiritual,   boa) e um “demiurgo” (semideus, que criara o mundo material, mau).
Considerando que o mundo material é mau, logo, Cristo não poderia ter tido uma encarnação
real, mas aparente, isto é, de natureza docética, um espírito visível, um fantasma. Boa parte
dessa visão gnóstica da realidade se arraigou tanto que até hoje continua viva e presente,
inclusive na Igreja.

b) Marcionismo (séc. II)

Um dos movimentos provenientes do gnosticismo. Foi fundado em 144 d.C. por Marcião de
Sinope, um cristão religioso que foi denunciado pela igreja como herege. Sustentava em sua
doutrina elementos gnósticos, tais como o dualismo, o docetismo cristológico e a recusa do
Antigo Testamento. Desenvolveu melhor essa doutrina dos dois deuses, representados nos dois
testamentos: A.T. - Demiurgo (justiça/lei); N.T. - Deus Superior (Jesus/Evangelho/amor).

c) Montanismo (séc. II)

Originou-se entre 160 e 170 na Frígia, através de um certo Montanus, um ex-sacerdote das
religiões de mistério, convertido ao movimento cristão. Ao ser batizado, pelo ano 150,
manifestou a glossolalia (dom de línguas), passando a ensinar, a partir daí, que a direção da
igreja não deveria ser por intermédio de cargos ou ofícios, mas sim, pela “voz do Espírito Santo”
transmitida pela glossolalia.   Passou a anunciar o fim do mundo através de suas profecias e
ordenava a seus adeptos a se reunirem em um determinado local — regiões da Frígia, na Ásia
Menor — para aguardar a descida da Jerusalém celestial. Possuía duas discípulas imediatas:
Priscila e Maximila, que serviam como suas intérpretes, quando dizia comunicar-se
verbalizando “línguas espirituais”. Foi um movimento que queria a renovação das realidades
pneumáticas e escatológicas da igreja dos primeiros tempos. Sua doutrina reunia três elementos
principais: escatologia, ascetismo e profetismo.

c) Arianismo (séc. III-IV)

Foi uma visão cristológica sustentada pelo presbítero Ário (246- 336), que negava a divindade de
Jesus e sua consubstancialidade com o Pai. O início da controvérsia se deu quando o bispo
Alexandre de Alexandria (250-328) começou a debater teologicamente com o pai do arianismo.
A dinâmica do debate é bastante ampla. Seus pontos eram vários e sutis. Mas, como faz lembrar
Justo González (1991, p. 90), “podemos resumir toda a controvérsia à questão de se o Verbo era
co-eterno com o Pai ou não”. O próximo tópico trata, dentre outras coisas, dos desdobramentos
desta controvérsia na vida da igreja da época. Gonzalez resume graficamente o campo de forças
em torno do qual tal querela gravitava:

Ário dizia que o Verbo (Cristo) não era Deus, mas somente a primeira dentre as criaturas.
Alexandre, valendo-se da visão do Evangelho de João, afirmava que o Verbo sempre tinha
existido com o Pai e que, junto com o Pai, ele também era Deus, isto é, tinham a mesma essência
divina, embora não fossem uma e a mesma pessoa. Interessante notar que ambos os partidos
tinham textos bíblicos em que se embasavam e razões lógicas que faziam a posição do oponente
parecer insustentável (Gonzalez, 1990, p. 91).

3.2. A reação da igreja: doutrinas e dogmas


Evidentemente, a Igreja não permaneceu calada e imóvel, apenas assistindo a implosão de suas
doutrinas e práticas tradicionais. O cerne de sua reação se dá por conta de iniciativas isoladas,
como a de Alexandre e outros bispos e teólogos da igreja, não citados. Quer dizer, tinha-se, em
primeiro lugar, a convicção de que essas contendas só podiam ser vencidas pela força do
argumento da fé. E é aqui que começam a surgir, de maneira mais sistematizada, as produções
teológicas do período. A teologia nasce como produto do conflito. Porém, em segundo lugar,
entravam também as implicações políticas dessas controvérsias.

Com o surgimento da “paz” na Igreja, após a ascensão e “conversão” ao cristianismo do


Imperador Constantino o perigo de perseguição se tornou praticamente remoto, ao passo que
havia uma liberdade maior para se debater religião. Porém, Igreja e Estado aliaram-se no sentido
de conter os conflitos que pudessem surgir entre os fiéis em função de tais debates.

Segundo Gonzalez (1990, p. 88), “Constantino queria que a igreja fosse o ‘cimento do império’,
e por isso qualquer divisão nela podia ameaçar a unidade do Império”. Assim, quando a
controvérsia ariana se tornou pública, com o risco de dividir toda a igreja oriental, Constantino
resolveu interferir, dando opiniões sobre o assunto. A saída que ele encontrou para resolver esse
e outros impasses e colocar a vida da igreja em estabilidade, foi a de convocar uma grande
assembleia de todos os bispos cristãos.

E foi assim que, em 325, o concílio afinal se reuniu na cidade de Nicéia, na Ásia menor, perto de
Constantinopla. Hoje conhecemos esta assembleia como sendo o primeiro concílio universal da
igreja na história. Não se sabe o número exato de bispos ali reunidos. Como informa Gonzalez,
acredita-se que tenham sido trezentos. Embora a maioria dos cristãos ali congregados não
pertencesse a nenhum dos grupos outrora mencionados, conta-se que a maioria se posicionou
para o lado que defendia a doutrina da Trindade, em oposição à negação da divindade de Jesus
por parte dos arianos. Aliás, a natureza divino-humana, ora apenas divina, ora apenas humana,
de Jesus foi um dos temas mais recorridos desde o primeiro século, como vimos anteriormente.

Em Nicéia, portanto, chega-se ao que podemos chamar de ápice, naquele tempo, das discussões
acerca da natureza de Deus: divino? Humano? Um? Dois? Três? Depois de um processo interno à
reunião, que aqui não cabe narrar, mas que contou, entre outras coisas, com a intervenção de
Constantino, sugerindo que fosse incluída a palavra “consubstancial” (de uma só substância)
no documento final, chegou- se à formulação de uma Doutrina da Trindade através do “Credo
Niceno”, que hoje em dia é tido como o credo cristão mais universalmente aceito.

Pode-se dizer, como finalização deste tópico, que as reações da Igreja a todos estes e outros
movimentos, crenças e “heresias” que surgiram até o fim do período antigo, deram-se através
de quatro principais instâncias:

Primeiro, o fortalecimento da autoridade apostólica: hierarquização ou clericalização da


Igreja;

Segundo, a produção de importantes escritos: credos, confissões de fé, manuais.

Terceiro, Concílios eclesiásticos;

Quarto, estabelecimentos de livros “canônicos”, os quais deveriam ser escritos por


apóstolos ou por discípulos de apóstolos; serem livros cristocêntricos e, por fim, serem
aceitos perante a comunidade.
4. O papel dos Pais da igreja: por uma igreja fiel às
origens apostólicas

Nesta unidade, estamos aprendendo um pouco mais sobre como se fazia teologia no período
antigo com a experiência dos chamados Pais da Igreja. A partir deles, veremos que a teologia é
um saber racional, sim, mas que tem uma dimensão espiritual e de reverência para com o sopro
do Espírito. Ao mesmo tempo, concluiremos que teologia é coisa humana, composta a partir de
experiências concretas de fé, luta e busca por iluminação pela vontade de Deus. Sua matéria-
prima é a própria vida e seu chão é a história. A pergunta é: de que maneira homens como
Gregório, Ambrósio, Agostinho ou Jerônimo tornaram-se pais da igreja e em função de que
questões e atuação?

Os Pais da Igreja ficaram assim conhecidos por serem os representantes diretos e indiretos da
tradição apostólica, isto é, a tradição da igreja. Devemos tratar de uma maneira mais específica
sobre quem foram os pais, por quais critérios eles foram assim chamados e as razões pelas quais
os cristãos, hoje, ainda podem e devem recorrer à leitura dos pais. Uma dessas características é o
zelo para com as Escrituras, algo bastante peculiar em se tratando do contexto ao qual acabamos
de estudar, de controvérsias e conflitos doutrinários.

O professor de estudos bíblicos e teológicos do Eastern College, Christopher Hall, afirma que os
pais demonstravam um enorme zelo para com Deus e as Escrituras. E, muitas vezes, como
acontece conosco, seu zelo manifestava-se tanto em suas forças como em suas fraquezas.
Afirma que “eles têm muito a ensinar-nos sobre reverência, santo temor, autosacrifício,
autoconsciência e autodecepção, adoração, respeito, oração, estudo e meditação” (Hall, 2000, p.
53).
Glossário

Patrística: filosofia cristã formulada pelos pais da igreja nos


primeiros cinco séculos da era cristã, buscando combater a
descrença e o paganismo por meio de uma apologética da nova
religião, calcando-se em argumentos e conceitos procedentes da
filosofia grega. Algumas das principais ênfases ou marcas
teológicas da “teologia patrística” são: as “duas naturezas de
Cristo” (humanidade e divindade); formulação da doutrina da
trindade; concílios ecumênicos (formulação dos Credos Niceno e
Calcedônio); combate às heresias do gnosticismo e da
religiosidade e cultura helênica (grega).

Dentro da classificação mais ampla dos “pais da igreja”, segundo Hall, encontramos os oito
doutores da igreja: quatro doutores do oriente e quatro doutores do ocidente, aos quais,
baseados neste autor, dedicaremos especial atenção, destacando os principais pontos que
envolvem suas vidas e pensamentos.

4.1. Os quatro doutores do Oriente


a) Atanásio (296-373): Segundo relatos, foi um dos homens mais corajosos, astutos e
cuidadosos de seu tempo. “Não haviam respostas neutras a Atanásio” (Hall, 2000, p. 59).
Precoce no desenvolvimento de seu pensamento, escreveu duas importantes obras (“Um
discurso contra o incrédulo” e “Sobre a Encarnação”) antes dos 20 anos de idade. Aos 33, foi
nomeado bispo da igreja em Alexandria. Durante quarenta e cinco anos, foi exilado cinco vezes
de sua igreja pela oposição firme feita às ideias do presbítero Ário.

Suas ênfases principais geralmente gravitavam em torno do tema da encarnação do Filho. A


controvérsia com o arianismo era o que balizava sua teologia, que era principalmente
soteriológica. Para ele, “somente Deus pode salvar”, e “Cristo é adorado nas igrejas” (Hall,
2000, p. 60-61).

b) Gregório de Nazianzo (329-390): Nasceu na pequena cidade de Nazianzo, na Capadócia.


Membro de família rica, tinha uma personalidade forte, introspectiva, talvez o que o tenha feito
se atrair para a solidão, oração e vida contemplativa. Recebeu excelente educação ao longo de sua
vida. Rejeitava posições de liderança na igreja, em detrimento de uma vida calma e tranquila
dedicada aos estudos. Isso, porém, gerou um conflito que o acompanhou ao longo de sua
trajetória: a disposição em atender ao chamado para servir a igreja, para depois abrir mão desta
tarefa em nome da intensa vocação para a vida monástica e acadêmica.

Embora fosse amante da academia, sua leitura das escrituras não estava condicionada aos
imperativos racionais. Neste ponto surge seu conflito com os eunomianos, um grupo de
estudiosos que defendia a razão como o maior princípio norteador do conhecimento sobre a
divindade. Gregório combate isso ao dizer que “a saúde espiritual e a argúcia hermenêutica não
podem ser separadas” (Hall, 2000, p. 71).

c) Basílio, O Grande (330-379): Bispo e teólogo da igreja proveniente da província romana da


Capadócia. Era amigo íntimo de Gregório, com quem estudou em Atenas por seis anos,
mergulhando na arte da retórica. Diferentemente de seu amigo, Basílio era um homem
orientado para a ação. Tanto que, após um ano de experiência como docente na escola de
Cesaréia, ele abandona a carreira acadêmica para se dedicar à vida eclesial, como fruto de uma
“renovação espiritual” pela qual passara. Todavia, tanto quanto seu prezado Gregório, Basílio
desenvolveu uma teologia coerente com seu pensamento. Sua ênfase está na rejeição da
“alegoria” em sua versão interpretativa da criação. O caminho mais seguro, segundo ele, é ficar
em silêncio perante o texto. A autoridade de Gênesis está no movimento do Espírito em Moisés.

d) João Crisóstomo (347-407): De todos os pais da igreja, exceto Agostinho, afirma Hall, a
exegese de João é a mais inteligível, acessível e disponível aos leitores modernos. Por sua
inflamada retórica, ficou conhecido como o “boca de ouro” (que significa “Crisóstomo”, em
grego). Possui uma vasta obra teológica, mais concentrada em homilias exegéticas e sermões. É
um dos pais que mais ressaltou a importância de estudar as escrituras. “A raiz de todos os
males”, acreditava ele, “é a falta de conhecimento das escrituras” (Hall, 2000, p. 93). 
4.2. Os quatro doutores do Ocidente
a) Ambrósio de Milão (339-397): Nasceu em Tréveros, mudando-se logo depois para Roma,
onde recebeu boa educação, estudando literatura romana e grega, já que provinha de uma família
bem abastada. Era bastante respeitado por sua ética e autoridade moral, fruto de sua vida pública
íntegra no meio político. Assim, com a morte do bispo Auxêncio (que era ariano), Ambrósio foi
escolhido para ser o novo bispo de Milão. Embora não tivesse formação teológica, seus estudos
na língua grega o auxiliaram em sua exegese das Escrituras. Como bispo, não se envolveu muito
em controvérsias teológicas. Era conhecido mais por seu caráter, diplomacia, coerência e
bondade, que por suas ideias e/ou qualidades como teólogo. Teve grande influência na
conversão de Agostinho, a quem batizou tempos depois. A interpretação alegórica das Escrituras
(especialmente do AT) foi sua marca como teólogo.

b) Jerônimo (347-420): “A vida de Jerônimo é um admirável exemplo da graça de Deus


operando por meio das ambiguidades humanas” (Hall, 2000, p. 106). Possuía uma personalidade
áspera e contraditória: extremamente sensível às críticas, capaz de atacar alguém com uma mão,
e acariciar com a outra. É geralmente reconhecido como o erudito mais eminente entre os pais.
Reconhecido tradutor da Bíblia, dos textos hebraicos e parte do NT em grego para o Latim, uma
versão que ficou conhecida como vulgata. Seu pensamento também é rico por tocar em termos
não muito usuais na época (como a relação entre sexo, Deus e teologia), e pelo fato de interagir
com os grandes escritores de sua época e cultural. Por isso, como afirma Hall, relacionar nossa
experiência a de Jerônimo pode abrir novos caminhos de reflexão sobre a vida cristã e o
chamado ao discipulado no século XXI.

c) Agostinho (354-430): Um dos mais brilhantes pensadores cristãos de todos os séculos. Seu
pensamento situa-se na transição entre a antiguidade e a medievalidade. Foi um grande “divisor
de águas”, visto que influenciou todo o pensamento teológico posterior na igreja cristã
(medieval e moderna). Teve uma trajetória longa e conflitiva, passando por diversas crenças e
movimentos (que influenciaram a formação de seu pensamento), antes de se converter
definitivamente ao cristianismo: maniqueísmo, ceticismo, astrologia, neoplatonismo. Suas
principais ênfases teológicas foram: Graça, Livre-Arbítrio (embate com Pelágio), Mal (ideia de
pecado original), Autoridade, Verdade, Razão e Fé. Escreveu várias obras teológicas, comentários
bíblicos e sermões. As mais conhecidas são as suas Confissões (397-398) e Cidade de Deus
(iniciado em 413, terminado em 426).
d) Gregório, O Grande (540-604): Quase 150 anos separam o papa Gregório I de Agostinho. Sua
vida parece, como diz Hall, providencialmente ordenada para o papel que desenvolveria na Igreja
Ocidental: seu avô (Felix II) também havia sido papa; assim como Ambrósio, antes de se tornar
monge, ele também passou pela vida política, tendo sido prefeito de Roma; depois de um período
vivido como monge beneditino, foi indicado pelo papa Pelágio II para servir como representante
episcopal na igreja Oriental em Constantinopla. Posteriormente, em seu posto como papa (de
590 a 604), Gregório foi responsável pelo envio de missionários para atuar no mundo anglo-
saxão, e também pela divulgação de uma espécie de canto musical hoje conhecida como canto
gregoriano.  Assim, como Ambrósio, ele tinha predileção pela alegoria como forma de
interpretação da Bíblia. Nada podia ser ignorado e desprezado, desde que saudável, como
instrumento de leitura das escrituras. Em uma de suas cartas, ele escreveu que, na
“compreensão da Escritura sagrada, tudo quanto não se opõe a uma fé sadia não deve ser
rejeitado” (Hall, 2000, p. 121). Escreveu muitos sermões sobre diversos livros da Bíblia. 

Tratou-se, nos tópicos anteriores, de um panorama histórico acerca das controvérsias


doutrinárias e produção teológica da igreja até o fim desse período chamado antigo (com
exceção da menção a Gregório O Grande, que se situa na medievalidade). A intenção foi mostrar
que o desenvolvimento do pensamento cristão na história da igreja antiga não se deu de uma
forma unânime, uníssona, sem conflitos. Temos de suspeitar até mesmo dos “consensos” e
acordos outrora feitos, como no caso de Constantino e Nicéia, embora a providência divina nos
faça crer que, mesmo em meio aos desacordos e falhas humanas, o Espírito de Deus continuou
soprando e agindo nos “vasos de barro”. Isso é o mais fascinante.

Entre os pais da igreja, vimos tanto consonâncias como discórdias, e um exemplo disso está no
caso da interpretação alegórica das escrituras: enquanto Basílio e Crisóstomo criticaram o uso
da alegoria e defenderam uma interpretação mais literal,  Ambrósio   e o papa Gregório a
advogaram. Os desentendimentos entre essas importantes figuras mostram a diversidade de
interpretações, visões, e produções teológicas existentes no meio cristão desde os primórdios.
Terá sido isso algo apenas negativo? Deixamos algumas “conclusões inconclusas” sobre as
quais podemos chegar acerca do desenvolvimento teológico e doutrinário nesse período:

Primeiro, a reflexão teológica não é permanente e perene (constante, imutável);

Segundo, ela dialoga com os problemas, tendências e conflitos de uma época;

Terceiro, a teologia é necessariamente, e ao mesmo tempo, espiritual e saber racional. Isso


aprendemos com os pais da igreja, especialmente com Agostinho;

Quarto, a Teologia é coisa humana, composta a partir de experiências concretas de fé, luta e
busca por iluminação pela vontade de Deus. Sua matéria-prima é a própria vida.
Considerações finais

Entre Constantino e Teodósio: uma igreja profética frente à


oficialização romana
O escritor Leonardo Bo (1988, p. 59) ilustra a atuação da igreja em seus primórdios ao citar a
opinião de Celso – filósofo pagão do século III - que classifica os cristãos como “os que se
colocavam contra as instituições divinas do império”. Por seu modo de viver, diria este filósofo,
“os cristãos levantaram um grito de revolta” contra a ideologia imperial que fazia do Imperador
um deus e das estruturas do vasto império algo divino. Bo acrescenta que o novo
comportamento dos cristãos provocou, sem violência, um tipo de revolução social e cultural no
Império Romano, que está na base de nossa civilização ocidental, hoje vastamente secularizada e
esquecida de seu princípio genético. Tudo isso entrou no mundo por causa do comportamento
de Jesus que atingiu o homem pelas suas raízes, acionando o princípio- esperança e fazendo-o
sonhar com o Reino que não é um mundo totalmente outro que este, mas esse mesmo, porém
totalmente novo e renovado (Bo , 1988, p.59).

A partir do quarto século d. C., outro quadro será vislumbrado. Constantino, que se torna
imperador romano, declara-se cristão por volta do ano 313, após uma experiência mística que
afirma ter-lhe ocorrido, quando se preparava para uma guerra: um sinal de cruz apareceu-lhe
no sol, sob os dizeres “por este sinal vencerá”. Constantino, que era devoto do deus Mitra, após
a vitória na guerra, entendeu ser uma mensagem de mudança. Daí em diante concedeu liberdade
de culto ao cristianismo, doou recursos para construção de templos, remunerou o clero com as
espessas do Estado, conferindo-lhe também poder administrativo no Império, reabriu a Terra
Santa aos cristãos e judeus, cuidou pessoalmente da realização do primeiro grande concílio da
igreja: o de Nicéia, em 325. 
Glossário
Mitra: deus do Sol, da sabedoria e da guerra na mitologia persa.
Representava a luz, significando, literalmente, em persa,
"divindade solar". Ao longo dos séculos, foi incorporado à
mitologia hindu e à mitologia romana. No império romano, seu dia
de celebração era 25 de dezembro, em razão do solstício de
inverno.

Parte da igreja entendeu ser Constantino um instrumento divino para ajudar a consolidar
politicamente o reino de Deus na terra. Mais tarde, outro imperador — Teodósio, em 382 —
consolidou o projeto de tornar o cristianismo a religião oficial do Império Romano. Nascia assim
a Igreja Católica Romana. A partir daí a igreja desempenhará em tal sociedade um papel
semelhante ao da velha religião estatal, ou seja, concebendo Cristo apenas como um rei celestial
que dá apoio ao imperador cristão que governava em seu nome.

Mas é preciso ponderar que, mesmo não sendo majoritário, sempre houve um grupo que
resistiu e buscou vias alternativas para preservar as origens apostólicas da mensagem e da
missão cristãs, lutando por um reino de Deus que não se rendia ao reino do poder político e do
dinheiro. A voz profética voltada para o mundo e em favor da vida em sua integralidade, resistiu,
como o veremos em discussões subsequentes deste curso.

Referências
ANGLIN, W.; KNIGHT, A. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Casa Editora Evangélica, 1947.

BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador. Petrópolis: Vozes, 1988.

BORNKAMM, G. Crítica Literária de Filipenses. In: ____. Pablo de Tarso. Salamanca: Sigueme,
1982.

COMBLIN, José. Paulo Apóstolo de Jesus Cristo. Petrópolis: Vozes, 1993. 


GONZALEZ, Justo. A era dos mártires. São Paulo: Vida Nova, 1989.

GONZALEZ, Justo. A era dos gigantes. Uma história ilustrada do Cristianismo, Vol. 2. São Paulo:
Vida Nova, 1991.

MOLTMANN, Jürgen. O caminho de Jesus Cristo. Petrópolis: Vozes, 1993.

PROENÇA, Wander de Lara. Cruz e ressurreição: a identidade de Jesus para os nossos dias.


Londrina: Descoberta, 2001.

ROMA, Hipólito de. Liturgia e catequese em Roma no século III. Petrópolis: Vozes, 1981.

Textos complementares:

DREHER, Martin. A igreja no império romano. São Leopoldo: Sinodal, 2002, p.22-32. 

HALL, Cristopher A. Lendo as escrituras com os pais da igreja. Viçosa: Ultimato, 2000, p.46-57.

MCGRATH, Alister. Teologia histórica: uma introdução à história do pensamento cristão. São

Paulo: Editora Cultura Cristã, 2007, p.52-71.

PINHEIRO, Jorge; SANTOS, Marcelo. A expansão do cristianismo. In: Manual de história da igreja e

do pensamento cristão. São Paulo: Fonte Editorial, 2013, p.65-79.  


Introdução à unidade 3

O objetivo desta unidade é compreender as principais transformações pelas quais passou o


cristianismo na transição da antiguidade para a medievalidade. Também, identificar alguns dos
elementos que propiciaram essas transformações e como eles influenciaram a vida da igreja e
sua visão de mundo nos séculos adiante.

Que transformações sofreu o movimento cristão ao tornar-se religião imperial e que


configuração assumiria a partir do momento em que o papado tomou os poderes espirituais e
temporais supremos, assim como diante de outras mudanças no transcorrer da Idade Média?
Procuraremos responder a estas questões ao longo desta unidade, abordando tanto o processo
de institucionalização do cristianismo e a clericalização, como o surgimento de uma de suas
principais instituições, que permanece firme e forte até hoje: o papado.

O termo “medieval”, é importante observar, muitas vezes assume um sentido pejorativo e


preconceituoso, quando utilizado para descrever um período intermediário (médio) de espera,
no qual quase nada de importante teria acontecido, nenhum modelo interessante, padrão
estilístico atraente ou produção intelectual relevante que se possa considerar. É visto como um
tempo-lacuna, que fica no meio, entre a antiguidade e a idade moderna, estes sim, períodos de
“real validade” (Dreher, 1994, p. 7). Muitos, inclusive, a denominam de “idade das trevas”, ou
“era das trevas”; mil anos sombrios de desilusão e derrocada de sonhos. Essa ideia surge entre
pensadores do século XV em diante, interessados em enaltecer a influência do pensamento
antigo — retomado com o advento do Renascimento e depois com o Iluminismo — e rejeitar
qualquer traço que representasse o Antigo Regime, que, por sinal, ainda sobrevivia nas formas
de exploração dos camponeses.

Ao lado deste, coexiste e frutifica um outro mito, tão prejudicial quanto aquele, porém, com
tonalidades mais imaginárias: é a idealização e romantização dos tempos medievais, povoados
de heróis cavaleiros investidos em suas armaduras, que percorrem o mundo batalhando pela
justiça e pela fé, como no caso das Cruzadas, pela honra e pelo amor. Consideramos ambas as
posições no sentido de mostrar como a ideia de Idade Média pode ser ao mesmo tempo
complexa e simples, bem como de esclarecer alguns dos preconceitos que gravitam em torno
dela.

Fato é que se trata de um novo período na vida da Igreja, com novas práticas, novas doutrinas,
novos desafios, tanto em sua vida interna, como nas relações externas. A história não se repete,
está sempre se transformando. 

Nosso intuito aqui não é abarcar todas as transformações ocorridas nesse período, mas apenas
destacar as principais, no que diz respeito a dogmas e doutrina. Iniciamos, portanto, com as
seguintes perguntas: que transformações sofreu o cristianismo ao tornar-se religião imperial e
que configuração assumirá a partir do momento em que o papado ostenta poderes espirituais e
temporais supremos? Quais foram os processos que culminaram na cristandade medieval? Que
tipo de doutrinas e dogmas são originários desse período?
1. Como se deu o surgimento do catolicismo
romano?

1.1. O fortalecimento institucional


O Ocidente medieval nasce sobre as ruínas do mundo romano. Segundo o historiador Jacques Le
Go (1994, p. 27), em Roma esse “novo” ocidente encontrou vantagens e desvantagens; “ela foi
seu alimento e sua paralisia”. A partir da adesão de Constantino à fé cristã, no séc. IV, Roma
deixa, pelo menos oficialmente, a proteção dos deuses tutelares, em nome da proteção do Deus
cristão: paz e prosperidade parecem estar de volta sob o comando de Cristo. Cria-se uma falsa
ideia de unidade do império, tendo a religião cristã como cimento dessa unidade. Mas, como diz
Le Go , “o cristianismo é um falso aliado de Roma”. As estruturas romanas não passavam de
“um quadro” onde o cristianismo poderia tomar forma. Essa religião tinha pretensões mais
universais, e não se limitava a uma só civilização.

Com a queda do Império em 476, no Ocidente – após um período de quase setenta anos, iniciado
com a invasão e tomada de Roma por Alarico, chefe dos Godos, em 410 – explica Le Go que o
cristianismo será “o principal agente de transmissão da cultura romana ao Ocidente medieval.
Herdara, sem dúvida, de Roma e das suas origens históricas, a tendência para dobrar-se sobre si
próprio” (1994, p. 29).
Saiba mais

A ideia exposta por Martin Dreher é de que “a Idade Média foi um


período de tradução”. Neste sentido, a cristandade, enquanto
herdeira da cultura greco-romana, manteve alguns laços
inevitáveis com essa cultura. Mas a linguagem conceitual com a
qual ela se dirige a esse mundo medieval, não é de tradução do
antigo, mas de recriação desse antigo em função de um novo. O
que isto significa? Quer dizer que ela recria esse mundo a partir do
próprio universo de linguagem e representação que a Idade
Média apresenta, conferindo, talvez, a “velhas práticas”, uma nova
roupagem, um novo verniz, configurando assim algumas práticas
novas. Essa transição da língua grega para a latina não se dá por
meio de uma tradução, mas de refundações e ressignificações, a
partir da linguagem e do símbolo.

DREHER, Martin N. A Igreja no Mundo Medieval. Vol. 02. (Coleção


História da Igreja). São Leopoldo: Sinodal, 1994, p.9

Um fator primordial para a coesão e fortalecimento do cristianismo, nesse momento de


nascimento do medievo, foi o crescimento do papado. Desde Constantino, a autoridade da igreja,
por meio dos serviços realizados pelos clérigos e bispos regionais — sempre, é claro, debaixo do
olhar vigilante do imperador romano — vinha sendo cada vez mais incrementada e valorizada.
Quando as estruturas desse império, que possuía na igreja seu elemento de coesão, começam a
ruir com as invasões germânicas, ocorre processualmente um empoderamento natural das
autoridades eclesiásticas como sendo as vozes máximas do cristianismo. A igreja passa a ser a
“grande instituição provedora da antiga ordem que fora capaz de sobreviver, evitando ser
subvertida pelos invasores” (Walker, 1981, p. 180).

Inocêncio I (402-417) foi um desses líderes de destaque e proeminência nesse período.


Reivindicou para a igreja romana a custódia da tradição apostólica e o mérito da fundação do
cristianismo ocidental e, além disso, buscou a fundamentação no concílio de Nicéia, em 325,
para a jurisdição universal dos bispos romanos. 
1.2. O nascimento do papado
Estabelecer categoricamente quem foi o primeiro papa e quando isso se deu tem sido um
assunto controverso, pois prevalecem imprecisões históricas sobre os critérios e argumento
apresentados pela própria igreja romana. Porém, um nome importante e referencial aparece
ainda no século V: Leão I (440-461), que pode ser considerado o primeiro papa nos moldes
como hoje conhecemos essa figura religiosa.

Leão I teve um papel importante quando da invasão dos hunos e vândalos, e também nos
resultados a que chegou o Concílio de Calcedônia (451). Porém, os historiadores convencionam
que sua principal contribuição se deu com a “ênfase ao primado de Pedro entre os apóstolos,
tanto no que respeita à fé, quanto no que se refere ao governo, ensinando que o que Pedro
possuíra, havia passado aos sucessores de Pedro”. Para completar, conseguiu com que o
imperador do Ocidente, Valentino III, promulgasse um edito ordenando a todos que
obedecessem ao bispo de Roma (papa), como portador que era do “primado de São Pedro”
(Walker, 1987, p. 180).

Assim, todos os bispos de Roma, a partir de Leão I, passaram a ser reconhecidos como
sucessores do apóstolo Pedro, título cuja argumentação justificatória principal se vale de uma
interpretação das próprias palavras de Jesus, quando declarou: “tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16:18). Outros
bispos vierem após estes. Em suma, vale destacar que os direitos que o papado medieval viria
mais tarde reivindicar para si, já se esboçavam por volta dos séculos V e VI. E, como observa
Walker (1981, p. 181), “só no transcurso dos séculos, e não sem fazer face a muitas vicissitudes,
foi que se deu a plena efetivação do ideal papal”. O papado, enquanto coqueluche da igreja
católica medieval, aparece como fruto de um processo, entre conflitos, impedimentos e avanços.
Fato é que ele se estabeleceu no Ocidente, a partir do V século, e permanece até os dias atuais
como força representativa do poderio máximo da igreja católica e como guardião de seus mais
caros interesses.

Todavia, o reinado da igreja não iria se estabelecer assim, sem conflitos. Estamos falando de um
período em que a ocupação e o domínio do antigo território do império pelos povos bárbaros é
crescente, além de ser fonte de confrontos e mortes por toda parte. Era necessário à igreja, a fim
de manter seus privilégios perante a civilização e influência sobre as questões públicas, fazer
novos acordos e estreitar novas relações, exatamente como fizera com o antigo império, quando
de sua oficialização como religião do imperador. “A relação entre igreja e estado”, afirma David
Bosch (2002, p. 273), “era, efetivamente, a de ‘dar’ e ‘receber’. O regime seria abençoado pela
igreja, e o Estado, em troca, garantiria a esta proteção e apoio”.

Como ilustração, basta mencionar a carta que o imperador carolíngio Carlos Magno escreveu ao
papa Leão III, em 796, na qual reafirmava seu dever de defender, em qualquer lugar, a sagrada
igreja de Cristo contra os assaltos dos pagãos e as devastações dos descrentes.

Saiba mais 

A relação entre o poder da Igreja e o poder do Império

A relação entre imperador e papa, durante o início da Idade


Média, jamais foi livre de tensão; havia quase constantemente
uma silenciosa contenda pela supremacia. Ao mesmo tempo,
sabiam que se necessitavam mutuamente. O que valia para a
esfera mais alta também valia no nível local; cada bispo ou
sacerdote dependia da boa vontade e apoio das autoridades, e
todo governante local requeria a aprovação da igreja. A
dependência da igreja em relação ao poder imperial, também no
trabalho missionário, constituía tanto uma necessidade quanto
um ônus (BOSCH, David. Missão Transformadora. Mudanças de
paradigma na teologia da missão. São Leopoldo: Sinodal, 2002, p.
273).
2. Como se caracterizava a igreja medieval
institucional e como era a religiosidade do povo?

2.1. Autoridade, clericalismo e exclusão dos leigos


O historiador medievalista Hilário Franco Jr. fala de uma “linha tendencial” que ocupa a igreja
cristã por toda a Idade Média, e resume a participação política e eclesiástica do cristianismo
nesse período, dizendo que, num primeiro momento, a organização da hierarquia eclesiástica
visava à consolidação da recente vitória do cristianismo. A seguir, a aproximação com os
poderes políticos garantiu à igreja maiores possibilidades de atuação. Em uma terceira fase, o
corpo eclesiástico separou-se completamente da sociedade laica e procurou dirigi-la, buscando
desde fins do século XI erigir uma teocracia que esteve em via de se concretizar em princípios do
século XIII. Contudo, por fim, as transformações que a cristandade conhecera ao longo desse
tempo inviabilizaram o projeto papal e prepararam a sua maior crise, a Reforma Protestante do
século XVI (Franco Jr., 2006, p. 67).

Na opinião de Franco Jr.  (2006, p. 69), a Idade Média nasceu da articulação que a igreja fez entre
elementos da romanidade e elementos da cultura germânica. Ela foi “o ponto de encontro entre
aqueles povos”. Foi necessária, porém, a criação de uma estrutura e hierarquia próprias,
voltadas ao controle do laicato pelo clero, supervisionando ofícios religiosos, dando orientação
em questões referentes a dogma e doutrina, realizando obras sociais, protegendo os mais
pobres, oferecendo privilégios aos mais ricos, combatendo (e, paradoxalmente, legitimando) o
paganismo.
Glossário
Germânico: referente à atual Alemanha. Do conjunto de línguas
faladas por tribos germânicas é que se originaram o inglês, o
alemão, o neerlandês e as línguas escandinavas.

Laicato: referente a leigo, ou seja, a quem não pertence ao clero;


uma referência aos cristãos não ordenados para ofícios religiosos.
[A1]

Clero: referente aos ocupantes de cargos ou ofícios eclesiásticos


institucionalizados; autoridades religiosas que concentram
funções de liderança em distinção aos leigos.

Nesse momento se acentua o controle dos “bens de salvação” pelo clero. Ocorre o que eu
chamaria de cartada definitiva da hierarquia em relação à exclusão dos leigos (que já vinha
gradativamente ocorrendo), seja na administração dos sacramentos, seja no acesso às
escrituras. O grego, aos poucos, deixa de ser a língua-mãe, língua de acesso, dando lugar ao
latim, língua restritiva, especialmente às camadas populares. A igreja adota o latim como seu
dialeto principal, passa a usar a vulgata, versão em latim da Bíblia, traduzida por Jerônimo, e as
missas (outra instituição desse período) também são realizadas exclusivamente em latim.

De um movimento profético, em suas origens, o cristianismo passa a ser uma religião cada vez
mais institucionalizada e clericalizada. Isso se dava por um processo de legitimação dessa
autoridade junto às camadas leigas. Boreau afirma que a concentração de todas essas atividades
nas mãos de apenas alguns cristãos, era aceita com naturalidade pelo conjunto dos fiéis, já que
tal poder lhes fora atribuído pela própria Divindade: segundo o texto bíblico, Cristo dera aos
apóstolos autoridade para expelir demônios, curar doenças e difundir sua doutrina. Os
apóstolos, por sua vez, transmitiram esse poder aos bispos, isto é, os anciãos da comunidade,
que fizeram o mesmo com seus auxiliares. Logo o clero se formava pela transferência de certo
poder extra-humano por parte de quem possuía, para indivíduos que desde então passavam a
integrar a mesma comunidade sagrada. Desde o princípio, por sua própria natureza, o clero
estava distanciado dos demais cristãos (Boureau, 2002, p. 214). Muito rapidamente, desde o
século III, a organização da igreja foi hierarquizando os ministérios, que antes eram destinados
a todo o povo de Deus, conforme se pode notar nas palavras de Alain Boureau:
Os ofícios carismáticos de profeta, de doutor, de confessor são perdidos ou integrados ao “carisma da

verdade” (charisma veritatis certum) atribuído aos ministérios propriamente sacerdotais. Tal

institucionalização do carisma conhece um desenvolvimento particular no Ocidente, no qual as funções

de bispo e de papa adquirem uma crescente amplitude, ligada a uma espiritualidade específica, mas

também à ausência de um poder imperial forte e à solidez das estruturas territoriais romanas utilizadas

pela rede episcopal. Assim, a igreja ocidental constitui-se efetivamente em garantia da fé, em objeto

substantivo da confiança no Cristo (2002, p. 414).

Hilário Franco Jr., um historiador, obviamente não considera o fator teológico que envolve a
questão. Mas, apenas para realçar, as lideranças eclesiásticas foram constituídas, desde o tempo
apostólico, para o serviço à igreja, manutenção da ordem, ensino do Evangelho e esclarecimento
frente às crenças e ataques de seu tempo. Com o passar dos séculos ela foi se perdendo em meio
às querelas de poder, prestígio, autoridade e doutrina. E o ministério ordenado, que entre os
primeiros cristãos nasceu sob o signo do serviço e do amor, começa a se desvirtuar e gerar essa
“natureza” de separação e distanciamento, à qual alude Franco Jr, em relação aos demais
cristãos, subvertendo os princípios sob os quais fora instituída (ver 1 Pe 5:1-4).

A cobrança de Pedro em torno dos líderes da igreja, no aludido texto, não era para que se
transformassem em líderes polivalentes, personalistas e gananciosos, como muitos foram
através dos séculos e como alguns hoje, consciente ou inconscientemente, ambicionam se
tornar. Sua tarefa era mais ampla e difícil: conduzir o rebanho com o desejo de servir (não
dominar) e em busca da mútua cooperação, como aconteceu com os primeiros cristãos (At
2:42-47). Não é o pastoreio do isolamento, da imunidade ou superioridade em relação às
ovelhas, mas da sujeição, encarnação e envolvimento dignos de servos participantes dos
sofrimentos e também da glória de Cristo. Veremos, mais adiante, que o monasticismo foi uma
das instituições que, em parte, conseguiu preservar esse ideal do evangelho, a partir do VI
século.

Até aqui, realçamos o mundo de práticas religiosas institucionalizadas; agora, passamos para o
das não institucionalizadas ou, até certo ponto, não reconhecidas pela igreja, e por isso
subversivas; passaremos, portanto, não somente pelos processos que envolvem o poder e a
instituição da igreja, mas principalmente por algumas das crenças e práticas religiosas que vão
sendo reafirmadas, criadas e alimentadas entre os do povo, com ou sem a anuência da ordem,
seus dogmas e doutrinas.
O historiador André Vauchez, em sua obra A Espiritualidade na Idade Média Ocidental, diz que
para falar de espiritualidade na Idade Média é preciso ir além de um pensamento que a postule
como mera adesão a um corpo de doutrinas e dogmas, mas também “uma impregnação dos
indivíduos e das sociedades pelas crenças religiosas que eles professam”. A espiritualidade que
passa a ser desenvolvida nesse momento, especialmente entre as camadas populares (pobres,
artesãos, camponeses), tem mais a ver com expressividades e religiosidades que são fruto de
uma interiorização e individualização da mensagem cristã nas pessoas, em contato com as
crenças pagãs (Vauchez, 1995, p.11).

2.2. Religiosidade popular


Da sacralidade das formas organizadas, deslocamo-nos para a sacralidade dos ritos e da
religiosidade popular. Comentamos anteriormente que nos séculos V e VI houve uma profusão
de crenças místicas que se misturam com a fé cristã. No século VIII, a clericalização só fazia
aumentar o fluxo dessas crenças entre os leigos. Sobre o sincretismo na Idade Média, Vauchez
afirma que:

Pressentimos que a vida espiritual das massas transbordava dos limites obrigatórios da instituição

eclesiástica, e até do dogma cristão. [...] Mesmo nas regiões cristianizadas de mais longa data, a religião

oficial ainda era apenas, em muitos casos, um verniz que recobria superficialmente elementos

heterogêneos qualificados de “superstições” pelos clérigos (1995, p.23).

A natureza ou o teor dessas práticas também já foi comentada na unidade anterior. Vauchez
destaca algumas novas e velhas práticas que vigoravam nesse momento, como o culto dos
mortos, como mostra, no século IX, a instituição da festa de todos os santos, satisfazendo um dos
caprichos da piedade popular, à medida que enfatizava a vocação para a salvação dos fiéis já
falecidos. Estes ritos foram introduzidos no cânon da missa, mostrando que “a espiritualidade
do clero e a dos fiéis não constituíam nessa época dois mundos sem comunicação”.

Essa observação de Vauchez incrementa as suspeitas de que o combate às superstições nem


sempre foi algo assim tão ferrenho, a julgar pelas conveniências e/ou tendências de cada
momento desse período medieval, em constante mudança.
Outro encontro entre piedade popular e clerical está no culto dos santos e anjos. Segundo
Vauchez, a imagem de um Deus-Juiz, implacável, onisciente e distante, que estava incutida no
imaginário dos fiéis, fazia com que o desamparo desses só aumentasse. Havia, assim, a
necessidade de recorrer a mediadores, entidades espirituais mais acessíveis aos homens
comuns, papel este desempenhado pelos santos e os anjos. Seu papel era o de conferir validade
aos desejos dos fiéis e atendê-los na medida do possível. Mas a principal função era a proteção
dos homens. “Os arcanjos, únicos individualizados, eram gênios tutelares das comunidades
humanas e dos detentores do poder”.

Outra prática que só crescia em vigor e prestígio era o culto das relíquias. Relíquias eram os
objetos, ou até supostas partes do corpo, dos santos do passado (apóstolos, mártires), que
passaram a ser veneradas ao representarem o contato desses fiéis com o “outro mundo”,
também pelo “dinamismo benéfico” delas emanado, visto como meio de obtenção de vitórias e
curas nas mais diferentes áreas da vida. Desse modo, a espiritualidade medieval assumia
contornos cada vez mais definidos: o contato com o sobrenatural se dava por meio de gestos,
expressões da alma e sacrifícios feitos pelos fiéis.

Fórmulas, barganhas e promessas: elementos constitutivos de uma religião que se tornava cada
vez mais utilitária e voltada para a satisfação das carências pessoais. Paralelamente, tanto ao
espiritualismo utilitário que se desenvolvia na periferia da igreja, como ao engessamento
institucional e dogmático vislumbrado no centro, desenvolvia-se uma forma “alternativa” de
espiritualidade no período medieval, que é a espiritualidade monástica.

Em síntese, a flexibilização crescente dos costumes e das práticas religiosas no seio da igreja
cristã e à revelia dos dogmas e leis, que supostamente deveriam coibir tais práticas, conduziu a
uma espiritualidade ao mesmo tempo em que mais intimista, também mais utilitária, no sentido
de tentar manipular o sagrado em função dos desejos e anseios humanos. Vimos, portanto, que
a espiritualidade que passa a ser desenvolvida nesse momento, especialmente entre as camadas
populares (pobres, artesãos, camponeses), tem mais a ver com expressividades e religiosidades
que são fruto de uma interiorização e individualização da mensagem cristã nas pessoas, em
contato com as crenças pagãs.
3. Doutrinas e ritos praticados na Idade Média

3.1. O surgimento de heresias


Para a consolidação da estrutura hierárquica e autoridade, vistas em itens anteriores, um outro
elemento, paradoxalmente, deu sua parcela de contribuição: as chamadas “heresias”.

De acordo com Hilário Franco Jr. (2006, p. 69), estas eram produto do sincretismo que fazia a
força, mas também a fraqueza do cristianismo. De fato, ao reunir e harmonizar componentes de
várias crenças da época, a religião cristã tornava-se mais facilmente assimilável, porém passível
de interpretações discordantes do pensamento oficial do clero cristão. Do ponto de vista deste,
heresia era, portanto, um desvio em relação ao dogma que colocava em perigo a unidade da fé.

Saiba mais

Importantes concílios da igreja antiga:

A forma mais usual de debate e combate às heresias foi, desde o


século II, a realização de grandes concílios ecumênicos
(universais), como os de Nicéia (325), Constantinopla (381), Éfeso
(431) e Calcedônia (451). Porém, com o estabelecimento da
cristandade a partir da Idade Média, foi necessário, em certos
momentos, fazer “vistas grossas” frente a rebelião de crenças
populares que se uniram ao catolicismo.
Na desordem provocada pelas invasões, como afirma Le Go (1994, p.60), os bispos e os
monges haviam se tornado eles mesmos chefes polivalentes de um mundo desorganizado:
juntavam à sua função religiosa uma função política, negociando com os bárbaros; uma função
econômica, distribuindo víveres e esmolas; uma função social, protegendo pobres contra
poderosos; e até uma função militar, organizando a resistência ou lutando com as ‘armas
espirituais’, onde já não houvesse armas materiais.

Tentaram conter o avanço dos costumes bárbaros, com a aplicação de disciplinas penitenciais e
da lei canônica (o início do século VI é, simultaneamente à codificação civil, época de realização
de sínodos e concílios). Porém, como observa Le Go , eles mesmos estavam sendo
“barbarizados” e viam-se incapazes de lutar contra as ingerências da barbárie dos grandes
(líderes, chefes dos povos) e do povo. Usaram, assim, a velha tática de guerra do “se não pode
vencê-los, junte-se a eles”. A igreja começa a institucionalizar práticas que até então eram
avidamente rechaçadas como superstições e heresias, ratificando, nas palavras de Le Go
(1994, p. 61), a regressão da espiritualidade e da prática religiosa: “julgamentos de Deus,
inaudito crescimento do culto das relíquias, reforço dos tabus sexuais e alimentares em que a
mais primitiva tradição bíblica se alia aos costumes bárbaros”.

Desde a sua oficialização, no séc. IV, como aponta Leonildo S. Campos, o cristianismo se tornou
um produtor hegemônico de símbolos, práticas e rituais religiosos. Nesse período, com a
abertura ao culto cristão, já vinha ocorrendo um progressivo processo de sincretismo, sob os
olhos do imperador. Como descreve Campos (1997, p. 170), desde então, houve uma espécie de
adaptação do culto cristão aos novos lugares de adoração, alguns deles anteriormente dedicados
aos deuses pagãos. Vários santuários locais foram reconsagrados aos mártires e santos cristãos,
e com o passar dos séculos, um comércio de imagens, ícones e relíquias sagradas se estabeleceu
ao redor deles, práticas essas que constituíram mais de mil anos depois, aos olhos dos
reformadores, evidências claras da “paganização” da Igreja cristã.

Após a desintegração do poder político do Império Romano, a igreja permaneceu como o único
centro de referência capaz de manter a tradição e os costumes do passado. O uso da violência e a
imposição da fé, especialmente sobre uma população rural portadora de crenças mágicas e
pagãs, tornou-se algo comum naquele momento. Entretanto, como acentua Campos, essa
catequese “apenas formou uma camada de verniz sobre uma antiga realidade religiosa”. Como
também aponta Keith Thomas (1991, p. 171), a aristocracia eclesiástica não conseguiu
influenciar profundamente as massas populares, e por toda a parte na Europa, “multiplicavam-
se os cultos às relíquias sagradas, verdadeiros fetiches milagrosos, aos quais se atribuíam poder
de curar enfermidades e proteger as pessoas dos perigos”.

Uma das características da espiritualidade medieval no século VIII foi o retorno ao Antigo
Testamento. Dela, o que marcou profundamente foi a vida espiritual e as mentalidades
religiosas. Na época do Império carolíngio o cristianismo tornara-se mais e mais uma questão
de práticas exteriores e cumprimento de lei e regras espirituais. O moralismo carolíngio e os
costumes bárbaros facilitaram mais um regresso às práticas judaizantes, e a fé cristã corria o
risco de se deformar em credos e costumes supersticiosos.

Glossário

Carolíngio: referente a Carlos Magno (742 - 814), cujo personagem


é o maior representante do Império Carolíngio – dinastia que
ocupou grande parte da região central da Europa medieval,
constituindo o embrião da atual França.

Dogma: referente à doutrina ou conjunto verdades religiosas que


define o que é correto se acreditar ou crer.

Cânon: termo da língua grega que significa “vara de medir”, ou


“medida”; no sentido religioso, consiste em uma referência ao que
se estabelece como “medida da fé”, ou seja, verdade sagrada ou
divina.

Concílio: reunião de autoridades eclesiásticas para análise e


tomada de decisões de assuntos referentes à fé ou à doutrina
religiosa.
Nesse tempo, a vida litúrgica toma lugar crescente na vida dos fiéis. Os paramentos da missa
evoluem e, com a constante clericalização, há uma exclusão dos fiéis da comunhão, que se
evidenciava por diversas razões práticas (Vauchez, 1995, p. 16-17):

Primeiro, o culto e seus ritos tornaram-se um “apanágio de especialistas”;

Segundo, houve a inserção do canto gregoriano (forma erudita de canto, bem alheia ao
costumes e cultura do povo);

Terceiro, a adoção do latim como língua cultual; as leituras, especialmente da Bíblia, eram
feitas em latim, tornando impossível a compreensão pela maioria das pessoas, de cultura
germânica;

Quarto, uma separação da relação que havia entre vida cotidiana e sacramento; elimina-se
tudo o que poderia haver de realista e concreto no sacramento. Por ex. A comunhão
(eucaristia) passou a ser dada, não mais na mão do fiel, mas diretamente em sua boca.

3.2. Valorização da magia


Um legado do catolicismo medieval foi, portanto, o apego às relíquias ou objetos mágicos como
fetiches de proteção. Estes eram guardados nos lares dos devotos com o sentido de ajuda contra
doenças, infortúnios do demônio, intempéries ou pragas que poderiam ameaçar as colheitas.
Thomas exemplifica isto dizendo que o ritual básico era o benzimento com sal e água para a
saúde do corpo e expulsão dos maus espíritos. Mas os livros litúrgicos da época também traziam
rituais para benzer casas, gados, culturas, embarcações, ferramentas, armas, cisternas e
fornalhas. Havia fórmulas para abençoar homens que se preparavam para sair em viagem, para
travar um duelo, para entrar em batalha ou mudar de casa. Havia métodos para abençoar os
doentes e tratar de animais estéreis, para afastar o trovão e trazer a fecundidade ao leito
matrimonial. Fundamentalmente em todo esse procedimento era a ideia de exorcismo, o
esconjuro formal do demônio, expulsando de algum objeto material por meio de preces e da
invocação do nome de Deus. A água benta podia ser utilizada para afastar maus espíritos e
vapores pestilenciais. Era remédio contra a doença e a esterilidade (Thomas, 1991, p. 38).
Glossário

Magia: prática baseada na crença de ser possível influenciar o


curso dos acontecimentos e produzir efeitos não naturais,
valendo-se da intervenção de seres sobrenaturais e da
manipulação de algum princípio oculto supostamente presente
na natureza, seja por meio de fórmulas rituais ou de ações
simbólicas.

Destarte, a igreja, nas palavras de Thomas, atuava como “repositório de poderes sobrenaturais”,
subsidiando crenças sobre as quais nem ela mesma tinha o controle. Esses poderes podiam ser
distribuídos aos fiéis para auxiliá-los em seus problemas do cotidiano. O mais paradoxal é que
essas crenças surgiam, sobretudo, ligadas aos sacramentos tradicionais da igreja, como o
batismo e a eucaristia, além de ritos como a missa (que entra em vigor por volta do século VI), o
culto mariano – que ocorre como uma adaptação do antigo culto à deusa Diana, a partir da
homologação da devoção à Maria como Mãe de Jesus, no concílio de Éfeso em 431 – e o culto aos
mártires ou a adoração dos santos. Essa última, ao lado do culto mariano, tornou-se uma das
formas de devoção popular mais comuns e mais bem difundidas no período medieval.
Acreditava-se na proteção dos santos, que estavam sempre a postos para cuidar de uma
variedade de eventualidades da vida cotidiana.

O historiador Keith Thomas diz que a crença na proteção dos santos conferia um sentido de
identidade e existência corporativa a pequenas instituições que, do contrário, seriam
indiferenciadas. Foi por isso que continuaram a ter popularidade, como nomes para escolas e
universidades mesmo numa era protestante. Mas a adoração dos santos em geral dependia da
crença de que os santos e santas do passado, além de terem sido exemplos de um código ideal de
conduta moral, podiam ainda empregar poderes sobrenaturais para aliviarem as adversidades de
seus devotos na Terra. As doenças, assim como as profissões e localidades, eram atribuídas aos
cuidados especiais de um santo apropriado, pois, na mentalidade popular, os santos eram
usualmente vistos mais como especialistas do que como clínicos gerais (Thomas, 1991, p.37).

Não obstante levarmos em consideração esses elementos, vale ressaltar, segundo Thomas, que
não era a igreja quem oferecia diretamente e deliberadamente esse “corpo mágico” de ritos e
crenças aos leigos. “As principais preocupações da igreja eram espirituais. Em sua maioria, as
alegações de magia na religião eram parasitárias de suas doutrinas” (Thomas, 1991, p. 51). Ou
seja, pela leitura que faz esse historiador, era apenas em âmbito popular que se creditava um
poder mágico a tais doutrinas da igreja; as crenças populares eram, nesse sentido, releituras ou
ressignificações, desde uma perspectiva originária daqueles meios, do corpo ritual e dogmático
tradicional estabelecido e disponibilizado pela igreja. Por isso, pode-se concluir que ela foi em
parte “culpada” por possíveis desvios doutrinários ou “heresias”, e em parte inocente ou mera
expectadora de tudo aquilo. Contudo, a igreja combatia e deixava de combater as chamadas
“superstições” em seu seio conforme as conveniências do momento, adotando uma postura
ambivalente: ora lutando contra as crenças populares, ora endossando ou fazendo “vistas
grossas” frente a elas. É como pressupõe a lógica oferecida por Thomas (1991, p. 54), quando
diz que, se a crença na eficácia mágica da hóstia servia para aumentar o respeito pelo clero e
fazer com que os leigos fossem mais regularmente à igreja, por que não tolerá-la tacitamente?
Práticas como a veneração de relíquias, a recitação de preces ou o uso de talismãs e amuletos
podiam chegar a excessos, entretanto, se o efeito disso fosse unir mais o povo ao que se
considerava a verdadeira igreja e a Deus, prevalecia o argumento de que os fins justificam os
meios. O que contava era a intenção do devoto, e não os meios empregados. Desde que tais
práticas refletissem uma autêntica confiança em Deus e seus santos, delas não poderia advir
dano sério.

Os líderes e articuladores da Reforma Protestante, no século XVI, viriam a reagir energicamente


contra as conotações mágicas vivenciadas pela igreja católica medieval, atribuindo às mesmas,
inspirações do mal, associando-as à prática de necromancia. Os ritos católicos eram vistos, em
sua maioria, como metamorfoses mal disfarçadas de cerimônias pagãs anteriores, os primeiros
reformadores também começaram a suspender costumes tradicionais do calendário.
Evidentemente, essa nova atitude protestante em relação à magia eclesiástica não logrou uma
vitória imediata, pois algumas tradições do passado católico insistiam em subsistir (Thomas,
1991, p. 66-70).
Considerações finais

Retomando de maneira breve o conteúdo das duas últimas unidades, dada sua interligação:
vimos, em primeiro lugar, que o desenvolvimento do papado foi extremamente relevante para o
fortalecimento institucional do cristianismo em meio a um império em ruínas e as facetas de um
novo mundo (medieval), cheio de “armadilhas” e desafios, que requereria novas posturas e
adaptações por parte da igreja; em um segundo momento, a clericalização dos ministérios e a
exclusão do povo de Deus à mera passividade (pelo menos em tese) foi outra forma que a igreja
encontrou para se articular e se firmar frente às mudanças políticas e sociais na Idade Média.

Em terceiro lugar, fez-se uma observação geral acerca das crenças e doutrinas que emergiram
nesse período, ora sendo combatidas, ora sendo legitimadas, de acordo com a estratégia e/ou a
conveniência do momento. Nisso vemos claramente destacada a capacidade da religião, em um
sentido mais amplo, tanto de dogmatização e intolerância, quanto de flexibilização dos
costumes e práticas que configuram uma vida consagrada. Vislumbramos, de modos diferentes,
essa adaptação sendo feita no cristianismo contemporâneo, seja entre católicos ou protestantes.
A adaptação, seja de que ordem for, não é um problema. O problema ocorre quando essa
adaptação compromete a integridade da mensagem e do testemunho cristãos. E quanto a isso
precisamos estar atentos. O conhecimento histórico, assim, nos ajuda a compreender a
realidade e interpretá-la, construindo diretrizes para novas ações no tempo presente.

Outro fator para o qual precisamos atentar é quanto à nossa tendência ao julgamento. Frisamos
este ponto já na primeira unidade, mas é uma ressalva sempre cabível: avaliar criticamente não
equivale a julgar de forma anacrônica; o julgamento é um dos lugares impróprios da história e da
teologia. Dadas as alternativas históricas que estes cristãos medievais tinham à sua disposição,
as escolhas aqui apresentadas foram as que pareceram ter mais nexo para eles. “É preciso
perguntar se nossas opções, em circunstâncias similares, teriam sido mais adequadas, mesmo
se diferentes” (Bosch, 2002, p. 274).
Glossário

Anacronismo:  atribuir a uma época ou a um personagem ideias e


sentimentos que são de outra época; julgar atitudes ou fatos com
critérios que estejam fora de sua respectiva época.

Referências
BOSCH, David. Missão Transformadora. Mudanças de paradigma na teologia da missão. São

Leopoldo: Sinodal, 2002.

BOUREAU, Alain. Fé. In: LE GOFF, J. & SCHIMITT, J. C. Dicionário Temático do Ocidente Medieval.

Vol. 1. São Paulo: EDUSC, 2002.

CAMPOS, Leonildo S. Templo, Teatro e Mercado. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Simpósio e UMESP,

1997.

DREHER, Martin N. A Igreja no Mundo Medieval. Vol. 02. (Coleção História da Igreja). São

Leopoldo: Sinodal, 1994.

FRANCO JR, Hilário. A Idade Média. Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006.

LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Vol. I. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.

THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental. Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1995.

WALKER, W. História da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1987.

Textos complementares

PINHEIRO, Jorge; SANTOS, Marcelo. Manual da história da igreja e do pensamento cristão. São
Paulo: Fonte Editorial, 2013, p.101-111 

VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1995, p.11-31.

C O NT I NU E
Introdução à unidade 4

UNIDADE IV – CRISTIANISMO MEDIEVAL

Nos próximos tópicos, vamos estudar outro fenômeno religioso importante da Idade Média: o
monasticismo. Buscamos compreender, em linhas gerais, o que se entende por monasticismo?
Onde ele surgiu e com que proposta? Em que medida ele se diferenciava do modelo de igreja
vigente, e/ou em que medida apenas lhe servia de apoio? Quais são os desdobramentos possíveis
desse movimento? Em que medida o monasticismo pode ser considerado um “agente
missionário” durante esse período? Que tipo de influência exerceu na história do cristianismo,
não apenas na Idade Média, mas também em seu futuro? Em linhas gerais, compreender o que
foi o monasticismo, suas principais correntes e influências no mundo medieval; entender em
que medida o monasticismo pode ser considerado um “agente missionário” durante esse
período. Neste aspecto, cabe destacar seu papel voltado à integralidade da missão: cuidado social
de desvalidos, doentes, órfãos, idosos e viúvas; trabalho educacional oferecido a quem não podia
pagar por ele; produção de livros e formação de bibliotecas, assegurando a preservação e
transmissão de conhecimentos e saberes às gerações futuras; o conhecimento de plantas,
responsável por assegurar tratamento e cura das vítimas mais expostas a um tempo de
epidemias coletivas, salvando assim os que se encontravam mais alijados do amparo social.

Também veremos sobre o Islamismo. Este tem sido, nos dias atuais, assunto recorrente nos
meios de comunicação, assim como tema cada vez mais desafiador nos campos de estudo que
tratam do cenário religioso contemporâneo. O movimento islâmico tem suas raízes históricas
na Idade Média, sendo, já em sua gênese, protagonista de tensões e embates envolvendo
cristianismo e judaísmo, especialmente pelas disputas e controle de territórios sagrados.
Objetivamos conhecer o surgimento do Islamismo; analisar a relação do Islã com o cristianismo
e o judaísmo no contexto medieval; trazer reflexões para o cenário religioso atual que envolve as
religiões monoteístas.
Veremos por que uma reforma passou a ser vista como necessária na Igreja, ainda no período
medieval, culminando na ruptura protestante configurada no século XVI? Por que muitos
cristãos, por diferentes motivos, especialmente a partir do século X, passaram a ver a
necessidade de reforma? Buscaremos conhecer os motivos que levaram cristãos em diferentes
momentos e lugares do contexto medieval a desejarem uma reforma na igreja; identificar e
caracterizar alguns dos aspectos teológico-doutrinários que são vistos como preponderantes
para a busca por reformas; estabelecer noções preparatórias para compreensão dos
movimentos denominados de “pré-reformadores” no período medieval, a serem analisados na
próxima unidade. Diante disto, ainda analisar: O que foram os chamados movimentos pré-
reformadores e por que assim são denominados? Qual a importância deles nesse período de
transição? No que de fato avançaram em relação ao status quo religioso de seu tempo?
Começamos a estudar aqui um período importante na história da igreja, pois os personagens e
acontecimentos desse período precederam e abriram passagem para aquilo que tempos depois
se passou a denominar Reforma Protestante. 
1. O surgimento do Islã e as cruzadas medievais

1.1. As origens do Islã


Discórdia familiar: assim começa a descrição bíblica do que viria a se tornar um histórico
conflito entre povos que professam a fé monoteísta. Segundo a narrativa bíblica do Gênesis, não
podendo ter filho de sua mulher Sarai, Abrão tomou por esposa a sua escrava egípcia, Hagar, da
qual viera a nascer-lhe Ismael. Esta atitude, que foi inicialmente sugerida pela própria Sarai,
tinha precedentes legais no Código de Hamurabi (elaborado na Mesopotâmia), o qual prescrevia
para os contratos de casamento, a obrigação de prover-se esposa para o marido, caso a mulher
não pudesse lhe gerar filhos.

Glossário

Mesopotâmia: termo que significa terra ou região entre rios; entre


os rios Tigre e Eufrates, localizados na Ásia.

Código de Hamurabi: conjunto de leis criadas na Mesopotâmia,


por volta do século XVIII a.C., pelo rei Hamurabi, da primeira
dinastia babilônica. O código é baseado na lei de talião, “olho por
olho, dente por dente”. As 281 leis foram talhadas numa rocha de
diorito de cor escura.
A concepção de Ismael, entretanto, gerou desentendimento e conflito entre senhora e escrava:
“Vendo Hagar que havia concebido, foi sua senhora por ela desprezada ... Disse Sarai a Abrão:
seja sobre ti a afronta que se me faz a mim [...] Sarai humilhou-a, e ela fugiu de sua presença”
(Gn 16:1-6).

Depois disso, um anjo do Senhor apareceu-lhe “no caminho do deserto de Sur” (v.7) ordenando
a Hagar que voltasse para a casa de sua senhora, fazendo-lhe, inclusive, uma promessa:
“Multiplicarei sobremodo a sua descendência [...] Concebeste, e darás à luz um filho a quem
chamarás Ismael [...] Ele será entre os homens como um jumento selvagem; a sua mão será
contra todos, e a mão de todos contra ele”. (Gn 16:9-12). Interessante é notar que as promessas
feitas por Deus a Abrão incluem também Ismael: “Dar-te-ei à tua descendência a terra das tuas
peregrinações, toda a terra de Canaã em possessão perpétua, e serei o seu Deus [...] abençoá-lo-
ei (Ismael), fá-lo-ei fecundo e o multiplicarei extraordinariamente; gerará doze príncipes, e dele
farei uma grande nação” (Gn 17:8,20). Ismael também foi incluído na aliança pelo rito da
circuncisão, juntamente com seu pai (Gn 17: 23-27).

Mais tarde, de forma miraculosa, a estéril Sara também viria a conceber, seria um menino sobre
o qual também repousaria grande e até maior promessa: “Sara tua mulher te dará um filho e lhe
chamarás Isaque: estabelecerei com ele a minha aliança, aliança perpétua para a sua
descendência” (Gn 17:19).

Um novo desentendimento surge quando ocorre o nascimento daquela criança: “Vendo Sara
que o filho de Hagar, a egípcia, caçoava de Isaque, disse a Abraão: rejeita essa escrava e seu filho,
porque o filho dessa escrava não será herdeiro com Isaque meu filho” (Gn 21:9-10).

A escrava então conduziu o seu filho ao deserto, onde se tornou guerreiro, vindo a se casar com
uma egípcia. Ismael morreu com “cento e trinta e sete anos” (Gn 25:17) e a sua descendência
passou a ocupar as regiões da atual Arábia Saudita (v. 18).

1.2. A ocupação da Palestina pelo povo hebreu


Segundo a narrativa do Gênesis, e como dito anteriormente, de Abraão descende Isaque, do qual
nasceu Jacó, que teve o seu nome mudado para Israel (Gn 32:28). De Israel nasceram doze
filhos, que vieram a formar as doze tribos que ocupariam a terra prometida por Deus a Abraão,
por volta do ano 1.200 a.C., conquistada sob a liderança de Josué, após a libertação do Egito e a
peregrinação pelo deserto. Nesta terra da promessa, o rei Davi, por volta do ano mil a.C., fez de
Jerusalém a capital do seu reino, onde seria construído por Salomão, no século X a. C., o templo
sobre o Monte Sião, que se tornaria a principal referência sagrada para o povo judeu, que faria
daquela cidade, definitivamente, a “Cidade Santa”. Historicamente, nasceria ali a primeira
religião monoteísta: o Judaísmo (nome dado por referência à proeminente tribo de Judá). Da
descendência deste povo, mais tarde, também nasceu Jesus Cristo, a partir de quem se formou a
segunda crença monoteísta: o Cristianismo.

No século VI a.C., os hebreus foram submetidos ao duro exílio babilônico, quando também
ocorreu a primeira destruição do templo. Após setenta anos de cativeiro, apenas um terço da
população que fora deportada retornou, o restante espalhou-se nas mais diferentes cidades do
mundo antigo, fato que ficou conhecido como a diáspora (dispersão) judaica. A população que
voltou do exílio, sob a liderança de Esdras e Neemias, teve a difícil tarefa de reerguer a nação,
reconstruir os muros e o antigo templo.

Nos dias de Cristo, da população de 5,5 milhões de judeus, apenas um terço continuava a viver na
sua própria pátria, estando sob o domínio político do Império Romano. Esta presença
estrangeira na sua terra gerava grande desconforto e revolta ao povo que se considerava
legítimo herdeiro daquelas possessões devido às promessas que o próprio Deus havia feito ao
patriarca Abraão. Foi nesse ambiente de insatisfação que, no ano 66 d.C., eclodiu uma revolta
armada dos partidos religiosos judaicos que buscavam a libertação da presença e dominação
romana na Palestina. Após quatro anos de sangrentos combates, finalmente, as legiões
romanas, lideradas pelo general Tito, conseguiram retomar o controle da cidade de Jerusalém,
quando o templo acabou sendo completamente destruído pelos soldados romanos, cumprindo,
assim, o que Cristo havia predito em Mateus 24:1,2.

Neste episódio, no ano 70 d. C., todos os judeus foram definitivamente expulsos da sua terra,
ocasionando a segunda diáspora. A partir disso, o povo judeu passou a existir como nação sem
território e sem Estado. Disperso agora pelo mundo, foi através da religião, centralizada nas
sinagogas, que este povo procurou preservar os seus costumes, tradição e a identidade religiosa.
Os sacrifícios de animais deixaram, então, de ser praticados: não havia mais o templo para este
rito. Um rabino, por volta do ano 90, ao visitar as ruínas da Cidade Santa, interpretou o texto de
Oséias 6:6 (“pois misericórdia quero, e não sacrifício”), dizendo que a partir de então, a “caridade”
iria substituir os sacrifícios até o dia em que aquele espaço sagrado fosse novamente restaurado.
No século IV, Constantino, imperador romano, declarou-se cristão e reconheceu o Cristianismo
como religião lícita em todo o Império. Helena, mãe do imperador, tornou-se uma cristã piedosa
e promoveu a construção de templos na Palestina, em locais considerados sagrados pelos
antigos cristãos: o da Natividade em Belém, onde Jesus nascera, e também o do Santo Sepulcro,
onde se acreditava que o corpo de Cristo havia sido sepultado. A partir daí, nos séculos seguintes,
visitar a Palestina passou a ser o sonho de toda a cristandade, motivada pelos mais diferentes
interesses: conhecer os lugares em que Jesus viveu; batizar-se no Rio Jordão; conseguir objetos
supostamente sagrados (como, pedaços da cruz em que Cristo morrera, ou que tivessem sido
utilizados por algum dos apóstolos, e ainda, pedras do Sinai, água do Rio Jordão etc.), por
acreditarem que os mesmos possuíssem poderes miraculosos contra enfermidades ou para
proteção das casas e dos negócios; pagar votos ou penitências. Também foram construídos
vários mosteiros nestes arredores. Neste tempo, os judeus tiveram nova permissão para visitar a
Terra Santa, na prática, porém, houve dificuldades para ali se estabelecerem devido à presença
em maioria de cristãos que lá se fixaram e ao estigma que os cristãos medievais cultivavam por
eles. Tal embate era basicamente ocasionado por dois motivos: primeiro, eram diretamente
responsabilizados pela morte de Jesus; segundo, haviam perseguido a igreja primitiva, proibindo
os cristãos de se reunirem no templo de Jerusalém e também em muitas das suas sinagogas.

No século V, porém, com a tomada do Império Romano do Ocidente, pelos chamados “povos
bárbaros”, ocorreram profundas turbulências políticas que afetaram o controle da Palestina
pelos cristãos. Mas, foi partir do século VII d. C, quando surgiu a religião fundada por Maomé,
que a disputa religiosa pela Cidade Santa se agravou ainda mais.

1.3. Formação e desenvolvimento do Islamismo


No século VII d.C., surgiu a terceira religião monoteísta, o Islamismo, fundada por Maomé, de
origem árabe. Atribui-se a ascendência genealógica do povo árabe a Ismael, o filho de Abraão
com a escrava egípcia Hagar. As diferentes tribos, que se formaram a partir deste povo, se
tornaram politeístas (crença em vários deuses), ao contrário dos descendentes de Isaque. É de
uma destas tribos que nascerá, no ano 570 d. C., em Meca, Maomé. Tendo ficado órfão muito
cedo, Maomé foi criado por seu tio. Passou por grandes privações até tornar-se administrador
dos bens da rica viúva Kadidja, com a qual se casou em 595. Ao tornar-se mercador, viajou até a
Síria, onde teve contato com as doutrinas monoteístas (crença em um só Deus), passando a ser
por elas influenciado.

Foi a partir daí que começou então a se preocupar com as crenças do seu povo, fato que o levava a
se retirar sistematicamente para as montanhas nas proximidades de Meca, onde, por volta do
ano 610, afirmara ter tido visões e audições nas quais ouvia a voz de Deus e via o arcanjo Gabriel.
Passou a estar convicto de ser um escolhido de Deus (nome que em árabe significa Alá) para ser
o profeta que iria reconduzir o seu povo à verdadeira fé no verdadeiro Deus. Suas primeiras
pregações, em que descrevia em cores vivas o fim do mundo, os castigos do inferno e as alegrias
do paraíso, não obtiveram muito êxito. Conflitos de ordem econômica levaram-no a fugir para
Medina, em 622, onde viria a conquistar muitos seguidores. Como um líder messiânico,
acreditava ser o escolhido para restaurar a verdadeira religião de Abraão; objetivava aperfeiçoar o
Judaísmo e Cristianismo, nos quais via distorções. Tornou-se ferrenho adversário dos judeus
quando estes rejeitaram suas pregações. Por ocasião da sua morte, em 632, Meca já havia sido
por ele conquistada tornando-se a cidade sagrada do Islã e quase toda a Arábia já seguia seus
ensinamentos. O Alcorão (ou Corão), que registra seus ensinos e revelações, veio a ser escrito
algum tempo depois, tornando-se a verdade absoluta a ser obedecida e o fundamento do
Islamismo (“islã” significa “submissão à vontade de Deus”).

Glossário

Monoteísmo: Fé professada em um único Deus.

Alá: Palavra árabe que significa “Deus”.

Alcorão (ou Corão): Termo da língua árabe Al-qurã, que significa


“A leitura” (leitura sagrada).

Islã (Islamismo): Significa “submissão à vontade de Alá”.

Israelenses: Judeus que atualmente vivem no Estado de Israel (na


Palestina).
Muçulmano: Vocábulo do árabe Muslim, que significa “aquele que
se entrega ao Islã”.

Palestina: Região geográfica da Ásia, atualmente ocupada por


judeus, cristãos e muçulmanos.

Palestino: Termo usado para identificar os muçulmanos que


atualmente vivem na Palestina.

Após a morte de Maomé, o movimento islâmico passou a ser liderado pelos califas
(“sucessores”), e um objetivo maior passou a ser perseguido: fazer com que todos os homens
reconheçam que Alá é o único Deus e Maomé o seu profeta. Para isso formaram-se exércitos
árabes, pois a verdade do Islã deveria ser propagada, ainda que para isso fosse preciso o auxílio
da espada. Iniciava-se, desta forma, o que viria a se configurar em guerra santa. Em pouco mais
de um século de existência, o Islamismo já havia feito grandes conquistas religiosas e
territoriais. Uma delas foi Jerusalém, com seus lugares sagrados, invadida e dominada pelos
árabes no ano 638, sob a liderança religiosa do califa Omar. 

Dois anos depois, com a conquista de Cesareia e Gaza, toda a região estava sob o domínio do Islã.
No início, não houve perseguição nem a cristãos nem a judeus que habitavam a Terra Santa pelo
fato de serem também monoteístas. Ao entrar em Jerusalém, o califa Omar decretou: “os
cristãos terão garantidos os seus bens e suas igrejas ... Os judeus podem morar em Jerusalém
junto com os cristãos, desde que respeitem o Profeta e o Corão”. Proibiu-se, entretanto, que os
cristãos fizessem propagação da sua fé entre os muçulmanos e que estes viessem a se converter
ao Cristianismo ou ao Judaísmo. Mais tarde, no lugar do antigo templo dos judeus, os árabes
construiriam duas mesquitas, sendo a de Omar considerada o terceiro mais importante
santuário do Islã, por acreditarem que daquele lugar o profeta Maomé ascendeu ao céu, logo
depois de sua morte.

Toda a igreja imperial do Oriente sucumbiu perante o Islã: o Egito e o Norte da África, Damasco,
Pérsia; parte da França e Espanha, também trocaram o Evangelho pelas leis do Corão. Os
principais centros da fé cristã antiga, como Jerusalém, Antioquia (Síria), Alexandria (Egito) e
Cartago (África), foram dominados por essa nova religião, restando apenas Roma e
Constantinopla, sendo que esta última viria também a ser conquistada pelos turcos otomanos,
em 1453.

Com o controle das regiões que haviam sido o berço da fé cristã, a partir do século VIII, cristãos e
judeus passaram a ter cada vez mais dificuldades para realizarem peregrinações à Terra Santa.
Por isso, a partir do século XI, os cristãos passaram a organizar movimentos conhecidos como
“Cruzadas”, que duraram dois séculos (1096-1291), visando a libertação daqueles territórios. A
organização da primeira cruzada se deu no ano de 1096, por convocação do Papa Urbano II. Foi
constituída por um exército de cristãos que totalizou 20 mil homens e mulheres, os quais
marcharam para Jerusalém, em uma caminhada que durou mais de dois anos. O historiador
Martin Dreher descreve os episódios e as mobilizações que marcaram algumas das cruzadas:

O primeiro grupo partiu da França e era composto por 20.000 homens e mulheres. Seu líder era um

eremita de nome Pedro de Amiens, um dos muitos pregadores ambulantes da época. Pedro e todos os

seus seguidores queriam ir para Jerusalém, a fim de esperar a libertação de Sião e milagres. Não tinham

dinheiro, nem alimentos, mas muita fome. Houve depredações, saques e mortes por onde passaram.

Depois de muitas dificuldades chegaram à Ásia Menor, onde foram dizimados pelos turcos [...] Em 1097

formou-se um grupo com 12.000 homens e mulheres. A caminhada até Jerusalém levou dois anos. Em 14

de julho de 1099 Jerusalém foi tomada.  Como era uma sexta-feira, todos se lembraram da crucificação

de Jesus e, por isso, organizaram uma matança feroz contra a população muçulmana. Não houve

sobreviventes. Os judeus haviam se refugiado em sua sinagoga. Ela foi posta em chamas. Todos

morreram. Finalmente, esse bando, manchado de sangue, entrou na Igreja do Santo Sepulcro para se

reunir em oração diante de Deus (1994, p. 58, 59).

Na verdade, o objetivo da libertação da Terra Santa jamais foi alcançado, pois tudo o que
conquistaram voltaram rapidamente a perder. Ainda mais sete cruzadas foram organizadas sem
que obtivessem maiores êxitos, pelo contrário, quase todas tiveram um fim trágico,
principalmente para os cristãos do Ocidente. A partir desse momento, a Palestina ficou
exclusivamente debaixo do controle islâmico, que fez definitivamente de Jerusalém um dos
lugares sagrados de sua fé.
SAIBA MAIS: A Palestina nos dias atuais

Amparadas pela Inglaterra, desde o final do século XIX, grandes


levas de judeus começaram a imigrar para a antiga Palestina, fato
que se intensificaria ainda mais na década de 1940, quando o
movimento nazista, liderado por Hitler, na Alemanha, provocou a
Segunda Guerra Mundial, ocasião em que aproximadamente 6
milhões de judeus foram mortos nos campos de concentração.
Com este “holocausto”, no final da guerra, em 1945, o mundo se
sensibilizou com a situação em que se encontrava este povo. A
partir daí, países como Estados Unidos e Inglaterra, lideraram um
movimento para a reintegração de Israel em sua pátria, até que
em 1947, a Organização das Nações Unidas (ONU), em uma
reunião presidida pelo brasileiro Osvaldo Aranha, votou pela
partilha da terra da Palestina em dois territórios, dando aos judeus
o direito de reconstruírem o seu Estado. Dessa forma, em 1948, foi
criado o novo Estado de Israel, do qual, perto de 800 mil árabes
saíram ou foram expulsos, formando um contingente atual de 2,5
milhões de refugiados vivendo em vários países. Em pouco
tempo os judeus, que receberam uma região desértica,
desenvolveram avançada tecnologia de irrigação, fazendo
literalmente o “deserto florescer”, vindo a constituir-se em uma
das grandes potências no cenário econômico mundial.

Nesta partilha de território feita com os árabes, Jerusalém e


outros locais sagrados tiveram que também ser divididos, sendo
que o exato lugar do antigo templo judaico continuou ocupado
pela mesquita muçulmana de Omar. Daí porque os judeus
passarem a empreender guerrilhas na Terra Santa visando
expandir suas fronteiras, transferir para Jerusalém a capital do seu
Estado, atualmente centrada em Telaviv, e reconquistar para sua
fé o lugar do antigo templo, do qual só lhes resta, atualmente, o
Muro das Lamentações, e ali novamente reconstruir um novo
santuário aos moldes daquele. Em 1967, após intensos e
sangrentos combates, a parte árabe da cidade de Jerusalém foi
tomada pelos israelenses, desencadeando, assim, a revolta por
parte dos palestinos (como são chamados os muçulmanos que lá
vivem), o que transformou a Terra Santa num permanente palco
de guerrilhas.

Foi neste período que surgiu o líder Yasser Arafat, que criou, no
final dos anos 60, a Fath, movimento guerrilheiro islâmico que se
tornou a espinha dorsal da Organização para a Libertação da
Palestina (OLP). Nos anos 70, ele colocou a questão da Palestina
no centro das atenções mundiais com uma sangrenta campanha
terrorista contra Israel, momento em que os países árabes
chegaram a fazer um boicote nas exportações de petróleo. Porém
no final dos anos 80, desistiu do plano de riscar o Estado judeu do
mapa. Já nos anos 90, Arafat começou a procurar acomodação
com o inimigo, passando a buscar acordos de paz, chegando a
receber, inclusive, o Prêmio Nobel, ganho em parceria com o
israelense Itzhak Rabin pelos acordos de paz assinados em 1993.
Nesses acordos, Rabin concordara em ceder, aos poucos, os
territórios ocupados enquanto a OLP, por sua vez, passaria a
reconhecer o Estado israelense. O assassinato de Itzhak em 1995,
por um judeu fanático, atravancaria novamente os processos de
paz.

Yasser Arafat passou a presidir a Autoridade da Palestina, com


sede na Faixa de Gaza, que controla 80% deste território que é
habitado por 1 milhão de palestinos e 4 mil colonos israelenses,
exercendo também controle sobre 40% da Cisjordânia, onde
vivem milhões de Palestinos e 200 mil colonos judeus. Arafat teve
como grande objetivo não só recuperar territórios perdidos, mas,
principalmente, constituir um Estado Palestino, com capital em
Jerusalém.

Em outubro de 2000, o então presidente americano Bill Clinton


convocou Arafat e o primeiro-ministro israelense, Ehud Barak,
para discutirem um acordo final para as desavenças entre árabes
e judeus. A reunião ocorreu no Egito, e os dois líderes
concordaram em tentar acalmar os ânimos no Oriente Médio, mas
se recusaram a pôr o acordo no papel e até mesmo a trocar um
aperto de mãos. Barak chegou, inclusive, a surpreender com uma
ousada proposta de criar o Estado palestino em 90% da
Cisjordânia, com capital nos bairros árabes de Jerusalém. Israel
anexaria apenas áreas densamente habitadas por judeus. Sob o
olhar de Bill Clinton, Yasser Arafat rejeitou integralmente a oferta.
Para espanto e irritação do anfitrião americano, partiu sem fazer a
contraproposta esperada pela Casa Branca.

Certamente, Arafat não pensava numa proposta inferior do que a


soberania palestina sobre a parte árabe da Cidade Santa, ocupada
por Israel na Guerra de 1967, pois, prometera centenas de vezes
ao seu povo que não negociaria a entrega de Jerusalém Oriental
e, particularmente, aquilo que se tornou o ícone do nacionalismo
palestino: a Esplanada das Mesquitas (local do antigo templo da
religião judaica). Muitos israelenses viram nesta atitude a prova de
que o líder palestino nunca pretendeu realmente fazer a paz.
Contudo os palestinos também ficaram frustrados com o
resultado de oito anos de negociações e com a determinação dos
israelenses de continuarem instalando colonos nos territórios que
ocupam desde 1967. O líder iraquiano Saddam Hussein, quando
convidado a participar de uma reunião com outros governantes
árabes para discutir o conflito na Palestina, em outubro de 2000,
não hesitou em propor uma guerra santa para libertar Jerusalém.
(Proença, 2006)

SAIBA MAIS: O monoteísmo em conflito

As três únicas religiões monoteístas do mundo, Judaísmo,


Cristianismo e Islamismo, têm em comum não apenas o fato de
professarem a fé no mesmo Deus, chamado de “Javé” pelos
judeus, de “Senhor” pelos cristãos, e de “Alá” pelos islâmicos, mas
também o pertencimento a uma aliança feita com o mesmo
patriarca, Abraão: árabes e judeus pela ascendência étnica, e
cristãos pela herança espiritual, conforme análise feita pelo
apóstolo Paulo em Gálata 3:16, dizendo que o “legítimo
descendente de Abraão é Cristo”.

No relato bíblico de Gênesis 12, Deus fez promessas a esse


patriarca dizendo que a sua “descendência seria numerosa”, e de
fato isto aconteceu, sobretudo no que diz respeito à família de fé
monoteísta: as três únicas religiões monoteístas, isto é, que
professam  a fé em um só Deus, são conjuntamente responsáveis
pelo maior número de seguidores no cenário religioso mundial: o
judaísmo, professado pelo judeus, que totalizam hoje uma
população de aproximadamente 15 milhões de pessoas, vivendo,
em sua maioria, fora do Estado de Israel; a religião islâmica, que
perfaz um total de 1,4 bilhão de adeptos no mundo; e o
cristianismo, que, em todas as suas ramificações, reúne
atualmente cerca de dois bilhões de fiéis.

Curiosamente, essas três religiões estão agora sendo


protagonistas do estado de medo e de tensão de um possível
conflito mundial. Os conflitos envolvendo islâmicos e norte-
americanos, por exemplo, vêm se intensificado cada vez mais nos
últimos anos, atingindo seu ápice no atentado terrorista contra os
Estados Unidos, na cidade de Nova York, ocorrido no dia 11 de
setembro de 2001, motivado por grupos radicais islâmicos. Diante
disso, uma pergunta vem normalmente sendo feita: por que esse
sentimento de ódio entre líderes políticos e religiosos que
professam a fé no mesmo Deus?

É possível esboçarmos algumas explicações a esta questão.

Em primeiro lugar, porque os EUA tiveram participação direta no


processo de criação do Estado de Israel na Palestina, em 1948,
motivados, certamente pelo interesse de estabelecer um braço
de controle no Oriente Médio, região onde estão as maiores
reservas de petróleo do mundo, responsáveis pelo movimento da
“máquina” de produção capitalista, combustível este que está sob
o controle dos países muçulmanos.

Segundo, porque os norte-americanos são grandes aliados de


Israel nos conflitos contra os árabes na Palestina, fornecendo-lhe
apoio e armamento bélico que faz do seu exército, uma poderosa
e temível força militar.

Terceiro, porque a economia norte-americana alimenta e


fortalece ainda mais a já poderosa economia israelense, uma vez
que grandes detentores do capital mundial são banqueiros
judeus — por isso o atentado ter sido feito contra os maiores
símbolos do capitalismo, no grande centro econômico do mundo.

Em quarto lugar, porque vem sendo cultivado historicamente um


sentimento de ódio do Islamismo para com o Cristianismo, desde
o tempo das Cruzadas Medievais, quando cristãos e muçulmanos
travaram sangrentos combates na disputa por territórios, em que
a escravidão e outras formas de atrocidades foram praticadas
reciprocamente para com os prisioneiros de guerra.

Em quinto lugar, porque durante a Guerra Fria (disputa político-


armamentista entre os Estados Unidos e a extinta União
Soviética), nas alianças estabelecidas, os judeus foram aliados dos
norte-americanos, e, nesta disputa de interesses, alguns países
muçulmanos acabaram sendo invadidos pelos soviéticos, como
fora o caso do Afeganistão, em 1979, fato que transformou
territórios sagrados pelos islâmicos em palco de disputas por
parte dos “infiéis”. Desta forma, com a ruína do “muro” do
socialismo, em 1989, os cristãos norte-americanos capitalistas
comemoraram a “vitória”, enquanto que do lado muçulmano
permaneceram rancores e sentimentos de vingança para com o
Ocidente, devido ao rastro de miséria e destruição que foram
deixados em seus territórios.

Em sexto lugar, porque durante a Guerra do Golfo,   em  1991, os


americanos estabeleceram bases militares na Arábia Saudita, para
combater o Iraque, mantendo-as até hoje, fato que é visto por
grupos islâmicos mais radicais como profanação do território que
lhes é sagrado.

Sétimo, porque além de ser honroso para os islâmicos, é


obrigação, se preciso for, agirem  radicalmente   pela  fé  que  
professam,  conforme a interpretação literal que fazem de certas
passagens do Alcorão, como por exemplo, o que está escrito na
Sura 9, versículo 5: “Matai os idólatras onde quer que os
encontreis, e capturai-os, e cercai-os e usai de emboscadas
contra eles”. E mais adiante, o livro insiste que nações, não importa
quão poderosas, deverão ser combatidas “até que abracem o Islã”.
Vale dizer que o Islamismo mais ortodoxo considera os cristãos
como idólatras, por adorarem as três pessoas da Trindade.
A julgar pelas escatologias concebidas por essas três religiões,
para Jerusalém e a Terra Santa ainda estão reservados muitos
acontecimentos apocalípticos: os judeus ortodoxos ainda
aguardam a vinda do Messias, que naquela terra instaurará um
reinado político, subjugando as demais nações; cristãos
prenunciam uma batalha do bem contra o mal no “Vale do
Armagedom” (localizado na Palestina); e os islâmicos também se
preparam para o jihad, que será a “guerra santa” final contra os
inimigos do Corão.

Fato é que, o fanatismo, a intolerância religiosa e o desrespeito


para com a vida humana, permanentemente estão a ponto de
desencadear um conflito do Oriente contra o Ocidente,
motivados pela crença de “uma luta do bem contra o mal”. Neste
sentido, a religião, em sua essência, deve ser promotora da paz,
da valorização da vida e de parâmetros para o respeito e a
convivência humana. A vida do Planeta em toda a sua
biodiversidade, não pode ser exposta ao que seria um terceiro
conflito mundial, o que reconduziria a humanidade aos tempos de
combates tribais, conforme o que já alertara o grande físico Albert
Einstein: “Não sei com que armas se lutaria na Terceira Guerra
Mundial; na Quarta sim: com paus e pedras.” (Proença, 2006)
2. Vida monástica: por uma espiritualidade
voltada à simplicidade e ao próximo

2.1. Oriente: os pais do deserto


Origina-se no séc. IV, no deserto egípcio, uma marca bem específica do monasticismo: a fuga do
mundo. Não era uma fuga ou escape puro e simples, mas uma busca por novas formas de
martírio. Nessa época, com a oficialização do cristianismo como religião imperial e o fim das
perseguições, o “martírio de sangue” caiu em desuso: não era mais necessário pagar o preço,
até com a própria vida, para ser discípulo e discípula de Jesus. A “vitória” do cristianismo, para
os cristãos mais comprometidos e fervorosos dessa época, representou, na verdade, uma
grande derrota, pois ocorreu uma aliança com os poderes seculares, e, como corolário, ruína
ética e moral, venda de princípios; o mundo não se tornou mais cristão porque se cristianizou;
continuou-se a preferir a escuridão à luz (1Jo 3:19).

A lógica, portanto, foi: se o mundo não era mais o inimigo do cristão, então o cristão é quem
deveria estabelecer inimizade com o mundo. Os eremitas (monges) tornaram-se os novos
mártires, à medida que se afastaram do mundo, opondo-se ao seu sistema e estilo de vida,
optando pelo deserto, cujas expressões eram: fuga, silêncio e oração.

Henri Nouwen (2004, p. 12-13) relata que a fuga para o deserto era o meio de evitar a tentadora
conformidade ao mundo. Antão, Agatão, Macário, Poemen, Teodora, Sara e Sinclética foram
líderes espirituais no deserto. Ali se tornaram um novo tipo de mártires: testemunhas contra os
poderes destrutivos do mal, testemunhas do poder salvífico de Jesus Cristo. Desta forma, seu
objetivo principal era: viver sempre em pureza e morrer em paz!
2.2. Ocidente: monasticismo beneditino

O monasticismo ocidental, por sua vez, nasce por volta do VI século, através do modelo legado
pela regra de Benedito de Núrsia, ou simplesmente São Bento. Inicialmente, bebeu dos ideais e
paradigmas de seu homônimo oriental. Mas logo se distanciou deste, especialmente em quatro
aspectos, destacados por Justo González (1991, p. 39-41):

Primeiro,o espírito prático dos romanos. Muito acostumados com a vida cotidiana,a colocar a
“mão no arado”
,os romanos rejeitavam o espírito ascético oriental,de flagelação do corpo para
elevar o espírito. Para eles o ascetismo deveria servir de apoio e fortalecimento (do corpo) para
os enfrentamentos da vida humana secular.

Segundo, no monasticismo ocidental não se buscava apenas a salvação individual, mas a


realização da obra de Deus. O ideal de São Bento era: cultivar a terra com as mãos e praticar a opus
Dei (obra de Deus).

Terceiro, o ideal beneditino de vida em comunidade. Os monastérios eram verdadeiras


“confrarias de ajuda mútua”. Ao invés de reclusos e exclusivistas, os monges eram ativos na
comunidade, prestando serviços e interagindo com ela.

Quarto,o monasticismo ocidental não vivia em permanente tensão com a igreja hierárquica;
embora fosse uma expressão diferencial dessa igreja,ainda se mantinha fiel aos seus princípios
fundamentais, isto é,submisso à hierarquia eclesiástica.

Era essencialmente comunitário,bem organizado e estruturado. O labor dos monges era algo
extraordinário e exemplar. O trabalho era uma atividade sagrada,obra do Senhor. Havia uma
união entre o trabalho intelectual,o trabalho físico,braçal,na lavoura,nas edificações e serviços
do mosteiro,e o trabalho espiritual,de oração,muito importante aos monges beneditinos. A
oração era o alimento para a vida,para o enfrentamento das intempéries do tempo e das
circunstâncias existenciais.

A espiritualidade desenvolvida pelos monges do ocidente era, nesse sentido, uma


“espiritualidade a longo prazo”( Bosch,2002, p.286),pois não se fiava em métodos e
“mandingas” espirituais para se alcançar o sucesso imediato nas coisas da vida; era preciso
muito trabalho em todos os sentidos, e o trabalho iniciado por uma geração deveria ser
terminado por gerações posteriores, que deveriam nutrir o mesmo espírito de perseverança, de
enfrentamento das adversidades e de proatividade frente aos desafios que se tinha adiante.

2.3. O monasticismo como agente missionário


Em princípio, tratou-se de um movimento que não parecia ter nenhum tipo de consciência
missionária, devido ao seu ideal ascético, que se acentuava muito mais entre os monges do
Oriente. Porém, o monasticismo ocidental diferenciou-se do oriental no sentido de não propor
uma fuga do mundo e nada mais. Como vimos, a intenção da vida ascética, para eles, estava
intrinsecamente relacionada com a vida em comunidade e o envolvimento (até certo ponto) com
o mundo ao redor. Nesse sentido é que o missiólogo David Bosch aponta para esta forma de
monasticismo como sendo missionária por excelência, talvez uma das únicas expressões
missionárias cristãs que se viu na igreja medieval (considerando as demais ordens religiosas,
que surgiram nos séculos posteriores).

Segundo Richard Niebuhr (apud Bosch, 2002, p. 283), o monasticismo salvou a igreja medieval
daquilo que seria a petrificação e perda da visão e caráter revolucionários do cristianismo. Bosch
(2002, p. 285-286), por sua vez, aponta algumas razões para isso. Destaca que o monasticismo
pode ser considerado como um agente missionário no mundo medieval devido:

Primeiro, à alta estima que os monges gozavam entre a população geral. Com a Era
Constantiniana, os monges passaram a ocupar o lugar antes reservado aos mártires, aos
olhos dos cristãos. Os monges representavam uma vida cristã austera, e eram aqueles que
repeliam os “inimigos espirituais” dos muros da cidade.

Segundo, ao seu estilo de vida exemplar, que alcançou principalmente os camponeses. Veja
essa frase de um monge celta chamado Columbano (543-615): “Aquele que diz crer em
Cristo deve andar como Cristo andou, pobre, humilde e pregando sempre a verdade”. O
interessante aqui é que, ao invés de arrancar de forma violenta, procurava-se transformar
as crenças dos camponeses, relacionando-as com a liturgia e calendário cristãos.

Terceiro, aos mosteiros, que eram centros de trabalho, mas também de cultura e educação.
Cada mosteiro constituía um vasto complexo de edificações, igrejas, oficinas, armazéns e
asilos que beneficiavam toda a comunidade adjacente. A antiga tradição de estudo
encontrou refúgio nos monastérios. “O monastério incorporou o ideal da ordem espiritual
e da atividade moral disciplinada que, com o tempo, permeou a igreja toda, deveras, a
sociedade em sua íntegra”.

Quarto, paciência, obstinação e perseverança dos monges. Houve ataques dos povos
bárbaros, no séc. VI, que se sentiam atingidos com o sucesso dos mosteiros. Noventa e
nove de cem monastérios poderiam ser destruídos (e vários realmente foram), mas a
teimosia e forte persistência dos monges faziam com que nenhuma causa fosse
considerada perdida. Tudo poderia ser retomado e reconstruído pelos sobreviventes, que,
mesmo em meio a muitas limitações e dificuldades, conseguiam se reerguer e manter viva
a tradição monástica.

Todas essas atitudes eram missionárias, sem pretender sê-las. Ou seja, seguindo Bosch (2002,
p.286), embora essas comunidades monásticas não fossem intencionalmente missionárias,
quer dizer, criadas com o propósito da missão, elas estavam impregnadas de uma dimensão
missionária. Com suas principais marcas: peregrinação, comunidade, reflexão, ascetismo,
contemplação ao Divino e sua Criação, essas comunidades realizaram a missão de Deus. É bom
que isso seja ressaltado, antes que o período medieval passe como um período árido da igreja em
termos de cumprimento dos propósitos para os quais foi criada. 

Não restam dúvidas de que a Idade Média foi um período em que a igreja e os cristãos se viram
envoltos em uma série de problemas das mais diversas ordens, como já vimos até aqui. E talvez
esses problemas (e os julgamentos a eles correspondentes) sejam muito mais evidentes para
nós, mesmo enxergando a séculos de distância, que para os cristãos daquela época. A avaliação
sobre este contexto, não pode ser de todo negativa, como ressalta Bosch:

Havia algo errado com a ideia de tentar criar uma civilização cristã, de moldar as leis de acordo com o

ensinamento bíblico, de submeter reis e imperadores à obrigação explícita do discipulado cristão? É

indubitável que o paradigma analisado neste capítulo tem seu lado obscuro, mas ele também ofereceu

contribuições positivas. Além disso, precisa-se entender que era lógico as coisas se   desenvolverem dessa

 maneira  após  a vitória de Constantino; ademais, era inevitável, dadas as circunstâncias, que assim

evoluíssem. Portanto, ao criticarmos nossos antecedentes espirituais, e o fazemos incansavelmente,

lembremos que não nos teríamos havido melhor que eles (2002, p. 291).
Glossário

Monasticismo: Referente ao modo de vida monástica ocorrido a


partir da Idade Média, quando monges passaram a viver a fé cristã
de modo comunitário ou coletivo, dedicando-se a orações,

estudo e práticas da espiritualidade cristã, trabalho social e


educacional; modo de vida regido por regras e disciplina cristã.

Ascetismo: Modo de vida cristã regido por isolamento social,


místico e contemplativo; abstenção de prazeres e conforto
material, em busca do aperfeiçoamento espiritual.

Ordens religiosas: Organizações voltadas um estilo de vida


consagrada, caracterizada por seus membros fazerem, no caso do
Catolicismo, votos de cumprimento de uma missão religiosa em
diversas áreas, como assistência social, educação e
evangelização.
3. Movimentos pré-reformadores: por um retorno
doutrinal e eclesiástico às origens apostólicas

Como visto nas unidades anteriores deste curso, no período “medieval” ou Idade Média, que
corresponde aos séculos V e XV, desenvolveu-se o catolicismo marcadamente
institucionalizado, com acentuada estrutura hierárquica, sustentada na figura papal e no
clericalismo de bispos e sacerdotes. Nesse mesmo período, também, foi marcante a vivência de
um cristianismo mais popular, folclórico, profundamente arraigado em imaginários religiosos
sincréticos, com fortes raízes fincadas no elemento da magia. Isso porque, especialmente, a
partir do século IV, quando o cristianismo se tornou religião lícita e oficial do Império Romano,
desenvolveu-se um intenso e crescente processo de aculturação entre doutrinas cristãs e
antigas práticas cúlticas que permeavam o universo religioso do mundo greco-romano. 

No chamado “período áureo” da Idade Média, verificam-se vários prejuízos à missão da igreja. A
preocupação da igreja voltou-se quase que exclusivamente para a elaboração dogmática da
teologia, fundamentada em categorias filosóficas, sob forte influência da metafísica. O que mais
importava era o Cristo triunfante e transcendental, e não o Jesus histórico. Há também, nesta
época, forte interesse pela vida monástica, a qual levava os cristãos a fugirem do mundo e seus
conflitos, com o propósito de se dedicarem à purificação e contemplação nos desertos.

Diante desse quadro, alguns dos fatores podem ser destacados como preponderantes para um
anseio por mudanças ou reformas, que prepararam, inclusive, o advento da Reforma Protestante
do século XVI.

3.1. Motivos de reforma


Primeiro, a igreja estava vivendo uma crise teológica, doutrinária e institucional. Até o séc. IV,
por exemplo, o Cristianismo, sem ter posses, em meio a perseguições e conflitos internos,
manteve uma linha de frente que fazia jus aos ensinamentos deixados por Jesus e os apóstolos.
Após o IV século, porém, especialmente a partir do momento em que o imperador romano
Constantino se declarou cristão, um outro quadro passa se configurar.

Segundo, pelas disputas e corrupção do poder. Após Constantino, os clérigos passam a ter
remuneração do Estado, constroem-se suntuosos templos, o poder religioso passa a estar
atrelado ao poder político etc. A igreja alia-se ao Império Romano, contra o qual deixa de exercer
função profética de denúncia e reivindicação — o Estado passa agora a beneficiá-la. A igreja
desempenha em tal sociedade, a partir de então, um papel semelhante ao da velha religião
estatal, ou seja, concebendo Cristo apenas como um rei celestial que dá apoio ao imperador
cristão que governava em seu nome. A missão histórica de Jesus foi por isso obscurecida, e a
missão legítima da igreja também o foi, na mesma proporção.

Terceiro, se observa o que se pode chamar de “adesão sem conversão”, ou seja, inúmeras
pessoas passaram a aderir ao cristianismo por conveniência ou status, afinal, era agora a
“religião do Imperador”. Com isso, trouxeram consigo para o âmbito da igreja antigas crenças,
especialmente as que estavam associadas às divindades femininas no panteão greco-romano.
Foi assim que o culto a Diana, tão popular na cidade de Éfeso, por exemplo, foi substituído a
partir do século V pelo culto a Maria mãe de Jesus; também os antigos deuses protetores das
cidades foram substituídos pelos “santos protetores” cristãos, no caso, os apóstolos e mártires;
e ainda, a veneração de objetos e imagens como elementos do culto.

Quarto, Jesus deixa de ser o único mediador (também a mãe de Jesus e os apóstolos,
especialmente passam a exercer tal função); surge a figura papal, como representante de Cristo
na Terra; a Bíblia passa a ser lida somente em latim e pelos clérigos, ficando, portanto, distante
do povo; a justificação passa a se dar também por obras, daí as penitências, os autoflagelos, as
indulgências como meios de redimir pecados.

Quinto, surge ainda a doutrina do purgatório, mediante a qual era dada a oportunidade de
salvação após a morte àqueles que não se preparam devidamente em vida. 
Saiba mais
Sobre o Purgatório: A crença na possibilidade de redimir certos
pecados após a morte não tem fundamentação nas escrituras
bíblicas. Entretanto, alguma expectativa esse respeito pode ser
localizada no livro de origem judaica de 1 Macabeus, não
cononizado pela escola judaica de Jamnia, nos anos 80 d.C., nem
pelo Concílio cristão de Cartago, em 397, que definiu o conjunto
de textos do Novo Testamento. Neste livro, há a seguinte
referência:

2 Macabeus 12: 43-46

43. Em seguida, fez uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de dez mil

dracmas, para que se oferecesse um sacrifício pelos pecados: belo e

santo modo de agir, decorrente de sua crença na ressurreição,

44. porque, se ele não julgasse que os mortos ressuscitariam,


teria sido vão e supérfluo rezar por eles.

45. Mas, se ele acreditava que uma bela recompensa


aguarda os que morrem piedosamente,

46. era esse um bom e religioso pensamento; eis por que ele pediu um

sacrifício expiatório para que os mortos fossem livres de suas faltas.

Além de Macabeus, o catolicismo medieval usava os seguintes


textos do Novo Testamento para tentar fundamentar a ideia de
Purgatório:

“Se alguém pra ferir alguma palavra contra o Filho do homem ser-
lhe-á perdoado; mas se alguém falar contra o Espírito Santo, não
lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no porvir”  (Mt
12:32).
“Antes de tudo, pois, exorta que se use a prática de súplicas,
orações, intercessões, ações de graça, em favor de todos os
homens”. (1 Tm 2:1)

Paulo ora a Deus pelo amigo Onesíforo: “Que o Senhor lhe


conceda a graça de obter misericórdia do Senhor naquele dia” (2
Tm 1:18)

O Concílio de Trento (1545-1563), referendou a existência do


Purgatório, fazendo um enfrentamento ao protestantismo
nascente, que questionava essa existência e sua função. Diz o
texto do Concílio de Trento, também conhecido como da contra-
reforma:

“Desde que a Igreja Católica, instruída pelo Espírito Santo, nos


sagrados escritos e pela antiga tradição dos Pais, tem ensinado
nos santos concílios, e, ultimamente, neste Concilio Ecumênico,
que há Purgatório, e que as almas nele retidas são assistidas pelos
sufrágios das missas, este santo concílio ordena a todos os bispos
a que, diligentemente, se esforcem para que a salutar doutrina
concernente ao purgatório — transmitida a nós pelos veneráveis
pais e sagrados concílios — seja crida, sustentada, ensinada e
pregada em toda parte pelos fiéis de Cristo” (Seção XXV).

O historiador Jacques Le Goff é autor do livro O nascimento do


Purgatório (Petrópolis: Vozes, 2017). Neste, o autor situa o
surgimento desta crença e doutrina no contexto econômico da
Idade Média. Diz que no sistema dualista do além, entre o Céu e o
Inferno, não havia lugar para o cumprimento das penas
purgatoriais. Foi necessário esperar até o final do século XII para o
aparecimento da palavra Purgatório, para que este se tornasse um
terceiro lugar do além em uma nova geografia do outro mundo. A
Presente pesquisa percorre as transformações do nascimento do
Purgatório desde crenças iniciais na antiguidade até a Divina
Comédia de Dante.

Le Goff aponta como motivo ápice para a criação do Purgatório a


necessidade econômica do período de se permitir as
negociações com dinheiro. Até então, as atividades do usurário
(espécie de banqueiro) eram consideradas de alto risco para a
perdição da alma. A partir do século XIII, especialmente,
indispensável a movimentação financeira e de comércio, obrigou
a igreja a apresentar uma alternativa de salvação para estes
agentes. O Purgatório é então oficialmente criado pelo papa
Inocêncio III, garantindo aos que lidavam com dinheiro a
segurança de terem seus pecados terrenos expiados no pós-
morte, possibilitando-lhes posterior chegada ao Paraíso. O
nascimento do Purgatório, portanto, está associado a questões
econômicas do período.

Sexto, pode ser citado ainda o surgimento da Inquisição, que se constituía num tribunal
eclesiástico que dava à igreja o direito de punir e de matar, se preciso fosse, àqueles que
ousassem questionar as doutrinas canônicas ou a verdade que pertencia de forma exclusiva e
absoluta à igreja medieval.

Sétimo, grande apego à magia. Segundo o sociólogo Leonildo Campos, nesse período, a
assimilação da fé cristã pela população rural, mediante a catequese, “formou uma camada de
verniz sobre uma antiga realidade religiosa” (1977, p.170), desencadeando um intenso apego às
relíquias como fetiches de proteção, com caráter mágico, objetos esses que supostamente
teriam sido utilizados pelos apóstolos ou outros mártires do cristianismo e que eram, então,
guardados nos lares dos devotos com o sentido de proteção contra doenças, contra infortúnios
do demônio ou como ajuda contra as intempéries que poderiam ameaçar as colheitas. Esta
“magia” dos objetos desencadeou um verdadeiro comércio de amuletos. Leonildo Campos
descreve este cenário de magia:
Multiplicaram-se os cultos às relíquias sagradas, verdadeiros fetiches milagrosos, aos quais se atribuíam

poder de curar enfermidades e proteger as pessoas dos perigos. Esses objetos, que pensavam terem

pertencido aos santos ou simplesmente por terem sido usados na missa, eram trocados, presenteados,

roubados, vendidos ou comprados. Muitos deles eram empregados com as mais diversas finalidades,

desde o auxílio no trabalho de parto até na cura de peste no gado bovino ou afastar epidemias de seca,

fome ou pragas de gafanhotos (1997, p. 171).

O historiador inglês Keith Thomas (1991, p.36). também afirma que no contexto da Idade Média
as relíquias sagradas tornaram-se fetiches milagrosos, tidos como dotados do poder de curar
enfermidades e proteger contra perigos; atribuía-se igualmente uma eficácia miraculosa às
imagens. A representação de são Cristóvão, que com tanta frequência ornamentava as paredes
das igrejas das aldeias inglesas, supostamente concedia um dia de imunidade à doença ou à
morte a todos os que a fitassem.

Este mesmo autor constata que no mundo medieval havia se desenvolvido um “amplo leque de
fórmulas para atrair a bênção prática de Deus sobre as atividades seculares”, acrescentando.
Keith Thomas descreve algumas destas práticas carregadas de magia e simbolismo:

O ritual básico era o benzimento com sal e água para a saúde do corpo e expulsão dos maus espíritos.

Mas os livros litúrgicos da época também traziam rituais para benzer casas, gados, culturas,

embarcações, ferramentas, armas, cisternas e fornalhas. Havia fórmulas para abençoar homens que se

preparavam para sair em viagem, para travar um duelo, para entrar em batalha ou mudar de casa. Havia

métodos para abençoar os doentes e tratar de animais estéreis, para afastar o trovão e trazer a

fecundidade ao leito matrimonial [...] Fundamentalmente em todo esse procedimento era a ideia de

exorcismo, o esconjuro formal do demônio, expulsando de algum objeto material por meio de preces e

da invocação do nome de Deus. A água benta podia ser utilizada para afastar maus espíritos e vapores

pestilenciais. Era remédio contra a doença e a esterilidade (1991, p.38).

Observa ainda que, no período entre os séculos XVI e XVII, da história inglesa, os objetivos pelos
quais a maioria dos homens recorria a sortilégios e a feiticeiros eram precisamente aqueles para
os quais “não havia alternativa técnica adequada”. Assim, na agricultura, o lavrador que
normalmente confiava em suas próprias habilidades e perícias, quando ficava dependente de
circunstâncias fora do seu controle — a fertilidade do solo, as condições meteorológicas, a
saúde do gado —, ele se mostrava mais propenso a acompanhar suas atividades normais com
alguma precaução mágica. Na ausência de herbicidas, “havia encantamentos para manter a erva
daninha distante das plantações”, e, em lugar de inseticida e raticida, “havia fórmulas mágicas
para afastar as pestes”. Havia também sortilégios para aumentar a fertilidade da terra, além de
precauções rituais que rodeavam a caça e a pesca, “atividades especulativas, isto é, incertas
ambas” (Thomas, 1991, p.175).

3.2. Os principais movimentos


O Ocidente Medieval vivia (entre os séculos XIII e XIV) um período de transição e
transformações em diversas áreas, trazidas por guerras, pragas e crises econômicas.

Na igreja a situação não era muito diferente. O que se contempla é o declínio da igreja
institucional, que havia se transformado em uma monarquia e rivalizava com as nações-estado
emergentes na época. Emergentes, também, foram alguns movimentos que despontaram da
periferia eclesiástica nesse período. Foram, em parte, movimentos de contestação e, em parte,
de assentimento à ordem estabelecida. 

Vimos que na Idade Média o monasticismo, de certo modo, representa um movimento de


contestação a certo estilo de vida e maneira de ser igreja na sociedade, embora se mantivesse
ligado formalmente a ela.

O conhecido mosteiro de Cluny, na França, fundado em 910 D. C., levara às últimas


consequências os preceitos estabelecidos pela regra de São Bento. Muito mais disciplina, oração,
estudo, penitências e dedicação à opus Dei (obra de Deus). “Não seria exagero ver em Cluny a
expressão mais autêntica das aspirações espirituais da sociedade feudal” (Vauchez, 1995, p. 36). 

Vejamos a seguir alguns desses movimentos.


3.2.1. Os Albigenses ou Cátaros

O termo Albigense se deve o local de surgimento deste movimentô a cidade de Albi,na França, no
século XII. Também ficaram conhecidos como Cátaros (termo grego que significa “puros). Um
movimento de leigos os quais começaram a ler a Bíblia,traduzindo trechos do evangelho para a
língua francesa; denunciavam que o papa e os clérigos não tinham exclusivamente acesso a
Deus; criticaram a corrupção do clero; celebravam a ceia,o batismo,negavam a veneração de
imagens. Esse movimento foi responsável pela organização mais sistematizada do tribunal da
Santa Inquisição, sob ordens do papa Inocêncio III, com o intuito de combater como hereges os
albigenses e, em seguida, também os valdenses. Perseguidos da França se espalharam para
outras regiões da Europa,funcionando como “comunidades cristãs secreta .

3.2.2. Os Valdenses

Em 1176,Pedro Valdo,um rico comerciante de Lyon perguntou a um mestre de teologi “Qual o


melhor caminho para Deus?”
. O mestrg por sua ve citou-lhe um venerado texto monásticô “Se
queres ser perfeito,vai,vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu”
. Valdo
obedeceu ao “chamado”
. Vendeu tudo que tinha,deixando uma quantia razoável para sua mulher
e filhos, e o restante doou aos pobres

Sua atitude impressionou vivamente seus amigos.  Em 1177, um grupo de homens e mulheres
juntou-se a ele, pregando o arrependimento. Eles mesmos se auto-intitulavam “Pobres de
Espírito”. Dirigiram-se ao Concílio Lateranense, em 1179, solicitando a permissão para pregar. O
pedido foi indeferido. Pedro e seus fraternos entenderam aquilo como a “voz do homem em
oposição à voz de Deus” (Walker, 1981, p. 324). Continuaram a pregar. Considerados desertores,
todos foram expulsos da igreja, em 1184, pelo papa Lúcio III (1181-1185).

Vindo a Reforma, os valdenses, que haviam se expandido em meio à forte repressão da igreja
para fora de sua região de origem, aceitaram seus princípios e se tornaram protestantes.

3.2.3. Os Dominicanos

Na mesma atmosfera de “pobreza apostólica” e literal cumprimento dos mandamentos de


Cristo, surge a ordem dos dominicanos. Foi fundada por Domingos (1170-1221).
Estudante brilhante, jovem de grande espírito religioso, Domingos resolveu escolher o caminho
da abnegação, sacrifício e seguir o modelo de Paulo, querendo ganhar o povo pela “loucura da
pregação”.

Em 1215, amigos presentearam-no com uma casa em Toulouse. Ali realizou os primeiros
trabalhos de treinamento e discipulado. Com a permissão do Papa Honório III (1216-1227) —
embora não sem resistência e lutas — criou então uma ordem de pregadores, que logo recebeu o
nome de “ordem dos dominicanos”.

Quando Domingos faleceu (1221), a ordem já contava com sessenta casas espalhadas em oito
províncias. Sua marca característica era o zelo no estudo e a ênfase na pregação e no ensino.
Trabalhou nas cidades universitárias e logo se viu bem representada nos corpos docentes das
universidades.

3.2.4. Os Franciscanos

Se grande foi o prestígio dos dominicanos, maior ainda talvez tenha sido a honra e aceitação
popular alcançada pelos franciscanos e, de modo especial, pelo seu fundador Francisco (1182-
1226).

Ele não era monge, nem clérigo; era um leigo, que fazia questão de assim permanecer para
evangelizar os leigos abandonados pastoralmente, em especial, os pobres (Bo , 2002, p. 136).

Surge não do centro do poder, mas da periferia da igreja institucional, como a maioria dos
movimentos de renovação da igreja na história, como ressalta Bo (2002, p. 13): “É na periferia
que eclodiram os grandes profetas, nasceram os movimentos reformadores e onde viceja o
Espírito. A periferia possui um privilégio teológico, pois nela nasceu o filho de Deus”.

Iniciou seu movimento na “igrejinha de Porciúncula”, a mais pobre das igrejas de Assis, cidade
natal de Francisco. Durante uma peregrinação a Roma, em 1206, ele julgou ter ouvido a voz
divina, o próprio Cristo dizendo: “Francisco, vai e repara minha igreja porque, como vês, está em
ruínas”. Foi o que, intuitivamente, ele fez.
O franciscanismo foi um movimento de contestação à igreja, por ser uma ordem monástica das
ruas, fora dos mosteiros, pregando a pobreza voluntária, defendendo o direito dos pobres e
necessitados e vivendo ao lado deles, formando uma comunidade de fraternos e iguais.

Uma de suas petições mais frequentes era para que: “No nosso gênero de vida, ninguém seja
prior, mas todos sejam designados indistintamente como irmãos menores e se lavem os pés
uns dos outros” (apud Bo , 2002, p. 141). Sua contestação se firmava principalmente contra as
formas de poder e controle clerical, e contra as riquezas e benesses usurpadas pela igreja, em
sua associação com os poderes seculares.

Glossário

Prior: No contexto da Idade Média, prior designava o chefe, o


comandante ou, literalmente, “aquele que está à frente” de uma
organização religiosa ou militar. No caso da Igreja, o prior era um
padre, e o conjunto de seus domínios era chamado de priorado.

Há uma história de uma conversa entre o papa (Inocêncio III) e Francisco, em que o primeiro
disse: “Veja, no tempo de Pedro se dizia que a igreja não possuía nem ouro e nem prata. Hoje,
temos ouro e temos prata”, argumentou ele apontando para uma suntuosa basílica recém
edificada; Francisco, por sua vez, respondeu: “Na mesma proporção em que podes afirmar
agora possuir ouro e prata, já não podes, porém, dizer ao paralítico: ‘Levanta-te e anda’”.

Bo (2002, p. 134) complementa, dizendo que em Francisco encontramos, coexistindo com


grande tensão e equilíbrio, o não conformismo com a obediência, a aceitação da Igreja dos
clérigos com o alargamento corajoso do espaço dos leigos, o respeito pela piedade litúrgica
oficial com a criatividade de uma cultura religiosa popular.
Respeitou até a morte esse princípio.  Tanto que em seu leito de morte recomendou: “Conservar
a pobreza e a fidelidade à Igreja romana, mas pondo acima de todas as normas o santo
evangelho”. Ou seja, para Francisco era importante a persistência na igreja e obediência a seus
líderes. Mas, acima de qualquer estrutura temporal, religiosa, política e ideológica, estava a
submissão ao Evangelho. Ele seguia os vestígios da madre igreja, mas, principalmente, os
vestígios de Jesus Cristo e do Evangelho.

3.2.5. John Wycli e os Lolardos

Na Inglaterra do séc. XIV surgiu o pré-reformador João Wycli (1328-1384), que estudou e
ensinou em Oxford durante grande parte de sua vida. Ali ele desenvolveu suas atividades como
padre e como professor universitário.

Ensejando um retorno ao ideal neotestamentário, Wycli começou incisivamente a se opor aos


dogmas e ingerências da Igreja Católica, a partir de 1378, chegando a atacar a autoridade do papa
em 1382.

Afirmou em um de seus livros que “Cristo e não o Papa era o chefe da igreja”, e que “a Bíblia e
não a Igreja era a autoridade única para o crente e que a igreja Romana deveria se modelar
segundo o padrão da Igreja do Novo Testamento” (Cairns, 1995, p. 206).

Como suporte a esses ideais, tomou duas importantes medidas: a tradução completa do Novo
Testamento para o inglês; a criação de um grupo de pregadores leigos, os “lolardos”, que deram
continuidade às ideias de Wycli por toda a Inglaterra e região.

Glossário

Lolardos: terminologia que significa “cantores”; ou “perseguidos”.


3.2.6. John Huss e os Hussitas
Quando Ricardo II, da Inglaterra, casou-se com Ana, da Boêmia, muitos jovens boêmios foram
estudar na Inglaterra e lá conheceram as ideias de Wycli .

John Huss (1373-1415), que também era originário da mesma região, tendo estudado e
lecionado na Universidade de Praga, leu e adotou as ideias de Wycli e, tal como ele, também se
propôs a reformar a Igreja Romana em sua região, o que lhe rendeu a inimizade do papa. Muitos
de seus livros foram reproduções quase literais dos livros de Wycli (como a sua obra Sobre a
Igreja, de 1412). Em 1413, um sínodo romano condenou formalmente os escritos de Wycli . Huss
foi condenado à morte e executado (queimado vivo), após haver negado a se retratar de suas
colocações no Concílio de Constança (1415). Jonh Huss foi queimado vivo em 1415. Conta a
história que ao ser levado para a execução teria pronunciado uma frase profética, mais ou menos
nos seguintes termos: “dentro de um século Deus levantará alguém cuja voz não poderão calar”.
Exatamente um século depois, Martinho Lutero deflagraria o golpe final nas estruturas
eclesiásticas que ainda resistiam às reformas que se faziam urgentes.

Todos esses têm sido chamados de precursores da Reforma. Não há dúvidas de que merecem
esse nome visto que representaram, em seu tempo e de maneiras próprias, uma contestação à
igreja: ao defenderem o direito do pobre, ao resistirem à ostentação de poder e riqueza
eclesiástica, ao se preocuparem com a espiritualidade do povo, ao abrirem acesso à Palavra de
Deus, e assim por diante.

Mas também é verdade que todos foram homens e mulheres (visto que alguns movimentos,
como o dos franciscanos, acolheram mulheres) de seu tempo, atendendo a demandas muito
peculiares. E, como tais, tiveram suas limitações, que nos impedem de os associar diretamente à
Reforma do século XVI. Indiretamente, porém, plantou-se uma semente, preparou-se um
terreno.

O Espírito de Deus age na história de maneira irreverente e revolucionária, escolhendo seres


humanos como agentes, ultrapassando as barreiras estruturais e institucionais com o
dinamismo e a força que fazem do Evangelho do Reino de Deus, um vinho novo que sempre
transborda dos velhos odres para uma nova geração atenta aos propósitos divinos e disposta a
cumprir sua missão.
Considerações finais

Diante de um quadro religioso e teológico que não mais se fundamentava nas escrituras bíblicas
como única regra de fé e prática, surgiram movimentos de reforma dentro da própria igreja
medieval, antes mesmo da Reforma Protestante que viria a ocorrer no século XVI.

Como vimos, desde meados do século XII, movimentos que nasceram da periferia da igreja
institucional começaram, através da pregação e, sobretudo, do estilo de vida que passaram a
imprimir, a ser considerados movimentos de contestação à ordem estabelecida. Começando pela
iniciativa de pessoas como Domingos, Francisco, Valdo, Huss, Wycli , dentre outros,
conhecidos ou anônimos, vimos que surgiram aqui e acolá genuínas buscas por servir a Deus e a
seu reino em meio ao governo temporal da igreja (que muitas vezes militou contra o próprio
reino). 

Dentre os movimentos pré-reformadores, destacam-se os Cátaros ou Albigenses (na França),


no século XII; os Valdenses (na França e Itália), nos séculos XII e XIII; os movimentos liderados
por John Wicly na Inglaterra, no século XIV, e Jonh Huss, na Boêmia, no século XV. Todos
esses tiveram em comum o anseio de mudanças e restauração de princípios teológico-
doutrinários apostólicos. Desse modo, por exemplo, traduziram e leram a Bíblia em suas
próprias línguas; prestaram cultos e buscaram a Deus sem a mediação sacerdotal ou
institucional; vivenciaram uma espiritualidade simples, leiga, carismática; questionaram a
supremacia papal e o valor das obras como meios de salvação; desenvolveram uma missão de
forma integral, preocupando-se com os necessitados, lutando por construir um mundo mais
justo e igualitário.
Referências

BOSCH, David. Missão transformadora. Mudanças de paradigma na teologia da missão. São Leopoldo:
EST; Sinodal, 2002.

BOFF, Leonardo. São Francisco de Assis: ternura e vigor. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

CAIRNS, Earle. O cristianismo através dos séculos. São Paulo: Vida Nova, 1995.
CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento
neopentecostal. Petrópolis: Vozes, 1997.

DELUMEAU, Jean. As grandes religiões do mundo. Lisboa: Editorial Presença, 1999.

DREHER, Martin N. A Igreja no mundo medieval. S. Leopoldo: Sinodal, 1994. 

GONZALEZ, Justo. A era das trevas. São Paulo: Vida Nova, 1988.

GONZALEZ, Justo. A era dos mártires. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992. 

VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995.

NOUWEN, Henri. A espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2004.

PROENÇA,Wande de Lara. Terra Santa:o histórico conflito entre as religiões monoteí stas. Revista Voz no
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VV.AA. A Palestina no tempo de Jesus. S. Paulo: Paulinas, 1983.

WALKER, W. História da igreja cristã. Vols. I, II. Rio de Janeiro: JUERP, 1981.

Texto complementar
GONZALEZ, Justo. O Monasticismo Beneditino. A era das trevas. Vol. 3. São Paulo: Vida Nova,

p.39-59

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