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Vocabulário Político da Antiguidade:

reflexões para o exercício da cidadania

Cícero
Estudos e traduções

Coordenação: Priscilla Gontijo Leite e Lucas Consolin Dezotti.

Discentes: Ana Carolina Simões Silva, Artur Vicente de Medeiros, Brenno Miguel Miranda Machado, João
Guilherme Braz Avellar de Aquino, Julia Inês Araújo de Santana, Isaias Luis dos Santos Junior, Laryssa
Alves da Silva, Millena Luzia Carvalho do Carmo e Renata Barbosa da Silva.

Editoração eletrônica: Artur Vicente de Medeiros, Millena Luzia Carvalho do Carmo, Priscilla Gontijo
Leite

Capa: Isaias Luis dos Santos Junior

Acesse mais informações no site: http://www.cchla.ufpb.br/laborhis/vocabulario-politico/

Departamento de História
Prolicen
CCHLA/ UFPB 2022
Sumário

Apresentação 3

Cícero 4

De Republica 6

Relação com a natureza 7

Cidadania em Roma 8

Magistraturas Romanas 9

Sociedade Romana 14

Os Irmãos Graco 16

De servus à Slavus 17

Introdução 18

Elenco de Personagens 20

Definição de Res Publica 21

Democracia 24

A república do povo livre 26

O problema entre os governos 28

Aristocracia 31

A melhor República 34

Constituição Mista 38

Referências 41

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Apresentação

O projeto Vocabulário Político da Antiguidade: Reflexões para o exercício da cidadania


ocorre no âmbito do PROLICEN da UFPB desde 2016 numa perspectiva interdiscipli-
nar entre os cursos de Licenciaturas em História e em Letras Clássicas sob a coordena-
ção dos professores Priscilla Gontijo Leite e Lucas Consolin Dezotti. Sua motivação
reside nos desafios atuais sobre o ensino de Antiguidade e na promoção de uma edu-
cação voltada para a cidadania, pensando o ambiente escolar como fundamental na
formação política do sujeito.

O foco do projeto Vocabulário Político da Antiguidade é a criação de materiais di-


dáticos centrados na reflexão sobre as formas de governo da Antiguidade para que o
aluno possa construir seu próprio repertório para entender a dinâmica política atual.
Todos os materiais estão disponíveis gratuitamente no site do projeto:
http://www.cchla.ufpb.br/laborhis/vocabulario-politico/

Ademais, os materiais elaborados possuem a particularidade de trazerem os


textos originais para a sala de aula, seguidos de uma tradução elaborada para ser aces-
sível ao jovem brasileiro. Iniciamos nossas traduções com a discussão sobre as formas
de governo em Heródoto, Aristóteles e Políbio. Os trechos foram reunidos no primeiro
livro do projeto lançado em 2019. No mesmo ano, decidimos passar para a produção
de materiais didáticos de autores latinos, com intuito de fazer um volume sobre Roma.
Assim, selecionamos Cícero e a obra De Republica para começarmos a tradução. Entre-
tanto, a pandemia de COVID-19 fez com que adaptássemos nossas metas. Devido ao
isolamento social, concentramos na elaboração do site do projeto e criação de planos de
aulas e outras atividades didáticas a partir das fontes selecionadas. Em paralelo, conti-
nuamos com os estudos em Cícero, sem, contudo, avançar para outros autores latinos.

Assim, finalizado o material sobre Cícero, optamos pela divulgação prévia sem
antes finalizar o livro de autores latinos. Com isso, esperamos contribuir para o ensino
de Antiguidade, de modo que o processo de ensino e aprendizagem sobre o mundo
antigo seja crítico, reflexivo e capaz de promover a autonomia do sujeito.

João Pessoa, outubro de 2022

Priscilla Gontijo Leite

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Cícero
Marco Túlio Cícero nasceu na cidade de Arpina,
na Itália, em aproximadamente 106 a.C. Ele provinha
de uma família rica, seu pai era equestre e exercia
influência em Roma, fato que favoreceu seus estudos.
Ele não foi um romano tradicional, uma vez que
sua formação foi baseada nos grandes filósofos,
poetas e historiadores gregos. No entanto, seu
conhecimento sobre a língua grega fez com que
fizesse parte da elite intelectual romana. Cícero foi um
grande estudioso de retórica e de filosofia. Foi
responsável por difundir a filosofia grega nos estudos
Fig.1: Busto de Cícero
romanos. Entre as suas principais obras, podem-se
citar: De Republica, De Legibus, De natura deorum. Além disso, foi um importante
orador e advogado.
Os estudos de Cícero permitem conhecer aspectos da política romana.
Apesar de todos os seus talentos e formações, foi no âmbito político que Cícero
mais se destacou. Ele foi muito atuante no cenário político romano: participou
de guerras e exerceu diversos cargos importantes, como o de edil, pretor e
cônsul. Isso explica o fato de Cícero considerar a participação e a atividade
política como fatores essenciais para o exercício da cidadania.
Cícero foi assassinado na cidade de Formia, Itália, em 43 a.C.

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Fig. 2: “Cícero denuncia Catilina”, 1889. Quando foi cônsul, Cícero foi res-
ponsável por desmantelar a Conspiração de Catilina, executando sumaria-
mente seus líderes, uma decisão que resultaria em seu exílio anos depois.

Fig. 3: “Assassinato de Cícero”, séc. XV. Cícero foi morto por ordem de Marco An-
tônio apesar da objeção de Otaviano. Seu executor foi o centurião Herênio.

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De Republica
O livro De Republica de Marco Túlio Cícero narra as questões políticas de
Roma e discute as formas de governo. Constituída como um diálogo entre
personagens importantes no cenário político romano, a obra apresenta os
conceitos e a importância da participação ativa nas atividades políticas.
No prefácio, Cícero cita diversos homens, como Quinto Máximo, Cipião
Africano e Caio Duílio, que se dedicaram à atividade política e tiveram grande
influência na cidade de Roma. Muitos desses cidadãos preferiram a vida
agitada da cidade e dos problemas políticos em vez de viver tranquilamente e
desprovido de preocupações. A partir disso, o autor define o conceito de
virtude, o qual tem seu uso máximo “no governo da cidade”. Dessa forma, a
participação na política era considerada a virtude máxima do homem.
Além disso, Cícero descreve a superioridade e autoridade que os políticos
possuíam com relação aos filósofos e a sua atividade teorética. Ele defendia a
importância do poder e da lei como fatores que regiam a sociedade, elementos
que os filósofos não englobavam em sua prática, uma vez que tinham a palavra
como um fator persuasivo. Os sábios apenas se dedicavam à política em casos
de necessidade.
Cícero faz essa apresentação geral com o objetivo de criar uma discussão
acerca das formas de governo em Roma, e, principalmente, discutir sobre a
República e apontar a relevância dos indivíduos, considerados corajosos, que
atuavam no cenário político, uma vez que eles ofereceram seu trabalho e auxílio
à cidade. Essa participação, para Cícero, era necessária para que se alcançasse a
cidadania.

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Relação com a natureza
Na primeira parte do Livro I, Cícero utiliza metáforas para apresentar os
conceitos políticos e demonstrar a relação da política com outros assuntos.
Percebe-se, especificamente a interligação e comparação que ele faz entre a
atuação política e a natureza, principalmente o mar. Cícero aponta, ainda, que a
necessidade de virtude e o amor pela natureza influenciavam os homens a se
dedicarem à política.
Os elementos da natureza estão presentes em várias citações da obra e
demonstram o equilíbrio existente entre os acontecimentos políticos e naturais,
ambos em constante transformação. O que os diferencia é que os fenômenos da
natureza não são controlados pelo homem, ao contrário da vida política que é
dirigida pelos interesses dos indivíduos.
Ao falar dos filósofos, por exemplo, Cícero compara o mar tranquilo com a
falta de participação na política e o mar agitado com a participação ativa
(Cicero, De Republica 1.7). Além disso, ele utiliza nomes de fenômenos e
elementos da natureza, como tempestades e mares agitados, para caracterizar a
vida política.

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Cidadania em Roma
A obra de Cícero apresenta a discussão acerca das
formas de governo em Roma, principalmente da República,
com uma ênfase na participação política como meio de
exercício da cidadania. Cícero discorre sobre a autoridade da
vida política em detrimento da atividade dos homens sábios,
por exemplo, os quais estavam afastados das questões
políticas.
A vida cívica em Roma caracterizava-se por ser
unitária e englobava todos os cidadãos, independente das
funções que eles exerciam. Além disso, o conceito de
cidadania em Roma estava ligado a um estatuto jurídico,
no qual os indivíduos possuíam seus direitos e deveres
Fig. 4: Jovem de toga, que regulados pelo direito comum. No contexto da participação
denota sua condição de do cidadão, todos deveriam atuar na vida social e
cidadão
contribuir com a coletividade, uma vez que vivam em
conjunto e, dessa forma, precisavam garantir o equilíbrio da sociedade.
Cícero enfatiza no Livro I a importância da participação na política e da
doação para a cidade, ou seja para a República, pois, à medida que a cidade
exige de todos, ela também atende a seus interesses. Ele afirma que a cidade
gera e educa o cidadão, além de oferecer um refúgio sempre seguro, e em troca
a cidade espera contar com o ânimo, a inteligência e o discernimento dos
cidadãos (Cícero, De Republica, 1.4).
Sendo assim, o exercício da cidadania se concretizaria a partir da
participação na vida política e na doação à cidade, a qual exigia a atuação do
cidadão para que houvesse a harmonia entre a coletividade. Ao mesmo tempo,
aqueles que se doavam à coisa pública eram os homens virtuosos, corajosos,
dotados de ânimos, como bem afirma Cícero, e os quais deveriam ser chamados
de cidadãos.

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Magistraturas Romanas
A estrutura institucional da República Romana era formada por
assembleias (concilia), no total de três, e magistraturas que eram divididas em
sete classes, compostas por magistrados. Eles, de forma permanente ou
temporária, ocupavam os cargos e atuavam de acordo com as prerrogativas da
lei.

Concilia Concílios/Assembleias

Comício curial
Essa organização remonta ao período monárquico e durante a República
perdeu sua força. Tinha caráter religioso e era comandado pelo Pontífice
Máximo. Atuava em assuntos de guerra, tratados, na eleição de Cônsules e
Pretores, entre outras funções administrativas.

Comício das Tribos


Era a assembleia mais da popular da República Romana. Sua composição tinha
um caráter mais democrático. Era o comício responsável pela eleição dos
Tribunos da Plebe e dos Edis.

Comício das Centúrias


Considerada a mais importante assembleia da República em Roma. Era o
comício do povo em armas no Campo de Marte, composta por homens de todas
as classes sociais que eram organizados a partir de sua riqueza predial.

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Fig. 5: Templo de Adriano, localizado no Campo de Marte, em Roma, Itália.

Fig. 6: Planimetria do Campo de Marte central.

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Magistraturas
Cônsules

Os Cônsules eram geralmente dois e eram


detentores tanto de imperium quanto de potestas.
Era a magistratura mais importante, pois eram
encarregados de presidir as assembleias. Além
disso, comandavam os exércitos e organizavam os
cultos públicos. Potestas indica uma forma de
autoridade. Por sua vez, o imperium indicava
prerrogativas mais definidas, como comandar um
Fig. 7: Imperador Tibério, cônsul
romano exército.

Pretores
Os pretores também eram dois, mas até o fim da
República esse número cresceu, chegando até
dezesseis. Suas funções eram essencialmente
judiciárias. Os pretores eram detendores de
Fig. 8: Representação do pretor imperium.
romano Lucius Antonius Rufus
Appius

Ditador
Quando o Estado enfrentava momentos difíceis e de
calamidade, aparecia a figura do ditador. Ele
assumia o poder de Roma durante seis meses,
enquanto as outras magistraturas eram anuladas. O
ditador detinha o imperium até que a situação se
resolvesse. Após o período de instabilidade, o
ditador voltava à sua condição de cidadão e as outras
magistraturas voltavam a funcionar.
Fig. 9: Busto do ditador roma-
no Sula.

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Censores
Os Censores eram magistrados que não detinham o
imperium, mas desempenhavam importante função
social na República Romana. Geralmente eram dois
censores, os quais eram responsáveis pelo
recenseamento das cidades. Eles repartiam os
cidadãos por tribos e em classes censitárias e
também eram responsáveis por garantir a
Fig. 10: Marcus Aemilius moralidade pública.
Lepidus I, censor romano.

Edis
A magistratura dos Edis era formada por quatro
cidadãos romanos, dois advindos dos patrícios e dois
advindos da plebe. Eles eram responsáveis pelo
policiamento da cidade, organização de eventos,
como os jogos, proteção dos edifícios públicos e
distribuição do trigo.

Fig. 11: Representação de Edil


Romano

Questores
Os questores tratavam das finanças de Roma, sendo
detentores do Tesouro de Saturno, o tesouro público
de Roma. Os questores eram consultados pelos
cônsules nos assuntos da administração das verbas
públicas e das campanhas militares. Eles geralmente
recebiam tributos e comissões de guerra.

Fig. 12: Templo de Saturno,


onde ficava o Tesouro de
Saturno.

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Tribuno da Plebe

As lutas sociais entre os patrícios e os plebeus iniciaram-se nos


primórdios da República Romana. O ponto culminante desse conflito foi em 494
a.C., quando os plebeus reuniram-se no Monte Aventino, episódio que ficou
conhecido como Secessão da Plebe. Foi criado um estado dentro do estado, com
magistraturas e leis voltadas aos seus interesses. Entre as magistraturas
plebeias, estava o Tribuno da Plebe, composto por plebeus eleitos para o
mandato de um ano. As principais atribuições do Tribuno da Plebe eram
organizar as assembleias da plebe e garantir os direitos dos plebeus diante da
aristocracia patrícia. Uma das principais características do Tribuno da Plebe era
sua inviolabilidade, que assegura o direito de vetar decisões de outras
magistraturas. Dois personagens que se destacaram nesse contexto foram os
irmãos Tibério e Caio Graco, que foram eleitos tribunos da plebe e lutaram
principalmente pela reforma agrária.

Fig. 13: Revolta do Monte Aventino, o monte sagrado. Gravura de B.


Barloccini (1849).

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Sociedade Romana
Patrícios

Eram os cidadãos que constituíam a


nobreza romana e sua posição era definida pelo
nascimento. Sua origem é ligada aos fundadores
de Roma. No século V a.C. correspondiam a cerca
de 10% da população romana. Eram formados em
sua maioria por grandes latifundiários. Possuíam
privilégios políticos, sociais, econômicos e
religiosos e dominavam as assembleias
populares.

Fig. 14: Patrício segurando bustos


de antepassados, símbolo de sua
nobreza, século I d.C.

Plebeus

Os plebeus eram o povo comum, no sentido


de não pertencerem às famílias aristocráticas,
os homens livres que compunham a maior
parcela da sociedade romana, destacando-se
por ser um grupo heterogêneo. Sua posição
era definida pelo nascimento. Eles possuíam
direito à cidadania, no entanto, não gozavam
dos mesmos direitos e prerrogativas dos
Fig. 15: Escultura do século XIX repre-
sentado os irmãos Tibério e Caio Gra- patrícios. Ao longo da República Romana, os
co. plebeus organizaram lutas por direitos e
ascensão política. Os conflitos entre os plebeus e os patrícios foram
responsáveis por grandes mudanças na sociedade romana.

14
Nobilitas

A nobilitas constituía outro grupo social em Roma. Era formada por patrícios e
plebeus enriquecidos (nobilis significa “conhecido, nobre, notável” em latim). Os
cidadãos pertencentes a esse grupo possuíam privilégios e exerciam algumas
magistraturas. Esse grupo efetivamente ocupou o poder na maior parte da
história romana.

Fig. 16 Moeda romana representando a Nobilitas.

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Os Irmãos Gracos

Tibério e Caio Graco foram dois políticos romanos, cuja atuação política
ampliaram os conflitos entre patrícios e plebeus no final da república. O pai de-
les foi Tibério Semprônio Graco, que fez importantes campanhas militares na
Hispânia e Sardenha e foi eleito cônsul duas vezes. Já sua mãe, Cornélia, era
filha de Cipião Africano. Os irmãos seguiram a carreira política e foram tribu-
nos da plebe: Tibério em 133 a.C. e Caio em 123-122 a.C.
Durante sua magistratura, Tibério apresentou uma proposta de lei (Lex
Sempronia Agraria) que alterava a lei agrária romana, permitindo a expansão do
ager publicus (terras públicas) para a utilização dos cidadãos pobres. Previa-se
um limite para a quantidade de terra individual que, se ultrapassado, eram
convertidos em terras públicas para serem distribuídas em pequenos lotes para
os mais pobres. Isso modificava diretamente as posses de terra e também evita-
ria o controle agrário das famílias mais ricas, possibilitando acesso de mais pes-
soas à atividade agrícola. Tibério apresentou essa proposta diretamente ao co-
mício da plebe, sabendo que o Senado a recusaria de imediato. Mesmo assim, o
senado utilizou sua influência para convencer o outro tribuno a vetar a propos-
ta. Para Tibério, esse veto simbolizava uma afronta à constituição romana. Ele
começou a utilizar seu poder de veto para paralisar o funcionamento da repú-
blica. Como consequência, uma nova votação foi realizada e a lei foi aceita una-
nimemente. Com isso, ele se tornou bastante popular, mas foi assassinado pela
facção dos senadores que não aceitavam essas mudanças.
Por sua vez, Caio Graco assumiu como tribuno da plebe dez anos após
seu irmão. Ele também atuou na legislação sobre terras, ampliando-a, além de
propor várias reformas a favor da plebe, como diminuição do preço do trigo,
aumento da idade para o serviço militar obrigatório e inclusão de outros povos
na cidadania romana. Isso incitou a oposição do senado, que assassinou aliados
de Caio e o fez fugir da cidade.

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De servus à sclavus

A palavra romana para “escravo” era servus, referindo-se aos desprovi-


dos de direitos políticos, podendo ser os prisioneiros de guerra, indivíduos que
não pagavam as dívidas e estrangeiros capturados. A partir de meados do sécu-
lo X da nossa era, o uso desse termo para essa categoria social vai diminuir e
passar a indicar sujeitos com mais liberdade pessoal e algumas posses.
As discordâncias entre as fontes não estabelecem nítidas fronteiras entre
os servos e os escravos nesse momento, sendo necessário pensar os termos de
maneira localizada, temporal e espacialmente. Alguns historiadores afirmam,
por exemplo, que a origem da “servidão” se encontraria na condição do colonus
romano liberto, que passaria para os seus descendentes essa posição. Apesar da
dificuldade, a análise conduz a reflexões acerca do trabalho servil sobre a terra,
da hereditariedade dos serviços e da imobilidade legal durante o período medi-
eval.
A partir da Baixa Idade Média, os termos para se referir aos escravos de-
rivaram-se da palavra slav, que significa eslavo: povos do Leste Europeu, es-
cravizados após as derrotas nas guerras contra os germânicos. Assim, palavras
como sclavus ou slavus, do latim medieval, e sklábos ou sklabēnós, do grego
bizantino, passaram a designar os escravos no sentido antigo. É possível perce-
ber, portanto, não apenas a mobilidade da língua em relação aos contextos só-
cio-históricos, mas uma noção de escravidão, estruturalmente, não linear ou
única.

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Introdução
Para compreender o contexto do debate filosófico entre os sábios roma-
nos narrado por Cícero, analisado em nossas fichas, é necessária uma breve si-
nopse do livro até o diálogo sobre a formas de governo ser estabelecido.

Do Céu para a Terra

A obra De Republica é ambientada no ano de 129 a.C., durante as férias la-


tinas (três dias de solenidades durante o inverno europeu dedicadas a Júpiter
Lacial). Cipião Emiliano (O Africano) está repousando em sua casa de campo. O
seu primeiro convidado a chegar na casa é Quinto Élio Tuberão, seu sobrinho.
Visando descansar a mente da crise política que vive a república, decidem con-
versar sobre ciências. Tuberão propõe discutir a notícia de que “dois sóis” fo-
ram vistos no céu. Logo após a proposta, chegam os demais convidados: Lúcio
Fúrio Filo, Públio Rutílio Rufo, Caio Lélio – acompanhado de Éspúrio Múmio,
Caio Fânio, Quinto Múcio Cévola – e, por fim, Mânio Manílio (ver o elenco de
personagens mais adiante).
Cipião simboliza o cidadão ideal na obra, sendo um homem de ação polí-
tica e também interessado filosoficamente pela postura de Sócrates. Já Tuberão
é um homem de letras, estoico discípulo de Panécio. Lélio, por sua vez, ao per-
ceber o assunto abordado, os dois sóis, fica surpreso por Cipião estar conver-
sando sobre o céu em vez das necessidades da cidade. Na sequência, Filo pron-
tamente defende que o conhecimento do céu se aplicava à esfera terrena e que o
simples exame e observação das coisas já dava imenso prazer para amantes da
sabedoria como eles. Cipião, então, afirma ser mais importante a análise do fe-
nômeno astronômico do que a utilização de sua informação em prol da comu-
nidade. Para confirmar sua posição, dá o exemplo de Péricles, que acalmou a
população que presenciava um eclipse, ao explicar através da ciência esse fe-
nômeno.
Esse diálogo – que à primeira vista pode parecer irrelevante ao entendi-
mento da república, como o próprio Lélio menciona – serve na realidade para
contextualizar a premissa da obra. Os “dois sóis” avistados no céu são referên-
cia às duas figuras que dominaram a política no fim da república: Júlio César e
Pompeu. Ambos exerceram uma influência exacerbada no campo político que

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parecia ser inalcançável naquele momento, colocando assim em risco o equilí-
brio necessário para o funcionamento das instituições republicanas. As metáfo-
ras com fenômenos meteorológicos, apresentadas na obra por Cipião, revelam a
visão política de Cícero. Para o orador, um homem de ação deve manter seu
foco nas questões de consequências diretas, portanto, as ações que podem ser
feitas naquele momento de maneira pragmática, sem perder o foco com ideali-
zações. O conhecimento, então, é valorizado pela prática e não somente por sua
teoria. Isso fica claro com o exemplo de Péricles ter utilizado seu conhecimento
de algo distante do cotidiano, o eclipse, para acalmar uma crise. O eclipse de-
monstra a concepção de Cícero de que seu próprio contexto estava num mo-
mento de apagamento político, com os debates sendo majoritariamente retóri-
cos e ineficazes para uma mudança propositiva e uma menor participação dos
cidadãos qualificados.

Dois Sóis em Roma

O diálogo segue com discussões sobre possíveis relações da ciência com a


política, até que Lélio contrapõe a discussão dos “dois sóis” com algo que está
“diante dos nossos olhos”: a existência de dois senados e dois povos “em uma
única república” (Cícero, De Republica, 1.19). Lélio menciona as ações e a morte
de Tibério Graco como causadoras de uma divisão no povo romano e das ações
hostis de parte dos senadores para com o partido de Cipião. Termina dizendo
aos jovens para não temer os fenômenos celestes, inatingíveis e inócuos, mas
acreditar na possibilidade de lutar para “termos um povo e um senado unido”
(Cícero, De Republica, 1.31). Demonstra, assim, a preocupação com a polarização
e enfraquecimento das instituições, indicando a necessidade de resgatar a uni-
dade que existia anteriormente e combater esses políticos “inatingíveis e inó-
cuos” para a unificação do povo (Cícero, De Republica, 1.32).
Lélio, trazendo o assunto para as questões que assombram a república,
enaltece Cipião como político e herdeiro de uma tradição familiar impressio-
nante, que pode servir de inspiração. Por isso quer ouvi-lo falar sobre política e
sua visão da república. Cipião aceita a proposta, mas pede para não ser ouvido
como alguém que aprendeu com os livros gregos, e sim com sua própria expe-
riência. Então, Cipião diz que vai começar pelo “nome do objeto investigado”,
conforme “a lei que se usa ao dissertar sobre um assunto” (Cícero, De Republica,
1.38), que nesse caso, é a própria república.

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Elenco de Personagens

Cipião Emiliano, o Africano


General da República Romana, conhecido pelas vitórias
na Segunda Guerra Púnica, que lhe proporcionaram o
título de o Africano, além possibilitar a hegemonia de
Roma no Mediterrâneo. Foi eleito cônsul em 147 a. C.
Patrocinava as ciências e as artes, mantendo o chamado
Círculo Cultural dos Cipiões, com a participação de
Políbio, Panécio, Lélio, Fânio, Terêncio e Lucílio.

Fig. 17: Representação do século Quinto Élio Tuberão


XVII do busto de Cipião.
Sobrinho de Cipião. Foi discípulo de Panécio e pretor
em 136 a.C.
Lúcio Fúrio Filo
Político Romano descendente de uma das famílias mais tradicionais de patrícios
romanos. Eleito cônsul em 136 a.C e foi um importante aliado político de Ci-
pião. Destacou-se pela sua afinidade com a filosofia grega que, posteriormente,
influencia Cícero.

Públio Rutílio Rufo


Discípulo de Panécio e grande conhecer da literatura grega. Participou de cam-
panhas militares com Cipião na Numância e foi cônsul em 105 a.C. Saiu de Ro-
ma e passou a viver em Mitilene e em Esmira, onde se encontrou com Cícero.

Caio Lélio
Combateu em Cartago com Cipião. Foi pretor em 145 a.C e cônsul em 140 a.C.

Mânio Manílio Lepos


Cônsul Romano em 149 a.C., primeiro ano da Terceira Guerra Púnica. Empre-
gou os três anos seguintes em um cerco à cidade de Cartago. Também seguiu
uma carreira de escritor, com livros sobre direito civil que seguiam o modelo de
retórica grega.

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Definição de res publica
Cícero, República 1.39 – 1.42

Est igitur, inquit Africanus, RES


REPÚBLICA é O interesse do povo – disse Africa-
PUBLICA res populi, populus
autem non omnis hominum no –, mas nem todo agrupamento de pessoas
coetus quoquo modo que se juntou de qualquer maneira é um povo,
congregatus, sed coetus
mas somente o agrupamento de uma multidão
multitudinis iuris consensu et
utilitatis communione sociatus. que se associou pelo consenso do direito e pela
Eius autem prima causa coëundi comunhão do benefício. E o principal motivo
est non tam inbecillitas quam
naturalis quaedam hominum de se associar não é tanto sua fragilidade, mas
quasi congregatio. sim uma espécie de disposição natural das pes-
[…] Hi coetus igitur hac, de qua soas de se agruparem.
exposui, causa instituti sedem
primum certo loco domiciliorum […] Pelo motivo que expliquei, esses agrupa-
causa constituerunt; quam cum mentos primeiro constituíram um assentamento
locis manuque saepsissent, eius
modi coniunctionem tectorum
em determinado local para moradia e depois o
oppidum vel urbem appellave- protegeram com defesas e uma tropa. A esse
runt delubris distinctam spatiis- conjunto de casas deram o nome de vila ou ci-
que communibus.
dade, caracterizada por templos e espaços co-
Omnis ergo populus, qui est talis
coetus multitudinis, qualem ex- muns.
posui, omnis civitas, quae est Todo povo (que é o agrupamento da multidão,
constitutio populi, omnis res
publica, quae, ut dixi, populi res tal como descrevi), toda sociedade (que é a for-
est, consilio quodam regenda est, ma organizada do povo), toda república (que,
ut diuturna sit.
como eu disse, é o interesse do povo) deve ser
Id autem consilium primum
semper ad eam causam referen-
regida por alguma decisão para ser duradoura.
dum est, quae causa genuit civi- Em primeiro lugar, essa decisão deverá sempre
tatem. ter relação com aquele motivo que deu origem à
Deinde aut uni tribuendum est
sociedade.
aut delectis quibusdam aut
suscipiendum est multitudini Além disso, ela deverá ser confiada ou a uma
atque omnibus. única pessoa ou a alguns escolhidos, ou deverá
Quare cum penes unum est om-
ser submetida à multidão e a todos.
nium summa rerum, regem illum
unum vocamus et regnum eius
Por isso, quando a soma de todos os interesses
rei publicae statum. fica nas mãos de uma única pessoa, chamamos
essa pessoa de rei e a forma dessa república de
reino.

21
Cum autem est penes delectos, Quando fica nas mãos de alguns escolhidos,
tum illa civitas optimatium arbi- então se diz que a sociedade é dirigida pelo ar-
trio regi dicitur.
bítrio dos “melhores”.
Illa autem est civitas popularis
(sic enim appellant), in qua in Já a sociedade “popular” (pois assim a chamam)
populo sunt omnia. é aquela em que tudo fica com o povo.

Vocabulário

(civitas) s.f. Sociedade, população organizada socialmente; daí cidadania, direito


do cidadão de participar da sociedade.
(consilium) s.n. Decisão; capacidade de tomar decisões; daí conselho, grupo de
pessoas encarregado das decisões.
(constitutio) s.f. Constituição, organização, disposição legal.
(ius) s.n. Direito, justiça.
(multitudo) s.f. Multidão, grande número de pessoas; população.
(oppidum) s.n. Fortaleza, cidade fortificada.
(optimates) s.m. Os auto-intitulados “melhores”; grupo político dos aristocratas.
(popularis) adj. Que pertence ao povo, democrático; no plural grupo político dos
democratas.
(populus) s.m. Povo, nação, conjunto dos cidadãos.
(publicus) adj. Público, relativo ao povo; público, que é compartilhado com toda a
população.
(regnum) s.n. Reino, monarquia.
(res) s.f. Interesse, negócio, patrimônio.
(res publica) s.f. O conjunto de interesses e bens compartilhados por um povo;
república.
(rex) s.m. Rei, soberano, monarca; aquele que dirige.

(utilitas) s.f. Utilidade, vantagem, benefício.

(urbs) s.f. Cidade (em oposição ao campo).


Comentário
Cícero explica o significado da Res publica que, para ele, é a coisa pública,
coisa do povo, ou seja, os assuntos e os interesses do povo. Para os romanos o
termo res possui tanto um sentido concreto de bens materiais, patrimônio,
quanto um sentido abstrato de conjunto dos interesses e assuntos de alguém.
Assim, para o cidadão romano a Res publica é algo que diz respeito ao povo.
Cícero afirma que o que constitui o povo não é apenas o ajuntamento de pesso-
as, mas um agrupamento sistematizado e organizado. O tipo de sociedade pen-

22
sada por Cícero é a do povo que se reúne com interesses comuns. É um agru-
pamento não de qualquer jeito, mas pelo acordo de direitos e deveres. É interes-
sante pontuar que o termo res publica ficou consolidado no senso comum como
“coisa pública”, mas existem outras propostas de tradução para entendermos
todas as nuances de res: interesse do povo, assuntos públicos, bens públicos, etc.
Esse povo, que se agrupa, tem necessidade de construir habitações para mora-
dia e proteção. A esse ajuntamento de construções Cícero chama de cidade ou
urbe. A urbe é o centro urbano, designação atribuída ao conjunto de pessoas que
habitam uma área delimitada, com casas e atividades financeiras, comerciais,
culturais, administrativas, entre outras. A multidão se associa para fazer uma
espécie de parceria, com relação às regras e uso comum dos benefícios. Essa
associação baseia-se na equidade; uma equidade proporcional à diferença de
cada um. A utilidade que Cícero descreve pauta-se na busca pelo bem-estar
comum. Dessa forma, o modelo ideal de cidadão romano é aquele que propor-
ciona educação, segurança, moradia, justiça.
O povo reunido na urbe constitui a civitas, grupo de cidadãos que seria a
reunião da coisa pública. Em Cícero o termo civitas aparece como alternativa ao
termo res publica, com o sentido de estado, de constituição ou de governo. Além
disso, para tecer uma contraposição entre cidade e campo, o termo civitas torna-
se sinônimo de urbe. Cícero defende que a Res publica deve ser orientada por
uma decisão para que se desenvolva e seja duradoura. Ao poder de tomar deci-
sões ele dá o nome de consilium, termo que também possui o sentido de discer-
nimento, entendimento.
Cícero aponta três constituições para o consilium: (1) o consilium nas mãos
de um só, o rei; (2) o consilium nas mãos dos escolhidos, os aristocratas; e (3) o
consilium submetido à multidão, na sociedade popular. Ao longo da obra De
Republica, ele vai apontar as vantagens e desvantagens dessas formas de gover-
no e qual a melhor forma política para a sociedade romana.

23
Democracia
Cícero, República 1.47

Itaque nulla alia in civitate, Somente na sociedade em que o poder do povo é


nisi in qua populi potestas
supremo a liberdade tem algum lugar para morar.
summa est, ullum domicilium
libertas habet; qua quidem E com certeza nada pode ser mais doce do que ela;
certe nihil potest esse dulcius, porém, se não for igualitária, será tudo, menos
et quae, si aequa non est, ne
libertas quidem est.
liberdade.
Qui autem aequa potest esse, Mas como pode ser igualitária – não digo no reino,
omitto dicere in regno, ubi ne onde a servidão não é oculta nem incerta, mas nes-
obscura quidem est aut dubia
sas sociedades em que todos são livres pela pala-
servitus, sed in istis
civitatibus, in quibus verbo vra?
sunt liberi omnes? Pois eles propõem votações, entregam comandos e
Ferunt enim suffragia,
magistraturas, são assediados pelos candidatos,
mandant inperia, magistratus,
ambiuntur, rogantur, sed ea têm os votos solicitados e, no fim, mesmo que não
dant, quae, etiamsi nolint, queiram, entregam para os que se candidatam as
danda sint, et quae ipsi non
coisas que são obrigados a entregar e que eles pró-
habent, unde alii petunt;
sunt enim expertes imperii, prios não têm.
consilii publici, iudicii Pois eles são excluídos do comando, do conselho
delectorum iudicum, quae público, do tribunal de juízes eleitos, cargos que
familiarum vetustatibus aut
são calculados de acordo com a antiguidade ou o
pecuniis ponderantur.
dinheiro das famílias.

Vocabulário
(aequus) adj. Igual, igualitário, distribuído por igual.
(imperium) s.n. Poder máximo de comando, autoridade máxima; comando militar; domínio
sobre outros povos.
(libertas) s.f. Liberdade, condição de quem é livre.
(magistratus) s.f. Magistratura, cargo na administração pública.
(potestas) s.f. Poder, condição de quem é poderoso.
(regnum) s.n. Reino, monarquia.
(servitus) s.f. Servidão, escravidão, submissão.
(suffragium) s.n. Voto; votação.

24
Comentário
Cícero não concebia os acontecimentos de forma circular, mas a partir da
ideia de avanço e decadência. Ele escreve numa época de crise em Roma, por
volta do século I a.C. Mesmo em um tempo obscuro, ele almejava a salvação da
República pelo equilíbrio de poderes. Para Cícero, o avanço político ocorreu no
tempo passado, numa época áurea da República, um passado idealizado, que
ele tenta resgatar. A República de Roma foi construída como um somatório de
experiências e gerações. Ele não adere a um mito ou ato fundador, mas as ações
que se seguiram a ele. Assim, ele passa do mito aos fatos e ao conhecimento
histórico.
Cícero dá ênfase à coletividade. As ações humanas, por meio de sua li-
berdade, permitem a consolidação da República e seu aperfeiçoamento. A
grandeza de Roma estaria nas experiências políticas. O progresso político em
Roma é natural e reforçado pelo discernimento do povo.
As formas de governo trazidas por Cícero têm as características dos mo-
delos de governo em Platão, Heródoto e Aristóteles, que seriam a Monarquia,
Aristocracia e Democracia. Nesse trecho, ele descreve o poder do povo, em
comparação com o poder monárquico e aristocrático. Seu argumento se pauta
na ideia de liberdade, que só pode ser alcançada na urbe em que o povo exerce a
soberania. A liberdade deve ser igualitária para que seja concreta.
Faz, ainda, uma crítica à monarquia e à aristocracia, regimes nos quais o
povo não participa do consilium e das decisões públicas. O povo apenas segue
as normas atribuídas pela minoria, uma vez que os cargos são atribuídos con-
forme o poder monetário ou os laços familiares. A crítica que Cícero tece à mo-
narquia reside no fato de que, nessa forma de governo, o rei, autoridade su-
prema, exerce o poder de forma unitária, indo em oposição à harmonia da soci-
edade. Portanto, a monarquia seria falha por prejudicar o bem comum.
Na sequência, Cícero enumera as cidades de Atenas e Rodes como
exemplos de democracia, mas o restante da argumentação foi perdido, já que
vários fólios da obra estão desaparecidos.

25
A república do povo livre
Cícero, República 1.48

. . . populo aliquis unus pluresve Depois que um ou mais homens ricos e abasta-
divitiores opulentioresque exti-
tissent, tum ex eorum fastidio et dos se colocaram acima do povo, eles dizem para
superbia nata esse commemorant os ignorantes e fracos que essa situação nasceu
cedentibus ignavis et inbecillis
do desprezo e da soberba deles, ao cederem e
et adrogantiae divitum succum-
bentibus. sucumbirem à usurpação dos ricos.
Si vero ius suum populi teneant, Já se os povos mantêm seu próprio direito, di-
negant quicquam esse praestan-
zem que não há nada melhor, mais livre, mais
tius, liberius, beatius, quippe qui
domini sint legum, iudiciorum, feliz, já que eles são senhores das leis, dos tribu-
belli, pacis, foederum, capitis nais, da guerra, da paz, das alianças, da vida de
unius cuiusque, pecuniae.
cada um, do dinheiro.
Hanc unam rite rem publicam,
id est rem populi, appellari Assim, consideram que só essa pode ser chama-
putant. da verdadeiramente de república, no sentido de
Itaque et a regum et a patrum interesse do povo.
dominatione solere in libertatem
rem populi vindicari, non ex Por isso, é comum que o interesse do povo rei-
liberis populis reges requiri aut vindique a liberdade contra a dominação de reis
potestatem atque opes e patrícios, mas não que povos livres solicitem
optimatium.
reis ou o poder e os recursos dos “melhores”.

Vocabulário
(dominatio) s.f. Dominação, submissão, repressão.
(foedus) s.n. Aliança; trato, acordo.
(ius) s.n. Direito, justiça.
(lex) s.f. Lei escrita, legislação.
(libertas) s.f. Liberdade, condição do homem livre.
(opes) s.f. Recursos, meios, condições.
(pater) s.m. Pai, chefe da família; no plural patrícios, os chefes das famílias aristocráti-
cas.
(pax) s.f. Paz; pacto de não agressão.
(potestas) s.f. Poder, capacidade.
(populus) s.m. Povo, nação, conjunto dos cidadãos.
(regnum) s.n. Reino, monarquia.
(res) s.f. Interesse, negócio, patrimônio.
(res publica) s.f. O conjunto de interesses e bens compartilhados por um povo; república.
(rex) s.m. Rei, soberano, monarca; aquele que dirige.
26
(regnum) s.n. Reino, monarquia.
(res) s.f. Interesse, negócio, patrimônio.
(res publica) s.f. O conjunto de interesses e bens compartilhados por um povo; re-
pública.
(rex) s.m. Rei, soberano, monarca; aquele que dirige.

Comentário
Cícero defende que somente com o povo no poder uma sociedade pode
ser chamada de res publica, no sentido de “interesses do povo”. Com o povo
comandando as leis e toda a administração da cidade, a liberdade é plena. Ele
argumenta que somente a lei sustenta a cidade, pois o direito legitima a associa-
ção dos cidadãos. Mesmo que os cidadãos não sejam iguais em posses e talen-
tos, na Res publica, eles devem ser iguais perante a lei.
A isonomia defendida por Cícero aplicava-se somente aos cidadãos ro-
manos. Assim, a igualdade perante a lei era atribuída aos homens livres, que
poderiam participar da vida política e administrativa de Roma. Ela seria o sus-
tentáculo da República romana, assim como Aristóteles e Heródoto a definiam
como o princípio mais importante da democracia ateniense.
A cidadania defendida por Cícero é o que pautava seu conceito de res
publica, porque a moralidade residia na participação ativa nas atividades civis.
Dessa forma, para ele, não importava se o cidadão era o mais sábio ou se era um
filósofo e escritor. O cidadão romano idealizado por Cícero era aquele que se
empenhava na vida civil e política e poderia corresponder aos anseios de re-
memorar o passado glorioso da República romana. Ele defendia também que o
cidadão romano deveria desenvolver o amor pela pátria e o exercício da virtu-
de, preocupando-se com o bem comum.

27
O problema entre os governos
Cícero, República 1.50

Ceteras vero res publicas ne Ao contrário, pensam que não se deve nem
appellandas quidem putant iis
mesmo chamar as demais repúblicas com aqueles
nominibus, quibus illae sese
appellari velint. nomes com que elas desejam ser chamadas.
Cur enim regem appellem Em nome de Júpiter Ótimo, por que vou chamar
Iovis optimi nomine hominem de “rei” e não de “tirano” um homem ávido por
dominandi cupidum aut
dominar ou obter o comando exclusivo e que
imperii singularis, populo
oppresso dominantem, non domina o povo oprimido?
tyrannum potius? Pois tanto o tirano pode ser bondoso quanto o rei
Tam enim esse clemens pode ser cruel; assim, é importante para os povos
tyrannus quam rex inportunus
distinguir se obedecem a um senhor gentil ou
potest; ut hoc populorum
intersit, utrum comi domino rude, já que não há como não obedecer.
an aspero serviant; quin […] E quem suporta esses “melhores”, que em
serviant quidem, fieri non suas próprias assembleias se deram esse nome,
potest.
sem a concordância do povo? Ele se julga “me-
[…] Nam optimatis quidem
lhor” com base em quê? Na educação, nas habili-
quis ferat, qui non populi
concessu, sed suis comitiis hoc dades, nas ocupações…?
sibi nomen adrogaverunt? Qui
enim iudicatur iste optimus?
doctrina, artibus, studiis . . .

Vocabulário
(ars) s.f. Arte, habilidade técnica para fazer alguma coisa.
(doctrina) s.f. Doutrina, educação; ensinamentos que constituíam a educação romana.
(dominus) s.m. Dono, senhor; aquele que manda.
(optimates) s.m. Os auto-intitulados “melhores”; grupo político dos aristocratas.
(populus) s.m. Povo, nação, conjunto dos cidadãos.
(res publica) s.f. O conjunto de interesses e bens compartilhados por um povo; repú-
blica.
(rex) s.m. Rei, soberano, monarca; aquele que dirige.
(studium) s.m. Estudo, dedicação; ocupação a que uma pessoa se dedica.
(tyrannus) s.m. Déspota, tirano, usurpador.

28
Comentário

Para Cícero, na constituição de uma sociedade organizada – uma repú-


blica –, é necessário um consenso da população sobre o direito e uma devida
comunhão dos benefícios entre os cidadãos. Esse acordo, estabelecido na ori-
gem de uma sociedade, não serve apenas para explicara sua formação, mas
também legitima o governo.
Nesse trecho, Cícero começa sua abordagem da legitimidade do governo
com duas formas de governo, apresentando suas respectivas falhas. A primeira
é a Monarquia, que na experiência histórica romana terminou de maneira trau-
mática no governo de Tarquínio, o Soberbo. Por isso, a figura do rei, na memó-
ria dos antigos romanos, é intuitivamente ligada ao governo desmedido e tirâ-
nico. Porém, nesse trecho, Cícero diferencia o rei justo do injusto, sendo o prin-
cipal fator dessa distinção o respeito pela expectativa do povo às ações do go-
verno.
O rei deve ser julgado como legítimo em suas ações de acordo com as
necessidades estabelecidas pelo contexto que está governando. Portanto, para
Cícero, a legitimidade do governo está atrelada à atenção dada para as deman-
das que sua população apresenta, sendo um rei calmo ou cruel de acordo com
as necessidades sociais. Isso significa que o contexto que a comunidade está in-
cluída apresentará necessidades ao líder que precisam ser respondidas e, de
preferência, solucionadas. Então, Cícero aponta como primeira falha no gover-
no monárquico a ausência da possibilidade de julgar as ações do rei, sem ferra-
mentas para garantir a expressão popular de seus interesses. Desta maneira, por
todo o poder estar acumulado em uma única pessoa, essa população está sub-
missa ao arbítrio das decisões tomadas pelo governante, mesmo que este ignore
as necessidades sociais e sejam, portanto, ilegítimas.
Aristóteles e Políbio também abordaram a deterioração da monarquia, o
que é retomado por Cícero. Nos autores gregos, o rei, que foi aceito por sua ex-
celência de comum acordo pela população, deve agir de acordo com seu conhe-
cimento. Quando a vontade do monarca se torna maior que as necessidades
gerais e sua autoridade é estabelecida pelo medo e violência, esse governo tor-
na-se uma tirania. Cícero apresenta uma concepção similar, em que a legitimi-
dade do monarca está ligada à aceitação de seu governo pela população. É ne-
cessário existir uma coerência entre as vontades dos grupos que estabeleceram a
sociedade.

29
Cícero também aponta as primeiras falhas da aristocracia, que pode ser
facilmente convertida em uma oligarquia. Na oligarquia, um pequeno grupo de
extrema autoridade governa em favor de seus próprios interesses. Nesse trecho,
ele aborda o que faria um aristocrata ser legítimo e quais qualidades estão de
acordo com o interesse público. Para Cícero, o governo aristocrático é válido
quando há o claro consenso das qualidades dos selecionados para o cargo.
Esse ponto se assemelha às críticas de Aristóteles para a aristocracia, cu-
jas qualidades estão na honestidade e virtude dos melhores cidadãos, que po-
dem assim tomar as melhores decisões para a cidade. Porém, deteriora-se em
uma oligarquia quando esse grupo, que possui poder total, visa apenas o inte-
resse dos ricos e o benefício próprio.

30
Aristocracia
Cícero, República 1.51

Quodsi liber populus deliget,


Se um povo livre escolhe aqueles a quem ele confia
quibus se committat, deliget-
que, si modo salvus esse vult, seu futuro e, se quer estar em segurança, escolhe
optimum quemque, certe in alguém excelente, então é claro que a segurança
optimorum consiliis posita est
das sociedades foi depositada nas decisões dos
civitatium salus, praesertim
cum hoc natura tulerit, non melhores, principalmente quando a natureza fez
solum ut summi virtute et não só que as pessoas superiores em virtude e co-
animo praeessent inbecilliori-
bus, sed ut hi etiam parere ragem ficassem acima das mais fracas, mas tam-
summis velint. bém que estas quisessem obedecer às superiores.
Verum hunc optimum statum Dizem que esse ótimo estado foi deturpado pelas
pravis hominum opinionibus
eversum esse dicunt, qui igno-
opiniões erradas dos homens que, por ignorância
ratione virtutis, quae cum in do que é a virtude (a qual, estando em poucos, por
paucis est, tum a paucis iudica- poucos é examinada e compreendida), pensam que
tur et cernitur, opulentos ho-
mines et copiosos, tum genere os melhores são os homens ricos e abastados (logo,
nobili natos esse optimos pu- nascidos de família conhecida). Por esse erro da
tant. Hoc errore vulgi cum
multidão, quando os recursos de uns poucos (e
rem publicam opes paucorum,
non virtutes tenere coeperunt, não as virtudes) passam a controlar a república, os
nomen illi principes optima- principais entre os “melhores” se apegam a esse
tium mordicus tenent, re au-
tem carent [eo nomine]. rótulo com unhas e dentes, mas não têm uma ati-
Nam divitiae, nomen, opes tude digna dele.
vacuae consilio et vivendi
Pois as riquezas, o nome e os recursos, sem uma
atque aliis imperandi modo
dedecoris plenae sunt et inso- boa decisão sobre o viver e o comandar os outros,
lentis superbiae, nec ulla de- estão apenas repletos de desonra e soberba inso-
formior species est civitatis
lente, e nenhuma espécie de sociedade é mais dis-
quam illa, in qua opulentissimi
optimi putantur. forme do que aquela em que os mais abastados se
consideram os melhores.

31
Vocabulário
(civitas) s.f. Sociedade, população organizada socialmente; daí cidadania, direito do
cidadão de participar da sociedade.
(consilium) s.n. Decisão; capacidade de tomar decisões; daí conselho, grupo de pesso-
as encarregado das decisões.
(imbecillis) adj. Fraco, debilitado; inferior.
(nobilis) adj. Conhecido; famoso; notável; nobre.
(optimates) s.m. Os auto-intitulados “melhores”; grupo político dos aristocratas.
(salvus) adj. Salvo, em segurança.
(salus) s.f. Segurança; bem estar.
(status) s.m. Estado, condição; forma, arranjo.
(superbia) s.f. Soberba, presunção; sentimento de quem se acha superior.
(virtus) s.f. Valores como coragem e retidão moral; virtude.
(vulgus) s.m. Multidão, povo, massa, populacho.

Comentário

Cícero, influenciado por Políbio, defende que por meio do conhecimento


do passado é possível prever o futuro, pelo exemplo, pela moral e pela política.
No entanto, afasta-se do modelo de degeneração e regeneração polibiana ao
afirmar que a república, mesmo com períodos obscuros, só caminhava para o
avanço. Cícero preocupou-se em discorrer sobre a vida civil e quis comprovar
historicamente o desenvolvimento de Roma, através da ação do cidadão roma-
no.
Cícero aponta os principais vícios e erros que corrompiam a sociedade –
como a riqueza nas mãos dos abastados e a soberba – e apresenta o modelo ide-
al de cidadão a ser seguido para que Roma restaurasse a sua moralidade.
Ele faz uma crítica à oligarquia, o governo dos melhores, ou seja, os aris-
tocratas. A concentração do poder nas mãos dos ricos era o maior objeto de crí-
tica de Cícero. O autor aponta ser um erro das massas achar que uma pequena
parcela de cidadãos ricos seja a ideal para comandar a república. Sendo assim, a
oligarquia seria um regime indesejável, por não condizer com o exercício da
virtude. A riqueza de poucos causaria a desonra da sociedade, pois todo o po-
der e recursos dos aristocratas não seriam suficientes para o bem-estar na Re-
pública, já que eles não tinham os ideais de moralidade política. Apesar de ofe-

32
recerem certa estabilidade e segurança às massas, prejudicaria a liberdade de
todos perante a lei. Assim, mais uma vez, Cícero reafirma que o bom cidadão
político não é o mais rico ou mais sábio e sim o mais preocupado com o bem
comum da urbe.

33
A melhor República
Cícero, República 1.53 – 1.55

Nam aequabilitas quidem Até mesmo a igualdade de direito, que os povos


iuris, quam amplexantur livres abraçam, não só é impossível de ser observada
liberi populi, neque servari
potest (ipsi enim populi,
(pois mesmo os povos que não possuem leis nem
quamvis soluti ecfrenatique limites concedem muitas coisas a muita gente, ha-
sint, praecipue multis multa vendo neles uma grande seleção de homens e car-
tribuunt, et est in ipsis mag-
nus dilectus hominum et gos) mas também aquilo que é chamado de igualda-
dignitatum), eaque, quae de é extremamente desigual.
appellatur aequabilitas, ini-
quissima est. Pois quando se tem a mesma consideração pelos su-
Cum enim par habetur ho- periores e pelos inferiores (que existem em qualquer
nos summis et infimis, qui povo, necessariamente), a própria equidade é ex-
sint in omni populo necesse
est, ipsa aequitas iniquissi- tremamente desigual, algo que não pode acontecer
ma est; quod in iis civitati- nas sociedades que são dirigidas pelos melhores.
bus, quae ab optimis regun-
tur, accidere non potest.
São essas questões, Lélio, e outras desse tipo que
Haec fere, Laeli, et quaedam costumam ser debatidas por aqueles que elogiam
eiusdem generis ab iis, qui especialmente essa forma de república.
eam formam rei publicae
maxime laudant, disputari Então Lélio perguntou:
solent.
— Mas e você, Cipião? O que dessas três você mais
Tum Laelius:
— Quid tu, inquit, Scipio? e aprova?
tribus istis quod maxime — Você faz bem em perguntar o que dessas três eu
probas?
mais aprovo, já que não aprovo nenhuma delas se-
— Recte quaeris, quod ma-
xime e tribus, quoniam eo- paradamente e prefiro a que tiver sido construída a
rum nullum ipsum per se partir de todas elas. Mas, se fosse para aprovar um
separatim probo antepono-
que singulis illud, quod con-
simples e único regime, eu aprovaria o monárquico,
flatum fuerit ex omnibus. considerando o nome quase paternal do rei, que olha
Sed si unum ac simplex pro- para seus cidadãos como se fossem seus próprios
bandum sit, regium probem
… occurrit nomen quasi filhos e que os protege com muito zelo.
patrium regis, ut ex se natis,
ita consulentis suis civibus et
eos conservantis studio-
sius…

34
Adsunt optimates, qui se Mas então chegam os aristocratas afirmando que
melius hoc idem facere fazem isso melhor e dizendo que existe mais poder
profiteantur plusque fore
dicant in pluribus consilii de decisão em mais de um do que em uma pessoa
quam in uno et eandem tamen só, além da mesma igualdade e credibilidade.
aequitatem et fidem.
Mas aí o povo grita bem alto que não quer obede-
Ecce autem maxima voce
clamat populus neque se uni
cer nem a um só, nem a alguns poucos; que até
neque paucis velle parere; para os animais não há nada mais doce do que a
libertate ne feris quidem liberdade; que todos sentem falta dela quando es-
quicquam esse dulcius; hac
omnes carere, sive regi sive tão submissos, seja ao rei, seja aos “melhores”.
optimatibus serviant. Assim, os reis nos atraem amor paternal, os “me-
Ita caritate nos capiunt reges, lhores” pelo poder de decisão, o povo pela liber-
consilio optimates, libertate
populi, ut in comparando dif-
dade, de tal modo que, na comparação, é difícil
ficile ad eligendum sit, quid escolher qual você mais quer.
maxime velis.

Vocabulário
(aequabilitas) s.f. Igualdade, uniformidade, imparcialidade.
(aequitas) s.f. Igualdade, equilíbrio, simetria; justiça, imparcialidade.
(caritas) s.f. Estima, afeição; amor paternal.
(civis) s.m. Cidadão; que participa da sociedade.
(civitas) s.f. Sociedade, população organizada socialmente; daí cidadania, direito do
cidadão de participar da sociedade.
(consilium) s.n. Decisão; capacidade de tomar decisões; daí conselho, grupo de pes-
soas encarregado das decisões.
(dignitas) s.f. Merecimento, valor, dignidade; cargo público.
(fides) s.f. Confiança, confiabilidade; credibilidade.
(iniquus) adj. Iníquo, desigual; injusto.
(ius) s.n. Direito, justiça.
(libertas) s.f. Liberdade, condição de quem é livre.
(optimates) s.m. Os auto-intitulados “melhores”; grupo político dos aristocratas.
(populus) s.m. Povo, nação, conjunto dos cidadãos.
(regnum) s.n. Reino, monarquia.
(res publica) s.f. O conjunto de interesses e bens compartilhados por um povo; re-
pública.
(rex) s.m. Rei, soberano, monarca; aquele que dirige.

35
Comentário

Nesse trecho, Cícero estende suas críticas à democracia, que em Políbio


assume como Oclocracia na sua forma desmedida. Esta forma de governo di-
verge de uma das principais características do discurso de Cícero, que é a ação
política do cidadão. O cidadão ideal, representado por Cipião na obra, é sobre-
tudo um homem que tem prática na política. Isso faz com que, em sua crítica à
democracia, Cícero enfatize a distinção do mérito advinda da prática. Em uma
sociedade totalmente igualitária, as distinções do desempenho pessoal são apa-
gadas e isso desencoraja aqueles que são caracterizados como mais capazes a
atuar na vida pública. Assim, a democracia seria injusta em sua igualdade, pois
todos os homens possuem capacidades naturalmente diferentes e devem ser
recompensados por isso. Em comparação, esse erro de distribuição das vanta-
gens não ocorre em uma aristocracia, já que os mais adequados teriam recom-
pensas mais vantajosas.
A democracia é referida como uma forma de republica, assim como a
aristocracia e a monarquia. O termo “república” se refere ao acordo feito pelo
público, sendo assim, a constituição estabelecida de livre vontade pela popula-
ção. Ou seja, o tipo de governo e as regras pela qual a sociedade se administra,
com um sentindo que nos lembra o de Politeia em Aristóteles, traduzido por
governo ou constituição.
Cipião demonstra sua preferência pela constituição (“república”) mista,
que seria uma forma de governo que encobre todas as falhas das anteriores e,
portanto, é mais sólida.
Porém, com a pergunta de Lélio, Cipião demonstra que prefere, isolada-
mente, a monarquia. A comparação entre o rei que governa um povo e o pai
que dirige a casa é utilizada para demonstrar valor na figura do bom monarca.
Essa defesa do governo monárquico demonstra um saudosismo de Cícero. Ele
enxerga que os antigos reis romanos constantemente trouxeram avanços para a
cidade. O erro da monarquia está na inconstância de bons governantes, mas
Cícero aprova aqueles que fizeram o bem pra cidade.
No debate a respeito da melhor forma de governo, são demonstrados os
valores defendidos pela aristocracia, democracia e monarquia. Os aristocratas
defendem sua capacidade superior de discernimento. Eles teriam, então, a ca-
pacidade de decisão por serem considerados os melhores na garantia do bem
comum. Os democratas, por sua vez, defendem a liberdade que seu governo
proporciona, tendo também a capacidade de favorecer o interesse de toda po-

36
pulação. Por fim, a monarquia demonstra o seu cuidado ou segurança, sendo
assim um governo de alta autoridade e força militar.
O entendimento dos pontos positivos e negativos de cada forma de go-
verno é a base da constituição mista, na qual cada parte do governo é responsá-
vel pela manutenção daquilo que eles têm de melhor. Assim, em Roma, a aris-
tocracia é representada pelo senado, a democracia pelo concílio da plebe e a
monarquia pelos cônsules. Essa mistura deve ser equilibrada, evitando o pro-
cesso que Políbio descreve como anaciclose, que consiste na degeneração da
constituição, perdendo-se o ideal que a formou. Isso acontece de maneira cícli-
ca, segundo Políbio, como um caminho natural. Para Cícero, essa constante de-
generação pode ser controlada através da constituição mista, na qual cada parte
pode monitorar as outras e julgar a extensão de sua autoridade, para que ne-
nhum corpo governamental possa extrapolar seu poder sem que as outras não
consigam reagir.

37
Constituição Mista
Cícero, República 1.69 – 1.70

Quod ita cum sit, <ex> tribus


Sendo assim, dos três primeiros tipos, o monárqui-
primis generibus longe praes-
tat mea sententia regium, regio co é bem superior, a meu ver; mas será superior ao
autem ipsi praestabit id, quod monárquico aquele que for um equilíbrio e uma
erit aequatum et temperatum
ex tribus optimis rerum publi- mistura dos três melhores modelos de república.
carum modis. Pois me agrada que na república algo seja superior
Placet enim esse quiddam in re
e real, algo seja repartido e concedido à autoridade
publica praestans et regale,
esse aliud auctoritati princi- dos principais homens e algumas matérias sejam
pum inpartitum ac tributum, reservadas ao juízo e ao desejo da multidão.
esse quasdam res servatas
iudicio voluntatique multitu-
Essa organização tem, primeiro, uma grande
dinis. igualdade, sem a qual pessoas livres dificilmente
Haec constitutio primum ha- conseguem viver por muito tempo. Em segundo,
bet aequabilitatem quandam
magnam, qua carere diutius ela tem estabilidade, já que aqueles regimes facil-
vix possunt liberi; deinde fir- mente se transformam nos defeitos contrários, em
mitudinem, quod et illa prima
que o rei vira dono, a aristocracia vira facção, o
facile in contraria vitia conver-
tuntur, ut existat ex rege do- povo vira turba e confusão. Além disso, esses tipos
minus, ex optimatibus factio, frequentemente se transformam em outros tipos –
ex populo turba et confusio,
quodque ipsa genera generibus
o que raramente acontece nessa configuração de
saepe conmutantur novis, hoc república composta e misturada na medida certa,
in hac iuncta moderateque
praticamente isenta dos grandes defeitos das prin-
permixta conformatione rei
publicae non ferme sine mag- cipais.
nis principum vitiis evenit. … Pois assim penso, assim entendo, assim digo: de
Sic enim decerno, sic sentio, sic
todas as repúblicas, nenhuma é comparável – seja
adfirmo, nullam omnium re-
rum publicarum aut consti- em organização, divisão ou disciplina – com aque-
tutione aut discriptione aut la que nossos pais deixaram para nós, já aceita
disciplina conferendam esse
cum ea, quam patres nostri desde então pelos nossos antepassados.
nobis acceptam iam inde a
maioribus reliquerunt.

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Vocabulário
(aequabilitas) s.f. Igualdade, uniformidade, imparcialidade.
(constitutio) s f. Constituição, organização, forma estabelecida.
(disciplina) s.f. Educação, conhecimento, saber prático; disciplina.
(dominus) s.m. Dono, senhor; aquele que manda.
(factio) s.f. Facção, seita política; partido oligárquico.
(firmitudo) s.f. Firmeza, estabilidade, solidez.
(maiores) s.m. Os mais velhos; os antepassados.
(multitudo) s.f. Multidão, grande número de pessoas; população.
(optimates) s.m. Os auto-intitulados “melhores”; grupo político dos aristocratas.
(populus) s.m. Povo, nação, conjunto dos cidadãos.
(regius) adj. Que diz respeito ao rei; monárquico.
(res) s.f. Interesse, negócio, patrimônio.
(res publica) s.f. O conjunto de interesses e bens compartilhados por um povo; república.
(rex) s.m. Rei, soberano, monarca; aquele que dirige.
(turba) s.f. Desordem, tumulto; multidão descontrolada.
(vitium) s.n. Vício; defeito.

Comentário

A constituição mista é a forma de república defendida por Cícero e, de


acordo com sua perspectiva, o modelo político vigente em sua época. Esse mo-
delo possui estabilidade com a fiscalização de cada poder entre si. Cada um dos
poderes possui diferentes capacidades e responsabilidades. Os cônsules possu-
em a força militar, o senado tem a capacidade deliberativa e a assembleia pode
afirmar os direitos populares. Cada uma dessas instituições é análoga a cada
um dos tipos de governo: Monarquia, Aristocracia e Democracia, respectiva-
mente. Porém, ao trabalharem juntas e terem a capacidade de auxiliar umas às
outras, excluem as possíveis maneiras de deterioração de cada forma de gover-
no, individualmente. Assim, mantêm a estabilidade social, sem que nenhuma
força política tenha autoridade em excesso, tendo que respeitar os direitos esta-
belecidos em um consenso.

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Para Cícero, a República romana em seu modelo de constituição mista é a
escolha correta. Essa escolha foi deixada para os romanos por seus antepassa-
dos como um presente a ser bem cuidado, sendo, portanto, necessária a reafir-
mação dessas tradições republicanas que para ele estavam deteriorando-se.
Entre os problemas que enfraqueciam a república, destaca-se a debilidade ética.
Dessa maneira, o cidadão romano estaria perdendo o foco dos valores originais
de sua cultura, que são apresentados na obra pelos personagens clássicos da
história romana, como Cipião. Isso alude ao passado nostálgico da cidade e a
referências de como o cidadão deve agir. As virtudes exemplares são em defesa
do condicionamento pelo dever e pela ação prática do cidadão, muito atrelado
ao trabalhador rústico do campo.
Essa deficiência moral que acometia o conjunto de cidadãos acompanhava o
grande acúmulo de poder nas mãos de alguns generais. Nessa época, Roma ti-
nha passado por mudanças no exército, como a dissolução da cavalaria e redu-
ção do tempo de serviço. Portanto, a carreira militar, que era a principal manei-
ra de crescimento político na república romana tornou-se exclusiva para alguns
poucos generais que conseguiam se destacar, como Pompeu e Júlio César. Isso
induziu ao controle político exacerbado desses indivíduos, pondo em risco o
equilíbrio da constituição mista.

40
REFERÊNCIAS
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Fig. 3 Disponíve em:
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<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/0/04/Temple_of_Dei
fied_Hadrian_%28Hadrianeum%29%2C_Campus_Martius%2C_Rome_%28146
25176163%29.jpg/640px-
Temple_of_Deified_Hadrian_%28Hadrianeum%29%2C_Campus_Martius%2C_
Rome_%2814625176163%29.jpg> Acesso em 02 de junho de 2021.
Fig. 6 Disponível em:
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called_bust_of_Sulla,_Augustan_copy_of_an_original_of_the_late_2nd_century
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44

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