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ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Volume 1: uma história dos costumes.

Tradução de Ruy Jugman. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

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p. 14: “formar uma ideia mais clara de como o comportamento e a vida afetiva dos
povos ocidentais mudou lentamente após a Idade Média. O segundo capitulo propõe-se a
mostrar como isso aconteceu. Tenta, com tanta simplicidade e clareza quanta possível, abrir
caminho à compreensão do processo psíquico civilizador. E possível que a ideia de um
processo psíquico que se estenda por gerações para a arriscada e duvidosa ao pensamento
histórico moderno. Mas não é possível concluir, de maneira puramente teórica e especulativa,
se as mudanças psíquicas observáveis no curso da hist6ria ocidental ocorreram em uma dada
ordem e direção (...)”.

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p. 17: “As pesquisas sociogenética e psicogenetica propoem-se a revelar a ordem


subjacente as mudan,as historicas, sua mecamca e mecanismos concretos; e parece que, desta
maneira, grande numero de questOes que julgamos hoje complicadas, ou muito al6m da
compreensao, podem receber respostas bern simples e precisas. Por esta razao, este estudo
investiga tambem a sociogSnese do Estado. m, para cilar urn unico aspecto da historia da
forma~ao e estrutura do Estado, 0 problema do "monopolio da for~a". Observou Max Weber,
principalmente por questao de defini~ao, que urna das institui~oes constitutivas exigidas pela
organiza~ao social que denominamos Estado e 0 monop6lio do exerclcio da fo~a flsica. Aqui,
tenta-se revelar algo dos processos hist6ricos concretps que, desde 0 tempo em que 0
exercfcio da for~a era privilegio de urn pequeno numero de guerreiros rivais, gradualmente
impeliu a sociedade para essa centraliza~ao e monopoliza~ao do uso da violSncia fisica e de
seus instrumentos. Pode-se demonstrar que a tendSncia para formar esses monopolios nessa
epoca passada de nossa historia nem e mais facU nem mais dificU de compreender que, por
exemplo, a forte tendSncia a monopoliza~ao' em nossa propria epoca. Dal segue-se que nao e
dificit de compreender que, com esta monopoliz~ao da violSncia ffsica como ponto de
intersec~ao de grande numero de interconexoes sociais, sao radicalmente mudados todo 0
aparelho que modela 0 individuo, 0 modo de opera~ao das exigSncias e proibi~oes sociais que
Ihe moldam a constitui~ao social e, acima de tudo, os tipos de medos que desempenham um
papel em sua vida”.
IV

A Classe Média e a Nobreza de Corte na Alemanha

p. 34: “13. Constituiria um projeto notável (e sobremaneira fascinante)


demonstrar o quanto as condições espirituais e ideais específicas de uma sociedade
absolutista de corte encontraram expressão na tragédia francesa, que Frederico, o
Grande, contrapõe às tragédias de Shakespeare, e o Götz. A importância da boa forma, a
marca característica de toda a ‘sociedade’ autêntica; o controle dos sentimentos
individuais pela razão, esta uma necessidade vital para todos os cortesãos; o
comportamento reservado e a eliminação de todas as expressões plebeias, sinal
específico de uma fase particular na rota para a ‘civilização’ – tudo isso tem a sua mais
pura manifestação na tragédia clássica. O que tem que se ocultado na vida cortesã, todos
os sentimentos e atitudes vulgares, tudo o que a pessoa não diz, tampouco aparece na
tragédia. Gente de baixa posição social, que para esta classe significa também caráter
vil, nela não tem lugar. Sua forma é clara e transparente, precisamente regulada, tal
como a etiqueta e a vida cortesã em geral1.

p. 42: “Ele descreve em seguida o príncipe, um produto da civilização francesa:

O príncipe que tinha entre 60 e 70 anos de idade, oprimia a si mesmo


e aos demais com a rígida e antiga etiqueta que os filhos dos príncipes
alemães haviam aprendido na corte do rei francês e transplantado para
o seu próprio solo, embora, reconhecidamente, em dimensões algo
reduzidas. O príncipe aprendera pela idade e habito a mover-se com
naturalidade sob esta pesada armadura de cerimônia. Com relação às
mulheres, observa a cortesia elegante, exagerada, da era pretérita da
cavalaria andante, de modo que sua pessoa não lhes era desagradável,
mas ele não podia deixar nem por um instante a esfera das boas
maneiras sem se tornar insuportável. Seus filhos... viam no pai apenas
o déspota.

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p. 210-1: “Todas essas cenas são o retrato de uma sociedade na qual as pessoas
davam vazão a impulsos e sentimentos de forma (...) fácil, rápida, espontânea e aberta
do que hoje, na qual as emoções eram menos controladas e, em consequência menos
reguladas e passíveis de oscilar mais violentamente entre extremos”.

p. 211: “Nesse padrão de regulação das emoções, que foi característico de toda a
sociedade secular da Idade Média, entre os camponeses como entre os cavaleiros
fidalgos, certamente não faltaram grandes variações. E as pessoas que se conformavam
a esse padrão se sujeitavam a grande número de restrições em seus impulsos. Mas tais
restrições e controles se faziam e uma direção diferente e em seu grau menor que em
períodos posteriores, e não assumiam a forma de autocontrole constante, quase
automático. O tipo de integração e interdependência em que viviam essas pessoas não as
compelia a abster-se de funções corporais uma na frente da outra ou a controlar os seus
impulsos agressivos na mesma extensão que na fase seguinte. Isto se aplica a todos.
Mas, claro, para o camponeses, a margem para agressão era mais restrita do que para o
cavaleiro – isto é, restrita a seus pares. No caso do cavaleiro, ela era menos restrita fora
de sua classe do que dentro dela, porquanto aqui era regulada pelo código da cavalaria.
[c. Kant] Uma restrição de ordem social às vezes se impunha ao camponês pelo simples
fato de que não tinha o suficiente para comer. Isto certamente representa um controle de
impulsos do mais alto do mais alto grau e que afeta todo o comportamento do ser
humano. Mas ninguém prestava atenção a isso e esta situação social dificilmente lhe
tornava necessário impor controles a si mesmo quando assoava o nariz, escarrava ou
pegava vorazmente comida na mesa. Nesta direção, a coação na classe cavaleirosa era
mais forte. Por mais uniforme, por conseguinte, que o padrão medieval de controle das
emoções pareça em comparação com situações posteriores, ele incluía grandes
diferenças, correspondentes à estratificação secular da própria sociedade, para nada
dizer da sociedade clerical. Essas diferenças não foram ainda analisadas em detalhe. São
visíveis nesses desenhos se os gestos comedidos e, às vezes, mesmo afetados dos nobres
são comparados com os movimentos desajeitados de criados e camponeses”.

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p. 231-2: “De acordo com 0 conceito de ideologia desenvolvido no seio da tradi~ao
marxista, poder/amos tenlaf explicar os aspectos ideol6gicos da negligencia a que foi relegado
0 desenvolvimento social, e a preocupagao com 0 estado dos sistemas sociais, dominantes nas
teorias sociol6gicas recentes, exclusivamente por referencia a ideais de classes cujas
esperangas, anseios e ideais· estao relacionados nao com o futuro, mas com a manutengao da
ordem existente. Mas esta explica~ao classista das crengas e ideais sociais implicitos na tcoria
sociol6gica jli nao 6 satisfat6ria em nosso seculo. Neste, temos que levar em conta tambem 0
desenvolvimento de ideais nacionais que transcendem classes sociais, a fim de entender os
aspectos ideol6gicos das teorias sociol6gicas. A integragao das duas classes industriais em uma
estrutura estatal previamente governada par minorias pré-industriais numericamente bem
pequenas; a ascensao de ambas as classes a uma posl~ao em que seus.representantes
desempenham urn papel mais ou menos domi. nante no Estado, e no qual nem mesmo os
setores mais fracos do operariado podem ser governados sem seu consentimento; e a
resultante identi. fica~ao mais forte de ambas as classes com a na~ao - todos esses fatores dao
uma for~aespecial, nas atitudes sociais de nossa epoca, a cren~a na pr6pria na~ao de cada um
como um dos mais altos valores da vida humana. 0 alongamento e a multiplica~ao de cadeias
de interdependencia entre os Estados, e 0 agravamento de tensOes e conflitos espedficos
entre eles, resultantes dessa orienta~ao, as importantissimas gnerras de Iiberta~ao nacional e
a amea~a sempre presente de gljerra geral - todos esses fatores contribuiram para 0
crescimento de padrOes de pensamento centralizados na na~ao”.

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p. 248: “Isto deve bastar aqui, como introd~ao a urna reorienta~ao da autoconsciencia
individual, e ao resultante desenvolvimento da imagem do homem, sem os quais fica muito
limitada nossa capacidade de conceber urn processo civilizador ou urn processo de lange prazo
que envolva estruturas sociais e de personalidade. Enquanto 0 conceito de individuo estive.r
ligado a autopercep~ao do "ego" em urna gaiola fechada, dificilmente poderemos conceber a
"sociedade" como outra coisa que urn conjunto de monadas sem janelas. Conceitoscomo
"estrutura social", "processo social" ou "desenvolvimento social" parecem enta~, na melhor
das hip6teses, cria~oes artificials dos soci610gos, como as constru~oes "ideal tipicas" de que
os cientistas necessitam para instaurar alguma ordem, pelo menos no pensamento, no que
parece, em verdade, ser uma acurnula~ao inteiramente desorganizada e desestruturada de
agentes individuais absolutamente independentes”.

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p. 270-1: “A substituição de ‘uma ideologia orientada para o futuro por outra
orientada para o presente e, às vezes, ocultada por um passe de mágica intelectual, que pode
ser recomendado a qualquer sociólogo interessado no estudo das ideologias como um
excelente exemplo do tipo mais sutil de formação de ideologias. A orientação das várias
ideologias centradas na ordem existente como mais alto ideal produz, às vezes, o resultado de
que os expoentes desses valores – em particular, mas não exclusivamente os expoentes de
suas nuanças conservadoras-liberais – apresentam suas posições como simples declarações
não-ideológicas de fatos, e restringem o conceito de ideologia aqueles tipos que se propõem a
mudar a ordem vigente, especialmente dentro do Estado. Urn exemplo do disfarce de
ideologia no desenvolvimento ,da sO-: ciedade aterna e a bern conhecida Realpolitik. Este
argumento parte da ideiaj eoneebida como uma dec1aracao puramente de fato, de que, na
poUtica intemacional, todas as naeoes realrnente exploram seu poder potencial com vistas
aointeresse nacional, de maneira implacavel e ilimitada. Esta aparente declaracao "de fato"
serviu para. justifiear urn ideal centralizado na naeao, uma versiio moderna do ideal maquis·
velieo, que afirma que a polftica nacional deve ser aplicada no campo intemacional aem
eonsideraeao pelas demais, mas exctusivamente no interesse naeional. Este ideal da Real
politik é, de fato, irrea1 porque na verdade todas as nações dependem umas das outras”.

p. 271: “Uma corrente semelhante de pensamento encontrada em tempos mais


recentes - e, de conformidade com a tTadicao americana, em forma mais rnoderada - num
livro de urn soci610go americano, Daniel Bell, que tern 0 revelador Utulo The End oJ Ideology
(Nova York, 1961). Bell, tambetn, parte da suposicao de que a luta peto poder entre grupos
orgllnizados, ern busca de suas pr6prias vantagens, IS urn fato. Conclui deste fato, de forma
muito parecida com os defensores atemaes da Realpolitik, que 0 polCtico, na perseguil;ao das
metas de pader de seu grupo, deve internr sem compromissos eticos nas lutas de poder de
diferentes grupos. Ao mesmo tempo, ale· ga Bell que este programa nlio 6 uma profissiio de fe
poHtica, urn sistema de vaJores preconcebido, isto e, uma ideologia (ibid.. p. 279). Faz urn
esfon;:o para limitaT esse conceito exclusivamente As doutrinas politicas que visarn a mudar a
ordem existente. Esquece que e possivel tratar a ordem existente nao apenas como urn
simples fato, mas como urn valoT lastreado em emol;Oes, como urn ideal, como algo que, por
TazOes morais, deve existir. Nao distingue a investigacao cienUfica do que 6 e a defesa
ideo16gica do que 6 (como materiaHzacao de urn ideal altamente valorado). TOTna-se muito
claTo que 0 ideal de Bell e 0 Estado, que ete descreve como urn fato”.

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