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Salazar e Maria de Conceição de Melo Rita («Micas») nos jardins de
São Bento, no início dos anos 50. A fotografia da autoria de Rosa Casaco
foi autografada pelo chefe do Governo, ao oferecê-la à pupila.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita. Direitos reservados.

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Coordenação editorial
João Pombeiro
Revisão
João Alexandre
Design e paginação
PixelReply.com
Fotografia de capa
Fotografia de Rosa Casaco pertencendo
à coleção privada dos herdeiros
de Maria da Conceição de Melo Rita
Fotografia de contracapa
Clara Azevedo

Os Meus 35 Anos com Salazar


é uma série editada pela Reverso para a revista SÁBADO.
© Reverso, 2022 | © Joaquim Vieira, 2022 |
© Herdeiros de Maria da Conceição de Melo Rita, 2022 |
© Cofina Media, 2022
Reservados todos os direitos de acordo
com a legislação em vigor.
Depósito legal: 504733/22
ISBN: 978-989-9080-25-6
Impresso em setembro de 2022 na Printer.

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Índice

09 Uma explicação
Introdução
13 «A vida é muito complicada»
Capítulo 1
23 A pupila do Senhor Doutor

51 Álbum fotográfico
Capítulo 2
57 Tempo de Guerra
Capítulo 3
101 Sentir de mulher
Capítulo 4
129 Matrimónio em casa

156 Álbum fotográfico


Capítulo 5
167 Sob céus escuros

187 Álbum fotográfico


Capítulo 6
201 O imenso adeus

225 Epílogo

233 Álbum fotográfico

243 Bibliografia consultada

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Ao meu irmão José, que mudou o
rumo da minha vida. Aos meus netos,
Tomás e Diogo, com muito amor.
Maria da Conceição de Melo Rita

Aos meus pais, que me ensinaram


as virtudes da tolerância.
Joaquim Vieira

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Uma explicação

L evei e mantenho uma existência discreta: fiz os meus


estudos até ao ensino secundário, trabalhei como funcio-
nária, casei, constituí família, tive netos. Considero-me, por-
tanto, uma pessoa comum, pertencente à classe média, igual
a tantos outros portugueses. Que me leva então a aceitar pas-
sar a livro a memória da minha vida? É que, por um mero
acaso do destino, foi-me concedido o privilégio de conviver
durante décadas com uma pessoa fora do comum: António
de Oliveira Salazar. Mais do que isso: vivemos sob o mesmo
teto ao longo de mais de 20 anos, e considero que o fundador
do regime do Estado Novo foi como que um pai adotivo para
mim.
Após anos de reflexão, em que não quis fazer alarde desta
antiga relação, entendi que, afinal, tinha uma história para
contar, e que talvez houvesse pessoas com curiosidade por
conhecer essa história. Este livro destina-se a esses leitores,
a todos aqueles que hoje em dia, passadas quase quatro déca-
das sobre o desaparecimento de um dos homens que durante
mais tempo governaram Portugal, ainda mantêm interesse
por aprofundar o seu conhecimento sobre a figura de Salazar.
A este respeito, confesso que a minha decisão não foi alheia
ao movimento a que se assiste em Portugal, nos últimos tem-

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pos, no sentido de se voltar a discutir e a avaliar a persona-
lidade e o papel histórico do antigo presidente do Conselho,
que tão profunda marca deixou na mais recente caminhada
da nossa velha nação. Verifico (sem surpresa para mim, devo
dizer) que essa marca se projeta nos dias de hoje, como se vai
projetar muito para lá deles, e que o estilo e a ação de Salazar
permanecem como um referencial sempre que se discutem as
formas de governação. Negativo para alguns, positivo para
outros (estes agora mais seguros nas suas convicções, depois
dos anos recentes de «travessia do deserto»), a verdade é
que ninguém consegue ignorar esse referencial, arrumá-lo
como mera nota de rodapé da História. Pelo contrário, à par-
te ideologias, o período salazarista afirma-se cada vez mais
como uma fase determinante na evolução deste país, que vai
continuar a provocar estudos, reflexões e debates nas vin-
douras gerações de portugueses.
Aviso desde já que o meu testemunho não vai virar a His-
tória do avesso ou convulsionar a perceção de Salazar como
líder político já incrustada no senso comum. Não sou nem
nunca fui política, e jamais me interessei por discutir polí-
tica com o meu tutor, apesar das oportunidades quase diá-
rias que se me ofereceram para o fazer ao longo de mais de
três décadas. Que desperdício, dirão alguns, e eu posso até
concordar. Porém, as coisas são o que são. É claro que, se
soubesse o que sei hoje, teria dado outro rumo aos nossos
diálogos, mas que se podia exigir de uma menina oriunda
de uma família rural da Beira Alta e entrada na residência
do chefe do Governo aos sete anos de idade, para dela só
sair aos 28?. De qualquer modo, da sua parte, também nunca
senti o desejo de falar comigo de política ou mesmo de me
doutrinar partidariamente.

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No seu dia a dia, que em grande medida era também o
meu dia a dia, Salazar transmitiu-me contudo uma visão do
mundo e um conceito de ética comportamental, em suma, o
seu sistema de valores morais, como sempre acontece entre
pessoas que ao longo de certo tempo partilham um espaço
íntimo. Pois é essa visão e esse conceito, ou pelo menos o
que deles pude apreender, que tenho a intenção de deixar
registados neste livro, como mais um (pequeno) contributo
para ajudar a conhecer uma figura complexa, muito longe do
homem unidimensional a que muitos retratos estereotipados
a querem reduzir. Espero que, nessa medida, possa o meu de-
poimento ser de alguma utilidade ou, no mínimo, de algum
interesse para o leitor.

Maria da Conceição de Melo Rita


Parede, julho de 2007

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Introdução

«A vida é muito complicada»

T endo vivido e sido educada, durante a sua infância e


juventude, por António de Oliveira Salazar, Maria
da Conceição de Melo Rita, falecida em fevereiro de 2017
a alguns dias de fazer 88 anos, era uma mulher simpática,
delicada, discreta, afável, paciente, tolerante e generosa. Que
quer isto dizer sobre o homem que mais contribuiu para a
formação da sua personalidade, cuidando de lhe incutir os
valores que eram os dele? Provavelmente, nada – ou muito
pouco. A História está repleta de líderes políticos cuja vida
privada não teve qualquer correspondência com o seu esti-
lo de governação. Dirigentes brutais (a começar pelos nazis)
foram exemplares chefes de família e grandes apreciadores
de música e artes plásticas, enquanto alguns governantes de-
mocratas tiveram vidas íntimas falhadas e não foram além de
uma cultura de telenovela. Nenhum paralelismo, portanto.
Que nos pode então ensinar sobre Salazar o conhecimento
das memórias da sua pupila favorita, a quem a imprensa da
época chegou a conceder alguma notoriedade, mas que sem-
pre preferiu uma existência recatada? Pelo menos, um co-
nhecimento mais íntimo daquele que emergiu como um dos
(escassos) protagonistas decisivos do século XX português
(independentemente do prisma ideológico pelo qual o con-

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sideremos). Figura reservada, o criador do «Estado Novo»
sempre geriu cautelosamente a sua imagem, com a cumpli-
cidade de um jornalismo instrumentalizado pela censura «a
bem da Nação», deixando entrever da vida pessoal apenas o
pouco que, num ou noutro momento, podia favorecer-lhe o
reforço do perfil.
Este relato permitiu assim descobrir o Salazar privado,
desvendado por quem habitou na mesma residência ao longo
de mais de 20 anos e a frequentou outros 15. Foi uma parte
que o governante sempre quis ocultar dos olhos dos portu-
gueses e que aqui, de alguma maneira, se revelou. Avisa-se
porém os incautos: não se trata de um retrato demolidor, an-
tes pelo contrário. A depoente exibiu pelo visado com o seu
testemunho uma admiração ilimitada, que resistiu à usura do
tempo e às mudanças de regime. Mas forneceu abundantes
dados de informação que permitem a cada leitor fazer uma
interpretação particular e chegar às suas próprias conclusões.
•••
Encontrei Conceição Rita em 1988, no âmbito de um tra-
balho jornalístico que produzi para o semanário Expresso a
propósito dos 20 anos da queda de Salazar (literal e figurada),
que se assinalavam nessa data (coincidindo com os 60 anos
da sua ascensão ao poder). Sempre considerei que o tema se
esgotara ali. Isso mesmo repliquei aos responsáveis da Esfera
dos Livros quando, já em pleno século XXI, sabendo que eu
mantinha o contacto, me desafiaram a escrever um livro ba-
seado nas memórias da pupila de Salazar.
Só que, entretanto, recrudescera em Portugal um susten-
tado interesse pela figura do chefe do Estado Novo, tradu-
zido em livros, conversas pessoais, debates na blogosfera e,

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acima de tudo, na sua eleição, em concurso televisivo, como
o «grande português». Podia-se alegar – e era um facto – que
esse concurso não passara de entretenimento para efeitos de
espetáculo hertziano, com base numa votação não credível
e manipulada por ativistas epígonos da personagem. Afinal,
que contavam 50 mil votos por via eletrónica, de fiabilidade
não escrutinada, num país de dez milhões de pessoas? Mas
todos os candidatos ao primeiro lugar estavam nas mesmas
condições, e, por muito que se desvalorizasse a iniciativa, o
resultado ficou como um sintoma e um marco. Um sintoma
de que, mais de três décadas escoadas sobre o derrube do re-
gime ditatorial, a sociedade portuguesa ainda não exorcizara
o fantasma do seu criador, que continua a pairar na memória
coletiva. Um marco para futuras gerações virem dizer que,
quando consultados em pleno regime democrático, «os por-
tugueses» escolheram Salazar como a mais importante figura
da sua História. Para o mal ou para o bem, o acontecimento
ficou e não era rasurável.
O concurso teve pelo menos a enorme vantagem de con-
tribuir para a reavaliação histórica do papel e da influência de
Salazar, num momento em que a democracia não estava posta
em causa e em que, por conseguinte, era possível discutir de
forma mais distanciada e desapaixonada o que fora o regime
que o próprio rotulou como do Estado Novo. Há muito que
já não vivíamos, com efeito, em período revolucionário ou
pós-revolucionário, em que Salazar era considerado a preto
ou branco, anjo ou demónio, em termos de «ame-o ou mate-
-o», e muito menos em ditadura, onde, dependendo do pon-
to de vista que se exprimia sobre a personagem, se corria o
risco de ficar na fronteira entre a liberdade e a privação dela.
Não queria dizer que tivesse desaparecido por completo este

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maniqueísmo à volta de uma personalidade que continua a
desencadear entre nós as paixões políticas mais exacerbadas
– tal polarização mantinha-se e mantém-se em estratos mais
extremistas da nossa sociedade, como se viu nas discussões a
propósito da sua póstuma consagração televisiva –, mas tor-
nava-se, apesar de tudo, mais fácil analisar de forma fria e
racional os prós e contras do homem de Santa Comba Dão.
Mesmo à esquerda, que sempre o diabolizou durante e após
a ditadura, surgiram por fim visões mais matizadas acerca do
homem que nunca deu tréguas a esse setor do espetro políti-
co. Bastaria atentar às considerações de Eduardo Lourenço,
maître à penser por excelência da esquerda portuguesa, profe-
ridas após ser conhecido o resultado da famigerada votação
hertziana: «Não me venham contar histórias. Eu estive lá e sei
que, pelo menos até 1945, uma parte do povo português, se
não tinha pelo regime um entusiasmo delirante, aceitava-o.
[...] Lembro-me de o [Miguel] Torga me ter contado uma
história que se passou com um ministro [da Educação Na-
cional] de Salazar, o [Luís Filipe] Leite Pinto, que ia ao Bra-
sil. O Torga tinha estado lá e era muito conhecido no Brasil,
de modo que podia servir de cartão de visita, mesmo sendo
hostilizado cá dentro. Ora, esse Leite Pinto, antes de partir,
foi-se despedir de Salazar e, nessa visita, começou a recitar
um poema de Torga. O mais interessante é que Salazar con-
tinuou o poema e acabou de o dizer. O Torga contou-me isto
com lágrimas nos olhos. A vida é muito complicada.» (En-
trevista a Luís Miguel Queirós, Público, 13 de maio de 2007).
É certo que a revisão do perfil de Salazar não é dos últimos
anos. Década e meia após o 25 de Abril de 1974, António
José Saraiva, antes forçado ao exílio pelo salazarismo, passou
a ver na figura do antigo presidente do Conselho, como tra-

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ço positivo da sua ação política, entre outras caraterísticas, a
«reta intenção». Contudo, de retas intenções está o Inferno
cheio, sendo uma evidência que ainda será preciso continuar
a aprofundar a análise historiográfica da longa governação
salazarista para completarmos o retrato daquele que, à sua
conta, açambarcou praticamente metade do nosso século XX.
•••
Uma das circunstâncias que os críticos de Salazar tendem
a esquecer são as razões da emergência do seu regime, uma
mistura de autoritarismo com a visão social-cristã transmi-
tida aos católicos como modelo de intervenção política pelas
encíclicas do Papa Leão XIII, na transição do século XIX para
o século XX. Esse regime invocou o álibi da necessidade his-
tórica, e a verdade é que nenhuma oposição soube nas pri-
meiras décadas contrapor-lhe uma alternativa credível.
A ditadura militar instaurada pelo golpe de Estado de 28
de Maio de 1926 culminou 16 anos de progressiva degrada-
ção da I República, cujos responsáveis haviam conduzido a
conjuntura político-económico-governativa até um ponto
insustentável. Durante sucessivas gerações posteriores falar-
-se-á do clima diário de revolução vivido nas ruas de Lisboa
ao longo daquela década e meia, do grau de incerteza da po-
pulação em relação a tudo, das carências e dificuldades do
quotidiano, e acima de tudo da ausência de um projeto credí-
vel para Portugal, que fora proclamado como radioso a 5 de
Outubro de 1910 mas que cedo começaria a ser irremedia-
velmente devorado por uma república jacobina e autofágica.
A reação militar do 28 de Maio (reedição da tentativa já posta
em prática nove anos antes por Sidónio Pais, que termina-
ra no seu assassínio, para não mencionar outros ensaios mal

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sucedidos) representa tão-só o descrédito absoluto do parla-
mentarismo – e, para mais, dá-se no contexto de uma crise
dos sistemas políticos demoliberais pela Europa continental
fora, de que resultariam, entre outras supressões de regimes
representativos, as ditaduras de Mussolini (então já no po-
der), de Hitler e de Franco.
É preciso reconhecer que, neste contexto, a ditadura foi
recebida com alívio por setores muito significativos da so-
ciedade portuguesa (e com uma resistência apenas simbólica,
embora por vezes aguerrida, por parte de alguns grupos mais
politizados, como sucedeu em fevereiro de 1927). Somadas
todas estas circunstâncias, criou-se o contexto que levou
Salazar a abandonar a cátedra coimbrã e a desembarcar em
Lisboa dois anos após o 28 de Maio, onde começou por assu-
mir a pasta das Finanças (depois de uma primeira experiên-
cia frustrada no lugar logo após o golpe, tendo nessa ocasião
regressado à universidade ao fim de cinco dias) em condições
absolutamente draconianas, que impôs aos golpistas como
se, na verdade, fosse ele desde sempre a definir as regras do
jogo.
E é um facto que o neófito governante, logo de início, não
disfarçou ao que vinha: «Que o país estude, represente, re-
clame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de
mandar», proclamaria no discurso de posse como ministro.
E, ao jornalista que ainda ousou perguntar-lhe por que não
«sujeitar à apreciação geral os seus pontos de vista», respon-
deu com uma metáfora mais explícita: «Nunca nenhum mé-
dico perguntou a um doente o remédio que ele deseja tomar,
mas apenas o que é que lhe dói.»
O país, que há muito ansiava por autoridade como de pão
para a boca, apreciou e agradeceu. Tanto mais que o doen-

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te começava por fim a dar sinais de recuperação. Salazar
endireitou as contas do Estado, com uma receita não mui-
to diferente da que os governos democráticos ensaiam na
atualidade, acrescida de uma política social de investimentos
geradores de emprego por parte do Estado, hoje caída em
desuso. E a partir daí tornou-se um herói para os militares
golpistas – que quatro anos mais tarde lhe irão depositar nas
mãos o poder total – e a única personagem popular do novo
regime.
O prestígio acumulado permitiu-lhe, sem votos e sem
exército, conquistar o aparelho de Estado.
•••
Essa popularidade reforçou-se quando Salazar, gerindo
a nossa diplomacia com as cautelas de um funâmbulo sem
rede, conseguiu evitar que Portugal fosse diretamente atin-
gido pelo banho de sangue da Guerra Civil de Espanha e pela
devastação e o horror da Segunda Guerra Mundial. O deve
e haver da sua prestação perante os portugueses continuou
pois a apresentar o mesmo superavit que a sua gestão das con-
tas públicas.
Mas o Estado Novo possuía uma debilidade permanente,
que se ia agravando ao longo do tempo: o problema das li-
berdades, ou melhor, da falta delas – liberdades individuais,
liberdades políticas, liberdades morais, até liberdades econó-
micas e financeiras. Oficialmente, Salazar só chefiou o Go-
verno um ano em ditadura: a partir de 1933, aprovada em
plebiscito uma nova Constituição, considerou-se ter passa-
do a vigorar no país um regime de «democracia orgânica».
A verdade, porém, é que por dispositivos dessa mesma Cons-
tituição ou por decretos-leis elaborados pelo próprio presi-

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dente do Conselho, a caraterística primeira do salazarismo
será a supressão das liberdades públicas, traduzida na proi-
bição dos partidos, na censura à imprensa e aos espetáculos,
numa polícia política que perseguia, prendia e torturava até
por mero delito de opinião, na expulsão da função pública
e do ensino superior de todos aqueles tidos por desafetos,
na instauração de tribunais especiais para o julgamento de
«crimes políticos» e numa série de outros mecanismos que
na prática representaram uma vasta mordaça aplicada à so-
ciedade portuguesa. Ou seja, o prosseguimento (e até agrava-
mento) da ditadura sob uma capa jurídica.
Finda a Segunda Guerra Mundial, com a derrota das dita-
duras europeias e o retorno das virtudes do liberalismo po-
lítico à cena política continental, a opinião pública nacional,
grata embora a Salazar, aguardaria em vão a abertura do re-
gime no plano das liberdades, quiçá mesmo a sua evolução
para um sistema democrático. Pura ilusão. Foi apenas então
que os portugueses começaram a dar mostras de fadiga pe-
rante a personagem. O seu isolamento atingiu o auge com a
campanha eleitoral para as presidenciais de 1958, quando um
dissidente do regime, o general Humberto Delgado, prome-
teu, em caso de ser eleito, usar da capacidade que, em teoria,
a Constituição atribuía ao Presidente da República de afastar
o chefe do Governo. Nada que Salazar não resolveu com po-
lícia nas ruas, alguma «engenharia» nas urnas e a futura ex-
tinção do sufrágio universal para a eleição presidencial – uma
«falha» constitucional que Delgado havia exposto.
É curioso, porém, que não foi a questão das liberdades a
determinar a extinção do regime. Teve de se lhe juntar, para
o Estado Novo ser por fim derrubado, o problema colonial,
resultado da obstinação e da intransigência de Salazar, que

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se deixou envolver em África numa guerra sem saída. Mas
nesse momento o ditador já não estava no seu posto para
receber a suprema humilhação. Aliás, não pertencia sequer
ao universo dos vivos. Intocável no seu consulado, embora
já sem poder governar devido a doença, Salazar só saíra de
São Bento dentro de um caixão. Mantivera até ao fim parte
significativa da sua aura, a reserva acumulada num passado
triunfante, sem que alguma vez tivesse sido verdadeiramente
incomodado no lugar pela insatisfação dos portugueses.
E essa é também uma razão pela qual será necessário, apa-
gado o fogo que marcou a luta política em torno do regime,
conhecer melhor a sua figura central, o seu contexto histó-
rico e os motivos para a sua eternização no poder. Incidindo
numa faceta mais pessoal, o testemunho que dá corpo a este
livro procura ser um contributo nesse sentido, um pequeno
subsídio para a História. Porque assim o entendi, acabei por
encontrar fundamento para aceitar o convite que me fora
apresentado pelos editores.
•••
Apenas uma explicação quanto ao modo de produção e à
estrutura do texto. Como a sua base é constituída pelas evo-
cações de Conceição Rita, defendi desde início que o livro
devia ser assinado por nós dois, o que foi compreendido e
prontamente aceite pelos editores. Em cada capítulo, surge
inicialmente parte das memórias da protegida de Salazar,
narradas na primeira pessoa do singular mas por mim redi-
gidas (embora aprovadas, naturalmente, pela coautora), com
base nas conversas que ao longo de três meses fomos tendo,
seguindo-se um texto meu de contextualização do respetivo
período (onde, para facilidade de leitura, as abreviaturas usa-

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das por Salazar em citações das suas agendas foram transfor-
madas nas respetivas palavras por extenso).
Pela paciência de Conceição Rita durante esta nossa fase
de intenso diálogo e pelo seu esforço em vasculhar, por insis-
tência minha, os recantos mais remotos da sua memória, es-
tou-lhe imensamente grato. Fico reconhecido também à sua
filha, Margarida, por todo o precioso apoio prestado (do qual
a parte menos importante não foi certamente o saboroso chá
que pontuou cada uma das nossas sessões), e ao seu genro,
António Rugeroni, pela ajuda complementar, sobretudo na
digitalização de fotografias. Finalmente, agradeço aos filhos
do casal (e netos de Maria da Conceição Rita) a compreensão
por lhes ter roubado por alguns momentos a merecida aten-
ção dos seus familiares.

Joaquim Vieira
Julho de 2007 (atualizado em julho de 2022)

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Capítulo 1

A pupila do Senhor Doutor

S alazar entrou devagar na minha vida, sem eu dar por isso,


ainda na minha infância. Quiseram logo a seguir separar
as nossas vidas, mas revoltei-me e não deixei. Acompanhei-o
assim até ao fim da vida dele.
Não estava escrito sequer que nos haveríamos de cruzar.
Foi a miséria que me levou até ele – de algum modo, um
acaso. É certo que éramos ambos beirões, do rústico vale do
Dão, no distrito de Viseu, ele da aldeia do Vimieiro, no con-
celho de Santa Comba Dão, eu da Lajeosa, um pouco mais a
montante, no concelho de Tondela. Mas a distância que nos
separava era muito mais do que as escassas dezenas de quiló-
metros entre os dois sítios. Quando nasci, em março de 1929,
havia quase um ano que Salazar, após uma notória carreira
como professor universitário em Coimbra, era ministro das
Finanças. Acabara então de atingir os 40 anos de idade.
Nenhum laço familiar nos unia. Mas um traço invisível
acabaria por estabelecer a ligação pouco tempo depois. Eu e
a minha irmã gémea, Ana, éramos o derradeiro elo de uma
corrente de oito filhos (fora os que foram levados pela terrí-
vel mortalidade infantil da época e do meio) de um casal que
– claro – vivia do que a terra dava. O mais velho da prole, o
meu irmão José, já um moço espigadote de 17 anos, estava

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na idade de se fazer à vida. O nosso pai (que dera o seu nome
próprio ao primogénito), vitivinicultor, instalara-se antes em
Lisboa, sozinho, a tentar escoar a produção num estabeleci-
mento que abriu para o efeito, mas, ou porque não gostou da
capital ou porque o negócio não lhe correu de feição, regres-
sara à aldeia e à família.
Da minha infância na terra, recordo-me da vida campes-
tre, da beleza do vale, do manto verde que o cobria e das
flores. Muitas flores – giestas brancas e amarelas, acácias e
camélias de várias cores –, que engalanavam as festas pas-
cais de onde retenho a visita do padre, o toque dos sinos e
as trocas de tostões e de amêndoas – a mais perene imagem
que a Lajeosa gravou na minha memória. Assim como me
lembro de, aos cinco ou seis anos, ser deixada só no campo a
guardar o rebanho do meu pai, numa das várias propriedades
que possuía (e por cuja quantidade se aferia o relevo social
das pessoas na aldeia). Menos feliz é a recordação do trata-
mento que ele, sob efeito do álcool, dava à minha mãe, Maria
Cândida – atavismo cultural muito português e talvez uma
das razões a colocarem-me com a gémea sob a asa protetora
da minha avó paterna, que era quem, na verdade, nos criava.
Dela guardo uma terna recordação.
Porque só a terra não dava para família tão numerosa e
tão mal dirigida, o meu irmão José arranjou trabalho como
despenseiro no Sanatório do Caramulo, não muito longe do
nosso vale. Lá haveria de se perder de amores por uma Ro-
salina, que correspondeu aos seus afetos. Naquele tempo, no
campo, o primeiro namoro era também o único, derradeiro
e definitivo, pelo que logo se começou a falar em casamento.
Só que, no país miúdo que era então Portugal, a Rosalina,
mais do que uma simples namorada, era também um auspi-

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cioso investimento de vida. A irmã, Maria de Jesus Caetano
Freire, uma solteirona oriunda do lugar da Freixiosa, fregue-
sia de Santa Eufémia, em Penela, não muito longe de Coim-
bra, era nem mais nem menos do que a governanta de Sala-
zar, a depois célebre Dona Maria, que o acompanhava desde
Coimbra. O José conhecera aliás a namorada porque Salazar
tinha o hábito de passar alguns dias de férias no Caramulo,
na casa (quase sempre vazia) de uma família amiga do chefe
do Governo, de apelido Nunes Mexia, e a D. Maria seguia-o
para toda a parte, aparecendo ali acompanhada da Rosalina
para a ajudar. Salazar privava com o dono do Sanatório, Dr.
Jerónimo Lacerda, e daí até o meu irmão encontrar a irmã da
D. Maria foi coisa natural.
Desde logo, a D. Maria procurou arranjar melhor posição
para o futuro cunhado, que tirara a quarta classe na aldeia, e
essa não terá sido diligência complexa, perante a influência
que ela possuía junto do chefe do Governo. Num ápice, o
José estava empregado na capital como porteiro do Palácio
de São Bento, onde Salazar tinha o gabinete de trabalho. Foi
atribuída ao meu irmão a responsabilidade pela discreta en-
trada lateral contígua à Calçada da Estrela, usada por Salazar
para aceder ao edifício. Mais do que isso, o José tinha tam-
bém habitação garantida no interior do próprio palácio. Em
janeiro de 1935 inaugurou-se em São Bento a Assembleia
Nacional, no lugar do antigo parlamento que ali funcionava,
mas a função do José, enquanto trabalhou no local, foi sem-
pre a de dar entrada a Salazar, não aos deputados.
Pelo casamento do meu irmão com a Rosalina, tornei-me
portanto concunhada da D. Maria, apesar da enorme dife-
rença de idades: ela nascera cinco anos depois de Salazar, e
era portanto 35 anos mais velha do que eu. Quando o meu

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irmão foi à nossa aldeia apresentar a mulher, reparou na
amarga existência em que a família vivia. Das consultas com
os meus pais, resultou então que seria melhor ele levar uma
das gémeas para viver com ele e a Rosalina em Lisboa. Eu e a
Ana, aos seis anos de vida, éramos o elo mais fraco da cadeia,
e também o menos enraizado. Seria por isso natural que, a ti-
rar dali um dos irmãos, o José escolhesse entre nós duas. Mas
como fazê-lo? Não esteve com meias medidas, juntou-nos a
ambas e lançou a pergunta ao ar, como quem atira uma moe-
da para saber se é cara ou coroa:
– Quem é que quer ir comigo para Lisboa?
Recordo-me de a minha irmã não ter ficado particular-
mente entusiasmada, mas eu, ao ouvir falar na capital, exul-
tei:
– Eu vou, eu vou!
Se me perguntarem pela razão da minha excitação, não sei
responder. Mas estava assim feita a escolha. Compraram-
-me umas sapatilhas de lona, porque até então andava quase
sempre descalça. A roupa era a que já tinha; em chegando
a Lisboa, logo se arranjava outra. E, numa jornada outonal,
lá vim de comboio, inchada de contentamento, com os pais
adotivos ganhos de véspera. Tinha pela frente uma nova
vida, desconhecida mas não assustadora. Deixava a terra sem
penas nem lamúrias.

As luzes da cidade

Que diferença fazia Lisboa da aldeia! Olhava espantada, de


olhos bem abertos, para tudo aquilo, causa do meu deslum-
bramento. Mas o que mais me fascinava eram as luzes, as lu-

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zes que se multiplicavam sem fim na Avenida da Liberdade,
observada em perspetiva, e que me inundavam de uma sen-
sação feérica. Era de idêntico calibre a euforia que sentia nes-
se mesmo lugar perante o desfile de Carnaval, uma sucessão
de carros alegóricos, decorados com um primor inexcedível,
que desciam a Avenida vindos da Rotunda, inundando-me
de festa, alegria e serpentinas. Ou ainda, também aí, a ver
descer as marchas populares, por alturas dos festejos do San-
to António.
Pelo contrário, a imagem que conservo dos aposentos do
meu irmão, nas dependências traseiras do Palácio de São
Bento, é de um espaço exíguo e mal iluminado pela luz natu-
ral. Mas eu não me queixava, e ansiava por conhecer toda a
urbe em volta. Algumas vezes a Rosalina deixava-me sozinha
em casa, e numa dessas ocasiões, aborrecida com o isolamen-
to, resolvi sair também, pelo lado da Rua de São Bento, para
explorar as redondezas. Tão inconsciente quanto impruden-
te, ao fim de umas quantas voltas estava perdida, sem saber
como regressar. Valeu-me um polícia, que reparou na minha
aflição. Lá lhe consegui explicar que vivia com o meu irmão
em São Bento, e ele levou-me de volta. Julgo que não terei
ido muito longe, mas é claro que toda a cidade era então para
mim um emaranhado babilónico.
Talvez nesse dia a Rosalina, como fazia com frequência,
tivesse ido visitar a irmã ao n.º 64 da Rua Bernardo Lima, na
casa alugada onde então habitava Salazar. Cheguei a ir com
ela algumas vezes, e numa dessas viagens, ainda no ano de
1935, vim a conhecer o chefe do Governo, mas não conservo
qualquer memória do encontro. Claro que, aos seis anos de
idade, acabada de entrar na escola primária (situada na Rua
de São Bento), eu não tinha qualquer noção da natureza das

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funções que ele exercia. Apenas sabia que era «um senhor
muito importante» – ou pelo menos era esse o único dado
que a minha família me transmitira, pensando que, naquela
idade, eu seria incapaz de assimilar algo mais elaborado.
Por essa altura já a Rosalina estava grávida, e eu prepara-
va-me para começar a brincar com o meu primeiro sobri-
nho. Para poder fazer o parto na Maternidade Alfredo da
Costa, ela pediu à irmã que me conservasse na casa da Ber-
nardo Lima durante os dias de internamento. Salazar não se
opôs à minha presença na sua residência, e até me pareceu
que apreciava a animação trazida por uma criança. Para toda
a gente da casa, ele era «o Senhor Doutor», conservando-
-se o título académico que trazia de Coimbra. Também me
habituei a tratá-lo desse modo, e mesmo hoje, para mim,
continua a ser «o Senhor Doutor». Guardo a imagem de um
homem meigo, que dialogava comigo e parecia ter um inte-
resse genuíno pela minha insignificante pessoa, ao contrário
da D. Maria, sempre solene e distanciada, a quem eu chama-
va «tia».
Seja como for, ou porque me agradou mais o conforto da
nova morada, ou porque encontrei no inquilino um carinho
que ainda não sentira de nenhum homem na minha curta
existência, escoados os dias para Rosalina dar à luz uma me-
nina, e chegado o momento de me levarem de volta a São
Bento, desencadeei um motim na Bernardo Lima: não queria
sair – gritei no meio de enorme choradeira. O Senhor Dou-
tor, que estava presente, perguntou-me porquê. Arranjei
logo uma explicação:
– Aqui é mais quentinho.
Se a desobediência era atitude condenada por aquelas ban-
das, eu não o senti. O senhor da casa acabou por me responder:

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– Então, se gostas de cá ficar, ficas.
Não sei que combinações foram feitas com a minha famí-
lia. Só sei que, através de um ato de rebeldia que nem sequer
julgo fazer parte da minha maneira de ser, conquistei o di-
reito a uma vida melhor, e que nessa vida se abriu uma porta
para uma longa jornada que eu estava longe de poder algum
dia imaginar.

O meu palácio

Já não voltei, na verdade, para junto do meu irmão e da


Rosalina, nas dependências ocupadas pelo pessoal da As-
sembleia Nacional. Nesse maio de 1936, concluí que a minha
verdadeira residência era na Bernardo Lima, e aí me instalei.
Tive, é claro, de mudar de escola, para a Rua da Santa Marta,
tão oficial como a primeira.
Dormia num quartinho só meu, nas águas-furtadas, onde
também se alojavam as duas criadas da casa, adolescentes que
a governanta recrutava nas berças e que tinham por missão
tratar das limpezas, das roupas e das compras mais rotinei-
ras. Mas o quarto da Tia Maria situava-se no piso de bai-
xo, o primeiro andar, onde ficavam os aposentos do Senhor
Doutor, e para onde eu descia através de uma escada muito
íngreme. Os quartos de ambos eram servidos pela mesma
casa de banho, havendo ainda no andar outra pequena ins-
talação sanitária comum, sem a parte do banho. Curiosa-
mente, existia ainda no mesmo piso um terceiro quarto, o
melhor de todos eles, destinado aos hóspedes. Era o único
cujas janelas davam para a rua e que tinha casa de banho
própria e zona de vestir, separada por uma porta envidra-

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çada. Se lá dormiram hóspedes alguma vez, não me lembro.
Ascético, Salazar optava por um quarto muito mais pequeno
e modesto.
No rés-do-chão, situava-se a sala de jantar, e um corredor
fazia a ligação à biblioteca e ao escritório do Senhor Doutor.
A cozinha, nas traseiras, estava separada de um pátio interior
por uma divisória envidraçada. No pátio, apesar da exiguida-
de do espaço, a Tia Maria havia mandado montar capoeiras
para a sua criação caseira. Ovos e galináceos eram consumi-
dos dali – maior a poupança e a confiança no produto. O Se-
nhor Doutor não apreciava este tipo de economia doméstica,
mas nada havia a fazer: se ele mandava no nosso país, a Tia
Maria mandava na casa dele.
Tanto a entrada principal da residência como a de servi-
ço davam para a Bernardo Lima, mas a segunda ia ter dire-
tamente à cave, onde, além da arrecadação, se situava uma
enorme caldeira que uma criada, todas as manhãs, alimenta-
va a pazadas de carvão de coque, para fornecer água quente
e, no inverno, distribuir calor pela residência. Um ritual que
o Senhor Doutor não dispensava todas as manhã era o seu
banho de imersão.
O chefe do Governo detestava comer fora, e portanto tí-
nhamo-lo em casa quase todos os dias ao almoço e ao jantar.
As únicas exceções eram os banquetes oficiais, uma obrigação
que o deixava indiferente no capítulo gastronómico, ou
talvez até contrariado, por muito elaboradas que fossem as
iguarias servidas. Sentia-se melhor na Bernardo Lima com
os seus pratos favoritos, coisas simples como petinga frita
acompanhada de feijão frade ou bacalhau assado com batatas
a murro ou em camadas com grelos cozidos e broa esfarelada,
tudo sempre cozinhado, claro, pela Tia Maria, que mandava

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as criadas fazer as compras com listas por ela escritas em pa-
pelinhos, embora por vezes fosse a própria ao mercado.
O Senhor Doutor sentava-se maquinalmente à mesa e co-
mia o que lhe serviam, sem cuidar de antes inquirir da emen-
ta do dia ou de manifestar mais inclinação para o peixe ou
para a carne. Mas é claro que, como toda a gente, apreciava
mais umas coisas do que outras, e ao longo do tempo a Tia
Maria, estudando as suas reações ou intuindo as suas prefe-
rências, foi sabendo corresponder na perfeição a toda essa
paleta de apetites. Ele adorava caldo verde ou caldo de cebo-
la com batata. Também não enjeitava, a seguir, umas iscas,
ou umas trutas do Dão grelhadas e acompanhadas de grelos.
Mas um dos manjares eleitos pelo Senhor Doutor era o ar-
roz de lampreia cozinhado pela Tia Maria (prato que eu aliás
destestava).
Antes, ele podia começar com queijos frescos do dia, ter-
minando com fruta da época – laranjas, pêras e maçãs todo
o ano, cerejas e melão quando os havia. Não era entusias-
ta de doce à sobremesa, mas pelava-se por uma marmelada
acabada de fazer pela governanta, ainda líquida, que o chefe
do Governo comia à colher (ela também preparava outras
compotas muito apreciadas na casa, como doce de tomate).
Vinho, só um copo à refeição, e sempre da colheita do pró-
prio Salazar, que produzia algumas centenas de garrafas por
ano nas suas propriedades de Santa Comba Dão. Não tocava
em digestivos: quando muito, um vinho do Porto, se estives-
se acompanhado.

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O assalto das folionas

Companhia era, porém, coisa rara. O Senhor Doutor co-


mia quase sempre sozinho na sala de jantar, e escassas vezes
me lembro de me ter ali sentado com ele, já que o meu lugar
de comensal era na copa, ao lado da governanta (enquanto
as criadas se sentavam a uma mesa comprida na cozinha).
A separação não era só essa: podíamos comer todos do mes-
mo, mas a Tia Maria tinha o cuidado de confecionar sempre
as refeições do Senhor Doutor em recipiente separado.
Uma vez por outra, lá aparecia um dos seus fiéis amigos
para um jantar de convívio. O cardeal Cerejeira, com quem
ele partilhara em Coimbra a mesma habitação (a «República
dos Grilos») e os serviços domésticos da Tia Maria (que lá
fora admitida ao serviço por indicação do bispo de Lamego),
vinha metodicamente cada 28 de abril, dia do aniversário do
Senhor Doutor, e na véspera de Natal. O médico Fernando
Bissaya Barreto, de Coimbra, surgia todos os sábados. Antero
Leal Marques, o chefe de gabinete de Salazar, almoçava lá aos
domingos para fazer o ponto da situação. António Augusto
Nogueira da Silva, o fundador da Casa da Sorte, também cos-
tumava comparecer a um dos jantares da semana para dois
dedos de conversa com muita política pelo meio, já que estes
encontros eram aproveitados para discutir os assuntos políti-
cos do momento. A família Lacerda, do Caramulo, constituía
visita regular. Mas também – acompanhado da mulher, Ma-
ria Lívia – o advogado José Nosolini, deputado, amigo e leal
apoiante político de Salazar, seu antigo colega de estudos em
Coimbra e futuro embaixador no Vaticano e em Espanha. Por
mim, ia conhecendo toda esta gente por uma simples circuns-
tância: muitas vezes, era eu quem lhes abria a porta da rua.

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Um outro amigo frequente lá em casa era o dr. José An-
tónio Marques, um padre, oriundo de uma aldeia próxima
do Vimieiro, que se tornou depois advogado e foi por isso
excomungado pelo bispo de Viseu, tendo emigrado para o
Brasil e, no regresso a Portugal, conseguido ver o seu caso
resolvido pelo Vaticano quando quis assumir de novo as or-
dens sacerdotais. Aparecia aos domingos à noite, já após o
jantar, e com o seu agudo sentido de observação transmi-
tia ao anfitrião as muitas informações que ia recolhendo ao
longo da semana. Era um frequentador assíduo do Parque
Mayer, onde iam à cena as revistas à portuguesa que então
mobilizavam o entusiasmo do público. Aí, tomava nota de
todas as graças que envolviam a figura do presidente do Con-
selho para depois lhas contar, juntamente com as inúmeras
anedotas que na rua circulavam sobre ele. O Senhor Doutor
ouvia esses relatos sempre com muita animação, rindo com
exuberância das piadas que se diziam a seu respeito e nunca
aparentando ficar zangado ou ressentido.
Não me recordo, porém, de o ver a contar anedotas ou
ditos humorísticos. Se bem que pudesse ser mordaz em cer-
tos comentários, usando de um humor fino e subtil, quase
sempre certeiro e desarmante, não era pessoa para guardar
um repertório de piadas fáceis que pudesse ir contando a este
e àquele. Nesse género, era mais de ouvir do que de falar.
Tenho de admitir, no entanto, que, ao contrário da ima-
gem pública que se projetou de Salazar, não considero que
ele fosse uma pessoa soturna, ensimesmada. Não o foi para
mim, como não o foi para muitos outros, e entre estes incluo
as mulheres. Na verdade, verifiquei que ele apreciava com
especial simpatia o convívio feminino. E as mulheres cor-
respondiam, denunciando perante ele um interesse genuíno.

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Fiquei espantada por ver, no Carnaval de 1937, um grupo de
seis a oito senhoras jovens entrarem de roldão pela Bernardo
Lima, todas de mascarilha e vestidas à belle époque, para o que
presumo ter sido um assalto-surpresa à residência do Senhor
Doutor. Percebi que, apesar do disfarce, ele as conhecia, e
que as terá recebido com manifesto agrado. A Tia Maria até
preparou uma pequena ceia para este serão diferente dos de-
mais. Na sala de jantar, enrolaram o tapete de Arraiolos para
se movimentarem mais à-vontade, e calculo que elas devem
então ter tirado as máscaras. Durante parte da noite, lá esteve
Salazar a divertir-se com o grupo de folionas. Como deparei
com tais disfarces e tão boa disposição pela primeira vez na
minha vida, o momento ficou-me registado com vivacidade
na memória. Mas mais não vi, porque entretanto chegara a
minha hora de recolher ao quarto, dois pisos acima – e por
isso demasiado distante do centro dos acontecimentos.

Fábulas ao adormecer

Julgo não me enganar se disser que, logo de início, o Se-


nhor Doutor começou a gostar tanto de mim como eu dele.
E era muito forte esse recíproco sentimento. O presidente
do Conselho arranjava tempo para brincar comigo, no cor-
redor da residência, a um jogo em que tínhamos um pino em
cada mão, num dos quais devíamos enfiar uma argola que
lançávamos um ao outro. No pátio, quis ensinar-me a lan-
çar o pião, enrolando meticulosamente o baraço em volta do
objeto e atirando-o ao chão, mas duvido de que, neste par-
ticular, tenha sido boa aluna. Uma ou outra vez, também lá
jogávamos à bola, só os dois, claro, que a Tia Maria não era

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pessoa para essas coisas – tal como era incapaz de um beijo
ou um afeto.
A minha hora de deitar – 22h30 – era sagrada, porque
aquela era uma casa de ordem e disciplina, mas o Senhor
Doutor nunca ia para a cama sem subir ao meu quarto para
ver se eu estava bem, acariciar-me a cabeça e ajeitar-me os
cobertores – coisa que a Tia Maria, com a sua secura, a sua
sisudez e o seu autoritarismo, nunca fez (não quero dizer que
não fosse bondosa para comigo, mas o mínimo que posso
garantir é que ela não estava ali para ganhar um concurso de
popularidade). Esta prática do aconchego era diária, e man-
tinha-se mesmo quando Salazar tinha compromissos notur-
nos – em regra, os tais banquetes de Estado.
Pelos meus oito anos, caí à cama com tosse convulsa e sa-
rampo ao mesmo tempo. A acumulação das duas doenças
motivou um estado de emergência à minha volta, a ponto de
me fazerem descer para o quarto de hóspedes, onde a evolu-
ção do meu estado de saúde podia ser acompanhada mais de
perto. Durante a noite, sempre que me ouvia tossir, o Senhor
Doutor – não a governanta – lá se levantava para me minis-
trar o xarope e compor-me a roupa.
Devo reconhecer que se prolongou por muitos anos o ri-
tual salazarista de me visitar no meu quarto antes de recolher
ao seu, a ponto de causar ciúmes à Tia Maria. Certa vez, até
a ouvi atirar-lhe:
– Ó Senhor Doutor, a pequena já é uma mulher!
Mas ele não ligou, e continuou a fazer-me o mesmo.
Outra coisa para a qual ela também nunca teve paciência
foi contar-me histórias, algo que eu apreciava como qualquer
criança da minha idade. Lá estava porém Salazar para, tam-
bém aí, assumir o papel simultâneo de pai e mãe. A sua espe-

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cialidade eram as fábulas, que ignoro onde foi buscar. Delas
tirava sempre uma conclusão moral, que procurava incutir-
-me como conselho para a vida.
Havia a história da raposa que convidou a sua amiga ce-
gonha para almoçar e lhe serviu papas de milho numa larga
malga. Mas foi a anfitriã, claro, a deleitar-se com todo o pi-
téu, já que a cegonha, com o seu bico comprido, não alcança-
va qualquer porção de comida. Chegada a vez de ser a raposa
convidada, a cegonha serviu as mesmas papas de milho, mas
agora num garrafão. Resultado: a cegonha enfiou o bico pelo
gargalo e tudo sugou, ficando a outra de estômago vazio.
Talvez Salazar pensasse de tal fábula que a vingança se serve
tão fria quanto papas de milho num garrafão, mas a moral
que ele me transmitia da história era mais direta:
– Cá se fazem, cá se pagam.
Noutra das suas alegorias, contracenavam um mocho e um
leão esfaimado, o qual, sem encontrar refeição, convence a
ave de rapina a descer até junto dele. O leão engole o mocho
de um travo, inteiro e sem o mastigar (com muitos porme-
nores contados pelo Senhor Doutor nesta cruel passagem).
De dentro do felino estômago, o mocho não se dá por ven-
cido e diz-lhe:
– Já que és o rei dos animais, podes anunciar a toda a selva
que me comeste.
O leão assim faz:
– Mocho comi! Mocho comi!
E o mocho desafia-o a falar mais alto, cada vez mais alto,
para que ninguém deixe de o ouvir. Quando o outro abre as
goelas para gritar, a presa aproveita para se escapulir, e já no
ar despede-se em pirraça:
– «Mocho comi, mocho comi», outro sim, mas não a mim!

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A história que contudo mais me impressionava era a dos
dois lobos que atacaram um rebanho e, depois de saciados,
levaram um borrego morto de reserva. Enterraram-no com
a cauda de fora, para assinalá-lo e comê-lo mais tarde. Mas
um deles, para adiar o banquete, foi sempre usando como
pretexto batizados em que era padrinho. E, quando o outro
lhe perguntava pelo nome dos afilhados, ele falava em «Co-
mecei-te», «Meiei-te» e «Findei-te». Por fim, concordaram
em desenterrar a vítima para o manjar. É claro que, ao puxar
a cauda com toda a força, o segundo lobo caiu desamparado
para trás, porque já só existia mesmo esse apêndice e nada
mais, enquanto o amigo, que aos poucos, às ocultas, havia
antes devorado o borrego, aproveitava para fugir. Para o Se-
nhor Doutor, só com tal género de manha era possível triun-
far na vida.
Também eu tinha de dar um contributo às nossas sessões
de entretenimento, e cantava uma toada aprendida na terra,
mas à minha maneira:
Ó camboio do correio,
espera aí que eu também bou.
Levas cartinhas d’amor,
só a minha cá ficou.
E ele, com infinita paciência, lá me corrigia:
– Olha que não é «camboio», é «comboio», e é «vou» em
vez de «bou».
O mesmo acontecia quando eu entoava estes versos, que o
faziam sorrir:

Indo eu, indo eu


a caminho de Viseu,

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encontrei o meu amor,
ai, Jesus, que lá bou eu.

Aprender e poupar

Aprender era o que o Senhor Doutor mais queria que eu


fizesse. E tinha o cuidado de confirmar que eu aprendia mes-
mo. Chegado ao fim da tarde das suas funções governativas,
sentava-se comigo a rever a escrita e a tabuada, que me exigia
na ponta da língua. Também a minha formação católica não
foi esquecida: a par da frequência da catequese, que eu cum-
pria escrupulosamente, ele cuidava de reforçar esses ensina-
mentos em casa, por norma em dias alternados com os das
lições de tabuada. E sentava-me ao seu colo obrigando-me a
recitar orações para todas as ocasiões, uma liturgia que ele,
com um passado de seminarista que chegara à atribuição de
ordens menores, conhecia tão bem como o nome dos pais.
Naquela casa, pelo menos durante algum tempo, não fui eu
a única a estudar. A Tia Maria quis tirar passaporte para ir ao
Brasil visitar um irmão que ela adorava, e à época era preciso
ter a quarta classe [quarto ano] para obter o documento. Pois
bem: ela aplicou-se nas lições, dadas por uma professora par-
ticular que me lembro de ver na Bernardo Lima todos os fins
de tarde, alta e sempre vestida de preto, e com algum esforço
lá conseguiu o diploma – e a viagem ao Brasil. O curioso é
que o Senhor Doutor a ela nada ensinava.
No que me dizia respeito, ele também fazia questão que eu
aprendesse as regras da etiqueta. Como estar a uma mesa de
refeição, por exemplo: a colocação original dos talheres e a
sua linguagem (significando que se faz um intervalo, que se

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quer nova dose ou que já se terminou o prato), o cuidado em
não pousar os cotovelos sobre a mesa, a atenção das senhoras
para conservarem a cabeça descoberta (só se admitindo cha-
péus femininos à mesa em ocasiões muito especiais – e penso
que também com mulheres muito especiais). Recordo-me,
aliás, da constante gentileza de Salazar para com os convida-
dos à mesa. Se se desse o caso de estar na iminência de ter-
minar o seu prato antes dos outros, ficava a entreter algum
resto de comida o tempo que fosse necessário para acabarem
antes dele.
Outro capítulo da minha formação eram os chamados la-
vores femininos, as tarefas domésticas que então se reserva-
vam como exclusivo às mulheres. O Senhor Doutor garantia
ser essencial que uma futura dona de casa se habituasse a de-
sempenhar todas as funções caseiras, porque, com a evolução
da sociedade, qualquer dia procurava-se uma pessoa para nos
ajudar – uma criada ou uma empregada – e já não se encon-
traria ninguém. Certo dia, ele próprio agarrou numa vassou-
ra e fez questão de me ensinar a varrer toda uma sala: sempre
da esquerda para a direita (sendo-se dextro, claro) e de den-
tro para fora, caminhando de costas em direção à saída.
Uma das minhas missões consistia assim em coser as meias
que a Tia Maria rompia com certa frequência. Até porque o
meu protetor insistia sempre comigo:
– Deves aproveitar as coisas, não deitá-las logo fora, por-
que ainda podem servir.
Naquela casa poupava-se. Aliás, era essa a diretiva que vá-
rias vezes ouvi Salazar transmitir à governanta:
– Maria, temos de poupar.
O dinheiro, de resto, não abundava, já que todas as des-
pesas eram suportadas pelo Senhor Doutor, e ele tudo con-

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trolava ao tostão. A roupa era usada até ao fio. Das calças
velhas dele, por exemplo, a Tia Maria fazia saias para ela.
A governanta tinha muita habilidade para a costura, mas cos-
tumava encomendar a adaptação do vestuário a uma modis-
ta, de enorme competência.
De qualquer forma, o Senhor Doutor defendia que todo o
trabalho devia ser remunerado. Até o meu. Ele próprio fez
questão de me pagar o ponto ajour com que então tinha de se
fazer o remate em ambas as extremidades das toalhas acaba-
das de comprar. Ainda me recordo que me pagou 50 centa-
vos por cada lado, ou seja, um escudo por toalha. Ganhei 12
escudos – o meu primeiro ordenado, então uma apreciável
quantia para uma criança de oito ou nove anos.
Apesar das suas restrições orçamentais (tanto em casa
como no país), Salazar também se dispunha por vezes a abrir
os cordões à bolsa para aliviar o sofrimento dos outros. Certo
dia, a Tia Maria recebeu uma carta duma pobre mulher rela-
tando que a doença do marido o impedia de trabalhar, o que
a levara a penhorar a sua própria máquina de costura para
dar de comer aos filhos. Enfim, uma história de fazer chorar
as pedras da calçada, como havia tantas outras à época. A Tia
Maria contou o caso ao Senhor Doutor e ele, sem sequer co-
nhecer a mulher, resolveu pagar do seu bolso as cautelas da
casa de penhores, para que ela recuperasse o instrumento que
tanta falta lhe fazia.
De resto, o Senhor Doutor não era pródigo em comprar
prendas, para mim ou para outros. Mas, com o seu sentido
da reciclagem dos materiais, trazia-me muitas coisas que lhe
ofereciam. Por exemplo, livros, de que os editores tinham o
cuidado de enviar um exemplar ao chefe do Governo. Por
isso, cada nova edição infantil me vinha parar às mãos. Uma

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delas, a História Pequenina de Portugal Gigante, toda em verso,
apareceu até com uma dedicatória que me era dirigida pelo
autor, o poeta António Correia de Oliveira.
Por intermédio do Senhor Doutor, a fábrica de lápis Viar-
co entendeu oferecer-me uma coleção com todas as tonalida-
des de lápis de cor para desenho. Fiquei extasiada, mas a Tia
Maria resolveu guardar a caixa na despensa, a sete chaves, e
dava-me apenas uns quantos lápis, de cada vez, a conta-gotas.
O que para mim foi um martírio, pois pensava sempre no
meu inacessível tesourinho cromático, que nunca desfrutei
em plenitude.
Também os amigos do Senhor Doutor me davam presen-
tes – lindas bonecas que iam enchendo o meu quarto. Noutra
das minhas memórias de Páscoa, recordo-me de um coelho
de peluche que me foi oferecido pelo dr. Bissaya Barreto:
tirava-se a cabeça e o interior estava recheado de amêndoas.
A minha família adotiva ia assim tomando aos poucos o
lugar da minha família biológica, da qual apenas sobrevivia
um vago sentimento de saudade, saciado no fim do verão,
quando acompanhava o Senhor Doutor às férias que ele
nunca dispensava no seu sagrado Vimieiro. Eu tinha então
a oportunidade de ver os meus pais e os meus irmãos ainda
a viver na Lajeosa. Mas não durou muito a troca de mimos
com a minha mãe. Tendo adoecido com gravidade, foi levada
para Lisboa pelo meu irmão mais velho, para ser internada
no Hospital de S. José, onde cheguei a ir vê-la. A pobre não
resistiu muito mais tempo, perecendo no leito hospitalar.
O meu pesar foi proporcional ao grande afeto que tinha por
ela. Ainda se faziam enterros a pé, e a distância foi longa, de
S. José ao cemitério da Ajuda, sob chuva por vezes torren-
cial. Todavia, alguém me levou de carro, e o que retenho do

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cemitério é a imagem de outro irmão meu, então a cumprir
serviço militar, fardado e molhado até aos ossos.

O atentado

Do que o Senhor Doutor não gostava em mim era do


nome. Achava Maria da Conceição muito comprido, talvez
pouco prático para uso no tratamento quotidiano, e uma vez,
em conversa na sala da biblioteca, propôs-me alterá-lo:
– Queres ser Micas ou Maria Pequena? Escolhe!
Fiquei horrorizada com o Maria Pequena. Então havia de
ficar pequena para sempre? E quando crescesse? Assim, por
exclusão de partes, escolhi Micas, creio que sem conhecer
ainda o significado que os dicionários dão à palavra: peque-
nas porções, bocados, migalhas. E Micas fiquei. Pela vida
fora. Mesmo hoje, quando já não simpatizo tanto com tal
tratamento, ainda há gente que insiste em chamar-me Mi-
cas.
A missa dominical era outra das obrigações sagradas da-
quela casa cheia de regras. Mas, sendo todos católicos, apos-
tólicos, romanos, não íamos todos ao mesmo templo: Salazar
tinha, a esse respeito, a sua própria agenda. Certa manhã de
domingo, estávamos eu e a Tia Maria em plena celebração
litúrgica numa igreja na Rua de Santa Marta, onde costumá-
vamos ir, quando entrou, agitada, uma das criadas da casa
para avisar a governanta de que, momentos antes, tinham
tentado matar o Senhor Doutor à bomba. Saímos logo em
passo estugado a subir para a Bernardo Lima. A governanta
ia-me transmitindo a sua aflição, tanto mais que, no imedia-
to, ignorava em que estado o amo ficara. Com a escassa com-

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preensão que eu, com os meus 8 anos, pudesse ter do suce-
dido, lembro-me de ser abalada por uma profunda angústia,
sem compreender por que razão alguém quisesse tirar a vida
ao Senhor Doutor.
O atentado ficou célebre: um grupo de anarquistas coloca-
ra uma potente carga de explosivos no sistema de esgotos na
rua em frente à casa de um amigo de Salazar, Josué Trocado,
nas chamadas Avenidas Novas de Lisboa, junto ao Campo
Pequeno, em cuja capela particular o chefe do Governo ti-
nha por hábito ouvir a missa todos os domingos. Detonada
à distância, a carga rebentou no preciso momento em que o
presidente do Conselho saía do carro para aceder à vivenda
do amigo. Foi por um triz, mas nem ele nem mais ninguém
sofreu a mais leve beliscadura. Com a sua fleuma habitual,
coberto de alguma poeira, Salazar fez questão de assistir ao
ofício como se nada tivesse acontecido, o que aumentou ain-
da mais a nossa ansiedade lá em casa. Quando por fim ele
chegou, pouco antes do meio-dia, rebentei em pranto e agar-
rei-me às pernas dele a gritar:
– Eu não quero que o Senhor Doutor morra!
E ele:
– Sossega, sossega, eu estou vivo.
Fixei a data, 4 de julho de 1937, por ser o dia dedicado a
Santa Isabel [de Aragão], Rainha de Portugal. À tarde, leva-
ram-me a ver a enorme cratera causada pela explosão. Lá me
explicaram ter aquilo sido feito por uns homens que não gos-
tavam que o Senhor Doutor estivesse no governo e queriam-
-no desaparecido. Mas o desenrolar, desde o ano anterior, da
Guerra Civil em Espanha e o apoio de Salazar às tropas de
Franco, que seria o pretexto principal para o atentado, eram
coisas que então me escapavam por completo.

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A tentativa de assassínio causou alvoroço em Lisboa. De-
pois do jantar, entre as 22h e a 1h da manhã, desfilaram fren-
te à nossa casa milhares de apoiantes do chefe do Governo,
numa ruidosa manifestação de apoio ao seu ídolo e de re-
púdio pelo atentado. Só me lembro de ver pela janela mui-
tas bandeiras da Legião Portuguesa, que tinha organizado a
concentração juntamente com o Exército. Pelo menos nessa
noite terei tido autorização para me deitar mais tarde, tanto
mais que os gritos da multidão impediam o sono a quem vi-
via nas redondezas.
O atentado iria mudar as nossas vidas. Os responsáveis
pela segurança de Salazar chegaram à conclusão de que não
seria seguro ele continuar a viver na Bernardo Lima. Op-
tou-se por alojá-lo no próprio perímetro do Palácio de São
Bento, num palacete das traseiras onde logo se começaram
obras de adaptação para o receber. E eu, que não era ameaça
à segurança, haveria de segui-lo. Tanto ele como a Tia Ma-
ria me comunicaram que íamos mudar de casa. Mas as obras
arrastaram-se até ao ano seguinte. Anos mais tarde, vim a
descobrir uma fotografia então publicada na imprensa, tira-
da em dia frio da primavera de 1938, onde estou com a Tia
Maria e o Dão, um cachorro oferecido a Salazar por umas
senhoras da região do Minho, a visitar os trabalhos de adap-
tação do edifício, vestida com um casaco aos quadrados feito
de lã dos Pirenéus, que me recordo ser em tons de bege e
castanho. Claro que não havia dinheiro para me comprar tal
peça de vestuário: o casaco resultara do aproveitamento de
um velho roupão do Senhor Doutor.

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A 21 de maio de 1938 (um sábado), Portugal foi surpreendido
por uma sensacional manchete, ocupando toda a primeira página
do matutino O Século, que anunciava: «COMO VIVE E TRABALHA O
SR. DR. SALAZAR: Quinze horas da vida do cidadão discreto e se-
reno que reside num prédio silencioso da Rua Bernardo Lima...».
Numa longa reportagem hagiográfica de José Leitão de Barros,
jornalista, pintor, cenógrafo, cineasta e animador cultural (impul-
sionador, por exemplo, das marchas populares de Lisboa e dos
desfiles históricos que marcaram aquela época), desvendava-se
a rotina quotidiana do chefe do Governo, António de Oliveira Sala-
zar, então no auge da sua popularidade, dez anos depois de ter in-
gressado no Executivo como ministro das Finanças. O que havia
de inédito e empolgante no artigo é que o sempre circunspeto ex-
-lente das cadeiras de Economia e de Finanças da Universidade
de Coimbra resolvia abrir pela primeira vez à imprensa as portas
da sua residência, situada numa transversal da Avenida Duque de
Loulé, próximo do Marquês de Pombal, em Lisboa, e do seu ga-
binete de trabalho, instalado no Palácio de São Bento, o edifício
onde também tinha assento a Assembleia Nacional. Numa arti-
culada operação de marketing, o texto era republicado no mesmo
dia na revista semanal O Século Ilustrado (propriedade do grupo
detentor do diário), que lhe dedicava a capa e a contracapa.
Mas a maior novidade, e também aquela que mais chamava a
atenção logo de início, não eram as «doze horas por dia» que Sa-
lazar trabalhava em prol da «reconstrução portuguesa», mas sim
a existência na sua vida de uma criança antes desconhecida do
público – menina em fase de escola primária – com a qual o pre-
sidente do Conselho partilhava o mesmo teto. A fotografia de Sa-
lazar debruçado sobre a rapariguinha, a qual parecia estudar de
um caderno aberto sobre os joelhos, dominava a primeira página
de O Século e prenchia toda a contracapa de O Século Ilustrado,
sem se disfarçar a intenção de canalizar para ela as primeiras im-

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pressões do leitor. A legenda do jornal informava: «É o Sr. Dr. que,
sempre depois das 22 horas, ensina a tabuada à pequenina Maria
da Conceição, sua protegida».
Nas páginas interiores, Leitão de Barros, indefetível apoiante
do salazarismo, adiantava explicações quanto à aparição da miú-
da na vida do ditador, sob o subtítulo «Como foi possível à “meni-
na Maria da Conceição” alegrar com a sua voz infantil a silenciosa
casa do “Senhor Doutor”»:

«Ao jantar há vulgarmente um conviva de palmo e meio: a


srª D. Maria da Conceição – mais conhecida pela “Micas”. Esta
“dama histórica” tem hoje oito anos [na verdade, acabara de
completar os 9]. E a sua história é simples: um belo dia o sr. dr.
Oliveira Salazar ouviu, para os lados da cozinha, o eco de vo-
zes infantis. Era uma pequenita de uma família muito humilde,
irmã de muitos irmãos. A cunhada que dela tratava tinha en-
trado para o hospital; e haviam pedido para a pequena lá ficar
uns dias enquanto se fazia a operação. O sr. dr. Oliveira Salazar
quis, naturalmente, conhecer a hóspeda que o acaso lhe trou-
xera. À boa maneira beirã, sentou-a à sua mesa. A pequenita
era tão tímida e nervosa que mal falava na presença do “Senhor
Doutor” – porque, em casa, Salazar tem ainda, familiarmente, o
tratamento de Coimbra.
Só passados dias a ternura do dono da casa tranquilizou a
visita. Ficaram amigos. Passaram duas semanas. O pior foi no
dia em que a “Micas”, que era alegre, se pôs triste e não comeu
nada ao jantar.
– O que é que tu tens?
A pequena não respondeu logo. Duas lágrimas caíram pela
carita triste, e, apesar dos seis anos que tinha então, confes-
sou num soluçozito: “É que a minha cunhada já está boa... e
quer-me levar e eu não quero ir...”
– “Se é por isso... – Está bem. A menina não chora mais e vai
comer... A ‘Micas’ fica cá...”

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E assim, com toda a simplicidade, se traçou o destino da
“menina Maria da Conceição”...»

Novo subtítulo («E, quando finda a lição formidável de todo o


dia, Salazar ensina tabuada à pequena “Micas”...»), para introduzir
a descrição do dia a dia da criança com o governante:

«Depois a “Micas” engordou. Anima agora a casa com um


gorjeio da sua voz. Já sabe ler. Com respeito a contas, embora
as tenha aprendido um pouco tarde e a más horas – (sempre
depois das 21h), como tem tido um bom professor, não comete
erros. É o sr. dr. Oliveira Salazar que lhe ensina a tabuada, de-
pois de jantar. A “Micas” vem por ali fora, muito serena, com os
seus olhinhos no chão e um sorriso muito composto, sem fazer
barulho (já aprendeu)...), e vai para junto do seu grande amigo,
onde se anicha, na cadeirinha azul, ao pé da telefonia...
A lição então principia... ou melhor: a Lição formidável de
todo o dia acaba ali! Sobre as tábuas numéricas de uma cartilha
infantil, no encanto daquela mãozita inocente que indica os pri-
meiros cálculos e daquela vozita débil que enuncia os primeiros
números – símbolos eternos da ordem, da precisão, do método,
do rigor e da verdade!
Nas grandes contas monumentais do Estado, ou na peque-
nita tabuada da “Micas” – os números são sempre iguais e a voz
que os ensina é a mesma. A Lição fecha o dia como o preito de
uma Vida inteira que, à verdade real e duradoura desses nove
sinais mágicos, sacrificou a comodidade de tantas outras efé-
meras verdades aparentes!»

A mensagem era clara: o celibatário Salazar, casado com a Pá-


tria, vivia afinal numa situação protofamiliar. Era uma família de
empréstimo, é certo, aquela que, além da pequena Micas, incluía
a governanta da casa, Maria de Jesus Freire (que a reportagem
não referia ter laços de parentesco por afinidade com a meni-

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na). Uma trindade a mostrar que, afinal, o chefe do Governo não
podia ser assim tão desumano como alguns queriam fazer crer.
É claro que o fatal falatório nacional tratou logo de espalhar que a
criança era uma filha não assumida de Salazar. A tese, apesar de
redondamente falsa, sempre subsistiu – e também ela reforçaria,
afinal, a humanidade da sua personagem.

•••
A irrupção de Micas na vida de Salazar, em 1936, numa situa-
ção que será de adoção, mas jamais oficializada, ocorreu na fase
de consolidação do seu poder. Eclode nesse ano a Guerra Civil
de Espanha (que não fica registada na memória da criança), mo-
mento-chave decisivo para o regime português, cujo destino fica
ligado ao desfecho do conflito. Salazar aposta no apoio à única
fação que pode garantir a sua própria sobrevivência política: a
dos rebeldes que combatem a República espanhola, chefiados
pelo general Francisco Franco. À socapa, Portugal junta-se assim
à Alemanha de Hitler e à Itália de Mussolini, que a favor de Franco
rompem o bloqueio internacional às forças beligerantes, enquan-
to a União Soviética de Stalin o faz do lado do regime republicano.
O apoio português traduz-se no fornecimento de mantimentos
às tropas franquistas, em emissões radiofónicas de incitamento
à rebelião espanhola e na discreta licença de trânsito pelo país
de armamento e munições, além da autorização para o estabe-
lecimento da corredores de ligação entre unidades franquistas
quando, de início, as forças da Falange ocupam distintas bolsas
de território espanhol contíguas à raia.
A luta de extremos ideológicos que se desenrola do outro lado
da fronteira acaba por levar também o regime salazarista à sua
fase mais radical, com a fundação da Mocidade Portuguesa e da
Legião Portuguesa, como sustentáculos de natureza miliciana
em prol do Estado Novo. É o flirt de Salazar com o fascismo, mes-
mo que o ditador português não se sinta nada à-vontade perante
as massas ululantes ou dando rédea solta ao jacobinismo mili-

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tarista da extrema-direita. Mas os tempos não se compadecem
com um mero autoritarismo musculado: na sequência de uma re-
volta de marinheiros no estuário do Tejo a favor da República es-
panhola, é criado no Tarrafal, em Cabo Verde, ainda em 1936, um
campo de internamento destinado a subjugar os «subversivos»
tidos por mais perigosos. Alguns acabarão por aí perecer devido
às péssimas condições de vida, às deficiências alimentares, às
violentas punições e à falta de assistência médica.
Tal como a cegonha de uma das fábulas por ele contadas a
Maria da Conceição, o chefe do regime, que chegara a ser elei-
to deputado durante a I República, logo regressando a Coimbra
por não ter apreciado o ambiente político encontrado na capital,
quer agora obrigar os que se lhe opõem a comer pelo gargalo do
garrafão.
Os anarquistas pagam da mesma moeda, com uma tentativa
de assassinar Salazar em julho de 1937, através de uma potente
carga explosiva colocada num coletor de esgotos. A dinamite re-
benta na ocasião certa, mas é mal direcionada, e o visado sobre-
vive incólume, tendo apenas de sacudir o pó do fato para assistir
à habitual missa em casa de Josué Trocado. Na agenda em que
anota, ao fim de cada dia, tudo o que fez na jornada, o criador do
Estado Novo limita-se a registar o acontecimento com uma só
palavra, mas sublinhando-a: «10h15 – Missa (Dr. Josué) – Bomba».
Aos 8 anos, este é o primeiro acontecimento político que a
memória de Micas regista da sua coabitação com o hospitalei-
ro homem de Estado. Não só fica perturbada por saber que há
gente que quer tirar a vida àquele com quem estabelecera tão
forte corrente afetiva, como a ocorrência fica para ela assinalada
pela vasta e ruidosa concentração noturna que, no próprio dia do
atentado, o regime organizou frente à residência do presidente
do Conselho para o vitoriar.
A menina está ainda a conhecer os cantos à casa e a vida dos
seus ocupantes. Apercebe-se da enorme influência da governan-
ta e ganha intimidade com as visitas mais frequentes: o cardeal

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Manuel Gonçalves Cerejeira (amigo de Salazar desde o tempo em
que ambos estudavam na Universidade de Coimbra), o médico
republicano conservador Fernando Bissaya Barreto (outra ami-
zade cimentada junto às margens do Mondego), José Nosolini
(um condiscípulo universitário), Jerónimo Lacerda, o fundador
do Sanatório do Caramulo, António Nogueira da Silva (de Braga),
o próspero patrão da Casa da Sorte, conhecido balcão de venda
de lotaria, ou José António Marques, também de Santa Comba
Dão, deputado pela União Nacional (a força política apoiante do
salazarismo) entre 1935 e 1938. Dir-se-ia que Salazar não estava
empenhado em fazer amigos na capital, já que as relações mais
íntimas que cultivava eram prévias à sua fixação em Lisboa.
A aposta espanhola do ditador português revelou-se acertada.
Após as tropas vencedoras de Franco entrarem em Madrid em
Março de 1939, Salazar aproveita para também reclamar vitória:
«Vencemos – eis tudo», sumariza ao intervir na Assembleia Na-
cional.
Meses antes, dera-se a instalação dos seus aposentos e ga-
binete de trabalho num palacete situado nos jardins de São Ben-
to, mesmo nas traseiras do hemiciclo. A mudança de casa fora
justificada por razões de segurança, na sequência do atentado
de julho de 1937, e o atraso da operação deveu-se à necessidade
de obras de adaptação na nova moradia. Com ele, além da incon-
tornável D. Maria, Salazar levava Micas, que assim passava a uma
nova fase da sua vida, dotada de muito mais conforto. Na agenda,
o senhor da casa registou o dia oficial da mudança: 8 de junho de
1938. Nessa data, escreveu: «8h45 [da noite] – Para a casa de S.
Bento, onde já jantei e dormi».

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Fotografia autografada oferecida por Salazar a Micas.
Foi tirada em 1928, época em que se instalou em Lisboa
para exercer as suas funções de governante. Escreveu no
verso: «Da Micas. Que seja boa e não se esqueça de mim.
Dezembro de 1948».
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita. Direitos reservados.

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Micas no pátio da residência da Rua Bernardo Lima,
com farda de criada, que usava quando servia à mesa.
O peru indica que a foto terá sido tirada no Natal,
presumivelmente em 1936. À direita, as capoeiras
que a governanta, Maria de Jesus, usava para a
criação das suas espécies favoritas:
galinhas, coelhos e pombos.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita. Direitos reservados.

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Manifestação de apoio a Salazar, organizada frente à
sua residência na Rua Bernardo Lima, em Lisboa,
no dia do atentado anarquista de que escapou
incólume (4 de julho de 1937). O círculo assinala a
janela onde está Micas, acompanhada da governanta
Maria de Jesus. No piso inferior, semi-encoberto,
Salazar saúda os manifestantes.
© Arquivo do Diário de Notícias

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A lição de tabuada dada por Salazar
a Micas, uma fotografia encenada que
permitiu à criança disputar com o
chefe do Estado Novo o protagonismo
da primeira página de O Século
em 21 de maio de 1938.
© Coleção privada dos herdeiros de Maria da
Conceição de Melo Rita. Direitos reservados.
© Hemeroteca Municipal de Lisboa

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D. Maria com Micas e o cão Dão
(um Castro Laboreiro oferecido a Salazar
por um grupo de admiradoras do Norte e
batizado em homenagem à sua terra natal)
durante uma visita às obras de adaptação
do palacete de São Bento a residência do
presidente do Conselho (início de 1938).
O Século Ilustrado, 21 de maio de 1938.
© Hemeroteca Municipal de Lisboa

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Capítulo 2

Tempo de guerra

A princípio, senti-me baralhada com o que para mim era


o casarão de São Bento. Do que eu gostava era do jardim,
onde cheguei a instalar-me para estudar. Até que certo dia o
Senhor Doutor me mandou ir para dentro, porque achava
que o barulho dos pássaros prejudicava a minha concentra-
ção nos deveres escolares.
Lembro-me de que o palacete estava equipado na íntegra
com roupas de cama e mesa, além de todo um conjunto de
outros objetos de uso doméstico. Mas Salazar mandou a Tia
Maria arrumar tudo isso em armários no sótão, onde ain-
da cheguei a ver o material nas suas embalagens originais,
tal como viera das lojas. Entendia ele que o património do
Estado só deveria ser usado em funções oficiais; no resto,
qualquer equipamento teria de ser custeado pelos próprios
utilizadores. Todo o mobiliário da zona particular do palace-
te, por exemplo, na maior parte oriundo da Bernardo Lima,
havia sido adquirido por ele.
Até o fogão a carvão de coque e lenha era propriedade
do Senhor Doutor. A cozinha, enorme, situava-se na cave,
onde também se dispunham as despensas, a sala da caldeira,
a garrafeira e o arquivo – com os papéis de Salazar, todas as
suas inúmeras condecorações e insígnias, nacionais e estran-

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geiras, expostas num mostrador com tampo de vidro, e um
cofre-forte alto, a necessitar de uma combinação secreta para
ser aberto, e cujo conteúdo sempre desconheci. Uma porta
abria-se para o jardim e servia ao mesmo tempo de acesso ao
pessoal menor.
No rés-do-chão, o piso nobre do edifício, havia as duas
salas de receção aos visitantes oficiais (uma sendo a ante-
câmara da outra), muito bem decoradas – estas, sim – com
objetos de propriedade do Estado. Ao lado, situava-se o
gabinete de trabalho de Salazar, onde ele também recebia
ministros e outros colaboradores – e onde preteria muitas
vezes a cadeira frente à secretária em favor do conforto de
uma poltrona. O gabinete dava acesso à biblioteca, toda re-
vestida a madeira e recheada com os livros do presidente do
Conselho, na qual se sentava o seu secretário. Estavam aí
os telefones da residência, e era o próprio secretário que os
atendia, já que não havia telefonistas na casa. Mas o homem
só trabalhava de manhã, período do dia em que Salazar pro-
cedia a despacho. À tarde, quando ele concedia audiências e
recebia os ministros, as chamadas eram atendidas por uma
das criadas. E se o Senhor Doutor quisesse telefonar, teria de
ser ele a discar o número.
Havia ainda no mesmo piso uma sala de banquetes, rara-
mente usada – e só nessas ocasiões se retiravam do sótão as
toalhas e os restantes utensílios de mesa que Salazar mandara
guardar.
Junto à elegante escadaria que conduzia ao primeiro andar,
situava-se o cantinho da telefonia. O Senhor Doutor costu-
mava sentar-se aí para ouvir as notícias na Emissora Nacio-
nal ou um pouco de música clássica, mas não era particular-
mente devoto da rádio. No entanto, adorava ouvir o popular

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programa Diálogos da Lelé e do Zequinha, onde a estrela prin-
cipal era o comediante Vasco Santana, e costumava acompa-
nhar a transmissão dos Serões para Trabalhadores, espetáculos
organizados pela Federação Nacional para a Alegria no Tra-
balho (um organismo do Estado). Também o vi muitas vezes
naquele canto a ler os jornais. E lia-os todos, pelo menos os
matutinos da capital: o Diário de Notícias, o Diário da Manhã
(ligado à União Nacional), O Século, o Novidades (pertencente
ao episcopado português). Dava ainda uma vista de olhos aos
vespertinos: o Diário de Lisboa, o Diário Popular (que apareceu
mais tarde, em 1942) e até o República, ligado à oposição.
Podia-se também subir pelo elevador que ligava todos os
pisos do palacete, da cave às águas-furtadas. Era frequente eu
envolver-me em corridas com o Senhor Doutor, a ver quem
chegava primeiro do rés-do-chão ao primeiro andar: ele no
ascensor (belíssimo, com as suas madeiras envernizadas) e eu
pela escada. Confesso que lhe ganhei muitas vezes, mas é um
facto que ele nada podia para alterar a velocidade do apare-
lho. Uma vez em que o elevador se avariou, ficando imóvel
entre dois pisos com uma ou duas empregadas no interior, a
única recomendação que o Senhor Doutor deu à Tia Maria
foi que os bombeiros, chamados para resolver a situação, não
fizessem barulho.
À esquerda de quem subia a escada, encontrava-se a casa
de banho comum ao primeiro andar (que era a que Salazar
usava), e, do lado oposto, a sala de jantar particular, onde o
Senhor Doutor tomava as suas refeições, utilizando – claro
– os talheres e a louça dele (a comida era enviada da copa,
onde a Tia Maria a arranjava, através de um pequeno monta-
-cargas). Depois descobria-se o seu quarto, com uma porta
de comunicação para o escritório particular. Aí existia um

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oratório, usado para se celebrar missa. O escritório estava
ligado a uma grande sala de reuniões que alojava o conse-
lho de ministros, ocupando Salazar um dos topos da longa
mesa central. Mas as reuniões do governo naquele local eram
muito raras – presumo que a maioria delas tivesse lugar no
edifício da Assembleia Nacional.
A Tia Maria tinha também neste piso o seu quarto, muito
pequeno e estreito, parecendo mais um corredor. A gover-
nanta dispunha de casa de banho própria, que servia também
o quarto de hóspedes, situado no mesmo andar. Tal como
na Bernardo Lima, este aposento estava sempre às moscas, a
não ser que uma ou outra irmã do Senhor Doutor resolves-
se descer da Beira Alta até à capital. Para completar a plan-
ta do primeiro andar, falta falar da saletazinha equipada de
um móvel parecido com um toucador mas dispondo de um
tampo retrátil, que alguém oferecera em tempos a Salazar e
onde eu estudava e fazia os meus trabalhos de casa. De vez
em quando, ele lá ia verificar se eu de facto estudava ou se
dormia. Há escassos anos foi-me concedida a oportunidade
de voltar a visitar o palacete (agora muito diferente) e depa-
rei com essa peça de mobiliário tão ligada à história da minha
vida. Apesar de ser propriedade particular de Salazar, lá ficou
esquecida para sempre.
Por fim, subia-se até às águas-furtadas para atingir os
aposentos das criadas, e onde eu, à semelhança da residên-
cia anterior, tinha o meu próprio quarto. Havia agora mais
empregadas – num máximo de seis, a maioria menores –, que
se espalhavam por duas grandes divisões, onde se dispunham
sem apertos as camas necessárias. Uma grande casa de ba-
nho servia-nos a todas. E elas tinham ainda uma dependência
para guardarem as suas coisas.

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Uma divisória do piso superior estava sempre fechada à
chave: aí se conservava o recheio mandado empacotar por
Salazar quando chegámos a São Bento. Também se guarda-
vam nesse espaço algumas ofertas pessoais que enviavam ao
Senhor Doutor. Recordo-me sobretudo de uma pele de leão,
incluindo a cabeça conservada na perfeição, com a feroz den-
tadura bem à vista, que os autores da dádiva diziam ter sido
o maior exemplar da espécie que jamais tinham caçado. Con-
versa de caçador? Talvez. Mas lá que me impressionava, sem
dúvida, a tal ponto eu tinha muito medo de entrar naquela
sala. Outros despojos de animais selvagens, aos quais Salazar
não parecia prestar particular atenção, acumulavam-se no
mesmo sítio, também oferecidos pelos respetivos caçadores:
uma enorme pele de crocodilo, intacta, uma gigantesca presa
de elefante deitada no chão (que um dia medi por curiosi-
dade e vi que chegava a 1,70m), enfim, sinais de uma África
colonial que o presidente do Conselho incensava mas que só
conhecia por esta via indireta.
Os troféus de caça não eram porém as únicas prendas ali
guardadas. Das outras, o que mais me fascinava era um so-
berbo biombo oriental, lacado, exibindo sobre o seu fundo
preto os habituais motivos femininos e florais comuns às ar-
tes decorativas dessas paragens do sol nascente. Muito gosta-
va eu de saber o que lhe aconteceu.
A guarda das chaves de toda a casa e dos seus armários esta-
va a cargo da Tia Maria, que, qual zelosa castelã, transportava
sempre com ela uma larga argola metálica com o chaveiro
completo. Um dia houve um drama quando perdeu a chave
da cómoda onde guardava o dinheiro do seu próprio ordena-
do, e de que necessitava para fazer face a despesas. Deu uma
trabalheira arrombar a gaveta sem estragar o móvel.

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Para a escola de guarda-costas

Dentro do palacete, eu gozava de total liberdade de circu-


lação, não existindo áreas que me fossem interditas. Mas é
claro que, com 10 anos, já tinha a noção de responsabilidade
suficiente para não irromper em corrida por uma reunião
do conselho de ministros ou por uma audiência dada pelo
chefe do Estado Novo. Porém, se o Senhor Doutor estivesse
sozinho no gabinete, era natural que eu lá entrasse para dois
dedos de conversa. Quando um dia perguntei que farinha
finíssima e amarelada era aquela conservada no interior de
uma caixa forrada de veludo, que servia de elemento decora-
tivo na sala onde se reuniam os ministros, responderam-me
ser ouro em pó: mais uma oferenda exclusiva para ele.
Inevitável foi ter de mudar outra vez de escola. Mas agora
não regressei à do início, antes fui matriculada num estabe-
lecimento particular situado na Rua Poiais de São Bento, um
pouco abaixo do palacete. Fazia o percurso a pé, guardada
por um dos dois agentes da PSP à paisana que alternavam em
serviço na casa de Salazar (e aos quais a Tia Maria recorria
com frequência para pequenos recados, serviços e compras).
Com as perturbações da minha carreira escolar, acabei por
me inscrever aos 9 anos na terceira classe, quando já devia
estar na quarta. O colégio pertencia a uma associação de be-
neficência, e nele tudo era pobre, das instalações à maioria
das crianças que o frequentavam, passando pelas refeições.
O almoço era constituído por uma sopa e uma ração de pão
de mistura, nada mais. Até que o Senhor Doutor reparou na
minha debilidade física, que atribuiu à alimentação. Ordenou

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então à Tia Maria que passasse a enviar-me almoço para a
escola. E lá ia todos os dias o mesmo agente da polícia entre-
gar a cestinha com a refeição, o que me deixava constrangida
perante as minhas colegas, com as quais não podia compar-
tilhar o rancho melhorado. Resultado: acompanhava-as na
sopa da escola e depois eu e outra miúda, oriunda de uma
família mais abastada, íamos para uma sala ao lado comer o
resto.
Não eram aliás tempos fáceis, porque entretanto reben-
tou a guerra na Europa, tinha eu 10 anos. Mais preocupações
surgiram também lá em casa, com a inevitável redução das
despesas, num orçamento doméstico que já era de contenção.
Quando foi imposto em Portugal o racionamento dos géne-
ros de primeira necessidade, o Senhor Doutor entendeu que
a sua residência não iria ficar de fora. E, porque tínhamos
de dar o exemplo, também em São Bento se praticavam as
senhas de racionamento para o pão, a batata, os laticínios,
o bacalhau, as massas, o arroz, o açúcar, o azeite, o café, o grão,
os cereais, a farinha, o sabão, o carvão, a lenha e o petróleo.
A dose de pão normal, que era escuro (e cujo preço Salazar
não deixava aumentar, por considerar ser a base da alimenta-
ção dos portugueses), já vinha cortada em quadrados da pa-
daria, e no café, para se evitar excesso de consumo de açúcar,
o amargo era cortado com pedras de sal.
Certa noite, anunciou-se na capital um simulacro de pro-
teção contra bombardeamentos aéreos. Todas as vidraças
ficaram atravessadas por tiras de fita adesiva (para evitar
estilhaços), e as luzes tinham de estar rigorosamente apaga-
das, sem exceção. À hora marcada, um apito de sirenes ecoou
prolongadamente por toda a cidade. Como é lógico, o Senhor
Doutor determinou que em São Bento também cumprísse-

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mos as diretivas. Apagadas as luzes, ele e eu fomos para a
janela verificar se os vizinhos também obedeciam.
Naquela idade, pouca consciência teria das motivações da
Segunda Guerra Mundial e das suas circunstâncias, nem fi-
quei com a noção de que o Senhor Doutor, apesar da sua
constante preocupação com a pedagogia, tivesse um parti-
cular empenho em me explicar o que estava em jogo. Sabia
porém que ele tudo fizera para Portugal não se ver envolvido
no conflito, tanto mais que alterou as suas rotinas e muitas
vezes não ia além das três ou quatro horas de sono por noite
– mas até a ideia de que todo esse trabalho se destinava a li-
vrar o nosso país da guerra me era transmitida mais pela Tia
Maria do que por Salazar.
Outros acontecimentos, na verdade, ocuparam a minha
vida: não só o Senhor Doutor entendeu mandar vir da Lajeo-
sa a minha irmã gémea, Ana, para viver perto de mim, como
uma nova criança da nossa família passou a habitar comigo
na residência oficial de São Bento. Ele não concordava com
a separação das gémeas, e o facto é que, com o desapareci-
mento da minha mãe, a Ana estava um pouco desampara-
da na aldeia, apenas entregue aos cuidados alheados do meu
pai. Parece que não haveria lugar para as duas no palacete, e
portanto ela ficou a viver com o nosso irmão José, que man-
tinha as funções de contínuo no Palácio de São Bento. Para
nos vermos, bastava atravessar o jardim, e assim sucedia com
frequência.
Com idêntica frequência, aparecia no palacete a filha mais
velha do José e da Rosalina, a Maria Antónia, cujo nascimen-
to estivera na origem da minha mudança para a casa de Sala-
zar. Era lógico que ela por ali passarinhasse, acompanhada da
mãe, tanto mais que a Tia Maria era a madrinha da criança.

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Apesar da nossa diferença de idades (uns sete anos), eu brin-
cava muito com a minha sobrinha. Num certo inverno, du-
rante os primeiros tempos de guerra, com as travessias do
jardim de um lado para o outro, a Maria Antónia acabou por
apanhar uma gripe que lhe trouxe febres altas e complicações
respiratórias. Foi num sábado, dia do jantar do dr. Bissaya
Barreto com Salazar, e por isso a Tia Maria aproveitou para
uma consulta. Após observar a Maria Antónia, o veredicto
do médico coimbrão foi categórico: ela não podia andar a sal-
titar de uma casa para outra, ou ficava com o meu irmão e a
Rosalina ou mudava-se para o palacete. Lá ficou nesse dia, e
também nos seguintes, para recuperar. E foi ficando – passá-
mos a ser duas as «pupilas do Senhor Doutor», como um dia
alguém nos chamou. A Maria Antónia, que tinha então uns
três anos e meio, ficou a habitar no meu quarto. Aí fomos
crescendo, cada uma com a sua cama – e, naquele sótão, até
nos podíamos dar ao luxo de dispor de um pequeno quarto
de vestir contíguo.

Obrigada a repetir o ano

No novo domicílio, o meu mestre-escola continuava preo-


cupado com a carreira educacional da protegida. Via-me os
trabalhos escritos, corrigia-os e discutia os erros comigo. Só
não me puxava as orelhas. Com elevados padrões de exigên-
cia, avaliava e controlava os meus conhecimentos de gramá-
tica, matemática, geografia e história (sendo as duas últimas,
para mim, as mais difíceis, devido à profusão de nomes e
datas a fixar). Quando cheguei ao fim da quarta classe e me
preparava para as provas de finalização da escola primária,

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o Senhor Doutor entendeu, no seu alto critério, que eu não
estava em condições de concluir a escolaridade básica e man-
dou recado nesse sentido à minha professora. Consequência:
tive de repetir a quarta classe.
Nesse ano escolar, Salazar velou para que eu estivesse à
altura das suas expetativas académicas. Intensificaram-se os
interrogatórios em casa, e até mesmo nas viagens de carro
entre Lisboa e Santa Comba Dão ele passava o tempo a mas-
sacrar-me com testes à minha sabedoria. Como a viagem de-
morava umas cinco horas, imagine-se por que razão fiquei
tão marcada por estas intensas provas orais. É claro que a
minha impaciência era moderada pela noção de que, se não
estava bem preparada, tinha a obrigação de repetir. E acabei
por não dar o tempo por mal empregado. Aos 12 anos, em
julho de 1941, lá fui fazer as provas finais, na escola oficial
nº 52, à Rua da Bela Vista à Lapa. Compensou o esforço do
Senhor Doutor: fiquei aprovada com distinção.
No dia seguinte, sob o título «História simples: era uma vez
uma menina...», o Diário Notícias referia o evento ao cimo da
sua primeira página, com uma fotografia minha perante as
examinadoras. Confesso que estava tão nervosa que nem
dera pela presença do fotógrafo. O jornal, à sua maneira,
contava a minha história, descrevendo-me como «uma pe-
quenita de 12 anos, simples, serena, discreta na sua presen-
ça e nos seus gestos» e relatando, com alguma imprecisão:
«Filha de gente pobre, humilde, entrou certo dia na cozinha da
residência do Chefe do Governo, onde a pessoa de família que dela
cuidava tinha uma serviçal das suas relações ou parentesco. Havia
um embaraço. A referida pessoa de família ia entrar num hospital
para ser operada. Onde ficaria a pequena durante este tempo?»
A resposta ilustrava a generosidade do Senhor Doutor, mas

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o que de verdade importava naquele texto era a conclusão:
«Ficou distinta. E este acontecimento tão simples e tão pequeno deve
ter chegado para animar com uma claridade de alegria feliz o dia
do Presidente do Conselho.»
Feita a primária, Salazar entendeu aconselhar-me não o li-
ceu mas sim o ensino comercial, sugerindo que esta opção do
chamado ensino médio me dava mais oportunidades profis-
sionais, pois o futuro, para ele, estava nos cursos de natureza
técnica. Como é lógico, agi em conformidade, sem questio-
nar a diretiva, e passei a frequentar de novo um estalecimen-
to perto de casa, a Escola Comercial Rodrigues Sampaio, na
Calçada do Combro. A ação pedagógica do Senhor Doutor
para comigo iria porém prolongar-se pela minha vida fora.
A preocupação seguinte foi ensinar-me francês. Ao contrá-
rio do inglês, em que possuía algumas dificuldades de expres-
são, ele dominava a língua de Racine com fluência, segundo
me explicava por ter feito o seu curso jurídico em Coimbra a
estudar por manuais franceses. Nunca mais esqueci a canção
que então me ensinou, e que começava por estas palavras:

Quand j’étais petit, très petit


je dormais dans un petit lit...
[Quanto eu era pequeno, pequenino
dormia numa caminha]

Mas a sua obsessão pela minha aprendizagem não se re-


sumia às matérias escolares. O Senhor Doutor parecia ter,
acima de tudo, empenho em que eu viesse a ser uma dona
de casa exemplar, insistindo para que aprendesse as rotinas
domésticas com a Tia Maria (que ele referia, quando falava
dela a terceiros, como a «Menina Maria»):

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– Micas, tens de aprender a cozinhar, porque faz muita
falta. Olha que a Menina Maria sabe muito bem cozinhar.
Deves aprender com ela.
Quando certo dia ele me perguntou o que queria ser em
adulta, respondi-lhe:
– Professora ou modista.
Não ficou muito convencido:
– Pensa melhor. Ainda tens muito tempo.
De qualquer modo, fosse qual fosse a minha opção, ele fa-
zia questão de me transmitir um princípio que já surgia como
orientador da sua vida: ser perfeita em tudo o que fizesse. E
dava um exemplo:
– Se estiveres a fazer croché e te enganares num ponto,
não queiras remediar. Desmancha tudo e volta a fazer de
novo. Se não, vais ficar sempre a pensar no erro que ali ficou.
Só que o Senhor Doutor muitas vezes não se limitava a co-
municar-me teoria e a insistir para que eu aprendesse. Dado
que também sabia, em certos casos, como fazer, como já con-
tei a propósito do uso da vassoura, não hesitava em demons-
trá-lo. Uma vez, ao cair-lhe um botão do casaco, mandou vir
uma criada com agulha e linha para lho coser logo ali, no
gabinete de trabalho. Quando ela deu o remate, Salazar não
ficou satisfeito e perguntou-lhe, gesticulando com a mão o
ato de enrolar a linha sob o botão:
– Então, e não se faz assim?
Também fui habituada às lides da mesa: quando o Senhor
Doutor recebia convidados particulares para o jantar, no pri-
meiro andar, era eu, seguindo a criada que servia a comida,
quem transportava a molheira e regava os pratos à discrição
de cada comensal (uma sofisticação exclusiva dessas ocasiões).
Esta prática, que se iniciara na Bernardo Lima, prolongou-se

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para São Bento. Como as serviçais, também eu tinha a minha
pequena farda para a ocasião.
Não sei se fui para Salazar a filha que ele nunca teve, mas
eu via-o como o pai que me faltava. Não como um pai subs-
tituto ou um segundo pai, mas como o pai verdadeiro. E isto
apesar de o meu pai biológico então ainda se encontrar vivo.

As capoeiras da Tia Maria

O Senhor Doutor tinha razão: a Tia Maria era na verdade


um valor seguro nos engenhos, artes e ofícios do estômago.
Anunciava-o o apetitoso odor exalado da despensa de São
Bento, gravado para sempre na minha memória, muito por
via da marmelada e das compotas por ela confecionadas e aí
conservadas.
Para a governanta garantir a sua autoridade na matéria
gastronómica, nada melhor do que expandir a zona de cria-
ção doméstica já existente na Bernardo Lima. Em São Bento,
as capoeiras, amplas, sólidas e erguidas para esse propósito,
passaram a ocupar toda uma zona encostada ao muro exte-
rior do jardim, numa das suas extremidades, no enfiamen-
to do grande portão que da Rua da Imprensa à Estrela dava
acesso ao palacete. As instalações haviam sido montadas pe-
los funcionários camarários que asseguravam a manutenção
diária do parque ajardinado do Palácio de São Bento, dirigi-
dos em horas extraordinárias pela Tia Maria. Aí cresciam as
galinhas, os perus, os patos, os pombos e os coelhos que con-
sumiam parte do seu tempo mas a que ela tinha uma devoção
muito particular. Um pequeno lago garantia a felicidade dos
patos antes de irem parar aos tachos da governanta, que ao

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aviário até tinha tido o cuidado de acrescentar um pombal.
Para ela, este era um instrumento crucial de sobrevivência
no meio urbano, o cordão umbilical que a ligava à vida cam-
ponesa de onde era originária – como todos nós naquela casa,
afinal, sem no entanto sentirmos com tal intensidade a pre-
mência desse elo telúrico.
A Tia Maria via as possibilidades de abundância da área
em volta da nova residência como uma cornucópia que ha-
via de ser explorada com conveniência e sentido de oportu-
nidade. Para ela, tratava-se de assegurar o seu espaço vital.
Não muito longe das capoeiras, resolveu criar a sua própria
horta, para colher sem intermediação algumas das dádivas
da terra: couves, nabiças (para uma das sopas favoritas do
Senhor Doutor), feijão verde, e, em certo momento, até ba-
tatas. Separados por um buxo, ainda se encontravam por ali
os tanques para lavar a roupa, aproveitando a água descida
de uma nascente de Campo de Ourique, e um extenso es-
tendal.
A transposição da vida rural para São Bento, sobretudo
da sua componente animal, era uma conquista da Tia Ma-
ria que, como eu já disse, não beneficiava das simpatias do
Senhor Doutor (além de que, por razões de higiene, ele abo-
minava os pombos, que, no seio da criação, eram uma das
espécies favoritas dela). Nas discussões entre ambos acerca
do empreendimento, um dos pontos prioritários, como não
podia deixar de ser, tinha que ver com a sua viabilidade eco-
nómica. Ela defendia que assim se poupava em despesas no
mercado, mas ele contrapunha que havia que contar com o
investimento em rações – que me lembro de serem compra-
das num armazém da Avenida 24 de Julho, frente ao Tejo.
Então, a governanta recorria ao seu argumento definitivo:

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as receitas obtidas com a venda para fora, que ajudavam ao
equilíbrio do orçamento doméstico.
É um facto: a Tia Maria vendia grande parte da sua
produção galinácea para consumo do Hotel Aviz, então
o mais luxuoso de Lisboa. Duas vezes por semana, ela
despachava o sr. Furtado, motorista de apoio à residência, na
carrinha de serviço, com um carregamento de várias dúzias
de ovos e de pequenos frangos (quase pintos) para entrega no
hotel, nas Picoas, em cuja cozinha ambos os produtos eram
muito elogiados. Soubemos depois que havia um hóspede
muito especial, instalado no Aviz em plena guerra, que não
dispensava nem uns nem outros. O seu nome era Calouste
Gulbenkian. Não que isto tranquilizasse Salazar, que olhava
desconfiado para o negócio e teria preferido que a Tia Maria
dele desistisse, mas a verdade é que jamais o impediu (o sr.
Furtado, que ambicionava – sem nunca o ter conseguido –
ser promovido a motorista do presidente do Conselho, tam-
bém detestava o frete, nada podendo, porém, fazer para con-
trariar as ordens da governanta).
Tudo isto se integrava no contexto de austero conceito de
viver pelos próprios meios que era apanágio do Senhor Dou-
tor. A Tia Maria costumava queixar-se-me da forretice do
patrão, lamentando que o orçamento não desse para tudo.
Em São Bento, as despesas de funcionamento da residência
(incluindo telefones) continuavam a ser pagas por ele, exce-
to a conta da eletricidade, debitada à Assembleia Nacional.
Todos os gastos eram registados pela Tia Maria em livros
de merceeiro, que apresentava mês a mês ao Senhor Doutor.
Mas esse era apenas um dos aspetos do controlo que ele
procurava exercer sobre a atividade doméstica. Era costu-
me ao fim do dia, quando o Senhor Doutor ia a caminho do

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quarto ou já estava até sentado na cama, dizer à governanta:
– Maria, vamos lá fazer o relatório.
Ela aproveitava então para se queixar da escassez de re-
cursos financeiros. O amo, porém, não se deixava comover:
– Pois é, mas não pode ser mais.
Percebi mais tarde as razões de todo este aperto. O venci-
mento do Senhor Doutor era escasso para tantos encargos,
desde as despesas em São Bento que ele teimava em liquidar
do seu bolso até às obras da sua quinta do Vimieiro, onde a
construção de muros e tanques de rega parecia não ter fim.
Precisava ainda de ajudar duas das suas quatro irmãs (que
eram todas mais velhas), ambas solteiras e sem atividade pro-
fissional.
Eu assistia muitas vezes à disputa dos meios financeiros
entre o Senhor Doutor e a Tia Maria, porque também era
chamada a dar o meu testemunho acerca dos estudos escola-
res da jornada. De resto, as duas tínhamos de lhe falar de tudo
o que se passara durante o dia e que pudesse ser de algum
interesse para os anais do lar, já que a curiosidade dele não
tinha limites.

Os novos eletrodomésticos

Não espanta que, com esta economia de guerra, os ele-


trodomésticos só tenham começado a aparecer em São Bento
anos após a mudança, e aos poucos de cada vez. A primeira
grande novidade terá sido o ferro elétrico, que, em plena
Guerra Mundial, veio substituir o velho utensílio a brasas.
Foi mais ou menos na época em que o fogão a carvão deu
lugar ao aparelho a gás. E em que chegou o aspirador, muito

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apreciado por todas as mulheres da casa, que puderam pôr
de lado o balde e o pano espremido e torcido com que se
levantava o pêlo dos tapetes – função que também a Tia
Maria me levava a executar, por vezes até no gabinete de
trabalho de Salazar. O frigorífico chegaria mais tarde. Tudo,
claro, pago do bolso do Senhor Doutor.
Também se aproveitou a mudança para renovar o trem
de cozinha – não faria sentido estrear casa nova com os ar-
queológicos tachos e panelas da Bernardo Lima. Foi preciso
encomendar as peças por catálogo, que estava escrito em ale-
mão, porquanto eram importadas do III Reich. Recordo-me
de ver na cozinha o Senhor Doutor, que não sabia alemão, a
falar com a Tia Maria e a assinalar a lápis no catálogo as pe-
ças a adquirir, escolhendo-as pelos tamanhos indicados nas
respetivas ilustrações.
Quem mais sofria com a austeridade eram as serviçais. Re-
crutadas em asilos de infância em Viseu, Coimbra e Figueira
da Foz, todas com menos de 20 anos, exceto a cozinheira e
a criada de mesa, estavam longe de receber os 100 escudos
mensais que a Tia Maria pagava às duas mais velhas. Às sete
da manhã, uma hora depois de se levantar para começar a
preparar as coisas para o dia, a própria governanta tocava a
campaínha que obrigava todo o pessoal menor a pôr-se tam-
bém de pé. Elas queixavam-se da dureza do trabalho, além da
exiguidade das folgas, domingo sim, domingo não. A gover-
nanta era exigente no seu apuro e rigorosa na inspeção das
suas funções: despedia-as por dá-cá-aquela-palha, uma tarefa
qualquer que ela achasse imperfeita ou mal executada. Mes-
mo Salazar se arrepiava com a sua severidade. Pouco impor-
tava: para a Tia Maria, não podia haver contemplações com
o pessoal doméstico.

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No verão de 1940, eu ia a pé, na brincadeira com as criadas,
de São Bento a Belém para visitarmos a Exposição do Mundo
Português, maravilhosa iniciativa nacionalista de Salazar que
nunca mais teve igual no nosso país. De resto, a proximidade
ao líder máximo do regime concedia-me um ponto de vista
privilegiado sobre alguns dos atos de consagração do Estado
Novo.
Só a doença me impediu de acompanhar o Senhor Doutor
a Guimarães nesse mesmo ano de 1940, para a cerimónia de
abertura das comemorações nacionais do «duplo centenário»
(800 anos da fundação da nacionalidade e 300 da sua restau-
ração), das quais fazia parte a grande exposição de Belém. Lá
seguiram com ele a Tia Maria e a Maria Antónia, enquanto
a febre me prendia ao palacete. Mas, chegado o meio-dia da
data da cerimónia, saí da cama e fui para a janela ver a colo-
cação das duas bandeiras comemorativas (a nacional e a da
restauração), iniciativa que as autoridades haviam pedido à
população para aquela hora. Foi um espetáculo deslumbran-
te, ver toda a gente obedecendo ao impulso (ou à diretiva) de
pendurar as bandeiras às janelas. Em São Bento, como não
podia deixar de ser, seguiu-se também o ritual, ficando os
estandartes colocados sobre a entrada principal do palacete,
virada para a Calçada da Estrela.
Em plena guerra, recordo-me de ficar ao lado do palanque
oficial nos desfiles comemorativos do 28 de Maio, impressio-
nada pela quantidade de homens fardados a descer a Avenida
da Liberdade e sobretudo pelo barulho dos tanques. Apesar
de as cerimónias oficiais o enfastiarem, o presidente do Con-
selho abria uma exceção neste caso, já que se lhe notava uma
ponta de orgulho na exibição do Exército, que ele se empe-
nhara em disciplinar e modernizar.

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E retenho em particular, como se fosse hoje, a impressio-
nante inauguração do Estádio Nacional, no 10 de junho de
1944. Acompanhada da Tia Maria e de várias senhoras nos-
sas conhecidas, mais íntimas lá de casa, tive a sorte de ficar
mesmo junto à tribuna presidencial, onde estavam o Senhor
Doutor e o chefe do Estado, o general Óscar de Fragoso Car-
mona.
Eu e algumas criadas aproveitávamos também os bilhetes
para o Teatro da Trindade (gerido pelo Estado) que eram
enviados como oferta para o palacete pelo Secretariado da
Propaganda Nacional (SPN) ou, mais tarde, o organismo que
lhe sucedeu, o Secretariado Nacional da Informação (SNI).
Do mesmo modo, assisti em agosto de 1941, no Parque da
Palhavã, a uma fabulosa representação noturna de Sonho de
uma Noite de Verão, espetáculo onírico a fazer jus ao título
de Shakespeare, encenado por Amélia Rey Colaço e inter-
pretado por ela e pela sua companhia. E por falar em Amélia
Rey Colaço, voltei a vê-la pela mesma via passados dois anos
na sua casa-mãe, o ainda Teatro Nacional Almeida Garrett
(futuro D. Maria II), em Frei Luís de Sousa, numa encenação
da própria levada a cabo para assinalar o centenário da cria-
ção da peça pelo patrono daquela sala do Rossio. Chegámos
também a ir em grupo ao Coliseu dos Recreios com entra-
das oferecidas. Em qualquer destas saídas noturnas, o Senhor
Doutor, mesmo já deitado, só apagava a pequena luz da sua
mesa-de-cabeceira quando já nos sabia regressadas a casa.
Exceto em momentos de crise, que o obrigavam a serões,
o chefe do Governo procurava assegurar as suas oito horas
de sono, e às 8h30 estava de pé. Mas dormia muito mal, era
afetado por insónias e tomava calmantes para conseguir um
pouco mais de tranquilidade noturna.

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Sem confessar nem comungar

O passatempo preferido do Senhor Doutor era a leitura.


Apesar do gosto pela ópera, que ouvia por vezes no rádio,
e por outras artes de palco, não frequentava salas de espetá-
culos a não ser por obrigação oficial, pois não gostava de se
expor e era refratário à vida social. Chegou a ter um gira-dis-
cos para ouvir a sua música clássica, mas, com notória falta
de vocação para as coisas mecânicas, nunca se entendeu com
o funcionamento do aparelho – nem tinha paciência para o
aprender.
Sendo um homem de rotinas, nada melhor, para ele, do
que o recolhimento do lar. Avesso a aceitar convites, só cedia
em nome dos superiores interesses da Nação. Julgada indis-
pensável a sua presença, lá ia então contrariado a inaugura-
ções e banquetes. Mas detestava fraques e smokings, e consi-
derava uma tortura ter de andar assim «fardado», como ele
dizia. O que ele recusava com obstinação, mesmo quando
o protocolo o indicava, era exibir ao peito as suas insígnias
e condecorações, que nunca saíam do expositor situado na
cave. Que eu me recorde, os sapatos de verniz usados para
estas ocasiões foram sempre os mesmos, mas a primeira coisa
que ele fazia quando regressava à residência era substituí-los
por umas pantufas.
Escusado será dizer que a vida em São Bento era tão agi-
tada como a marcha de uma tartaruga. Grande amante da
Natureza, o Senhor Doutor perdia-se em contemplações da
fauna e da flora em volta da residência. Admirava o ciclo re-
produtivo dos pavões e faisões colocados, para efeitos deco-

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rativos, no parque de São Bento. Escondiam os ninhos de
tal maneira que eu e ele não os conseguíamos descobrir, e
depois as fêmeas já surgiam à luz do dia com os filhotes atrás,
caminhando em fila indiana, coisa que o deliciava.
No grande ciclone de 15 de fevereiro de 1941, que devas-
tou estradas, telhados, chaminés, edifícios e linhas telefóni-
cas um pouco pelo país fora, a vegetação de São Bento foi
castigada com severidade (lembro-me aliás, ao ir de manhã
para a escola, de ver pessoas agarradas a postes e candeeiros
para não serem derrubadas pelo vendaval e voarem os pa-
nos com que os padeiros cobriam os cestos de verga então
usados para distribuir o pão ao domicílio). No rescaldo, fui
com o Senhor Doutor dar a volta ao parque para observar os
estragos e reparei na grande mágoa com que ele olhava para
as árvores de grande porte, tão antigas quanto belas, que ha-
viam sido derrubadas.
Até a missa passou a ser, em São Bento, um ritual casei-
ro. Era celebrada aos domingos e dias santos pelo secretário
do cardeal Cerejeira, o cónego dr. Alberto Carneiro de Mes-
quita, no oratório montado no escritório do primeiro andar
(que se abria e fechava como um armário normal), e muitas
vezes o Senhor Doutor juntava-se a nós na ladaínha, já que,
após o atentado, a sua participação na missa dominical trans-
ferira-se para dentro de portas. Era habitual eu servir de acó-
lita, ajudando a arranjar o altar e a ordenar os paramentos.
A minha recompensa consistia em beber a pinguinha de vi-
nho que sobrava da consagração e ficar com as hóstias rema-
nescentes, que repartia com os peixes do lago de nenúfares
situado frente à escadaria principal do palacete.
Assumindo as competências de sacristão, o Senhor Doutor
ajudava com frequência à missa – em latim, como é óbvio,

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pois estávamos muito longe ainda do Concílio Vaticano II –,
o que implicava, entre outras coisas, ser ele a preparar a água
e o vinho. Mas reparei que, ao contrário de todas nós, ele
nunca se confessava nem comungava. Comuniquei a minha
estranheza à Tia Maria, que fez questão de me explicar – fri-
sando-o várias vezes ao longo da nossa vida em comum – que
a Salazar fora concedida pela Santa Sé uma licença especial
que o isentava de tais práticas.
Não sabia – e continuo sem disso estar segura – que existia
uma modalidade de dispensa de rituais que eu julgava de lei
para todo e qualquer católico (mesmo o Papa), mas a idade
não me permitia fazer inquirições mais aprofundadas. Cer-
to é que o Senhor Doutor mantinha uma boa relação com o
Vaticano, como o atestava a moldura de prata, a um canto
do seu escritório do rés-do-chão, contendo um retrato foto-
gráfico do Papa Pio XII autografado e com uma expressiva
dedicatória dirigida a Salazar. Contaram-me que a fotografia
substituíra uma condecoração que a Santa Sé havia decidido
conceder a todos os portugueses intervenientes no processo
de negociação da Concordata entre o Estado português e o
Vaticano, em 1940. Como o presidente do Conselho havia
dispensado a sua medalha, embora dizendo que a deviam
atribuir aos restantes membros da equipa diplomática portu-
guesa, o Santo Padre ter-lhe-á enviado o retrato em sinal de
reconhecimento.
No oratório também rezávamos o terço à noite, ritual diá-
rio em maio, o mês de Maria, e, de novo, podia acontecer
termos nesse momento a companhia do senhor da casa. En-
volvido na minha educação religiosa, o Senhor Doutor deu-
-me certo dia um missal bilingue (em latim e português) que
o editor acabara de lhe oferecer. Logo a seguir, como toda

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a paciência, explicou-me como me deveria orientar com o
manual, o que não era fácil. Ainda o conservo, com a indica-
ção na folha de rosto escrita pelo punho de Salazar: «Para a
Micas usar.» A que acrescentou a data da doação, de 1943, e
o autógrafo.

Passeios aos domingos

Sempre que podia, o Senhor Doutor levava-me com ele


às visitas que fazia em muitos domingos ao presidente Car-
mona, primeiro quando este ainda habitava numa pequena
vivenda em Benfica e depois quando já estava instalado na
Cidadela de Cascais. Em Benfica, eu ainda entrava na casa,
aparecendo por vezes a mulher de Carmona, D. Maria do
Carmo, que a meu ver era bem menos simpática do que o
marido. Mas em Cascais limitava-me a esperar dentro do
carro, que ficava estacionado num grande pátio à entrada.
Não importava: uma volta de carro com Salazar era sem-
pre uma fuga à rotina de São Bento. Ele aliás tinha o cuida-
do de me levar a passear aos domingos (porque os sábados
eram então jornadas de trabalho como qualquer outro dia
útil). Sentava-me atrás com ele, enquanto ao lado do mo-
torista ia o agente da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa
do Estado) ou, mais tarde, da PIDE (Polícia Internacional de
Defesa do Estado) que garantia a segurança do presidente do
Conselho. Connosco passou a ir também a Maria Antónia, a
partir de certa idade, e muitas vezes éramos acompanhados
pela Tia Maria, que ouvia mais do que falava, ao contrário
do Senhor Doutor, sempre loquaz e a comentar tudo aquilo
que víamos.

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Nunca saíamos dos arredores da capital. O ponto de re-
ferência dos nossos passeios, mantidos sempre que possível
a um ritmo semanal, era o parque de Monsanto, que estava
em processo de reflorestação por iniciativa do eng. Duarte
Pacheco (presidente da Câmara Municipal de Lisboa e minis-
tro das Obras Públicas e Comunicações, com quem Salazar
manteve uma relação muito estreita), e por onde o Senhor
Doutor gostava de circular para observar o ritmo de cresci-
mento de árvores e arbustos. Ponto de paragem obrigatório
era o local onde foi construído o restaurante panorâmico de
Monsanto, para dali admirarmos a vista sobre Lisboa. Mas o
Senhor Doutor, aqui ou noutro local, jamais se atrevia a sair
do carro, pois tinha muito receio das pessoas. Assim era, por
exemplo, frente ao Jardim Zoológico, de que ele gostava de
contemplar o roseiral, mas onde nem sequer pedia ao moto-
rista que parasse.
Claro que, por vezes, tínhamos mesmo de sair da viatura,
como quando fomos visitar o jardim botânico da Ajuda. Ao
ver-nos parar à porta, o guarda não quis deixar-nos entrar
por já estar na hora de fecho, mas assim que reconheceu o
chefe do Governo mudou de atitude, e pudémos percorrer o
interior à-vontade.
Nas deambulações por Lisboa, Salazar era sempre muito
observador e crítico em relação ao que desfilava perante o
nosso olhar. Lamentava a falta de civismo dos transeuntes
ao deitarem papéis e outros dejetos para o chão, pois, para
ele, até um minúsculo bilhete de elétrico devia ser posto no
caixote do lixo. Entendia que a roupa pendurada nas fachadas
desfeava a cidade (além de atirar pingos de água aos passan-
tes) e prometia fazer legislação que obrigasse os estendais a
serem colocados apenas nas traseiras dos prédios de habi-

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tação. Dizia que era preciso preservar a zona ribeirinha da
construção em altura, para permitir que os lisboetas desfru-
tassem da vista do rio – que aliás ele admirava. E garantia ter
já dado diretivas para não se deixar construir nada em torno
da Torre de Belém.
Deslocávamo-nos num dos dois carros oficiais, ambos pre-
tos, que eu me habituara a ver na garagem de São Bento. Um
deles, a viatura principal, era um Chrysler Imperial à prova
de bala, adquirido por questões de segurança após o atentado
contra o Senhor Doutor, sendo o outro, creio, um Buick. No
seguimento do atentado, também surgiu ao seu serviço um
outro carro blindado, um Mercedes, importado diretamente
da Alemanha de Hitler. Lembro-me de o ter visto, também
preto (como era de regra), com vidros fumados de comando
elétrico, mas não cheguei a entrar nele. É que Salazar andou
um bocadinho no Mercedes e não gostou: era enorme, cheio
de automatismos complicados e dava muito nas vistas. Pô-
-lo logo de parte, e ficou remetido a outra garagem (tendo
mais tarde, tal como o Chrysler, aliás, ido parar ao Museu do
Caramulo, criado por iniciativa de Abel de Lacerda, filho do
fundador do sanatório local e, como contei, amigo dileto do
meu amo). Preferia as viaturas americanas, mais discretas e
manuseáveis. Aliás, seguindo essa orientação, uns anos de-
pois trocaria o Chrysler por um Cadillac.
Mais tarde, alargámos os nossos circuitos dominicais a
Cascais e – passando pela Boca do Inferno, o Cabo Raso,
o Guincho, a Praia das Maçãs e as Azenhas do Mar – a Sin-
tra, aqui com visita obrigatória ao Castelo dos Mouros e ao
Palácio da Pena. Já no verão de 1951, depois de visitarmos a
Pena e quando nos encontrávamos a dar a volta pelos jardins
exteriores, o Senhor Doutor foi identificado por um casal in-

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glês de meia-idade que o cumprimentou e até lhe tirou uma
fotografia. Como detestava ser reconhecido nestas ocasiões,
não ficou lá muito contente com o imprevisto encontro, e
acabou por abreviar de imediato a nossa partida do local. Cá
a Micas é que ficou com muita pena por não poder continuar
a ouvir a história da Pena – e a admirar os jardins.
No Guincho, parávamos no restaurante Muchaxo. Mui-
to apreciava ele, de olhar meditabundo, o mar revolto nos
seus tons de verde-azulado. Já no regresso, o Senhor Doutor
gostava de me apontar as residências dos Condes de Barce-
lona (então exilados no Estoril), do rei Humberto II de Itália
(que fixou residência em Cascais em 1946 após ter sido de-
posto por um referendo favorável à República) e também de
prósperas famílias portuguesas, como os Espírito Santo, os
duques de Palmela, etc. Visitámos o palácio dos condes de
Castro Guimarães, em Cascais, e nos jardins o meu cicerone
de luxo mostrou-me a pequena praia privativa e levou-me
a ver as sepulturas dos condes, explicando-me o desejo de
serem ali sepultados.
Em direção contrária, íamos algumas vezes, perto de Vila
Franca de Xira, a casa da duquesa de Palmela, ligada por ca-
samento a um membro da família Palha, grandes proprietá-
rios e ganadeiros ribatejanos. Regressávamos carregados de
flores, colhidas no seu extenso roseiral.
Também enfiávamos o carro no ferry-boat, em Lisboa, para
atravessar para a outra margem, indo até Palmela, a Serra da
Arrábida e Sesimbra, cuja frente de mar o meu companheiro
muito apreciava, mas onde não chegávamos a estacionar.
Como sempre, o Senhor Doutor mantinha o empenho em
explicar-me as coisas. Adorador da Arrábida – um dos locais
que ele mais gostava de visitar –, deu-me a conhecer as pe-

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quenas grutas espalhadas pela serra onde, no passado, os fra-
des do convento capuchinho lá instalado faziam penitência e
rezavam. Numa das nossas idas à Arrábida, o Senhor Dou-
tor resolveu interromper as lições para visitar o professor
Francisco Gentil, seu amigo pessoal, fundador do Instituto
Português de Oncologia. Este médico tinha uma magnífica
casa no Portinho, erguida sobre as rochas e voltada para o
mar, proporcionando-nos uma magnífica panorâmica natu-
ral. Recordo-me de, na tarde cálida, tomarmos os três uma
bebida fresca numa varanda debruçada sobre as águas.
Certo domingo, quando passávamos no Restelo, o Senhor
Doutor mandou o motorista parar em frente à Torre de Be-
lém e levou-me ao interior para me mostrar o monumento
e contar-me a sua história. Noutra ocasião, recomendou-me
uma visita à Mãe de Água, nas Amoreiras, conselho que hoje
ainda está por cumprir.

Entre São Bento e Santo António

Parte das férias de Verão eram passadas em São Bento, por-


que as mulheres da casa só iam para onde o Senhor Doutor ia
e quando ele ia. Então a Tia Maria acabava por dar-me a mim
e à Maria Antónia um pouco mais de atenção, levando-nos as
duas à praia de Caxias. A governanta levantava-se cedo para
nos preparar o almoço, depois descíamos a pé até Santos, com
o farnel embrulhado em jornais para se manter quente, tomá-
vamos o comboio das 9h20 e ficávamos em Caxias até cerca
das 16h, alugando um toldo ou uma barraca. A Maria Antónia
detestava comer sopa, e mesmo na praia a Tia Maria manti-
nha um conflito permanente com a afilhada por causa disso.

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Durante as nossas surtidas à beira-mar, após o almoço, e
por causa do racionamento imposto pela guerra, a Tia Maria
deixava-nos sozinhas na praia para ir comprar carvão, que
depois transportava no regresso a São Bento. Por portas tra-
vessas, a notícia deste gesto chegou aos ouvidos de um jor-
nalista de O Século, que veio a publicar na edição do matutino
de 15 de outubro de 1942 uma crónica a propósito, com o
fim de enaltecer o Senhor Doutor por recusar beneficiar de
privilégios a que aliás tinha direito. Não resisto a transcrever
esse texto, cujo recorte guardo desde a altura:

Croquis a Carvão

«Em muitas destas manhãs maravilhosas, na praia de


Caxias, uma senhora e duas meninas ocupavam normalmente
e pontualmente um toldo. Em nada se faziam notar. Nenhum
sinal de exceção as marcava.
Um belo dia começou a faltar carvão em Lisboa e a senhora,
aproveitando aquelas horas da manhã, deixava as meninas no
toldo e ia, a pé, a Paço de Arcos, comprar um pouco de carvão.
Depois, à hora do regresso, as meninas sacudiam as meias,
compunham-se e regressavam todas tranquilamente a Lisboa.
Em geral, o grupo saía em Santos e tomava, a pé, a avenida
Wilson... [atual D. Carlos I].
Só aqui começa este croquis a animar-se. É que o grupo da
senhora que comprara o carvão e das meninas da praia entra-
va em casa do sr. Presidente do Conselho... Era uma sua go-
vernante [sic] a senhora, e era a «Micas» – aquela menina
que O Século Ilustrado surpreendeu um dia, numa entrevista
sensacional com o sr. dr. Oliveira Salazar, a aprender com o

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mestre das finanças e dos números as casas da tabuada – a tal
menina da praia de Caxias!
Serve este incidente verídico e discreto apenas para marcar
duas coisas. Primeiro, que o próprio Presidente do Conselho
não quer para si exceções, aliás inteiramente legítimas, e, por-
tanto, a sua governante vai, a pé, até Paço de Arcos comprar
uns quilos de carvão. Segundo, que a simplicidade extraordiná-
ria e a modéstia inacreditável da vida deste homem, que é hoje
uma figura mundial, comprazem-se especialmente em não mu-
dar os seus hábitos, em não alterar, em nada, a sua sóbria e
calma mediania.
Espantoso e inacreditável exemplo é este! Exemplo escondi-
do, misterioso, obscuro, não provocado, sem esperar publicidade
nem indiscrição do repórter. É que tudo isto, para o espírito da-
quela casa de beirão simples, é tudo o que há de mais natural!»

A partir de certa altura, na época do calor, o palacete em


peso rumava ao Forte de Santo António, em São João do Es-
toril, onde o Senhor Doutor passava umas semanas de des-
canso, período que era aproveitado para se executar benfei-
torias em São Bento. Apesar do aspeto grandioso do forte,
pertencente à antiga rede de proteção militar da entrada ma-
rítima de Lisboa, a sua área habitacional era pequena – mas
aconchegante. O pequeno-almoço tomava-se no escritório
do piso principal, e as grandes refeições, às 14h e às 21h, ao
mesmo nível, num empedrado situado sob uma nave central
aberta para o mar, ouvindo o bater das ondas em baixo, de
costas voltadas para uma pequena capela onde se rezavam as
missas da praxe, sempre conduzidas por Carneiro de Mes-
quita. Havia duas mesas separadas: o Senhor Doutor sozinho
numa delas, mais próxima da muralha que dava para o mar,

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junto à sala do operador de telefone, e nós e a Tia Maria na
outra, mais recuada. É claro que o diálogo logo se estabele-
cia de mesa para mesa. Se chovesse, as refeições eram en-
tão transferidas para uma sala de jantar por cima da cozinha,
a um nível superior, de onde se abarcava uma vista espetacu-
lar sobre a costa de Cascais.
Na medida do possível, as rotinas de São Bento manti-
nham-se em São João do Estoril. Até mesmo os circuitos
de domingo, tendo como favorita a volta ao Guincho – e a
observação, no regresso, das residências ilustres de Cascais.
Assim era também com uma missão que me foi cometida du-
rante anos: cuidar das mãos do Senhor Doutor – na verdade,
tratava-se apenas de lhe cortar e limar as unhas, já que ele
sempre dispensou outros trabalhos de manicura. Fazia-o re-
ligiosamente aos domingos, de 15 em 15 dias, logo a seguir à
missa, depois de Carneiro de Mesquita partir, quer estivésse-
mos num sítio ou noutro.
Quando o tempo o permitia, a Tia Maria mandava colocar
cadeiras num terraço sobre-elevado do forte, e ali passáva-
mos longos períodos após o almoço, vendo evoluir os gol-
finhos que entravam na barra do Tejo em grandes grupos,
ou serões de plácido convívio ao luar de agosto, observan-
do a Lua espelhada no oceano. Conversámos de tudo nessas
noites maravilhosas. Era a época das estrelas cadentes, cuja
aparição servia de pretexto para o Senhor Doutor me minis-
trar mais uma lição de astronomia. E aquele quadro noturno
motivou também o provérbio que ele quis ensinar-me:
– Luar de janeiro não tem parceiro, lá virá o de agosto que
lhe dá pelo rosto.

O capítulo 2 continua no próximo volume.

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Continuação do capítulo 2

Vindimas no Vimieiro

Entrados no mês de setembro, chegava então o momento


de partirmos para o Vimieiro. O Senhor Doutor nunca fa-
lhava a vindima nas suas terras, sobretudo na Quinta das La-
deiras (a cerca de um quilómetro da casa de habitação que já
era dos pais), onde ele tinha o grosso da produção vinhateira.
Havia muito a fazer antes da colheita das uvas. Os prepa-
rativos mais importantes consistiam na limpeza e preparação
dos tonéis e na lavagem das garrafas para receberem o vinho
novo. Estas eram de um modelo especial mandado repro-
duzir de propósito pelo dr. Bissaya Barreto, em centenas de
exemplares, como oferta ao seu amigo. Não levavam rótulo
colado, e a identificação fazia-se pela representação de um ca-
cho de uvas e pelos dizeres «Quinta das Ladeiras/Santa Comba
Dão/Portugal», tudo em relevo no próprio vidro. As garrafas
eram reaproveitadas depois de usadas, mas as operações para
a sua limpeza, nas quais eu participava, tinham enorme com-
plexidade e delicadeza. Era preciso introduzir em cada uma
um pouco de areia grossa do rio, e depois chocalhar para que,
com a fricção, desaparecesse todo o depósito que se agarrava
ao interior, sobretudo no fundo. A seguir, as garrafas eram
passadas em vinho, escorridas e por fim enchidas com a nova
produção. Para mim não era fácil, porque as operações de-
corriam num tanque e havia água por todo o lado. O Senhor
Doutor não participava na lavagem mas dirigia-a e ensinava
como fazer. Exigente como era, acabava sempre por repro-
var uma ou outra garrafa na vistoria final.

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A minha aprendizagem escolar, no entanto, não ia para
férias no Vimieiro. O Senhor Doutor tinha por costume
escrever-me num bloco de apontamentos o enunciado de
enormes contas de somar, diminuir, multiplicar e dividir, que
eu devia fazer com as respetivas provas reais. Desempenhava
a espinhosa tarefa, em regra, à tarde, sentada num banco de
granito que fazia parte da eira, sob uma figueira. Enquanto
fazia e refazia as contas, ia comendo figos que colhia da pró-
pria árvore. Como a eira estava voltada para a estrada, lá se
encontrando em permanência uns cinco ou seis agentes da
PVDE, que, revezando-se por turnos, garantiam a segurança
ao chefe do Governo, por vezes eles acudiam-me quando os
meus números não batiam certo. Claro está que desta provi-
dencial ajuda nunca eu dei conta ao Senhor Doutor.
O trajeto entre a capital e Santa Comba Dão, com a estrada
a serpentear pelo interior das povoações, também era apro-
veitado por Salazar para me ministrar as suas habituais lições
de História. Alcobaça, Batalha, Leiria e Coimbra tornaram-se
pontos de paragem obrigatória. O Senhor Doutor mandava
o motorista estacionar junto aos monumentos e lá íamos nós
em visita guiada por ele. No Mosteiro de Alcobaça, fez ques-
tão de me mostrar como a cozinha era atravessada por um
ribeiro (um braço do rio Alcoa) de onde os monges retiravam
o peixe fresco para as suas refeições. No Mosteiro da Batalha,
o militar de sentinela ao túmulo do Soldado Desconhecido fi-
cou tão surpreendido com a chegada inesperada do presidente
do Conselho que nem sabia que atitude devia tomar.
Na verdade, ele aparecia de surpresa, sem se fazer anun-
ciar, e nem gostava que se soubesse de antemão das suas vi-
sitas. De tal modo que houve quem o alcunhasse «o Esteves»
– «já esteve», «já esteve», «já esteve».

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Também uma vez no Convento de Mafra, quando ele en-
tendeu explicar-me o aparato farmacêutico lá instalado pelos
frades, deu ordens terminantes ao motorista e ao agente da
PIDE para que, com a sua presença, ninguém se pusesse a
fazer soar os carrilhões, então acabados de sofrer uma impor-
tante reparação que os colocara de novo afinados.
Com idêntica discrição, seu apanágio natural, parámos al-
gumas vezes em Fátima para observar o andamento das obras
da basílica. Mas ele desabafava comigo a sua aversão àquela
arquitetura, contrastando-a com a do santuário de Lourdes,
que visitara com o amigo Cerejeira em peregrinação, nos
anos 1920, e que muito elogiava.

Encontro com a ex-namorada

Coimbra era um caso especial. Não por acaso, como será


fácil de concluir. Era uma espécie de paragem obrigatória no
caminho para Santa Comba Dão, e aos poucos eu ia conhe-
cendo um pouco mais da cidade pela mão do antigo aluno e
lente da universidade local.
Recordo-me da igreja de Santa Cruz, da Sé, do Penedo da
Saudade, do Portugal dos Pequenitos (obra do amigo Bissaya
Barreto) e até da Casa dos Grilos (como Salazar lhe chamava,
e não República dos Grilos), local onde fez questão de me
explicar como viveu juntamente com o futuro cardeal Cere-
jeira. Também parávamos no Jardim Botânico, para admirar
as árvores centenárias, os fetos e os restantes arbustos. Junto
aos Arcos do Jardim, situava-se a residência do dr. Bissaya
Barreto, uma casa antiga e muito bem decorada, e uma vez
por outra o Senhor Doutor aí fazia uma breve pausa para

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dois dedos de conversa sobre assuntos políticos, a que eu era
indiferente e a que não assistia, chegando até a ficar à espera
no carro.
O interior do Jardim Botânico é ornamentado por uma sé-
rie de capelas representando cenas da Via Sacra e terminan-
do num sítio chamado Cruz Alta. Nunca fizemos a pé este
trajeto integral. O Senhor Doutor preferia ir de carro logo
para a Cruz Alta, e dali seguíamos para o Vimieiro sem mais
interrupções.
Antes de chegarmos à terra de Salazar, numa zona de ex-
tensos pinhais entre Tábua e Mortágua, fazia-me confusão
a passagem por um troço da estrada de que uma das faixas
estava asfaltada e a outra, em sentido contrário, se encon-
trava revestida de paralepídedos. Um dia, resolvi perguntar
ao meu companheiro se ele sabia a razão para a colocação de
alcatrão de um lado e de empedrado do outro. E veio a expli-
cação do «grande mestre das finanças», a quem muita gente
se habituara a chamar «forreta»: a proposta havia surgido
dele próprio, e fora motivada por ver que os carros de bois,
ao regressarem das matas carregados de toros de pinheiros,
faziam estragos consideráveis no alcatrão. Por isso o granito,
um piso mais dispendioso, só havia sido posto na metade da
via que suportava a carga. Assim se poupava dinheiro.
Uma vez na sua aldeia, seria lógico que Salazar também
sentisse vontade de visitar Viseu, que era perto e onde dei-
xara igualmente raízes (pois aí cumprira o seu passado de se-
minarista). Mas é curioso que não íamos lá muitas vezes. Re-
cordo-me porém de o acompanhar numa visita a casa da D.
Felismina de Oliveira, uma professora primária promovida a
inspetora desse ramo do ensino, que deve ter sido a sua pri-
meira namorada. Retenho a imagem uma senhora mais alta

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do que a média, que se apresentava sempre vestida de preto e
com uma pose grave e austera. Vivia numa casa antiga num
sítio também antigo, no cimo de uma escadaria muito íngre-
me. A visita foi breve, e quando saiu o Senhor Doutor trazia
uns papéis consigo (ela era uma zelosa apoiante do regime, e
ouvi mesmo contar que aproveitava o seu cargo de inspetora
do ensino primário para fazer denúncias ao chefe do Estado
Novo acerca de pessoas que seriam contrárias à situação, mas
desconheço o que na realidade estava naqueles documentos).
Percebi que havia entre ambos uma relação de amizade, nada
mais. Conheceram-se estava Salazar ainda no seminário de
Viseu, depois de a sua irmã mais velha, Marta, se hospedar
em casa dos pais de Felismina quando foi estudar para a cida-
de beirã. Se em tempos terão namorado, já nada disso subsis-
tia, se bem que eu visse com frequência cartas dela enviadas
para São Bento. Só que essa correspondência consistia so-
bretudo em informações sobre o ambiente político-social na
cidade e de pedidos de pessoas que falavam com a professo-
ra, presumivelmente sabendo da proximidade que mantinha
com Salazar, e que ela encaminhava para a sua antiga paixão.
Ainda sobrou tempo em Viseu para o Senhor Doutor me
levar a visitar a Sé e o Museu Grão Vasco. De resto, íamos
ver outro grande amigo dele, um médico de apelido Quevedo
Crespo, um pouco mais novo, que possuía nos arredores uma
casa solarenga com um enorme jardim repleto de roseiras e
cameleiras. O médico vivia mais no Porto, onde trabalhava,
mas a mulher, D. Virgínia, estava sempre por Viseu. Tinham
uma divisão adaptada a capela, onde o Senhor Doutor e eu
costumávamos assistir à missa por ocasião da Páscoa.
O ritual do beijo na cruz, porém, tinha sempre lugar na
antiga casa dos pais de Salazar, no Vimieiro, onde viviam as

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suas três irmãs solteiras, Elisa, Leopoldina e Marta (a única
que tinha uma ocupação profissional – era professora primá-
ria). A quarta irmã, Laura, sendo casada, não integrava este
grupo.
Embora, como já disse, o Senhor Doutor fosse parco em
prendas (tanto para mim como para os outros), fiquei muito
surpreendida, uma vez no Vimieiro, quando ele, ao regressar
da sua visita habitual aos amigos Lacerda, no Caramulo, me
ofereceu um vasto conjunto de peças de cozinha em minia-
tura. Ao passar pela freguesia de Molelos, entre Tondela e
o Caramulo, reparara que havia ali feira nesse dia, e então
mandou parar o carro e pediu ao agente da segurança que
fosse comprar o brinquedo para mim, feito em barro preto –
uma especialidade do artesanato local. A lembrança, à qual eu
dava um grande significado, acompanhou-me durante mui-
tos anos, enquanto as peças se iam partindo e perdendo aos
poucos.

A época das flores

Enfim, de uma certa maneira, não me posso queixar da


falta de animação nas minhas férias. Ainda tive a sorte, como
complemento, de ser convidada por vários dos visitantes da
residência de São Bento. O comendador Nogueira da Silva
e a sua mulher, Maria Eugénia, que não tiveram filhos, ofe-
receram-me, como a Maria Antónia, várias estadas no seu
palacete da avenida central de Braga, na companhia da sua
sobrinha e minha amiga, Maria José Lobo Palmeira. Do mes-
mo modo, quando em Lisboa, ia brincar com os filhos dos
Mexia, que habitavam na Rua do Salitre.

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Também os novos amigos do Senhor Doutor, já feitos em
São Bento, me acolhiam. Recordo com especial saudade o
casal António e Maria Augusta Duarte Martins, igualmen-
te sem filhos, que me proporcionaram algumas pequenas
temporadas estivais na sua vivenda da Rua do Algarve, no
Estoril, com a sobrinha Taís. O homem, pedreiro de Arga-
nil, emigrara para o Brasil, onde fizera considerável fortu-
na como construtor civil e conhecera a sua futura mulher,
oriunda de Trás-os-Montes. A relação de ambos com Salazar
começou depois do seu regresso a Portugal, através do regu-
lar envio de ramos de flores para a residência de São Bento
em datas especiais, sobretudo a 27 ou 28 de abril, quando
se comemorava, respetivamente, o dia da posse de Salazar
como ministro das Finanças e, como já escrevi, o seu ani-
versário natalício. Os buquês, constituídos quase sempre por
cravos, traziam apenas o cartão da florista, mantendo-se o
mistério sobre quem os havia remetido. Ao fim de várias ten-
tativas, lá se identificou o casal anónimo autor da gentileza
(que era sobretudo iniciativa da mulher). O Senhor Doutor
chamou-os para lhes agradecer, e a partir daí passaram a ser
visita constante do palacete. (A propósito das efemérides de
abril, mas também do Natal, era costume nessas ocasiões eu
levar para junto de Salazar, no seu gabinete de trabalho, a ca-
deirinha das minhas lições particulares e ditar-lhe os nomes
e moradas de muitos dos que lhe enviavam cartões, para ele
ir preenchendo os sobrescritos onde fazia questão de respon-
der pessoalmente).
De resto, em relação à Bernardo Lima, não havia em São
Bento muitas caras novas como visitas regulares, mas entre
elas destaco o banqueiro Ricardo Espírito Santo, grande ami-
go e admirador do chefe do Governo, figura alta, bonita e ele-

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gante, que me encantou com a oferta de uma linda boneca e
uma caixa de bombons, e também o casal Soares da Fonseca.
Ele, José Soares da Fonseca, que foi o primeiro ministro das
Corporações de Salazar, era casado com Maria Teresa Serras
e Silva, de uma família coimbrã da qual o Senhor Doutor era
muito amigo, e creio que o relacionamento se fez por essa
via. Moravam mesmo ao lado de São Bento, na Calçada da
Estrela, e eu também costumava ir brincar com os seus filhos.
É sabido que, a partir do momento em que se espalhou que
Salazar era amante de flores, o seu colorido era coisa que não
faltava no palacete naqueles dias comemorativos de finais de
abril. A casa ficava de tal forma submergida pela oferta de
tantos buquês que o cheiro acabava por se tornar enjoativo.
Tínhamos de andar – eu, uma criada e o sr. Furtado – a dis-
tribuir os ramos pelas igrejas das redondezas.
Razão para flores houve numa certa manhã de maio de
1945, em que me atirou a Tia Maria:
– Olha que acabou a guerra. Vai dar uma palavrinha ao
Senhor Doutor.
Salazar estava na casa de banho, a barbear-se. Cheguei-me
junto a ele a abracei-o, como sinal do meu reconhecimento
por nos ter livrado do morticínio. Não me lembro das pala-
vras que trocámos. Mas apreendi a nossa sintonia emocional,
a sua intensa comoção, os seus olhos húmidos pelas lágrimas
que se escusavam a escorrer.

A uma guerra segue-se outra. Mas, se do conflito interno espa-


nhol Maria da Conceição não guarda memória, já a Segunda Guer-
ra Mundial, que a apanha em transição para a adolescência, lhe

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dirá algo mais. Quanto mais não seja pelas carências de géneros,
que também se sentem na residência de um Salazar empenhado
em não habituar o seu pessoal a privilégios, e pelos exercícios de
defesa civil, em que todos, sem exceção, devem participar.
De resto, o presidente do Conselho esforça-se quanto pode
por não perturbar a rotina do lar. É o «viver habitualmente», prin-
cípio que ele preconiza para os portugueses (em oposição ao
nietzschiano «viver perigosamente» proclamado por Mussolini)
e que procura aplicar também em casa. Acima de tudo, que o
caos europeu não contamine Portugal, como expõe na Assem-
bleia Nacional logo após rebentar a guerra, em outubro de 1939:
«Impõe-se ao espírito certa dose de otimismo e, se não de ale-
gria, ao menos de confiança, para que a vida individual e coletiva
se afaste o menos possível da normalidade habitual.»
Salazar não procura sequer fazer proselitismo junto das mu-
lheres com quem habita. A pupila não guarda memória de uma
conversa política substancial que tenha mantido com ele, nes-
te período ou mais tarde. Não discutir política, claro, é a melhor
maneira de aceitar o regime como uma evidência, um dogma –
a política fica pois à porta, como aliás deve ficar alheada das
preocupações dos portugueses. Discutir política – viu-se na I Re-
pública – seria o passo inicial para a perdição, e a última coisa que
o chefe do Estado Novo deseja é envolver a sua protegida nessa
viciosa vertigem.
Até a fazer a propaganda do seu regime é parco junto de Maria
da Conceição: fica-se por um discurso nacionalista, uma neces-
sidade de defender a integridade do império (porque ele se con-
funde com a nação), um empenho numa lenta mas segura evolu-
ção económica, uma apologia da ordem, uma preocupação com
um futuro que adivinha demolidor para a estabilidade do país –
a qual ele preza acima de qualquer outra coisa. O que lhe interes-
sa impregnar na jovem são sobretudo valores morais, equipara-
dos à ordem natural das coisas: amor à pátria, fé em Deus e na
religião (embora ele próprio, segundo observa a menina, esteja

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dispensado dos rituais católicos pela autoridade eclesiástica),
defesa da família e das suas virtudes.
O conflito mundial, que Salazar lutará por todas as formas para
evitar envolver (e engolir) Portugal, eclode com o chefe do Go-
verno acabado de estrear a sua residência oficial, na companhia
da eterna governanta e de Micas. A mudança, apesar de repre-
sentar uma profunda alteração no cenário quotidiano dos três,
foi operada de modo a causar o mínimo de perturbação nas suas
vidas. Mas a menina apercebe-se do crescimento do espaço, do
aumento do conforto e da melhoria dos meios. A paulatina chega-
da de novos eletrodomésticos é novidade de monta, a causar um
sulco na sua memória de criança espantada com os aparelhos.
As novas instalações de São Bento são também a oportuni-
dade para D. Maria expandir os seus negócios de aviário (tendo
entre os destinatários um Calouste Gulbenkian gourmet) e até
mesmo reservar uma courela onde instala a sua horta. É a aldeia
na corte – que será também a corte na aldeia quando Salazar e
companhia vão até ao Vimieiro para as vindimas, uma viagem tão
infalível como a queda das folhas no Outono.

•••
Passam cinco dias sobre a deflagração da guerra, com a inva-
são da Polónia pela Alemanha nazi, quando o presidente do Con-
selho faz uma primeira referência na sua agenda às «pupilas do
Senhor Doutor» – acabava Maria Antónia de se juntar a Micas em
São Bento. Escreverá ele a 6 de setembro de 1939, a seguir à ha-
bitual anotação sobre a leitura dos matutinos, pelas 8h30: «A Ma-
ria de Jesus partiu com as pequenas para o Caramulo.» Provável
convite da família Lacerda para uma estada na serra, antes de
elas se juntarem a Salazar mais perto do fim do mês, para as suas
sagradas vindimas. Na verdade, apesar das atenções que a guer-
ra lhe mobiliza, ele irá ao Caramulo e a Santa Comba Dão por dois
dias a 24 de setembro e de novo, a partir de 6 de outubro, por
mais de uma semana.

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A partir de então, as indicações sobre «as pequenas» serão
frequentes na agenda do chefe do Governo. Não deixará de re-
cordar por exemplo, a 26 de maio de 1940, que nesse domingo «as
pequenas foram fazer a 1ª comunhão».
Mas o que o vai preocupar é a finalização da 4ª classe que para
Micas se avizinha, depois de, como ela atrás testemunhou, a ter
obrigado a repetir o ano para consolidar conhecimentos. A es-
cassos dias da prova obrigatória, Salazar referencia na agenda
ter acabado de dar uma «lição à Micas». É num domingo, 20 de
julho de 1941, pelas 18h. Quatro dias depois, anota triunfante no
diário: «A Micas fez exame da 4ª classe.»
A carreira escolar de Maria da Conceição passa assim a ser
citada na agenda do governante ao lado da menção às mais tor-
mentosas questões do mundo, a reuniões com embaixadores
das potências beligerantes, a saudações do Führer a Salazar, à
«leitura de alguns capítulo do Mein Kampf», à invasão da União So-
viética pela Alemanha, ao armistício francês e à ação do general
Charles De Gaulle, à proteção dos navios mercantes no Atlântico,
às expetativas dos EUA e a hipótese de os americanos ocuparem
os Açores, ao envio de tropas expedicionárias portuguesas para
este arquipélago e o de Cabo Verde, à atitude de Franco, ao racio-
namento de combustíveis e outros produtos de primeira neces-
sidade, até à hipótese de criação de uma «Sociedade das Nações
Europeias». E o empenho de Salazar no sucesso académico de
Micas continuará mesmo depois de ela ter terminado o que era
então o ensino básico, com a anotação de novas lições que lhe dá
aos domingos: a 2 e 9 de novembro de 1941 e a 15 de março do ano
seguinte (neste caso em conjunto com Maria Antónia). Dois anos
depois, volta a mencioná-las na agenda, mas para indicar, a 30 de
julho de 1944 (sempre num domingo), ter no regresso do Vimieiro
para Lisboa passado pela Freixiosa, a terra da governanta. «Trou-
xe as pequenas, chegada às 21h». Uma viagem de seis horas.
É com a aproximação do fim da guerra que começam os tran-
quilos passeios dominicais com Micas: «Ao Estoril, a casa do

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com o seu quinhão. Quando as pressões britânicas obrigam o
chefe do Governo português a suspender os fornecimentos ao
III Reich, a sua atitude é muito simples: nem uma nem outra das
partes levam mais um grama (pelo menos pelas vias oficiais, que
ninguém para por decreto o contrabando).
É óbvio que a carestia causada pela economia de guerra cria
uma vida difícil à população. Até alastra uma onda de greves
quando se percebe que a vitória dos Aliados passa a ser apenas
uma questão de tempo. Mas socialmente não há outra saída, e
politicamente tanto os adeptos do regime como a oposição sa-
bem que, enquanto durar a guerra, não existe alternativa a Sala-
zar.
No fim, a aliança com a Inglaterra acaba por se impor na ce-
dência da Base das Lajes às forças de Sua Majestade, mas então
já se sabe para onde penderá o pêndulo da guerra – e de qual-
quer forma, para não ferir suscetibilidades, as negociações com
Londres mantêm-se secretas (assim como o desembarque ame-
ricano nos Açores, meses mais tarde, contra a vontade inicial de
Salazar, que tem porém de se vergar ao facto consumado). Ainda
em nome do mesmo jogo neutral (que não nulo), o presidente do
Conselho autoriza a colocação de bandeiras a meia-haste quan-
do é conhecida a morte de Hitler, escassos dias antes da rendi-
ção incondicional da Alemanha.
De tudo isto, o eco que chega até Micas, semanas após ela
cumprir os 16 anos, é apenas que a guerra acabou – no fim de
contas, a notícia mais importante, aquela por que todos há mui-
to ansiavam. Motivo para a jovem agradecer ao tutor. Ela e mui-
tos outros portugueses. O essencial da política salazarista para
estes tempos apocalíticos fora garantido: livrar Portugal de tão
arrasador confronto.
Salazar vive o apogeu da sua popularidade, mas também o iní-
cio do seu longo declínio. Extática com o triunfo das democracias
sobre a tirania, que na Europa ocidental coloca outra vez na moda
o liberalismo político, a opinião pública espera mais do chefe do

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Estado Novo: a transição ordeira para um regime de liberdades.
Intuindo, como raros, o sentimento dominante, Salazar promete
um ato eleitoral para deputados «absolutamente livre, como na
livre Inglaterra»: «Porque somos de opinião de que não se pode
governar contra a vontade de um povo, este dirá se deve mudar-
-se de sistema.»
E não é que a oposição acreditou? E por que não? Com tudo o
que pudesse ser-lhe assacado, Salazar fora até aí um homem de
palavra, mesmo no eufemismo da «meia dúzia de safanões a tem-
po» com que justificara a tortura praticada nas prisões políticas.
E agora até a censura à imprensa é aligeirada e se respira uma
atmosfera de livre expressão do pensamento (o que fará parte do
jogo de aparências que o ditador, sem nunca perder o controlo
dos acontecimentos, sempre jogou com a oposição).
Mas os grupos anti-salazaristas, unidos para efeitos eleitorais,
caem no logro de entregar antecipadamente às autoridades a lis-
ta dos subscritores das suas candidaturas, que de imediato co-
meçam a ser interrogados um a um pela polícia. Perante a intimi-
dação, a oposição invocará ausência de condições para recusar
participar nesta eleição «livre» – como quase sempre acontece-
rá, afinal, enquanto Salazar estiver no poder.
No fim de contas, o desfecho da história estava já encerrado
noutra das fábulas narradas pelo «Senhor Doutor» a Micas na sua
infância: enquanto os adversários apostavam, de água na boca,
no escrutínio em que haveriam de participar, já o astuto lobo Sa-
lazar havia devorado todo o suculento borrego que eles julgavam
poder desenterrar.

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Capítulo 3

Sentir de mulher

Q ue muitas mulheres faziam a corte ao Senhor Doutor,


é sabido. Ele reunia todas as condições que desperta-
vam os apetites femininos. Para além da elegante figura, era
sobretudo pela sua encantadora capacidade de bom conver-
sador, pela gentileza e a afabilidade, que eu reparava que as
mulheres à sua volta ficavam pelo beicinho. Mas como en-
carava Salazar o assédio? A mim pareceu-me sempre menos
empenhado em alimentar as relações do que em arrefecê-las
aos poucos, até morrerem de morte natural.
Foi pelo menos essa a minha perceção a partir do momen-
to em que atingi a idade para elaborar tal género de aprecia-
ções. Por alturas do fim da Segunda Guerra Mundial, eu era
já uma mulherzinha, com outra sensibilidade para as coisas
da vida. E mais atenta ao que me rodeava.
O que eu notava é que o Senhor Doutor tinha uma prática
muito displicente com a correspondência recebida das suas
apaixonadas. Abria as cartas, li-as e deixava-as para ali, à mão
de semear. Quando se vive rodeado de mulheres, cujo desti-
no, de uma forma ou outra, depende do do senhor da casa, de
que se está à espera? É claro que tanto eu como a Tia Maria
estávamos atentas aos mais pequenos sinais que indiciassem
um princípio de afinidade eletiva com uma mulher de fora,

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para qual olhávamos como uma intrusa ameaçando a estabi-
lidade da nossa existência. Não admira que, sendo eu já espi-
gadota, tivesse começado a espreitar as cartas amorosas que
ele deixava pela residência como um rasto de confidências
subversivas – e que eram para mim uma tentação irresistível.
Recordo-me, por exemplo, daquela namorada que prati-
cava astrologia. Não lhe fixei o nome, mas verifiquei, ao ler
as suas cartas, algo que me ficou gravado: ela enviava os seus
frequentes horóscopos ao Senhor Doutor, tentando prever
o que lhe ia acontecer e avisá-lo dos perigos que tinha pela
frente. Não creio porém que ele desse importância ao caso
ou que levasse a sério os presságios como guia de compor-
tamento, apesar de eu já ter lido precisamente o contrário.
Outra das suas queridas (ou talvez a mesma, não sei) estava
alojada no Hotel Borges, em plena Rua Garrett, como per-
cebi num dos nossos périplos dominicais. O Senhor Doutor
mandou o motorista encostar o carro ao passeio, frente ao
hotel (então um dos principais da capital), e veio ela de lá de
dentro, muito sorridente e jovial, entregar-lhe uma carta. Ele
abriu a porta mas sem se dar ao trabalho de sair. Depois de
trocadas umas palavras entre ambos, a senhora despediu-se e
partimos. Fez-me confusão aquela cena, sobretudo por causa
da sua visibilidade, a meio de uma tarde de domingo em ple-
no Chiado, onde então ia passear toda a Lisboa elegante. Mas
não me pareceu que isso fosse preocupação dele.
A grande paixão dos anos 1940, todavia, estava reserva-
da para a viúva Carolina Maria José Correia de Sá, filha do
visconde de Asseca e tida por viscondessa (embora não fos-
se herdeira do título, sendo na verdade condessa de Anadia
por via do marido, Miguel de Sá Pais do Amaral, falecido
em 1929). Tudo começou quando Salazar convidou outra

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viúva, D. Amélia de Orleães e Bragança, a última rainha de
Portugal, a abandonar por umas semanas a sua terra natal
em França para visitar o nosso país, aonde não vinha desde
que a queda da monarquia, em 1910, a expulsara a ela e ao
filho, o rei D. Manuel II. Aconteceu entre maio e julho de
1945, poucos dias após o fim da guerra na Europa. O Senhor
Doutor promoveu para a antiga esposa de D. Carlos um chá
na pérgola do parque de São Bento, e eu aproveitei para ir
cumprimentar a nossa rainha, que me impressionou pela sua
enorme altura e pelo luto carregado assumido desde que, a
1 de fevereiro de 1908, no Terreiro do Paço, lhe mataram o
marido e o filho mais velho, o príncipe herdeiro D. Luís Fi-
lipe. Com D. Amélia estavam várias senhoras da sua geração,
que o Senhor Doutor também convidara para São Bento por
no passado terem privado com ela. E ainda algumas outras
monárquicas mais jovens. Entre estas, Carolina, cuja famí-
lia acompanhara em Londres D. Manuel II, aí exilado com
a mãe após a insurreição republicana o ter apeado do trono
(e onde morreria, em 1932). A própria filha do visconde de
Asseca vivera a juventude na capital britânica.
Pois desse encontro entre o Senhor Doutor e Carolina
(13 anos mais nova) nasceu uma profunda atração recípro-
ca. Chegou mesmo a correr o boato de um matrimónio imi-
nente, o que colocou a Tia Maria em estado de alerta e de
profunda angústia, calculando a sua possível destituição do
importante cargo que era ser a mulher mais próxima e ínti-
ma de Salazar (mas não amante, estatuto que, de tudo aquilo
a que assisti, tenho a certeza de ela nunca ter tido, apesar de
muitos o insinuarem). No meio da sua compreensível aflição,
ela acabou por me pedir que eu aproveitasse as despedidas
noturnas no meu quarto, que ainda prosseguiam, para im-

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plorar ao Senhor Doutor que não se casasse – e cá a Micas,
obediente à concunhada, procedeu em conformidade. O meu
tutor apenas me deu uma resposta tão fugaz como seca:
– Deixa lá isso, dorme, dorme.
Guardei a impressão de que ele não apreciara nada a mi-
nha diligência. E a verdade é que, à semelhança das outras,
também as cartas enviadas por Carolina, metidas pelo desti-
natário numa gaveta sem chave, estavam ao alcance da nos-
sa curiosidade feminina. De resto a sua caligrafia, com uma
letra grande, dava nas vistas. Percebia-se que estava perdida
de amores por ele. A relação foi alimentada por várias visitas
que ela lhe fez em São Bento, sendo sempre recebida no es-
critório. Só que, também como com as anteriores, pareceu-
-me que ele foi deixando dissolver o estado de paixão – que
tais cartas, a partir de certo momento, passaram a esbarrar
num muro de indiferença. Como o Senhor Doutor nunca
passava noites fora, duvido mesmo de que tenha havido in-
timidade física.
Mais tarde, cheguei a perguntar-lhe por que razão ele sem-
pre rejeitou o matrimónio. Invocou a sua dedicação às coisas
do Estado para me explicar que não poderia vir a ter preo-
cupações com uma eventual família. Noutra conversa entre
nós, admitiu que gostaria de se ter casado, mas adiantou que
as suas ocupações governamentais acabaram por falar mais
alto.

Uma primeira-dama de ferro

Tudo resumido, a Tia Maria continuou a reinar em São


Bento como uma primeira-dama de ferro. Nunca abrandou

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o grau de exigência com ninguém: estava-lhe na massa do
sangue. Deitava o olho a tudo e criticava à esquerda e à direi-
ta, mesmo perante o Senhor Doutor. Certo dia, por motivos
que se me varreram da memória, perdeu a cabeça comigo,
e rematou o sermão com uma frase terrível para a minha
existência:
– Qualquer dia, não entras mais nesta casa.
A ameaça desabou sobre mim como uma bomba. Na altura
eu tinha acabado de abandonar os estudos e já começara a
trabalhar. A perspetiva de a porta de São Bento se me fechar
para sempre deixou-me desorientada. Não me fui abaixo,
mas assim que surgiu a oportunidade fui-me queixar ao Se-
nhor Doutor, que estava a trabalhar no escritório. Ele acari-
ciou-me e disse-me:
– Enquanto eu aqui estiver, virás sempre a esta casa, não
te aflijas.
A Tia Maria assumia atitudes algo erráticas: havia nela
períodos de boa disposição, mas nos maus momentos (que
eram muitos) ai de quem incorresse nas suas fúrias. O pró-
prio Senhor Doutor tinha a consciência de tais excessos,
e uma vez chegou a constatar perante mim isto (que nas pa-
lavras dele constituía uma crítica acerba):
– A menina Maria às vezes é azeda.
Ou ainda, após algum destempero da governanta:
– A menina Maria hoje não está nos seus dias.
Numa outra ocasião, teria eu uns 18 anos, ao jantar na copa
com a Tia Maria, como era hábito, surgiu o Senhor Doutor,
coisa que fazia com regularidade. Acontece que eu tinha aca-
bado de apanhar dela um dos mais violentos raspanetes de
sempre (e não foram poucos), estando a soluçar sob o efeito
emocional da reprimenda. Ele quis logo saber o que se pas-

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105
sava, e, depois das explicações da governanta (que também já
não recordo), apenas sentenciou, de rosto severo:
– Ó Maria, a hora da refeição é sagrada!
Ela ficou um bocadinho sentida, como acontecia nos mo-
mentos de divergência com o patrão, e até lhe passar o amuo
a minha vontade era de desaparecer dali para fora. Quanto a
ele, nunca o vi tão zangado como naquele momento. Aliás,
ao contrário da Tia Maria, o Senhor Doutor nunca levantava
a voz, era uma pessoa calma, fleumática, que não expressava
na vida quotidiana quaisquer tiques de autoritarismo. Mui-
tos dos que lhe chamam ditador não acreditarão com certeza,
mas esta é a verdade sobre Salazar, tal como a vivi.
Uma das caraterísticas da Tia Maria era a falta de pachor-
ra para ensinar. Competente nas suas funções, executava-as
de modo metódico e despachado, sem pausas para mostrar
como se fazia. Quem pudesse, que a seguisse, quem não pu-
desse, tanto pior. Esta atitude era manifesta nas lides alimen-
tares, em relação às quais ela não estava na disposição de par-
tilhar segredos. A tal ponto que acabei por embirrar com os
meus deveres de a acompanhar na cozinha. Por isso mesmo,
após tanta insistência do Senhor Doutor para eu aprender a
cozinhar com a governanta, repliquei-lhe:
– Mas ela não tem paciência para ensinar.
Paciência tinha ele para me ouvir, e não só: ensinou-me a
mim a ter também paciência. E a verdade é que ainda acabei
por aprender alguma coisa de tachos com a Tia Maria, so-
bretudo quando, lá mais para a frente, comecei a pensar em
casamento. Não foi um mau investimento.
O Senhor Doutor estava certo na perceção dos talentos
gastronómicos da governanta, que com os anos se tornou
numa cozinheira que honraria o melhor restaurante da capi-

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tal. Sempre atenta ao que podia melhorar a sua arte culinária,
recolhia informação por toda a parte e aconselhava-se muito
com as senhoras que visitavam o palacete. Aprendeu mesmo
a elaborar receitas sofisticadas, para lá do gosto básico do Se-
nhor Doutor, como umas galantines que jamais me saíram da
memória gustativa.
A Tia Maria também se havia especializado em preparar
faisão, que de vez em quando alguém enviava de oferta para
São Bento. Ela ia comigo para as capoeiras depenar o animal.
Depois elaborava um molho especial, idêntico ao escabeche,
com que conservava a ave, metida inteira num largo frasco.
Comia-se em qualquer altura, mas não era petisco pelo qual
o Senhor Doutor tivesse especial inclinação.
A governanta nem precisava de se preocupar muito com o
recheio da despensa, porque o que não faltava em São Ben-
to eram vitualhas oferecidas por admiradores de norte a sul
do país. Do Alentejo, alguém enviava uns biscoitos delicio-
sos. Da mesma região vinham também pinhões, ameixas e
trouxas remetidos por uma das eternas apaixonadas do Se-
nhor Doutor, Maria da Conceição Santana Marques. Uma
senhora já idosa da família Nunes Mexia (mãe ou avó de um
dos cônjuges) produzia uns biscoitos em forma de gancho
que o chefe do Governo muito apreciava para acompanhar
o seu chá preto (ou verde, com menor frequência). De Viseu
vinham uns magníficos doces de ovos moles tostados na co-
bertura. Nogueira da Silva encomendava o primeiro salmão
pescado no rio Minho, remetido de Braga e embarcado em
avião no Porto, que chegava ao palacete acondicionado em
caixas de madeira com gelo e ervas muito frescas, e que o
Senhor Doutor gostava de comer cozido com molho de man-
teiga salpicado de salsa. O dono da Casa da Sorte era também

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responsável pelas enormes remessas de pão-de-ló de Marga-
ride que devorávamos com prazer.

A conta do hospital

Não sei se devido à alimentação, o facto é que a partir


de certa altura, em 1947, comecei a manifestar sintomas de
apendicite. Como era costume com todo o tipo de doença,
para a consulta lá tive de esperar pelo sagrado jantar de
sábado do Senhor Doutor com o dr. Bissaya Barreto, o nos-
so providencial médico a domicílio – que de resto me dava
injeções de um qualquer fortificante sempre que me diag-
nosticava debilidade física. A sua sentença foi perentória: eu
devia ser operada ao apêndice para evitar posteriores com-
plicações. Ofereceu-se para o fazer ele próprio em Coimbra,
mas o Senhor Doutor não concordou, dizendo que eu ficava
muito longe e isolada da minha família adotiva.
Fui assim internada no Hospital da Ordem Terceira de S.
Francisco, em pleno Chiado (onde por coincidência Salazar,
pouco após se ter fixado em Lisboa, já havia sido operado
a uma perna partida, na sequência de uma queda dada ao
tropeçar num tapete quando entrava numa das salas do Mi-
nistério das Finanças). Quem me operou foi o dr. Luís Lopes
da Costa, também conhecido lá de casa, já que a sua mulher,
Maria Isabel, era visita regular de São Bento. Tendo corrido
tudo bem, foi o próprio Senhor Doutor buscar-me ao hos-
pital, e à saída pediu a conta do internamento e dos serviços
médicos, que queria liquidar do seu bolso. O médico, mui-
to contrariado, lá forneceu os custos da minha estada, mas
disse que, quanto aos seus honorários, nada havia a pagar.

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O Senhor Doutor não se conformou: ao chegar a São Bento,
escreveu uma carta ao dr. Lopes da Costa insistindo para
lhe enviar o preço dos seus serviços, e que se não obtives-
se resposta positiva cortaria relações com o casal. Remédio
santo: dias depois apareceu a conta, que julgo ter sido apenas
simbólica.
Marcaram-me os cuidados que o Senhor Doutor teve co-
migo ao trazer-me do hospital. Assim que entrámos na re-
sidência, quis que eu descansasse numa chaise longue que lá
havia, cobriu-me com uma pequena manta e foi buscar, para
colocar sob a minha cabeça, umas almofadas muito bonitas e
de excelente qualidade, cuja função era sobretudo decorativa.
A Tia Maria ficou um pouco escandalizada e chamou-lhe a
atenção:
– Ó Senhor Doutor, olhe que essas almofadas são muito
boas.
Recebeu logo resposta:
– Pois são, Maria, mas as coisas boas são para se usar.
Outra prova da consideração que ele tinha para comigo
foi-me dada pelos nossos convívios no Vimieiro, onde o
seu afastamento das funções oficiais – apesar de despachar
todos os dias serviço para a capital – nos dava mais tempo
para estarmos juntos. Nas tardes de calor, o Senhor Doutor,
amante dos prazeres simples, acolhia-se comigo, na Quinta
das Ladeiras, sob um grande carvalho à volta de cujo tron-
co, perfazendo o círculo, estava montado um banco corrido.
Aí sentávamo-nos à conversa e lanchávamos pão caseiro ou
broa de milho (por ele incensada) com azeitonas, que a Tia
Maria havia arranjado. Junto, havia uma fonte onde se colhia
com um cocharro (designação alentejana para as vasilhas de
cortiça com essa finalidade) a água fresca e pura que era uma

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109
das predileções do dono da quinta. Ou, por vezes, bebíamos
chá frio que a governanta também havia preparado.

A escolha do guarda-roupa

Nas opções de vestuário do Senhor Doutor, ele e a Tia


Maria eram unha com carne. Como o presidente do Conse-
lho não ia a estabelecimentos comerciais, competia à gover-
nanta interpretar os seus gostos em indumentária e fazer as
necessárias encomendas.
A alfaiataria situava-se em frente ao Hotel Avenida Palace,
ao Rossio, e ainda hoje tem as portas abertas. Lembro-me
de lá ir buscar as amostras de fazenda para Salazar depois es-
colher. A Tia Maria dava uma ajuda, fazendo a pré-seleção
dos padrões a submeter à apreciação do Senhor Doutor, mas
era sabido que ele gostava dos tons clássicos, em volta dos
cinzentos, com ou sem riscas (nunca me lembro de ele al-
guma vez ter envergado, por exemplo, um fato castanho).
Quanto às camisas, eram mandadas fazer na Casa Pitta, à Rua
do Ouro. A camiseira da loja ia a São Bento para as provas,
e mais tarde, quando se reformou, continuou a ser ela a con-
fecionar as camisas do líder do Estado Novo. Recordo-me
até de uma vez ter ido a casa dela entregar um tecido em seda
natural para uma nova camisa para o Senhor Doutor.
Era também a Tia Maria quem chamava a atenção do chefe
do Governo para o envelhecimento das botas, o único calçado
que, desde muito novo, ele usava (não por qualquer problema
ortopédico, mas por mera habituação) e que se lhe colou à
pele como uma imagem de marca perante a opinião pública.
Era quase certo que o Senhor Doutor lhe responderia:

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– Não faz mal, manda-se pôr meias-solas.
Fazia parte da sua política de poupança. Sob encomenda
de São Bento, um sapateiro da Calçada da Estrela fazia as bo-
tas numa pelica muito fina – porque às vezes doíam os pés
ao Senhor Doutor –, e quando se estragavam era ele também
quem as restaurava.
As gravatas e as meias do presidente do Conselho eram de
boa qualidade, porque lhas ofereciam – e às vezes oferecia-as
ele a outros, quando achava que não as ia usar. Punha ligas
para prender as meias, mas não as aplicava a todos os pares.
Os seus lenços, em cambraia de linho, eram sempre imacu-
ladamente brancos, com o monograma AOS bordado pelas
freiras da ordem das Missionárias de Maria.
Em tempos invernais, o Senhor Doutor recorria em casa a
um pullover ou um casaco de malha. Mas nunca o vi usar ce-
roulas nem camisola interior. Posso garanti-lo porque, cada
noite, punha-se num cabide cromado da casa de banho do
primeiro andar a roupa que ele iria vestir no dia seguinte,
e muitas vezes calhou-me a mim essa função.
Para dormir, o Senhor Doutor não punha o convencional
pijama, a não ser em muito rara situação de doença. Em seu
lugar, usava uma camisa comprida, à moda antiga. No verão,
gostava de se deitar entre lençóis de linho. Mesmo no inver-
no, a roupa de cama, apesar de quente, era leve. E usada até à
última, como era de regra. Conservo um dos seus cobertores
de lã, muito fino, tal como veio de São Bento, todo passajado
nos rasgões, de velho que era. Também guardo um lençol
de banho do Senhor Doutor, numa estopa de linho que se
dizia ter sido tecida pela sua própria mãe, D. Maria do Res-
gate, e que muito circulou na camioneta entre Coimbra e
Santa Comba Dão, porque, antes de a Tia Maria chegar à

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111
Casa dos Grilos, ele mandava toda a roupa para ser lavada
no Vimieiro.
Falar de roupa também me faz lembrar o Natal, porque
eram de tecido as prendas mais frequentes. Assim despachava
a Tia Maria, nessa quadra, as outras mulheres da casa: com
vestuário ou peças de pano para uso doméstico, como toalhas
de rosto, sempre em embrulhos muito mal preparados por
ela, em papel pardo, de merceeiro. Com a letra incipiente da
sua quarta classe de adultos, punha nos embrulhos papelinhos
com o nome de cada destinatária. A árvore de Natal armava-
-se na sala de jantar do rés-do-chão, mas na noite da consoada
as empregadas ficavam junto à lareira da cozinha. Comecei
por colocar aqui o sapatinho, sob a grande chaminé, até que
subi com ele à árvore de cima, onde me recordo de ter recebi-
do os meus brinquedos (poucos) e outras prendas – modestos,
como era timbre da casa. Claro que o Senhor Doutor não me
ia comprar presentes, deixando a tarefa à Tia Maria, a quem
faltava vocação para escolher brinquedos. Ficava-se por isso
por uma caixa de lápis de cor ou algo ao mesmo nível.
A Missa do Galo celebrava-se no oratório do primeiro an-
dar, mas as empregadas por vezes iam à Basílica da Estrela
para o serviço (o que não tinham era autorização da Tia Ma-
ria para visitarem a terra no Natal). Nessa noite, o Senhor
Doutor ia deitar-se sem participar na ceia – quando muito,
um bolinho e um cálice de Porto.

A receita do bolo

Por muito estóica que se apresentasse, a Tia Maria tinha


um vício: o telefone. Não havendo muitos aparelhos espalha-

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dos pela casa, era na biblioteca que ela se refugiava tempos
infindos (pelo menos assim parecia, numa época em que as
comunicações telefónicas particulares eram ainda pouco fre-
quentes), a comunicar creio que com os seus familiares. Este
comportamento deixava furioso o Senhor Doutor, que lhe
atirava:
– Maria, o telefone é só para coisas urgentes e para dar
recados, não para essas conversas.
Pouco importava. Havia sempre um sentimento de urgên-
cia na frequência com que a Tia Maria recorria ao telefone.
Nem que fosse para ouvir um conselho culinário ou aprender
um novo prato. Mas, para isso, precisava da ajuda do homem
da casa. Guardo, escrita a lápis pela mão do Senhor Doutor,
a receita de um bolo que desconheço como surgiu, mas ima-
gino-o a passar ao papel aquilo que a governanta ouvia ao
telefone e lhe ia ditando:

«200 gr de farinha, 4 ovos, 100 gr de manteiga ou margari-


na, 20 gr de fermento ou farinha e fermento e leite. E faz-se um
pão que se deixa levedar. Depois de levedo põe-se numa tigela
e vai-se pondo um ovo de cada vez e batendo como quem faz
sonhos. Depois põe-se a manteiga derretida. Buraco no meio.
Deita-se na forma e deixa-se levedar segunda vez. Uma hora
ou hora e meia. Meia hora está cozido. (Em vez do sal, uma
colher de açúcar quando se quer fazer um bolo e 150 gr de co-
rintos). E deita-se chantili no buraco. 1,5 dl de rhum.»

Éramos na verdade tão poucos que todos tínhamos de ser


algo polivalentes no funcionamento do palacete. Eu, por
exemplo, recebia muitas vezes o correio, e quando não ha-
via criada disponível abria também a porta a ministros e ou-

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113
tros colaboradores. Não existiam contínuos ou porteiro. Nós
próprias pegávamos no sobretudo e no chapéu do visitante,
que púnhamos sobre um sofá à entrada ou no bengaleiro à
direita. Também íamos ao gabinete do Senhor Doutor anun-
ciar quem havia chegado e chamar a pessoa assim que ele a
mandava avançar (o que em regra era imediato). Após a au-
diência, ele ia à biblioteca despedir-se e tocava à campaínha
para chamar uma de nós. Levávamos as vestes ao visitante e
acompanhávamo-lo à saída.
Assim fui conhecendo as principais figuras do regime.
Nem os chefes da polícia secreta me eram estranhos. Achei o
capitão Agostinho Lourenço, que montou e dirigiu a PVDE,
mais carrancudo do que Barbieri Cardoso, que pontificaria
mais tarde na PIDE. Este pareceu-me até simpático – e mais
ainda a mulher dele, que uma vez pintou um excelente qua-
dro com umas tulipas que lhe tinham sido enviadas da resi-
dência de São Bento, em resultado da distribuição das flores
com que sempre nos inundavam nos últimos dias de abril.
Os momentos de maior concentração do Senhor Doutor,
durante os quais não queria ser interrompido, eram aqueles
em que elaborava os discursos. Tinha horror a falar de im-
proviso, e sempre que programava uma intervenção pública
passava dias e dias a escrevê-la, como se aquelas palavras fos-
sem tão sagradas como as tábuas da lei. Rabiscava em blocos,
depois escrevia, reescrevia e emendava, burilava aqui e ali,
dava a uma secretária para datilografar (em regra a dra. Emí-
lia Ferreira, uma licenciada em Letras que lá ia apenas para
essa função) e voltava a ler e a corrigir até chegar à perfeição
requerida. Sempre sozinho, sem se aconselhar com ninguém,
durante a criação dos discursos concentrava-se apenas nessa
tarefa e em nada mais.

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Como o Senhor Doutor tinha escasso contacto direto com
o exterior, confiava no testemunho dos outros para saber
como iam as coisas. Ele, por exemplo, não via cinema, mas
seguia atento os resumos que o seu amigo José Marques lhe
fazia das comédias portuguesas de então, como recordo te-
rem sido os casos de O Pai Tirano, O Pátio das Cantigas ou
O Leão da Estrela. Pelo meu lado, fiquei de lhe relatar o en-
redo dos filmes que ia vendo, a partir do momento em que
pude passar a frequentar os cinemas. Não o fazia amiúde, e
via sobretudo filmes nacionais, mas o Senhor Doutor nunca
deixava passar em branco a minha narrativa. Era também o
modo de ele verificar o que é que eu percebera da fita. E con-
fesso que, com o seu atento interrogatório, pedindo detalhes
cada vez mais meticulosos, eu acabava por me atrapalhar um
pouco no enredo. Ao contrário do que já vi escrito, o Senhor
Doutor, pelo menos enquanto vivi com ele, não via filmes
em projeção privada em São Bento – pura e simplesmente
não se interessava o suficiente por cinema ao ponto de lhe
dedicar o tempo de um visionamento. Só me lembro de isso
ter acontecido uma vez: alguém (talvez um distribuidor) le-
vou ao palacete uma película de desenhos animados, prova-
velmente de Walt Disney, que vi com ele. E dessa vez, pelo
menos, ele não deu o tempo por mal empregado: passou toda
a sessão muito divertido.
Sendo o chefe do Governo tão dado à reclusão (o que julgo
ser também uma forma de se defender dos constantes pe-
didos deste e daquele para isto e para aquilo), não era fácil
chegar à fala com ele. O caminho mais seguro consistia em
obter uma audiência em S. Bento, que – é claro – não estava
ao alcance de qualquer um, mas que uma carreira de grande
prestígio público podia facilitar. Foi o que fez Amália Rodri-

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Arranjei emprego na função pública, no Instituto de As-
sistência aos Menores, ao Largo do Rato, que dependia en-
tão do Ministério do Interior. O Senhor Doutor deu uma
ajuda, falando com o Dr. Joaquim Trigo de Negreiros, que
era na altura subsecretário de Estado da Assistência Social,
tutelando nessa qualidade o Instituto. Aliás, em questões de
emprego, o chefe do Governo não deixava cair os seus pró-
ximos. O meu irmão José abandonaria o cargo de porteiro
no Palácio de São Bento para ser gradualmente promovido,
até chegar a administrador do Hospital Miguel Bombarda.
O Senhor Doutor também dava um jeitinho, embora o José
fosse estudando sempre com afinco pela vida fora e tenha
sido um aluno exemplar, com elevadas médias que a minha
cunhada Rosalina, por vaidade, gostava de mostrar à irmã
em São Bento. Devo dizer até que a instrução era uma carate-
rística da nossa família, já que tanto o meu pai como a minha
mãe tinham tirado a 4.ª classe, o que ao tempo era muito raro
numa família do campo.
Como o meu local de trabalho era próximo de São Ben-
to, continuei a almoçar na residência todos os dias, fazendo
sempre o caminho a pé. E, quanto ao resto, mantinha-se a
rotina habitual. Com a diferença de que, recebendo um ven-
cimento, sentia agora um pouco mais de autonomia. Em to-
dos os sentidos, e sobretudo no financeiro.
Pude assim pagar à minha irmã gémea o curso de educa-
dora de infância que tirou na Associação dos Jardins-Escola
João de Deus, à Estrela. Aí, conviveu muito com uma freira
de quem se tornou amiga, a tal ponto que pouco após finali-
zar o curso ingressou como noviça no Convento de S. Pedro
de Alcântara, e mais tarde entrou já como religiosa para o
Convento de Palmela. Na sua carreira de religiosa, a Ana aca-

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bou por aplicar os seus conhecimentos em estabelecimentos
de assistência a crianças, sobretudo em Cernache do Bonjar-
dim, onde se manteve por muitos anos.
O ordenado também me permitiu viajar para fora do eixo
Lisboa-Santa Comba, e assim alargar um pouco os meus ho-
rizontes. Se bem que a minha companhia continuasse consti-
tuída por gente ligada a São Bento.
Com a Tia Maria, voei de hidroavião até à Madeira. Para
mim foi uma experiência aterradora – pior ainda do que o
meu batismo do ar foi, após a amaragem, o transbordo de
passageiros para a pequena lancha que nos levou até ao cais
do Funchal por sobre uma ondulação alterosa.
Ficámos umas três semanas na cidade em casa de Mrs.
Cary Garton, uma viúva de um inglês que era amiga do Se-
nhor Doutor (e que também possuía um apartamento no
Estoril). Na verdade, viajámos a convite dela num aparelho
da Aquila Airways, uma pequena companhia inglesa de hi-
droaviões que era propriedade de um dos seus filhos. Mrs.
Garton, que vivia acompanhada de um homem um pouco
mais novo que dizia ser seu filho adotivo, aparecera em São
Bento através de uma amizade comum a ela e ao Senhor
Doutor, e andou depois de volta do chefe do Governo para
ele dar um empurrão num assunto que há muito estava em-
perrado na nossa Aeronáutica Civil: a concessão à Aquila
Airways de uma ligação aérea regular entre a Inglaterra e
a Madeira. Resolvido o assunto a contento da companhia,
ela passou a encher a residência de São Bento de orquídeas,
estrelícias e antúrios colhidos no seu jardim do Funchal e
enviados de avião para Lisboa. Claro que, no regresso da
nossa viagem, eu tive de apresentar o devido relatório oral
ao Senhor Doutor quanto ao que vira na Madeira, ilha que

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ele visitara nos anos 1920 e sobre a qual me havia dado al-
gumas indicações.
Em dezembro de 1950, viajei outra vez com a Tia Maria,
agora até Roma. Íamos acompanhadas de umas sobrinhas do
embaixador Nosolini, então colocado no Vaticano. Lembro-
-me do intenso frio ao longo dos três dias de viagem fer-
roviária, em que até apanhámos neve. Chegámos a tempo
de assistir a uma importante cerimónia religiosa presidida
pelo Papa Pio XII, que a seguir nos concedeu a honra de uma
audiência particular. Como é lógico, a nossa relação com o
Senhor Doutor teve influência. Aliás, Sua Santidade, que na
audiência se exprimiu sempre em português, perguntou-nos
até como estava o «Doutor Salazar».
Ficámos alojadas na embaixada portuguesa, e ainda tive-
mos tempo para fazer um pouco de turismo na capital italia-
na. E não só: eu e as sobrinhas de Nosolini conseguimos dar
um pulo de comboio até Florença e Assis – mas a Tia Maria
ficou em Roma porque estava com gripe.
No regresso a Lisboa, como eu já tinha gozado as férias
desse ano, o Senhor Doutor, sempre muito reto e exigente,
não perdoou: insistiu com o meu serviço para que as duas se-
manas que eu passara no estrangeiro me fossem descontadas
nas férias do ano seguinte. E assim foi.
Em meados de 1952, eu e a minha amiga Maria José, so-
brinha do casal Nogueira da Silva, resolvemos passar uma
semana em Madrid. Antes da partida, o Senhor Doutor, es-
forçando-se para que a viagem fosse algo mais do que mera
diversão, entendeu escrever-me um roteiro com tudo o que
eu devia ver na capital espanhola (que ele visitara quase 30
anos antes). Ainda conservo a lista manuscrita, que diz o se-
guinte:

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«Madrid – ver: Na cidade: Plaza Mayor; Puerta del Sol;
Retiro; Parque do Oeste; Palácio do Oriente; Avenidas (Gran
Vía ou José Antonio e a seguir); Igreja: Igreja de S. Francisco,
o Grande; Museus: Museu das Armas (ou Armaria), junto do
Palácio do Oriente; Museu do Prado. Visitar o Escorial: Igreja
e sacristia e coro; Biblioteca; Palácio – habitação de Filipe II;
Jardins de buxo. Se possível, visitar Toledo: Alcázar; Igrejas;
Museu de El Greco.»

Tivemos a companhia da minha chefe de serviço no Ins-


tituto de Assistência aos Menores, que no entanto, chocada
pela morte dos touros na arena, ao ter assistido connosco a
uma corrida, apanhou mais cedo o comboio de volta a Lis-
boa. Eu e a Maria José lá permanecemos por mais alguns dias
num modesto hotel da Gran Vía, já que não havia disponibi-
lidade para grandes gastos. Conhecemos na rua dois rapazes
encantadores, que eram cadetes e nos convidaram para, pela
manhã do domingo seguinte, assistirmos à cerimónia do seu
juramento de bandeira. Nesse dia, ao regressarmos ao hotel,
estava toda a gente em polvorosa porque tinham telefonado
para lá da Presidência do Conselho de Ministros de Portugal
à minha procura. Era o Senhor Doutor, ele próprio, a saber
se estava tudo bem connosco.
De volta a Lisboa, não só tive de lhe explicar a razão da
minha ausência do hotel numa manhã de domingo como de
lhe contar tudo o que tinha ou não tinha visto da lista dele e
as minhas impressões pormenorizadas de cada uma das suas
referências. Creio que passei no teste: como diligente pupila,
eu tivera o metódico cuidado de ir a todos os locais recomen-
dados, incluindo o Escorial e Toledo.

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Os investigadores da vida de Salazar dão-no como entregue
a um estado de abatimento geral no imediato pós-guerra. Seria
não só o desgaste causado por quase dez anos de manobras para
passar por entre os mortíferos pingos de chuva bélicos, mas tam-
bém a consciência de que se desembocou, com o conflito mun-
dial, num universo de novos valores e nova ordem internacional
que não faziam propriamente parte da dieta política do presiden-
te do Conselho. Maria da Conceição, contudo, não se apercebe
dessa mudança de estado de espírito, talvez porque Salazar
sabe, perante os seus, disfarçar o que lhe vai na alma. Mas ela
também considera exagerado o estado de prostração que, por
exemplo, Alberto Franco Nogueira, futuro ministro dos Negócios
Estrangeiros do executivo salazarista e o mais autorizado dos
biógrafos do chefe do Estado Novo, atribuirá a Salazar neste
período. Cansaço sim, mas não «as tonturas prolongadas, a
crença de que não pode andar sem o apoio de alguém, nem
permanecer de pé sem se arrimar a uma parede, a um móvel», que
Franco Nogueira relata no seu monumental trabalho biográfico.
É porém uma dura realidade, para Salazar, que a guerra mudou
muita coisa. As leis mundiais são agora ditadas pelos vencedores
(como sempre, aliás), que conduzem os governos das suas zonas
de influência para mais rígidos alinhamentos estratégicos, não
vão as grandes potências ser outra vez surpreendidas com com-
portamentos indesejáveis. Para o sentido de autonomia e inde-
pendência de Salazar, isto não são boas notícias. Obedecer a di-
retivas emanadas do exterior repugna-lhe a consciência e dá-lhe
voltas ao estômago. É certo que acredita no contexto da aliança
luso-britânica, forjada com um país em que admira o sentido da
ordem e da disciplina, o apego à tradição e até o sistema político
(que julga porém inviável para o espírito português), e que toda a
sua política externa se define em função dessa ligação. Contudo,
a emergência do pragmatismo americano como guia supremo do

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mundo ocidental é algo que o deixa perplexo, desconfiado, lívi-
do, indignado – e considera incompreensível, capitulacionista, a
nova admiração europeia pelo grande amigo de além-Atlântico.
A breve prazo, vai julgar a Europa condenada por asfixia, pela in-
teração das potências americana e soviética, eventual palco de
novo conflito global pela supremacia no mundo entre a liberdade
de um lado e o comunismo do outro. E não acredita nas virtudes
salvíficas dos organismos plurinacionais de natureza colegial,
como a recém-fundada Organização das Nações Unidas (mas à
qual, pragamaticamente, terá de levar Portugal a aderir) ou a fu-
tura Comunidade Económica Europeia (que evoluirá para a atual
União Europeia).
No entanto, como de costume, Salazar faz das fraquezas for-
ças, e ao ouvir falar da formação de um desses corpos coletivos,
uma aliança dos Estados Unidos com os seus aliados europeus
para garantir a estabilidade em volta do Atlântico Norte, faz-se
valer da importância estratégica dos Açores (onde, com relu-
tância, aceitou a permanência americana pós-guerra, através
de um contrato de aluguer da Base das Lajes com contraparti-
das) para nela também entrar. Portugal será a única ditadura a
fazer parte, em 1949, do conjunto de nove países fundadores da
NATO (ou OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte),
e ao presidente do Conselho pouco importa que, na prática, se-
jam os EUA quem mais ordena na nova organização. O que é pre-
ciso é saber aproveitar as oportunidades, e nisso ele é exímio.
A pax americana está para durar, pelo que ser amigo de Washin-
gton pode custar tanto como tomar óleo de fígado de bacalhau,
mas há-se ser igualmente saudável. Salazar, com o orgulho do
pobre mas honrado, rejeita que Portugal beneficie do primeiro
quadro de aplicação do Plano Marshall, de ajuda norte-america-
na para a reconstrução da Europa devastada pela guerra, mas já
aceitará integrar o segundo.
É claro que a NATO funciona como um seguro de vida para o
Estado Novo, uma garantia de que as democracias triunfantes

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não vão pôr em causa os fundamentos do regime. Nada que a
oposição não soubesse já, frustradas as suas expetativas de ver
os aliados ocidentais levarem à democratização da Península
Ibérica como corolário da derrota das ditaduras de Hitler e Mus-
solini. Esta proteção da espécie ibérica de ditador, em especial
no caso de Salazar, deve-se em grande medida à acolhedora asa
britânica, que no fundo, desde as primeiras horas da Guerra Civil
de Espanha, sempre articulou ações com o governo de Lisboa.
Para Londres, que mantém a memória do tempo que demorou a
readquirir a confiança dos dirigentes portugueses após a queda
da monarquia em 1910, mais vale ter um amigo seguro à beira do
Tejo do que trocar o certo pelo incerto.
E Salazar nem precisa de se vergar a grandes exigências para
conservar o bom relacionamento com os aliados democráticos.
Longe vão já os tempos da saudação de braço estendido, que ele
e a sua equipa praticavam como norma nos sucessivos desfiles
do regime. Agora trata-se mais de algumas alterações cosméti-
cas: mudar certos nomes emblemáticos (como o da polícia políti-
ca, que passa de PVDE para PIDE, e do organismo de propaganda,
que deixa de ser SPN para ser SNI) ou aliviar as duras condições
de vida dos presos ainda sobreviventes no Tarrafal (que porém só
encerrará em 1954).

•••
Torna-se assim possível, neste mundo novo onde despontam
os alvores da Guerra Fria, voltar às tradicionais rotinas de São
Bento, como se nada se tivesse passado. No relato de Maria da
Conceição, acentua-se uma das principais caraterísticas do pro-
cesso governativo da época: a centralização na pessoa do presi-
dente do Conselho de, praticamente, qualquer um dos pequenos
e grandes problemas da nação. Tudo lhe vai parar às mãos, desde
a definição da política externa e dos planos económicos até aos
empenhos para as mais diversas nomeações em cargos do Es-
tado, do contínuo ao ministro. É como se o governo de Portugal

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fosse ele (e foi-o de jure e de facto durante os anos de convul-
são mundial em que acumulou a Presidência do Conselho com
as pastas das Finanças, dos Negócios Estrangeiros e da Defesa).
E tudo parece despachar com desarmante simplicidade, sobran-
do-lhe ainda tempo para, à noite, fazer as contas da residência
com a governanta ou ministrar mais uma lição de História a Mi-
cas. O que dá a dimensão do tipo de administração que então se
faz de Portugal, país resumido a uma imensa junta de freguesia
cujo regedor tem por nome Salazar.
Mesmo quando frequenta o curso comercial, Maria da Con-
ceição continua a receber lições do lente de Coimbra, sempre
preocupado com o seu desempenho escolar. A 16 de dezembro
de 1945 (de novo um domingo), ele toma nota na agenda dos exer-
cícios que, entre as 22h00 e as 00h30, apresentou à pupila para
resolver, à mistura com telefonemas vários, a habitual vistoria
dominical das contas particulares e uma conversa com Domin-
gos Fezas Vital, catedrático de Direito e presidente da Câmara
Corporativa, sobre o funcionamento das duas câmaras do Palá-
cio de São Bento. E a 7 de abril de 1946 (outro domingo) reserva
um período de duas horas e meia antes do jantar para ajudar a
resolver «dificuldades de estudos das pequenas».
Micas, entretanto, aprende o suficiente para ajudar o presi-
dente do Conselho como escriturária, sobretudo aos fins de se-
mana, quando não há mais ninguém em São Bento para a função.
A 19 de janeiro de 1947, um domingo, ele tem de fazer emendas a
uma nota acerca da política militar portuguesa a enviar pelo go-
verno à embaixada do Reino Unido. E regista no diário quem dati-
lografa a redação final: «A Micas fez nova cópia com as emendas
introduzidas».
Mas logo a seguir é a extração do apêndice da adolescente a
mobilizar as atenções de Salazar. Escreve na agenda a 3 de junho
de 1947, uma terça-feira: «A Micas entrou no Hospital da Ordem
Terceira às 9h30 para fazer a operação da apendicite, o que se fez
às 11h30». E anota as suas sucessivas visitas ao hospital, nos três

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dias seguintes, sempre às 10h, e ainda no domingo 8 de junho,
antes de presidir a um desfile da Legião Portuguesa no Terreiro
do Paço, para visitar a convalescente, a qual – acrescenta ele na
agenda – tem alta nessa segunda-feira. A 24 do mesmo mês re-
gista ainda o envio de uma «carta ao operador da Micas», certa-
mente – como ela testemunhará – a exigir que todas as despesas
com a intervenção cirúrgica lhe sejam cobradas.
Na atmosfera mais distendida do pós-guerra, Salazar procu-
ra entreter as raparigas da casa com outras amenidades. Logo
a 28 de junho de 1945, assinalando o fim da quadra dos santos
populares, mandou acender em São Bento, segundo escreveu no
diário, uma «fogueira para as pequenas» entre as 22h e as 24h, na
presença também de José António Marques e do casal Nogueira
da Silva (o dia é o mesmo do encontro com a rainha D. Amélia e
comitiva nos jardins da residência, mas a agenda é omissa quan-
to à presença de Carolina de Asseca). Contudo, só seis anos mais
tarde, a 30 de junho de 1951, já Micas deixara a adolescência,
é que «o pessoal e as pequenas foram para as marchas populares».
Aliás, nesse mesmo ano, na noite de 27 de maio, «as pequenas»
tiveram também autorização para assistir no Campo Pequeno ao
espetáculo internacional Holiday on Ice, de patinagem no gelo.
É apenas também após a guerra que o chefe do Governo passa
a registar no diário a troca de prendas na Consoada. «Prendas
das pequenas e do pessoal», anota pelas 00h40 de 25 de dezem-
bro de 1946, a seguir à Missa do Galo realizada em São Bento
à meia-noite (por norma oficiada por Carneiro de Mesquita).
O mesmo acontecerá nos anos sequintes («prendas do Natal para
as pequenas, etc., até às 2 da noite», por exemplo em 1950), pelo
menos até 1956 (em cuja Consoada, excecionalmente, não há
missa em São Bento, embora Salazar não deixe de relatar que,
após as «prendas de Micas e da Maria, ouviu-se pelo telefone um
pouco do ofício na Sé».
Mas o grande entretém são os passeios das tardes de domin-
go (ou, uma vez por outra, em feriados), sempre na região da

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nascida na ilha em 1885 com o nome Carolina dos Passos Freitas.
Só que em jovem estudara piano na Royal Academy of Music em
Londres, tendo depois casado com um súbdito de Sua Majesta-
de, o engenheiro Leopold Garton, quando, no tempo da Primeira
Guerra Mundial, ele esteve na Madeira a colocar cabos submari-
nos para garantir as comunicações intercontinentais. A familia
possuía um negócio de shipping no Funchal, e o contacto de Mrs.
Garton com o chefe do Governo deu-se por escrito ainda durante
a Segunda Guerra Mundial, para acrescentar à companhia uma
ligação aérea com a Madeira.
Mrs. Garton, que entretanto se divorciou, apareceu pela pri-
meira vez em São Bento a 30 de outubro de 1947, mas já com o
rasto perfumado deixado pelas inúmeras flores da Quinta da Boa
Vista oferecidas a Salazar nos anos anteriores. O homem mais
novo que Micas reparou acompanhá-la era o inglês Herbert Les-
ter, que fora preceptor da nora da senhora, Christianne Garton –
segundo o depoimento de uma das filhas desta, Carole Garton,
que classificará o homem como um «escroque» e não desmen-
tirá os rumores de que ele poderia ser amante da avó.
A neta explicará que a avó desejava muito conhecer o presiden-
te do Conselho porque a «cunha» era então uma das raras ma-
neiras de desbloquear certos impasses em Portugal, e o certo é
que, com a resolução do problema da Aquila Airways, a presença
na vida de Salazar das três Garton (Cary, Christianne, que também
viria divorciar-se, e Carole, nascida justamente em 1947) tornou-
-se frequente e projetar-se-ia até ao fim dos dias do ditador.
Foi nesse contexto que surgiu o convite para Micas e a gover-
nanta viajarem até à Madeira. Dois dias depois de, a 4 de julho de
1950, Salazar tomar nota de ter recebido em São Bento, entre as
23h e as 24h, «Mrs. C. Garton, com diretor da Aquila e um filho
adotivo da primeira», ele acrescenta na agenda: «Diligências re-
lativas aos bilhetes de avião (para a Maria e Micas) para a Madeira
– preços, horários, etc.» O que lança a dúvida sobre se as passa-
gens foram oferecidas pelo clã Garton ou pagas do seu bolso.

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Mais tarde no mesmo ano, Micas e D. Maria atrevem-se a outra
grande viagem, até Roma, mas desta vez por comboio. E é mais
uma vez Salazar que, na agenda, dá conta do regresso das duas,
pelas 19h30 da véspera do Natal: «Chegaram a Micas e a Maria de
Roma – impressões da viagem. Falou-se para a embaixada [por-
tuguesa] no Vaticano».
Passaria pouco mais de um ano e Maria da Conceição dava
novo passo no seu lento caminho para a emancipação: a obten-
ção de emprego. Mas sempre sob a tutela de Salazar, que move o
seu empenho para a obtenção de um lugar no funcionalismo pú-
blico, a que não terá sido estranha a nota que deixa manuscrita
na agenda a 9 de fevereiro de 1952: «Carta para o Ministério do
Interior (Micas)».
A menina, entretanto, crescera (embora não aos olhos do seu
protetor, que continua a aconchegá-la na cama antes de dor-
mir, como se fosse a criança de sempre), e, apesar de conserva-
da quase sempre na redoma de São Bento, já sabe algo mais do
mundo, e olha para a realidade com outros olhos. Olhos femini-
nos, claro. Percebe assim que Salazar, afinal, não presta atenção
apenas às mulheres da casa. Pelo contrário, é homem de muitas
e variadas mulheres, às quais dedica – e dedicará nos tempos se-
guintes – outro tipo de atenções.

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Capítulo 4

Matrimónio em casa

À parte uma broncopneumonia, em data que não posso


precisar, recordo o Senhor Doutor como uma pessoa
saudável. Mas o seu médico pessoal, o professor Eduardo
Coelho (que lhe tratou a broncopneumonia), dizia que ele
passava muito tempo sentado na poltrona de trabalho e que
precisava de compensar com algum exercício: andar já seria
suficiente. A única forma de combater o sedentarismo era
pois passear pelo parque de São Bento, uma prática que o
Senhor Doutor já seguia por gosto e que as recomendações
clínicas vieram intensificar.
Esses passeios, transformados em rotina quase diária, se-
guiam-se ao jantar, após as 22h, e era eu que, de bom grado,
costumava fazer companhia ao Senhor Doutor. A Maria An-
tónia, que não desenvolvera o tipo de afeto que eu tinha pelo
senhor da casa, preferia ficar dentro de portas – mesmo já
crescida, quando a sua ocupação noturna favorita era estar
agarrada ao telefone. Na verdade, ela tinha uma atitude arre-
dia, esquiva, perante quer a Tia Maria quer o Senhor Doutor.
Ele até se lamentava, com alguma mágoa, de que ela não era
«meiga».
Guardo dessas caminhadas, em particular em noites esti-
vais, nas quais milhares de pirilampos se cruzavam no nosso

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caminho, uma suave sensação de beatitude, a memória de um
tempo em que tudo era perfeito e posto no sítio certo. Certa
vez, sentindo o Senhor Doutor um pouco abatido e queren-
do animá-lo, perguntei-lhe de que é que ele na vida gostava
mais. Fiquei à espera de uma exposição elaborada, mas ele
arrumou a questão em poucas palavras:
– Das flores, das crianças e do barulho da água das fontes.
Confesso ter ficado atrapalhada com a singeleza da respos-
ta, que me pôs a meditar sem conseguir replicar-lhe.
Lá ia procurando incutir-me alguns dos princípios mo-
rais que eram os seus. Dizia que tínhamos de dar valor à
vida, e que era preciso ser previdente e pensar sempre no
dia de amanhã. Defendia que devíamos ser muito retos no
julgamento dos outros, nunca pensarmos mal das pessoas
de início – pois as primeiras impressões podem ser enga-
nadoras e trazer uma série de confusões –, mas apenas de-
pois de termos recolhido dados substanciais para o efeito.
Aconselhou-me também a pensar sempre antes de falar, em
vez de falar antes de pensar. Tratava-se de algo que ele mui-
to praticava, aliás. Não era um repentista, que respondia a
quente às pessoas ou às situações. Em regra, tinha por hábito
a reflexão mais ou menos prolongada antes de intervir ou
tomar uma atitude.
Não era costume do Senhor Doutor abrir-se em confissões
políticas. Mas num destes nossos passeios resolveu uma vez
regressar ao passado e contar-me um momento complexo do
início da sua carreira governamental. Estava-se em 1929, era
ele ainda apenas titular das Finanças, e deu-se o seu interna-
mento hospitalar para tratar da perna partida com a queda
no Ministério, como já referi. Narrou-me ele que a situação
política no país era então muito delicada, o que o levou a

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prosseguir o trabalho quotidiano no hospital, como se nada
tivesse interrompido a sua rotina. Instalaram-lhe no quar-
to um telefone, para manter o contacto com o exterior, e aí
recebia não só o seu secretário, que lhe apresentava o expe-
diente diário, como os ministros com quem tinha de despa-
char. Nesse momento difícil, chegou a reunir-se o Conselho
de Ministros no hospital, já que se considerava que o Senhor
Doutor não podia deixar de participar (ou talvez fosse ele
mesmo quem assim o entendia, não sei bem).
Noutra ocasião, nestes contos que nada tinham da fantasia
das Mil e Uma Noites, resolveu o meu companheiro regressar
a 1929 (talvez por ser o meu ano de nascimento) para me di-
zer que já então o país sentia algumas melhorias financeiras,
em virtude do equilíbrio que ele introduzira no orçamento
do Estado, mas que para se ir mais longe, investindo em pro-
jetos públicos (especificamente, creio, no incremento da rede
ferroviária), seria necessário recorrer a um empréstimo ex-
terno. Para apurar condições para o pretendido, lembrou-se
então de solicitar ao dr. Mário de Figueiredo, seu amigo de
longa data e fiel colaborador (que também cheguei a conhe-
cer), que fosse efetuar sondagens a Paris e Londres. As coisas
em Paris não resultaram, e em Londres houve maior abertu-
ra, mas as negociações não correram da melhor forma, com
tantas exigências e de tal ordem que tornavam o empréstimo
muito arriscado. Para mais, as entidades bancárias na capi-
tal britânica pretendiam enviar um delegado a Lisboa com
a missão de verificar como seria aplicado o dinheiro. Rela-
tou-me o Senhor Doutor que se sentiu de tal modo chocado
com tamanha imposição que pôs logo de parte o tão almejado
empréstimo e que deu a volta ao caso, começando a trabalhar
noutra direção.

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Houve também um momento desses diálogos noturnos
em que ele evocou as dificuldades sofridas ao separar-se da
família para ir estudar para o seminário de Viseu, tinha então
11 anos. Sentiu sobretudo saudades da mãe, a quem era mui-
to chegado, como ela terá sentido dele, único filho varão, que
adorava. Fome e frio era o que mais abundava no inóspito
casarão de Viseu – contou-me ele. Por vezes, uma sardinha
tinha de ser partilhada por dois estudantes. Tanto a roupa
como a comida enviadas pela D. Maria do Resgate eram sem-
pre muito bem-vindas.
Era de facto nessas noites que eu o sentia mais propício a
falar dele mesmo, uma coisa rara. Certa vez, sondei-o sobre o
seu possível cansaço com a chefia do Governo, quase 30 anos
depois de ter saído de Coimbra. Admitiu a fadiga, acrescen-
tando que ainda gostaria de passar uns anos retirado na sua
acarinhada Santa Comba Dão, a ler livros e a tratar das pro-
priedades. Mas logo adiantou que não encontrava ninguém a
quem pudesse transmitir o testemunho, e que por isso tinha
de continuar por mais uns anos. Limitei-me a dizer-lhe que,
se ele ambicionava por essa reforma tranquila, devia tentar
resolver a lacuna da sucessão, mas não senti que quisesse em-
penhar-se com convicção no assunto.
De resto, é sabido que ele não confiava na descentralização
do poder, na certeza de que resolvia os problemas melhor
do que os outros. Como o Senhor Doutor me disse uma vez,
recorrendo às suas habituais metáforas domésticas, «com
muita gente a mexer num tacho ninguém se entende». Me-
xia ele sozinho, por consequência. Sublinhava sempre a or-
dem como um valor superior, a autoridade de quem manda
e o respeito de quem obedece. Por isso era tão ponderado
na escolha dos seus colaboradores, que tinham de mandar e

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também de lhe obedecer. Até costumava queixar-se em casa:
– A menina Maria tem mais facilidade em escolher uma
criada do que eu um ministro.
Podia parecer óbvio, mas só para quem não conhecesse
as exigências da Tia Maria. Na realidade, eu ouvia cada um
deles queixar-se da dificuldade em recrutar pessoal qualifica-
do para o seu respetivo ramo de atividade. Com a diferença
de que o Senhor Doutor, com as cerimónias que o carateri-
zavam, tinha menos intimidades com os seus ministros do
que a Tia Maria com as suas criadas. Mas, quanto a despedi-
mentos, nenhum deles se mostrava paralisado pela hesitação:
a governanta pela via oral, Salazar através de um cartão en-
viado à «vítima». Só que o chefe do Governo prendia-se mais
aos seus homens (nunca houve uma ministra) do que ela às
suas mulheres. Ainda me lembro do desgosto que lhe senti
depois da morte por acidente rodoviário, em novembro de
1943, de Duarte Pacheco, o seu ministro das Obras Públicas
favorito. Elogiava a sua dinâmica e a sua competência, e per-
cebi que já não apreciava tanto aquele que lhe sucedeu.

Um chá no Palácio de Belém

As obras públicas constituíam aliás tema recorrente dos


nossos diálogos. Para a jovem sem formação nem informa-
ção política que eu então era, esse consiste num dos aspetos
mais visíveis da atuação de um governo, e é por isso natural
que, nos nossos passeios noturnos, lhe colocasse perguntas
sobre a matéria. O Senhor Doutor reconhecia que Portugal
estava muito carenciado de infraestruturas (lamento que ele
alargava à indústria) e que muito era preciso fazer nesse cam-

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133
po. Para o demonstrar de forma eloquente, contou-me uma
vez que, no início da sua atividade governativa, ao querer fa-
zer uma visita de trabalho ao Algarve, teve de percorrer parte
do percurso em carro de bois, por não haver estrada que um
automóvel pudesse usar.
Mas essa era também uma forma de ele me mostrar o mui-
to que já fora feito sob o seu consulado. O Senhor Doutor
tinha orgulho nas estradas que haviam sido abertas ou me-
lhoradas, nos cantoneiros que se encontravam um pouco por
todo o lado, a limpar bermas e a aplanar vias.
Explicava-me que gostaria de fazer mais, mas que não ha-
via dinheiro. Achava porém que, dentro das limitações or-
çamentais, por ele religiosamente respeitadas, estava a fazer
o máximo possível. E não se tratava apenas de estradas, mas
de escolas, portos, aeroportos, pontes, barragens, bairros so-
ciais (com rendas proporcionais ao rendimento do agregado
e opção de futura compra da habitação) ou pousadas. Tudo
– acrescento eu – sem a facilidade atual dos fundos comuni-
tários.
Nas nossas saídas de domingo, o Senhor Doutor gostava
de me mostrar o que ia sendo construído como fruto da sua
ação, fosse a marginal para Cascais, antecedida pelo Viaduto
Duarte Pacheco e a auto-estrada a rasgar Monsanto, fosse
a ponte sobre o Tejo em Vila Franca de Xira, onde ele me
levou pouco depois da inauguração, em 1951.
Os nossos circuitos dominicais prosseguiram pelos anos
fora. Recordo-me de duas visitas a ateliês de artistas plásti-
cos, ambos na capital: o do pintor Henrique Medina, na zona
do Hospital da Estefânia, para uns retoques num retrato de
Salazar que ele estava a ultimar, e o do escultor Leopoldo de
Almeida, num antigo pavilhão da Exposição do Mundo Por-

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tuguês, em Belém, para retificar pormenores na estátua do
Senhor Doutor que anos mais tarde seria colocada no centro
de Santa Comba Dão, a qual estava então também em fase
de acabamento. Da relação do Senhor Doutor com os dois
apenas retenho uma enorme afabilidade.
A circunstância de viver com Salazar, embora sem ocupar
nenhum lugar na hierarquia oficial, dava-me assim acesso a
um universo que de outro modo me seria totalmente inatin-
gível, interdito até – e nesse aspeto bem poderei abençoar a
minha sorte. Se eu tivesse interesse em participar numa ceri-
mónia pública, bastaria falar com o Senhor Doutor, que sem
problemas ultrapassava o protocolo do Estado. Assim acon-
teceu com as solenes exéquias pela rainha D. Amélia, reali-
zadas por ocasião da trasladação dos seus restos mortais para
junto dos do marido e dos filhos, no panteão real dos Bra-
gança, em São Vicente de Fora, após o seu falecimento em
Versalhes, em outubro de 1951. Conservo o convite, onde o
meu nome foi escrito pelo próprio punho de Salazar.
A propósito, devo dizer que nunca ouvi da boca do Senhor
Doutor uma palavra depreciativa acerca do regime monár-
quico, mas ele entendia não haver razão para mexer no as-
sunto e fazer voltar a História atrás. De resto, não reconhecia
a D. Duarte Nuno de Bragança, tido pela generalidade dos
monárquicos como herdeiro do trono, condições para reinar
– dizia que eram outros os tempos e as circunstâncias, embo-
ra pudesse não ser essa a verdadeira razão. Mas recebia com
frequência a sua irmã, a infanta D. Filipa de Bragança (que
levava sempre muitos papéis com recados e pedidos). E não
deixava de ter grande ternura por D. Amélia, o que provou
ao recebê-la para aquele chá em São Bento e depois ao pro-
mover a deposição dos seus restos mortais em S. Vicente de

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Fora. Além disso, também mantivera correspondência com
D. Manuel II durante o seu exílio. Aliás, uma das decisões
inaugurais do seu primeiro governo, em 1932, fora a trasla-
dação para Portugal dos corpo do último rei, então acabado
de falecer em Londres, e a realização, à sua chegada a Lisboa,
de funerais nacionais.
Só a nossa proximidade ao Senhor Doutor explica também
que eu e a Maria Antónia tenhamos recebido certa vez um
inesperado convite da mulher do Presidente da República que
em 1951 sucedeu a Carmona, o general Francisco Craveiro
Lopes, para tomarmos com ela um chá em Belém. O con-
vite foi reforçado pelo Senhor Doutor, que me disse que D.
Berta Craveiro Lopes tinha grande vontade de nos conhecer.
Comprei um chapéu preto e branco, por certo muito bonito
e elegante, compus uma toilette especial e lá fomos ambas no
carro de serviço da residência de São Bento. Num salão que
me impressionou pela sua extensa dimensão, só estávamos as
duas e a primeira-dama. Gostei muito dela, achei-a uma sim-
patia, mas do que constou a conversa ou qual a motivação do
convite são perguntas a que já não sou capaz de responder.

O caso Garnier

Apesar de sexagenário, mantinha-se o encanto exercido


pelo Senhor Doutor entre o sexo feminino. Neste capítulo,
a grande agitação da década ocorreu com a jornalista e escri-
tora francesa Christine Garnier, que conheci muito de perto
na capital e no Vimieiro, ao longo dos vários encontros que
ela foi tendo com Salazar, a pretexto de um livro que estava
a produzir sobre ele.

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A primeira vez que apareceu, em agosto de 1951, come-
çou por visitar o Senhor Doutor no forte de Santo António
do Estoril, onde nos encontrávamos, mas então mal dei por
ela. Como a Garnier se dizia interessada em captar o lado
humano do presidente do Conselho, ele sugeriu-lhe que o
acompanhasse pouco tempo depois no Vimieiro, por altura
das vindimas, onde podia apreender-lhe as raízes. A france-
sa instalou-se então na Pensão Ambrósio – a única da terra –
e todos os dias acompanhava Salazar à Quinta das Ladeiras,
onde ainda se levantavam muros e instalavam escadas para
enfrentar os declives e se construíam grandes tanques para
reter a água destinada à rega (e de que maneira admirava o
Senhor Doutor a água como elemento vital da nossa exis-
tência!).
Reparei então bem nela, a tomar com Salazar as refeições
na salinha da casa de habitação, bonita sem ser estonteante,
sempre arranjada para desfilar num boulevard parisiense,
coquette como só uma francesa sabe ser. Creio que foi aí que
tudo começou entre os dois. Aos 62 anos, ele mantinha-se
um homem muito atraente e intelectualmente muito rico e
culto – o tipo de perfil que podia encantar a jornalista vinda
de tão longe para ver como Salazar, aparentando não se es-
forçar demasiado, tinha todo o seu país na mão. Notava-se
que despontara entre ambos uma afeição recíproca, mantida
ao longo das várias idas e vindas dela a Paris, para mostrar
provas do que já escrevera e preparar novos avanços na obra.
Volto a recordar-me dela na última fase de elaboração do
livro, já em São Bento. Quis acompanhar as refeições com
cerveja, barbarismo que deixou a Tia Maria estarrecida, tan-
to mais que a francesa era a primeira pessoa a rejeitar o vinho
das Ladeiras. Mas aos poucos lá se foi integrando na cultura

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local, a ponto de, mais tarde, o Senhor Doutor lhe enviar
para Paris meia dúzia de garrafas da sua melhor colheita. Não
foi a única oferta que lhe fez: num pesado sacrifício para a
sua bolsa, encomendou ao embaixador português em Fran-
ça, Marcello Mathias, a aquisição de uma peça de joalharia
para a Garnier, um anel que o próprio diplomata entregou à
senhora em Paris – ia já o seu livro, que se chamaria Vacan-
ces avec Salazar (Férias com Salazar), em adiantado estado de
produção.
Pareceu-me o apogeu do romance. Pouco depois, o segun-
do marido da jornalista havia descoberto a apaixonada cor-
respondência que Salazar lhe enviara para França e pediu o
divórcio. Mas, tal como nos casos anteriores, o Senhor Dou-
tor iria começar a abrandar os seus arrebatamentos amoro-
sos, a desligar-se sub-repticiamente, apesar do empenho com
que me pareceu que a Garnier abraçara o affaire – que ele,
de resto, também como era hábito, nunca assumiu perante
nós ou qualquer outra pessoa. Tudo se dissipou num vapor
impercetível, sem fazer ondas, no estilo circunspeto tão ao
gosto de Salazar.
Não ponho em dúvida que, nesta paixão, possa ter havi-
do envolvimento físico, mas a verdade é que também não o
posso jurar. O que sei é que, no Forte de Santo António, em
encontros posteriores ao primeiro, as portadas de madeira
do escritório do Senhor Doutor, enquanto ele permanecia
lá dentro com ela, estavam fechadas, o que era raro – e logo
suspeito aos meus olhos curiosos.
Apesar destas evidências, a Tia Maria não pareceu tão
preocupada com o caso como com a história de Carolina As-
seca, uns anos antes. A Garnier até a convidou para passar
uns dias numa casa de campo que possuía nos arredores de

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Paris. E a governanta lá foi sozinha, para uma curta vilegia-
tura a expensas da autora de Férias com Salazar.

Um namorado suspeito

Pelo meu lado, na casa dos 20 anos e com emprego garan-


tido, é natural que eu pensasse em namorar e – em conse-
quência – casar. Outros avaliarão melhor do que eu, mas a
impressão que tinha é que não deixava indiferentes muitos
membros do sexo oposto. Dei por mim, contudo, a afugentar
os pretendentes, e a razão mais plausível é que eles se assusta-
vam quando descobriam que vivia com Salazar. Pelo menos
dois bateram a asa ao saberem das minhas ligações a São Ben-
to. O presidente do Conselho, para mais com a Tia Maria ao
lado, intimidava – reconheço.
A separação que mais me custou foi de um colega do tra-
balho, formado em Direito, com quem cheguei a iniciar na-
moro. Eu estava apaixonada, e quando ele se afastou fiquei
à beira do desespero. À boa maneira antiga, pensei mesmo
ingressar na vida religiosa, seguindo os passos da minha irmã
gémea. Mas no meu caso a intenção era tornar-me missio-
nária, pelo que ainda cheguei a visitar o convento das Mis-
sionárias do Espírito Santo. Confiei a minha depressão e as
minhas intenções ao Senhor Doutor, que dedicou um dos
nossos passeios noturnos em São Bento a discutir comigo o
problema. Após um longo diálogo sobre o meu dilema entre
ser freira ou vir um dia a constituir família, ele rematou:
– Pensa bem, mas acho que deves casar.
Tinha razão. A minha inclinação para a carreira religiosa
era de natureza negativa – como escape para um desgosto

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amoroso – e não positiva – por sentir que aquela fosse a vida
que me estava destinada. Mudei de ideias, e nisso o Senhor
Doutor terá tido muita influência.
Mas entretanto a Maria Antónia, apesar de mais nova,
ultrapassou-me na corrida ao matrimónio. Como já relatei,
ela acabou por ingressar no liceu depois de concluir a escola
primária, e, ainda adolescente, arranjou um namorado que
andava por ali perto. A minha sobrinha frequentava o Maria
Amália Vaz de Carvalho, e ele trabalhava num stand de au-
tomóveis quase em frente. O namoro depressa evoluiu para
uma arrebatada paixão física, mas tudo isso a Maria Antónia
ocultava à sua tia e madrinha – e logo também ao Senhor
Doutor. Ela era arredia, rebelde até, inconformada com a
disciplina de São Bento, e achava que não tinha de dar satis-
fações a ninguém lá em casa (por vezes nem cumpria as tare-
fas que lhe eram atribuídas pela Tia Maria, executando-as eu
para a proteger).
É claro, contudo, que a Tia Maria sabia que havia mouro
na costa: bastava atentar às sessões noturnas que a sobrinha
fazia ao telefone. Ocultar o namoro à senhora não era uma
atitude sensata, porque a poderosa governanta de Salazar ti-
nha maneiras de o descobrir. Quem organizou as diligências
para a vigilância e a recolha de informação, a pedido dela,
foi Nogueira da Silva, e em breve estava tudo deslindado:
a Maria Antónia andava a faltar às aulas para ir namorar para
o Jardim Botânico e o Príncipe Real. Pior ainda: o rapaz (por
sinal, uma simpatia) pertencia aos movimentos de oposição
ao regime do Estado Novo.
Houve escândalo na residência: então andava a Tia Maria
a pagar do seu bolso os estudos da afilhada para ela trocar
as classes por práticas libidinosas com um homem que, para

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mais, conspirava contra a situação? Era sincero o desgosto
da governanta e genuína a sua fúria. A Maria Antónia é que
não esteve com meias medidas: após discutirem as duas, tão
zangada com a madrinha como esta com ela, pegou na sua
trouxa e foi para casa dos pais, que se tinham entretanto fixa-
do no bairro social da Ajuda.
Recordo-me que fui nesse dia acompanhar a minha so-
brinha até Santos, onde apanhou o autocarro para a Ajuda.
A sua saída de São Bento coincidiu com uma das idas do Se-
nhor Doutor e da Tia Maria para o Vimieiro – e desta vez
fiquei em Lisboa. No dia seguinte, recebi um telefonema da
Tia Maria a pedir-me que fosse levar a casa da Maria An-
tónia a sua almofada preferida, que ela havia deixado para
trás. A lembrança fora do próprio Senhor Doutor, que ape-
sar de maçado e ressentido com toda esta história, a ponto
de não ter querido assistir à rotura da pupila rebelde, ainda
mantinha por ela uma ponta de afeto. A Maria Antónia é
que nunca correspondeu ao gesto conciliador: jamais voltou
a pôr os pés em São Bento e nem sequer nos participou o seu
casamento (com o homem que foi a razão da sua fuga – como
eu só soube muito depois) ou o nascimento, logo a seguir,
da filha. Tudo isto, como é lógico, com grande ofensa da sua
madrinha. Direi que a Maria Antónia passou, também ela,
para a oposição.

Emoção no hóquei

Estávamos então em meados dos anos 1950, e eu regres-


sava ao meu primitivo estado de solitária filha adotiva em
São Bento. Se bem que, aos 27 anos, não era já bem esse o

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estatuto que ambicionava. As coisas estavam porém a mudar
também para o meu lado. Mais ou menos ao mesmo tem-
po em que a Maria Antónia saía de casa, eu conheci, numa
segunda matinée no Cinema Tivoli, a ver o filme A Colina
da Saudade, um rapaz que trabalhava como técnico na Ra-
ret, uma retransmissora de emissões de rádio produzidas por
americanos para os países do bloco soviético, com as suas
antenas instaladas no Ribatejo. Algarvio de Olhão, um ano
mais velho do que eu, chamava-se Manuel Rita, tinha o cur-
so do Instituto Industrial e vivia nas Amoreiras na casa do
seu primo Pimenta. Se não foi amor à primeira vista, andou
lá perto, e eu voltei a experimentar aquele sentimento bem
expresso no título inglês da película que tínhamos ido ver:
Love Is a Many-Splendored Thing («O Amor é uma Coisa Ma-
ravilhosa»).
Ao contrário da Maria Antónia, eu seguia a ordem estabe-
lecida em São Bento, e logo confidenciei à Tia Maria a mi-
nha nova paixão. É claro que a sua primeira atitude foi tirar
informações sobre o meu pretendente. E as informações não
foram nada auspiciosas: não que o Manuel fosse um perigoso
subversivo, mas o pai, antigo proprietário de uma fundição
em Olhão, tinha andado em reviralhos contra o regime saí-
do do 28 de Maio, fizera bombas na sua fábrica, tivera de se
refugiar da polícia em Baleizão, no Alentejo, e chegou a estar
preso na cadeia do Aljube, em Lisboa. Eram histórias antigas,
o senhor, coitado, até já morrera, mas no pensamento da Tia
Maria seria mais do que provável ele ter legado um qualquer
gene revolucionário ao filho, dentro daquela lógica de que
«se não foste tu, foi o teu pai».
Por muito preocupada que a Tia Maria tivesse ficado, é
curioso que o Senhor Doutor, antes mesmo de conhecer o

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Manuel, tenha depositado suficiente confiança nele para o
autorizar a entrar em São Bento e a namorar comigo nos jar-
dins, em vez de andarmos pelo exterior em arroubos amo-
rosos.
Quando chegou o momento de eles se falarem, o Manuel
ficou muito nervoso, tremendo por todos os lados. A atitude
de temor era aliás frequente nas pessoas que pela primeira
vez se dirigiam a Salazar, perante o respeito que incutia nos
portugueses. Mas ele tinha por talento e hábito colocar as in-
terlocutores à-vontade, e em pouco tempo a conversa estava
a decorrer com a maior normalidade, sempre conduzida pelo
senhor da casa. Assim aconteceu com o meu namorado, que
achou por bem nada ocultar do passado familiar: o pai fugi-
ra para Baleizão depois de um dos seus correligionários ter
morrido em resultado da detonação acidental de uma bomba,
e a mãe, D. Júlia Moura, ia lá visitá-lo no meio do maior se-
cretismo, tendo sido num desses encontros que o filho foi ge-
rado. Mais do que apreensivo, o Senhor Doutor ficou muito
divertido ao ouvir a história, e admitiu sem complexos o meu
namorado no convívio íntimo de São Bento. Meses depois,
dir-me-ia mesmo que o achava uma pessoa «muito sensata e
equilibrada», o que interpretei como uma luz verde para que
a minha ligação afetiva culminasse em casamento.
Associo o meu namoro ao aparecimento da televisão em
Portugal, um empreendimento estatal só possível com a
aquiescência do Senhor Doutor. Como é lógico, logo de início
foi instalado um recetor em São Bento, já que o presidente do
Conselho tinha de estar a par da grande inovação. O aparelho
– único em toda a residência – estava colocado no quarto de
costura, uma sala muito pequena situada junto à copa do rés-
-do-chão. Em ligação com esta, havia outra sala ainda mais

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diminuta, onde o Senhor Doutor por vezes se sentava, num
misto de divã e sofá, para espreitar pela porta aberta alguma
emissão que lhe pudesse interessar. Mas, passada a novidade,
que ele acolheu como a última das maravilhas, poucas coisas
o mantinham preso ao pequeno ecrã, que era uma festa só
para nós, mulheres (e às vezes o meu namorado), sentadas
no quarto de costura. O que lhe despertava interesse mais
regular eram ainda as notícias, mas sem lhes prestar atenção
diária, preferindo a leitura dos jornais.
De resto, lembro-me dele preso a um bocado de um fil-
me com Vasco Santana, e pouco mais. Havia porém certas
emissões especiais que ele não perdia. Vi-lhe os olhos rasos
de lágrimas ao terminar na RTP uma emotiva final de um
campeonato internacional de hóquei em patins, realizado
creio eu no Porto, em que a equipa portuguesa arrancou a
vitória aos espanhóis. E o Senhor Doutor deleitava-se com
a cobertura televisiva das Noivas de Santo António, à qual
dedicava um pouco do seu tempo, comigo ao lado. Sensibili-
zava-o a alegria dos casais e dos acompanhantes e elogiava a
capacidade organizativa da Câmara Municipal de Lisboa e os
estabelecimentos comerciais que se predispunham a oferecer
prendas aos nubentes.
Se bem que os primórdios da televisão entre nós tenham
ficado também associados à visita a Portugal de Isabel II de
Inglaterra, em fevereiro de 1957, a memória que tenho do
evento é presencial, muito graças à minha proximidade com
o Senhor Doutor. Perante a excitação nacional que desen-
cadeou o anúncio da chegada da monarca britânica, eu não
quis deixar de assistir ao seu desembarque no Cais das Co-
lunas, e obtive um lugar privilegiado no torreão ocidental
da Praça do Comércio, junto ao gabinete onde muito antes

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Salazar iniciara as suas funções governativas como titular
das Finanças. Num dia de sol cristalino, retive a imagem do
bergantim real a aproximar-se do cais e do sorriso, radioso
e permanente, da rainha. Consegui depois junto do Senhor
Doutor um convite para o espetáculo de gala organizado no
Teatro Nacional de S. Carlos em honra da nossa ilustre visi-
tante. Apreciei-a então de mais perto, pois o meu camarote
estava junto à tribuna presidencial. Enverguei aí pela primei-
ra vez um vestido de noite – comprido como é de regra, em
branco-pérola.

A oferta do vestido de noiva

Quanto ao meu casamento, seria imperioso, para a sua


concretização, que D. Júlia comparecesse em São Bento, pe-
rante a Tia Maria e o Senhor Doutor, numa espécie de pedi-
do oficial da minha mão e de acerto planificado das cerimó-
nias nupciais. A mãe repetiu a atrapalhação do filho. Para a
pobre viúva, que nunca se imaginara em tamanhos assados,
ir falar com o presidente do Conselho foi uma autêntica pro-
vação: antes da audiência, vestida com a sua melhor roupa,
tremia como gelatina. Mas creio que o interlocutor cedo terá
desanuviado o ambiente, fazendo-a descontrair-se um pou-
co. No encontro, que durou cerca de uma hora, foi relembra-
do o passado inconveniente do pai do Manuel, e depois de a
senhora ter partido assisti à interpelação do meu tutor pela
Tia Maria:
– Ó Senhor Doutor, então a pequena vai casar com uma
pessoa cujo pai é contra a situação, que andou fugido à justiça
pelo Alentejo e que chegou a estar preso no Aljube?

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Mas ele, fleumático, arrumou logo a questão:
– Ó Maria, em cada mão temos cinco dedos e cada um
deles é diferente, tanto no tamanho como na função. O pai é
um e o filho é outro. Não tem importância.
Perante o nihil obstat do Senhor Doutor, escolhi o orató-
rio da residência para ser celebrado o matrimónio e a sala de
jantar do rés-do-chão para o banquete. Os meus padrinhos
acabaram por ser o casal Nogueira da Silva. Não que fosse
essa a minha intenção inicial: pelo menos no que respeita ao
padrinho, é claro que eu teria gostado de convidar o Senhor
Doutor. Mas, por respeito e acanhamento, faltou-me a cora-
gem. Foi um erro, já que, depois de obter o compromisso dos
Nogueira da Silva, a Tia Maria veio-me com esta conversa:
– Sabes? O Senhor Doutor ficou muito admirado por não
o teres convidado para padrinho de casamento.
Bem arrependida fiquei, mas na altura já não podia recuar.
A minha concunhada bem podia ter-me dado a entender, an-
tes, a disponibilidade do Senhor Doutor. Mas era assim o seu
feitio. Nada havia a fazer.
Realizado a 8 de dezembro de 1957, o casamento consistiu
numa cerimónia íntima, com apenas uma dezena de convi-
dados, mas perfeita, no meu subjetivo ponto de vista. Porque
havia uma zanga qualquer entre a Tia Maria e a sua irmã (e
minha cunhada) Rosalina, optei por não convidar nenhum
dos meus familiares, com receio de ferir suscetibilidades
quanto a quem ia e quem não ia. O enxoval foi pago com as
minhas poupanças, uns 28 contos acumulados numa conta
aberta na Caixa Geral de Depósitos, a partir do meu venci-
mento mensal de 700 escudos. Mas o Senhor Doutor teve a
amabilidade de me oferecer o vestido de noiva, confecionado
pela austríaca Rosi Pollack, uma encantadora refugiada do

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tempo da Segunda Guerra Mundial, grande executante nas
artes do tricô, que possuía em Lisboa, na Av. Fontes Pereira
de Melo, um ateliê onde trabalhavam umas 20 raparigas. No-
gueira da Silva fez questão de me oferecer o trem de cozinha,
comprado na Casa José Alexandre, à Rua Garrett, e comple-
mentado por um faqueiro Christofle. A Tia Maria deu o seu
contributo confecionando todas as múltiplas iguarias servi-
das no banquete. O cónego Carneiro de Mesquita celebrou
a união religiosa, estando presente um segundo sacerdote,
o prior da Basílica da Estrela, padre Tobias, para efetuar o
averbamento do matrimónio. Ao longo da cerimónia, o Se-
nhor Doutor desempenhou o seu habitual papel de sacristão.
Um familiar do meu noivo, o maestro António Melo (que
mais tarde os portugueses conheceriam do programa tele-
visivo Museu do Cinema, apresentado por António Lopes
Ribeiro), tocou uma marcha nupcial num piano cedido pela
Casa Sassetti e instalado junto ao oratório.
Era o dia da minha despedida de São Bento, de mais de
duas décadas de vida em comum com Salazar. Quisemos ir
em lua-de-mel à Madeira, mas o dinheiro não dava para tan-
to – e o Senhor Doutor, sempre brincalhão, tinha antes alvi-
trado que podíamos, em vez da viagem, comprar uns postais
ilustrados da ilha e olhar para eles. Partimos assim para um
périplo pelo continente, num Mercedes emprestado por An-
tónio Cardoso, dono da Fundição de Oeiras, onde o Manuel
tinha começado a trabalhar tempos antes, deixando o empre-
go na Raret. Ao sairmos de São Bento, o Senhor Doutor não
conseguiu evitar uma lágrima furtiva, e, mal controlando a
emoção, segredou para o meu marido:
– Trate-me bem da pequena.

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Os anos 1950 serão a mais entediante das décadas da vida na-
cional no século XX. Olhe-se para as primeiras páginas dos jornais
e, para além do cerimonial oficial, quase só se vêem notícias do
estrangeiro (muito também por culpa da ação castradora da cen-
sura – e da autocensura). A aparente paralisia de tudo no país faci-
lita a vida do Estado Novo e do seu líder. Mas a Salazar, então já na
casa dos 60, faltam claramente os desafios que no passado torna-
ram a sua figura apreciada pelos portugueses e que mobilizavam
apoiantes em torno dos objetivos por ele proclamados. Agora rei-
na a indiferença, a apatia. Ele é o homem que está, que habituou o
país a deixá-lo estar, perdida já a memória de quem estava antes
dele. Como profeticamente escrevera sobre si próprio duas déca-
das antes, ao prefaciar um livro de entrevistas que António Ferro
lhe fizera, «está e há tanto tempo e tão tranquilamente como se
ameaçasse nunca mais deixar de estar». Pois a ameaça está ago-
ra a cumprir-se. «E está, e fica...», acrescentara ele então, para
desfazer dúvidas, assumindo-se como profeta na sua terra.
Salazar conseguiu anestesiar o país. A oeste, nada de novo –
excelente para quem exerce a função governativa. O problema
com um povo dormente é que se torna imprevisível – não sabe-
mos o que o pode fazer acordar nem como vai reagir.
Este é o período dos planos de fomento, na esteira do desen-
volvimento económico europeu garantido pela estabilidade al-
cançada no pós-guerra. Salazar governa agora com segurança e
desafogo, sem preocupações de maior. É certo que o presidente
do Conselho sente algum desconforto causado pelo movimento
descolonizador mundial, que a Índia começa a pressionar para
Lisboa abandonar os territórios de Goa, Damão e Diu. Mas ele or-
dena à diplomacia portuguesa que vá ganhando tempo através
do arrastamento do tema nas instâncias internacionais, quiçá na
esperança de que o assunto fique por aí.
Discutem-se as questões de regime a propósito da morte, em

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1951, do presidente Carmona, o último dos militares associados à
ditadura militar que deu origem ao Estado Novo. Momento para
preparar o regresso à monarquia – defende a ala restauracionis-
ta do salazarismo. Opõe-se-lhe Marcello Caetano, professor de
Direito em Lisboa, reputado intelectual do regime, ministro das
Colónias nos anos 1940 e admirador rendido de Salazar, visto ao
longo da década como seu provável sucessor. Caetano advoga a
continuação do Estado Novo para lá do futuro desaparecimento
do fundador – e marca terreno por ter tido a coragem de ser o
primeiro a mencionar esse cenário entre os epígonos do chefe do
Governo, algo que alguns consideram sacrílego.
Salazar cauciona-lhe o discurso, mas seis anos mais tarde,
quando o outro ocupa o cargo de ministro da Presidência e é nes-
sa qualidade um dos mais próximos colaboradores do presidente
do Conselho, as coisas mudam de tom. Caetano volta a envolver-
-se com os monárquicos e quer publicar um esclarecimento em
nome do governo dizendo que «não existe em Portugal problema
de regime, e tudo quanto se diga em contrário carece absoluta-
mente de fundamento.» Salazar não está com meias medidas, e
ordena à censura que proíba a divulgação da nota – o que o mi-
nistro acata (o respeitinho era então uma coisa muito bonita).
Como, por escrito, explicará longamente o chefe do Estado Novo
ao subordinado, uma coisa é dizer que, no país, «não está posto
o problema do regime», outra, muito diferente, é anunciar «que
não existe em Portugal problema de regime».
Pensaria Salazar no regresso da monarquia após o seu aban-
dono do poder? Tratar-se-ia, no fundo, de ser ele um monárquico
com o cargo de regente numa república de transição? A esta luz,
ganharia outro significado o convite que fez a D. Amélia, poucos
anos antes, para visitar Lisboa, assim como as solenes exéquias
mandadas celebrar pela morte da última rainha de Portugal, com
a trasladação do seu corpo para São Vicente de Fora. Mas tais
ideias, se as teve, o chefe do Governo nem às paredes confessou
– e nunca viria a confessar.

69
149
•••

Os tempos fornecem a tranquilidade para mais e maiores pas-


seios com as mulheres da casa, não só em volta da capital mas
também nas Beiras, quando o grupo se muda para Santa Com-
ba Dão. Ainda a 12 de setembro de 1988, depois de ir buscar as
jovens ao Vinhal, aldeia da Lajeosa (onde estariam por certo a
visitar familiares), Salazar levou-as a Viseu, para uma «visita à ci-
dade, especialmente à Sé», como escreveu na agenda. E a 29 do
mesmo mês, porque tem programadas visitas a melhoramentos
no litoral norte (apesar de estar em Santa Comba Dão), anota:
«De automóvel a Espinho e ao Porto (levei as pequenas)». Depois
do almoço em Espinho, seguiu-se Leixões, onde houve reuniões
com autoridades locais. Mas o jantar já foi no Vimieiro. A 7 de
setembro de 1950, a caminho de mais uma possível jornada de
vinicultura na sua terra, o chefe do Governo regista: «Partida de
automóvel para Santa Comba. Foram também a Micas e a Ma-
ria Antónia. Visitou-se a Batalha, e à passagem pelas Caldas da
Rainha, no Museu José Malhoa, a exposição de quadros deste
pintor».
Três dias depois, após um jantar dominical em Santa Comba
Dão com José António Marques, o casal Nogueira da Silva e a sua
sobrinha (Zézinha, para os amigos), os convidados, como fica es-
crito na agenda salazarista, «pedem que deixe ir a Micas e a Maria
Antónia passar uns dias a Braga (iriam na 2.ª feira de manhã com
eles e regressariam com o Dr. J. A. Marques na sexta)». Todo o
calendário cumprido, segundo o diário: no dia aprazado, pelas 9h,
«as pequenas partiram para o Norte, com a família Nogueira da
Silva», e, na sexta-feira seguinte, «de tarde chegaram de Braga a
Micas e a Maria Antónia no carro do J. A. Marques».
O que se repetirá cerca de um ano depois, a 17 de setembro de
1951 («10h – As pequenas partiram para Braga, passar uns dias»).
Desta vez, por uma semana. E também, de novo, no mesmo mês
de 1953, por 12 dias, sempre com partida da Quinta das Ladeiras.

150
70
Entretanto, com a mudança dos pais de Maria Antónia para a
Ajuda, o bairro passa a ficar também algumas vezes no percurso
dominical de Salazar e as raparigas. É lá que elas almoçam no Na-
tal de 1952, indo ele buscá-las a seguir para um «pequeno passeio
de automóvel». De resto, esses circuitos de lazer prosseguem
por mais alguns anos na década de 1950, mesmo que apenas com
Micas, depois de Maria Antónia virar costas intempestivamente
a São Bento e a Salazar (a derradeira saída com ambas, a ava-
liar pela agenda dele, terá sido a 3 de abril de 1955: «Passeio de
automóvel com as pequenas [...] – Lagoa de Albufeira – Serra da
Arrábida»). A 12 de agosto de 1956, como possível resultado da
viagem de Maria da Conceição a Madrid, a volta é cumprida com
nova companhia: «Pequeno passeio com as pequenas espanho-
las, amigas da Micas – por Sintra, Parque de Monsanto –, regresso
ao Estoril».
São informações que o chefe do Governo continua a debitar
para a sua agenda. E por ela saber-se-á também das ajudas que
Maria da Conceição lhe vai dando no envio de agradecimentos
pelas Boas Festas ou pela oferta de flores. Assim acontece a 29
de maio de 1956 («19h-20h30 – Agradecimento das flores ofereci-
das em 27 ou 28 de abril; 20h30 – Com a Micas, continuação dos
agradecimentos.») ou a 13 de janeiro do ano seguinte («18h30-21h
– Com a Micas – continuação dos agradecimentos de cartões de
certas individualidades, flores, etc.»).
Os derriços de Micas, como não poderia deixar de ser, já tinham
passado a preocupar o mestre da residência de São Bento, a tal
ponto que esse foi um dos dois tópicos da conversa com Manuel
Cerejeira que teve em São Bento a 22 de março de 1954 e que
resumiria na agenda: «Sobre o namoro da Micas – teria tido um
acesso miserável de doença mental». O mistério permanecerá, já
que Maria da Conceição não o desvendou.
Certo é que o quotidiano da jovem, já com 25 anos, continuava
controlado como se de uma adolescente se tratasse. A 22 de abril
de 1955, ela e Maria Antónia têm autorização para irem à opera na

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151
companhia de Carol Garton e do enigmático Herbert Lester, como
assentará Salazar na agenda: «20h45 – Mrs. C. Garton e Lester
(à espera das pequenas [...] para irem para S. Carlos […] Depois
do jantar, ouvi pela rádio o 1º ato da Gata Borralheira (em S. Car-
los [tratar-se-ia de La Cenerentola, de Rossini, que nesse ano foi
apresentada no teatro lisboeta com Giullietta Simionato no papel
principal e direção de Pedro de Freitas Branco]). (As pequenas
chegam à 1h15).» O presidente do Conselho tomava sempre nota
da hora de chegada de Micas a casa e não adormecia enquanto
não o verificasse.

•••
A bonança governativa permitirá a Salazar maior disponibilida-
de para a paixão. Com a jornalista e ensaísta francesa Christine
Garnier, enviada a Portugal para lhe redigir o retrato em livro, o
presidente do Conselho fica embeiçado como talvez com nenhu-
ma outra. Até se passeia com ela pelos arredores da capital, pri-
vilégio que se desconhece ter sido atribuído a mais alguma (para
lá das pupilas e da governanta), além de a receber em vilegiatura
para longas sessões, que Micas vai testemunhando, tanto no For-
te de Santo António como no Vimieiro.
Num depoimento para o livro Os Amores de Salazar, de Felícia
Cabrita, Maria da Conceição dará conta de um problema surgi-
do no forte com a higiene íntima da francesa quanto ela aí ficou
alojada, eventualmente agravado pela falta de acesso a água
quente, segundo o relato da autora: «O que mais desinquietou a
imaginação da rapariga foi, um belo dia, a azáfama da governan-
ta. Maria de Jesus subia e descia escadas com baldes de água
quente. A casa de banho de Salazar parecia que ia receber rainha.
Na verdade, corria entre a criadagem que os franceses eram
gente avessa a águas e limpezas. Salazar não escapava a mitos
civilizacionais, gostava de asseio. Foi a própria governanta quem,
numa vingança prosaica, contou o segredo a Micas: “Disse-me
que Salazar andava muito queixoso porque a Garnier não tomava

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72
banho, só punha cremes na pele. E com a ajuda da Maria lá con-
venceu a francesa a um banho de imersão”.»
Por sua vez, Garnier, no seu futuro livro de memórias, descre-
verá o que observou da presença das duas pupilas (que trata
como «filhas adotivas» do ditador) no quotidiano de São Bento:
«Jantar só, sempre, por volta das 9 horas. Em seguida, a pequena
Maria Antónia ou Micas tagarelam com ele, contam-lhe os seus
momentos escolares ou as ligeiras preocupações da sua idade.
Depois, Maria entra no seu quarto para lhe fazer o “relatório”. En-
fim, é a hora de dormir.»
Na agenda, Salazar daria conta de alguns dos cruzamentos de
Maria da Conceição com Christine Garnier. No regresso a Santa
Comba Dão após a semana passada, em setembro de 1952, em
Braga, trazidas pelo casal Nogueira da Silva e a sobrinha, Micas
e Maria Antónia tinham à espera a visitante francesa e o agente
da PIDE António Rosa Casaco, elemento da segurança pessoal de
Salazar e fotógrafo amador, que aproveitou a presença de todos
na Quinta da Ladeiras para guardar o momento pela imagem para
a posteridade. Garnier volta nesse dia a casa pelo Sud Expresso,
apanhado quase ali à porta, e nesse fim de tarde também Maria
da Conceição tem de apanhar o comboio: «A Micas segue no rápi-
do para Lisboa – às 19h», escreve o então ex-tutor. A 7 de outubro,
já em São Bento, ele acrescenta na agenda: «Distribuição de
fotografias da Micas e Maria Antónia, etc. tiradas em setembro
em Santa Comba». Parece ter sido um acontecimento.
A 5 abril do ano seguinte fica anotada nova interação entre a
jornalista e Micas, ao princípio da tarde: «Fomos à Urgeiriça [em
Nelas, onde se situa o melhor hotel da região] buscar Mme. Gar-
nier (iam as pequenas)». E no dia seguinte, «Mme. G. partiu com a
Micas para Lisboa depois do almoço.» A 28 outubro de 1956, já «a
Micas e Miss Rose [O’Connor, uma irlandesa radicada em Portu-
gal, amiga de Salazar e da sua governanta] foram acompanhar ao
Sud [Expresso] Mme. G.» E a 30 de dezembro 1956 o presidente
do Conselho dedica um periodo de leitura noturna (22h-23h30)

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153
a um «livro sobre o Sião e o Camboja (da Micas – recebido [como
prenda] de Mme. Garnier).»
Estas reiteradas «férias com Salazar» causam intenso falatório
nos corredores do regime, e o caso envolveria até o aparelho di-
plomático, para fazer chegar às mãos de Garnier uma jóia parisien-
se que o seu galanteador português fez questão de lhe oferecer.
À conta de agradecimento pela autoria de um livro que canoniza
Salazar, é certo, mas com um dispêndio financeiro muito supe-
rior ao da mera prenda de circunstância. O que a vista não alcança
o coração esquece, e a francesa – que estraga o seu casamento
pela intensidade dos afetos trocados com o ilustre entrevistado –
haverá de ficar remetida, como outras, à galeria das iludidas pela
crença num passo em frente que Salazar nunca quis dar.
Entretanto, no plano particular, o chefe do Governo tem de se
concentrar no matrimónio de Maria da Conceição, assunto que
trata com grande relevância na agenda. Logo a 1 de dezembro de
1957, a terminar um passeio a Monsanto com Micas e Miss Rose,
o tema a tratar é esse: «16,30-18,45 – Ao Patriarcado – conver-
sa com o Carneiro de Mesquita acerca do casamento da Micas –
papéis, formalidades». Três dias depois, em São Bento, é das
«prendas para a Micas» que o inquilino da residência trata com
António Cardoso e a mulher, à mistura com a «questão do for-
necimento de munições à Alemanha», em que o interlocutor
deve estar envolvido na qualidade de proprietário da Fundição de
Oeiras. Claro que a cerimónia, a 8 de dezembro na própria resi-
dência, fica registada no diário, com indicação da hora: meio-dia.
Tal como fica que, dois dias mais tarde, durante a lua-de-mel,
«a Micas falou de Santa Comba».
Terá sido curta a viagem, já que na noite de 11 de dezembro,
Salazar dá conta de que recebe os recém-casados em São Bento
para dois dedos de conversa. Regressam seis dias depois, fican-
do até às 23h45. E só no domingo 22 de dezembro é que se faz
o apuro dos gastos feitos com a celebração: «19h-21h – Contas
particulares – compras feitas pela Maria (Natal e casamento da
Micas)».

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74
Mesmo já casada, Maria da Conceição não fica dispensada de
manter certas rotinas com Salazar, como na noite de Consoa-
da desse ano: «Agradecimentos de boas festas (com a Micas).»
E também na noite seguinte ela estará com o ex-tutor e o marido
em São Bento, por volta das 23h. Mas já na tarde de 29 de de-
zembro, na voltinha dominical, Manuel Rita parece estar ausente:
«Pequeno passeio por Monsanto – Micas, Miss Rose».
Tudo se mantém, portanto, no seu estado natural – a normali-
dade que se fez obsessão para este homem de rotinas kantianas.
Pelo meio, Portugal aborrece-se. E esse é muitas vezes o senti-
mento que antecipa as grandes convulsões.

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Durante o exame da quarta classe,
depois de Micas ter repetido o ano
por exigência de Salazar. A foto
foi tirada para publicação de uma
reportagem sobre o evento na
primeira página do Diário de Notícias
de 26 de julho de 1941.
© Arquivo do Diário de Notícias
© Hemeroteca Municipal de Lisboa

156
Micas no Vimieiro, fazendo a
saudação dos adeptos do regime
do Estado Novo (tal como dos das
ditaduras europeias).
© Coleção privada dos herdeiros de Maria da
Conceição de Melo Rita. Direitos reservados.

Micas e Maria Antónia nos jardins


de São Bento (c. 1942).
© Coleção privada dos herdeiros de Maria
da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

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Salazar no seu gabinete de trabalho em São Bento nos anos 40
(à esquerda, as orquídeas que Mrs. Cary Garton enviava regularmente
do Funchal). Foto tirada pelo agente da PIDE António Rosa Casaco.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

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Salazar fotografado, em 1952, na
Quinta das Ladeiras, Vimieiro, por
Rosa Casaco (também autor das
fotografias seguintes).
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

Grupo com D. Maria, Maria


Antónia (de tranças) e Salazar
no Vimieiro, em 1952. Atrás,
contígua à residência do
proprietário, uma casa onde
anteriormente dava aulas a sua
irmã Marta (que passou depois
para um edifício mais distante),
transformada em camarata para
os agentes da PIDE que faziam
a segurança.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

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Maria Antónia e Micas no Vimieiro, junto à casa de Salazar,
em 1952. A janela à esquerda era do quarto do chefe do Governo.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

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Na primeira metade dos anos
50, Rosa Casaco faz uma série de
fotografias de Salazar, Micas e
Maria Antónia a passearem nos
jardins de São Bento.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

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Salazar fingindo que trabalha com uma máquina fotográfica,
provavelmente pertencente ao agente da PIDE Rosa Casaco
(e membro do seu corpo de segurança pessoal).
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

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Em algumas das fotografias
feitas por Rosa Casaco nos
jardins de São Bento,
D. Maria junta-se ao grupo.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

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Micas acompanha D. Maria
enquanto a governanta colhe
couves da sua pequena horta
instalada nos jardins
de São Bento.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

165
166
Capítulo 5

Sob céus escuros

N os primeiros seis meses de casada, vivi com o meu


marido num apartamento junto ao Príncipe Real, em
Lisboa, num prédio pertencente a Leitão de Barros, que
alugámos através de uma senhora amiga, frequentadora de
São Bento. Mantinha-se contudo a minha presença junto
do Senhor Doutor, já que todos os dias úteis eu continuava
a caminhar até à sua residência para o almoço. Levava-lhe
por vezes uns pequenos mimos que eu sabia que ele muito
apreciava, como queijos frescos, maçãs Bravo de Esmolfe, da
Beira, ou laranjas do Algarve. Na época própria, acrescenta-
va pequenos buquês de violetas, para satisfazer a sua paixão
pelas flores.
O Manuel havia sido bem recebido em São Bento, o que
me permitia manter a espaços os passeios noturnos com o
presidente do Conselho. Quando as noites arrefeciam, o Se-
nhor Doutor abrigava-me com uma ponta do seu comprido
roupão (como sempre, de lã do Pirenéus), que punha pelas
costas, e cumpríamos as três voltas ao parque a que tempos
antes nos havíamos obrigado. Por fim, sentávamo-nos mais
um pouco num banco de jardim ou, se fosse verão, num
cadeirão de baloiço que uma senhora amiga lhe oferecera.
Numa dessas conversas, ele lamentou que o tempo corresse

7
167
depressa de mais para certas coisas, enquanto para outras pa-
recia uma eternidade.
Continuando a minha vida associada à de Salazar, manti-
veram-se comigo diversos contactos motivados por tal cir-
cunstância. Foi o que, por exemplo, me levou a receber das
mãos da irmã Lúcia uma pagela de santo em cujas costas ela
me escreveu uma dedicatória. A vidente de Fátima andou
aliás, em finais dos anos 1950, a enviar bilhetes manuscritos
ao Senhor Doutor transmitindo pedidos – que com certeza
lhe sugeriam que fizesse – para ele dar um empurrãozinho na
resolução de problemas relacionados com a Ordem das Car-
melitas, à qual ela pertencia, estando então a viver no carme-
lo de Coimbra em regime de clausura. Os papelinhos escritos
por Lúcia ao Senhor Doutor, sempre acompanhados de reca-
dos para a Tia Maria a solicitar-lhe o habitual empenho junto
do chefe, chegavam ao palacete pelas mãos do casal Duarte
Martins, que apoiava financeiramente o carmelo do Estoril.
Conservo dois dos recados enviados por ela ao Senhor Dou-
tor. Num deles, datado de 9 de março de 1959, Lúcia escrevia:

Exmo. Sr. Presidente do Conselho,


Com religiosos cumprimentos e desejando as melhoras da
saúde de V. Exa., a qual [sic] temos pedido a Deus com verda-
deiro interesse, venho enviar a cópia da última resposta recebi-
da referente ao assunto da relíquia da nossa Madre Santa Te-
resa. Como ignoro a direção do hotel onde se encontra o Senhor
Dr. Nosolini, deixo a V. Exa. o cuidado de informar S. Exa. dos
termos da resposta. Com o maior respeito e alta consideração,
sou sempre agradecida e em união de orações.
Ir. Lúcia
i. c. d. [irmã carmelita descalça]

168
8
Nada posso adiantar sobre o que estava em causa com a
relíquia de Santa Teresa (nem a que doença do Senhor Dou-
tor se refere Lúcia), mas apenas que, na aparência, se estava
a aproveitar a estada em Lisboa do nosso embaixador no Va-
ticano para resolver a questão. De ordem mais secular foi o
conteúdo do segundo bilhete, desta vez sem data:

Exmo. Sr. Presidente do Conselho,


Peço desculpa de vir insistir no pedido que tenho feito re-
ferente ao nosso Carmelo do Crato, pedem-mo as superioras
e não posso negar, é que o prazo termina no fim deste mês,
e seria um grande favor se o Senhor Ministro das Finanças
tivesse a bondade de dar um despacho favorável. Com o maior
reconhecimento, sou sempre dedicada em união de orações. Ín-
fima serva,
Ir. Lúcia
i. c. d.

Desconhecendo outros detalhes, deixo aos historiadores


o apuro do problema de contas que as carmelitas do Crato
tinham com as finanças do Estado e do grau de intervenção
que o chefe do Governo terá ou não tido no assunto.

Vocação para a puericultura

Para um jovem casal, a vida não era então fácil. Incapa-


zes de sustentar a renda do apartamento em Lisboa, mobi-
lado e com aquecimento, eu e o Manuel resolvemos mudar
para uma moradia, mais modesta, situada nos terrenos da

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169
Fundição de Oeiras e destinada a funcionários da empresa.
Para aconchegar o orçamento familiar, ainda arranjei uma
segunda ocupação: entre as 18h e as 21h, no Palácio Foz, aos
Restauradores, trabalhava no setor de expedição do perió-
dico Notícias de Portugal, um boletim produzido pelo SNI e
enviado para os nossos emigrantes.
Para mais, fiquei grávida logo às primeiras semanas de ca-
sada, e a chegada de uma criança representava um desafio
também no plano económico. O parto, efetuado na Materni-
dade Alfredo da Costa em setembro de 1958, transformou-se
num transe para mim e o meu bebé, que esteve mais de 12
horas para nascer e foi tirado a fórceps, de tal forma que a
cabeça vinha deformada e tememos por danos irreparáveis.
O Dr. Bissaya Barreto disse-nos mais tarde que determinada
injeção dada à nascença poderia ter evitado problemas, mas
pareceu-me que a equipa clínica não dispunha de tal recurso.
Apareceu um menino, e o seu nome próprio surgiu como
uma inevitabilidade, por razões que nesta altura da narrativa
já posso abster-me de explicar: António. Ou Toninho, como
passámos a tratá-lo em casa, ou ainda Antoninho, como pre-
feriam em São Bento. O bebé passou na verdade a ser uma
fonte de alegria para a Tia Maria e o Senhor Doutor, que
logo após o parto apareceu a visitá-lo, criando verdadeiro
alvoroço na maternidade. Aliás, como também já se tornou
óbvio, os padrinhos não poderiam ser outros que não os
meus pais adotivos – António de Oliveira Salazar e a sua fiel
governanta.
Alguns meses depois do parto, estando eu com a Tia Maria
em Braga para assistir ao funeral da Maria Eugénia Nogueira
da Silva, o Toninho adoeceu e o meu marido acorreu com

170
10
ele a São Bento para se sentir mais seguro. O Senhor Doutor
e uma das suas empregadas ficaram a tomar conta do nosso
rebento, e o dr. Bissaya Barreto foi do parecer de que o To-
ninho lá permanecesse até recuperar. Depois, Salazar e a Tia
Maria afeiçoaram-se à criança. Quando fazíamos tenção de o
trazer para casa, pediam que continuasse no palacete por mais
uns dias. E foi ficando. Embora o meu marido tenha resistido
um pouco à separação, para nós foi uma atitude providencial.
Trabalhávamos até à noite, e, apesar de termos empregada
em Oeiras, dispúnhamos de escassa disponibilidade para cui-
dar do recém-nascido. Sabíamos que em São Bento ele estava
bem entregue, e só aos fins de semana o levávamos para casa.
Se eu tinha sido como uma filha para o Senhor Doutor, ele
agora tinha no Antoninho o seu neto.
Ao contrário do que sucedia com a governanta, para o pre-
sidente do Conselho as crianças não eram um frete – dava-
-lhes toda a atenção na sua presença e não se impacientava
com elas. Foi assim comigo, tal como haveria de ser com o
meu filho. A dedicação do Senhor Doutor ao afilhado che-
gou ao ponto de transmitir conselhos de puericultura à Tia
Maria, desde como aferir a temperatura do leite no biberão
(derramando uma gota sobre o interior do pulso, claro) até
como mudar as fraldas. Com alguma irritação dos agentes da
PIDE que faziam a segurança a São Bento, o Manuel acabou
por receber a chave da residência oficial, de forma a permi-
tir-lhe o acesso a qualquer hora. E, quando o Toninho voltou
a ter uma doença complicada, fiquei eu a dormir com ele no
quarto de hóspedes do palacete.

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Balões no Parque Eduardo VII

Volta e meia, para matarmos saudades, regressava aos pas-


seios motorizados de domingo com o Senhor Doutor. Apenas
na companhia dele, fui conhecer Óbidos, uma jóia urbana,
onde me mostrou a pousada e as ruas estreitas com as suas
janelas floridas. E tempos depois, em 1965, viajámos até Évo-
ra, para ele visitar a Pousada dos Lóios, em vésperas da sua
abertura ao público após a adaptação do velho convento ao
turismo. Um certo domingo, íamos os dois a passar em fren-
te ao novel Planetário Calouste Gulbenkian, em Belém, e ele
disse-me que aquela era uma visita que eu não devia perder.
Prometi que a faria.
Na companhia do meu filho, estávamos um dia a passear
por Caneças e Malveira quando o presidente do Conselho
deparou com dois ou três homens a revolver a terra de en-
xada na mão. Para eles era um ato banal, mas o meu compa-
nheiro, chocado com o que viu, sentenciou:
– O domingo é dia sagrado, e deve ser também um dia de
descanso.
Mesmo sem a minha presença, o Senhor Doutor levava
o Toninho a passear, mandando muitas vezes parar o carro
na Praça Marquês de Pombal, ao fundo do Parque Eduar-
do VII, para lhe comprar balões. No percurso traçado para
o afilhado, figurava uma paragem sob a passagem aérea de
transporte de calcário da pedreira para a fábrica de cimento
de Alverca, na presunção de que a contínua passagem das
vagonetas fosse uma distração interessante para a criança.
Por vezes, ainda voltei a acompanhar o Senhor Doutor às

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12
vindimas no Vimieiro. Numa dessas ocasiões, ele entendeu
que eu devia dar a conhecer o Toninho ao meu pai (que fa-
leceria pouco depois). Lá me levou de novo à Lajeosa, com
idêntica atitude: esperar por mim no carro enquanto eu ia
apresentar o neto ao avô biológico. No regresso ao Vimieiro,
Salazar fez questão de me sublinhar:
– Nunca devemos esquecer as nossas raízes.
Preceito que, no caso dele, era de facto cumprido com ex-
tremo rigor e a mais profunda convicção.
Tinha o Toninho três anos quando o Senhor Doutor nos
alertou:
– Vocês vão ter muitos problemas com o vosso filho.
Como eu desejaria que estivesse errado! Mas não se en-
ganou. As sequelas do parto manifestavam-se por fim, ao
observar-se um processo de desenvolvimento infantil fora
da norma. As dificuldades de aprendizagem então detetadas
levaram-nos a colocar o Toninho num colégio especializado,
mas que não poderia eliminar o problema, apenas atenuá-lo
na medida do possível. O que não obstou a que a criança se
mantivesse em São Bento e a que o Senhor Doutor o conti-
nuasse a considerar o seu ai Jesus, levando-o com ele para o
Forte de Santo António ou mesmo para o Vimieiro. Agora,
das suas calças velhas, além de saias para a Tia Maria, tam-
bém se faziam, quando era preciso, calções para o menino.
Ainda o Toninho andava pelos dois anos quando surgiu a
sua irmã, Margarida. Para mim representou voltar à Alfredo
da Costa – mas agora sem dramas – e de novo receber aí a
visita do Senhor Doutor (aproveitando o regresso de uma ida
ao Patriarcado para levar Carneiro de Mesquita), com o re-
buliço do costume e o comentário que ele me fez à despedida:
– Tens uma filha muito bonita.

13
173
Os meus hábitos prevaleceram: os nossos dois filhos não
só foram batizados em São Bento como fizeram aí a sua pri-
meira comunhão, tendo como cenário o mesmo oratório
onde sempre se rezou missa e onde me casei. Mas, com a
vida já mais bem organizada, conservámos connosco a Gui-
da, embora nos acompanhasse sempre nas visitas a São Bento
ou ao Forte de Sto. António.
Na manhã do dia de Natal, o Senhor Doutor gostava de
assistir enlevado à abertura dos presentes pelo Antoninho.
Mas na véspera, quando ia deitar-se, após a missa e o chá
com bolachas no lugar da ceia de Consoada, já a Tia Ma-
ria lhe colocara aos pés da cama as dezenas de prendas que
haviam enviado ao presidente do Conselho, muitas delas
oferecidas pelas suas eternas admiradoras. Ele recostava-se
no leito, já em camisa de dormir, e a Tia Maria, eu e o Ma-
nuel dispúnhamo-nos estrategicamente em volta, por vezes
comigo sentada numa ponta do colchão. Chegava então o
momento de se começar a abrir os embrulhos, entre a boa
disposição geral. E logo ali ele fazia a distribuição. Ainda o
vejo nessa atitude:
– Isto é para mim, isto é para o Manuel...
Conservava o que lhe interessava (como os cortes de seda
natural para a confeção de camisas, oferecidos pelo casal Duar-
te Martins), e o resto ia direto para o meu marido, guardando
o presidente do Conselho apenas os cartões com os nomes
dos ofertantes, para lhes agradecer por escrito. Nem sempre
lá estávamos nessa noite, mas quando acontecia era o Manuel
quem ficava a ganhar, com as meias e gravatas que o Senhor
Doutor rejeitava – ou porque se repetiam os padrões e os gé-
neros (e ele não gostava de possuir um guarda-roupa muito
extenso), ou porque o estilo era desadequado ao seu perfil.

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Quanto aos meus presentes de Natal para o Senhor Dou-
tor, eram sempre coisas simples, mas úteis – já não me lem-
bro porquê, mas talvez ele me tivesse dito que essas eram
as suas preferências. Ficava-me portanto pelos sabonetes
Luxo Banho, da Ach. Brito, e Feno de Portugal, que ele mui-
to apreciava, comentando em relação ao primeiro – pelo seu
enorme tamanho – que ficava com sabonete para o ano in-
teiro. Pelo aniversário, tinha por hábito oferecer-lhe outros
produtos de toilette igualmente práticos: «petróleo químico»
Nally, um tónico capilar que ele não dispensava, e after-shave
Floid, a sua marca habitual. Quanto a perfume ou água-de-
-colónia, não valia a pena, que ele nunca os usou.
Tanto na noite de Natal como em qualquer outro serão,
era inútil dar a Salazar café para combater o sono ou o cansa-
ço. Ele sempre detestou o sabor da bebida, optando pelo chá.
Do mesmo modo, nunca fumava – e, mais do que isso, não
tolerava o fumo nem que se acendesse um cigarro perto dele.
Os ministros estavam bem cientes desse pormenor, e, por
muito dependentes que fossem do tabaco, nunca ousaram
fumar à sua frente. Aliás, nunca vi uma pessoa a fumar junto
do Senhor Doutor. O Manuel, fumador inveterado, saía para
o jardim para puxar a sua fumaça. E ai dele se a Tia Maria o
descobrisse de cigarro na mão...

Um detido em Caxias

De política pouco se falava em São Bento. O Senhor Dou-


tor não era do género de fazer proselitismo permanente, e só
raramente puxava de um argumento a favor da sua forma de
governar. As eleições presidenciais de 1958, que causaram

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um abalo no regime com a candidatura do general Humberto
Delgado, passaram despercebidas dentro da residência. Pelo
menos foi essa a minha perceção.
Anos antes, lembro-me, ao receber o correio à porta do
palacete, das muitas cartas que esse mesmo general, ao tempo
em que era um leal colaborador de Salazar, lhe enviava para
São Bento quando estava numa qualquer missão oficial nos
Estados Unidos – os sobrescritos tinham um formato retan-
gular pouco usual no nosso país e o nome do remetente esta-
va bem visível. Mas confesso que não retive um só comentá-
rio ouvido na residência acerca desse desafio à autoridade de
Salazar que foi a campanha eleitoral de maio e junho de 1958.
Em contrapartida, quando o general Delgado foi assassi-
nado por uma brigada da PIDE, uns sete anos depois, re-
cordo-me de a Tia Maria contar que o Senhor Doutor ficou
muito surpreendido e aborrecido, por não estar à espera des-
se desfecho, para o qual aparentemente não terá dado ordens.
Apesar do nosso alheamento, a política acabou por nos
entrar pela porta dentro devido a uma circunstância muito
curiosa: o Pimenta, o primo do meu marido em cuja casa o
Manuel vivia antes de se casar, funcionário público exemplar
(creio que então já reformado), de quem eu muito gostava,
foi detido na Baixa, para nossa grande surpresa, por estar a
distribuir propaganda contra a situação (não me recordo da
época, mas é possível que tenha tido relação com a candida-
tura de Delgado). Nunca o imagináramos nesse tipo de cons-
pirações. Eu e o Manuel fomos visitá-lo à prisão de Caxias,
num edifício de que guardo uma imagem um pouco sinistra,
quase todo enterrado abaixo do nível do solo, que não me
deixou as melhores impressões. Recordo-me de o Pimenta
ter saído da zona das celas para uma espécie de antecâma-

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ra ou sala de visitas, onde falámos com ele. O meu marido
deu-lhe uma lição – que já tinha idade para ter juízo. Pedi-
mos-lhe para aguentar mais algum tempo, que íamos tentar
resolver a situação dele.
Depois fomos falar com o Senhor Doutor, pedindo-lhe
que intercedesse pelo Pimenta. Desta vez, a despesa da con-
versa coube sobretudo ao Manuel. Explicou que o primo até
defendia o regime, que não era mal-intencionado, mas que
terá sido uma infelicidade de ocasião: alguém lhe entregara os
tais prospetos e ele, pouco consciente, pôs-se a distribuí-los.
Resultou: acreditando ou não, o chefe do Governo mexeu os
cordelinhos e o Pimenta foi libertado ao fim de dois dias de
detenção, sem ser objeto de qualquer processo. Ficou-lhe de
emenda, pois nunca mais se meteu noutra.
Se em algum momento os eventos políticos invadiram a
esfera privada de São Bento, isso deu-se com as crises do ano
de 1961, que começou com o desvio do paquete Santa Maria,
continuou com o início da guerra em Angola e terminou,
uma semana antes do Natal, com a ocupação do Estado Por-
tuguês da Índia (Goa, Damão e Diu) por forças da União In-
diana. Nesse dezembro, pela primeira vez, o Senhor Doutor
não quis celebrar connosco a Consoada, e quando o quisemos
distrair à noite reagiu como se censurasse a nossa leviandade:
– Eu não tenho Natal, como muitas centenas de portugue-
ses também não o terão.
Notei que, com as guerras em África, mudou de semblan-
te, agora mais melancólico e misantropo. Não dormia, traba-
lhava pela noite dentro e acabou por mergulhar em profunda
depressão. Dissera-me que tinha como ponto de honra deixar
aos vindouros o mesmo país uno e indivisível que encontrou
quando entrou para o Governo, em 1928. Agora sentia essa

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ambição fugir-lhe debaixo dos pés. Num dos nossos passeios
noturnos, confessou-me o que lhe ia na alma:
– Quando eu morrer, isto vai ser tudo desmembrado.
O país será uma bagunça e as nossas colónias irão todas ao ar.
Noutra ocasião, dissera ao meu marido:
– É pena não podermos experimentar o comunismo
durante um ano, que o povo aprendia.
Mas era também a nostalgia da terra natal que o consu-
mia. Um pouco mais para a frente, com o correr dos anos,
comecei a sentir-lhe certa tristeza pela passagem inexorável
do tempo, que comprimia cada vez mais o período de re-
forma que dizia ainda querer gozar no Vimieiro, dedicado à
sua querida Quinta das Ladeiras, mas também a escrever as
memórias, a ler os livros que ainda gostaria de ler, sob um
certo carvalho por ele plantado, e a admirar as magníficas
cameleiras e hortênsias plantadas numa álea que rasgava a
propriedade.

A «casa de Salazar»

No início dos anos 1960, a nossa vida melhorou no pla-


no económico, a ponto de começarmos a pensar em ter casa
própria. Mais uma vez, os conhecimentos feitos em São Ben-
to facilitaram a procura. A nossa escolha recaiu numa viven-
da geminada que estava a acabar de ser construída na Parede,
junto ao mar, não muito longe do Estoril. O construtor, casa-
do com uma prima de Nogueira da Silva, era um engenheiro
irmão de James Pinto Bull, que anos mais tarde, enquanto
deputado à Assembleia Nacional, viria a falecer na queda de
um helicóptero na Guiné Portuguesa.

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Aliás, a ajuda do dono da Casa da Sorte foi decisiva para a
nossa empreitada, já que desde início se disponibilizou a em-
prestar-nos o que nos faltava para o investimento, ficando
nós de lhe ir pagando à medida que pudéssemos. E quando
chegámos ao momento de lhe entregar a última prestação,
ele rejeitou-a, dizendo-nos que era uma oferta.
As obras duraram ainda alguns meses, durante os quais o
Senhor Doutor visitou várias vezes o empreendimento para
avaliar a evolução dos trabalhos. Elogiava a beleza e a tran-
quilidade do local, e em certa altura disse-me até que achava
a nossa casa melhor do que a dele no Vimieiro. É claro que
as suas visitas causavam sempre o habitual sobressalto na vi-
zinhança, e às tantas a nossa vivenda passou a ser conhecida
como «a casa do Salazar», para grande irritação do Manuel.
Instalámo-nos em 1964, meses depois de termos feito,
no Santa Maria, um cruzeiro de passagem de ano à Madeira.
Mudei então de hábitos, indo a São Bento buscar o Toninho
para os fins de semana, e à segunda-feira de manhã passava
por lá outra vez para o deixar, antes de entrar ao serviço. No
verão, quando o Senhor Doutor estava no forte, sempre que
ia a Lisboa para um Conselho de Ministros, no regresso, ao
fim do dia, dava-me boleia para a Parede.
Esse foi para mim um ano de grandes mudanças, já que em
1964 também saí do meu emprego no Instituto de Assistên-
cia aos Menores para me empregar na Cidla, uma sociedade
distribuidora de gás em botija que fazia parte do grupo em-
presarial de combustíveis Sacor, onde pontificava Francisco
do Casal Ribeiro, deputado à Assembleia Nacional e fervoro-
so apoiante de Salazar. Foi por intermédio dele, aliás, que ob-
tive colocação nos escritórios da empresa, em Lisboa, depois
de uma pessoa amiga mo ter apresentado.

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Alguns meses depois, a Tia Maria foi hospitalizada com
um problema cardíaco mas que acabou por lhe afetar o equi-
líbrio mental. Por isso, já durante a recuperação no palace-
te, o Senhor Doutor insistiu para que eu ficasse junto dela.
Dada a exiguidade do seu quarto, eu deitava-me no chão em
cima do tapete, ao lado da cama. A minha concunhada estava
muito perturbada: levantava-se a meio da noite, ia para os
corredores, queria enfiar-se na sala do oratório. Mas tudo
se recompôs. Quando retomei o trabalho, o Senhor Doutor,
sempre vigilante, escreveu uma carta a Casal Ribeiro pedin-
do para me descontarem no ordenado os dias em que estivera
com a Tia Maria. Desta vez, porém, nada me foi deduzido.
Mesmo o poder de Salazar tinha limites.

Com o caso Humberto Delgado, na primavera de 1958, dá-se o


primeiro abalo sério nos fundamentos do Estado Novo. Mas Ma-
ria da Conceição, casada de fresco, há já uns meses que deixara
de habitar em São Bento, pelo que não testemunhará o impacte
que, dia após dia, a candidatura presidencial do general vai tendo
no perturbado quotidiano salazarista, ao longo dessas perigosas
semanas de maio e junho.
A pupila, já grávida do primeiro filho, haverá porém de tomar
contacto com uma realidade que, enquanto habitante de São
Bento, sempre lhe escapara. Um primo do marido, apoiante de
Delgado, é detido pela PIDE. Nada que não se resolva com um
empenho direto junto de Salazar, logo obedecido. A agenda do
presidente do Conselho regista, depois do casamento de Micas,
sucessivas visitas dela e do marido à residência oficial (sobretu-
do aos domingos à noite), pelo que proximidade e oportunidade
não lhes terão faltado para suscitarem a questão do sr. Pimenta.

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Quanto à tormenta eleitoral, quando já parecia possível que o
general, um dissidente do regime, poderia ser eleito e cumprir a
sua promessa de demitir o chefe do Governo, Salazar reage com
forças policiais nas ruas, com a proibição de manifestações de
apoio ao candidato oposicionista e com a colocação de agentes
nas urnas para assegurar que, independentemente de quem vota,
o resultado seja só um. Garantida a vitória do homem do Estado
Novo (o contra-almirante Américo Tomás, uma vez que o suces-
sor de Carmona, Craveiro Lopes, se havia tornado persona non
grata para Salazar), tratar-se-á apenas de mudar a lei para ga-
rantir que o regime não venha a ser surpreendido pela incerteza
de outro sufrágio universal para Belém: o Presidente passa a ser
votado exclusivamente por um colégio eleitoral da confiança do
poder.
Era, afinal, o regresso às fábulas contadas duas décadas antes
a Micas. Salazar permitia-se agora proclamar, tal como a ave para
o leão que julgava tê-la devorado: «Mocho comi, mocho comi, ou-
tro sim, mas não a mim!»
Mas o fenómeno Delgado expusera à luz do dia quão vasta era a
erosão da antiga popularidade de Salazar: quase um isolamento.
Faz 30 anos que o homem está no poder. Para outro, a campa-
nha presidencial poderia significar um sinal de que seria melhor
começar a arrumar as malas. Não para ele. Com o seu orgulho
ferido, insiste em continuar. Há sempre uma explicação: o país
precisa dele. O país precisa sempre dele porque ele nunca prepa-
ra uma alternativa.
Conforme se deduz das agendas onde metodicamente conti-
nua a registar os eventos de cada uma das suas jornadas, nada
se altera nas rotinas de Salazar. O acompanhamento de Maria
da Conceição e da sua nova família é aí cuidadosamente anota-
do. Desde o aparecimento dos filhos, a 30 de setembro de 1958
(«O pequeno da Micas nasceu às 18h30») e a 6 de março de 1960
(«Nasceu de madrugada uma menina da Micas; 11h50 – Para Be-
lém, conferência com o Senhor Presidente – regresso pela ma-

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ternidade para ver a Micas»), até às diligências para a construção
da residência para o casal, na Parede. A primeira indicação quan-
to ao projeto surge no domingo 28 de maio de 1961, em cuja tarde
Salazar passeia até Oeiras e Parede com o olhar na «casa que a
Micas gostaria de comprar (do Eng. Bull)». Na noite de 31 de julho
seguinte, volta «a Oeiras, com a Micas», por certo com o mesmo
intuito. A 25 de agosto, uma sexta-feira, promove um jantar em
São Bento com o homem da Casa da Sorte para desbloquear a
questão: «Vieram a Micas e o Marido falar com o Nogueira da Sil-
va acerca da compra de casa». E na tarde de 6 de setembro volta
a falar com o empresário bracarense sobre o assunto: «Nogueira
da Silva – empréstimo à Micas para compra da casa». A «casa de
Salazar» passa assim a fazer parte de muitos dos seus circuitos
dominicais, como a 14 de janeiro do ano seguinte («Pequeno pas-
seio – a casa da Micas, à Parede»), três semanas depois («Peque-
no passeio de carro, à Parede, Oeiras, Monsanto – regresso») ou a
2 de fevereiro de 1964 («Pequeno passeio a Oeiras e Parede – casa
da Micas»).
As preocupações de Salazar com o problemático filho de Maria
da Conceição também transparecem da sua agenda (onde, logo
no dia do seu batismo, ele se assume como padrinho, mas por
ausência de um primeiro convidado: «8 de dezembro de 1958, 11h
– Veio o Prior da Estrela – Batizado do filhito da Micas (padrinho
por procuração do Nogueira da Silva), assinatura do assento»).
A 9 de janeiro de 1964, discute em São Bento com duas freiras
da Ordem das Doroteias (madres Belo e Gabriela, provavelmente
as que figuram numa fotografia tirada à época no Forte de Santo
António com o chefe do Governo e o afilhado) «sobre o Toninho
na escola».
Revelam ainda os diários ser neste periodo que Micas viajou
com o antigo tutor a Óbidos, a 11 de outubro de 1964 («Visita à
pousada, chá») e a Évora, a 21 de março do ano seguinte («Visita
à pousada dos Lóios, regresso por Arraiolos com o governador
civil (também se viram as piscinas)», além da visita que fizeram

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ao ateliê de Leopoldo de Almeida (1 de dezembro de 1964, com
a indicação explícita na agenda: «estátua para Santa Comba».
Além disso, dando continuidade ao viver habitualmente, a pupi-
la ainda o assiste no despacho de cartões, como a 5 de janeiro
de 1965: «18h-21h30 – Agradecimento de flores, etc., pelo Natal
(a Micas ajudou)».
A 9 de fevereiro de 1964, constata Salazar: «Micas – pretende
sair do Instituto de Assistência aos Menores para passar para
a Cidla». Intenção cumprida, terá escapado ao próprio a ironia
da sua anotação de 17 de janeiro do ano seguinte, um domingo,
depois de ter recebido ao fim do dia em São Bento duas freiras do
Colégio do Ramalhão, em Sintra: «Levei as Madres ao Ramalhão;
regresso pela Parede (envenenamento com gás Cidla em casa da
Micas)». Ao que tudo indica, sem sequelas de maior.
Subestima-o quem pensa que, já com mais de 70 anos, o cria-
dor do Estado Novo estaria acabado no início dessa década. Com
notável destreza política e capacidade de manobra, conseguiu
sobreviver ao annus horribilis de 1961: desvio do paquete Santa
Maria, carregado de passageiros, por um grupo armado oposicio-
nista; revolta nacionalista em Angola e início da guerra colonial
no território; tentativa de golpe de Estado por parte do ministro
da Defesa, Júlio Botelho Moniz (que Salazar despoleta com uma
brilhante jogada de antecipação, sem que haja um único movi-
mento de tropas); invasão do «Estado Português da Índia» pela
União Indiana e perda desses territórios (com a guarnição por-
tuguesa local desobedecendo às ordens do presidente do Con-
selho para resistir até ao último homem); e por fim, já na noite da
passagem para o ano seguinte, tentativa de assalto ao quartel de
Beja por outro grupo de combatentes anti-salazaristas.
Respira-se de qualquer modo em São Bento uma atmosfera
de decadência, como notará, nas suas memórias, Christine Gar-
nier, que continua a ser convidada de Salazar à conta do antigo
devaneio amoroso e repara noutro ambiente ao regressar a meio
dos anos 1960: «Nada mudou na casa de Salazar? Sim. Nuances

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primordiais. Na nossa amizade, não sei quantas brechas. As gran-
des amizades, como os amores, têm os seus tropeções, as suas
deceções, as suas questões, as suas reivindicações, os seus
ciúmes, as suas miudezas, os seus mistérios […]. Ali também o
próprio “clima” era diferente. Salazar tinha acolhido para junto de
si o filho de uma das suas filhas adotivas, uma criança atrasada,
de uns seis ou sete anos, que inundava São Bento com os seus
gritos demenciais e mordia quem tentasse aproximar-se dele.
Era bastante assustador, e Maria, que tomava conta do miúdo,
via as suas próprias forças a definharem. Maria ocupava-se tam-
bém de vários parentes doentes – camponeses de barrete de lã
ou de lenço negro –, que eu entrevia na vasta cozinha ou reunidos
à hora da televisão em redor de um aparelho. E Salazar queixa-
va-se: “A Maria tomou a seu cargo uma quantidade de pessoas.
Já não tem tempo para pensar em mim!” O tempo dos sorrisos
parecia terminado.»
Mesmo assim, se ao fim de tantos perigos ainda permanece na
cadeira do poder, Salazar parece nela manter-se de pedra e cal.
Mas agora chega o ponto culminante da «dolorosa ascensão dum
calvário» que ele anunciara muitos anos antes, logo após tomada
de posse como ministro das Finanças, ao sintetizar a sua propos-
ta de solução para os problemas nacionais: «No fim podem mor-
rer os homens, mas redimem-se as pátrias!»
E os homens morrem, em Angola, na Guiné, em Moçambique
– finalmente uma guerra (em três frentes) que o chefe do regi-
me não consegue evitar. Morrem e matam. E matam também
Humberto Delgado: atraído a uma cilada pela PIDE em fevereiro
de 1965, é executado (juntamente com a sua secretária e amante,
a brasileira Arajarir Campos) por uma brigada chefiada pelo mes-
mo Rosa Casaco que tantas fotografias tirara a Salazar e a Micas.
Não se encontrarão provas de que o presidente do Conselho sou-
besse a priori da operação, mas, conhecedor dos seus detalhes
logo a seguir, resolve mesmo assim dar a entender numa comu-
nicação televisiva, passados já vários meses sobre o crime e a

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24
descoberta dos cadáveres, que a responsabilidade fora de uma
oposição dividida em fações. Tanto pior para os elevados valo-
res morais da ação política que ele anunciara como sagrados nos
tempos inaugurais da sua governação.

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Maria Antónia e Micas no
palacete de São Bento inundado
de flores, o que acontecia
por regra em fins de abril,
aniversário de Salazar e da sua
entrada para o Governo.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

Micas e Maria Antónia acompanham Salazar no auditório


do Palácio Foz, em março de 1953, durante a
projeção de um conjunto de filmes sobre uma viagem ao
Oriente do ministro do Ultramar, Manuel Maria Sarmento
Rodrigues (à esquerda), por alturas do 4.º centenário do
nascimento de S. Francisco Xavier.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita. Direitos reservados.

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Micas com Salazar e uma amiga
brasileira do presidente do
Conselho, Sue Nogueira
(que fazia estudos em Lisboa),
no forte de Santo António,
em 1956.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

Lendo o Diário da Manhã,


jornal apoiante do Estado
Novo, no forte de Santo
António (c. 1953). Foto de
Rosa Casaco.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

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Salazar, tendo atrás a amiga de Micas,
Maria José Nogueira da Silva, e D. Maria,
no forte de Santo António,
em São João do Estoril (c. 1953).
Foto de Rosa Casaco.
© Coleção privada dos herdeiros de Maria da
Conceição de Melo Rita. Direitos reservados.

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Salazar conduz Micas ao altar improvisado em São Bento
no dia do casamento da pupila (8 de dezembro de 1957).
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita. Direitos reservados.

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Limpando uma lágrima a Salazar após as cerimónias
do matrimónio, sob o olhar da mulher de
Nogueira e Silva, Maria Eugénia.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita. Direitos reservados.

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Os participantes na festa do casamento, na escadaria da
residência de São Bento: ao lado de Micas e do noivo,
Manuel Rita, o cónego Carneiro de Mesquita;
na segunda fila, Nogueira da Silva e D. Maria, e atrás
desta Maria Eugénia Nogueira da Silva; ao centro,
Salazar e uma irlandesa visita da casa, Miss Rose
O’Connor; atrás, à direita, a sogra de Micas, Júlia
Moura, semi-oculta por António Cardoso, dono da
Fundição de Oeiras, que tem a seu lado a mulher,
Janine, e à frente o filho Ricardo; na última fila,
à direita, o prior da Basília da Estrela, padre Tobias,
e ao lado dele o pianista António Melo e a mulher.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita. Direitos reservados.

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Durante a boda do casamento, realizada
também no palacete de São Bento.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita. Direitos reservados.

À hora da refeição no forte de Santo António. Micas está


debruçada, à esquerda, sobre Salazar conjuntamente com uma
prima em segundo grau do chefe do Governo, Maria Manuela
Salazar Branquinho, e o marido desta. Em segundo plano, Manuel
Rita senta-se na mesa reservada ao casal e a D. Maria.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita. Direitos reservados.

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Salazar e D. Maria
com o primeiro filho
de Micas, António,
no seu gabinete de
trabalho em São
Bento. Sob os pés do
chefe do Governo,
a escalfeta que
habitualmente usava
no inverno.
© Coleção privada dos
herdeiros de Maria da
Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

No dia do batizado
de Margarida,
filha de Micas.
© Coleção privada dos
herdeiros de Maria da
Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

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Salazar com Antoninho no
seu gabinete de trabalho.
No chão, uma cópia do
Plano de Desenvolvimento
Económico e Social de
Espanha, do governo do
general Franco, idêntico
aos Planos de Fomento
do executivo salazarista.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

Salazar com Antoninho e duas freiras da


Ordem das Doroteias, de visita ao forte de Santo António,
junto às rochas que dão para uma pequena praia à frente.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita. Direitos reservados.

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Salazar fazendo-se acompanhar por Antoninho
de visita a uma exposição.
© Coleção privada dos herdeiros de
Maria da Conceição de Melo Rita.
Direitos reservados.

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Micas e o marido (à direita) em visita à clínica
da Cruz Vermelha durante a doença de Salazar
(8 de setembro de 1968).
© AFL-CDF/MC/SEC/AG/01-183/3697 AT)

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Maria da Conceição de Melo Rita fotografada
em 2007 para a primeira edição deste livro.
© Clara Azevedo

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do Governo transmitiu à Tia Maria a sua estranheza por, ao
contrário do habitual, eu não ter pedido bilhetes para a ceri-
mónia – lapso meu, que pensava que o momento era apenas
reservado a entidades oficiais).
Também se tornara num cético sistemático quanto ao
futuro. Achava que o mundo estava virado do avesso e via
com pessimismo o que viria a seguir. Quanto a Portugal, a
sua grande preocupação era a eventual perda das colónias.
Admitia que os povos africanos tivessem grande potencial
de desenvolvimento, que seria facilitado pelas riquezas natu-
rais dos seus territórios. Mas achava aquela gente atrasada e
advogava que mais colonos fossem da Metrópole para o Ul-
tramar, ensiná-la e promover o seu progresso. De qualquer
modo, não concebia como razoável na África portuguesa
qualquer forma de autogovernação (muito menos indepen-
dência) a curto prazo.
O Senhor Doutor continuava, de resto, tão dedicado à cau-
sa pública como monástico nos hábitos. Se queria preparar
uma reforma dourada, nunca fez por isso. O balanço entre o
deve e o haver no seu orçamento pessoal, com as dificulda-
des inerentes à conservação das propriedades no Vimieiro,
arrastando a construção de muros para suster socalcos como
se fossem as obras de Santa Engrácia, permanecia próximo
do zero. Não fazia tenção, aliás, de deixar fortuna. Ouvi-o
dizer certa vez:
– Quando eu morrer, nem o pó das botas quero levar.
Dava por isso grande parte dos objetos que lhe ofereciam.
Adiantando uma outra razão: desse modo, não seriam des-
truídos pelos que lhe sucedessem. Conservo uma grande
ampliação, preparada para se pendurar na parece como um
quadro, de um admirável retrato a cores que no início dos

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42
anos 1960 lhe foi tirado por um fotógrafo sueco. Pouco tem-
po depois, o Senhor Doutor entregou-mo, dizendo:
– É para ti. Guarda-o, antes que vá parar a um velho sótão.
Nas costas do retrato, escreveu: «À guarda da Micas. No-
vembro de 1963. A. O. Salazar». Fazia-o sempre que oferecia
um documento do seu acervo, como uma marca pessoal ga-
rantindo não se tratar de uma subtração mas de uma doação
legítima do proprietário original. No primeiro retrato foto-
gráfico que tirou quando se instalou na capital (então ainda
com menos de 40 anos), de que fez questão de também me
dar uma reprodução, escreveu, por exemplo: «Da Micas. Que
seja boa e não se esqueça de mim. Dezembro de 1948»
Nem sempre, porém, o Senhor Doutor podia apor a sua
certificação autógrafa nas ofertas que distribuía, como nas
caixas laboriosamente trabalhadas que lhe chegavam às mãos
encerrando esta ou aquela matéria simbólica (um pouco de
terra de umas courelas doadas pelo Estado a camponeses de
Palmela ou uma prenda do imperador etíope Hailé Selassié,
para mencionar duas das várias com que me brindou) ou
ainda no boneco policromado representando um menino
tirolês que lhe foi trazido por uma das meninas austríacas
acolhidas durante uns tempos em Portugal no rescaldo da
Segunda Guerra Mundial (e que Salazar também me ofer-
tou). Porém, quanto à tal caixa dos rurais de Setúbal, toda
revestida a prata, ele teve o cuidado de colocar no seu inte-
rior, cobrindo todo o fundo, um papelinho onde escreveu:
«Dou à Micas esta caixa que me foi oferecida pelo povo de
Cabanas (Setúbal) com terra das propriedades mandadas ex-
propriar para serem distribuídas pelos atuais cultivadores.
Em 8 de dezembro de 1954, dia da Imaculada Conceição.
Oliveira Salazar.»

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Onde ele não pôde mesmo colocar a sua marca foi na enor-
me pele de crocodilo que se guardava no sótão do palacete, da
qual já falei. Deu-ma apenas, e eu aproveitei para mais tarde
dela mandar fazer uma arca.
Sendo toda a zona particular do palacete de São Bento re-
cheada com móveis e outros objetos do Senhor Doutor, tam-
bém o preocupava o seu destino, já que na residência do Vi-
mieiro, por ele construída quase contígua à casa onde nasceu
(e a qual sempre preservou), não havia cabimento para tan-
ta coisa. Ainda nos disse uma vez, a mim e ao meu marido,
quando falávamos com ele no primeiro andar de São Bento:
– Não comprem mobília, que tenho aqui muita coisa para
dar.
Como é óbvio, não poderíamos ficar à espera que o Senhor
Doutor abandonasse o palacete para mobilar a nossa casa, e
depois disso haveríamos de ter o mesmo problema que ele
no Vimieiro. Mas não digo que não gostasse de conservar
algumas das peças de São Bento, até pelo seu valor simbólico
e pelo que despertavam em mim de vivências passadas.

Cunhas para Salazar

Quase três décadas após a imprensa ter anunciado ao país


a minha existência como pupila do Senhor Doutor, ainda ha-
via gente com memória para me associar ao presidente do
Conselho e achar que eu podia ter influência nele. Pessoas
desconhecidas enviavam-me recados e entregavam-me pe-
didos para coisas mais ou menos mirabolantes, alguns refle-
tindo situações de vida bem complicadas. Depois de ler as
cartas, tinha por costume entregá-las ao Senhor Doutor, que

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44
por sua vez mandava o secretário enviá-las para os compe-
tentes departamentos estatais.
Recordo-me de uma carta em especial, enviada do Porto
por um homem morador no Campo Alegre, casado e com
filhos, que me descrevia um quadro dramático: uma doen-
ça pulmonar impedia-o de trabalhar e sustentar a família.
O Senhor Doutor lá encaminhou o problema, e pouco depois
o remetente deu entrada no Sanatório do Caramulo, onde
terá recuperado. A história não terminou aqui: uns dois anos
mais tarde, acompanhado da mulher e dos filhos mais peque-
nos, o homem apareceu-me no sétimo andar da sede da Ci-
dla, no Marquês de Pombal, onde desempenhava as minhas
funções de secretariado, para me agradecer a diligência e in-
formar-me que já estava bem de saúde. A sua gratidão tornou
o episódio, para mim e para sempre, memorável.
Como homem de hábitos, o Senhor Doutor mantinha com
pontualidade suíça as suas idas ao Vimieiro tanto pela quadra
pascal como pelas vindimas. Na Páscoa de 1966, eu e o Manuel
entendemos fazer-lhe uma surpresa. Partimos da Parede por
volta das 7h da manhã, parámos na Bairrada para comprar no
Pedro dos Leitões uns pedaços de bacorinho como o nosso
amigo gostava e seguimos para o Vimieiro. Perto de Santa
Comba Dão, porém, cruzámo-nos com o carro dele: vinha
de Viseu, onde tinha ido assistir à missa em casa da família
Quevedo Crespo. Conheceu-nos, mandou o motorista parar
e pediu-me para me sentar ao lado dele. No pequeno percur-
so até ao Vimieiro, a sua preocupação era saber a que horas
tínhamos saído da Parede para estarmos ali tão cedo, porque
ele não gostava de altas velocidades e admoestava quem as
praticasse. A Tia Maria fez-nos uma salada, e eu e o Manuel
almoçámos com Salazar no remanso campestre. À tarde, an-

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205
tes do regresso, fomos visitar a grande cameleira das Ladeiras,
de que ele muito se orgulhava. Voltámos para a capital com a
convicção de que fora apreciada a nossa aparição.
Sempre atencioso, Salazar exprimia curiosidade sincera
pela evolução das nossas carreiras. Em meados da década de
1960, o meu marido partiu para Paris com o objetivo de se
especializar no fabrico de banheiras em ferro fundido reves-
tidas a esmalte, uma novidade à época (tendo sido ele quem,
depois, orientou o fabrico da primeira peça do género a sair
das instalações de Oeiras – um modelo que viria a equipar
grande parte dos novos lares portugueses –, o mesmo acon-
tecendo logo a seguir com fogões a gás produzidos também
por esse processo). O proprietário da Fundição de Oeiras era
dono de uma empresa idêntica nos arredores da capital fran-
cesa, onde o Manuel teve todas as condições para se formar
no novo método. Pois o presidente do Conselho, falando
com o meu marido sobre o assunto, revelou-se muito inte-
ressado não só na técnica de produção das banheiras como na
composição do seu material.
Mas a relação do Manuel com a empresa, apesar da facili-
dade com que subiu na hierarquia (ou talvez por isso mesmo),
não durou muito mais tempo. Acabou por ter uma zanga
irremediável com o patrão quando este lhe mandou apre-
sentar uma lista de 100 nomes de trabalhadores a despedir.
O Manuel entregou-lhe um rol de 99 funcionários, e quando
sr. António Cardoso lhe disse que faltava um, ele respondeu:
– Está aqui o último, à sua frente.
Desafiando-o a que o despedisse a ele próprio, o clima
entre o Manuel e o patrão ficou ainda mais tenso do que já
estava com as instruções para a elaboração da lista, e o meu
marido acabou mesmo por bater com a porta. Resolveu ten-

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tar a sorte no estrangeiro, e, seguindo uma pista dada por um
conhecido, foi a Milão contactar a sede do laboratório Inver-
ni della Beffa, especializado no fabrico de produtos farma-
cêuticos a partir de plantas medicinais. Ficou a trabalhar para
eles, partindo logo a seguir para Moçambique, onde a firma
milanesa possuía plantações. Esteve também uns tempos em
Angola, pelos mesmos motivos.
Ao saber que o Manuel ia a Moçambique e a Angola, o
Senhor Doutor tratou de lhe fazer uma introdução e prepa-
rar-lhe um roteiro, apesar de em toda a sua vida nunca ter
visitado qualquer colónia portuguesa. Pois a descrição era tão
exata que o meu marido, no regresso, dizia que, ao chegar lá,
até lhe parecia conhecer já aqueles lugares. É claro que teve
de apresentar, com a minúcia habitual, o respetivo relatório
de viagem ao Senhor Doutor.
De seguida, o Manuel voltou a ir-se embora, desta vez para
trabalhar numa extensa plantação de sisal no Brasil, perto da
cidade do Recife. Em março de 1967, eu própria recebi um
convite do patrão dele para lhe fazer uma visita. Parti com a
mulher do proprietário, que era portuguesa, desembarcámos
em Salvador da Baía e viajámos pela costa brasileira, para sul
e para norte, até chegarmos ao Recife. Fiquei espantada pela
dimensão da propriedade onde trabalhava o meu marido:
32 mil hectares, 40 milhões de pés de sisal, 480 casas para
os trabalhadores. Na pequena capela da quinta, faltava uma
imagem de Nossa Senhora de Fátima, que os crentes muito
desejavam. Tratámos por isso, após o nosso regresso a Por-
tugal, de a adquirir e mandar benzer em Fátima. Depois, para
a enviar para o Recife, solicitámos os bons ofícios do Senhor
Doutor. Falámos-lhe do problema no seu jantar de aniversá-
rio desse ano, um dia após ter comemorado as quatro décadas

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de permanência no governo. Ele achou enternecedor que al-
guém tão distante reverenciasse Fátima, e foi de bom grado
que providenciou junto do correio diplomático o transporte
da estatueta, que por esse canal chegou até ao seu destino
além-Atlântico.
Dera-se entretanto a visita do Papa Paulo VI a Fátima, ten-
do sido a primeira vez que Salazar visitou o santuário inves-
tido das suas funções oficiais. Também estive presente, mas
desta feita não fui com o Senhor Doutor: apanhei boleia na
furgoneta de serviço de São Bento, conduzida como sempre
pelo sr. Furtado. Ouvi dizer que o presidente do Conselho
estava de candeias às avessas com o Papa, por causa da Índia,
o que terá sido verdade, mas também se escreveu que as suas
convicções religiosas se teriam dissipado com o avanço da
idade, agastado como estava com os católicos progressistas,
muito críticos do regime, e com a cobertura que achava que
lhes dava o seu amigo Cerejeira. Nunca lhe ouvi qualquer
comentário sobre o assunto, mas sempre o vi seguir com
idêntica aplicação a liturgia católica, pelo que tenho dúvidas
quanto à perda da fé – e lembro-me até de ele ter rezado um
pouco na Capelinha das Aparições por ocasião da visita pa-
pal. É um facto, como já disse, que nunca o vi comungar nem
confessar-se, mas esse era um preceito que sempre manteve
desde que o conheci, sem ter havido nessa matéria qualquer
alteração do seu comportamento.

As intromissões da governanta

Outra constante era a tendência da Tia Maria para se in-


trometer na nossa vida, arrogando-se o direito de ter uma

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palavra sobre ela – e por vezes mais do que isso. Em meados
de 1967, no meio de planos para regressar ao Brasil, o meu
marido lembrou-se de comprar em Olhão uma proprieda-
de onde subsistiam as instalações da antiga fundição do pai,
na qual ele também havia trabalhado em miúdo. Para tanto,
fomos solicitar um empréstimo ao Banco Espírito Santo e
Comercial de Lisboa, tendo sido atendidos por um dos seus
funcionários superiores. Tudo parecia estar a correr bem,
mas passadas algumas semanas foi-nos comunicado que o
pedido havia sido indeferido. Ao que parece, a Tia Maria
não gostou que tivéssemos avançado com a diligência sem
lhe darmos prévio conhecimento, e terá intervindo junto da
direção do banco para que o empréstimo fosse anulado.
Na verdade, a má disposição da governanta, tão amarga
quanto imprevisível, chegava por vezes a desencorajar o meu
marido de visitar São Bento, e quando enfim resolvíamos lá
ir ele interrogava-se pelo caminho:
– Como é que estará ela hoje?
Mesmo assim, quisemos convidá-la para almoçar connos-
co em celebração dos nossos dez anos de casados, em dezem-
bro de 1967. Nada feito: recusou liminarmente. Estava com
certeza a passar por mais um dos seus amuos, cujas razões
não conseguíamos alcançar.
Por contraste, o Senhor Doutor exteriorizava connosco
a mesma simpatia de sempre. Até mesmo para cunhas, que
certamente muito o maçavam, ele podia torcer-se na cadei-
ra, como notávamos, mas à partida não dizia que não. Era
pelo menos um ouvinte sempre atento, prometendo muitas
vezes ler os papéis e fazer o possível dentro do razoável, ou
seja, mandando seguir os trâmites normais se visse que para
tanto havia fundamento – e é claro que, quando as diretivas

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vinham de São Bento, a obediência era rápida e inquestio-
nada. Assim aconteceu em 1968 com dois pedidos que rece-
bemos e que lá lhe fomos transmitir com alguma relutância
(o meu marido tinha sempre um certo receio de se aproxi-
mar do chefe do Governo com estes empenhos na mão). Um
dos pedidos era oriundo de alguém que, creio, seria autarca
(ou membro das «forças vivas», como então se dizia) de Vila
Real de Santo António, e que fazia lobby para que o Governo
criasse junto à foz do Guadiana uma ponte de ligação entre
Portugal e Espanha. O outro era uma solicitação trazida de
África pelo Manuel, uma questão qualquer relacionada com
o Banco de Angola, a que o nosso interlocutor deu segui-
mento.

Uma notícia inesperada

Chegado o verão desse ano, o Senhor Doutor, a 26 de ju-


lho, fez a habitual mudança para o Forte de Santo António,
acompanhado do Toninho, da Tia Maria e de mais algum
pessoal doméstico. O resto das empregadas, como sempre,
ficava em São Bento para proceder à grande limpeza anual do
palacete, aproveitando a ausência do senhor da casa. Tam-
bém as capoeiras da governanta, que careciam de manuten-
ção regular, eram lavadas e arranjadas nessa ocasião.
Repetia-se igualmente o preceito, seguido pelo Senhor
Doutor desde início, de levar de Lisboa tanto a roupa de casa
como a louça e os talheres, pois fazia questão de não utilizar o
recheio do forte, instalação que estava entregue ao Instituto
de Odivelas (a escola para filhas de oficiais do Exército, à qual
ele pagava renda do seu bolso pelas semanas de ocupação),

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50
pedindo sempre à sua diretora para mandar guardar tudo en-
quanto lá permanecesse.
Do mesmo modo, mantinha o ritmo de trabalho no local
de férias (quer fosse aqui ou, como já disse, no Vimieiro).
Seria preciso apenas que o seu secretário e os ministros se
deslocassem a São João do Estoril para despacho, mas isso
para eles não constituía propriamente um problema.
No sábado 31 de agosto, ao partirmos de férias para Al-
bufeira, fomos ao forte buscar o Toninho e despedir-nos
do Senhor Doutor. Havia então grande excitação em Lisboa
porque se preparavam para a semana seguinte duas festas
de arromba da alta sociedade, que teriam lugar justamente
na zona de Cascais-Estoril-Sintra. Uma delas era organiza-
da pelo multimilionário norte-americano do petróleo Pier-
re Schlumberger (casado com uma portuguesa), na sua casa
de férias em Colares, e a outra pelo boliviano Antenor Pa-
tiño, dono de uma fortuna não inferior, cognominado o «rei
do estanho», por explorar no seu país as maiores minas do
mundo para extração desse metal, o qual abria ao convívio
mundano a sua quinta do Alcoitão. Na lista de convidados,
que se repetia quase a papel químico de uma festa para outra,
figurava o quem é quem do jet-set internacional, mas também
os representantes das maiores fortunas portuguesas e grande
parte da nossa aristocracia. A Costa do Sol fervilhava já por
antecipação, as entradas para as festas disputavam-se como
água no deserto, mas apercebi-me de que o Senhor Doutor
não via com bons olhos esta exibição de cosmopolitismo no
seu país, e preferia que as pessoas próximas dele (sobretudo
os ministros) não frequentassem tais manifestações de futili-
dade dourada. No seu esquema moral, ele achava que, estan-
do Portugal a sustentar uma guerra em três frentes africanas,

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211
não ficava bem a exibição de tão frívolos sentimentos. Até a
Tia Maria, que por portas travessas lá desencantara um con-
vite para uma das festas, e que andava entusiasmada pelo seu
iminente mergulho no seio dos ricos e famosos, acabaria por
ficar no forte, perante o amuo do seu chefe com tal atrevi-
mento.
Pois, nesse dia de início de férias, deparei com ela muito
irritadiça, mal disposta, a tratar-me rudemente e mesmo a
ignorar-me. Eu conhecia o feitio dela, e não me pareceu que
a atitude tivesse que ver com a censura velada de Salazar à sua
participação nas festividades da alta burguesia. Estranhando
aquele comportamento, comentei-o com o Senhor Doutor
quando, à saída, ele me disse adeus com um abraço mais forte
do que o habitual, como se se tratasse da despedida para uma
longa viagem. Respondeu-me apenas:
– Não ligues. Ela anda muito nervosa.
No sábado seguinte, ao fim da nossa primeira semana de
férias, telefonou um amigo do Manuel a perguntar se não
tínhamos ouvido na rádio. O quê? Que Salazar havia sido
operado na noite anterior a um hematoma no crânio – mas o
comunicado oficial acrescentava que ele se encontrava bem.
Passados os momentos da indignação, por não termos sido
antes informados por ninguém do que se passava, largámos
tudo e fomos para Lisboa com as crianças, admiradas por as
férias terem durado tão pouco tempo. Chegados à capital,
dirigimo-nos à clínica da Cruz Vermelha, em Benfica, onde
fora noticiado que se encontrava o Senhor Doutor em con-
valescença depois de ter sido aí operado, mas é claro que não
o pudemos ver de imediato.

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Visitas à Cruz Vermelha

Foi a Tia Maria que, logo no estabelecimento hospitalar


(que ela não abandonava), nos deu a sua versão dos aconteci-
mentos: a queda que, no forte, o Senhor Doutor tinha dado
de uma cadeira no início de agosto, quando o seu calista de há
muito, o sr. Augusto Hilário, se preparava para lhe tratar os
pés; as intensas dores de cabeça que com frequência passou a
sentir desde então; a proibição que ele emitiu de se falar do
sucedido fosse a quem fosse; a iniciativa que ela (connosco
já no Algarve) tomou, perante o evidente agravamento das
enxaquecas, de contactar o dr. Eduardo Coelho, que con-
tinuava a ser o médico pessoal do presidente do Conselho;
a necessidade de se recorrer a um especialista, o neurocirur-
gião António de Vasconcelos Marques, para um diagnóstico
mais rigoroso; o internamento urgente do paciente na clínica
da Cruz Vermelha, para a eliminação de um hematoma in-
tracraniano que, a manter-se, o conduziria à morte.
Impotente agora para fazer algo em favor daquele que me
criou e que tanto significou para mim, eu estava estupefacta
e ao mesmo tempo magoada. Como fora possível que tudo
isto tivesse sucedido sem a Tia Maria nada me dizer? E que
o acidente da cadeira houvesse sido sumariamente remetido
ao olvido, sem a necessária observação clínica de um homem
que aos 79 anos se estatela de costas, sem amparo, no chão?
Ainda uma semana antes tínhamos estado em São João do
Estoril e toda a história da queda e das dores de cabeça nos
havia sido ocultada. Compreendo a preocupação do Senhor
Doutor para que nada transpirasse para o exterior, mas não

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posso admitir que eu, filha adotiva do coração, tivesse sido
mantida em total ignorância pela minha concunhada. Ime-
diatamente teria agido no sentido de um aconselhamento
médico, e talvez o desfecho pudesse ter sido outro. Se... se...
Não vale a pena especular. Quis a História que assim fosse.
Percebi então o nervosismo irascível da Tia Maria no dia
em que fomos ao forte buscar o Toninho. Ela estava não só
abalada pelo estado de saúde do Senhor Doutor mas também
ocupada em disfarçar qualquer indício que nos pudesse levar
a desconfiar do que se passara. Por isso nos terá querido ver
pelas costas tão cedo quanto possível.
Senti a Tia Maria embaraçada com o sucedido, remetida
a alguns silêncios quanto às origens do caso e muito pouco
à-vontade para me ajudar a reconstituir o que se havia pas-
sado. Apurei que a queda se deu no chamado quarto de hós-
pedes, uma sala soalheira do primeiro andar do forte, que,
fazendo esquina, tinha janelas tanto viradas para o mar como
para a nave central onde eram servidas as refeições. Mas já
não posso afirmar com segurança qual o tipo de cadeira que
esteve na base do acidente. Presumo porém que fosse uma
das cadeiras de lona de abrir, de espaldar vertical (do tipo das
dos realizadores de cinema), que se encontravam nessa sala.
Quanto às circunstâncias da queda, elas ficaram para mim
um mistério que me vai acompanhar até sempre.
Para além da equipa médica, só entrava no quarto do
Senhor Doutor quem a Tia Maria queria. Ela ocupava um
quarto duas ou três portas distante do dele e não abando-
nava o corredor, a não ser para rezar na capela do hospital,
o que aliás fazia com alguma frequência (para lá me tendo
também arrastado). Sentia-se que estava muito perturbada
com a ocorrência, portando-se como um feroz cão de fila do

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54
presidente do Conselho, uma dona da figura de Salazar. No
meio do seu enervamento, metia-se em tudo e dava ordens
a toda a gente, atrapalhando e complicando mesmo o bom
andamento dos serviços clínicos.
Sendo ela a filtrar, entre a multidão de personalidades (e
anónimos) que acorreu à Cruz Vermelha, quem possuía o
privilégio de aceder ao quarto do paciente, acabei por não ver
o Senhor Doutor tanto quanto eu desejaria. Mas recordo-me
da primeira vez que entrei no quarto dele. Não falava. Fi-
quei com a impressão de que me identificou, mas não o posso
garantir com segurança. Senti-o muito abatido, atrapalhado
com o que se passava com ele. Das outras vezes, falava por
monossílabos, mas quase sempre de forma incompreensível.
A incerteza sobre o seu reconhecimento da minha pessoa
manteve-se. As empregadas levavam-lhe as refeições de São
Bento, mas era um esforço inútil, pois ele só petiscava.
Também o meu marido me acompanhava por vezes com
as crianças (tendo nós, como é óbvio, levado de São Bento
o Toninho, então já com 10 anos, para passar por fim a
viver connosco). Mas quase sempre era da Tia Maria que
recebíamos as informações, sem nos deixar entrar no quarto,
o que só acontecia nos dias bons dela. Uma visita que se
evidenciou foi a de Christine Garnier, vinda expressamente
de Paris. Eu não estava lá na altura, mas contaram-me do
choque que ela teve ao avistar o Senhor Doutor, tendo saído
do quarto muito abalada.
O profundo coma em que o Senhor Doutor entrou ao
sofrer um derrame no cérebro, nove dias após a operação,
reduziu a pó todas as esperanças (ou melhor, ilusões) que
muitos de entre nós ainda possuíssemos quanto à hipótese de
ele vir a retomar as funções governativas. O resto é sabido:

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a sua substituição por Marcello Caetano; a sua permanência
na Cruz Vermelha por mais alguns meses, retomando sinais
vitais mas alheado de tudo; a sua transferência para o palace-
te de São Bento em fevereiro de 1969, para levar uma vida de
virtual presidente do Conselho vitalício (até com visitas do
Presidente Américo Tomás), por especial condescendência
do sucessor.

À espera do fim

Para proteger o Senhor Doutor com uma dedicação e um


zelo inexcedíveis, veio com ele da clínica da Cruz Verme-
lha uma equipa de enfermagem que o assistia 24 horas por
dia. Confinado ao primeiro piso do palacete, apareceu uma
senhora de apelido Múrias fazer-lhe umas leituras regulares
(já não sei de quê, mas creio que havia poesia pelo meio),
na esperança de que o doente retomasse a ligação ao mun-
do. Puseram também junto dele um gira-discos, para ouvir
trechos de música clássica em pequenas doses. Fizeram-lhe
uma festinha de aniversário, que recebeu com indiferença.
Por vezes ia-se abaixo, cansado e abúlico. A Tia Maria fazia
porém constar para fora que o patrão estava bem e que tinha
a perceção de todas as coisas.
Passei a ir a São Bento, para o ver, quase todos os dias, de-
pois de sair do emprego. Encontrava-o sentado no pequeno
escritório particular junto ao oratório (a divisão mais conve-
niente da casa, por possuir comunicação direta com o quar-
to), no velho cadeirão que o acompanhava há tantos anos e
fora o seu pouso de trabalho favorito. Não tenho a certeza de
ele me ter sempre reconhecido, mas, por vezes, quando lhe

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56
dizia o meu nome, ele sorria – e aí eu estava segura de que ele
sabia quem tinha à frente. Pareceu-me, na verdade, que o Se-
nhor Doutor passava por momentos de lucidez, nem sempre
se encontrando ausente da vida real. Esses lampejos surgiam
porém no meio de longos períodos de silêncio e aparente
alienação, com os seus altos e baixos. Havia quem defendesse
que, mais lúcido do que fazia crer, não exteriorizava o seu
estado mas observava e apreendia tudo o que se passava à
sua volta. Tinha e mantenho, contudo, dúvidas quanto a isso:
muita gente inventava muita coisa sobre o comportamen-
to do Senhor Doutor, sem qualquer correspondência com a
realidade.
A sua forma de comunicação habitual permanecia monos-
silábica, nem sempre percetível. Por vezes, porém, articulava
uma frase completa. Certa ocasião, ao perguntar-lhe como se
sentia, replicou-me, com uma voz muito sumida:
– Como é que queres que me sinta?
Só que depois ficava por ali, incapaz de desenvolver mui-
to mais a conversa, a ouvir-me mais do que a falar comigo.
Noutro momento, a 30 de novembro de 1969 (data que re-
gistei na minha agenda), durante uma fase em que ele parecia
experimentar melhoras, o que permitiu jantarmos à mesa, ao
despedir-me prometi-lhe voltar no dia seguinte para o ver
de novo, e saiu-lhe da boca este comentário, em tom de pro-
funda tristeza:
– Vem sempre, porque daqui a pouco já não me encontras.
Houve mesmo assim, depois disso, momentos de recupe-
ração. De tal modo que no dia de Ano Novo de 1970, sentin-
do-se bem, o Senhor Doutor pediu para visitar o casal Duarte
Martins na sua vivenda do Estoril, velhos amigos conhecidos
de visitas anteriores (muitas delas também comigo). Com a

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217
Tia Maria, acompanhei-o no automóvel oficial (que conti-
nuava à disposição do palacete), enquanto o Manuel ia atrás
no nosso carro. Apoiado numa bengala e com a ajuda dos
acompanhantes, Salazar cumpriu o objetivo. E, como o ho-
mem de hábitos que tenho referido, no regresso a Lisboa fez
questão de me deixar na Parede.
Apesar da sua acentuada fraqueza física, o Senhor Doutor
continuou a expressar nos meses seguintes momentos que a
nós nos pareciam de lucidez. Por isso mesmo, alguém teve a
ideia de se voltar a festejar o seu aniversário, desta vez abrin-
do-se os portões de São Bento, para que algumas pessoas pu-
dessem entrar, vê-lo com os próprios olhos e aplaudi-lo. Ele
surgiu então à janela do corredor do primeiro piso, trans-
portado pela cadeira de rodas de um modelo especial com
que se deslocava no palacete, adquirida nos Estados Unidos
e oferecida pelo banqueiro Manuel Queirós Pereira, que se
tornara seu grande admirador. Eu tinha-me colocado numa
janela ao lado e reparei no esforço tremendo que Salazar fez
para se levantar, o que de qualquer modo não seria possível
sem a ajuda das enfermeiras e de um ou outro funcionário.
Mas é claro que tudo isto era ilusório – aquela fora a última
homenagem que o Senhor Doutor recebeu em vida. Como
ele me prevenira, um dia cheguei a São Bento e não o en-
contrei. Ou, por outra, encontrei apenas o seu corpo. Tendo
adotado a rotina de, antes de entrar ao serviço, passar por lá
para saber como tinha ele passado a noite, na manhã de 27 de
julho de 1970, uma segunda-feira, deparei com a Tia Maria
lavada em lágrimas, sentada na cama dela. Salazar acabara de
falecer uns minutos antes, pouco passava das 9h. Chorei um
pouco com ela e choraria muito mais depois. Que faria eu ao
desaparecer quem fora tão meu amigo como um verdadeiro

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pai, que sempre me ouviu com toda a atenção, que ao longo
de todos aqueles anos me aconselhou, orientou e nunca per-
deu a paciência para me aturar?
É bem certo que se tratou de uma morte anunciada. O
Senhor Doutor foi morrendo aos poucos – e este desfecho
deu-se 12 dias após ter sido acometido de uma doença
infecciosa que lhe atacou os rins, com a produção de grande
quantidade de ureia, e foi afetando todos os seus órgãos
vitais, numa dolorosa agonia de mártir. Eu estivera em São
Bento na véspera, e a equipa clínica parecia impotente para
controlar a acelerada degradação do seu estado. Ele já não
conseguia dormir, manifestando reações díspares, ora de
tranquilidade ora de agitação. Toda esta degradação física
parecia servir para nos poupar, àqueles que o admirávamos, o
choque emocional de um falecimento súbito. Mas acredita-se
sempre quando há um sopro de vida. E o impacte da notícia
não deixou por isso de ser devastador: Salazar estava morto.
A Tia Maria parecia arrasada. Mas no palacete vivia-se
uma intensa azáfama, pois desde logo era preciso preparar os
funerais e arrumar a casa. Não deixei de ir para o emprego,
tendo sido eu quem deu a amarga novidade a Casal Ribeiro,
que costumava inquirir-me acerca do estado de saúde de Sa-
lazar.
O Senhor Doutor não haveria de descer à terra, no cemi-
tério do seu adorado Vimieiro, sem a Tia Maria me ter dado
mais uma prova da sua peculiar simpatia, ao entregar à di-
retora do Instituto de Odivelas o convite para as cerimónias
fúnebres que me era destinado. Desta vez impus-me, junto
de um dos ex-secretários de Salazar, o dr. José Sollari Alle-
gro, que estava ligado à organização do evento. Enviou-me
logo outro convite, tanto para as exéquias oficiais na igreja

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do Mosteiro dos Jerónimos como para a viagem de comboio
especial a acompanhar o féretro até Santa Comba Dão.
Ao longo da viagem, impressionaram-me, em certos pon-
tos da via férrea, as multidões acumuladas em cacho, ace-
nando lenços brancos à passagem da composição funerária.
No Vimieiro, então, parecia que toda a população da região
estava na rua para o último adeus ao seu ilustre conterrâ-
neo, numa comunhão emocional feita de pesar e de silêncio.
Reencontrei no desfile o meu marido, que tinha ido de carro
por não ter lugar no comboio, mas no regresso optei de novo
pelo caminho-de-ferro. No dia da despedida, queria estar ab-
sorta nos meus pensamentos, olhando em retrospetiva para
os 35 anos de ligação à pessoa que, mais do que qualquer ou-
tra, contribuíra para a formação espiritual do ser que era e
ainda sou.

Na sua última década de vida, Salazar age com a normalidade


de sempre, como se a morte nunca estivesse no horizonte. Se an-
tes era Micas (e por uns anos ambas as pupilas) que levava a pas-
sear aos domingos, agora são os filhos (algumas vezes acompa-
nhados da mãe). A sua agenda está recheada dessas ocorrências,
começando sempre por ir «à Parede buscar os pequenos». Uma
delas a 13 de março de 1966, antecipando a habitual audiência
dominical para abordar com o chefe do Estado alguns dos temas
quentes do momento: «11h45 – À Parede buscar os pequenos, de-
pois ao Senhor Presidente: 1) NATO – posição francesa; 2) Rodé-
sia – petróleos». A última será a 2 de abril do ano seguinte: «De
carro – à Arrábida com os pequenos».

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Mantém-se também empenhado na formação de Toninho,
como revela a indicação de uma conversa com Maria da Con-
ceição na noite de 22 de setembro de 1966 (depois de a pupila,
nesse mês, ter já ido falar com o ex-tutor em duas outras noites):
«Micas - acerca da nova escola do pequeno».
Outro hábito são os jantares ou as conversas noturnas com o
casal Rita em São Bento, também reiteradamente mencionados
nos diários. O governante não hesita mesmo em lançar no pa-
pel a discussão dos negócios do marido de Maria da Conceição
ou os pedidos que recebe de ambos. Como a 10 de outubro de
1964: «[Manuel] Rita e Micas – correspondência do [António]
Cardoso com casas americanas (venda de máquinas de lamina-
gem e emprego eventual do Eximbank)». Ou a 28 de agosto de
1966: «23h-24h – Rita e Micas – suas ideias quanto à Fundação
de Oeiras e outras possibilidades no Algarve ou aqui em Lisboa».
Também o empurrão pedido acerca do Banco de Angola (referido
por Maria da Conceição), não deixa de ficar invocado no resumo
de uma conversa tida após as 22h de 28 de julho de 1968, está já
o presidente do Conselho no Forte de Santo António, de onde só
sairá para a mesa de operações.

•••

Por muitas conjeturas que se elaborassem acerca do fim po-


lítico de Salazar, que forçosamente haveria de estar próximo ao
caminhar-se para o fim dos anos 1960, e quando ele terá tido por-
ventura a noção de haver conduzido o país a um beco, o fecho
do seu longo consulado acabou por apanhar toda a gente de sur-
presa. Não foi a idade que o afastou (muito menos a morte por
velhice), nem tão-pouco a decisão política de um centro de poder
com força para o fazer, mas afinal acabou por ser uma imprevisí-
vel combinação de ambas as coisas.
Em primeiro lugar, a idade. Uma outra agilidade ou resistência
física, num indivíduo mais jovem, poderia ter impedido as gravo-

61
221
sas consequências da queda de uma cadeira, o acidente que se
pensa ter provocado, no verão de 1968, o hematoma intracrania-
no responsável pela incapacitação de Salazar para as funções
governativas.
Depois, a decisão política. Perante as circunstâncias, o pre-
sidente Américo Tomás viu-se forçado (contra a sua vontade, é
certo, mas sem alternativa) a tomar a medida que nunca lhe pas-
sara pela cabeça, para mais a ele, eleito em 1958 contra o candi-
dato que justamente o queria fazer: exonerar Salazar do cargo de
presidente do Conselho.
O percurso político do fundador do Estado Novo termina em
drama, não para ele, provavelmente alheado do que se passa
consigo, mas para os que o rodeiam, desde os íntimos até todos
aqueles (e são muitos) que vivem de e para o regime. Tal como
parecia acreditar-se que o homem era eterno, também agora,
perante doença tão radical, ainda há quem tenha a esperança de
que, uma vez extraído o hematoma pelos médicos, é possível a
sua recuperação para continuar a governar.
A ansiedade prolonga-se durante dias na clínica da Cruz Ver-
melha, em Benfica (Lisboa), onde Salazar é operado e está em
convalescença, e por onde desfila, a depositar votos de melho-
ras, todo o pessoal político do regime. Até que, pouco mais de
uma semana decorrida sobre a intervenção médica, o paciente
sofre um acidente vascular que o coloca em coma. Vai recuperar
pelo menos um estado de semiconsciência (em que grau, jamais
se saberá), mas nunca mais a plena lucidez. Os médicos são ine-
quívocos para o Presidente da República: Salazar está inválido
para continuar a governar. Agora e sempre.
As dificuldades encontradas pelo almirante Tomás para che-
gar a uma solução de sucessão evidenciam como Salazar, dan-
do mostras de uma irresponsabilidade que ninguém de entre os
seus apoiantes alguma vez lhe apontará, se desinteressava pelo
que viesse a seguir. Nada estava preparado ou sequer apalavrado
para o substituir quando tal necessidade se impusesse.

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62
Foi com relutância que a escolha presidencial acabou por re-
cair em Marcello Caetano. Julgara-se que o ex-delfim de Salazar,
que dez anos antes entrara em divergência com ele e se afastara
da vida política, há muito vira passar a sua oportunidade. Afinal,
acabaria repescado, à falta de alternativa.
Quanto a Salazar, é devolvido ao palacete de São Bento com
todas as regalias do presidente do Conselho que já deixou de ser
(mas que ele, em momentos de suposta lucidez elementar, julga
alegadamente continuar a ser). A farsa dura ano e meio, o tempo
suficiente para as longas despedidas que os mais próximos lhe
vão prestando. Entre eles, Maria da Conceição, a Micas, que ficou
a seu lado desde a infância dela até ao fim dele.
Quando o ditador morre, talvez de tristeza pelo seu infeliz esta-
do, ainda é uma referência no espírito nacional, goste-se ou não
dele. Salazar, que nunca apreciou os banhos de multidão, teve o
seu último dentro do caixão, no caminho para Santa Comba Dão.
Encerrava-se assim uma extensa página da história portugue-
sa, um período crucial do nosso passado recente. Seguir-se-ia,
com resistências maiores ou menores do aparelho do Estado
Novo e dos seus agentes, a complicada transição para a nossa
modernidade política, a nossa atualização como país e como so-
ciedade. Algo a que Salazar teria horror e a que nunca quereria
assistir. Mas a que a sua pupila placidamente sobreviveu.

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Epílogo

A seguir viria um mundo novo: a vida sem Salazar.


Era preciso começar por resolver a questão do aloja-
mento da Tia Maria, agora mais solitária do que nunca. Ela
investira num apartamento em Benfica, mas o prédio ain-
da estava em construção quando o Senhor Doutor faleceu.
Dois dias após o funeral, eu e o Manuel fomos a São Bento
oferecer-lhe alojamento na nossa casa enquanto aguardava o
fim das obras em Benfica. Ela, porém, não aceitou. Foi isto
a um sábado, e no dia seguinte regressámos com as crianças
ao palacete para participar na missa do sétimo dia pela morte
de Salazar, numa cerimónia muito íntima onde, além da Tia
Maria, só estavam mais algumas senhoras, António Noguei-
ra da Silva (cuja mulher já tinha morrido) e o pessoal da casa.
Nessa altura, a Tia Maria recebeu uma comunicação emi-
tida por Marcello Caetano dando-lhe uma semana para
abandonar o palacete (e eu, ao saber da «ordem de despejo»,
aproveitei para levar umas roupas e uns brinquedos do Toni-
nho que por ali haviam ficado esquecidos). A ex-governanta
não gostou do ultimato. Claro que, desaparecido o seu chefe,
já não lhe assistia qualquer direito de ali permanecer. Mas ela
preferiria que não houvesse aquela pressão, que a deixou ain-
da mais abalada do que já estava devido à morte do Senhor

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225
Doutor. Queixou-se de que tinha pouco tempo para arrumar
as coisas, mas o sucessor de Salazar foi inflexível quanto à
data de entrega das chaves da residência. E o palacete aca-
bou mesmo por ser abandonado no último dia do prazo, 8 de
agosto de 1970.
Valeu à Tia Maria a generosidade de António Cardoso,
o ex-patrão do meu marido, ao colocar-lhe à disposição
a vivenda da família, no Linhó. O sr. Cardoso e a mulher
passavam então a maior parte do tempo na sua vivenda dos
arredores de Paris, pelo que a Tia Maria só tinha no Linhó a
companhia da criadagem. Ao fim de pouco tempo, sem para
tal ser solicitada, transformou-se, na prática, de hóspede em
governanta daquela casa: estava-lhe na massa do sangue.
Foi aí que eu e o meu marido reatámos com ela uma convi-
vência mais pacífica, extinta a tensão a que as nossas relações
estavam sujeitas no palacete, sobretudo nos últimos anos de
vida do Senhor Doutor. Visitámo-la algumas vezes e chegá-
mos a almoçar ou jantar com ela no Linhó. Liberta das suas
responsabilidades de governanta de São Bento, ela metamor-
foseava-se agora numa mulher mais meiga e afetuosa.
O desanuviamento prosseguiu já com a Tia Maria instala-
da em Benfica, o que sucedeu ao fim de alguns meses. Como
eu continuava a trabalhar no Marquês de Pombal, ia vê-la
muitas vezes durante a semana, apanhando um autocarro à
hora do almoço. Apesar de termos de comer à pressa, pare-
ceu-me que ela apreciava estas visitas.
Aos fins de semana, era a Tia Maria que ia passar um dia
connosco à Parede, com o meu marido a recolhê-la de carro
em Benfica. Trazia-nos sempre um pequeno contributo para
o almoço, sobretudo a sobremesa – quando se tratava de pu-
dim, ainda vinha dentro da forma para não se desmanchar

226
66
na viagem. Uma vez – coisa rara – apanhou o comboio no
Cais do Sodré e apareceu-nos de surpresa para nos oferecer
o almoço, trazido oculto num saco. Perplexos com a atitude,
comentámos depois como o nosso relacionamento se altera-
ra no sentido positivo.
Nunca se mostrou interessada em falar sobre o passado,
muito menos em refletir sobre ele. Talvez fosse penosa para
ela a recordação. Preferia por isso remeter-se ao silêncio.
Dos despojos do dia, fez parte a missa do primeiro ani-
versário do falecimento do Senhor Doutor, organizada pelo
Governo no Panteão Nacional. Recebi convite, e fui a uma
cerimónia soleníssima, com a igreja de Santa Engrácia reple-
ta de altas figuras do Estado.
A rotina só se alterou com o derrube do regime, a 25 de
Abril de 1974. O dono da Fundição de Oeiras, muito abala-
do, foi viver de vez para a sua vivenda parisiense, onde mor-
reria ainda nesse ano. Sem patrão, a fábrica ficou entregue
à gestão dos trabalhadores, como passou a ser normal em
muitas empresas na época. Lembraram-se então de convi-
dar o meu marido para reingressar nos quadros da fundição,
como diretor de pessoal. Curioso que o tenham ido buscar,
apesar da sua antiga relação com o fundador do extinto Es-
tado Novo – esse era o tipo de pessoas que então pareciam
ter peste. O facto é que o Manuel deixara em Oeiras uma
excelente impressão, pelas relações de confiança que con-
seguira estabelecer tanto com o administrador como com o
operário. Aceitou voltar à empresa, mas não naquele cargo,
pois achava que, apenas com o curso industrial, não possuía
as qualificações necessárias para o exercer. Mas ficou como
chefe do serviço de pessoal, vindo a reformar-se na Fundi-
ção de Oeiras em 1981.

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Pela minha parte, mantive-me na Cidla para lá do 25 de
Abril, e devo dizer que, embora na sequência da revolução
tenha sido colocada num quadro de excedentários da em-
presa, não vi nessa atitude uma motivação política contra a
minha pessoa. Disseram-me a mim e a outras funcionárias
que tínhamos deixado de ser necessárias devido a uma rees-
truturação dos serviços. Acredito que sim, que não houve
qualquer tipo de retaliação pelo meu passado.
A política económica do novo regime determinou a fu-
são de várias empresas do setor dos combustíveis, como a
Cidla, a Sacor, a Sonap e a Petrosul, entretanto nacionaliza-
das, numa só, que viria a originar a Petrogal. Eu e as outras
colegas também na prateleira tanto nos movimentámos que
acabaram por nos recuperar para o serviço. Fiquei como se-
cretária do diretor administrativo da Petrogal, cargo em que
me reformei aos 58 anos. Por coincidência, fui nesses anos
colega da Maria Antónia, que antes do 25 de Abril estava em-
pregada na Sacor.
A morte levou-a antes do tempo, por volta dos 60 anos,
deixando uma filha (e dois netos). Ainda antes da revolução,
em 1969, havia morrido o seu irmão mais novo, o meu sobri-
nho António, um capitão-aviador da Força Aérea cujo apa-
relho a jato chocou com outro ao levantarem voo em Angola.
Desaparecida também a Rosalina, em 1996, ficou apenas a
filha do meio, Maria José, já viúva, mas com três filhos e seis
netos, a fazer companhia ao meu irmão José, que hoje [2007]
tem a bela idade de 95 anos.
Quanto à Tia Maria, haveria de falecer em maio de 1981,
aos 87 anos, após ter adoecido dois meses antes e ter sido
internada no Lar João XXIII, perto da sua casa, onde ainda
a visitei várias vezes. Em testamento, deixou o apartamen-

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68
to aos padres capuchinhos de Benfica. Também por vontade
dela, herdei algumas das suas peças de mobiliário e parte do
espólio de Salazar que, pela morte do Senhor Doutor, lhe ha-
via ido parar às mãos. Esse gesto representava, da parte da
minha concunhada, o reconhecimento final da relação pri-
vilegiada que eu havia mantido com o meu tutor. Recebi e
guardo com carinho os objetos aos quais ela atribuía maior
valor sentimental, entre eles um crucifixo de pau-santo e
marfim que figurava no quarto de Senhor Doutor e que a Tia
Maria depois pusera no seu. Mas nunca vi rasto das mobílias
que o presidente do Conselho conservava no primeiro andar
do palacete de São Bento e que um dia havia prometido doar
a mim e ao meu marido. Desconheço, na verdade, onde tudo
isso foi parar.
•••

Vivi também algumas alegrias: a vida é sempre feita de re-


ceitas doces e amargas – são as doses que variam. Casou-se a
nossa filha, Margarida, em 1986, já depois da sua licenciatura
na Universidade Católica de Lisboa. Pelas recordações que
o local lhe trazia, exprimiu o desejo de que a cerimónia se
realizasse no Forte de Santo António. Não foi difícil a auto-
rização, pelos contactos que tínhamos à época com a diretora
do Instituto de Odivelas (sob cuja alçada permanecem [em
2007] aquelas instalações). A cerimónia religiosa teve lugar
na capela, e, após o beberete, seguiu-se um jantar nos terra-
ços do forte, já que o evento se deu em pleno agosto. Para
mim, foi o momento de matar saudades dos dias felizes com
Salazar, que antes ali vivi.
Amante de surpresas, a Margarida preparou-me uma, para
o meu 73º aniversário, que me permitiu completar o nostál-

69
229
gico revivalismo da minha infância e juventude. Através dos
seus conhecimentos, conseguiu contactar com a mulher do
primeiro-ministro da altura, eng. António Guterres, e dessa
maneira obter autorização para eu revisitar o palacete de São
Bento. Emocionei-me ao regressar. O edifício está profunda-
mente alterado, mas consegui identificar todas as suas divi-
sões. Os jardins também sofreram modificações, e reconheço
que em muitos casos para melhor, como a construção da pis-
cina e o revestimento por calçada à portuguesa das princi-
pais áleas (que no meu tempo eram alcatroadas). De resto, lá
estavam o lago com os seus peixes e nenúfares, a cascata, o
sítio da criação doméstica da Tia Maria (já sem as capoeiras)
e os bancos onde tantas vezes me sentei à conversa com o Se-
nhor Doutor. Um dos funcionários, que disse estar lá desde
os tempos do salazarismo (embora não me recordasse dele),
cumprimentou-me, e fiquei com a agradável sensação de que
todos sabiam quem eu era.
Com os dois netos que a Margarida e o marido me de-
ram (hoje já adolescentes), cumpri por fim a promessa que
o Senhor Doutor me levara um dia a fazer-lhe, de visitar o
Planetário Calouste Gulbenkian.
Todo o nosso núcleo familiar permaneceu na Parede, na
«casa do Salazar»: eu e o Manuel no piso de baixo, com o
Toninho; a Margarida e o meu genro em cima, com os filhos.
Ana, a minha irmã gémea, foi acometida por uma doença
grave e regressou ao Convento de Palmela, onde morreu em
2000. Quanto ao meu marido, faleceria poucos anos depois.
Juntando estes infaustos óbitos aos outros desaparecimentos
que já referi, é natural que me sinta, cada vez mais, como
única sobrevivente de uma era tão distante como se fora uma
anterior reencarnação, o que é reforçado pela forma como,

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entretanto, tanta coisa mudou. Mas a sombra do homem de
quem recebi a benesse de iluminar a minha existência não
desapareceu. Foi o meu porto seguro. É um referencial que
permanece. Até ao fim.

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232
Algumas peças do pequeno «museu»
de Maria da Conceição de Melo Rita,
constituído por objetos que eram
propriedade de Salazar.

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Pincel da barba, pente, botões de punho,
escovas, rosário e lenço (sempre de
linho branco e de monograma bordado
pelas Missionárias de Maria).
© Clara Azevedo

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Um dos pares de botões de punho.
© Clara Azevedo

235
236
Pormenor do tinteiro, em prata,
com o monograma de Salazar.
© Clara Azevedo

Ofertas a Salazar: a caixa trazida pelo


imperador Hailé Selassié, da Etiópia,
e o boneco tirolês trazido por uma
das meninas austríacas acolhidas em
Portugal no rescaldo da Segunda
Guerra Mundial.
© Clara Azevedo

Imagens de Santo António,


uma oferta frequente a Salazar
devido à coincidência do nome
próprio, e os castiçais do oratório
da residência de São Bento
(oferecidos por Carneiro Mesquita).
© Clara Azevedo

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Medalha com uma efígie de Salazar em marfim.
© Clara Azevedo

238
Iluminura oferecida por um grupo de admiradores.
© Clara Azevedo

239
O molde de um busto de Salazar
esculpido por Leopoldo de Almeida.
© Clara Azevedo

A fisionomia de Salazar desenhada


por madeira clara colada sobre
madeira escura.
© Clara Azevedo

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Retrato efetuado pelo fotógrafo sueco
Benno Movin-Hermes, em 1960.
© Clara Azevedo

Nas costas do retrato, Salazar


escreveu: «À guarda da Micas.
Novembro de 1963. A. O. Salazar».
© Clara Azevedo

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MEDINA, João, História Contemporânea de Portugal. Estado Novo (dois
volumes), Lisboa, Amigos do Livro, 1985.
MORAIS, João/VIOLANTE, Luís, Contribuição para uma Cronologia dos
Factos Económicos e Sociais (Portugal 1926-1985), Lisboa, Livros Horizonte,
1986.
NOGUEIRA, Franco, Salazar (seis volumes), Coimbra, Atlântida,
1976-1985.
PINTO, Jaime Nogueira, António de Oliveira Salazar – O Outro Retrato,
Lisboa, Esfera dos Livros, 2007.
PINTO, Jaime Nogueira, Salazar Visto pelos Seus Próximos, Lisboa,
Bertrand Editora, 2007.
REIS, Bárbara, «Cartas inéditas de Salazar revelam segredos e
intimidade com três gerações de família inglesa», in Público,
26 de novembro de 2017.
ROSAS, Fernando/BRITO, J.M. Brandão de, Dicionário de História do
Estado Novo (2 volumes), Lisboa, Círculo de Leitores, 1996.
SALAZAR, António de Oliveira, Diários, Arquivo Nacional da Torre
do Tombo em linha (https://digitarq.arquivos.pt/details?id=3886688)
SALAZAR, Oliveira, Discursos e Notas Políticas (1928-1966) (seis volumes),
Coimbra, Coimbra Editora, 1939-1967.
VIEIRA, Joaquim, «A Pupila do Senhor Doutor», in Expresso,
17 de Setembro de 1988.
VIEIRA, Joaquim, Fotobiografias Século XX – António Oliveira Salazar,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2001.

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Joaquim Vieira (n. 1951), jornalista, ensaísta e documentarista,
esteve na direção do Expresso, RTP e Grande Reportagem e foi
provedor do leitor do Público. Assinou a obra em 10 volumes
Portugal Século XX – Crónica em Imagens e dirigiu uma coleção de
fotobiografias de figuras nacionais do século XX, redigindo as de
Salazar, Marcello Caetano, Almada Negreiros e Benoliel. Entre
outros títulos, escreveu A Governanta – D. Maria, companheira
de Salazar; Mário Soares – Uma Vida (ambos reeditados para
distribuição com a SÁBADO); Álvaro Cunhal – O Homem e o Mito;
Mocidade Portuguesa – Homens para um Estado Novo; Só um Milagre
nos Salva; De Abril à Troika – Quatro Décadas de Democracia que
Transformaram Portugal; Francisco Pinto Balsemão – O Patrão dos
Media que foi Primeiro-ministro; José Saramago – Rota de Vida; e
História Libidinosa de Portugal. Além da presente obra, foi coautor
de Mataram o Rei! – O Regicídio na Imprensa Internacional; República
em Portugal! – O 5 de Outubro Visto pela Imprensa Internacional; Nas
Bocas do Mundo – O 25 de Abril e o PREC na Imprensa Internacional;
150 Perguntas & Respostas Essenciais sobre a História de Portugal; e
Caso Sócrates – O Julgamento do Regime. Redigiu em 2020 Bolsonaro,
um Capitão no Planalto, distribuído pela revista SÁBADO. O mais
recente documentário que realizou, Insubmissa, sobre Natália
Correia, data de 2021.

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© Clara Azevedo, 2007

Maria da Conceição de Melo Rita nasceu na freguesia de Lajeosa,


Tondela, em 1929, sendo oriunda de uma família de pequenos
proprietários rurais. Aos seis anos, passou a residir com António
de Oliveira Salazar, de quem se tornou na prática uma filha
adotiva, mantendo-se na sua companhia até casar. Continuou,
porém, a privar com o governante e fundador do Estado Novo
até à morte deste. Depois de tirar o curso comercial, ingressou
na função pública e exerceu funções de secretariado na extinta
Cidla e mais tarde na Petrogal. Tendo tido dois filhos e dois netos,
faleceu, já viúva, em 2017, uma década após a publicação destas
suas memórias.

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