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Primeira Avaliação da disciplina "Costumes e condutas morais como problemas históricos"

Douglas Maia da Silva Sobrinho 181100005


Professor Dr°: Luiz Francisco Albuquerque de Miranda

De que se o(culpa) o Homem moderno?

Escreve a Marquesa de Merteuil em uma de suas cartas ao Visconde de Valmont:

Antes de deixar de tratar de seus assuntos, para falar dos meus,


queria dizer-lhe ainda que essa desculpa da doença, a que você me
diz estar recorrendo, já é bem antiga e batida. Na verdade,
visconde, não é criativo! Eu também às vezes me repito, como vai
ver; mas procuro salvar-me pelos detalhes, e meu êxito, afinal, me
justifica. Estou para tentar obter mais um, vivendo uma nova
aventura. Convenho que não terá o mérito da dificuldade; mas será,
ao menos, uma distração, já que tenho me entediado mortalmente.
(LACLOS, 2012, p. 248)

Mas, afinal de contas, de que modo o diálogo entre os personagens de Chordelos de Laclos,
em seu livro Les liaisons dangereuses (1792) se relaciona com as ideias de Norbert Elias
(1994) em relação às mudanças nas condutas e concepções dos indivíduos a respeito do sexo
e da violência entre o final da Idade Média e o século XVIII. Em primeiro lugar, pois naquele
romance dá-se lugar a uma guerra, cujo "espírito" está magistralmente retratado em sua
adaptação cinematográfica de 1988. Guerra na qual os combatentes lançarão mão de todas as
armas que possuem. E, por outro lado, porque nem as armas, e muito menos os indivíduos e
as estruturas psicológicas e sociais sob as quais se encontram não são as mesmas daqueles do
final do medievo.
Portanto, sem mais delongas, deixemos por um momento as intrigas e jogos de sedução dos
aristocratas de Laclos e passemos para a discussão dos processos apresentados por Elias no
primeiro volume de seu O processo civilizador (1994). Já de partida é importante colocar que
o fenômeno de autocontrole e policiamento dos impulsos e intensificação do embaraço e
respeito entre os indivíduos não é linear, nem no tempo, muito menos nos espaços. A
tendência geral, defendida por Elias, é que a "cortesia" medieval foi progressivamente
cedendo espaço à "civilidade" moderna. Inicialmente nas classes mais abastadas, porém
paulatinamente infiltrando-se nas demais classes. Ou seja, as regras de bom proceder, que
eram basicamente as mesmas entre um período e outro, deixam de ser apenas recomendações
para o agradável convívio entre as pessoas e passam a constituir a própria personalidade do
homem moderno. Sendo indissociáveis de suas condutas e cristalizando-se em hábitos. O
homem moderno é sobretudo um ser atormentado pelos seus conflitos internos que luta por
controlar suas pulsões, sem contudo suprimi-las. Vejamos como isto ocorreu no que tange a
relação entre os sexos e o controle da agressividade.
Na Renascença, podia-se falar sem muitos constrangimentos sobre sexo, inclusive com as
crianças. Principalmente porque a distância entre o mundo adulto e o da criança era muito
menor do que em nossos dias. Assuntos como as relações sexuais, a prostituição e o
matrimônio estavam recorrentemente presentes tanto nas conversas, quanto nos espaços da
sociedade dos séculos XV e XVI. Logo, falar francamente sobre estas questões era crucial
para preparar, sobretudo os meninos, para o mundo do qual em breve fariam parte. Tendo
isso em mente, no século XVI, não causa espanto algum que um clérigo da mais alta
reputação como Erasmo de Rotterdam fale abertamente sobre estas questões que despertarão
grande rubor e embaraço até nos adultos dos séculos posteriores. Cabe-nos neste texto ao
menos arranhar a superfície deste "muro" moral que separa o teólogo que fala francamente
sobre sexo e o homem "vitoriano" que é incapaz sequer de mencioná-lo na presença das
crianças e em público.
O processo de ocultação verbal e espacial das questões sexuais, bem como das demais
pulsões humanas, de modo geral, estabelece uma relação inversamente proporcional com a
construção do binômio espacial público/privado. De outro modo, à medida em que estas duas
esferas da vida social vão adquirindo cada vez mais distinção entre si, vinculada ao processo
de estabelecimento das sociedades e Estados nacionais modernos, os comportamentos e
constrangimentos humanos passam por uma pressão cada vez maior à medida em os
indivíduos cruzam de um espaço para outro. Em público, mercadores, juristas, agentes
políticos, em privado, pais, maridos, amantes. Transitar entre esses dois espaços exige uma
"coerção interna" cada vez maior. Havendo amantes, para ambos os sexos, que os tivessem
em privado. Estando em público, que fosse capaz de o dissimular. Não só de ciências e
negócios constam as cartas modernas. Por isso, as casas familiares, com seu número cada vez
maior de cômodos e fechaduras, e o casamento heterosexual monogâmico passam a ser o
ambiente legítimo das relações amorosas sexuais. É nas casas também que a infância,
período predominantemente privado da vida do ser humano, começa a adquirir suas nuances.
Aliás, romper com ela é, entre outros constrangimentos, descobrir de onde vêm os bebês e,
consequentemente, que os pais tiveram intercursos sexuais.
No amor e na guerra vale tudo? Como a pouco vimos, já não mais naquele. Mas e a guerra e a
vasão da agressividade como um todo, o que passam a significar para o Homem que deixa as
fileiras da Idade Média e tem de lutar no campo da modernidade? Como todo o impulso
humano, este também sofre um processo de autolimitações e passa a estar sobre um conjunto
cada vez maior de regras e proibições (ELIAS, 1994, p. 190). Não era assim para o homem
medieval, principalmente o cavaleiro, assombrado pela iminência da morte, para quem a
guerra representava um constante ciclo de matar ou morrer. A vida para este era incerta! O
mais forte dos guerreiros, o mais sábio dos frades ou o mais rico dos nobres poderiam adubar
as terras em consequência dos mais fortuitos acontecimentos. Era preciso aproveitar a vida
tanto quanto fosse possível antes que a morte os visitasse. Por isso, aos guerreiros, que
encaram recorrentemente a presença daquela que ceifaria suas existências terrenas, era
natural e irrepreensível a manifestação desinibida da violência. Prazer tamanho para eles era
rachar a cabeça dos inimigos sob a chuva de porretes, trespassar seus corpos com as lâminas
afiadas de suas espadas, arrasar as vilas, habitantes e plantações alheias. E, na falta das
batalhas, prazeroso era lutar nas justas, preparação para as batalhas, e fonte era sair pelos
campos nas incursões de caça. Nas festas, por seu turno, os gracejos e alvíssaras
repentinamente poderiam ceder lugar a desentendimentos que, na maioria das vezes,
deitavam um dos corpos ao chão, em cujo sangue se lavara a honra ofendida. Nestes tempos,
os punhais viam a luz do sol em mais ocasiões do que os lenços.
No entanto, progressivamente, a partir do fim da Idade Média, os instrumentos cortantes
encontram descanso nas bainhas e passam a habitar os espetáculos comensais da sociedade
acompanhados de seus companheiros garfos e colheres e orientados por um conjunto de
regras e constrangimentos. Contudo, a guerra não desaparece da vida do homem moderno,
nem tampouco faz menos vítimas. No entanto, passa a conviver com uma série de outras
novas ocupações e deleites. O cultivo das artes e ciências, as disputas políticas, os negócios
citadinos, operados no espaço público, e o cortejo e a troca das cartas entre os amantes e as
"delícias da casa", em privado, passam paulatinamente a ocupar a vida dos indivíduos.
Quando há guerras, elas aparecem como espetáculos do habilidoso emprego do engenho
tático sob a bandeira e delegação de poder dos Estados e potentados modernos. O prazer das
batalhas se desloca da fendição da cabeça dos inimigos para o júbilo e certeza de lutar uma
guerra justa, para o empenho em obter reputação grandes êxitos fazendo o menor número de
movimentos. Não sem motivo o xadrez grassa pelos espaços a partir do século XV. Aliás, os
esportes se constituem como o reduto legítimo da manifestação mais ou menos controlada
das pulsões de agressividade. São tempos de guerra, mas também tempos de paz, ocasiões
dos grandes desfiles militares com a presença de banda e do balé tático dos perfilamentos; da
troca de guarda; da ostentação empavonada nos bailes e jantares das brilhantes medalhas
encravadas nos uniformes que engrandecem a reputação dos combatentes.

Referências bibliográficas

Dangerous Liaisons. Direção: Stephen Freses. Hollywood, 1988. 119 min.


LACLOS, Chordelos de. As ligações perigosas. São Paulo, SP: Penguin-Companhia, 2012.
Trad. Dorothée de Bruchard. 480 p.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Uma história dos costumes. V. I. Rio de Janeiro,
RJ: Zahar, 1994.

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