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COVE

CADERNADOR
A.DAVID
LISBOA
:
Bibliotheca Dramatica Campos & C.a

WILLIAM SHAKSPEARE

HAMLET
TRAGEDIA EM CINCO ACTOS

ESTUDO CRITICO
e versão portugueza
DE
JOSÉ ANTONIO DE FREITAS
Socio correspondente da Academia Real das Sciencias de Lisboa

1887
LIVRARIA PORTUGUEZA E FRANCEZA
DE CAMPOS & C. - EDITORES
86. Rua Augusta. 88
LISBOA

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TYP. CASTRO IRMÃO -31 Rua da Cruz de Pau 33


LISBOA

D.
ESTUDO CRITICO

genero de temeridade- bem sa-


bemos - sahir á luz da publicidade.
com a nova interpretação de um
trabalho, como o Hamlet, discuti-
do , ha tantos annos , com a maxima
amplitude e erudição ; mas contras-
tando as opiniões de alguns criticos
inglezes , francezes e allemães para me-
lhor comprehendermos a tragedia sha-
kespeareana , achámo-nos tambem com
o nosso juizo formado sobre o assum-
pto . Meditámol- o , escrevémol- o , e deter-
minámos dal - o á estampa, não para diri-
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mir pleitos e desatar duvidas (que feliz-


mente nos não move tal vaidade) , mas
para prestar a homenagem da nossa ad-
miração a uma obra, em que muitos
vêem o reflexo da alma d'esse claro lu-
zeiro, que teve por nome Shakespeare .
Para nós , Hamlet não é o prototypo do
animo nobre, da virtude immaculavel ,
da pureza estreme , incapaz de sacudir o
pezo , que o acabrunha , pela ausencia
completa de energia . Não vemos tam-
bem que seja forte, confiado de si, tão
resoluto em commetter, como determi-
nado a executar . Não nos parece que
deixe de praticar um acto, só porque
repugne ao seu generoso coração . Não
se nos afigura detido por um poder mys-
terioso , e por uma duvida sobre a appa-
rição do espectro . Nem julgamos que um
sublime sentimento - o horror do cri-
me impune -o tivesse levado ao pessi-
mismo.

Em nossa opinião Hamlet é um hys-


terico.
ESTUDO CRITICO 7

Ao escrevermos a palavra hysterico es-


tamos ouvindo já distinctamente a cos-
tumada objecção de que pela mente de
Shakespeare nem por sombras passou a
ideia de dar similhante feição ao tristo-
nho personagem. Pois quê ?! Além de
trazer o Amleth do conto de Belleforest
para os requintes de polidez de uma
côrte da Renascença ; além de enrique-
cer-lhe o espirito com uma vasta illus-
tração historica e philosophica ; além de
attribuir-lhe um delicado sentimento ar-
tistico e litterario ; além de o converter
n'um digno coevo do Ariosto e do Ti-
ciano , ainda havia de o brindar com uma
nevrose, a doença da moda do nosso
tempo ?
É desejo de cahir no excesso, que no-
tava em Hamlet o seu maior amigo :
é querer levar muito longe a investiga-
ção das coisas. Por mais que se esqua-
drinhe, e se inquira , e se pesquize , não
é possivel descobrir uma palavra , d'onde
se collija que o poeta de Stratford- on-
HAMLET

Avon tivesse qualquer noção, ainda a


mais confusa, da hysteria .
É verdade ; mas o poeta de Stratford
ignorava tambem as modernas doctrinas
da ethnographia , e introduziu nos seus
dramas os caracteres das raças, que po-
voam a Europa . O poeta de Stratford
não sonhava nos triumphos , que as for-
ças ordinarias do mundo inorganico al-
cançam com a cessação da vida sobre a
natureza organica , e referiu- se á trans-
formação da materia com o rigor scien-
tifico dos nossos dias .
E não foi só o poeta de Stratford .
Buffon, por um esforço de inducção pro-
prio de um engenho privilegiado , lançou
os lineamentos da geographia dos seres
vivos , rastejou a influencia dos meios ,
lobrigou os phenomenos da selecção na-
tural e da luta pela existencia , em que
estriba o darwinismo ; Virgilio - como
diz Sainte Beuve - em uma hora deci-
siva do mundo adivinhou o que haviam
de amar os seculos futuros ; e Camões ,
ESTUDO CRITICO 9

cantando nos Lusiadas a batalha de Al-


jubarrota, n'um rasgo de intuição genial
previo a circulação do sangue :

Quantos rostos alli se vêem sem côr,


Que ao coração acode o sangue amigo !

É que os genios surprehendem e apode-


ram-se dos germens , que nascem pouco
a pouco da evolução do espirito geral ;
não têem uma consciencia perfeita das
suas tendencias reaes, não avaliam todo
o alcance das suas concepções ; mas são
dotados de tão grande perspicacia que ,
propondo- se fazer uma obra , por mais
limitados que sejam os elementos que
conheçam , lá se encontram em flor os
outros elementos todos . Com o decurso
do tempo a flor muda-se em fructo, e a
posteridade vae descobrindo na obra ver-
dades e bellezas , que passaram desper-
cebidas aos contemporaneos .
Recordando as interpretações dadas á
Divina Comedia em differentes epochas ,
facilmente veremos a justificação d'este
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asserto. Com effeito , sabendo que em


cada tercetto se achava escondido um
thesouro, não havia homem durante a
edade media , que não quizesse desven-
dar uma nova face do mundo moral ;
e quando Florença encarregou Boccacio
de explicar o poema do Dante n'uma ca-
deira publica , o auctor do Decameron
mergulhou n'aquelles abysmos , e emer-
giu dizendo que n'elles residia inteiro o
pensamento catholico sob a casca vulgar
da palavra. Com a Renascença foram- se
dissipando os vestigios d'esse caracter
interno . Veiu o seculo XVIII , e encarou a
epopeia medieval debaixo de um aspecto
differente : observou-a nas pinturas phy-
sicas , na harmonia das palavras , con-
templou-a no exterior . Hoje todos con-
cordam em que d'aquelle grande livro se
inspiraram os pinceis de Miguel Angelo
e Raphael ; reconhece- se n'elle o em-
bryão da philosophia de Vico e da poli-
tica de Machiavelli ; extrahe- se da Divina
Comedia um codigo penal ; divisa-se lá a
ESTUDO CRITICO II

sanctificação da philosophia , a apotheose


da sciencia secular ; e na filha de Porti-
nari, tornando-se alma do poema, desco-
bre-se a Virgem de Bethlem transfor-
mando-se em alma da Egreja.
Não se póde dizer que Shakespeare
escrevesse o Hamlet com o proposito de
fazer incidir a luz da ribalta sobre um
exemplar da hysteria ; mas conhecedor ,
como era, da natureza humana , desenhou
o personagem tal, qual seria logicamente ,
dadas as condições em que se achava.
Ora todo o homem, em quem concorram
as circumstancias individuaes e de meio
cosmologico , que concorrem no principe
de Dinamarca, raro deixará de ser hys-
terico . Pois Shakespeare não fez do seu
heroe outra coisa . Vejamos se o conse-
guimos demonstrar .

*
*
*

Dizia Lessing que o theatro shakes-


peareano é o espelho da natureza . Esta
2
12 HAMLET

phrase é de todo o ponto verdadeira .


Não existe no mundo coisa completa-
mente má , nem perfeitamente boa ; pelo
contrario , vê- se a mancha ao pé da luz
mais intensa e mais brilhante , o bello
junto do feio , o grande ao lado do pe-
queno, o torpe misturado com o honesto,
a sinceridade a par da hypocrisia , a leal-
dade emparelhando com a traição .
Pois bem. Assim como a natureza
reune Theophilo e João Chrysostomo ,
Miguel de Vasconcellos e João Pinto Ri-
beiro, Colombo e Bobadilla , tambem Sha-
kespeare põe Othello ao pé de Yago , Frei
Lourenço ao lado de Romeo , Henrique v
junto de Falstaff, Ricardo , duque de York,
proximo de Eduardo , principe de Galles .
E assim como a natureza em cada indi-
viduo allia os sentimentos mais encon-
trados e as disposições mais antagonicas ,
tambem no cardeal Wolsey - o ministro
de Henrique VIII , que regia a Inglaterra
pretendendo fazer o que mais tarde fez
em França Richelieu - Shakespeare de-
ESTUDO CRITICO 13

senha o homem, que não pestanejava


deante da desgraça , nem se commovia
ás impressões mais ternas e suaves, e
que ao mesmo tempo derramava lagri-
mas copiosas ante os protestos de fide-
lidade de um antigo servidor ; o homem
que respondia cheio de orgulho e altivez
aos nobres , que havia pouco o tinham
adulado , e depois fallava com os senti-
mentos caridosos convenientes a um mi-
nistro da egreja .
Cumpre accentuar um outro ponto .
Por isso mesmo que Shakespeare foi
um dos mais sublimes representantes
da intelligencia, a obra , que legou á
posteridade , é a arte na sua mais levan-
tada manifestação . Inspira- se da natu-
reza, porem não se avassalla . Perscruta
o coração humano , desvenda -lhe os ar-
canos , estuda - lhe as paixões , observa-
The as modalidades , comprehende-lhe a
essencia, intende-lhe a complexidade ,
mas não o copía servilmente . A grande
arte a arte de Leonardo de Vinci , a
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arte de Cervantes, a arte de Shakes-


peare - abrange o que é fundamental e
immanente , assenta as linhas principaes ,
bosqueja as feições mais rasgadas do ho-
mem, e com isso fórma a instituição
primordial, o ovulo - digamos assim -
das suas creações . Depois a energia pro-
lifica da imaginação fecunda o ovulo, e
brotam caracteres , que tendo tudo o que
é humano , não são todavia reproducção
photographica de alguma individualidade
real.
De sorte que o alvo , a que se dirige
o artista verdadeiro , não é trasladar nas
suas composições as particularidades e
minucias da natureza humana ; é dar- lhe
os traços physionomicos caracteristicos ,
pôr a nu o que se acha latente dentro
d'ella , é adivinhar, exprimir, interpretar
a vida. E só genios d'aquelle tomo po-
dem commetter e perfazer tão difficil
empreza, porque a vida, escreveu Lit-
tré, tem profundezas mais difficeis de
penetrar do que as immensidades dos
ESTUDO CRITICO 15

espaços . Eu não sei - dizia outr'ora a


seus filhos a mãe dos Machabeus - não
sei como apparecestes no meu seio ; não
fui eu quem vos deu a alma , o espirito ,
a vida que recebestes lá .
Estas considerações geraes foram tra
zidas com o fim unico de apreciar o mo-
do , por que é geralmente comprehen-
dido o caracter do heroe scandinavo .
Entre a multidão de criticos , biogra-
phos e commentadores , que se têem
occupado do assumpto , posto que não
haja dois que escrevam na mesma con-
sonancia, podem ainda assim formar-se
duas escolas . Uns consideram o melan-
cholico pensador como um ente , que
possue o mais apurado sentimento da
rectidão e da virtude ; mas uma victi-
ma condemnada pelo destino a fazer en-
trar nos seus eixos o mundo desordena-
do , faltando-lhe completamente a ener-
gia. Esses taes filiam-se na escola de
Goethe, para quem Hamlet é um car-
valho plantado n'um vaso proprio para
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conter sómente flores delicadas ; as rai-


zes bracejaram com vigor, e o vaso par-
tiu-se em pedaços » . Outros , pelo con-
trario , rejeitam a tacha de apoucamento
e cobardia, legitimam a fórma, como
Hamlet evade os lances decisivos , e
chegam ao ponto de affirmar que sem-
pre e em tudo dá mostras de notavel
arrojo e sangue frio.
Parece-nos que nenhuma das duas es-
colas soube ter mão em si ; ambas foram
exaggeradas . Em conformidade com o
que atrás escrevemos , o caracter de
Hamlet não é completamente bom, nem
completamente mau ; é um conjuncto de
virtudes e de vicios , é um misto de con-
tradictorias disposições , tem os para-
doxos e incoherencias da humanidade .
Reune a ternura á dureza de coração ,
junta a credulidade á cultura do espiri-
to , harmonisa a franqueza com a dissi-
mulação . Trazendo o berço de uma arte
creadora e livre , não copista e enfeu-
dada aos modelos naturaes , Hamlet tam-
ESTUDO CRITICO 17

bem não é o retrato d'este ou d'aquelle


individuo , não é copia fiel de um cara-
cter real . Shakespeare seguiu os pro-
cessos da grande arte : sondou o coração
do homem, expurgou-o do que era par-
ticular e transitorio , lançou mão do es-
sencial e immanente , e creou um per-
sonagem, que nos attrahe, que nos ca-
ptiva a attenção , que nos é sympathico ,
porque em todas as epochas e em todas
as classes , em quanto o mundo for mun-
do , cada homem verá sempre no Ham-
let uma porção de si mesmo , achará
n'elle uma parte de muitos caracteres
conhecidos , sem que todavia na existen-
cia real se lhe tivesse deparado nunca
um Hamlet, em tudo e por tudo egual
ao Hamlet de Shakespeare .
Esta creação não é portanto uma pho-
tographia, um retrato particular ; é a
concentração e consubstanciação de qua-
lidades humanas , colhidas por sublima-
ção em differentes individuos . Não é a
observação de um pneumonico feita pelo
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clinico á cabeceira do doente ; é um ca-


pitulo sobre a pneumonia escripto por
um pathologista no remanso do gabi-
nete .
*
* *

Nascido em berço de oiro , gerado e


educado por um pae , a quem os reis de-
viam trazer sempre deante dos olhos
para lhe seguirem as pisadas , Hamlet ,
por disposição natural e por educação,
era um principe modelo , o espelho da
gente polida , a esperança e a flor da
Dinamarca. Conscio da nobreza da sua
estirpe, que luzia como esmalte no oiro
fino da sua intelligencia , conhecia bem
quanto sobrelevava ao resto da juven-
tude dinamarqueza, e sem desejar que
a morte puzesse fim ao reinado de seu
pae , ia-se dispondo e preparando para
resistir ás provas difficeis , em que mais
tarde haviam de collocal-o os encar-
gos pesados da realeza .
A sagacidade do seu entendimento da-
ESTUDO CRITICO 19

va-lhe como consequencia natural uma


poderosa veia critica e satyrica . A ten-
dencia para philosophar, a indole me-
ditativa da sua alma dotava-o de uma
extrema sensibilidade para os males ,
que affligem a humanidade , e - como
succede aos espiritos scismadores - logo
que o primeiro infortunio o visitasse ,
aquella extrema sensibilidade havia na-
turalmente de converter- se em tristeza ,
que lhe tingiria o coração .
Um dia morre-lhe o pae de repente,
e Hamlet , ferido pelo golpe inesperado ,
vê mudar- se de todo em todo a face das
coisas . Conheceu logo a fragilidade dos
bens mundanos , experimentou quanto
amargam os baloiços caprichosos da for-
tuna. A monarchia era electiva na Di-
namarca. Procedeu- se á eleição , e foi
eleito seu tio , irmão do defuncto rei.
Este facto demonstrou evidentemente
ao principe que « se um poderoso cahe ,
desapparece logo a falsa turba que o ro-
deava » . Começaram a diminuir as pro-
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vas de respeito e consideração , princi-


piaram a rarear os amigos e bajulado-
res do herdeiro presumptivo , apenas elle
desceu á humilde condição de vassallo .
Nenhum homem deixaria de entriste-
cer-se com um tal reviramento , sobre
tudo Hamlet, que estava ao facto dos
meios empregados pelo tio para trium-
phar ; que sabia não ter sido esbulhado
do throno por um antagonista leal , mas
pelas fraudulentas machinações de « um
gatuno, que de sobre uma estante rou-
bou um precioso diadema , e metteu -o
na algibeira » . E, como se isto não fosse
motivo de sobejo para que um espirito ,
como o seu, condemnasse amargamente
o mundo em que tinha de viver, o
casamento de Claudio e de Gertrudes
veiu tortural-o ainda mais , arraigando-
lhe a convicção de que estava perdido.
e aviltado , desde que a tanto se avil-
tára e perdêra sua mãe . Maguava-o a
lembrança de que ella na edade em
que os alvoroços do sangue se humi-
ESTUDO CRITICO 21

lham e obedecem ao juizo » , tivesse dei-


xado de viver « n'uma formosa monta-
nha para vir chafurdar n'um pantano » .
Não comprehendia que a viuva de um
rei tão adorador da mulher, que não
permittia ao vento celestial que lhe
soprasse no rosto com aspereza » , tor-
nasse a casar ao cabo de um mez, antes
que o sal das enganosas lagrimas lhe
deixasse de avermelhar os olhos inflam-
mados . Na opinião de Hamlet até as
brutas feras , incapazes de razão , lamen-
tariam por espaço mais longo a morte
do carinhoso marido :

Mais tempo choraria uma panthera,


Uma tigre, leôa, qualquer fera.

Na sua phantasia irrequieta desenha-


vam-se as scenas, que debaixo dos len-
çoes polluidos se passariam entre a mãe
e o segundo marido « esse biltre que não
valia a vigesima parte de um decimo
do seu primeiro senhor » . Afigurava- se-
The assistir ao espectaculo , que offe-
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receria Claudio , frascario e sensual , im-


pando de lauta comezaina, e « belliscando
com ternura as faces de Gertrudes , cha-
mando-lhe a sua rata , fazendo -lhe coce-
gas no pescoço » para excitar-lhe os ap-
petites da carnalidade .
Dominado por essa lembrança , Ham-
let passava uma existencia escura . Tra-
zia o coração abrumado pelos espinhos
do asco e do tedio . Abominava o tio ,
causavam -lhe nojo as praticas e anda-
mentos de Gertrudes ; e o habito de ge-
neralisar levava- o a concluir do procedi-
mento dos dois que « todas as mulheres
tornam os maridos em monstros » , que
todos os homens são vis e desleaes , que
o mundo é um campo inculto , em que
sómente germinam hervas damninhas e
de baixa qualidade :

O mundo é para mim gandara inculta,


Em que espinhoso cardo cresce e avulta .

Tão profundo desgosto lhe senhoreia


o coração , que elle mesmo poria termo
ESTUDO CRITICO 23

ao soffrimento , se a Eternidade não hou-


vesse estatuido uma lei contra o suicida .
O escrupulo de infringir as prescripções
divinas desarmava-lhe o braço , diz elle ;
senão , Hamlet, enfadado de viver, ma-
tar- se-hia , como aquelles que Eneas en-
controu no Orco , e que , abhorrecidos da
luz, se suicidaram : Lucem perosi proje-
cere animas.
N'esta conjunctura se achava o prin-
cipe dinamarquez , quando soube pela
bocca de Horacio que duas noites a fio ,
estando de guarda Marcello e Bernardo,
lhes apparecera uma figura similhante
a seu pae, armada de ponto em branco ,
e se dirigira lenta e majestosa para elles .
Reappareceu na terceira noite , Horacio
viu-a , e affirma que as suas duas mãos
não têem mais parecença uma com a
outra, do que a sombra com o defuncto
rei .
Hamlet accredita, e decide ficar tam-
bem de guarda . Desconfia d'alguma cila-
da, mas ordena á sua alma que socegue .
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*
*

É quasi meia noite . Na explanada do


castello está um ar agudo e penetrante ;
a natureza é envolvida pela mais com-
pleta escuridade ; não se ouve bulir um
rato . D'aquelle alto silencio , d'aquella
noite funda, a horas mortas , ressumbra
o que quer que seja de grave e de so-
lemne, que desperta o vago presenti-
mento de incognitas desgraças , e abala
o espirito como o canto flebil e plan-
gente, em que se entoa o medonho Dies
ira, ou os vaticinios de Jeremias e de
Ezequiel . O ceo e a terra prognosticam
ruins acontecimentos , « correios que pre-
cedem constantemente os fados , e pro-
logo de males porvindoiros » . Parece que
as muralhas de Elsenor, até alli mudas ,
impassiveis , vão agora tomar a palavra
para com voz lugubre descerrar um se-
gredo triste e nefando .
Em meio d'este scenario temeroso
apparece o espectro . Hamlet recebe uma
ESTUDO CRITICO 25

impressão violenta . O sangue recúa atro-


pellado ao coração , e o facto de estar
deante da imagem de seu estremecido
pae interrompe-lhe alguns instantes as
funcções da vida , trava-lhe do pensa-
mento e da razão . Quando a machina
humana principia de novo a funccionar,
Hamlet supplica aos anjos « ministros
de graça >> que o defendam ; pede ao es-
pectro que lhe diga com que intuito ost
seus ossos venerandos rasgaram a mor-
talha , e o sepulchro, onde jazia tran-
quillamente encerrado , abriu a bocca de
marmore , e o arrojou de novo para fóra » .
O espectro faz-lhe signal chamando -o
para sitio mais afastado , e Hamlet se-
gue-o a despeito das advertencias e pe-
didos em contrario , que lhe faziam Ho-
racio e Marcello .

Sente-se que uma enorme trovoada


paira sobre a cabeça do heroe . Perce-
-
be-se confusamente , ou permitta- se-
nos a expressão - palpita- se que o des-
tino vae collocar-lhe sobre os hombros
26 HAMLET

um pezo , que o ha de esmagar . O meu


destino brada por mim ! exclama elle .
O espectro revela-lhe o assassinio
mais hediondo , mais estranho , mais re-
pugnante á natureza, e Hamlet fica sa-
bendo que seu pae fora traiçoeiramente
assassinado pelo irmão , « essa besta in-
cestuosa e adultera » que cinge agora a
coroa da Dinamarca .
Bem conhecidas as tendencias natu-
raes do homem ; desenhadas - talvez
com excessiva minuciosidade - as cir-
cumstancias , em que se encontra, veja-
mos como sempre conformam as obras
com o caracter , e o caracter com a hu-
manidade . Sem torcer a demonstração ,
sem torturar o raciocinio , observaremos
que, assim como o estylo de uma cathe-
dral se manifesta em cada uma das suas
partes, assim tambem o caracter de
Hamlet se acha resumido , compendiado
em cada scena da tragedia . E mais obser-
varemos que os seus actos explicam- se
tão facilmente , se o considerarmos um
ESTUDO CRITICO 27

hyterico, que o personagem shakespea-


reano pode ser apresentado como um
exemplar perfeitissimo de hysteria mas-
culina .
*
* *

Após a revelação do espectro Ham-


let caminha de assombro em assombro .
Uma dor extrema apodera- se d'elle ,
em meio de uma extrema indignação .
Agita- se-lhe no cerebro um torvelinho
de ideias , que o pungem ; a commoção
do animo chega ao seu maior auge. A
esse estado de tensão maxima segue- se
a expansão natural , o desabafo . Hamlet
desfecha a lingua em improperios e
doestos , terminando por jurar ao espe-
ctro quo nunca se esquecerá da sua re-
commendação : « Agora o meu santo e
senha será : Adeus ! adeus ! lembra-te de
mim ! Jurei-o » .
As palavras do espectro tinham um
tom de justiça divina clamando por vin-
gança, e dizendo a Hamlet : « Não deixes
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que o throno da Dinamarca seja ninho


de luxuria e de incesto condemnado » .
Hamlet comprehendeu logo a enormi-
dade da tarefa , que lhe fôra commet-
tida . Não se recusava a cumpril-a, mas
estava convencido de que era superior
ás suas forças . Quizera voar á vingança
com azas tão ligeiras como a meditação ,
ou como os pensamentos do amor ; po-
rém elle , pobre Hamlet ! não viera a
este mundo para executar , nascêra uni-
camente para reflectir . E comtudo a
ideia de vingar- se nunca o abandonava.
O destino procedera com elle como Ju-
piter com seu filho Atlante . Encarre-
gou-o de sustentar o pezo do universo ;
mas o que o destino lhe não concedeu ,
foi a robustez herculea do celebre gi-
gante . É o caso de repetir a exclamação
do epico lusitano :

Misera sorte ! estranha condição !

Para melhor servir os seus designios ,


Hamlet finge- se doido . Pareceu-lhe que
ESTUDO CRITICO 29

era o meio de jogar impunemente as


suas ironias , e pôr em execução o man-
dado que recebêra do espectro . Não dis-
cutamos se havia ou não melhor cami-
nho ; accentuemos só que Hamlet dissi-
mulava . « Jurae - disse elle a Horacio e
Marcello que nunca , por mais extrava-
gante e insolito que seja o meu procedi-
mento (porque talvez se me afigure ne-
cessario affectar de hoje em deante um
caracter phantastico) jurae que , ao ver-
me assim , nunca denotareis saber algu-
ma coisa a meu respeito » .
Não ha portanto duvida de que fingia.
Mais tarde veremos como se explica a
dissimulação ou o fingimento de Ham-
let .
A força da imaginação , e a agudeza
do entendimento desenvolveram-lhe ex-
traordinariamente o poder da observa-
ção e da analyse . Esse extraordinario
desenvolvimento obriga-o a profundar a
razão das coisas , a engolfar-se na consi-
deração de todos os acontecimentos , a
30 HAMLET

miral- os , remiral- os por todos os lados ,


a esmiuçar-lhes o porquê e a origem.
D'esta fórma tanto lhe enfraquece a von-
tade, que o inutilisa para representar no
mundo o papel , que convem á activi-
dade humana ; transforma- o n'um ho-
mem avêsso a qualquer especie de reso-
lução , um homem que não sabe dar-se
a conselho , um homem atado , irreso-
luto , incapaz de deliberar. O mesmo
acume de intelligencia combinado com
o extremo nervosismo produz-lhe uma
grande excitabilidade , quando elle se
acha sob a acção de um acontecimento
inesperado , que lhe não dá tempo de
reflectir, convertendo-o então n'um ho-
mem assomado e impetuoso . Do que le-
vamos dito se infere que o principe de
Dinamarca reune em subido gráo as
duas contradictorias disposicões - uma
absoluta falta de determinação , e um
grande arrebatamento . É a um tempo
irresoluto e impetuoso .
A alliança d'estes dois contrarios é
ESTUDO CRITICO 31

perfeitamente humana, e singelamente


explicada pela sciencia . É uma doença
da vontade de um nevrotico .
Com effeito , a irresolução de muitos
caracteres provem da riqueza de ideias .
A comparação dos motivos , diz M. Th.
Ribot , os raciocinios , o calculo das con-
sequencias , constituem um estado cere-
bral extremamente complexo , em que se
embaraçam as tendencias para o acto » .
Sem querermos entrar na explicação
physiologica d'este enfraquecimento da
vontade , e limitando-nos a apontar os
factos , que justifiquem o nosso juizo so-
bre o Hamlet , recordaremos que uma
das fórmas pathologicas do caracter ir-
resoluto é exactamente a que se observa
no principe de Dinamarca - o estado
mental, que levado á exacerbação ulti-
ma, é conhecido pelo nome de loucura
da duvida , ou mania de investigar . É um
estado de hesitação constante pelos mo-
tivos mais futeis com a impotencia de
chegar a um resultado definitivo .
32 HAMLET

O individuo dirige a si proprio um nu-


mero infinito de interrogações , ponde-
rando as consequencias e eventualidades
de qualquer passo , por mais insignifi-
cante que seja . O seguinte exemplo
colhido em Legrand du Saulle , e citado
por M. Th. Ribot, define o estado com
a maior clareza : « Uma mulher muito
intelligente não póde sahir á rua sem
perguntar a si mesma : cahirá alguem
d'alguma janella ao pé de mim? será
homem ou mulher? esse alguem ferir-
se-ha ou morrerá ? se se ferir, será na
cabeça ou nas pernas? o passeio ficará
manchado de sangue? se morrer, o que
hei de fazer? pedir soccorro , fugir, ou
rezar uma oração ? accusar-me-hão de
ter sido causa do desastre ? será re-
conhecida a minha innocencia ? E não
terminavam as perguntas » .
Ora esta perplexidade morbida da in-
telligencia traduz- se nos actos pelas fór-
mas variadas de hesitações , que tortu-
ram os desgraçados enfermos , os quaes
FSTUDO CRITICO 33

deixam de escrever, deixam de ouvir,


deixam de fallar; mas fallam a sós com-
sigo , em meia voz , depois em voz baixa,
e algumas vezes acabam só por mecher
os beiços , exprimindo as ideias por uma
especie de mussitação » .
O doente convence- se de que não pó-
de ; não sabe apreciar as consequencias
provaveis do acto ; não quer .
Um tal enfraquecimento da vontade
muitas vezes termina pelo seu com-
pleto anniquillamento , sobre tudo quan-
do existe um sentimento de terror in-
tenso . Entre muitos factos comprovati-
vos escolheremos o caso , referido por
Esquirol , de um rapaz , que parecia
idiota , e a quem era preciso deitar , ves-
tir, dar de comer, e depois de curado
confessou que o não podia fazer, porque
uma voz interna lhe segredava : Não te
mechas, senão morres ! »
Outras vezes porém o mesmo estado
de enfraquecimento colloca o espirito
em circumstancias de ser influenciado
34 HAMLET

por uma causa banal, que seria indiffe-


rente para uma vontade sã, mas que na
vontade enferma origina uma impulsão
subita, inconsciente, seguida de uma
execução immediata . Este genero de im-
pulsão observa- se a cada passo nos hys-
tericos .
Uma mulher hysterica , por exemplo ,
está de cama, sem que a vontade seja
capaz de fazer mecher um braço . Este
estado é resultante de tres elementos
morbidos : estado de duvida , consciencia
da impotencia, e ausencia de incitação
expontanea . Vem o medico , observa-a ,
toca-lhe com o dedo no braço , ou ex-
prime o desejo de que elle se mova,
dando-lhe a certeza de que d'ahi lhe não
provirá mal, e o convencimento de que
pode executar o movimento indicado .
Pois isto , que para um individuo são
nada significaria como causa primaria de
movimento , ou só poderia valer depois
de apreciada devidamente, é só por si
bastante para conseguir o effeito dese-
ESTUDO CRITICO 35

jado - determinar o movimento do bra-


Ço.
Não queremos alongar- nos em maior
numero de citações . Procuremos só por
meio de um simile tornar claro o estado
de espirito do nosso doente - do Ham-
let . No individuo normal a vontade re-
presenta ao espirito differentes resolu-
ções com tonalidades diversas , como se
podem n'um papel escrever differentes
caracteres com formato variavel. No
hysterico o papel está em branco ; pode
qualquer estranho escrever o que lhe
aprouver, e o hysterico verá só isso ,
nada mais . Para o caso do Hamlet, em
cujo espirito não havia uma resolução
firme, e que sobrelevasse a todas as
outras , o espectro appareceu , escreveu
a sentença de vingança , unica ideia
que Hamlet vê, e trata de pôr em exe-
cução .
D'aqui se deduzem logicamente as
trepidações, os assomos de ira, as bra-
vatas, o odio ao universo, a dissimula-
36 HAMLET

ção, tudo quanto faz e diz o principe de


Dinamarca .
*
*

A aurora da sua existencia despon-


tara alegre e perfumada . No horizonte
não surgia uma nuvem, que lhe empa-
nasse a claridade tibia , nem se escutava
no ar o mais leve ruido em dissonancia
d'aquelle doce preludio de ventura , que
mais tarde havia de proromper em toda
a sua sonoridade grandiosa . Á medida
que ia crescendo em edade, ia tambem
desenvolvendo os dotes , de que o pren-
dára a natureza , entregando- se com o
mesmo afinco aos exercicios do corpo e
ás elucubrações do entendimento ; e
quando sentiu no peito a ancia de dar
culto á formosura da mulher , consagrou
o enthusiasmo do seu affecto juvenil a
uma donzella innocente, a uma rosa de
maio, que pompeava as seductoras gra-
ças da sua primavera . E Ophelia , em
quem a belleza, a linguagem, a ternura ,
ESTUDO CRITICO

tudo era a um tempo ideal e femini-


no, tambem sentiu o coração rendido
áquella razão nobre e soberana , libou
o mel de seus melodiosos protestos , e
obedecendo á lei inquebrantavel posta
nos labios de Francisca pelo immortal
poeta florentino amor a nullo amato
amar perdona - Ophelia tambem amou
Hamlet. Este por consequencia possuia
tudo quanto pode ambicionar a moci-
dade .
Se ha coisa no mundo, que justamente
deva arreceiar- se do futuro , essa tal é a
completa felicidade individual . Sempre
que o homem gosa de uma beatitude
quasi paradisiaca , sempre que vê desli-
sar o curso da vida segundo o molde e
sabor dos seus desejos , parece que mais
rija será a provação , com que ha de ser
experimentado .. Foi o que succedeu ao
principe de Dinamarca . Vivia feliz, com-
pletamente feliz . De subito , a mão im-
piedosa do destino trouxe o exicio e
ruina de tanta felicidade, e Hamlet disse
38 HAMLET

adeus para sempre ás esperanças de um


futuro glorioso, ao trabalho vivificador
do corpo e do espirito , ás aureas regiões
da poesia, aos sonhos ridentes da moci-
dade, aos dias formosos, ás noites mais
bellas do que os dias , aos affagos e blan-
dicias do amor - ventura primogenita da
vida .
Se pudesseis voltar , dias de felicidade !
Porem não . Quando Hamlet jurou apa-
gar do registo da sua lembrança todas
as maximas dos livros , todas as fórmas
do passado, todos os vestigios da juven-
tude , esvaeceram como fumo as espe-
ranças , voaram os sonhos , ficou para
sempre inerte a musculatura , esterili-
sou-se o engenho que promettia ser tão
fertil, emudeceu a lyra, que de Ophelia
recebia alento e inspiração . O seu espi-
rito sentia- se tão pesado , que esta bella
machina a terra - afigurava- se-lhe es-
teril promontorio ; este soberbo docel — o
ar este bravo firmamento que pende
sobre nossas cabeças, este tecto majes-
ESTUDO CRITICO 39

toso cravado de luzes de oiro , tudo lhe


parecia uma agglomeração immunda de
pestilentes vapores .
Como o seu unico desejo era furtar-se
ao convivio de um mundo , em que só
imperava a injustiça e as adversidades ,
Hamlet concentrou -se em si mesmo, en-
carcerou-se na imaginação , e d'ahi se
derivou como consequencia necessaria
que, na phrase elegante de Pedro d'An-
drade Caminha , o espirito caiu-lhe de tris-
teza todo enfermo .
E é verdade . Aquelle claro entendi-
mento, aquella alma primorosa enfer-
mou. Enfermou da doença , a que os gre-
gos davam o nome de melancholia , bilis
negra; doença que invade os animos acos-
sados de afflicções , fustigados por horri-
veis catastrophes , cruelmente desenga-
nados nas suas illusões .
Nada ha que mais seduza e encante
do que os primordios da melancholia .
É quasi ideal o suave matiz d'essa tris-
teza indefinida , que , reflectindo- se nas
40 HAMLET

lettras e nas artes , desfere os sons ma-


guados da cithara dos poetas , ensombra
de imagens sentidas as paginas do ro-
mance, derrama por sobre a tela a ex-
pressão commovedora , com que o pintor
figura os soffrimentos do coração . Mas a
affecção melancholica torna- se depois
uma calamidade . Altera as funcções do
corpo , desorienta o espirito , converte em
desassocego afflictivo o somno, que por
sua natureza é uma folga , uma tregua á
luta penosa da existencia .
É o mais formidavel dos flagellos ; tão
atroz, que Jehovah enumerando as mal-
dições , com que seriam punidos os he-
breus , que violassem a lei do Senhor ,
ameaçou-os com a indigencia, com a fo-
me, com a cegueira , com a sarna , com
as ulceras incuraveis ; disse-lhes que ha-
viam de ser opprimidos de violencias ,
denegridos de calumnias , e que das ex-
tremidades da terra viria uma gente ,
cuja lingua não pudessem entender, e
cahiria sobre elles á similhança d'uma
ESTULO CRITICO 41

aguia, que voa impetuosamente ; pre-


venio- os de que seriam sitiados pelo
inimigo , e que taes haviam de ser os hor-
rores da penuria e desolação , que as
mães ternas e mimosas comeriam ás
occultas - sem repartir sequer com os
maridos os proprios filhos acabados de
nascer. Pois Jehovah ainda não achou
bastante. Accrescentou como coisa mais
terrivel que lhes daria um coração me-
droso , uns olhos descahidos , e uma alma
consummida de tristeza : Cor pavidum et
deficientes oculos, et animam consumptam
mærore, diz o Deuteronomio .
Duas coisas convém notar :
Primeira - A tristeza , essa enfermi-
dade , de que Hamlet foi accommettido ,
é um dos symptomas, que se observa
com mais frequencia na hysteria ; e ou
não tem motivo , ou é naturalmente des-
proporcionada com a causa.
Segunda - Em qualquer organismo
perfeitamente saudavel , mas de uma
delicada sensibilidade nervosa, uma con-
42 HAMLET

trariedade forte, um desgosto profundo


pode originar, e origina muitas vezes a
doença . É frequentissimo ver uma ra-
pariga tendo gosado sempre de uma
saude magnifica, começar a appresentar
manifestações doentias , que são pheno-
menos hystericos claramente diagnosti-
cados , pelo desgosto de ter sido contra-
riada na idéa de um casamento .
Briquet diz que o fundo da predispo-
sição hysterica é constituido pela impres-
sionabilidade excessiva do systema ner-
voso. Até define a hysteria « a loucura
da sensibilidade » e aponta as commo-
ções vivas inesperadas como sendo uma
das causas determinantes da molestia .
« Quando os desgostos e os pezares ac-
tuam predispondo para a nevrose e pre-
parando-a , as impressões psychicas su-
bitas são a occasião , que faz brilhar a
faisca , e provoca as primeiras manifes-
tações hystericas . »
Imagine-se um dia de primavera alvo-
recendo claro, espalhando sobre a terra
ESTUDO CRITICO 43

os primeiros raios de uma luz creadora


e benefica. Adelgaça- se o manto humido ,
que envolvia as montanhas ; as coisas ao
longe vão tomando vulto e côr ; o oceano
luminoso , crescendo a pouco e pouco ,
inunda por fim toda a natureza , res-
plende na superficie vitrea das corren-
tes, nas folhas lustrosas das arvores , e
no iris da plumagem dos seus altivolos
cantores. O ar, o céo , a paizagem , tudo
é prenuncio de formoso meio dia , tudo
falla d'amor n'esta quadra , que tem bei-
jos d'amores perfumados para todo o
mundo. De repente divisam- se uns como
farrapos na orla extrema do horizonte .
Meia hora depois os nimbos accumu-
lam-se , escurecem o ar , zunem os ven-
tos nas cavidades das rochas , a floresta
geme batida da procella , e os passaros
pipilam aterrados vendo fuzilar os re-
lampagos , e ouvindo o roncar medonho
do trovão . Facilmente se comprehende
o que sentiria como espectador d'esta
scena horrivelmente bella um d'esses or-
44 HAMLET

ganismos nervosos , mais sensiveis do que


barometros ás perturbações athmosphe-
ricas . A marcha da existencia do Ham-
let até o principio da verdadeira tragedia
pode comparar-se ao quadro , que esbo-
çámos . Em perfeita synergia physica e
intellectual espairecia os olhos satisfeitos
pelo panorama que o circumdava , arrou-
bava-se-lhe o espirito em suaves pensa-
mentos á proporção que augmentavam
a luz e o calor, que são a alma do uni-
verso . Mal se condensam as primeiras
nuvens, e fica a athmosphera prenhe de
electricidade , os nervos influenciados po-
derosamente reagem sobre o moral , que
logo se tolda e annuvia . Principia a des-
carregar o fluido electrico ; estala o pri-
meiro trovão , o firmamento é cortado
por uma fita de fogo em zig-zag, cahe a
centelha fulminante , Hamlet é assom-
brado pelo raio . Eis a faisca, de que nos
falla Briquet.
N'esse estado d'alma , com a idéa per-
manente de vingar o assassinio do pae,
FSTUDO CRITICO 45

e julgando - se impotente para o fazer , de


novo lhe passa pela mente a idéa do sui-
cidio . Mas o espirito meditativo começa
a reflectir, a considerar, a ponderar as
coisas maduramente . É a mania de inves-
tigar. O que é mais nobre para a alma?
soffrer as pedradas e as settas da fortuna
ultrajosa ? ou tomar armas contra um
mar de tribulações , e , fazendo-lhes rosto ,
dar-lhes fim? A vida de além tumulo
dará fim aos mil embates naturaes , de
que é herdeira a carne? ou no somno
da morte poderão sobrevir sonhos que
revolvam a alma já desembaraçada do
bulicio mortal? » E n'esta ruminação psy-
chica o pensamento triumpha da reso-
lução . Elle proprio diz : « O fulgor nativo
da resolução é amortecido pelo clarão
pallido do pensamento . The native hue of
resolution is sickly'd o'er with the pale cast
of thought » . É pois evidente que Hamlet
não se mata , porque lh'o não permitte
o seu caracter irresoluto , e a irresolução
procede do temor , que lhe infundem as
46 HAMLET

meditações sobre o desconhecido paiz ,


de cujas raias nenhum viajante ainda vol-
tou. »
Hamlet define o estado com um rigor
scientifico , que deslumbra : « Quem que-
reria supportar esse fardo , gemer e suar
debaixo d'esta vida pesadissima, se o te-
mor d'alguma coisa depois da morte não
enleiasse a vontade, e nos fizesse antes
padecer os males , que temos , do que
voar para outros , que ignoramos ? » Em
vista d'isso não é licito pôr em duvida
que o suicidio não se realisa por causa do
temor d'alguma coisa depois da morte ,
the dread of something after death.
Quer dizer, a vontade não se consti-
tue , é anniquillada pela existencia de
um sentimento de terror intimo , egual
ao que se observa no facto , que citámos ,
referido por Esquirol .
Isto é perfeitamente caracteristico da
hysteria . Uma tendencia muito vulgar
nos hystericos é a tendencia para o
suicidio ; porém rarissimas vezes che-
ESTUDO CRITICO 47

gam a realisar o seu intento . Dispoem as


coisas , preparam tudo por um modo es-
pectaculoso, mas , quando chega a occa-
sião, falta-lhes a vontade , não se matam.
É o que affirmam os especialistas.
Deposta a idéa do suicidio , Hamlet
prosegue na de matar o rei. Ora elle já
tinha duvidado do espectro tambem por
causa das suas reflexões . O espirito , com
que fallou, bem podia ser o demonio, que
se revestisse d'aquella fórma augusta
para perdel- o ; que o demonio - ponderava
-
ainda tem alta influencia nos animos
como eu. Mas , como ouvira que alguns
criminosos tinham revelado os seus de-
lictos , assistindo á representação de uma
peça, cuja contextura os fazia recordar ,
ordenou que deante do rei se represen-
tasse O Assassinio de Gonzaga . Por essa
fórma , analysando os movimentos de
Claudio , Hamlet adquire a convicção de
que fora aquelle o auctor do barbaro
homicidio : « Aposto mil libras que o es-
pectro fallou verdade! »
3
LET
48 HAM

Pois bem. Se o rei foi trahido pela


commoção ; se aos olhos de Hamlet o
crime é evidente , porque não desem-
bainha elle a espada , e não prostra o ho-
micida , quando o surprehende a rezar ?
« Porque é preciso reflectir, diz elle mes-
mo : That would be scann'd » . E das refle-
xões conclue que não deve assassinar
Claudio . Está rezando ; agora vou exe-
cutar ... Então vae elle para o ceo ; e eu
ficarei vingado ? Eis o que é preciso re-
flectir. Um scelerado matou meu pae, e
por esse facto eu , seu filho unico , en-
viarei para o ceo o mesmo scelerado ?
Surprehendeu meu pae com os seus de-
lictos amplamente desabrochados ... E
quem sabe , senão Deus, as contas que
elle ha de prestar? E fico eu vingado ,
surprehendendo este (o rei) na occasião
de purificar a sua alma ? » As interroga-
ções, que dirige a si mesmo durante o
monologo , denotam um estado de es-
pirito analogo ao da mulher, que não
sahia á rua sem ponderar os acciden-
ESTUDO CRITICO 49

tes fortuitos , que pudessem occorrer.


Por consequencia a irresolução prove-
niente da doença da vontade , é a causa ,
em virtude da qual Hamlet não banha
a espada no coração de Claudio , e até
exclama : « Alto ! minha espada ! medita
n'um golpe mais terrivel ! »
Ainda meditar ! Sempre meditar !
O caracter de Hamlet é a um tempo
irresoluto e impetuoso , escrevemos nós .
A irresolução demonstrámos que ex-
plica varias situações , em que se encon-
tra o heroe da tragedia shakespeareana .
Sigamos o mesmo processo , estudemos
as acções de Hamlet, as circumstancias ,
em que são praticadas , e veremos que
são filhas de causas externas ; que Ham-
let é compellido por incidentes , que se
passam , não dentro , mas fóra d'elle , os
quaes influindo na sua vontade enferma
determinam uma impulsão subita , in-
consciente , seguida de uma execução
immediata .

Temos diligenciado ser o mais parco


50 HAMLET

possivel na exposição de doctrinas , e


citação de exemplos scientificos ; mas
precisamos de justificar a nossa opinião ,
e é necessario que a parcimonia não
degenere em escassez . Referiremos pois
um caso notabilissimo , descripto nos An-
naes medico-psychologicos por Billod , e
que tambem se encontra na obra de M.
Ribot, a que já nos temos reportado .
« Trata-se de um homem de sessenta e
cinco annos , de constituição forte, de
temperamento lymphatico , de sensibili-
dade mediocre, de uma intelligencia des-
envolvida sobre tudo para negocios . Mui
devotado ao seu officio de tabellião , só
abandonou o cartorio depois de longas
hesitações . Caíu n'um estado de melan-
cholia profunda , recusando os alimentos ,
julgando- se arruinado , levando a deses-
peração ao ponto de uma tentativa de
suicidio .

« A faculdade, que nos pareceu mais


notavelmente alterada , foi a vontade . O
ESTUDO CRITICO 51

doente accusa uma impossibilidade fre-


quente de querer executar certos actos ,
posto que o deseje, e apesar do seu juizo
estar são, e mostrar-lhe a opportunidade
e muitas vezes a necessidade de os pra-
ticar » .

« Decidiu- se que o doente fizesse uma


viagem á Italia comigo » .
« Quando lhe annunciaram
a partida ,
nunca poderei » disse elle . Na vespera
tornou a declarar que nunca lhe seria
possivel » . No proprio dia levantou-se ás
seis horas da manhã para fazer a mesma
declaração a M. M.... Esperavam todos
uma certa resistencia ; mas , quando eu
cheguei
,
sómente o doente não fez opposição ;
, como sentia a vontade prestes

a fugir-lhe, disse : « Onde está a carrua-


gem ? deixem-me entrar já , já para a
carruagem
... >>>
Entre vari observad
os phenomen os
os
na Viagem , M. Billod conta o seguinte :
Em Marselha o doente devia , antes
de embarcar , fazer uma procuraçã au-
o
52 HAMLET

ctorisando a mulher a vender uma casa .


Redige a procuração , escreve- a em pa-
pel sellado , mas quando vae a assignal-a ,
surge um obstaculo , que ninguem es-
perava. O doente escreve o nome, po-
rém não lhe é de todo em todo possivel
fazer a firma . O pobre homem esforça-
se em vão para vencer a difficuldade .
Cem vezes pelo menos faz com que a
mão execute acima da folha de papel os
movimentos necessarios ; cem vezes a
vontade é impotente para ordenar aos
dedos que appliquem a penna sobre o
papel . M. P ... sua por todos os póros ,
levanta- se com impaciencia, bate com o
pé no chão , torna a sentar- se , faz novas
tentativas, sem que a penna assente no
papel . Poderá negar- se que M. P ……. te-
nha o vivo desejo de concluir a assigna-
tura , e conheça a importancia d'aquelle
acto ? Poderá negar- se a integridade do
orgão encarregado de fazer a firma? O
agente parece tão são como o instru-
mento ; mas o primeiro não póde appli-
ESTUDO CRITICO 53

car-se sobre o segundo . Quem falta evi-


dentemente é a vontade. A lucta durou
tres quartos de hora , tendo um resul-
tado, que eu não suppunha : a firma fi-
cou mal feita , mas fez-se .
« Passados dias , M. P ... queria dar
um passeio depois de jantar ; queria fa-
zer ideia da cidade, dizia elle . Cinco dias
a fio punha o chapéo , levantava- se , dis-
punha-se para sahir, porém - baldado
empenho ! —a vontade não podia orde-
nar
ás pernas que o transportassem
para a rua . « Estou prisioneiro de mim
mesmo, exclamava o doente ; ninguem
me impede que saia , são as minhas
pernas que não deixam : e então ? ...

Uma outra circumstancia põe de ma-
nifesto a lesão da vontade . Chegámos a
Roma
no dia da eleição de Pio IX. O
doente
disse-me : « Eis uma circumstan-
cia ,
a que eu chamaria feliz, se esti-
vesse de saude . Desejava assistir á
coroação
, mas não sei se poderei : vou
fazer diligencia
» . No dia da coroação
54 HAMLET

levanta-se ás cinco horas , prepara a ca-


saca, faz a barba etc. , etc. , e diz-me :
Bem vê que emprego os meios ; mas
ainda não sei se poderei » . Em fim, á
hora aprazada, fez um esforço enorme,
e desceu ; mas dez dias depois , por occa-
sião da festa de S. Pedro , os mesmos
preparativos , os mesmos esforços , sem
o minimo resultado . « Continúo sempre
a estar prisioneiro de mim mesmo . Não
me falta o desejo , porque ha tres horas
que me arranjo ; estou vestido , barbea-
do , de luvas , e não posso mexer-me
d'aqui . E não poude » .
Attenda-se bem ao que se segue.
«De volta - continúa M. Billod -
quando chegámos a Lyão , a nossa mala-
posta passou por cima de uma mulher,
que os cavallos tinham derrubado por
terra . O doente recuperou toda a sua
energia, e sem esperar que a carruagem
parasse, abriu a portinhola , e foi o pri-
meiro que desceu , e chegou ao pé da
mulher » .
ESTUDO CRITICO 55

É longa a transcripção ; mas o exem-


plo é frisantissimo .
Hamlet, cuja vontade não podia orde-
nar ao braço que embebesse o punhal no
coração do rei , como a do doente obser-
vado por M. Billod não podia ordenar
á mão que traçasse a firma sobre o
papel , obedece ás causas externas , como
obedecia o mesmo doente . Este, vendo
a mulher derrubada pelos cavallos , e
pisada pela carruagem, abre a porti-
nhola e , n'um impulso repentino , sal-
ta, vôa a soccorrel-a ; Hamlet, quando
o navio que o conduz a Inglaterra é
perseguido por um pirata, tambem n'um
impulso repentino , deitado o arpeo ,
aborda o navio inimigo , ficando elle só
prisioneiro . Na violenta controversia com
a mãe, sentindo rumor atrás do repos-
teiro , obedece ás suggestões externas , e
n'um impulso repentino mata Polonio .
Finalmente mata o rei , não porque se
lembre da ordem do espectro , e ache a
occasião de molde para cumpril-a ; obe-
56
56 HAMLET

dece a uma impulsão subita , porque a


mãe diz-lhe estou envenenada » , porque
Laertes quando exclama « não tornarei
mais a erguer-me » previne-o de que
n'elle Hamlet « não ha meia hora de vi-
da » , e accrescenta que « o rei é o crimi-
noso » . Deante da horrivel catastrophe
Hamlet não tem tempo de reflectir, e
fere Claudio obrigando-o a beber o resto
do liquido contido na taça : Ó mons-
truoso assassino , maldito dinamarquez !
Acaba de beber esta poção ! »
Nos hystericos observam-se a cada
instante impulsões d'este genero , e M.
Th . Ribot deixa bem assentado que
ellas denotam uma ausencia de vontade .
Hamlet tambem se exprime de fórma ,
que não deixa a menor duvida . No ce-
miterio , quando ouve as exclamações
hyperbolicas de Laertes , o principe di-
namarquez n'um impulso repentino salta
dentro da cova de Ophelia , e esbraveja
a sua paixão em phrase ainda mais
exaggerada . Depois confessa que n'este
ESTUDO CRITICO 57

procedimento não houve connivencia da


Vontade ; foi originado pelas circum-
stancias exteriores . « Penalisa-me ter-me
esquecido de quem sou offendendo Laer-
tes; mas a jactancia da sua dôr arreba-
tou-me aquella paixão vertiginosa (towe-
ring passion).
Com o proposito de desenhar uma
alma encarregada de praticar uma acção ,
mas incapaz de o fazer, Sakespeare
creou um personagem, cuja vontade se
não póde constituir . As irresoluções e
impulsões filhas da doença acarretam
sobre elle innumeras difficuldades . O he-
roe esforça-se por triumphar ; e as angus-
tias que padece , a lucta afflictiva em que

se debate e finalmente succumbe , for-
mam o contexto , a urdidura da tragedia .
Como n'aquelle genero de enfermos
se observa a consciencia da enfermi-
dade , o celebre tragico dotou Hamlet
com esse predicado .
« Pois não é monstruoso que este co-
mico por simples fingimento , n'um so-
58 HAMLET

nho de paixão , consiga sujeitar a alma


á sua ideia , de sorte que , actuando so-
bre ella , se lhe inflammem as faces , pin-
te- se-lhe no rosto o desvario , entrecorte-
se-lhe a voz, e todas as funcções se amol-
dem ás fórmas do capricho imagino-
so ? ... Ao passo que eu , um miseravel ,
um coração de lodo , inerte como um José
sonhador, não sinto esporas para a vin-
gança, nada posso fazer, nada ... a fa-
vor d'um rei, contra cuja vida e fazenda
se praticou uma infernal espoliação » .
Aqui se revella a plena consciencia da
incapacidade para executar.
Shaskespeare ainda fez mais . Deu a
Hamlet o conhecimento de um sym-
ptoma bastante vulgar na enfermidade ,
que o accommetteu . « Sim , talvez o es-
pirito notando a minha fraqueza e me-
lancholia (my weakness and my melan-
choly.) » E com uma perfeição extraordi-
naria extraordinario engenho
aquelle
pintou no seculo xvi um caracter e um
estado mental com todos os phenome-
ESTUDO CRITICO 59

nos da nevrose , em que naturalmente


havia de cahir attentas as circumstan-
cias concomitantes .

Analysámos os principaes lances da


tragedia, e vimos como todos se expli-
cavam pelas irresoluções ou pelas im-
pulsões , a que dá logar a hysteria . Ob-
Servemos agora o principe dinamarquez
em situações importantes , porém não
tão momentosas .
Observemol-o durante a representa-
ção. O que notamos ? Vemol-o ridiculi-
sar Polonio , jogar epigrammas á rainha ,
explicar a peça , commental-a , interpel-
lar actores , emittir exclamações , n'uma
exaltação , n'um desiquilibrio que vae
augmentando gradualmente ; e quando
o rei se levanta e foge esbaforido , Ham-
let canta uma quadra , e diz : « Não achas
que, se a fortuna viesse a tratar-me
como turco a mouro , bastava uma scena
60 HAMLET

egual a esta, com uma floresta de pen-


nas na cabeça , e duas rosas provençaes
nos sapatos para entrar como compa-
nheiro n'uma matilha de comicos ? »
Mais tarde o que o vemos fazer no
cemiterio ? Vemol-o embrenhar-se em
considerações philosophicas á medida
que o coveiro desenterra os craneos ;
vemol- o querer seguir com a imagina-
ção as cinzas de Alexandre até ir encon-
tral- as tapando o batoque de um tonel ;
vemol-o tomar nas mãos a caveira de
Yorick, e exclamar com a mais profunda
expressão de dôr : « Ah ! pobre Yorick !
Conheci-o , Horacio ! Era um rapaz de
infinita graça , da mais excellente imagi-
nação . Mil vezes andou comigo ás costas ,
e agora enche-me de pavor, faz-me nau-
seas ! É o limite maximo da melan-
cholia , que immediatamente se converte
em riso . « Que é feito das tuas facecias ?
das tuas cabriolas ? das tuas canções?
dos teus lampejos de alegria , que faziam
estrugir na mesa as gargalhadas ? Não
ESTUDO CRITICO 61

te resta um só para zombar da tua ca-


rantonha? Vae ao toucador d'alguma
dama , e dize-lhe que , embora ponha no
rosto uma pollegada de pintura , ha de
tornar- se n'este lindo estado ! Anda , faze
com que ella ria ouvindo isto ! »
Recordemos ainda como procede Ham-
let depois de fallar com o espectro . In-
voca as legiões do céo , invoca a terra,
ordena ao coração que se reprima , pede
aos musculos que não envelheçam ; e
quando se recobra do assombro, cahe na
suprema angustia de conhecer que um
homem pode sorrir e ser ao mesmo
tempo um infame , angustia que logo se
transmuda em gracejo e jovialidade :
Olá, me rapaz ! Dizes isso ?.... Bem dito ,
velha toupeira ! .... Valente gastador ! »
Eis o tom , em que se dirige ao espectro ,
quando o ouve fallar debaixo da terra .
Attentando bem n'esta versatilidade ,
vendo Hamlet com extraordinaria rapi-
dez passar de uns assumptos para outros ,
deixar-se tomar subitamente de colera,
62 HAMLET

obedecer aos movimentos de indignação ,


desatar a lingua em improperios e dispa-
rates , guindar-se com os nervos crispa-
dados ás mais atrevidas manifestações
do odio , dar mostras de amigavel ter-
nura, estorcer-se n'uma eternidade de
angustias com a vontade desfallecida ;
attentando bem nas modalidades do seu
estado mental , na inconstancia dos seus
desejos, nas trepidações e desfallecimen-
tos do seu caracter ; em uma palavra ,
attentando na sua ataxia moral , ninguem
deixaria de reconhecer n'elle um hys-
terico , ainda que não existissem os mui-
tos outros dados , que apresentaremos
para formar um diagnostico seguro.
O heroe scandinavo não realisa o typo
superior da vontade , por meio do qual
Bernardo Palissy , o modesto oleiro de
Biron , ao cabo de quinze annos de amar-
gas decepções , de dores physicas e mo-
raes, chegando a queimar os moveis da
sua casa pobrissima para com elles aque-
cer um forno , conseguiu descobrir o se-
ESTUDO CRITICO 63

gredo da ceramica italiana . Falta-lhe o


fiat a que os musculos obedecem não
se sabe como e que deu força a Miguel
Angelo - o pintor , o esculptor , o archite-
cto, o engenheiro , o poeta - para repre-
sentar em pedra o fundador da religião
hebraica ; para desenhar na Capella Six-
tina o horrivel drama do juizo final ; para
levantar baluartes , vallar fortificações ,
jogar a artilheria na defeza de Florença ;
finalmente para planear e iniciar a con-
strucção da cupula de S. Pedro , quando
o sol da sua brilhante existencia já prin-
cipiava a esconder-se no horizonte. Não
dispõe da acção deliberativa , ajudado da
qual, Cesar, o prosador elegantissimo -
Cesar, que fôra rival de Marco Tullio , se
não preferisse ás lutas incruentas da tri-
buna os combates sanguinosos de Alesia
e de Pharsalia - viu os templos adorna-
dos com as suas estatuas , o dinheiro
amoedado com a sua effigie , e deixou
de si a mais brilhante fama , que jámais
conquistou algum romano .
64 HAMLET

Longe de possuir essa força enorme ,


remate das maravilhas da natureza , e
que poucos possuem em tão amplo des-
envolvimento ; longe mesmo de ser uma
vida cortada de intermittencias , sem a
unidade das grandes vontades , e « cujo
centro de gravidade , ordinariamente es-
tavel , oscilla uma ou outra vez , Ham-
let nem sequer é como o geral dos ho-
mens, um individuo com dois centros-.
ou melhor dois focos de gravidade ,
duas tendencias contrarias , triumphando
alternadamente uma da outra . Não .
Hamlet está dentro dos limites da pa-
thologia ; é uma vida em que as im-
pulsões indefinidas, e que variam a cada
instante , destroem constantemente o
equilibrio, não deixam que a vontade
se constitua .
* *

Não devemos reservar para mais tarde


a analyse de um facto importante da
tragedia, porque d'elle pendem todos os
ESTUDO CRITICO 65

acontecimentos . Discutamos a appari-


ção, o espectro do pae de Hamlet .
Seria o demonio que , sabendo quanto
era fraco o principe dinamarquez , usur-
passe aquella figura magestosa para o
tentar ? Ninguem na peça o accredita .
Hamlet desconfia , mas convence-se de-
pois de que não era . Seria uma alma
penada, que sahisse das prisões de fogo ,
onde expiava os feios crimes , que tivesse
praticado em vida ? Seria com effeito o
espirito do defuncto rei , que viesse cla-
mar vingança aos ouvidos do filho feri-
dos de assombro ? Era esta a opinião de
Bernardo , Marcello , Horacio e Hamlet .
É claro que as almas do purgatorio
não vagueiam na terra . Espirito qua
vae, não volta . Mas teria Shakespeare
recorrido intencionalmente ao maravi-
lhoso , ao sobrenatural ? Não sabemos .
O certo que, sciente ou insciente-
é
mente , o celebre tragico manteve- se
dentro dos limites assignados á nevrose
hysterica , tão magistralmente desenhada
66 HAMLET

no seu heroe. O phenomeno da appa-


rição é perfeitamente natural . É uma
hallucinação .
Escusamos de definir o que seja hy-
pnotismo , e referir os phenomenos que
o acompanham. Toda a gente os co-
nhece, toda a gente os tem lido ou pre-
senciado . Importa saber que esses phe-
nomenos são pronunciadissimos nos hys-
tericos ; que ha o somno provocado e o
somno espontaneo , e que as observa-
ções feitas durante o estado lethargico
parecem ás vezes incriveis.
Entre os phenomenos hypnoticos mais
notaveis figura o estado de suggestão.
N'esse estado o doente obedece prom-
ptamente ás impulsões estranhas ; tor-
na-se uma coisa do observador, o qual
póde suggerir ou provocar illusões va-
riadas e hallucinações .
Se elle, por exemplo , disser ao doente
que oiça musica , o doente ouve a imme-
diatamente , e principia a bater o com-
passo com as mãos, e com a cabeça. Se
ESTUDO CRITICO 67

The disser que está n'um jardim , o doente


começa a abaixar-se para admirar as
flores , cheira-as, apanha-as , e se o obser-
vador disser que n'uma das petalas está
um caracol, o doente faz um gesto de
repulsão , e deita fóra a flor . Para que
se forme bem ideia das hallucinações
provocadas durante o attaque , citaremos
ainda o seguinte facto narrado por M.
Richer : Em se dizendo a Bar.... que
M. Charcot estava junto d'ella, Bar....
dirigia-se para a hallucinação , e
via- o ,
depois de a comprimentar, fallava- lhe
sobre a habitual
preoccupação do seu
espirito. Pedia que a deixasse sahir
do
hospital .

Ha dois factos importantes para o


noss
vadoo caso . Primeiro : qualquer obser-
r póde
provocar a hallucinação ; e
esta abandonada a si mesma desappa-
rece espontaneamente . Segundo : as illu-
sões e hallucinações, provocadas ou sug-
geridas durante o somno, persistem no
estado de vigilia. Esta persistencia póde
68 HAMLET

tornar-se o objecto da suggestão . Se a


um individuo hypnotisado se suggerir
que, depois de acordar, continuará a ver
um determinado objecto , o effeito é se-
guro : a imagem hallucinatoria reprodu-
zir-se-ha depois do somno , e o que é
mais - na mesma hora e no mesmo in-
stante, que o observador tiver indicado .
Vão mais além as experiencias sobre
o hypnotismo . Depois dos estudos do
professor Bernheim, verificou- se por nu-
merosas observações que durante o es-
tado de vigilia se podem provocar para-
lysias , contracturas , anesthesias , e hal-
lucinações complexas, como as que se
provocam durante a hypnose .
Os phenomenos suggeridos durante a
vigilia não differem dos que o são du-
rante o somno . De sorte que , se um
observador suggerir ao individuo predis-
posto - ao hysterico sobre tudo - que ha
de ver tal objecto imaginario , a hallu-
cinação verifica- se , como se a suggestão
fosse feita durante o estado lethargico .
ESTUDO CRITICO 69

Appliquemos ao Hamlet esta doctrina,


que se encontra em qualquer livro de
hysteria. Tres homens , em quem domi-
nava a ingenuidade e simpleza d'aquelles
tempos, affirmaram-lhe cheios de convi-
cção que tinham visto o espectro do
pae . Hamlet, credulo como são os hys-
tericos, accreditou logo . Bernardo , Ho-
racio e Marcello deram -lhe depois a cer-
teza de que a sombra tornaria a appa-
recer á mesma hora : « Eu afianço que
volta » dizia Horacio . E o principe di-
namarquez , que era evidentemente um
predisposto , dirigiu-se á explanada , onde
se verificou a hallucinação tal qual fôra
suggerida. É exactamente o caso da
doente Bar.... que via M. Charcot . As-
sim como esta conversava com a ima-
gem do director da Salpêtrière sobre a
sua preoccupação constante , que era a
sahida do hospital , Hamlet conversou
com
a imagem do pae n'aquillo que
tambem o preoccupava - o precipitado
casamento de Gertrudes .
70 HAMLET

Porém - dir- se-ha- Bernardo , Mar-


cello e Horacio não eram hystericos , e
viram o espectro . É verdade ; mas esse
facto não destroe , antes corrobora o que
expuzemos .
Em uma nota ao seu famoso drama
Frei Luiz de Souza diz Garrett que pas-
sara a mocidade entre duas quintas no
Douro, que tinham pertencido a seus
avós . Uma parda velha , Rosa de Lima ,
a quem elle chama chronista-mór da fa-
milia, contava-lhe historias de bruxas e
almas do outro mundo , nas quaes - af-
firma Garrett - a velha accreditava pia-
mente. Entre as historias figurava uma,
que Rosa de Lima achava mentirosa ,
mas que geralmente era tida e havida
por verdadeira : que o avô do poeta ap-
parecera embrulhado n'um lençol pas-
seiando á meia noite em cima dos ar-
cos , que trazem agua á quinta .
Ora, se ainda então havia quem accre-
ditasse em bruxas , se pessoas illustradas
asseveram hoje que nos palacios dos
ESTUDO CRITICO 71

marquezes de Bellas vagueia o espirito


de Roque Monteiro Paim, não é logo de
estranhar que durante as trevas da edade
média tres homens valentes , e um d'elles
illustrado , accreditassem na apparição .
Accreditaram, mas nenhum d'elles lhe
fallou . Hamlet, sim ; esse é que foi cha-
mado para sitio isolado , esse é que teve
uma conversação demorada, esse é que
ouvio uma narração tétrica , porque esse
é que era o predisposto , esse é que tinha
verdadeiras hallucinações . E mais tarde
n'um attaque perfeitamente caracteri-
sado , que havemos de descrever, tor-
nou a ver a sombra , tornou a fallar-lhe
em meio do delirio hysterico.
*
*

Ha um facto , que discorda completa-


mente da irresolução e da impetuosi-
dade , as duas feições antagonicas do ca-
racter do principe scandinavo . É a lou-
cura contrafeita .
Hamlet finge-se doido sem hesitações ,
3#
72 HAMLET

e sem influencia de alguma causa ex-


terna . Parece portanto haver uma acção
deliberativa, que repugna com o que
temos escripto .
Maudsley attribue a dissimulação de
Hamlet ao phenomeno da hereditarie-
dade . Ainda que ella seja um symptoma
quasi infallivel da hysteria, vamos com-
tudo desenvolver a ideia do notavel pro-
fessor do University College em Londres ,
porque d'isso havemos mister para de-
monstrar um outro principio scientifico ,
que se encontra exarado na tragedia de
Shakespeare .
Ninguem hoje ignora que além dos
caracteres de classe , de ordem, de fa-
milia, de genero, de especie, de varie-
dade dos seres vivos , que se transmittem
por hereditariedade, tambem se trans-
mittem os caracteres puramente indi-
viduaes , e d'entre estes os mais insi-
gnificantes . É bem conhecido o exemplo
citado por Darwin de familias , cujos
membros transmittem aos seus descen-
ESTUDO CRITICO 73

dentes dois ou tres cabellos das sobran-


celhas muito mais compridos do que
os outros ; e o de uma familia ingleza,
em que durante varias gerações conse-
cutivas se observava uma porção ou
madeixa de cabellos com uma côr diffe-
rente do resto .
Assim como se transmittem os ca-
racteres morphologicos e histologicos ,
transmittem-se tambem as disposições
doentias . Emilio Littré censura e entris-
tece-se, porque nas sociedades cultas ,
quando se discutem os preliminares de
um casamento, são maduramente pon-
deradas as circumstancias de fortuna ,
de posição , de finura de trato , e des-
preza-se a importantissima de todas - a
questão de saude . Por esse desprezo re-
voltante milhares de creanças nascem
eivadas de crueis enfermidades , e ex-
piam com uma morte desgraçada o cri-
me, que não commetteram : crimine quo
parvi cædem potuere mereri. Apontam- se
familias inteiras devastadas pela pthi-
74 HAMLET

sica, pela gotta , pelas escrofulas , e sa-


be- se que, além d'esses martyrios da
humanidade , tambem são hereditarias
as anomalias mais simples , como o tim-
bre da voz, o estreitamento do canal la-
crimal de um dos olhos, a surdez, a cal-
vicie , o daltonismo .
A similhança das qualidades physicas
transmittem-se por hereditariedade as
faculdades intellectuaes , como se obser-
va por exemplo em João Racine, Am-
père, Alexandre Dumas , Disraeli e tan-
tos outros , cujos filhos herdaram o ta-
lento de seus progenitores .
Transmittem-se as aptidões especiaes .
Na familia do celebre compositor Bach
encontram-se cincoenta e sete musicos
distinctos .
Transmittem-se as qualidades moraes ,
os sentimentos , as paixões, os habitos ,
o caracter, as hallucinações . Está pro-
vadissimo que a embriaguez , o vicio do
jogo , a paixão do roubo , à voluptuosi-
dade , chegam até a desenvolver - se nos
ESTUDO CRITICO 75

filhos na mesma epocha, em que se des-


envolveram nos paes.

Em um estudo proficiente sobre Ema-


nuel Swedenborg escreve Maudsley : « No
fim das mais subtis e pacientes investiga-
ções ácerca da liberdade moral e da res-
ponsabilidade fica estabelecido um facto
cruel : que a herança da linhagem de um
homem péza sobre elle durante a vida
como um destino prospero ou mau. Co-
mo póde elle fugir aos seus antepas-
sados ? Mysteriosamente provído da na-
tureza, que lhe transmittiram, herda não
só os resultados das acquisições e evo-
lução das gerações dos homens , mas tam-
bem certas peculiaridades individuaes ou
disposições , que determinam irresistivel-
mente o fito da sua carreira. Quando
imagina que se dirige a si mesmo e deter-
mina a sua marcha, o seu caracter é o
seu destino » .
Assentado isto , investiguemos as qua-
lidades que predominavam na familia de
Hamlet .
56

HAMLET
76

O pae era um optimo rei, affirma Ho-


racio . Leal , verdadeiro , consagrava á
consorte um amor de tanta dignidade
que sempre andou par a par com o jura-
mento, que fez , quando casou . Era uma
alma cheia de ternura e de bondade, um
espirito franco e aberto a todos os sen-
timentos generosos . Só podia transmittir
as qualidades sympathicas , que o filho
possuia . Porém Claudio , seu irmão , pa-
recia-se tanto com elle « como Hyperion
com um satyro » . A perfidia era o prin-
cipal dote de Claudio , e com ella — with
traiterous gifts - seduziu o coração da
cunhada . Hamlet , depois de dizer que o
tio é sanguinario , impudico , scelerado ,
lascivo , desnaturado , synthetisa esse
monte de vicios , e chama- lhe kindless
villain. Ora kindless é empregado na
accepção de unnatural, isto é, sem na-
turalidade , affectado , fingido . Além do
fratricidio aleivosamente perpetrado , as
suas acções e propositos revelam sem-
pre o cunho da dissimulação e embai-
ESTUDO CRITICO 77

mento . Basta lembrar a hypocrisia , com


que elle , para acordar o ciume de Ham-
let, encarrega Osrico de exaltar a supe-
rioridade de Laertes no jogo das armas ,
e o disfarce com que durante o duello
deita na taça a poção venenosa fingindo
beber á saude do sobrinho . Claudio é
pois um animo dobrado , artificioso , em-
busteiro, dissimulado . Hamlet portanto
herdou da familia de seu pae a dissimu-
lação . Não se encontra a explicação
d'esta herança no termo mais proximo
da linha directa da ascendencia paterna ;
mas comprehende- se e explica- se a sua
producção , considerando a existencia do
vicio herdado n'um collateral proximo
-n'este caso o tio - perante o que se
sabe de atavismo e herança alternante .
E Gertrudes , mãe de Hamlet ? O es-
pectro não a inculpa de ter sido partici-
pante no crime de homicidio ; mas deixa
transparecer bem claramente que a sua
virtude não era real . My most seeming-
virtuous queen, a minha rainha ao pare-
78 HAMLET

cer virtuosissima ; isto é, cuja virtude era


especiosa, apparente, quasi dizendo fin-
gida . Vê-se que o seu caracter não era
liso e sincero . Mas no tocante ás outras
qualidades o que se observa em Ger-
trudes? Que poucas semanas depois de
acompanhar o cadaver do marido , correu
apressada para um leito incestuoso. O
pranto em que se debulhava qual Nio-
be não era o desafogo de um coração
de esposa, magoado pela morte do ma-
rido carinhoso ; era a manifestação da
furia, em que se agitava a mulher por
ter perdido o homem , em cujo peito se
debruçava incendida no fogo da lasci-
via ». As suas lagrimas não eram de sau-
dade , eram de vicio, porque no sangue
d'aquella durazia matrona ferviam dese-
jos aphrodisiacos . No temperamento li-
bidinoso de Gertrudes poder- se-ha ver
uma exaltação morbida dos appetites ge-
nesiacos , um symptoma de erotismo ou
de nymphomania ? Longe de nós a ideia
de o sustentar ; porem, se assim fosse,
ESTUDO CRITICO 79

o principe dinamarquez, alem da pre-


disposição directa para a nevrose , teria
tambem a predisposição hereditaria.
É evidente que Hamlet entre as suas
qualidades hereditarias possuia a dissimu-
lação ; mas, porque desejamos levar ao
cabo a demonstração da nossa ideia ba-
seando-nos sempre em dados scientifi-
cos, ainda precisamos de recordar muito
ligeiramente a theoria de Lamarck sobre
a influencia do meio.
Todos os seres sem excepção experi-
mentam modificações determinadas pe-
las mais pequenas mudanças de meio.
Assim como a columna de mercurio
de um thermometro sobe ou desce á me-
dida que augmenta ou diminue a tempe-
ratura, que o cerca, assim tambem nos
animaes e vegetaes operar- se-hão trans-
formações mais ou menos intensas com
as variações telluricas e atmosphericas ,
com as mudanças de alimentação , com as
alterações das condições mesologicas , em
que vive. É inutil coroborar com exem-
80 HAMLET

plos este facto universalmente conhe-


cido .
Para chegarmos á conclusão , que de-
sejamos , accrescentaremos só que todas
as vezes que um organismo está collo-
cado n'um meio favoravel ao desenvol-
vimento das suas qualidades heredita-
rias , essas qualidades manifestam- se , ex-
pandem -se naturalmente . Se por ventura
o meio é contrario , estorva-lhes o des-
envolvimento , modifica-as , atrophia-as .
O pato, por exemplo, nascido e creado
n'um pateo sem tanque , experimenta
sensiveis alterações no apparelho loco-
motor, e acaba por nadar com muito
maior difficuldade do que os seus eguaes
creados junto d'agua . E é tal a modifica-
ção operada nos ossos do animal que ,
tendo o pato bravo a faculdade de em-
prehender , voando , migrações para re-
giões muito longinquas , reduzido ao es-
tado domestico póde quasi dizer- se que
não voa . O mesmo succede com os pe-
rus, gallinhas , etc.
ESTUDO CRITICO 81

Estas modificações , que não são mais


do que simples phenomenos de adapta-
ção , observam- se por egual no homem,
tanto no que respeita ás qualidades phy-
sicas, como no tocante ás qualidades mo-
raes . A residencia no campo ou nas re-
giões montanhosas , onde o ar é puro, e
boas as condições hygienicas , consegue
evitar o desenvolvimento das escrofulas
e da pthisica em organismos , que vieram
ao mundo trazendo o germen d'esses ma-
les . A vida nas cidades , onde a atmo-
sphera é impregnada de elementos de-
leterios , facilita o desenvolvimento da
doença.
Ora Hamlet herdou a qualidade da dis-
simulação , que em outro meio poderia
talvez ficar adormecida ou atrophiada ;
porém n'aquelle , em que vivia o principe
dinamarquez , havia forçosamente de ma-
nifestar-se . Todos os elementos , cuja
mistura constituia a atmosphera, que
Hamlet respirava , eram edoneos não
só para desenvolver a dissimulação , que
82 HAMLET

existisse em germen, mas até para ino-


cular o virus em qualquer homem limpo
d'esse defeito . A mãe e o padrasto eram
taes, quaes os descrevemos já ; mas ci-
taremos ainda as palavras de Claudio :
O rosto da prostituta alindado pelo ar-
rebique não é mais deforme sobre a cros-
ta, que o cobre , do que o meu crime sob
a minha palavra pintada e repintada » .
Polonio professava as seguintes maxi-
mas : Com cara de devoção e olhos pie-
dosos adoçamos o proprio diabo . Nós
homens prudentes e atilados achamos
indirectamente a nossa direcção entor-
tando e enviezando o caminho » . Rosen-
crantz e Guildenstern, que foram con-
discipulos de Hamlet, requestaram a
commissão de levar uma ordem termi-
nante para que em Inglaterra fosse cor-
tada a cabeça do perigoso louco . Osrico
e outros aulicos « faziam caras a Clau-
dio >>> em vida do irmão , e davam agora
vinte, quarenta , cincoenta , cem ducados
por um retrato d'elle em miniatura . Até
ESTUDO CRITICO 83

Ophelia, a innocente Ophelia, por in-


stigações do pae e da rainha , finge ler
penitentemente o seu devocionario para
disfarçar a solidão , em que Hamlet deve
encontral-a na occasião da entrevista
planeada por Polonio .
Entre esse bando de dissimulados
achou a dissimulação o seu clima, o seu
solo, o seu meio cosmologico . Germinou ,
floriu, e deu como fructo a loucura con-
trafeita .
Hamlet pondo o maior cuidado e di-
ligencia na ideia de fingir- se doido , suc-
cedeu-lhe o que a sciencia demonstra .
O acto psychico de apparentar a loucura ,
e que a principio necessitaria de um
grande esforço intellectual, sendo repe-
tido constantemente converteu- se n'um
habito , e esse habito acabou por dar lo-
gar a actos inconscientes e automaticos .

L'habitude est une étrangère,


Qui supplante en nous la raison .

Hamlet chega a traduzir quasi textual-


4
84 HAMLET

mente estes dois versos , citados por Le-


tourneau no seu livro Sciencia e Materia-
lismo, quando diz á mãe na scena bri-
lhantissima do terceiro acto : « O habito
pode quasi mudar o cunho da natureza.
Use can almost change the stamp of na-
ture » .
É por isso que quando elle affectava
um caracter phantastico, fazia-o com tal
ausencia de refolhos , que no desvario
da linguagem , na incoherencia das idéas
havia nexo , havia methodo , como diz Po-
lonio.
Se a dissimulação não fosse uma qua-
lidade hereditaria, que n'um meio tão
apropriado havia indispensavelmente de
desenvolver-se , ainda assim não relu-
ctava com o caracter de Hamlet . Uma
das grandes preoccupações do hysterico
é despertar o interesse das pessoas com
quem vive . Por esse , ou por qualquer
outro motivo , a dissimulação é quasi in-
fallivel na hysteria . Os hystericos teem ,
na phrase de Tardieu, a dissimulação
ESTUDO CRITICO 85

instinctiva , a necessidade inveterada e


incessante de mentir sem utilidade , sem
objecto, só por mentir. M. C. Richet diz
que o medico deve lembrar- se de que o
hysterico pretende sempre enganal - o ,
mostrar-lhe coisas , que não existem , dis-
simular as que existem.
Ha um facto curiosissimo , citado por
M. Charcot, de uma rapariga hysterica ,
vinda de S. Petersburgo para curar- se de
um tic facial não doloroso . Adquirindo a
convicção de que era simulado o spasmo
de certos musculos , exclama o illustre
clinico : Mas com que intuito dissimu-
lava esta doente ? Já tive occasião de
dizer : os hystericos dissimulam muitas
vezes sem um fito , por uma especie de
culto da arte pela arte . O amor da noto-
riedade não é um movel ? Enganar ou
julgar enganar os medicos de S. Peters-
burgo , depois os de Paris , passar depois
á faculdade de Vienna, e percorrer assim
a Europa inteira , não seria um interesse
sufficiente? »
86 HAMLET

Estava tanto na indole de Hamlet esta


qualidade da dissimulação , que em toda
a tragedia se algum relampago de con-
tentamento illumina a caligem, que lhe
traz nublado o coração , é quando vê o
prospero resultado dos seus artificios . No
fim da representação do Assassinio de
Gonzaga não só rejubila o filho , que des-
cobre o envenenador de seu pae, como
folga por amor da arte o dissimulado ,
que urdio um trama , e o levou a tão per-
feito acabamento . O cumulo do prazer
para o principe dinamarquez é collocar
duas ciladas rosto a rosto , é « fazer ir
pelos ares o engenheiro com o seu pro-
prio petardo » . Hamlet exulta com o laço
que armou a Rosencrantz e Guilden-
stern, como o gallo da fabula rio do stra-
tagema, com que illudira a raposa ,
Car c'est double plaisir de tromper le trompeur .
*
* *

Quaes são as causas, que os especia-


listas mais abalisados apontam como
ESTUDO CRITICO 87

determinantes da hysteria ? Os sonhos


dissipados , as illusões destruidas , as es-
peranças chimericas, os desgostos pro-
fundos, os choques violentos actuando
sobre organisações por extremo delica-
das e nervosas . Pois Hamlet, cuja exal-
tada sensibilidade o predispunha directa-
mente para a nevrose , vio murchas , ca-
hidas por terra as esperanças de reger, -
e quem sabe ? -talvez de engrandecer a
Dinamarca ; vio desmoronarem - se os cas-
tellos amorosos que edificara a sua phan-
tasia de poeta ; vio disfeitas as illusões
que forjara sobre a honestidade dos ho-
mens ; e quando appareceu o espectro ,
recebeu uma enorme commoção physica
e moral.
Quaes são os symptomas caracteris-
ticos da nevrose hysterica?
1.º A melancholia .
Os sentimentos dos hystericos não se
manteem dentro de limites razoaveis ;
são sempre exaggerados . É assim a me-
lancholia de Hamlet. O principe dina-
888

HAMLET
marquez falla da sua tristeza tantas ve-
zes , e manifesta-a por tal fórma , que
podia exclamar como Jesus : « A minha
alma está triste até á morte » .
2.º A preoccupação de attrahir as at-
tenções .
Quem não vio ainda os hystericos
pergunta Legrand du Saulle - provocar
o espanto e admiração pelas theses mais
ou menos paradoxaes e extraordinarias ,
que sustentam com uma afouteza , só-
mente egual á sua falta de convicção ? »
-
Quem não vê — perguntamos nós
principe de Dinamarca deixar a todos
estupefactos com as excentricidades e
paradoxos , que profere constantemente ?
Quem o não vê dramatisar todos os actos
da sua vida, recitar como um actor, e
proceder em quanto se representa o As-
sassinio de Gonzaga de modo que as at-
tenções se voltem para elle?
3.º A credulidade.
Hamlet é um espirito esclarecido , um
pensador, cursou aulas em Wittemberg ,
ESTUDO CRITICO 89

absorve-se nas investigações da philoso-


phia, Ophelia chama-lhe sabio . Nada im-
pede que elle accredite no prodigio da
apparição do espectro apenas lh'o refe-
rem , e depois tema que o demonio de-
seje perdel- o , e com esse fim tenha re-
vestido aquella fórma augusta .
4.º A versatilidade de idéas .
Qualquer scena da tragedia demonstra
quanto são voluveis as do principe de
Dinamarca. Na primeira scena do se-
gundo acto , que é bastante curta , Ham-
let falla nos vendedores de peixe ; define
o que seja um homem honrado ; logo em
seguida avisa Polonio de que a conce-
pção é uma benção , porém não como
Ophelia póde conceber ; aprecia o modo
como certo poeta escreve a respeito dos
velhos , e conclue dizendo : « De mim nada
podes tomar de que eu prescinda de me-
lhor grado , excepto a minha vida , ex-
cepto a minha vida , excepto a minha
vida » .
5. A idéa fixa .
90 HAMLET

A par d'esta versatilidade , que caracte-


risa os hystericos , observa-se tambem
a perseverança, a fixidez invariavel ,
com que por uma singular contradicção
voltam sempre a uma mesma idéa. Es-
sas idéas fixas constituem, segundo a
expressão engenhosa de Esquirol , a ca-
talepsia da intelligencia » .
No caso do Hamlet a idéa fixa é a de
matar o rei. Como foi suggerida pelo es-
pectro, e Hamlet nunca a abandona , é
facilmente explicada por um phenomeno
de suggestão feita durante o attaque , e
permanecendo no estado de vigilia .
6.º A dissimulação .
Que outras armas emprega Hamlet
constantemente, senão a loucura contra-
feita, os equivocos, as alicantinas ?
7. A mobilidade de caracter.
Sydenham dizia que no caracter dos
hystericos o que ha de mais constante é
a inconstancia . Succede o mesmo no
caso, que discutimos . As scenas com
Ophelia, com os actores, com Gertru-
ESTUDO CRITICO 91

des , com Rosencrantz e Guildenstern


accusam direcções tão diversas do cara-
ter de Hamlet , que o tornam compara-
vel a uma ventoinha.
8.º As impulsões .
Essas , que são um dos attributos clas-
sicos da nevrose, ficam evidentemente
demonstradas pela morte dada a Polo-
nio, pela abordagem, e pelo assassinio de
Claudio .
9.º A mania de investigar .
Tudo o que escrevemos para compro-
var a nossa opinião , mostra que Hamlet
póde definir-se : um condemnado á ru-
minação psychica por toda a vida.
Ainda ha mais . Estudando as faculda-
des affectivas dos hystericos , nota- se
que elles teem para as pessoas , que os
rodeiam , demonstrações de amizade in-
solitas , e movimentos de odio profun-
dissimo . Não se póde consagrar a nin-
guem mais entranhavel amizade do que
Hamlet testemunha a Horacio , nem nu-
trir maior aversão do que elle patenteia
92 HAMLET

contra Claudio, Rosencrantz e Guilden-


stern . E sendo coisa vulgarissima que
os hystericos maltratem os que mais
amam, o principe dinamarquez é rude ,
quasi cruel com a sua idolatrada Ophelia .
Os hystericos - lê- se em todos os li-
vros -teem um reportorio de trovas e
canções, que se deleitam em repetir
amiudadas vezes . Hamlet no segundo
acto repete a ballada Montado cada actor
em seu jumento , a canção Jephté, juiz de
Israel, a canção Deus decreta e deter-
mina, e no terceiro acto as canções do
Cavallinho de pau, a do Veado ferido, etc.
Os hystericos possuem intelligencia
brilhante, memoria fiel , imaginação viva .
Hamlet compõe versos para intercalar
n'uma peça, recorda- se de um longo tre-
cho que ouvira recitar uma só vez, e a
cada passo manifesta a ardencia da sua
imaginação .
Apezar do muito que padecem , os his-
tericos teem uma apparencia saudavel .
« Alguns até são gordos » escreve M. Ri-
ESTUDO CRITICO 93

cher ; e M. Charcot diz que « os homens


adultos attacados de nevrose hysterica
são quasi sempre robustos » . No quinto
acto , por occasião do duello , em que
Hamlet revela energia de pulso e força
muscular, a mãe diz que elle está gordo :
He is fat .
Os accidentes hystericos apparecem
no homem ordinariamente dos vinte aos
trinta annos . Pois a edade de Hamlet é
pouco mais ou menos de trinta annos ,
como se conclue das palavras do coveiro .
Não queremos tornar ainda mais fas-
tidioso o nosso trabalho com a amon-
toação de exemplos e considerações ;
mas como resistir ao desejo de mostrar
que na tragedia shakespeareana se en-
contra minuciosamente pintado o exte-
rior de um doente nas proximidades do
attaque , e depois o attaque sem lhe
faltar a minima particularidade ? É as-
sombroso ; mas encontra-se.
Ouçamos M. P. Richer : « Tudo no seu
exterior (das hystericas) argue a pertur-
94 HAMLET

bação do espirito . O trajo , habitualmente


esmerado , acha- se em desalinho ; são es-
quecidos até os cuidados elementares do
aceio. Vê-se a doente com os cabellos
esparsos, o rosto desfallecido , deixar- se
arrebatar de reflexões que não acabam ;
ou então o seu olhar fixa um ponto no
espaço , e a expressão mobil da phisio-
nomia denota hallucinações , de que breve
fallaremos » .
Ouçamos agora Ophelia descrever o
principe enamorado da sua formosura .

OPHELIA

Estava eu a coser no meu quarto , e


Hamlet apresentou-se deante de mim
com o gibão todo aberto , sem chapeo na
cabeça , meias enxovalhadas , sem ligas ,
cahindo sobre o artelho , pallido como a
sua camisa , batendo com os joelhos um
no outro , e com um ar que movia tanto
á compaixão , como se tivesse sido liber-
tado do inferno para fallar de horrores.
ESTUDO CRITICO 95

POLONIO

Louco pelo teu amor ?

OPHELIA

Não sei , senhor ; mas na verdade re-


ceio que sim .
POLONIO

Que disse elle ?

OPHELIA

Travou-me do pulso , e prendeu-m'o


com força ; depois afastou-se todo o com-
primento do seu braço , e com a outra
mão assim, na testa , principiou a exa-
minar-me o rosto , como se pretendesse
desenhal-o . Esteve muito tempo n'esta
posição . Afinal emittio um suspiro tão
profundo e lastimoso , que pareceu fazer
estremecer-lhe todo o corpo , e acabar-lhe ·
com a vida. Feito isto, deixou-me, e (no-
te-se bem) com a cabeça voltada por cima
do hombro dir- se-hia que atinava com o
96 HAMLET

caminho sem olhos , porque sahiu a porta


sem auxilio d'elles , tendo o olhar cravado
até á ultima sobre mim .
Não póde haver descripção mais per-
feita . Até aquelle suspiro notado por
Ophelia é proprio dos hystericos.
Vejamos agora o attaque , e digamos ,
antes de o descrever, algumas breves
palavras , que são indispensaveis .

*
* *

M. Charcot divide o attaque hysterico


em quatro periodos , que podem variar
indefinidamente, mas que se reduzem
todos ao typo fundamental .
Primeiro periodo - epileptoide - cara-
cterisado por convulsões spasmodicas ,
contorsões do rosto , etc.
Segundo periodo - dos grandes movi-
mentos em que o doente toma posi-
ções variadissimas e inesperadas , e a que
por isso M. Charcot deu o nome pitto-
resco de clownismo.

8
ESTUDO CRITICO 97

Terceiro periodo - das posições apai-


Xonadas em que o doente nas expres-
sões da physionomia e nos gestos deixa
ler
os sentimentos , que o assaltam .
N'este periodo ha verdadeiras hallucina-
ções .

Quarto periodo - do delirio - em que


o doente por via de regra conta a sua
historia , tem hallucinações , vê animaes ,
vê personagens conhecidos e imagina-
rios .

E conveniente para o nosso caso to-


mar nota de que nas hallucinações dos
hystericos entram quasi sempre ani-
maes . Os doentes veem gatos , camellos ,
Corvos , serpentes , ratos , principalmente
ratos . Les rats surtout, escreve Legrand
du Saulle . No meio das maiores excen-
tricidades podem cahir em si , para mais
tarde começarem novamente a delirar .
Durante a crise do delirio a intelli-
gencia como que se aguça e estimula, a
memoria refulge com mais vida, brotam
espontaneas as palavras , a imaginação
T
98 HAMLE

veste-se das suas galas mais poeticas , a


elocução é adornada , primorosa, de uma
elevação proporcional á cultura e talento
do enfermo. «Os hystericos - diz Bri-
quet - são susceptiveis de chegar pela
excitação do attaque a um maximum de
poder intellectual , como podem nas con-
vulsões attingir um maximum de poder
muscular » .
Se a doença procede de uma causa
moral , as idéas delirantes prendem com
essa causa . O doente refere as scenas
que o impressionaram, exprime todas
as paixões da alma, e revela, em quanto
delira , muitas disposições affectivas , que
predominam no estado de vigilia. Le-
grand du Saulle transcreve o seguinte.
facto narrado por Macario : Uma rapariga
de dezesete annos gabava- se de que nada
The infundia medo . Atravessando um
quarto ás escuras , surgio-lhe de repente
um vulto branco . Era uma sua amiga,
que com um lençol se vestira de phan-
tasma . O susto foi tamanho , que origi-
ESTUDO CRITICO 99

nou um attaque de hysteria ; e nos ou-


tros attaques , em que sobrevinham hal-
lucinações , a rapariga via sempre o phan-
tasma, que determinara a doença .
Não se encontram dois hystericos ,
cujos attaques sejam identicos , nem os
do mesmo enfermo seguem sempre ca-
minho egual. Ainda assim, resumiremos
um attaque de hysteria descripto em
muitas paginas por M. P. Richer .
Passados os periodos epileptoide e de
clownismo , que podem ser muito rapi-
dos, a doente Marc ... entra no das posi-
ções apaixonadas . A expressão da phy-
sionomia denota o extasis , o terror, a
duvida, o desespero . A doente falla com
grande verbosidade , enraivece - se , indi-
gna-se , e muitas vezes exclama : « Er-
nesto ! em toda a parte reina a hypo-
crisia ; tu és um hypocrita como todos os
outros . Velho demente ! » Continúa a des-
crever scenas , que duram mais ou me-
nos tempo . De repente é perseguida por
visões de animaes , e então brada : « Oh!
100 HAMLET

aquelle rato ! » Trava-se uma luta imagi-


naria para matar o animal ; e após alguns
instantes Marc... vae serenando , reco-
nhecendo as pessoas , respondendo ás
interpellações . Ainda torna a ver ani-
maes , e entra no periodo do delirio . A
imaginação guinda-se ás maiores altu-
ras , e a doente banhada em lagrimas
diz : «Papá ! ... estás ahi ... estás ahi den-
tro... Depois serena, e a crise faz termo .
Comparemos agora o terceiro acto do
Hamlet com a descripção , que deixamos
resumida, e que é o typo fundamental do
attaque hysterico . Veremos que n'esse
acto ha dois attaques de grande hysteria,
de hysteria major, faltando ao primeiro
o periodo do delirio , como pode acon-
tecer.
Nas paginas anteriores alludimos á
scena do theatro para demonstrar a ver-
satilidade de idéas e sentimentos de
Hamlet. Se observarmos agora a sua
inquietação physica, ora sentando- se, ora
deitando- se no regaço de Ophelia, depois
BIB
LIO
N
ESTUDO CRITICO ΙΟΙ

-como o interpretam Salvini , Irving ,


Rossi , Booth , e como no tempo de Sha-
kespeare representava o celebre Bur-
bage arrastando-se como um reptil ,
ajoelhando, e finalmente pulando como
um gato , não será difficil reconhecer
o periodo do clownismo descripto por M.
Charcot. Na alegria notada por Ophelia ,
nas expressões diversas da physionomia,
nas canções em que entram varios ani-
maes , tambem não será difficil ver o
periodo das posições apaixonadas .
Mas, se a alguns espiritos se afigu-
rar demasiadamente forçado o parallelo ,
analysemos a scena com a mãe.
Hamlet está nervoso, falla de um
modo petulante, incisivo , e traduz no
olhar tamanho desespero e tanta colera ,
que a mãe pergunta amedrontada : « Que
pretendes fazer ? Queres por ventura as-
sassinar-me ? » É claro que Gertrudes não
faria similhante pergunta, se os gestos
e a physionomia do filho não indicassem,
como na doente de M. Richer, os senti-
102 HAMLET

mentos , que lhe agitavam o espirito .


Hamlet ouve um rumor. Podia perceber
que era a voz de um homem, podia até
suppor que atrás do reposteiro estava o
rei ; o certo porém é que o rumor des-
perta-lhe as visões de animaes . Hamlet ,
como a doente de M. Richer, exclama :
Um rato !» e (ainda como a doente)
corre para matal- o . Começa então a dis-
correr sobre os factos , que o preoccu-
pam . A sua palavra é como torrente ,
que se despenha em jorros sobre fragas
e alcantis , e arrasta quanto se lhe depara
no caminho . Que arrojo de hyperboles !
que phrenesi de imagens e comparações !
que pomposo luxo de erudição mytholo-
gica! «Uma acção , que desbota o rubor
e a graça da modestia , chama á virtude
hypocrisia, arranca da formosa fronte de
um amor innocente a rosa pura e casta ,
e planta em seu logar uma pustula, torna
os votos do casamento falsos como jura-
mentos de jogador ! Oh ! uma acção tal ,
que do corpo do contracto extirpa a pro-
ESTUDO CRITICO 103

pria alma , e transmuda a doce religião


n'uma rhapsodia de palavras ! » Segue -se
a expansão dos sentimentos affectivos ,
que existem durante a vigilia . Primeiro ,
a admiração que vota á memoria do pae :
Vêde a graça, que se derrama n'aquella
fronte : a ondeada cabelladura de Hype ·
rion ; o rosto do proprio Jove ; o olhar ,
como o de Marte , rasgado para o com-
mando e para a ameaça ; a postura simi-
lhante á do arauto Mercurio acabando de
poisar no pincaro de um outeiro que
beija o céo ! » Depois o odio contra o rei :
«Um assassino , um scelerado , um biltre ,
que não vale a vigesima parte de um
decimo do vosso primeiro senhor ; um
rei de farça , um gatuno , um rei de an-
drajos e farrapos ! » até que de repente
surge o espectro , e Hamlet, como a
doente de M. Richer, dirige- se ao pae :
« Que pretendes , graciosa apparição ? »

Com o rosto apavorado continúa : Não


craves em mim os olhos , para que o
teu apecto lamentavel não altere o ri-
104 HAMLET

gor dos meus actos . >> Passados instan-


tes volta-se para a mãe : «Vêde como
sahe furtivamente . Meu pae , trajando
como em vida. La vae elle... agora ...
agora mesmo... a sahir a porta. A agi-
tação diminue a pouco e pouco , Hamlet
serena, e termina a crise .
Parece a descripção de um attaque
hysterico feita por um clinico da Salpê-
trière . Nem lhe faltam os gestos e o
olhar traduzindo os sentimentos , que
acodem com o delirio . « Que tens tu-
pergunta Gertrudes - que fitas o olhar
no vago, e conversas com o ar incor-
poreo? A tua alma concentra- se toda nos
teus olhos , d'onde espreita com medo, e, á
similhança dos soldados acordando ao
grito d'alarma, os teus cabellos desper-
tados erguem-se do leito , e eriçam-se na
cabeça ! »
Poderá fazer-se uma observação . Se
Hamlet está no periodo do delirio , como
responde elle ás perguntas que lhe faz a
mãe ácerca da hallucinação , a que se
ESTUDO CRITICO 105

dirige ? É que no delirio hysterico só


muito raras vezes naufragam completa-
mente as faculdades ; ha quasi sempre o
que se chama consciencia do delirio. M.
Moreau de Tours , que foi o primeiro a
observar este phenomeno diz : « Interro-
guem-se os doentes no auge das suas
divagações , quando se entregam a toda
a sorte de excentricidades e extrava-
gancias , quando todas as suas palavras
accusam a desordem do'espirito , quando
parecem subjugados por convicções deli-
rantes e hallucinações ... A primeira per-
gunta, que se lhes fizer, parece resti-
tuil- os ao estado são ... Quando deixam
de ser interrogados , cahem de novo no
estado , de que sahiram. » Nem outro phe.
nomeno se passa com Hamlet na scena ,
que analysámos . *
* *

Ainda que sejam recentes os estudos


sobre a hysteria, ninguem por certo ima-
gina que esta nevrose constitua uma
106 HAMLET

entidade morbida , que só modernamente


se manifestasse. Os flatos , que no tempo
de Hippocrates e Democrito já tortu-
ravam a porção mais bella do genero
humano , a choréa epidemica da edade
media , a dansa de S. João e de S. Guido ,
o tarentismo da Italia, as epidemias de
possessão demoniaca , eram doenças na-
turaes obedecendo ás leis communs da
physiologia, e não obra dos sete milhões
quatrocentos e 'cinco mil nove centos e
vinte e seis diabos do inferno .
Ah ! Se os antigos juizes fossem alu-
miados pelo clarão das doctrinas de Bri-
quet e de M. Charcot, quantos e quantos
desaventurados poupariam ao tormento
de expiar na fogueira o crime das hallu-
cinações , do delirio, do furioso desenca-
deamento de forças musculares , a que
dá logar um attaque de hysteria ? Mas ...
tratemos de rematar o nosso trabalho .
Largamente espalhada pelo mundo , a
nevrose hysterica havia forçosamente de
provocar a attenção dos artistas . E pro-
ESTUDO CRITICO 107

vocou . É incontestavel e incontestado


que André del Sarto, Raphael , Deodato
Delmont, Francisco Vanni, Dominiquino
e outros estudaram no vivo as contor-
sões e movimentos dos possessos , que
se admiram nos seus quadros . Na ver-
dade irreprehensivel, com que depois
os desenhavam, a todos sobrelevou of
grande Rubens . « Alguns dos seus pos-
sessos escreve M. Richer - possuem
caracteres tão frisantes , tão verdadeiros.
que fôra impossivel achar uma repre-
sentação mais perfeita das crises hyste-
ricas de fórma demoniaca , actualmente
existentes nos hospitaes . »
Ora Shakespeare escreveu dois Ham-
lets : o primeiro em 1584 , e o segundo
em 1600. Foi este o seu filho dilecto , o
seu trabalho mais querido . Elle , que nas
outras peças quasi não riscava , não pu-
nha uma rasura , uma entrelinha , refor-
mou o Hamlet ao cabo de dezeseis annos
de reflexão . E reformou- o para quê ? Para
modificar o desenlace ? Para alterar a
4 *
108 HAMLET

contextura ? Para introduzir persona-


gens de importancia capital ? Não . Re-
formou- o para avolumar algumas parti-
cularidades , e sobre tudo para tornar
mais impresso , mais indelevel o cunho
da hysteria. A feição talvez mais pro-
eminente da nevrose é a incapacidade
dos enfermos para resistir ás impulsões
de qualquer natureza . Já no primeiro
Hamlet Shakespeare definira com suffi-
ciente clareza essa feição por meio da
morte do rei e de Corambis (tal era o
nome de Polonio) ; apezar d'isso addicio-
nou ao trabalho primitivo uma carta de
Hamlet a Horacio , narrando o episodio
da abordagem , que é o typo da impulsão
hysterica ; e como esta ainda lhe não pa-
recesse bem demonstrada , accrescentou
á scena segunda do quinto acto a phra-
se, que já citámos , em que Hamlet con-
fessa ter obedecido no cemiterio a uma
impulsão irresistivel , quando ia ser dado
á sepultuta o envolucro terreno da mu-
lher, que fôra seu idolo . O poeta de
ESTUDO CRITICO 109

Stratford tambem attendeu aos outros


symptomas : deu relevo maior á dissi-
mulação em varias passagens do se-
gundo Hamlet, destacou mais a instabi-
lidade de ideias , fez sobresahir o des-
equilibrio das faculdades moraes - em
uma palavra - aperfeiçoou , polío , com-
pletou o esboço , que traçára , do cara-
cter hysterico .
Coincidindo este facto com o de mui-
tos coevos do famoso tragico observarem
a natureza para que as suas obras tra-
duzissem a possessão demoniaca ; saben-
do-se de mais a mais que na segunda
metade do seculo XVI- epocha em que
foi
Euroescripto
pa uma gran
o Hamlet - alastrou pela
de epidemia d'aquelle
infund c
ms
a al , se
sim croá ada a onjectura de que
mo Rubens estudou as posições

vcowni
essec e illogicas dos possessos , ti-
Sa
has
kespea
t
, o Rubens do heatro,
estud re
ado as sua qual
s idades affectivas ,
as
Suas impulsões, as suas duvidas , as
perturbações da sua mentalidade ?
HAMLET

:
Não nos parece francamente que seja
fallar a esmo , dizer que o caracter de
Hamlet é fructo da observação de grande
numero de hystericos ; não só porque
tambem o foram as concepções artisticas
que mencionámos , mas tambem, e prin-
cipalmente, porque a applicação das mo-
dernas doctrinas scientificas dissipa a
escuridade, explana por um modo cabal
os trechos , sobre que se tem levantado
mais accesa controversia. Não sabemos
explicar - dizem alguns criticos - o des-
abrimento de Hamlet com Ophelia , a
quem escrevêra :

« Duvída da verdade e toma-a por mentira,


Porém do meu amor, nunca dùvides não » ;

o estudo da hysteria prova que os enfer-


mos magoam, chegam ás vezes a odiar
as pessoas , a quem consagram mais in-
timo affecto . Lança-se em rosto ao prin-
cipe dinamarquez a violencia , a falta de
respeito , os termos deshonestos , em que
se exprime ácerca do rei, na entrevista
ESTUDO CRITICO III

com a mãe ; a observação mostra que du-


rante a crise nenhum doente póde en-
freiar a imaginação e a lingua , e que pes-
soas do mais fino trato e de uma honesti-
dade provadissima rompem em todo o
genero de obscenidades e torpezas . Con-
tendem os physiologistas e esfalfam-se
por demonstrar, uns que Hamlet contra-
faz a loucura, outros que elle é um ver-
dadeiro doido ; a experiencia decide a
questão dizendo que o hysterico é sem-
pre dissimulado . Gervinus accusa Ham-
let de não saber vingar o pae , e lamenta
que elle, por não ter approveitado o en-
sejo de matar o rei , fosse depois assassi-
nar
Polonio que era um innocente ; a
sciencia dá a rasão de uma e outra coisa
a irresolução e as impulsões proprias
da enfermidade. Comparam-se os caracte-
res de Hamlet e Werther, e estranha- se

que o admirador apaixonado de Ophelia


se
l não suicidasse, como o amante de Car-
ot a;
que a eloquencia dos factos proclama
os hystericos pensam muito no sui-
112 HAMLET

cidio , e raras vezes o praticam . Fique-


mos por aqui .
O principe dinamarquez é pois um
hysterico ; e esta opinião , longe de depri-
mir os meritos do trabalho shakespea-
reano , serve antes para fazer fulgir em
toda a sua plenitude a chispa prome-
théa , que accendeu o fogo da vida no
marmore frio , inanimado da lenda de
Saxão o Grammatico .
Sentir, pensar , não querer, eis o epi-
logo, a cifra do viver miserando dos his-
tericos . Que assumpto para namorar o
engenho de um dramaturgo ! Mas o
thema é tão complexo , tão rico de acci-
dentes variados , tão cheio de peripecias
imprevistas, que só o poder de um ge-
nio , como o do cysne do Avon, lograria
surprehender e consubstanciar n'um per-
sonagem os aspectos caprichosos de uma
nevrose, que lhe era desconhecida.
Shakespeare fez um estudo patholo-
gico ; e bafejando-o com a aura vivifi-
cante da inspiração de Eschylo , seu ir-
ESTUDO CRITICO 113

mão mais velho , gerou uma das creações


mais poeticas , mais sublimes , e mais
reaes, que tem dado á luz a humana
intelligencia . Quem a ler com attenção ,
e chegar a descobrir as preciosas gem-
mas de que se adereça , ha de por força
repetir a phrase, em que um celebre tro-
vador fallava da sua amada : Quanto mais
ólho para ella , mais vejo que lhe cresce a
formosura .
Effectivamente , a concepção de Sha-
kespeare realisa a mais levantada ambi-
ção do espirito humano . É o estreito en-
lace do verdadeiro e do bello , é a resul-
tante de duas forças poderosas - sciencia
e arte . A sciencia estuda a nevrose hys-
terica, descobre as hallucinações , a me-
lancholia, a actividade do pensamento . A
arte approveita as allucinações para evo-
car o espectro do fallecido rei , e fazer es-
tremecer o espectador com idéas , que ex-
cedem o alcance da sua alma ; serve- se da
melancholia para despertar a piedade em
favor de Hamlet nobilitado pela dôr ; apo-
114 HAMLET

dera-se da actividade do pensamento para


offerecer o espectaculo soberbo e origi-
nal de um drama , que se agita no inte-
rior de um craneo .
A tragedia do Hamlet é o vôo altaneiro
de um cerebro emplumado de pennas
d'aguia ; é um templo fabricado com a
grandeza dos templos medievos . E no
apice, na corôa do alteroso monumento ,
como facho que lhe realça os magnificos
lavores , ergue- se radiante e consolador o
sentimento christão de indulgencia para
com os erros da mesquinha humanidade.
HAMLET

TRAGEDIA EM CINCO ACTOS


DE

W. SHAKESPEARE

VERSÃO
DE
JOSÉ ANTONIO DE FREITAS

Representada pela primeira vez no theatro de


D. MARIA II
em beneficio do actor Brazão na noite de
18 de janeiro de 1887
INTERLOCUTORES

CLAUDIO, rei da Dinamarca.


HAMLET, filho do defuncto rei e sobrinho do actual
POLONIO, camareiro-mór.
HORACIO, amigo de Hamlet.
LAERTES , filho de Polonio.
VOLTIMANDO
CORNELIO
ROSENCRANTZ cortezãos.
GUILDENSTERN
OSRICO
OUTRO CORTEZÃO .
UM PADRE.
MARCELLO
BERNARDO officiaes.
FRANCISCO , soldado.
REYNALDO, creado de Polonio.
UM CAPITÃO.
UM EMBAIXADOR.
A SOMBRA DO PAE DE HAMLET.
FORTIMBRAZ, principe da Noruega.
GERTRUDES, rainha da Dinamarca e mãe de Hamlet.
OPHELIA, filha de Polonio.

Senhores, damas, officiaes, soldados, comicos, coveiros, mari.


nheiros, mensageiros, e outros creados.

A scena passa-se em Elsenor


Distribuição dos personagens da tragedia
no theatro de D. Maria II

HAMLET EDUARDO BRAZÃO


A SOMBRA.. CARLOS POSSER
CLAUDIO, rei da Dinamarca.. JOÃO ROSA
POLONIO, camareiro-mór . AUGUSTO ANTUNES
LAERTES , seu filho...... AUGUSTO ROSA
HORACIO, amigo de Hamlet FERREIRA DA SILVA
MARCELLO... BRAVO
ROSENCRANTZ BAPTISTA MACHADO
PRIMEIRO COMICO TORRES
PRIMEIRO COVEIRO.. ANTONIO PEDRO
SEGUNDO COVEIRO.. FERREIRA
UM PADRE.. JOAQUIM COSTA
UM CREADO . SILVA
A RAINHA DA DINAMARCA. CAROLINA FALCO
OPHELIA..
ROSA DAMASCENO

Personagens da peça

O ASSASSINIO DE GONZAGA
PROLOG
O FERREIRA
0 REI... TORRES
A RAINHA. LUIZA LOPES
LUCIAN
NO
COSTA

Côrte do rei da Dinamarca, Alabardeiros, Comicos, Povo


.C82 182
AJAJAJAJAINJAJCAR
BOMBOMBOM
?

ACTO I

SCENA PRIMEIRA

ELSENOR
UMA PLATAFORMA DEFRONTE DO PALACIO

FRANCISCO, de guarda . Entra BERNARDO

BERNARDO
Quem está ahi ?
FRANCISCO
Não ; responde-me tu ; faze alto, e dá-te a conhe-
cer.
BERNARDO
Viva o rei !
FRANCISCO
Bernardo ?
5
120 HAMLET

BERNARDO
O mesmo.
FRANCISCO

Tiveste o maior cuidado em chegar á tua hora.

BERNARDO
Deram agora doze ; vae-te deitar, Francisco .

FRANCISCO

Muito obrigado por teres vindo render-me ; está


um frio aspero, que me repassa até o coração .

BERNARDO

Esteve tudo quieto durante a tua guarda ?

FRANCISCO
Nem um rato bulio.

BERNARDO
Bem ; boa noite. Se encontrares Horacio e Mar-
cello, meus companheiros de guarda , dize-lhes que
andem depressa .
FRANCISCO

Parece-me que os estou ouvindo. Alto ! quem


vem lá?

Entram HORACIO e MARCELLO


ACTO 1, SCENA I 121

HORACIO

Amigos d'esta terra.

MARCELLO
Homens ligios do rei da Dinamarca.

FRANCISCO
Boa noite.
MARCELLO
Adeus, honesto soldado ; quem te rendeu?

FRANCISCO
Bernardo ficou em meu logar. Boa noite.
Francisco sahe.
MARCELLO
Olá! Bernardo !
BERNARDO
Dize-me : é Horacio quem está ahi ?

HORACIO
Um vulto d'elle ( 1 ) .

BERNARDO

Bemvindo sejas, Horacio ; bemvindo, bom Mar-


cello .
MARCELLO
Então ? A coisa tornou a apparecer esta noite ?
122 HAMLET

BERNARDO
Nada vi.
MARCELLO
Horacio diz que é pura phantasia nossa , e não
quer deixar senhorear-se da crença na terrivel ap-
parição, que vimos duas vezes. Por isso instei com
elle para ficar de guarda esta noite comnosco, a fim
de que, se o espectro voltar, Horacio possa corro-
borar o testemunho dos nossos olhos, e fallar-lhe (2).

HORACIO
Qual ! Não apparece .

BERNARDO

Senta-te um bocado, e consente que assaltemos


de novo os teus ouvidos tão fortificados contra a
nossa historia , contando o que duas noites temos
presenciado.
HORACIO

Bem ; sentemo-nos, e oiçamos Bernardo contar


a historia.
BERNARDO

A noite passada , quando aquella mesma estrella,


que está a occidente do polo, tinha feito o seu giro
para illuminar a parte do céo em que brilha agora ,
Marcello e eu - batia uma hora no relogio ...
ACTO I, SCENA I 123

MARCELLO
Silencio ! Não prosigas ! Olha, ahi vem .
Apparece a Sombra.
BERNARDO
Na mesma figura do defunto rei .

MARCELLO

És um acabado escholar ( 3 ) ; falla-lhe , Horacio.

BERNARDO
Não se parece com o rei ? Observa, Horacio.

HORACIO

O mais possivel ; subjuga-me pelo medo e pelo


pasmo.
BERNARDO
Deseja que lhe fallem.

MARCELLO
Falla-lhe, Horacio.

HORACIO

Quem és tu, que usurpas esta hora da noite, e


a fórma gentil e marcial, em que por algum tempo
se mostrou a majestade do fallecido rei ? Ordeno-te
em nome do céo : falla.
124 HAMLET

MARCELLO
Offendeu- se.
BERNARDO

Vê ; retira-se de um modo altivo.

HORACIO
Pára ; falla ; ordeno-te que falles.
A Sombra desapparece.

MARCELLO

Desappareceu, e não dará resposta.

BERNARDO I

Então, Horacio ? Tremes e empallideces ? Não é ·


mais do que pura phantasia ? Que dizes?

HORACIO
Por Deus, que o não pudera accreditar sem o
testemunho sensivel e seguro dos meus proprios
olhos.
MARCELLO

Não se parece com o rei?

HORACIO

Como tu comtigo mesmo . Era assim a armadura,


que trazia, quando attacou o ambicioso norueguez ;
carregou assim as sobrancelhas, quando uma vez em
ACTO I, SCENA I 125

azeda contestação prostrou no gelo o principe da


Polonia, arrancando-o do trenó . É extraordinario !

MARCELLO

E foi assim que já duas vezes, a esta mesma


hora de morte , elle com o seu andar marcial atra-
vessou o nosso posto .

HORACIO

Não sei que juizo particular devamos fazer a este


respeito
;
e á mas na minha opinião tomada em globo
des primeira
ventura á nossa é presagio d'alguma estranha
vista,patria.

MARCELLO
Bem s
; entemo -nos , e diga-me quem souber , por
que
fa tigmotivo
am duraestasaguardas
noite osseveras
subdit e observantissimas
d D ?
Par nte os a inamarca
a quê est fus
a ão diaria de canhões de bronze , e
a compra no estra g
Par ngeiro de petrechos de uerra ?
a qu ta de carpint n
ê manha quantida eiros a-
vaes de
, cujo trabal rude não separa o domin d
ho go o
dia
que de semana? Qual a mira, a que se attende , para
fai
na odiaoperario
e noite ?coberto
Quem pde ódesuor
infojunte na mesma
rmar-me ?
126 HAMLET

HORACIO

Posso eu ; pelo menos, o que se murmura é o se-


guinte : O nosso ultimo rei , cuja imagem acabou de
apparecer-nos, foi - como sabeis —- desafiado a com-
bate por Fortimbraz de Noruega, a quem um cioso
orgulho estimulava . O nosso valoroso Hamlet (tal
era o conceito em que o apreciava esta parte do
mundo conhecido) matou a Fortimbraz, que por um
acto bem sellado e ratificado segundo a lei e a
sciencia heraldica, perdeu para o vencedor junta-
mente com a vida todas as terras de que estava
de posse. Contra isso tinha apostado o nosso rei
uma porção equivalente de territorio, que entraria
no patrimonio de Fortimbraz, se este por ventura
sahisse triumphante, como em virtude do contracto
e theor dos artigos estipulados couberam a Hamlet
os territorios do adversario . Agora , senhor, o joven
Fortimbraz, de caracter fogoso, rude e inexperiente ,
tem rebanhado nas fronteiras da Noruega um troço
de vagabundos promptos pela manutenção e susten-
tamento a commetter qualquer empreza, que de-
mande constancia e resolução . Isto (como bem se
affigura ao nosso Estado) outra coisa não é senão
o projecto de recobrar á força d'armas os territo-
rios perdidos por seu pae. Eis, a meu ver, o mo-
tivo essencial dos nossos aprestos, a causa das nos-
ACTO I, SCENA I 127

sas vigilias, a principal razão d'esta affanosa acti-


vidade no paiz.
BERNARDO

Creio que não é senão o que dizes : póde bem


ser que isso prenda com o facto da portentosa figu-
ra, que apparece armada, quando estamos de guar-
da, tão similhante ao rei, que foi e é origem d'es-
tas guerras .
HORACIO

É um argueiro, que turva os olhos do entendi-


mento. No periodo mais levantado e florente de
Roma, pouco antes de haver cahido o muito pode-
roso Julio, as sepulturas ficaram vazias ; os mortos
envoltos nos seus lençoes ulularam pelas ruas (4);
as estrellas fulgiram com igneas caudas ; orvalhou
sangue ; desastrosos signaes appareceram no sol ; e
o humido astro, sob cuja influencia permanece o im-
perio de Neptuno, desmaiou n'um eclypse, quasi
como se fôra o dia de juizo. O céo e a terra mos-
traram juntamente aos nossos climas e aos nossos
conterraneos os mesmos prognosticos de ruins acon-
tecimentos correios que precedem constantemente
os fados, e prologo de males porvindoiros.
Torna a apparecer a Sombra.
Mas, espera ; olha ! eil-o outra vez. Vou atra-
vessar-me diante d'elle, ainda que me anniquille.
128 HAMLET

Pára, illusão ! Se és dotado de palavra, se tens voz,


falla ! Se ha mister praticar alguma acção boa, que
possa trazer-te allivio e conquistar-me a salvação,
falla ! Se conheces os destinos secretos da tua pa-
tria, que sabidos d'antemão podem talvez ser evi-
tados, oh ! falla ! Se em vida amontoaste nas entra-
nhas da terra thesouros extorquidos, pelo quê - se-
gundo affirmam - vós, espiritos, erraes depois da
morte ... dize-m'o.
Canta o gallo.
Pára e falla ... Obriga-o a parar, Marcello.

MARCELLO
Bato-lhe com a minha partazaną ?

HORACIO
Se não quizer parar, bate-lhe.

BERNARDO
Eil-o !
HORACIO
Eil-o !
A Sombra desapparece.

MARCELLO
Partio ! Sendo tão majestoso de aspecto, offen-
demol-o em dar mostras de violencia ; elle é invul-
ACTO I, SCENA I 129

neravel como o ar, e os nossos golpes inuteis não


passariam de uma zombaria maliciosa.

BERNARDO

Quando ia fallar, cantou o gallo .

HORACIO

E então ficou tremulo, como réo sob o pezo de


medonha citação . O gallo, que é a trombeta da ma-
nhã, tenho ouvido dizer que com a voz forte e
sonora desperta o deus do dia ; e , apenas dá o
signal, todo o espirito peregrino e errante no mar
ou no fogo, na terra ou no ar, volta pressuroso a
seus confins ; e o presente facto comprova esta
verdade.
MARCELLO

Desvaneceu-se quando cantou o gallo . Dizem al-


guns que quando está proxima a estação, em que
se celebra o nascimento do Salvador, a ave da ma-
nhã canta toda a noite ; e affirmam que é tão santo
e cheio de graça aquelle tempo, que nenhum espi-
rito ousa então apparecer, as noites são salubres,
nenhum planeta exerce influição maligna, nenhuma
fada commette maleficio, nenhum magico tem o
poder de encantar.
130 HAMLET

HORACIO

Assim tenho ouvido, e em parte creio. Mas olha :


a aurora envolvida no manto roxeado estende- se
pelo orvalho do outeiro, que se ergue da banda do
oriente. Acabemos a nossa guarda, e , se estiverdes
pelo meu voto, avisemos o joven Hamlet do que
vimos esta noite ; porque aquelle espirito, mudo
para nós, hade fallar-lhe , por minha vida ! Não con-
cordaes em informal-o, como exige a nossa dedica-
ção, e compete ao nosso dever?

MARCELLO
Façamos isso ; eu sei onde é mais provavel que
o encontremos esta manhã.
Sahem.

SCENA II
UMA SALA NO CASTELLO

Entram REI, RAINHA, HAMLET, POLONIO,


LAERTES , VOLTIMANDO, CORNELIO,
SENHORES E SEQUITO .

REI

Posto que a memoria da morte de Hamlet, nosso


querido irmão, esteja ainda fresca ; não obstante ser
ACTO I, SCENA II 131

conveniente que sepultemos em tristeza os corações,


e que todo o reino mostre o rosto contrahido pela
mesma
dôr, a razão combateu a natureza, e exige
que nos recordemos d'elle com a mais prudente
magua, de mistura com a lembrança de nós mesmos.
Por isso com uma alegria vencida pelo sentimento ,
trazendo n'um dos olhos o sorriso e n'outro as la-
grimas , confundindo as festas com o funeral, e os
responsos com os canticos de nupcias, contrabalan-
çando O
lher a jubilo com a tristeza, recebemos por mu-
nossa outr'ora irmã, hoje rainha, participe do
governo d'este guerreiro paiz. Praticando assim,
n'unca deixámos
de ter em vista a vossa esclarecida

negocio
opinião , manifestada livremente no decurso d'este
. Agradeço -vos a todos. Cumpre-me agora
dizer-vos
estim que o joven Fortimbraz, tendo em baixa
ação
unid valor, suppondo o reino des-
dos alicerce oupor morte do nosso pre-
o e fóroa nosso
sado s
irmão -alliado unicamente com este sonho de
super
m ensaioridade – não cessou de importunar-nos com
gens sobr a rest
e ituição das terras perdidas
por
apo Seu pae, e de que o nosso valoroso irmão se
d erou com toda as form da lei . Pelo
s alidad
que es
respeita a elle, basta. Tratemos de nós, e da
Escrevemo
causa, ques nos tem aqui reunidos. É a seguinte .
do a presente carta ao rei da Noruega, tio
joven Fortimbraz, que sem vigor e prostrado no
132 HAMLET

leito mal ouve os designos do sobrinho - para que


se opponha a que elle vá com seu proposito ávante,
por isso que as levas, as recrutas, os alistamentos,
tudo é feito entre os seus subditos. E agora vos
deputamos, bom Cornelio, e a vós tambem, Volti-
mando, como portadores d'esta saudação ao velho
norueguez, não vos concedendo poder algum pes-
soal para tratar com o rei além do que vae exarado
n'estas minuciosas instrucções. Adeus. Que a vossa
diligencia abone a vossa dedicação .

VOLTIMANDO

N'este negocio e em tudo havemos de proval-a.

REI

Não temos d'isso a menor duvida. De todo o


coração, adeus .
Sahem Voltimando e Cornelio.
E agora, Laertes, que novidades temos ? Fallaste-
nos d'uma pretenção ; qual é ? Não pódes dizer coisa
razoavel ao rei da Dinamarca, e perder as palavras.
Que desejarás tu, Laertes, que não seja meu desejo
offerecer-te, sem que o peças ? A cabeça não é por
natureza mais ligada ao coração, nem a mão é ins-
trumento mais subordinado á bocca, do que o throno
dinamarquez é a teu pae . Que pretendes, Laertes ?
ACTO I, SCENA II 133

LAERTES

O favor do vosso consentimento para voltar á


França, temeroso senhor. Ainda que de bom grado
viesse á Dinamarca render-vos homenagem na vossa
coroação, confesso que hoje, cumprido esse dever,
os meus pensamentos e desejos pendem para Fran-
ça, mas sujeitam-se á vossa graciosa licença e per-
dão .
REI

Tens licença de teu pae ? O que diz Polonio ?

POLONIO
Senhor , arrancou-me a tardia licença pedindo
porfiadamente ; a final, condescendi com a sua von-
tade , pondo-lhe o sello do meu duro consentimento .
Peço- vos que o deixeis partir.

REI

Escolhe a opportunidade, Laertes ; o tempo é


teu ; dispende-o a teu gosto. Então….. Hamlet? meu
primo ,
e meu filho ...

HAMLET, ά
à parte.
Um
nos do pouco mais do que primo, e um pouco me-
que filho.
134 HAMLET

REI

Porque motivo pezam ainda essas nuvens so-


bre ti?
HAMLET

Não é assim, meu senhor ; estou demasiadamente


ao sol.
RAINHA
Meu bom Hamlet, aparta para longe esse aspe-
cto côr de noite, e com olhos d'amigo olha para o
rei da Dinamarca. Não fiques eternamente com as
palpebras abatidas procurando no pó da sepultura
o teu illustre pae. Sabes que é lei commum : tudo
o que vive, ha de morrer, passando pela natureza
á eternidade .
HAMLET
Sim, minha senhora, é lei commum.

RAINHA

Sendo assim, porque te parece tão particular?

HAMLET

Parece, senhora ! Parece não, é . Não sei que


coisa é parece. Não é só o meu manto negro como
tinta, boa mãe, nem o trajo habitual do luto solem-
ne, nem o suspirar lamentoso da respiração oppri-
mida, nem o rio caudal que deriva dos olhos, nem
ACTO I, SCENA II 135

a expressão dorida do semblante, junto a todas as


fórmas e modos e manifestações da dôr, que podem
pintar o que sinto . Tudo isso parece, porque são
acções que o homem póde fingir ; porém tenho cá
dentro alguma coisa, que passa além das exterio-
ridades ; estas não são mais do que o adorno e ata-
vios da dôr.
REI

É digno de ternura e de louvor para o teu ca-


racter, Hamlet, que prestes a teu pae essa home-
nagem de sentimento. Porém - deves saber teu
pae perdeu um pae ; esse tinha perdido o seu ; e
。 sobrevivente está em obrigação filial de manifes-
tar por algum tempo as suas chorosas maguas ; mas
perseverar obstinado na tristeza é genero de impie-
dosa contumacia , é dôr impropria de homem, argue
uma
vontade que se rebella contra o céo, um co-
ração fraco, um espirito sem paciencia, um inten-
dimento
simples e inculto. Para que havemos de

tomar
cois a peito com a nossa pertinaz opposição uma
a,
tão que como sabemos -tem de ser, e que é
pressi ulgar como tudo o que vulgarmente nos im-
ona os sentidos ? Não ! Isso é peccado contra
t
• u
céo
rez , é offensa aos mortos, é crime contra a na-
a,
commum
é absurdo repugnantissimo
é a morte dos paes, eá que
razãodesde
, cujo thema
o pri-
meiro
cadaver até o homem que morreu hoje, nunca
136 . HAMLET

cessou de bradar : «É força que seja assim» . Desvia


para longe essa tristeza inutil, peço eu ; tem-me na
conta de teu pae ; é necessario que o mundo veja
e repare que tu és o mais propinquo ao throno, e
que a liberalidade do meu entranhado affecto para
comtigo não é inferior á que dedica ao filho o mais
carinhoso dos paes. O proposito de regressares a
Wittemberg para cursar aulas é de todo o ponto
contrario aos meus desejos. Resolve-te a ficar aqui,
sendo a consolação e alegria dos meus olhos, o meu
principal valido, primo e filho.

RAINHA

Hamlet, não deixes que tua mãe supplique em


vão. Peço-te que fiques ; não vás para Wittemberg.

HAMLET
Senhora, em tudo vos obedecerei o melhor que
possa.
REI

Gentil e affectuosa resposta, na verdade . Sê, como


eu proprio, na Dinamarca. Vamos, senhora ; o ama-
vel e espontaneo assentimento de Hamlet poisa sor-
rindo no meu coração. Em honra de tão digno pro-
cedimento nenhuma alegre saude, a que o rei da
Dinamarca beber hoje , deixará de ser annunciada
ás nuvens pelo ribombo do canhão ; e o céu repe-
ACTO I, SCENA II 137

tindo e trovão terrestre pregoará de novo o real


brinde. Vamos .
Sahem o Rei, a Rainha, a corte, Polonio e Laertes.

HAMLET
Oh ! se esta carne por extrema solida pudesse
derreter-se, fundir-se, resolver-se em orvalho ! Ou
se a Eternidade não tivesse estatuido uma lei contra
o suicida! Ó Deus ! Ó Deus ! Como todos os go-
zos d'este mundo me parecem fastidiosos, gastos,
rasteiros, improficuos ! Apre ! que horrivel mundo !
É um campo
inculto que produz a seu sabor, e em
que unicamente brotam hervas damninhas e de baixa
qualidade . Aonde chegaram as coisas ! Ha dois me-
zes apenas que elle morreu ... não, nem tanto ...
ainda não ha dois mezes ... Um rei tão excellente !
Comparado
com o actual era um Appollo , e este
um satyro ; tão adorador de minha mãe , que nem
podia
consentir ao vento celestial que lhe soprasse
no rosto com aspereza. Ceo e terra ! Devo eu lem-
bral- o ? E ella debruçava-se-lhe nos braços, como se
o appetite lhe crescesse quando o saciava . E com-
tudo, dentro de um mez ... Não quero pensar em
Fragilidade
tal. ,
não estavam ainda velhosé os
teu nome mulher ! Um
sapatos breve
com de-;
que,mez
bulhad
a
de meu em pranto qual Niobe , acompanhou o corpo
pobre pae . E ella, ella mesma ? Oh ! ceo !
138 HAMLET

Uma bruta fera privada do discurso da razão, havia


de lamentar a perda por mais tempo . Casada com
meu tio, irmão de meu pae, mas tão parecido com
meu pae quanto eu me pareço com Hercules : den-
tro de um mez, primeiro que o sal das enganosas
lagrimas lhe deixasse de avermelhar os olhos in-
flammados, casou ! Oh ! viciosissima presteza ! Cor-
rer com tamanha promptidão para os lençoes inces-
tuosos ! Não, isto é torpe , não pode acabar bem .
Mas ... quebra, coração ; é força que eu me calle.

Entram HORACIO, BERNARDO e MARCELLO

HORACIO
Deus vos salve, senhor !

HAMLET
Folgo de te ver bom. É Horacio, se me não
engano.
HORACIO
O mesmo, senhor ; e sempre vosso humilde servo.

HAMLET

Dize: o meu bom amigo ; permutarei comtigo este


nome. Que fazes longe de Wittemberg, Horacio?—
Marcello?
MARCELLO
Meu bom senhor.
ACTO I, SCENA II 139

HAMLET
Folgo muito de te ver.
A Bernardo.
Boa tarde, senhor.
Mas, francamente, que fazes tu longe de Wit-
temberg.
HORACIO

Uma disposição para mandriar, senhor ( 5) .

HAMLET

Eu não consentiria que um inimigo teu dissesse


coisa similhante ; e tu não has de querer por tal
fórma constranger os meus ouvidos, que os obrigues
a accreditar na informação, que dás contra ti mes-
mo .
Sei que não és mandrião . Que negocio tens
em
Elsenor?
beber bem. Antes de partires hei de ensinar-te a

HORACIO
Senhor, vim assistir ao funeral de vosso pae .

HAMLET
P
eço-te que não zombes de mim, collega ; creio
que
foi para assistir ao casamento de minha mãe.

HORACIO
É verdade que foi logo em seguida.
140 HAMLET

HAMLET

Economia, Horacio, economia ! As quentes igua-


rias do banquete funebre (6) abasteceram , depois de
frias, as mezas do festim nupcial. Eu antes queria
ter encontrado no céo o meu inimigo mais encar-
niçado, do que ter visto aquelle dia, Horacio... Meu
pae ! ... parece-me que o estou a ver.

HORACIO
Onde, senhor ?
HAMLET
Nos olhos da alma, Horacio .

HORACIO
Eu vi-o uma vez ; era um optimo rei.

HAMLET
Um homem tão completo em tudo, que não es-
pero ver outro como elle.

HORACIO
Senhor, creio que o vi a noite passada.

HAMLET
Viste ? Quem?
HORACIO
O rei, vosso pae.
ACTO I, SCENA II 141

HAMLET
O rei, meu pae ?
HORACIO
Reprimi a vossa admiração por algum tempo, e
prestae attenção, afim de que eu, com o testemu-
nho d'estes senhores, possa referir-vos o prodigio .

HAMLET
Pelo amor de Deus, conta- me.

HORACIO
Duas noites a fio, os bravos cavalleiros Marcello
e nBernardo
e contro , estando de guarda , tiveram o seguinte
em meio do mais profundo silencio e
escuridão . Uma figura similhante a vosso pae , ar-
mada de ponto em branco , appareceu - lhes na frente ,
e com andar solemne dirigio - se lenta e magestosa
para elles. Tres vezes passeiou por diante dos seus
olhos amedrontados á distancia do bastão , que em-
punhava
emudecera ;
em elles, quasi distillando gelo pelo susto,
e não lhe fallaram. Contaram-me o fa-
cto
como um segredo medonho, e eu na terceira
noite fiquei tambem de guarda . Á mesma hora, com
o mesmo aspecto , veio a apparição tal, qual tinham
descripto , fazendo boa e verdadeira cada palavra.
Reconheci
o vosso pae ; estas mãos não têem maior
similhança
uma com a outra.
142 HAMLET

HAMLET

Mas onde foi isso?

MARCELLO

Na explanada, senhor, onde estavamos de guarda.

HAMLET
Não lhe fallastes ?
HORACIO

Fallei eu, senhor ; porém não deu resposta . Com-


tudo pareceu-me que uma vez levantára a cabeça,
e se movera, como quem ia fallar ; eis que porém
n'essa mesma occasião cantou o gallo da manhã, e
elle , ouvindo-lhe a voz, recuou depressa, e desappa-
receu.
HAMLET
É muito extraordinario .

HORACIO
Meu venerado senhor, é tão certo como eu es-
tar vivo ; e julgámos que nos corria obrigação de
informar a Vossa Alteza.

HAMLET
Verdade verdade, senhores, isto perturba-me a
razão. Estaes de guarda esta noite ?
ACTO 1, SCENA II 143

TODOS
Estamos, senhor.
HAMLET
Armado , dissestes?
TODOS
Armado .
HAMLET
Da cabeça até os pés ?

TODOS
Da cabeça até os pés.

HAMLET
Então não lhe vistes a cara ?

HORACIO
Sim,
tada . meu senhor, vimos ; tinha a vizeira levan-

HAMLET
E o rosto era carregado ?

HORACIO
Um semblante mais de tristeza que de colera.

HAMLET
Pallido ou vermelho ?
*
144 HAMLET

HORACIO
Ah ! Muito pallido .

HAMLET
E fitou em vós o olhar?

HORACIO
Constantemente.
HAMLET
Quem me dera ter estado lá !

HORACIO
Terieis ficado cheio de pavor.

HAMLET
É provavel, muito provavel . Demorou-se muito ?

HORACIO
O tempo, em que se póde com moderada pres-
teza contar até cem.

BERNARDO E MARCELLO
Mais, mais .
HORACIO

Não, quando eu o vi.

HAMLET
A barba era grisalha, não ?
ACTO I, SCENA II 145

[HORACIO
Era de um negro prateado, como em vida.

HAMLET
Ficarei de guarda esta noite ; pode ser que elle
volte .
HORACIO
Eu afianço que volta.

HAMLET
Se revestir o aspecto de meu nobre pae, hei de
fallar-lhe, ainda que o proprio inferno escancare as
guellas
,
bristes e ordene que me calle. Se até agora enco-
o caso da apparição, continuae a tel-o em
silencio
, peço -vos a todos ; e qualquer coisa, que

por ventura succeda esta noite , confiae ao entendi-


mento
, não á lingua. Eu retribuirei a vossa amizade.
Adeus
. Das onze para a meia noite irei ter comvosco
explanada
á .
TODOS
Somos servidores de Vossa Alteza.

HAMLET
Sêde meus amigos, como eu sou vosso . Adeus.
Sahem Horacio, Marcello e Bernardo.

istoOnão
espirito de meu pae vestido de armas ! Tudo
vae bem. Desconfio d'algum horrendo myste-
146 HAMLET

rio. Quem déra que já fosse noite ! Até lá, fica em


socego, minha alma ! As acções torpes hão de vir
a lume, ainda que as abafe a terra inteira !
Sahe.

SCENA III

UM QUARTO EM CASA DE POLONIO


Entram LAERTES e OPHELIA

LAERTES

A minha bagagem foi já para bordo ; adeus ! E


agora, irmã, sempre que haja vento favoravel e es-
teja de partida algum navio, não sejas preguiçosa,
manda-me noticias tuas.

OPHELIA
Pões isso em duvida ?

LAERTES
Pelo que respeita a Hamlet e á frivolidade dos
seus galanteios, considera tudo isso moda passa-
geira, um divertimento sensual, uma violeta do abril
da existencia, precoce mas ephemera, suave mas não
duradoira ; o perfume e o deleite de um minuto,
nada mais.
ACTO I, SCENA III 147

OPHELIA
Nada mais ?
LAERTES

Não cuides que é outra coisa ; porque a natu-


reza, no seu crescimento, não desenvolve só os
musculos e a massa do corpo ; mas á medida que
esse templo se dilata, augmentam por egual os inti-
mos deveres do pensamento e da alma. Póde bem
ser que elle te ame agora, que nenhuma baixeza, ne-
nhuma deslealdade macule a pureza de seus senti-
mentos ; mas, ponderando a grandeza da sua posi-
ção, deves receiar que não seja senhor da sua von-
tade . Hamlet é escravo do berço em que nasceu ;
não pode escolher por si, como as pessoas de baixa
condição, porque d'essa escolha depende a segu-
rança e salvação de todo o reino, devendo portanto
circumscrever-se ao voto e approvação do corpo ,
cuja cabeça é. Se por conseguinte disser que te
ama, importa que o teu juizo accredite apenas tanto
quanto elle puder converter as palavras em factos,
dentro dos limites dos seus deveres e da sua posi-
ção : esses limites assigna-os a voz unanime da Di-
namarca (7) . Considera pois que perda soffreria a
tua honra, se prestasses credulo ouvido ás suas lôas
ou perdesses o teu coração, ou abrisses o thesouro
da tua castidade ás suas descomedidas instancias.
Teme, Ophelia, teme essa desgraça , querida irmā ;
148 . HAMLET

fica para a retaguarda do teu affecto, fóra do al-


cance e do perigo dos desejos. A mais esquiva
donzella é já bastante prodiga, se manifesta á lua
os seus encantos. A propria virtude não evita os
golpes da calumnia ; o verme corroe as filhas da
primavera, muitas vezes antes de se lhes abrirem os
botões ; e na aurora da juventude, na occasião dos
limpidos orvalhos, são mais ameaçadoras as exha-
lações contagiosas. Acautela-te pois ; a melhor sal-
vaguarda é o medo : a mocidade revolta-se por si
mesma, ainda que não tenha ao pé quem a instigue.

OPHELIA
Hei de reter na memoria o sentido d'esta boa
doctrina, como guarda do meu coração. Mas, que-
rido Laertes, não faças como prégador impio, que
mostra o caminho arduo e espinhoso do céo, e en-
tretanto- enfatuado e descuidoso libertino -pisa a
estrada viçosa dos deleites, e não lhe importa o
sermão.
LAERTES
Não te assustes por mim. Já me demorei de mais.
Ahi vem meu pae.
Entra Polonio.

Uma benção duplicada é duplicada ventura. Sorri


a occasião de tornar a despedir-me.
ACTO I, SCENA III 149

POLONIO
Ainda aqui, Laertes ! Para bordo ! para bordo !
Que vergonha ! O vento sopra no flanco da tua
vella, e todos esperam por ti. Ora pois, eu te
abençôo (pondo a mão sobre a cabeça de Laertes) , e pro-
cura gravar na memoria estes preceitos : « Não dês
lingua aos teus pensamentos, nem ponhas por obra
ideia alguma irreflectida. Sê tratavel, porém vulgar
de modo nenhum. Os amigos, que tiveres de fide-
lidade experimentada, prende-os á tua alma com cir-
culos de aço ; mas não callejes a mão apertando a
de qualquer camarada que tiveres desencantado na
vespera. Guarda-te de entrar em questão ; mas en-
volvido n'ella, procede de maneira que o adversario
haja de temer-te . Presta ouvidos a todos, e confia
as tuas palavras a pouca gente . Acolhe a opinião de
cada um ; mas reserva o teu juizo. Traja com a ele-
gancia e a riqueza, que puder pagar a tua bolsa ;
o trajo porém não seja talhado pela phantasia - rico
sem ser ostentoso - porque o vestuario dá muitas
vezes a conhecer o homem, e em França os de me-
lhor estirpe e condição requintam principalmente em
pontos de elegancia. Não peças emprestado, nem
emprestes ; emprestar é muitas vezes perder o di-
nheiro e o amigo, pedir emprestado embota os fios
da economia (8). Uma coisa acima de tudo : sê ver-
dadeiro comtigo mesmo ; e d'ahi seguir-se-ha, como
150 HAMLET

a noite ao dia, que a nenhum homem poderás ser


falso .» Adeus. Que a minha benção torne estes con-
selhos fructuosos.
LAERTES
Senhor, despeço-me com a maior humildade.

POLONIO

A hora chama por ti ; vae ; os teus creados es-


peram-te.
LAERTES

Adeus, Ophelia ; lembra-te bem do que eu te


disse.
OPHELIA
Está tudo fechado na memoria, e tu guardarás a
chave.
LAERTES
Adeus.
Laertes sahe.
POLONIO
Ophelia, o que te disse elle?

OPHELIA
Permitti, senhor ... disse-me algumas cousas a
respeito de Hamlet.
POLONIO

Bem pensado ! Contaram-me que elle tem ulti-


mamente conversado comtigo repetidas vezes em
ACTO I, SCENA III 151

particular, e que tens sido por extremo franca e ge-


nerosa em escutal-o . Se assim é (e assim me avi-
saram como meio de precaução) devo dizer-te que
não comprehendes claramente aquillo, que cumpre
a uma filha minha e á tua honra. Falla-me a ver-
dade : o que ha entre vós ?

OPHELIA

Senhor, n'estes ultimos tempos Hamlet tem-me


feito muitos protestos da sua affeição.

POLONIO

Affeição! qual affeição ! Fallas como rapariga


muito nova, que ainda não passou pela joeira d'es-
ses perigos. Accreditas nos seus protestos, como
lhes chamas ?
OPHELIA
Não sei o que deva pensar.

POLONIO

Pois bem ; eu te ensino . Pensa que és uma


creança, e que tomaste por dinheiro corrente esses
protestos, que não são oiro de lei. Protesta que
vales muito mais ; ou então (para não atormentar
mais a pobre phrase) , deprimindo assim o teu va-
lor, chegarás a protestar que sou um tolo.
152 HAMLET

OPHELIA

Senhor, elle tem-me fallado d'amor por modo


honrado.
POLONIO

Pódes dizer por moda ... continúa, continúa .

OPHELIA

E tem corroborado as suas palavras, invocando


o céo com os mais sagrados juramentos.

POLONIO

Sim ! laços para apanhar gallinholas ! Eu bem


sei quanto a alma é prodiga em emprestar jura-
mentos á lingua, quando o sangue ferve. Filha, não
deves tomar por fogo esses lampejos que dão mais
brilho do que calor - ambas estas coisas extinguem-se
logo na occasião de se fazer a promessa. D'hoje
em deante poupa mais a tua presença virginal ;
avalia os teus colloquios em mais alto preço do
que um simples convite para conversar. Pelo que
respeita a Hamlet, lembra-te principalmente de que
elle é moço, e póde alargar as redeas mais do que
te é licito. N'uma palavra, Ophelia, não creias nos
seus votos ; são enganadores ; não têem a mesma
côr, de que se vestem ; são intercessores de mal-
vadas pretensões, que, para enganar melhor, formu-
ACTO I, SCENA III 153

lam juramentos sacrosantos e piedosos. Por ultimo,


e em
termos claros : d'hoje em diante não quero
que aviltes um momento dos teus ocios entreten-
do-te a
conversar com Hamlet. Toma bem cuidado,
ordeno -te eu ; vae.
OPHELIA
Obedecerei, senhor.
Sahem.

SCENA IV

A PLATAFORMA
HAMLET, HORACIO E MARCELLO

HAMLET
Está frigidissimo ; o ar corta .

HORACIO
Est
á um ar penet
rante e aspero .

HAMLET
Que horas são?
HORACIO

Pouco falta para as doze, creio eu .

MARCELLO
Não, j d
á eram .
154 HAMLET

HORACIO
Devéras ? Não ouvi. Então aproxima-se a hora,
em que o espirito costuma a atravessar .
Ouvem-se tiros e musica dentro.
Que significa isto, meu senhor ?

HAMLET

Que o rei passa a noite em vigilia, embebeda-se,


entoa canções alegres, baila danças ruidosas, e a
cada gole de Rheno que bebe, as trombetas e tim-
bales zurram a importancia do brinde.

HORACIO
Isso é costume ?
HAMLET

É sim ; mas apezar de eu ter nascido aqui, e de


ser educado para esse costume, em minha opinião
é mais honroso infringil-o do que observal-o . Esses
pagodes (9) que sobrecarregam a cabeça, fazem
com que do oriente ao occidente sejamos censurados
e condemnados pelas outras nações ; taxam-nos de
bebedos, e sujam o nosso nome com a alcunha de
porcos. E, na verdade, por mais levantados que se-
jam os nossos feitos, basta isso para tirar-lhes o tu-
tano e o miolo da gloria, que merecem. O mesmo
succede frequentemente com os individuos, que têem
em si a mancha de algum defeito natural. Se por
ACTO I, SCENA IV 155

ventura nasceram (do que não são culpados, visto


que a natureza não escolhe a sua origem) com o
predominio d'esta ou d'aquella disposição de tem-
peramento que derriba muitas vezes as trincheiras
e os fortes da razão , ou com algum habito que faça
levedar em excesso a massa das maneiras delicadas ;
como esses homens, digo eu, trazem estampado um
unico defeito - libré da natureza ou cicatriz da for-
tuna — as suas outras virtudes (ainda que sejam tão
puras como a graça, tão infinitas quanto póde a hu-
manida de possuir) segundo a opinião geral serão
corrompidas por aquelle defeito só ! Uma gotta de
impureza rebaixa toda a substancia nobre ao nivel
da sua propria degradação .

Entra a SOMBRA

HORACIO

Olha e, senhor ; ahi vem.

HAMLET

Anjos e ministros de graça , defendei-nos ! Sejas


tu espirito de benção ou phantasma condemnado,
exhales de ti auras celestiaes ou vapores do inferno,
seja maligno ou caridoso o teu intento , appresen-
tas-te sob uma fórma tão tratavel ( 10), que hei de
6
156 HAMLET

fallar-te indispensavelmente. Hei de chamar-te Ham-


let, rei, pae, senhor da Dinamarca ! Oh ! responde.
Não consintas que me eu abraze na ignorancia ! Mas
dize-me : por que motivo os teus ossos venerandos,
sepultados na morte, rasgaram a mortalha? Porque
motivo o sepulchro, em que te vimos tranquillamente
encerrado, abrio a pesada bocca de marmore, e te
arrojou novamente para fóra ? Que significa isto ?
Por que motivo tu , corpo inanimado, tomando de
novo a armadura completa ( 11 ), volves a contemplar
os raios da lua fazendo a noite medonha, e nós
-ludibrio da natureza - estremecemos horrorisados
em toda a nossa fabrica humana com pensamentos,
que excedem o alcance da nossa alma ? Dize : por-
que é isto ? com que fim ? que devemos fazer ?

HORACIO

Está a fazer-vos signal para que vos retireis com


elle, como se desejasse communicar-vos alguma coisa
a sós !
MARCELLO

Vêde a maneira cortez, como vos chama para


sitio mais afastado ; porem não ide.

HORACIO

Não, por fórma alguma.


ACTO I, SCENA IV 157

HAMLET

Elle não quer fallar aqui ; então vou seguil-o.

HORACIO

Não façaes tal, senhor.

HAMLET

Porquê ? O que posso eu receiar ? Não dou á mi-


nha vida o valor d'um alfinete ; e, pelo que respeita
á alma , que lhe pode fazer o espectro sendo ella
uma coisa immortal, como elle é ? Acena-me de
novo ; sigo -o.
HORACIO

Mas , senhor, se elle vos arrastar para a corrente,


ou para o medonho cimo do outeiro, que se em-
pina sobre as ondas ? E se chegando ahi, assumir
qualquer outra fórma horrivel, que vos prive da so-
berania da razão, e vos despenhe na loucura ? Pensae
n'isto :
O proprio logar, sem outro motivo, causa
transportes de desespero em todo o cerebro, que
olha para o mar a tantas toezas de profundidade , e
O ouve
roncar em baixo.

HAMLET
Torna a fazer-me signaes. Vamos ; sigo-te.
158 HAMLET

MARCELLO

Não haveis de ir, senhor.

HAMLET
Tira as mãos !
HORACIO

Sêde razoavel ; não ide.

HAMLET

O meu destino brada por mim, e torna cada


pequena arteria d'este corpo tão rija, como os ner-
vos do leão de Nemea.

A Sombra faz signaes.

Ainda me está chamando . Largae-me, senhores.


Libertando-se d'elles.

Pelo ceo ! que reduzo a uma sombra aquelle, que


me fizer estorvo ! Para traz !
A Sombra.

Anda, sigo-te.
Sahem Hamlet e a Sombra.

HORACIO

A imaginação enfurece-o.
ACTO I, SCENA V 159

MARCELLO
Sigamol-o ; é contra o nosso dever obedecer-lhe
assim .
HORACIO

Vamos. Em que dará tudo isto ?

MARCELLO
Ha alguma coisa podre no reino de Dinamarca.

HORACIO
ceo determinará.

MARCELLO
Bem ; sigamol-o .
Sahem.

SCENA V
UMA PARTE MAIS REMOTA DA PLATAFORMA
Entram HAMLET e a SOMBRA

HAMLET
Para o
nde quere levar-me ? Falla ; eu não avanç
mais . s o

SOMBRA
Escuta-me .
160 HAMLET

HAMLET
Escuto .
SOMBRA
É quasi chegada a hora, em que devo restituir-
me ás chammas sulfureas e tormentosas.

HAMLET
Ah! pobre espirito !

SOMBRA
Não tenhas piedade de mim ; mas presta séria
attenção ao que te vou revelar .

HAMLET

Falla, tenho obrigação de ouvir.

SOMBRA

E depois de ouvir, terás tambem obrigação de


vingar.
HAMLET
O quê?
SOMBRA

Eu sou o espirito de teu pae, condemnado por


um certo tempo a errar durante a noite , e a jejuar
de dia em prisões de fogo até serem consummidos
e purgados os feios crimes, que em vida pratiquei.
Se me não fôra prohibido referir os segredos da mi-
ACTO I, SCENA V 161

nha prisão, havia de contar-te uma historia, cuja


palavra mais insignificante retalharia a tua alma,
gelaria o teu sangue juvenil, faria saltar fóra das
orbitas os teus olhos como duas estrellas, despen-
tearia as madeixas annelladas da tua cabeça, e havia
de eriçar cada um dos teus cabellos como dardos
de raivoso porco-espinho. Mas estas revelações da
eternidade não são para ouvidos de carne e san-
gue ... Escuta ... escuta ... oh ! escuta ! Se amaste
alguma vez teu amoroso pae ...

HAMLET
Ó céo !
SOMBRA
Vinga o seu assassinio horrivel e desnaturado .

HAMLET
Assassinio ?
SOMBRA
Um assassinio horribilissimo , como são todos,
ainda os menos criminosos ; porem este foi o mais
hediondo ,
o mais estranho, o mais repugnante á
natureza .
HAMLET
Apressae-vos em contar-m'o, para que eu possa
voar á minha vingança com azas tão ligeiras como
a meditação
ou como os pensamentos do amor ( 12).
162 HAMLET

SOMBRA
Vejo que estás disposto ; e se com isto não
ficasses commovido , serias mais inerte do que a
herva damninha que apodrece á vontade nas mar-
gens do Lethes. Agora, Hamlet, escuta : Espalhou-
se o boato de que uma serpente me picara estando
eu a dormir no meu jardim ; e d'esta fórma os ou-
vidos de toda a Dinamarca foram grosseiramente
escarnecidos com uma forjada explicação da minha
morte. Porem sabe tu, illustre joven : a serpente, que
mordeu teu pae e lhe tirou a vida, agora cinge-lhe
a coroa.
HAMLET

Ó minha alma prophetica ! Meu tio ?

SOMBRA

Sim ; essa besta incestuosa, adultera, com a ma-


gia do seu espirito e com os seus dotes perfidos
(oh ! amaldiçoado espirito, amaldiçoados dotes que
teem tanto poder de seduzir ! ) rendeu á sua con-
cupiscencia vergonhosa a minha rainha, ao parecer
virtuosissima. Ó Hamlet, que enorme queda ! De
mim, cujo amor era de tal dignidade, que sempre
andou par a par com o juramento que lhe fiz
quando casei, descahir até ao miseravel, cujas qua-
lidades naturaes eram pobres comparadas com as
ACTO 1, SCENA V 163

minhas. Mas assim como a virtude nunca será aba-


lada, ainda que o vicio a requeste sob uma forma
divina, assim tambem a luxuria, ainda que unida a
um anjo radioso, ha de enfastiar-se de um leito ce-
lestial, irá cevar-se na immundicie . Mas, devagar !
Parece-me sentir a brisa da manhã. Sejamos breve.
Estando eu a dormir no jardim, como sempre costu-
mava de tarde, teu tio, n'aquella hora socegada, apro-
ximou-se de mim pé ante pé com um frasco do mal-
dito oleo de meimendro, e despejou-me no buraco
do ouvido o leproso veneno. O effeito d'esse veneno
tem tal inimizade ao sangue do homem, que vivo
como azougue gira pelos caminhos e portas naturaes
do corpo
, e com rapida energia coagula o sangue puro
e fluido , como gottas d'acido em leite . Assim fez ao
meu : de repente uma doença de pelle encorticou-
me o liso corpo, e fiquei, como Lazaro, coberto de
uma crosta immunda e asquerosa. Eis o modo, por
que, estando eu adormecido, fui pelo braço de meu
proprio irmão esbulhado a um tempo da vida, da
coroa, da rainha. Morto axactamente na flor dos
meus
peccados, sem sacramentos, sem estar prepa-
rado, sem ser ungido , mandado dar contas a Deus
sem ter entrado em conta comigo mesmo, levando
sobre minha cabeça todas as minhas imperfeições.
Oh ! horrivel ! horrivel ! mais que muito horrivel !
Se ha coração em ti , não soffras isto . Não deixes
164 HAMLET

que o thalamo real da Dinamarca seja ninho de lu-


xuria e de incesto condemnado ! Mas de qualquer
maneira, por que hajas de proceder, não macules a
tua alma, nem consintas que o teu espirito machine
alguma coisa contra tua mãe ; entrega-a ao ceo e
aos espinhos, que lhe moram no peito para pungil-a
e tortural-a . Adeus, uma vez por todas. O pyrilampo
mostra que se aproxima a aurora ; o seu fogo morto
começa a empallidecer. Adeus ! adeus ! adeus ! Lem-
bra-te de mim !
Sahe.
HAMLET

Ó legiões do ceo ! Ó terra ! Que mais ? Accaso


hei de emparelhar comvosco o inferno ? Reprime-te,
reprime-te, coração ! E vós, musculos meus, não en-
velheçaes de repente, sustentae-me de pé ! Lembrar-
me de ti ? Sim, pobre espirito, hei de lembrar- me,
em quanto n'este globo desordenado houver um
poiso para a memoria. Lembrar-me de ti ? Sim ; do
registo da minha lembrança hei de apagar toda a
recordação frivola e futil, todas as maximas dos li-
vros, todas as formas, todos os vestigios do passado ,
que a observação e a juventude tenham insculpido
lá ; e nas paginas, no volume do meu cerebro ha
de apenas viver o teu mandado, sem mistura de as-
sumpto mais rasteiro. Sim, juro pelo ceo ! Ó mulher
mais nefasta do que todas as outras ! Ó infame ! in-
ACTO I, SCENA V 165

fame ! hypocrita ! excommungado villão ! As minhas


taboas ! Convem apontar que um homem pode sor-
rir, tornar a sorrir, e ser um scelerado. Tenho a
certeza de que, pelo menos , pode succeder assim na
Dinamarca. (Escreve) Cá estás, querido tio. Agora of
meu santo e senha será : Adeus, adeus, lembra-te
de mim. Jurei-o .
HORACIO , dentro
Senhor! senhor!

MARCELLO, dentro
Senhor!
HORACIO, dentro
O ceo o defenda !

HAMLET
Assim seja !
MARCELLO, dentro
Olá ! olá ! oh ! senhor !

HAMLET
Olá ! oh ! oh ! rapaz ! Vem, meu falcão ! vem !

MARCELLO
Então, meu nobre senhor?

HORACIO

Que novidade temos, senhor?


166 HAMLET

HAMLET
Oh ! uma novidade assombrosa !

HORACIO
Dizei, meu bom senhor.

HAMLET
Não ; que a ides revelar.

HORACIO

Eu não, senhor ; juro pelo ceo.

MARCELLO
Nem eu, meu senhor.

HAMLET

Então o que dizeis? Como poderia um coração


de homem pensar tal coisa ? Mas haveis de guardar
segredo.
AMBOS

Sim, meu senhor ; pelo ceo.

HAMLET

Em ponto algum da Dinamarca existe um sce-


lerado, que não seja um rematado traidor.
ACTO 1 , SCENA V 167

HORACIO
Para nos dizer isso não era preciso que um es-
pirito sahisse do tumulo.

HAMLET

Sim, tendes razão ; essa é a verdade ; e portanto,


sem mais rodeios , julgo conveniente que dêmos as
mãos , e que nos separemos : vós ireis para onde vos
chamarem os vossos negocios e tendencias (todo o
homem tem negocios e tendencias, quaesquer que
sejam ) ;
e eu, por minha humilde parte - vêde -- eu
vou rezar.

HORACIO

São palavras desordenadas e febris, senhor.

HAMLET
Lamento de coração que te offendam ; sim, por
minha
fé, lamento de coração.

HORACIO
N'isso não ha offensa , senhor.
1
1
HAMLET

Ha sim, por S. Patricio ! ha uma offensa e muito


grave. Pelo que respeita á visão, permitti que vos
diga que
é uma sombra honesta ; quanto ao desejo
168 HAMLET

de saberdes o que ha entre mim e ella, dominae


esse desejo como puderdes. E agora, meus bons
amigos, visto que sois amigos, condiscipulos, e com-
panheiros d'armas, concedei-me um favor insignifi-
cante.
HORACIO
Qual é, meu senhor ? Está concedido .

HAMLET
Nunca torneis conhecido o que esta noite pre-
senciastes.
AMBOS
Não tornaremos, senhor.

HAMLET
Bem ; mas jurae.
HORACIO
Por minha fé, senhor, nunca o hei de revelar.

MARCELLO
Nem eu, senhor, por minha fé .

HAMLET
Sobre a minha espada .

MARCELLO

Jurámos já, senhor.


ACTO I, SCENA V 169

HAMLET
Jurae a valer, sobre a minha espada, jurae.

SOMBRA, debaixo da terra


Jurae.
HAMLET

Olá! olá! meu rapaz ! dizes isso? estás ahi, bom ho-
mem ? Aproximae-vos ; estaes ouvindo fallar aquelle
amigo lá em baixo, na adega ; consenti em jurar.

HORACIO

Proponde o juramento, senhor.

HAMLET

Jurae pela minha espada que nunca fallareis do


que presenciastes .

SOMBRA, debaixo da terra


Jurae.
HAMLET

Hic et ubique ? Então mudemos de logar. Vinde,


senhores , e ponde outra vez as mãos sobre a minha
espada. Jurae pela minha espada que nunca fallareis
do que ouvistes.

SOMBRA, debaixo da terra


Jurae pela sua espada.
170 HAMLET

HAMLET

Disseste bem, velha toupeira ! Como trabalhas


depressa debaixo da terra ! Valente gastador ! Mais
uma vez, meus bons amigos, mudemos de logar.

HORACIO
Oh ! Pelo dia e pela noite ! É um prodigio es-
tranho !
HAMLET
Por consequencia acolhei-o, como se faz a um
estranho ( 13 ) . Horacio, no ceo e na terra ha mais
coisas do que sonha a vossa philosophia. Mas va-
mos : Agora aqui jurae, como ha pouco fizestes, que
nunca― assim Deus vos ajude ! - por mais extrava-
gante e insolito que seja o meu procedimento (por-
que talvez se me affigure necessario affectar de hoje
em diante um caracter phantastico) jurae que ao
ver-me assim, nunca denotareis saber de mim al-
guma coisa, cruzando os braços d'este feitio, ou
abanando com a cabeça, ou pronunciando alguma
phrase duvidosa como: « Bem, bem, nós sabemos ;
ou : Nós podiamos se quizessemos ; ou : Se tivesse-
mos vontade de fallar ; ou : Ha gente, que, se pu-
desse ...» ou quaesquer palavras egualmente ambi-
guas . Jurae isso, e a graça e favor do ceo vos as-
sista nas vossas afflicções ! Jurae.
ACTO 1, SCENA V 171

SOMBRA, debaixo da terra


Jurae.
HAMLET

Socega, socega, alma penada ! Agora, senhores,


entrego-me em vossas mãos com todo o meu affecto ;
e quanto um pobre homem, como Hamlet, puder fa-
zer para testemunhar a sua dedicação e amizade,
tanto ha de fazer-se com o auxilio de Deus. Reti-
remo-nos juntos ; sempre com o dedo sobre os bei-
ços, peço-vos eu . Anda tudo desconcertado no nosso
tempo . Amaldiçoado destino ! Ter eu nascido para
restabelecer a ordem ! Bem, vamos, retiremo-nos
juntos.
Sahem.
H

ACTO II

SCENA PRIMEIRA

UM QUARTO EM CASA DE POLONIO

Entram POLONIO e REYNALDO

POLONIO
nalEntrega
do . -lhe este dinheiro e estas cartas, Rey-

REYNALDO
Sim,
meu senhor .

POLONIO
naldo
Serias de uma prudencia maravilhosa, bom Rey-
, se, antes de o procurar, te informasses do
seu
comportamento.
174 HAMLET

REYNALDO
É o que eu já pensava , senhor.

POLONIO

Bem pensado, por Deus ! muito bem pensado !


Olha, antes de tudo sabe-me que dinamarquezes es-
tão em Paris ; quem são ; onde , como, de que meios
vivem, qual a sua sociedade, quaes as suas despezas ;
e quando, á força de perguntas, concluires que
conhecem meu filho, avança um pouco mais ; po-
des então fazer indagações particulares a seu res-
peito. Dá a entender que tens com elle relações
muito remotas ; dize, por exemplo : « Conheço o pae
e os amigos, e a elle tambem o conheço um pouco. >>
Percebes, Reynaldo ?

REYNALDO
Perfeitamente, meu senhor.

POLONIO
Tambem o conheço um pouco ; ainda que — podes
accrescentar · não muito bem; mas, se é de quem eu
fallo, é um extravagante dado a isto e a aquillo ...
E deita-lhe para cima das costas tudo o que te pa-
recer; porém nada tão baixo que o deshonre, toma
cuidado. Limita-te ás leviandades, aos extravios e
ACTO II, SCENA I 175

desmandos habituaes, tidos e havidos por companhei-


ros da juventude e da liberdade .

REYNALDO

Jogar, por exemplo.

POLONIO

Sim; ou beber, esgrimir, jurar, contender, ser


femieiro ; até ahi podes chegar.

REYNALDO

Isso podia deshonral-o , senhor.

POLONIO
Não, po mi fé, se souberes doirar (1 ) a
accusa r nha
ção . Não deves calumnial-o apresentan -o
do
c
i somo naturalmente propenso á libertinagem ; não é
so
Com O que pretendo dizer. Mas aponta-lhe as faltas
liber dadesubtileza,
tanta que pareçam apenas desvios
da ,
den a faisca, o impulso de um espirito ar-
te ,
expe a braveza de um sangue indomito, que todos
rime
ntam na juventude.

REYNALDO
Mas, meu bo senh ...
m or
176 HAMLET

POLONIO
Com que intuito has de fazer isso ?

REYNALDO
É o que eu desejava saber.

POLONIO

Pois bem ; o meu fim é este, e o plano (creio


eu) é segurissimo. Lançando estes pequenos defeitos
á conta de meu filho , como se se tratasse d'uma
coisa que se tivesse enchido de nodoas com o uso
nota bem - se o teu interlocutor ... aquelle que
pretendes sondar ... tiver observado no joven a que
alludes, alguns dos mencionados vicios, acabará —
tem a certeza - por dizer-te « Meu bom senhor, ou
meu amigo, ou cavalheiro» , segundo a phrase e o
tratamento usados no paiz ou pelo homem .

REYNALDO
Muito bem, meu senhor.

POLONIO
E então elle ... então elle ... o que ia eu a di-
zer? ... Eu ia dizer alguma coisa ... onde fiquei eu?

REYNALDO
Acabará por dizer-te ...
ACTO II, SCENA I 177

POLONIO

Acabará por dizer-te ... É verdade, sim ... Aca-


bará por dizer- te : « Conheço o rapaz ; vi-o hontem
ou n'outro dia, em tal ou tal occasião ; com fulano
ou sicrano; e, como dizeis, estava jogando ; » ou : « sur-
prehendi-o a embebedar-se ; » ou : « estava brigando
por causa do jogo da péla ; » ou talvez : « vi- o entrar
em certa casa de má nota (videlicet um bordel) ; » ou
qualquer coisa assim. Agora já vês : com a isca da
tua mentira pescas a carpa da verdade ; é d'esta fórma
que nós, homens prudentes e atilados, achamos indire-
ctamente a nossa direcção, entortando e enviezando o
caminho. E assim, em conformidade com as minhas
instrucções e advertencias, obterás informações de
meu filho . Entendeste-me, ou não ?

REYNALDO
Entendi, meu senhor.

POLONIO
Deus seja comtigo . Adeus.

REYNALDO
Meu bom senhor ...

POLONIO
Observa tu mesmo as suas tendencias.
178 HAMLET

REYNALDO

Hei de observar, meu senhor.

POLONIO
Deixa-o cantar á vontade.

REYNALDO
Bem, meu senhor.
Sahe.
Entra OPHELIA

POLONIO
Adeus.
A Ophelia.
O que é Ophelia ? o que aconteceu ?

OPHELIA

Oh ! senhor ! senhor ! fiquei tão assustada !

POLONIO

Porquê, em nome do ceo?

OPHELIA
Estava eu a coser no meu quarto , e Hamlet
apresentou -se diante de mim com o gibão todo
aberto , sem chapeo na cabeça, meias enxovalhadas ,
ACTO II, SCENA I 179

sem ligas, cahindo sobre o artelho, pallido como a


sua
camisa, batendo com os joelhos um no outro,
e com
um ar, que movia tanto á compaixão, como
se
o tivessem libertado do inferno para fallar de
horrores
.
POLONIO
Louco por amor de ti?

OPHELIA
Não sei, senhor ; mas na verdade receio que sim .

POLONIO
Que disse elle ?
OPHELIA
Travou-me do pulso e prendeu-me com força ;
depois
afastou-se todo o comprimento do seu bra-
ço, e
cipi com a outra mão ... assim ... na testa, prin-
o
senh u a examinar-me o rosto, como se quizesse de-
al-0. Estev muito temp n'esta posi
e o ção . Afinal
-sacu
dindo um pouco o meu braço , e move
ndo
a cab
um eça tres vezes para baixo e para cima - emittio
faze Suspiro tão profundo e lastimoso, que pareceu
r
vida
a estremecer-lhe todo o corpo,
. Feito isto, deixou-me ; e com a cabeça com
e acabar-lhe vol-
tad a
Com por cima do hombro, dir-se-hia que atinava
o caminho, sem olhos, porque sahiu a porta
6*
180 HAMLET

sem o auxilio d'elles, tendo o olhar cravado, até á


ultima, sobre mim .
POLONIO
Anda, vem comigo ; vou ter com o rei. Isso é o
verdadeiro extasis do amor, cujo poder violento a
si mesmo se destroe , e conduz mais vezes o espirito
a emprezas desesperadas, do que nenhuma outra
paixão , que nos afflige debaixo do ceo. Estou pe-
nalisado ... Olha lá : disseste-lhe ultimamente algu-
mas palavras duras ?
OPHELIA

Não, meu bom senhor ; mas, segundo me orde-


nastes, rejeitei-lhe as cartas, e neguei-lhe entrada
junto de mim.
POLONIO
Eis o que o enlouqueceu . Peza- me não o ter
avaliado com mais attenção e criterio. Receei que
elle apenas quizesse brincar, e pensasse em cavar a
tua ruina . Mal haja o meu ciume ! Parece que é tão
proprio da nossa edade sermos exaggerados em pre-
cauções nas nossas conjecturas, quanto é commum
á gente nova carecer de discreção . Vamos ter com
o rei . Ha mister que isto se saiba ; pois occultar este
amor pode acarretar-nos mais tristezas, do que a
sua revelação nos póde trazer odios. Vamos.
Sahem.
ACTO II, SCENA II 181

SCENA II

UMA SALA NO CASTELLO


Entram REI, RAINHA, ROSENCRANTZ ,
GUILDENSTERN , E SEQUITO.

REI
Bemvindos sejaes, meus caros Rosencrantz e
Guildenstern ! Alem do desejo, que ha muito expe-
rimentavamos, de vos tornar a ver , a necessidade ,
que
mand temo , de occupar-vos, deu causa a que vos
assesmos chamar com tanta pressa . Alguma
coisa
haveis de ter sabido sobre a transformação
de Hamlet ;
não e digo transformação , porque o homem

por Se parec e com o que era nem por dentro nem


ginarfóra. A não ser a morte do pae, não posso ima-
Vis vo , que tanto o alheou de seu juizo .
to coo moti
mo fostes , desde os mais verdes annos, crea-
dos
de juntamente com elle, e por isso conheceis tão
finPerto
eza deapesua mocidade
rmanec algeumo tseu genio, peço -vos a
empo na nossa corte ,
e r
a fim de que o desafie a entrete -se com a vossa
Comp is r
anhi , e sempre que houver occasião observeis
a
se O
sendoafflige algum desgosto, por nós ignorado,
descoberto possamos remediar. e que
182 HAMLET

RAINHA
Elle tem fallado muito a vosso respeito, senhores ;
e estou certa de que não ha dois homens, a quem
seja mais affeiçoado. Se vos aprouver condescender
aos nossos rogos de tão boa vontade, que passeis
algum tempo comnosco em utilidade e proveito da
nossa esperança, a vossa visita será galardoada, como
cumpre ao reconhecimento de um rei.

ROSENCRANTZ

Vossas Majestades, pelo soberano poder que teem


sobre nós, podem formular a sua veneranda vontade
antes como ordem, do que como pedido .

GUILDENSTERN
Ambos obedecemos, e aqui nos entregamos de
todo em todo, e livremente collocamos o nosso pres-
timo aos pés de Vossas Majestades, esperando as
suas ordens .
REI
Obrigado, Rosencrantz ; obrigado, amavel Guil-
denstern .
RAINHA
Obrigada, Guildenstern ; obrigada, amavel Rosen-
crantz. Ide já ver meu filho, tão mudado do que era !
peço-vos. -- Algum de vós acompanhe estes senhores
onde está Hamlet.
ACTO II, SCENA II 183

GUILDENSTERN

O ceo permitta que a nossa presença e os nossos


cuidados lhe sejam agradaveis e uteis.
Sahem Rosencrantz e Guildenstern.

RAINHA
Amen !
Entra POLONIO

POLONIO
Meu bom senhor, os embaixadores voltaram da
Noruega satisfeitissimos.

REL
Tu sempre foste o pae das boas noticias.

POLONIO
Devéras, senhor ? Asseguro-vos, meu bom suze-
rano, que voto os meus serviços, voto a minha alma,
por egual ao meu Deus e ao meu gracioso rei . Ou
esta minha cabeça já não segue a marcha de um
negocio tão seguramente como costumava, ou então
julgo ter descoberto a verdadeira causa da loucura
de Hamlet.
REI

Oh! dize ! anhelo por saber isso.


184 HAMLET

POLONIO
Dae primeiro audiencia aos embaixadores . As
minhas noticias serão a sobremeza d'esta grande
festa .
REI
Faze-lhes tu mesmo as honras, e introduze-os.
Polonio sahe.

Querida Gertrudes, Polonio diz-me que encontrou


a origem e a fonte de toda a doença de vosso filho .

RAINHA

Duvido que seja outra senão esta grande causa :


a morte do pae e o nosso precipitado casamento.

Entram POLONIO, VOLTIMANDO


e CORNELIO

REI
Bem, havemos de examinar isso . Bemvindos se-
jaes, meus bons amigos. Dizei, Voltimando, que res-
posta nos trazeis do nosso irmão da Noruega ?

VOLTIMANDO

Uma gentilissima retribuição de cumprimentos e


bons desejos. Apenas terminou a nossa primeira
conferencia, mandou suspender as levas do sobrinho,
as quaes se lhe tinham figurado como aprestos contra
ACTO II, SCENA II 185

o rei da Polonia ; porém, melhor observadas, achou


que eram realmente contra Vossa Alteza. Offendido
pela maneira, como se abusara da sua doença, da
sua edade e fraqueza, fez intimar as suas ordens
a Fortimbraz. Este obedeceu logo , recebeu a cen-
sura do norueguez, e por ultimo jurou em presença
do tio nunca mais pegar em armas contra Vossa
Majestade. O velho norueguez, trasbordando de
jubilo , concedeu-lhe por este motivo a pensão annual
de tres mil coroas, e a permissão de empregar contra
o rei da Polonia os soldados, que tinha recrutado .
Agora faz um pedido mais desenvolvidamente for-
mulado n'este papel (entrega um papel) para que sejaes
servido dar passagem franca á expedição pelos vossos
dominios, sob as condições de segurança aqui esti-
puladas.
REI

Agrada-nos isso bastante, e com mais vagar ha-


vemos de ler e responder, e meditar no negocio.
Entretanto agradeço o trabalho, de que tão bem
soubestes encarregar-vos. Ide descançar ; á noite ce-
lebraremos juntos o acontecimento . Sêde bemvindos
á patria .
POLONIO

Este negocio terminou bem. Senhor, e vós tam-


bem, senhora, disputar sobre o que deve ser a
186 HAMLET

majestade, o que é a obediencia, porque motivo of


dia é dia, a noite noite, e o tempo é tempo, outra
coisa não fora senão perder o dia, a noite e o tempo .
Por consequencia - como a brevidade é a alma do
espirito, cujos membros adornos exteriores cau-
sam tedio - serei breve . Vosso nobre filho está louco .
Chamo-lhe louco, porque pretender definir a verda-
deira loucura o que é , senão estar completamente
louco ? Mas deixemos isso.

RAINHA
Mais factos, e menos arte.

POLONIO

Juro, senhora, que não estou empregando ne-


nhuma especie de arte. Que elle está louco, é ver-
dade. É verdade que é uma lastima ; e é lastima
que seja verdade. A figura é tola. Mas digamos-lhe
adeus, não quero empregar nenhuma arte. Concor-
demos pois em que está louco ; resta-nos agora des-
cobrir a causa d'esse effeito , ou - porque melhor di-
gamos a causa d'esse defeito, visto que esse effeito
é um defeito que procede d'uma causa. Eis o que
resta para demonstrar, e esse resto é o seguinte.
Reparae. Eu tenho uma filha ... tenho, em quanto
é minha ... a qual por dever e obediencia — notae
-entregou-me isto. Meditae e tirae a conclusão. (Lê)
ACTO 11, SCENA II 187

«Ả celestial e muito encantadora Ophelia, idolo de


minh'alma» . A phrase não presta , é vulgar . Celestial
e muito encantadora é uma expressão vulgar ; porém
ides ouvir. « Ao seu seio branco e excellente dedico
estas regras, etc. »
RAINHA
Isso foi escripto por Hamlet a Ophelia ?

POLONIO
Minha boa senhora, esperae um pouco ; serei fiel :
(Le)
«
Duvida de que a estrella em fogo as nuvens fira,
De
que se mova o sol na cerula amplidão,
Duvida da verdade, e toma-a por mentira ,
Porem do meu amor nunca duvides, não.

sos ; Querida Ophelia , não me sinto bem n'estes ver-


mas não tenho a arte de calcular os meus suspiros;
accredita que te amo muito, oh ! mais que mui-
to .
Adeus.
lhe Teu para sempre, dama adoradissima , em quanto
Pertencer esta machina
HAMLET. >>

cia .Eis o que minha filha me mostrou por obedien-


sollicitEaçalem d'isso tinha-me já posto ao cabo das
ões de Hamlet, do tempo , dos meios , e do
loga
r,
em que lhe eram dirigidos.
188 HAMLET

REI
E ella, de que forma acolheu o seu amor ?

POLONIO
Que juizo fazeis de mim?

REI
Que sois homem leal e honrado .

POLONIO

Desejava ardentemente provar que o sou. Mas


que pensarieis vós, se eu, vendo aquelle amor ar-
dente adejar as suas azas - pois cumpre-me dizer-
vos que o percebi antes de minha filha m'o haver
contado - que pensarieis vós, e vós tambem, gra-
ciosa rainha aqui presente , se eu tivesse servido de
estante ou livro de notas, ou permittisse que o meu
coração trabalhasse em silencio, ou fizesse vista
grossa áquelles amores? Sim, que pensarieis vós?
Porem não ; fui direito ao ponto , e fallei a minha
filha d'esta sorte : «Hamlet é um principe fóra da
tua esphera ; isto não deve ser.» E aconselhei-lhe de-
pois que se furtasse aos seus encontros, que lhe não
admitisse mensageiros, nem acceitasse presentes.
Feito isto, minha filha tirou proveito da adverten-
cia, e elle - para encurtar-mos razões - vendo-se re-
pellido, cahiu em tristeza, da tristeza passou á falta
ACTO II, SCENA II 189

de appetite, d'ahi á vigilia, d'ahi á fraqueza, d'ahi


ao delirio, e por este declive chegou á loucura, em
que hoje se debate, e que todos deploramos.

REI

Pensaes que é isso ?

RAINHA
Pode ser, é muito provavel.

POLONIO
Já succedeu alguma vez - desejo muito sabel-o-
que tendo eu affirmado positivamente : a coisa é
assim, se provasse que era de outro modo ?

REI
Que eu saiba, não .

POLONIO
Separae isto d'isto, se não fôr como digo. Com-
tanto que as circumstancias me encaminhem, hei
de descobrir onde se occulta a verdade, ainda que
esteja escondida no centro da terra.

REI

Como poderemos sondar mais este negocio ?


190 HAMLET

POLONIO

Sabeis que Hamlet ás vezes passeia quatro horas


a fio aqui na galeria.
RAINHA
É verdade, passeia .

POLONIO

N'uma d'essas occasiões permittirei a minha filha


que vá ter com elle ; vós e eu estaremos atraz de
uma cortina. Observae o encontro ; se elle não a
ama, se não foi por isso que perdeu o juizo , não
seja eu mais assistente do Estado, e vá cuidar de
uma quinta e dirigir carreiros.

REI
Havemos de fazer a experiencia .

Entra HAMLET, lendo

RAINHA

Vêde como o pobre infeliz vem a ler tão triste .

POLONIO
Retirae-vos ; peço que vos retireis ambos. Vou
já fallar-lhe . Dae-me plena liberdade .
Sahem o Rei e a Rainha
Como ides, meu bom senhor?
ACTO 11, SCENA II 191

HAMLET

Bem, graças a Deus.

POLONIO

Conheceis-me, senhor?

HAMLET

Perfeitamente ; és um vendedor de peixe .

POLONIO

Eu não, meu senhor.

HAMLET

Pois eu quizera que fosses um homem tão hon-


rado.
POLONIO

Honrado, meu senhor ?

HAMLET

Sim ; ser honrado, indo este mundo como vae,


é ser um homem estremado entre dez mil.

POLONIO
É uma grande verdade, meu senhor.
7
192 HAMLET

HAMLET

«Pois se o sol gera vermes n'um cão morto, e


sendo um deus beija o cadaver corrompido ...» Tens
uma filha ?
POLONIO
Tenho sim, meu senhor.

HAMLET

Não a deixes passeiar ao sol. A concepção é


uma benção ; porém não como a tua filha póde
conceber ; amigo, tem cautella.

POLONIO

Que quereis dizer? (Aparte) Sempre a falar de mi-


nha filha ! Todavia não me conheceu a principio ;
disse que eu era um vendedor de peixe. Está muito
transtornado ! É verdade que na minha juventude
conheci os extremos do amor ; estive quasi assim.
Vou fallar-lhe outra vez. (Alto) O que estaes lendo,
senhor ?
HAMLET
Palavras, palavras, palavras !

POLONIO
De que se trata, meu senhor ?
ACTO II, SCENA II 193

HAMLET
Entre quem ?
POLONIO

Quero dizer : de que trata o que estaes lendo ?

HAMLET

De calumnias ; o maroto d'este poeta satyrico


diz que os velhos teem barba grisalha, face rugosa,
que purgam pelos olhos ambar espesso como gomma
de ameixieira, padecem de enorme falta de espi-
rito, e de muita fraqueza nas curvas das pernas. Ainda
que eu accredite firme e poderosamente em tudo
isso, não julgo decoroso escrevel-o por esta fórma ;
pois tu mesmo serias tão velho como eu, se pu-
desses andar para traz como o caranguejo.

POLONIO, aparte
Não obstante ser tudo loucura, ha methodo nas
suas palavras. (Alto) Não quereis passear fóra do ar,
senhor ?
HAMLET
Dentro do meu tumulo?

POLONIO
Effectivamente, lá não existe ar. (Aparte) Como são
ás vezes cheias de propriedade as suas respostas ! É
194 HAMLET

uma felicidade, com que a loucura topa a miudo,


e com que a razão e o juizo não acertariam tão
facilmente. Vou deixal-o , e dispôr já as coisas para
o encontro d'elle com minha filha. (Alto; Meu nobre
senhor, tomo a liberdade de despedir-me de Vossa
Alteza com a maxima humildade.

HAMLET
De mim nada podes tomar, de que eu prescinda
com mais gosto ... excepto a minha vida, excepto
a minha vida, excepto a minha vida.

POLONIO
Adeus, meu senhor.

HAMLET
Estes velhos enfadonhos e tolos!

Entram ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN

POLONIO
Ides procurar Hamlet ? eil-o ali.
Polonio sahe.

ROSENCRANTZ, a Polonio
Deus vos salve !
ACTO II, SCENA II 195

GUILDENSTERN
Meu nobre senhor !

ROSENCRANTZ
Prezadissimo senhor!

HAMLET
Meus bons, meus excellentes amigos ! Como vaes,
Guildenstern ? Oh ! Rosencrantz ! Bellos rapazes , como
ides ambos ?
ROSENCRANTZ

Como quaesquer filhos da terra.

GUILDENSTERN

Felizes por não sermos excessivamente felizes.


Não somos o laço no toucado da fortuna.

HAMLET
Nem as solas dos seus sapatos?

ROSENCRANTZ
Tambem não, meu senhor.

HAMLET
Então viveis perto da cintura, ou no centro dos
seus favores?
196 HAMLET

GUILDENSTERN

Para que negal- o ? Privamos com ella.

HAMLET

Com as partes secretas da fortuna ? Ah ! sim, é


verdade ; ella é uma rameira. O que ha de novo ?

ROSENCRANTZ

Nada, senhor ; a não ser que o mundo fez-se


honrado.
HAMLET

Então está proximo o dia de juizo ; mas essa


novidade não é verdadeira. Deixae-me interrogar
mais particularmente : O que merecestes vós, meus
bons amigos, para que a mão da fortuna (2) vos en-
viasse a esta prisão ?

GUILDENSTERN
Prisão, senhor !
HAMLET

A Dinamarca é uma prisão.

ROSENCRANTZ

Visto isso, o mundo tambem o é.


ACTO II, SCENA II 197

HAMLET

Uma grande prisão, em que ha muitas cellulas,


calabouços e enxovias, sendo a Dinamarca uma das
peiores.
ROSENCRANTZ

Não pensamos assim, meu senhor.

HAMLET

Pois n'esse caso não é prisão para vós. As coisas


são boas ou más, conforme as julgamos ; para mim
é uma prisão.
ROSENCRANTZ
É porque a vossa ambição vol-a representa como
tal ; a Dinamarca é pequena de mais para o vosso
espirito.
HAMLET

Ó Deus ! Eu podia estar encerrado n'uma casca


de noz, e considerar-me rei do espaço infinito, se
não fosse perseguido por sonhos maus .

GUILDENSTERN

Esses sonhos com toda a certeza não são mais


do que ambição, pois a verdadeira substancia da
ambição é apenas a sombra d'um sonho.
198 HAMLET

HAMLET

O proprio sonho não é mais do que uma som-


bra.
ROSENCRANTZ

É verdade ; e eu tenho a ambição na conta de


uma qualidade tão aerea, tão voluvel, que para
mim é simplesmente a sombra d'uma sombra.

HAMLET

Logo os nossos mendigos são corpos, e os nossos


monarchas, os nossos afamados heroes são as som-
bras dos mendigos . Vamos á côrte ? Por minha fé ,
não posso raciocinar.

AMBOS
Iremos na vossa comitiva.

HAMLET

De modo nenhum ; não quero confundir-vos com


o resto do meu sequito ; pois, fallando-vos como ho-
mem de bem, sou terrivelmente acompanhado . Mas
-com a franqueza propria da amizade - que vies-
tes fazer a Elsenor?

ROSENCRANTZ
Visitar-vos, meu senhor ; nada mais .
ACTO II , SCENA II 199

HAMLET
Pobre de mim! Sou pobre até nos agradecimen-
tos; mas agradeço-vos, e com certeza, queridos ami-
gos, os meus agradecimentos são ainda muito caros
sendo pagos a meio penny. Não vos mandaram ?
Viestes por determinação propria ? É uma visita es-
pontanea? Vamos, vamos ; procedei lealmente comi-
go ; vamos, vamos, fallae .

GUILDENSTERN

Que havemos nós dizer-vos, senhor?

HAMLET
Alguma coisa, mas que venha a proposito. Fos-
tes mandados ; ha uma especie de confissão nos
vossos olhares, que o pudor não tem artificio bas-
tante para disfarçar. Sei que fostes mandados pelo
bondoso rei e pela rainha.

ROSENCRANTZ
Para que fim, senhor ?

HAMLET

É isso o que deveis dizer-me. Peço-vos aperta-


damente pelos direitos da nossa camaradagem, pela
consonancia da nossa juventude, pela obrigação da
nossa amizade mantida em todo o tempo, pelo que
200 HAMLET

ha de mais caro, e em cujo nome pudesseis ser in-


stados por um orador melhor do que eu, sêde leaes
e francos para comigo, dizei-me : fostes mandados,
ou não?
ROSENCRANTZ, a Guildenstern
O que respondes?

HAMLET, aparte
Estou a ler-lhes a resposta nos olhos. (Alto) Se
sois meus amigos, não me occulteis nada.

GUILDENSTERN
Senhor, fomos mandados .

HAMLET
Vou dizer-vos porquê ; d'este modo anteciparei
a vossa confidencia, e o segredo jurado ao rei e á
rainha não mudará sequer uma penna. Ha tempos
(ignoro a causa) perdi toda a alegria, abandonei
todos os meus habitos de exercicio ; e de facto,
sinto um pezo tão grande sobre o espirito, que esta
bella machina -a terra - affigura-se-me esteril pro-
montorio ; este soberbo docel - o ar - este bravo
firmamento que perde sobre nossas cabeças, este
tecto majestoso cravado de luzes de oiro, tudo isso
não me parece mais do que uma agglomeração im-
munda e pestilente de vapores. O homem é obra
ACTO II, SCENA II 201

acabada e perfeitissima ! Como é nobre pela razão !


infinito pelas faculdades ! expressivo e admiravel na
forma e nos movimentos ! quão similhante à um
anjo pelas acções ! a um deus pelo entendimento !
É a belleza do mundo, o typo ideal dos animaes !
E todavia o que é para mim essa quinta essencia
do pó ? O homem não me encanta ... nem a mu-
lher tão pouco, ainda que o vosso sorriso pareça di-
zer que sim.
ROSENCRANTZ
Não tinha similhante coisa na ideia.

HAMLET

Então porque riste quando eu disse : o homem


não me encanta ?
ROSENCRANTZ
Porque pensava que, se o homem vos não en-
canta, os comicos receberão de Vossa Alteza uma
hospedagem de quaresma. Encontrámol- os no ca-
minho ; veem offerecer-vos os seus serviços.

HAMLET
O que faz de rei será bemvindo ; renderei a Sua
Majestade o meu tributo ; o aventuroso cavalleiro
manejará a espada e o broquel ; o amante não ha
de suspirar gratis ; o gracioso chegará em paz ao

BA
202 HAMLET

fim do seu papel ; o rustico (3) fará rir até mesmo


aquelles cujo pulmão é asthmatico ; e a dama enun-
ciará livremente à sua paixão, ainda que tenha de
estropear o verso branco . Quaes são os comicos ?

ROSENCRANTZ
Os mesmos, que tanto costumavam a deleitar-
vos ; os tragicos da cidade.

HAMLET

Por que motivo se tornaram ambulantes? Uma


residencia fixa era-lhes mais util tanto para a repu-
tação, como para o interesse.

ROSENCRANTZ

Creio que não lhes é permittida a residencia fixa


em virtude da ultima innovação (4).

HAMLET
Ainda são tidos na mesma estima, em que eram
quando eu estava na cidade ? São frequentados da
mesma forma ?
ROSENCRANTZ

Com verdade, já não são.

HAMLET

Porquê? Encheram-se de ferrugem ?


ACTO II, SCENA II 203

ROSENCRANTZ

Nada ; os seus esforços seguem a marcha do cos-


tume ; porem, senhor, ha uma ninhada de creanças,
aves mal sahidas da casca, que fazem uma gralhada
enorme, e são por isso applaudidas com furor. Es-
tão agora em moda ; e por tal sorte se esganiçam
contra os theatros ordinarios (assim é que elles cha-
mam) que muitos homens, brandindo espadas, te-
mem-se das pennas de pato, e mal se atrevem a
pôr lá os pés.
HAMLET

O quê? são creanças ? Quem lhes paga ? Quanto


ganham ? Não seguirão a carreira, senão em quanto
fallarem fino ? E mais tarde, se se fizerem actores
communs o que é muito provavel não podendo
fazer coisa melhor - não dirão elles, que os seus
escriptores lhes causaram damno, obrigando- os a
vociferar contra o seu proprio futuro?

ROSENCRANTZ

A fé, que de uma e outra parte houve muito


que lamentar, e o paiz julga que não é peccado
mettel-os á bulha. Houve tempo em que uma peça
não dava dinheiro, se o poeta e o actor se não es-
murrassem no dialogo .
204 HAMLET

HAMLET
É possivel?
GUILDENSTERN

Olá ! Ficou já um bom par de cabeças partidas.

HAMLET

E quem leva a melhor ? as creanças ?

ROSENCRANTZ
Sim, meu senhor, levam tudo ; até Hercules e a
sua carga (5).
HAMLET

Não é muito extraordinario ; pois meu tio é rei


da Dinamarca, e aquelles que lhe faziam caras em
vida de meu pae, dão agora vinte, quarenta, cin-
coenta, cem ducados por um retrato seu em mi-
niatura. Ha n'isto alguma coisa fóra do natural ; se
a philosophia pudesse descobrir o que é !
Ouvem-se as trombetas.

GUILDENSTERN
São os comicos.
HAMLET

Senhores, bemvindos sejaes a Elsenor. As vossas


mãos. Aproximae-vos ; as demonstrações de um bom
acolhimento são a urbanidade e a cortezia. Permitti
ACTO II, SCENA II 205

que vos trate d'este modo, pois temo que a ma-


neira como vou receber os actores --a qual (previno-
vos) deve ser exteriormente graciosa e cortez - pa-
reça mais polida do que a forma por que vos re-
cebo. Bemvindos sejaes ; porém meu tio-pae e mi-
nha tia-mãe estão enganados .

GUILDENSTERN
Em quê, meu senhor ?

HAMLET

Eu só estou doido , quando o vento é nor-noroes-


te ; quando está sul, distingo um falcão d'uma gar-
ça (6).
Entra POLONIO

POLONIO
Eu vos saudo, senhores !

HAMLET
Ouvi, Guildenstern ; e vós tambem, Rosencrantz ;
para cada ouvido um ouvinte. Esta creancinha (7) ,
que estaes vendo , ainda não largou os cueiros.

ROSENCRANTZ

Pode ser que voltasse a elles ; diz-se que um ve-


lho é creança pela segunda vez.
206 HAMLET

HAMLET

Prophetiso que vem fallar-me dos comicos ; no-


tae ... Dizeis bem, senhor ; segunda feira de manhã ;
é verdade, foi segunda feira.

POLONIO

Tenho uma noticia para dar-vos, senhor.

HAMLET

Tenho uma noticia para dar-vos, senhor. Quando


Roscio era actor em Roma ...

POLONIO
Estão ahi os comicos, senhor.

HAMLET
Hum! hum! hum !

POLONIO
Por minha honra !

HAMLET
Montado cada actor em seu jumento (8).

POLONIO
Os melhores actores do mundo para a tragedia,
comedia, drama historico, pastoral, comico-pastoral,
ACTO II, SCENA II 207

historico-pastoral, tragi-historico, tragi-comico-histo-


rico-pastoral, peças com unidade ou poemas sem re-
gras. Para elles nem Seneca é por extremo serio,
nem Plauto jocoso em demasia. Tanto para o ge-
nero escripto, como para o improvisado, não ha ou-
tros assim .
HAMLET

Ó Jephté! juiz de Israel!


Que thesouro possuias !

POLONIO
Que thesouro possuia elle, senhor?

HAMLET
Que thesouro ?

Tinha uma filha só ; mas era o seu arrimo,


O seu enlevo e amor, dos olhos seus o mimo.

POLONIO, ȧparte

Ainda a pensar em minha filha !

HAMLET
Não tenho razão, velho Jephté ?

POLONIO
Se me chamaes Jephté, senhor, é porque tenho
uma filha, a quem amo extremosamente .
208 HAMLET

HAMLET
Não, não é isso o que se segue.

POLONIO
O que se segue então , senhor ?

HAMLET
Isto :
Deus decreta e determina
A sorte prospera e má;
E depois? sabeis ?
Se a sorte é ordem divina,
Tolhel-a quem ousará?

A primeira estancia da piedosa canção vos en-


sinará o mais ; porque - olhae — ahi vem quem me
faz interromper.
Entram quatro ou cinco COMICOS.
Bemvindos sejaes, senhores ; todos bemvindos.
Folgo de te ver bom. Bemvindos sejaes, meus bons
amigos. Oh ! velho amigo ! Ficaste com a cara cheia
de franjas depois da ultima vez que te vi ; accaso
vens á Dinamarca para me fazer a barba? Oh ! mi-
nha formosa dama e senhora ! Pela Virgem ! desde
a ultima vez que vos vi , estaes mais perto do ceo
toda a altura de um chapim. Deus permitta que a
vossa voz não esteja falhada como moeda de oiro,
ACTO II, SCENA II 209

que não corre (9). Bemvindos sejaes, senhores. Va-


mos a isto como falcoeiros francezes ; atiremo- nos a
qualquer coisa que appareça. Venha já um trecho ;
vamos, dae-nos uma amostra do vosso engenho ; va-
mos, um trecho apaixonado.

PRIMEIRO COMICO

Qual, meu senhor?

HAMLET

Uma occasião ouvi-te recitar um trecho, que


nunca fôra representado ; ou se foi, não passou d'uma
vez, porque a peça - lembra-me -não agradou ás
massas ; era caviar para o commum dos espectado-
res ; mas uma excellente peça , segundo me pareceu
e a outros, cuja opinião sobre a materia é mais
auctorisada do que a minha : bem dispostas as
scenas, escriptas com tanta simplicidade como en-
genho. Recordo-me de alguem ter dito que não
havia bastante adubo nos versos para tornar o as-
sumpto saboroso, nem coisa alguma na phrase, que
pudesse inculpar o auctor de affectação ; mas que
era uma obra honesta, tão sã como agradavel, muito
mais bella do que enfeitada. Havia uma passagem
de que principalmente gostei : a narração de Eneas
a Dido, e em especial quando falla do assassinio de
210 HAMLET

Priamo . Se vos lembraes do trecho, começae n'a-


quelle verso ... vejamos ... vejamos ...

«Pyrrho duro e cruel, bem como o tigre hircano >»

Não é assim; começa por Pyrrho...

«Pyrrho duro e cruel, em outros tempos quando


Trazia armas de ferro escuras, como o infando
Projecto de seu peito insensivel, fallaz ;
Pyrrho, o inhumano algoz, carniceiro, voraz ,
Da teucra geração calamitoso açoite,
Semelhava no gesto a pavorosa noite,
Em que no bojo entrou da machina fatal.
Mas hoje o seu aspecto inda é mais infernal :
Transmudou-se-lhe a côr em rubido brazão ;
Vermelho o corpo tem, vermelha a fronte , e a mão
Tincta em sangue de paes, que morrem — desgraçados! —
Vendo tambem morrer os filhos adorados.
O incendio toma alento, e cresce, e lambe, e abraza,
Quanto encontra destroe, não poupa uma só casa;
E, como por escarneo, as labaredas suas
Sobre os corpos dardeja esparsos pelas ruas.
De Pyrrho no semblante a raiva se divisa.
Os olhos a fulgir de carbunculo á guisa,
Ardendo de furor, de sangue ennodoado,
Tendo o gladio homicida aos ares levantado
(Porque despeça o golpe, e a vida logo tire),
ACTO II, SCENA II 211

Investiga, pergunta, indaga, busca, inquire


Priamo onde estará ...»
Continuae agora.

POLONIO

Por Deus, senhor ! bem recitado ; com excellente


dicção e medida.

PRIMEIRO COMICO
«Em seguida o descobre
A custo combatendo, expondo a vida nobre.
O ferro, obediente ao braço rijo outr'ora,
Refusa-se ao commando, hesita, cae agora.
Ao decrepito rei em desegual peleja
Lança-se o fero Pyrrho ; e logo que dardeja
E zune pelo ar a espada do tyrano,
Abate-se enervado o velho pae troyano.
Ilio, insensivel já, como se a morte indina
Por accaso sentisse, em chammas se arruina
Do tope ao alicerce. Horrivel estrugido
De Pyrrho a mão sustem, faz prisioneiro o ouvido.
Na mesma occasião attende ao que te conto
Em que o ferro do algoz insano estava a ponto
De mutilar a fronte encanecida e pura
Do longevo monarcha, a todos se figura
Vel-o no ar suspenso. E Pyrrho então parece
Um verdugo pintado a quem acção fallece.
212 HAMLET

Nota-se muita vez no meio das borrascas,


Quando o globo se agita em anciosas vascas,
Cahir subito em calma o furioso ceo,
Aquietar-se o vento, as vagas do escarceo
Perderem a braveza, e no orbe ficar tudo
Tranquillo como a morte, e como a morte , mudo.
Passado um breve instante, o ceo fuzila e troa,
Enfurece -se o mar, sossobra a lignea proa;
Assim pouco depois ruge o furor sanguineo,
E Pyrrho põe por obra o torvo morticinio.
No Etna, quando tudo era exercicio d'arte
Para as armas forjar do temeroso Marte,
Dos Cyclopes jamais desceram a miude.
Os martellos de peso enorme sobre a incude,
Tão impios no vibrar o golpe momentaneo ,
Como a espada cahio de Priamo no craneo.
Para longe d'aqui, ó deusa corteza !
Para longe, Fortuna ! Arreda, barrega !
Vós, numes immortaes, em synodo total
Arrancae -lhe o poder, de que só vem o mal,
Os raios destruí da roda, em que ella gira,
E cheios de rancor, e trasbordando em ira
Expulsae-a de vez , ó numes, do superno
Olympo, e arremessae-a ao mais profundo Averno ! »

POLONIO
É comprido de mais.
ACTO II, SCENA II 213

HAMLET
Ha de ir ao barbeiro com a tua barba. Peço-te
que continues. O que elle quer é uma giga ou uma
historia obscena ; senão, dorme. Continúa, vamos a
Hecuba.
PRIMEIRO COMICO

«Se alguem, oh ! se alguem visse a rainha embuçada »>

HAMLET
A rainha embuçada ?

POLONIO
É bom ; a rainha embuçada é bom .

PRIMEIRO COMICO

«Descalça, como louca, em lagrimas banhada ;


Um lenço tendo posto em afflicção extrema
Na fronte, onde estivera, ha pouco, o diadema ;
Com uma colcha soez procurando encobrir
Os descarnados rins cançados de parir,
Se alguem visse diria : Ó Fortuna impudíca,
Tão nefanda traição quem, como tu, pratica ?
Se os deuses por ventura os olhos abaixassem
Para a misera esposa, e a magua contemplassem ;
Se pudessem ouvir o grito dolorido
Que ao peito lhe arrancou a sorte do marido,
214 HAMLET

Do velho extenuado , a quem Pyrrho sem dó


Golpeia por prazer, mutila, faz em pó ;
Os deuses no alto Olympo esplendidos de gloria
(Se accaso lhes importa a vida transitoria)
Haviam de chorar sentido, amargo pranto,
Ouvindo assim gemer, vendo infortunio tanto. >>

POLONIO
Olhem como elle mudou de côr ; e está com os
olhos cheios de lagrimas. Basta, peço eu.

HAMLET

Está bem; logo te farei recitar o resto. Meu bom


senhor, quereis olhar pela boa hospedagem dos acto-
res ? É preciso que sejam bem tratados, ouvis ? por-
que são o epitome, a chronica resumida dos tem-
pos. Melhor vos fora ter um mau epitaphio depois
da morte, do que má reputação entre elles estando
vivo.
POLONIO
Senhor, hei de tratal-os em conformidade com
o séu merecimento.
HAMLET

Qual historia ! muito melhor. Se todos os ho-


mens fossem tratados segundo o seu mer men-
to, quem se livraria d'uma surra ? Tratae-os como
ACTO II , SCENA II 215

cumpre á vossa dignidade e nobreza. Quanto me-


nos merecerem, tanto mais meritoria será a vossa
bondade . Ide com elles.

POLONIO
Vinde, senhores.
Polonio sahe.
HAMLET

Segui-o, amigos ; amanhã ouviremos uma peça.


Escuta, meu velho amigo ; podes representar o As-
sassinio de Gonzaga ?

PRIMEIRO COMICO
Sim, meu senhor.

HAMLET

Bem ; amanhã á noite se representará. Ser-te- ha


possivel, em caso de necessidade , aprender uma falla
de doze ou dezeseis versos, que desejo escrever e
intercalar na peça ? Poderás ?

PRIMEIRO COMICO
Sim , meu senhor.

HAMLET
Muito bem. Segue aquelle senhor, e toma conta,
não zombes d'elle. (A Rosencrantz e Guildenstern) Meus
7*
216 HAMLET

bons amigos, vou deixal-os até a noite. Bemvindos


sejaes a Elsenor .
ROSENCRANTZ
Meu bom senhor!
Sahem Rosencrantz e Guildenstern.

HAMLET

Bem, Deus seja comvosco ! Agora estou só ! Oh !


como sou infame, tosco e rude ! Pois não é mons-
truoso que este comico, por simples fingimento,
n'um sonho de paixão , consiga sujeitar a alma á sua
ideia, de maneira que se lhe inflammem as faces,
arrasem-se-lhe os olhos de lagrimas, pinte- se-lhe no
rosto o desvario, entrecorte-se-lhe a voz, e todas
as suas funcções se amoldem ás formas do capricho
imaginoso? E tudo por nada! por Hecuba! Que tem
elle com Hecuba, ou Hecuba com elle para chorar
assim por causa de Hecuba? O que faria então, se
tivesse o motivo , o santo e senha, que eu tenho
para a dôr? Inundaria o theatro com um diluvio de
pranto, quebraria ao publico os ouvidos com hor-
rorosos gritos , enlouqueceria o criminoso, espantaria
o innocente, confundiria o ignorante, desconcertaria
sem duvida as faculdades de ver e de ouvir. Ao
passo que eu, um miseravel estupido , um coração
de lodo, um José sonhador, não sinto esporas para
ACTO 11, SCENA II 217

a vingança ( 12) ; nada posso dizer, nada, a favor de


um rei, contra cuja fazenda e vida preciosissima se
praticou uma infernal espoliação . Sou eu accaso um
cobarde ? Quem me chama vil? Quem me parte a
cabeça? Quem me arranca as barbas e arremessa-
m'as á cara? Quem me aperta o nariz? Quem me
mette um desmentido pela guela, e m'o enterra até
os pulmões? Quem é capaz de me fazer isso? Ora!
e eu havia de soffrel-o, porque com certeza tenho
figados de pomba, falta-me fel que torne amarga
a oppressão : se assim não fosse , já tinha engordado
todos os milhafres do paiz com os restos d'aquelle
biltre. Sangrento, impudíco scelerado ! Deshumano,
traidor, lascivo, hypocrita villão ! Ah ! como sou asno!
É este o cumulo da bravura: que eu, filho de um
querido pae assassinado , eu, a quem o inferno e o
ceo instigam á vingança, deva - qual prostituta -
descarregar o coração com palavras, maldizer e ro-
gar pragas como verdadeira marafona , ou moça de
cosinha! Que vergonha! Anda, cerebro, trabalha !
Hum! Tenho ouvido que pessoas criminosas, assis-
tindo á representação de uma peça, foram de tal
modo feridas na alma pelo artificio da scena, que
logo, logo proclamaram os seus delictos ( 13); por-
que o assassinio, apezar de não ter lingua, deve
fallar com um orgão milagroso. Farei com que es-
tes comicos representem alguma coisa similhante á
218 HAMLET

morte de meu pae deante de meu tio ; observarei


os seus olhares, tentearei a chaga até o vivo ; se
elle se perturbar, já sei o que hei de fazer. O es-
pirito, que vi, pode ser um demonio, porque o de-
monio possue a faculdade de se revestir de uma
forma agradavel. Sim ... e talvez pela minha fra-
queza e melancholia, abuse de mim para perder-me
(pois tem alta influencia nos animos como eu). Ca-
reço de provas mais convincentes ( 14) do que esta.
A peça é o meio de saltear a consciencia do rei .
Sahe.
ACTO III

SCENA PRIMEIRA

UMA SALA NO CASTELLO


Entram REI, RAINHA, POLONIO, OPHELIA,
ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN

REI
E encaminhando convenientemente a conversação
não podeis arrancar-lhe o motivo da perturbação
d'animo, que afflige tão cruelmente o repouso dos
seus dias com uma doidice turbulenta e perigosa ?

ROSENCRANTZ
Elle confessa que se sente perturbado de juizo,
mas por nenhuma fórma diz a causa.
220 HAMLET

GUILDENSTERN

Nem o achámos propenso a deixar-se observar;


pelo contrario, com uma loucura manhosa fugia sem-
pre que procuravamos induzil-o a alguma confissão
do seu verdadeiro estado.

RAINHA
Recebeu-os bem?

ROSENCRANTZ
Como perfeito cavalheiro.

GUILDENSTERN
Mas contrafazendo-se bastante.

ROSENCRANTZ

Sobrio de perguntas, porém muito franco em res-


ponder ao que lhe perguntavamos.

RAINHA
Não o desafiastes para algum passatempo ?

ROSENCRANTZ
Succedeu que encontrámos no caminho uns cer-
tos comicos ; fallámos-lhe n'isso, e pareceu-nos que
elle, quando o ouvio, experimentou uma alegria tal
ou qual . Os comicos estão ahi, n'alguma parte do
ACTO III, SCENA I 221

palacio ; e , segundo creio, já teem ordem de repre-


sentar esta noite deante de Hamlet.

POLONIO

É verdade ; e elle pedio-me que convidasse a Vos-


sas Magestades para verem e ouvirem a peça.

REI

De todo o meu coração ; alegra-me muito saber


que Hamlet está disposto para esse divertimento.
Senhores, aguçae-lhe a vontade um pouco mais, di-
rigi-lhe o pensamento para distracções d'este genero .

ROSENCRANTZ
Havemos de fazel- o , meu senhor.
Sahem Rosencrantz e Guildenstern.

REI

Amada Gertrudes, deixa-nos tambem ; mandámos


com todo o segredo chamar Hamlet para encontrar-
se aqui rosto a rosto com Ophelia, como se fosse
por accaso. Eu e Polonio, espiões legitimos , col-
locar-nos-hemos de fórma que, vendo sem sermos
vistos, possamos ajuizar com segurança do encontró,
e segundo a maneira como Hamlet proceder, concluir
se o que o faz padecer tanto, é ou não a angustia
do amor.
222 HAMLET

RAINHA

Obedeço-vos ; e por minha parte, Ophelia, desejo


muito que sejam os teus encantos a causa feliz da
loucura de Hamlet. Sendo assim, posso nutrir a es-
perança de que as tuas virtudes o tragam de novo
ao estado ordinario para honra de um e outro.

OPHELIA

Senhora, é isso o que desejo.


Sahe a Rainha.
POLONIO

Ophelia, passeia por aqui. Gracioso senhor, se vos


parece, escondamo-nos. ( A Ophelia) Lê n'este livro,
para que a apparencia de um tal exercicio disfarce
a tua solidão . É uma culpa , que muitas vezes com-
mettemos ... está mais do que provado que com
cara de devoção e ares piedosos adoçamos o pro-
prio demonio ( 1 ) .
REI, aparte

Oh ! É uma grande verdade ! Com que valente


azorrague açoitam estas phrases a minha consciencia !
O rosto da prostituta alindado pelo arrebique não é
mais deforme sob a crosta que o cobre, do que o
meu crime sob a minha palavra pintada e repintada.
Oh ! pesado fardo !
ACTO III, SCENA I 223

POLONIO
Oiço-lhe os passos ; retiremo-nos, senhor.
Sahem o Rei e Polonio.

Entra HAMLET

HAMLET

Ser ou não ser, eis a questão . O que é mais no-


bre para a alma ? Soffrer as pedradas e as settas da
fortuna ultrajosa ? ou tomar armas contra um mar
de tribulações, e, fazendo-lhes rosto , dar-lhes fim ?
Morrer ... dormir ... mais nada. Dizer que por meio
de um somno acabamos com as angustias e com os
mil embates naturaes de que é herdeira a carne, é
um desfecho que se deve ardentemente desejar . Mor-
rer ... dormir ... dormir ! sonhar talvez ! Ah ! Aqui
é que está o embaraço. Pois que sonhos podem
sobrevir n'aquelle somno da morte, depois de nos
termos libertado d'este bulicio mortal ? Eis o que
nos obriga a fazer pausa ; eis a reflexão, de que
procede a calamidade de uma vida tão longa . Com
effeito, quem supportaria os açoites e os escarneos
d'esta epocha ( 2) , a injustiça do oppressor, a contu-
melia do orgulhoso, os tormentos do amor despre-
zado, as dilações da lei, a insolencia do poder, e os
maos tratos que o merito paciente recebe de crea-
turas indignas, podendo com um simples punhal ou-
224 HAMLET

torgar a si mesmo a tranquillidade ? Quem quereria


sopesar o fardo, gemer e suar debaixo de uma vida
pesadissima, se o temor d'alguma coisa depois da
morte - -o desconhecido paiz de cujas raias nenhum
viajante ainda voltou - não enleiasse a vontade, e
não fizesse antes padecer os males que temos , do
que voar para outros que ignoramos ? Assim, a
consciencia torna-nos a todos cobardes ; assim, o
fulgor natural da resolução é amortecido pelo pallido
clarão do pensamento ; e assim, emprezas energicas
e de grande alcance torcem o caminho, e perdem
o nome de acção . Callemo-nos agora ! A formosa
Ophelia ! Nympha, nas tuas orações lembra-te de
todos os meus peccados .

OPHELIA
Meu bom Senhor, como tem Vossa Alteza pas-
sado, ha tantos dias ?
HAMLET

Agradeço-te humildemente ; bem, bem, bem.

OPHELIA

Tenho algumas lembranças vossas, que desejo,


ha muito, restituir-vos ; recebei-as agora, peço-vos.

HAMLET

Não, eu não ; nunca te dei nada.


ACTO III, SCENA I 225

OPHELIA
Meu nobre senhor, sabeis perfeitamente que sim;
e as prendas eram offerecidas com palavras de tão
doce alento, que augmentavam ás coisas o valor . Visto
que perderam o perfume, recebei-as de novo ; porque
para uma alma nobre tornam-se pobres as dadivas
mais ricas, quando quem as deu mostra não ter
affecto. Eil-as, senhor.

HAMLET
Ah ! ah ! és honesta ?

OPHELIA
Meu senhor?
HAMLET
És formosa ?
OPHELIA
Que pretendeis dizer ?

HAMLET

Que, se és honesta e formosa , não deves admit-


tir que a tua honestidade tenha algum trato com a
tua formosura.
OPHELIA
Senhor, póde accaso a formosura ter melhor trato
do que com a honestidade ?
226 HAMLET

HAMLET

Sim , de certo ; porque o poder da formosura con-


verterá a honestidade em alcoviteira, primeiro que
a força da honestidade possa transfigurar a formo-
sura á sua imagem. Isto foi outr'ora um paradoxo,
hoje porém é coisa demonstrada. Houve tempo, em
que te amei.
OPHELIA

Em verdade, senhor, assim m'o fizestes accreditar.

HAMLET

Não me devias ter accreditado ; pois a virtude não


póde enxertar-se tanto no nosso velho tronco, que
nos não fique sempre um resto da antiga origem .
Eu não te amava.
OPHELIA
Ainda fui mais illudida.

HAMLET

Vae para um convento. Para que has de tu ser


mãe de peccadores ? Eu, por mim, sou medianamente
honesto ; comtudo poderia accusar-me de taes coi-
sas, que melhor fôra que minha mãe me não tivesse
dado á luz . Sou muito orgulhoso, vingativo , ambi-
cioso ; com mais peccados á roda de mim do que
pensamentos para manifestal-os, imaginação para lhes
ACTO III, SCENA 1 227

dar fórma, ou tempo de os pôr em pratica. De que


serve que uns entes, como eu, se arrastem entre o
céo e a terra? Somos todos uns perversos consum-
mados ; não creias em nenhum. Vae para um con-
vento. Onde está teu pae ?

OPHELIA
Em casa, meu senhor.

HAMLET
Fechem-lhe bem as portas, para que não faça de
tolo senão em sua propria casa . Adeus.

OPHELIA
Céo piedoso, soccorrei-o !

HAMLET

Se casares, hei de dotar-te com esta praga. Sê


tão casta como o gelo, tão pura como a neve , não
escaparás aos golpes da calumnia. Vae para um
convento ; adeus ! Ou então, se é força que te ca-
ses, casa com um tolo ; os homens de juizo sabem
perfeitamente em que monstros os tornaes. Para
um convento, vae para um convento ; e muito de-
pressa. Adeus.
OPHELIA

Poderes celestiaes, restitui-lhe a razão !


228 HAMLET

HAMLET

Tenho ouvido fallar bastante das vossas pinturas


e arrebiques. Das mãos de Deus recebestes uma
cara, e arranjaes outra. Dançaes, saltitaes, cochi-
chaes, pondes alcunhas ás creaturas de Deus, e fa-
zeis passar a vossa frivolidade por ignorancia. Vae,
basta d'este assumpto ; é o que me deu volta ao
juizo. O que eu te digo é que os casamentos aca-
baram ; os que já estão casados viverão todos, ex-
cepto um ; os outros hão de ficar como estão . Vae
para um convento, vae.

OPHELIA

Oh ! Que levantado espirito cahiu em ruina ! A


perspicacia do cortezão, a lingua do sabio, a es-
pada do soldado, a esperança, a flor d'este formoso
imperio, o espelho da moda, o traslado da elegancia,
o observado de todos os observadores ... tudo per-
dido, completamente perdido ! E eu a mais des-
venturada, a miserrima das mulheres -eu que libei
o mel de seus melodiosos protestos, vejo agora
aquella razão nobre e soberana, aspera e dissonante
como sino falhado ! vejo a belleza, a fórma incom-
paravel da sua florente juventude murchada pela
de mencia ! Ai de mim! Ter- visto o que vi, e ver
o que estou vendo!
ACTO III, SCENA I 229

Entram o REI e POLONIO

REI

Amor ? não é para ahi que pendem os seus affe-


tos ; e o que elle dizia , ainda que lhe faltasse al-
gum nexo, não parecia loucura. N'aquella alma ha
o que quer que seja , que fomenta a melancholia,
e temo que do ovo saia algum perigo . Para evitar
isso, n'uma rapida determinação resolvi que Ham-
let parta para Inglaterra a toda a pressa com o
fim de exigir os nossos tributos em divida. Póde ser
que o mar, a differença dos paizes, a variedade dos
objectos destruam esse o que quer que seja arraigado
no seu coração, e em que o cerebro se debate con-
stantemente, fazendo-o sahir de si. Que vos parece ?

POLONIO
Deve dar bom resultado ; mas eu ainda estou con-
vencido de que a origem e o começo da sua tristeza
provém de um amor não correspondido . Bem, Ophe-
lia ; não precisas de contar-nos o que te disse Ham-
let ; ouvimos tudo . Meu senhor, fazei o que enten-
derdes ; mas, se vos parecer bem, deixae que a rai-
nha, sua mãe , inste com elle a sós depois da repre-
sentação, para que lhe descubra a sua dor. A rainha
que lhe falle com franqueza ; e eu, se o permittirdes,
collocar-me-hei onde oiça a conversação. Se ella não
230 HAMLET

conseguir que o filho se explique, mandae-o para


Inglaterra , ou afastae-o para onde julgardes melhor
na vossa sabedoria.
REI
Assim ha de ser. A loucura dos grandes deve ser
constantemente vigiada.
Sahem .

SCENA 11
UM SALÃO
Entram HAMLET e dois ou tres COMICOS

HAMLET

Peço-te que digas a falla expeditamente, como


pronunciei ; mas se fores declamal-a aos gritos, como
fazem muitos dos nossos actores, eu de bom grado
preferira que um pregoeiro recitasse os meus ver-
sos. Não córtes excessivamente o ar com as mãos,
assim ; mas sê moderado em tudo , pois na torrente,
na tempestade ou - porque melhor digamos — no
torvelino da paixão deves adquirir e guardar um
certo comedimento, que lhe dê suavidade . É coisa ,
que me offende o intimo d'alma, ouvir um robusto
mocetão de grande cabellcira fazer uma paixão em
farrapos, em verdadeiros trapos, quebrar os ouvidos
ACTO III, SCENA II 231

da plateia, que na sua maioria gosta apenas de ala-


rido e inexplicaveis pantomimas . Quem lhe dera com
um chicote , o desalmado mata-moiros ( 3 ) ; isto é ser
mais Herodes do que o proprio Herodes. Evita simi-
lhante coisa, peço-te eu.

PRIMEIRO COMICO
Prometto a Vossa Alteza.

HAMLET
Não queiras tambem dominar-te em excesso;
deixa-te reger pelo teu discernimento ; accommoda
o gesto á palavra e a palavra ao gesto, com o cui-
dado especial de não ultrapassar a modestia da natu-
reza. Tudo o que se fizer além d'isso está fóra do
intento do theatro, cujo fim, tanto na sua origem
como agora, foi e é - digamos assim - fazer espelho
á natureza, mostrar á virtude os seus lineamentos ,
ao vicio a sua propria imagem, e a cada seculo ,
a cada incarnação do tempo a sua fórma , o seu
cunho (4). Pois bem ; se esta pintura ficar além ou
áquem dos limites razoaveis, ainda que faça rir os
ignorantes, só conseguirá entristecer os espectadores
sensatos ; e haveis de convir em que a censura de
um d'estes deve ter mais pezo , do que a de um
theatro cheio dos outros. Ha comicos, que tenho
visto representar -e a quem tenho ouvido tecer lou-
232 HAMLET

vores e louvores fervorosos para não dizer estultos


-ha comicos, que não tendo voz de christãos, nem
figura de christão , de pagão ou sequer de homem ,
por tal fórma se enfatuavam e berravam, que che-
guei a suppor que algum rude jornaleiro da natureza,
tendo querido fazer homens, não os tinha feito bem.
- tão abominavelmente imitavam a humanidade .

PRIMEIRO COMICO
Creio que estamos soffrivelmente emendados
d'esse defeito .
HAMLET
Oh ! emendae-vos de todo . É necessario que os
que fazem papeis de rusticos, digam só o que foi
escripto para elles ; pois alguns ha, que riem para
despertar o riso a um certo numero de especta-
dores estupidos , ainda que n'essa occasião se deva
estar attento a alguma passagem importante da peça.
Isto é baixo, e revela uma detestavel pretenção no
tolo , que o pratíca. Ide apromptar-vos.
Sahem os comicos.

Entram POLONIO, ROSENCRANTZ


e GUILDENSTERN

Então, senhor ? O rei quer assistir a esta obra


prima?
ACTO III, SCENA II 233

POLONIO

E a rainha tambem, e já!

HAMLET

Dizei aos comicos que se aviem.


Sahe Polonio.
E vós ambos quereis tambem ir fazer com que
se despachem ?
AMBOS
Sim, meu senhor.
Sahem Rosencrantz e Guildenstern .

HAMLET
Olá, Horacio !

Entra HORACIO

HORACIO
Eis-me ás vossas ordens, meu bom senhor.

HAMLET
És o mais justo dos homens, com quem tenho
tratado.
HORACIO
Oh! meu caro senhor !
234 HAMLET

HAMLET
Não, não penses que te lisonjeio. Que vantagens
posso esperar de ti, que para te alimentares e ves-
tires não tens outros rendimentos senão as prendas
do teu espirito ? De que serviria lisonjear o pobre ?
Não ; deixemos que as linguas encandiladas lambam
a parvoa magnificencia, e que os gonzos do joelho
se dobrem rapidos onde o lucro póde seguir- se á
adulação. Ouves ? Desde que a minha alma terna
foi senhora da sua escolha e poude fazer distincção
entre os homens, elegeu-te para si, porque tens sido
sempre um homem que soffre tudo, como se nada
soffresse ; um homem que com agradecimento egual
tem recebido os favores e repulsas do destino . Feli-
zes d'aquelles, cuja razão e cujo sangue se acham
tão bem combinados, que não servem de flauta, em
que o dedo da fortuna tire som pelo orificio que
The aprouver ! Apresenta-me o homem, que não seja
escravo das paixões, e hei de trazel-o no fundo do
meu coração ... sim ... no coração do meu coração,
como te trago sempre. Já fallei de mais a este res-
peito. Hoje á noite representa-se uma peça deante
do rei . Uma das scenas aproxima-se das circum-
stancias, que te referi, da morte de meu pae . Peço-
te que, quando vires chegar esse lance, observes
meu tio com a maior penetração da tua alma ; se
o seu occulto delicto não sahir do antro em certa
ACTO III, SCENA II 235

falla, então a sombra, que vimos, era uma sombra


infernal, e as minhas conjecturas são tão negras
como a forja de Vulcano. Observa-o com attenção.
Eu hei de ter os olhos cravados no seu rosto, e
depois reuniremos as nossas opiniões para julgar-
mos conforme o que tivermos visto .

HORACIO

Bem, meu senhor. Se elle me furtar alguma coisa,


em quanto se representar a peça, e escapar á minha
vigilancia, pago eu o furto.

HAMLET

Eil-os que chegam para a representação. Convem


que eu pareça distrahido . Escolhe um logar.
Marcha dinamarqueza . Clarins.

Entram o REI, a RAINHA, POLONIO, OPHELIA,


ROSENCRANTZ, GUILDENSTERN E OUTROS

REI
Como está o nosso sobrinho Hamlet ?

HAMLET
Optimamente, por minha fé ! Vivo da comida do
camaleão : sustento-me do ar, engordo com promes-
sas. Não podieis com tal regimen engordar capões.
236 HAMLET

REI

Não comprehendo a resposta , Hamlet ; essas pa-


lavras não são minhas.

HAMLET

Não, nem minhas tambem agora (5) . ¡A Polonio)


Senhor, não dissestes que tinheis representado uma
vez na universidade?

POLONIO

Representei, senhor, e era tido por bom actor.

HAMLET
Que papel fizestes?

POLONIO

Fiz o papel de Julio Cesar ; fui morto no Capi-


tolio ; Bruto assassinou- me.

HAMLET

Foi uma acção de bruto matar um vitello tão ca-


pital (6). Estão promptos os comicos ?

ROSENCRANTZ

Sim, meu senhor ; esperam as vossas ordens.


ACTO III, SCENA II 237

RAINHA

Vem cá, meu querido Hamlet, senta-te ao pé de


mim .
HAMLET

Não, minha boa mãe ; está aqui um metal mais


attrahente .
POLONIO, ao Rei
Oh! Notaes isto ?

HAMLET, sentando-se aos pés de Ophelia


Posso deitar-me entre os teus joelhos ?

OPHELIA
Não, meu senhor.

HAMLET
Quero dizer : a cabeça no teu regaço ?

OPHELIA
Sim, meu senhor.

HAMLET

Pensas que eu fallava como um rustico (7)?

OPHELIA

Não penso nada, senhor.


238 HAMLET

HAMLET
É um lindo pensamento estar deitado no regaço
de uma donzella (8 ) .

OPHELIA
O quê, senhor?
HAMLET
Nada.
OPHELIA
Estaes contente.
HAMLET
Quem ? eu?
OPHELIA
Sim, meu senhor.

HAMLET
Oh ! Não sou mais do que o teu jogral. Que ha
de fazer um homem senão estar contente ? Vê o ar
satisfeito de minha mãe , e meu pae morreu ha duas
horas.
OPHELIA

Não, meu senhor ; ha duas vezes dois mezes.

HAMLET
Ha tanto ? N'esse caso , vista-se o diabo de preto,
que eu quero trajar-me de martas zibelinas (9) . Oh !
ACTO III, SCENA II 239

céos ! Ha dois mezes que morreu , e ainda não foi


esquecido ! Então póde haver esperança de que a
memoria de um grande homem lhe sobreviva meio
anno . Mas, pela Virgem ! é necessario que elle con-
strua egrejas ; senão, ha de sujeitar-se a que o es-
queçam, como o cavallinho de páo , cujo epitaphio
é sabido :
Ai ! ai ! ai ! ai !
Destino cruel e máo !
Já hoje ninguem se lembra
Do cavallinho de páo ( 10) .
Soam as trompas. Começa a pantomima. Entram um Rei
e uma Rainha, prodigalisando um ao outro muitas
caricias. A Rainha abraca-o, elle abraça a Rainha;
esta ajoelha e faz protestos de amor. O Rei levanta- a,
e encosta a cabeça no hombro da Rainha . Estende-se
depois n'um banco todo coberto de flores. Ella, ven-
do-o a dormir, deixa-o . Então entra um homem,
tira-lhe a coroa, beija-a, deita veneno no ouvido_do
Rei, e sahe. Volta a Rainha; encontra morto o Rei,
e manifesta grande desesperação . O envenenador ap-
parece outra vez com dois ou tres personagens mudos,
e finge chorar com a Rainha. O cadaver e retirado.
O envenenador offerece presentes à Rainha, reques-
tando-a. Ella a principio mostra-se resistente, mas a
final acceita o seu amor.
Sahem.
OPHELIA
Que quer dizer isto, meu senhor?

HAMLET
É uma perversidade occulta ; isto quer dizer :
crime.
240 HAMLET

OPHELIA
Provavelmente a pantomima indica o argumento
da peça .
Entra o PROLOGO

HAMLET
Vamos sabel- o já por este sujeito ; os comicos não
podem guardar segredo ; hão de contar tudo.

OPHELIA
Elle dir-nos-ha o que significava aquella panto-
mima?
HAMLET

Aquella, e qualquer outra que lhe mostres. Não


tenhas tu vergonha de a fazer representar, que elle
não terá de a explicar.

OPHELIA
Sois muito máo ! muito máo ! Eu quero ouvir a
peça.
O PROLOGO
Para nós , para tragedia
Imploramos indulgencia.
Senhores, sêde benevolos,
Ouvi-nos com paciencia.

HAMLET

Isto é um prologo ou a devisa d'um annel ?


ACTO III, SCENA 11 241

OPHELIA
É breve, meu senhor.

HAMLET
Como o amor da mulher. ·

Entram um REI e uma RAINHA

O REI DA PEÇA

As ondas de Neptuno e o globo terreal


Trinta vezes no carro esplendido , abrazado
Tem percorrido o sol ,
E trinta vezes doze o fulgor emprestado
Da lua se estendeu por sobre monte e val,
Como argenteo lençol,
Desde que as nossas mãos, o nosso affecto ardente
Sacrosanto Hymeneu juntou eternamente.

A RAINHA DA PEÇA

Ah ! Se um número egual de vezes sol e lua


Percorressem no ceo de novo a estrada sua ,
Antes que a Deus prouvesse anniquillar, pôr fim
Ao vigor da paixão ! Porém não ... ai de mim ! ...
Ha tempos para cá vivo em medo constante :
Soffres, estás mudado , é triste o teu semblante,
Sem fogo o teu olhar ; porém, querido esposo ,
Pelos receios meus não percas o repouso.
242 HAMLET

Como toda a mulher, se accaso eu amo ou temo,


No susto ou na paixão attinjo logo o extremo .
Sabes de meu affecto a enorme intensidade ;
Pois crê não é menor o medo que me invade .
Quem ama, quem quer bem, de tudo tem pavor ;
Quem receia de tudo, abraza- se em amor.

O REI DA PEÇA
É força que te eu deixe em breve, esposa minha ;
Devo dizer-te adeus ; sinto que se avisinha
A morte. Eu vou morrer ; e tu feliz, querida
Triumpharás a vida,
E quem sabe ?—ouvirás talvez phrases amigas
D'algum terno marido .

A RAINHA DA PEÇA
Oh ! não ! não ! não prosigas.
Não ! que esse amor seria um crime negro e feio !
Que Deos me amaldiçoe, se um dia no meu seio
Novo affecto brotar. Só ama outro consorte
A mulher, que ao primeiro esposo deu a morte.
HAMLET
Isto é absintho !

A RAINHA DA PEÇA
O sordido interesse, o vicio, a indignidade,
Porém nunca a paixão honesta persuade ,
ACTO III, SCENA II 243

Nem manda contrahir segundo casamento.


Mato outra vez sem dó, córto de novo o alento
Ao meu senhor primeiro, ao de minh'alma eleito ,
Quando segundo esposo abraço no meu leito.

O REI DA PEÇA

Accredito, mulher, que a tua phrase é pura,


Que exprime o teu sentir ; porém o labio jura,
E , passado um momento ,
Vamos por nossas mãos quebrar o juramento.
Escrava da memoria a tenção , que se faz,
É robusta ao nascer, porém pouco vivaz .
Bem como o verde fructo, adhere hoje ao arbusto ,
E, maduro ámanhã, tomba no chão sem custo .
No mundo é lei fatal que toda a gente esqueça
De pagar o que deva a si , e que a promessa
No auge da paixão formulada a si mesmo,
Quando cessa o furor, seja lançada a êsmo.
Gasta-se breve a dor que é por extremo forte ;
Do jubilo o transporte
O proprio intento seu destroe, mata, anniquilla ;
Quando o prazer mais ri, mais pranto a dor estila ;
Alegra-se a tristeza , entristece a alegria
Por qualquer accidente . A vida é só um dia ;
É pois coisa vulgar
Que mudemos d'amor, quando a sorte mudar.
Dos homens na sciencia existe uma lacuna :
244 HAMLET

Decidir qual governa - o amor ou a fortuna ?


Se um poderoso cahe, desapparece a falsa
Turba, que rodeava ; e se um pobre se exalça ,
Transmudar-se vê logo em multidão d'amigos
Os feros inimigos .
Até hoje a fortuna é quem tem dado a lei ;
Mas, - para rematar onde principiei, -
A vontade e o destino em tal opposição
Costumam caminhar , que sem execução
Mallogram-se apesar de esforços sobrehumanos
Todos os nossos planos .
O proposito é nosso, é nossa a ideia , sim ;
Porém já não é nosso o resultado , o fim .
Tu julgas não querer casar segunda vez,
Cuidas sempre chorar a tua viuvez ;
Mas esse pensamento ha de cahir no olvido
No dia, em que morrer teu primeiro marido .

A RAINHA DA PEÇA
Não mais permitta o céo que eu possa ver a luz !
Prive-me a terra-mãe dos fructos, que produz !
Para longe de mim fuja todo o prazer!
Abandonada e só arraste o meu viver
Em constante penar, em martyrio cruel !
O deleite maior amargue como fel !
N'este, e lá n'outro mundo eu seja castigada ,
Se, viuva uma vez, tornar a ser casada !
ACTO III, SCENA II 245

HAMLET, a Ophelia.

Se ella agora quebrasse o juramento !

O REI DA PEÇA

Solemne juramento ! Amada esposa, sáe,


Deixa-me ficar só por um instante , vae ;
O espirito abatido, e o debil corpo meu
Hão mister descançar nos braços de Morpheu.
Adormece.
A RAINHA DA PEÇA

Dorme um tranquillo somno, esposo meu dilecto ,


E nunca se perturbe a paz do nosso affecto .
Sahe.
HAMLET

Então , senhora que tal achaes a peça?

RAINHA

Parece-me que a rainha faz protestos de mais.

HAMLET

Sim, mas ha de cumprir a sua palavra.

REI
Conheceis o enredo ? Não tem nada de offensivo ?
246 HAMLET

HAMLET

Nada, absolutamente nada ; é tudo brincadeira ;


ha um envenenamento, mas é para rir ; não ha
nada mais inoffensivo no mundo .

REI

Como se chama a peça ?

HAMLET

Ratoeira. Como ? direis vós. Em sentido metapho -


rico . Esta peça é a representação de um assassinio
perpetrado em Vienna. Gonzaga é o nome do du-
que ; Baptista o da mulher. Ides ver. Como obra de
perversidade é um primor ; mas isso que importa ?
Vossa Magestade e eu, que temos consciencias so-
cegadas, não devemos encommodar-nos . Dê pinotes
o sendeiro a quem isso esfola ; a nossa espinha não
está ferida.
Entra LUCIANO

HAMLET

Este agora é um certo Luciano, sobrinho do rei.

OPHELIA

Substituis perfeitamente um côro, meu senhor.


ACTO III, SCENA II 247

HAMLET

Eu era capaz de explicar o que se passa entre


tie o teu amante, se visse mexer os dois titeres.

OPHELIA
Estaes muito afiado de espirito, senhor, estaes
muito afiado.
HAMLET

Bastava um suspiro teu para embotar- me a


ponta.
OPHELIA
De melhor a peior ( 11).

HAMLET

É assim que escolheis os vossos maridos ( 12 ) .


Principia,, assassino ! Deixa-te d'essas malditas ca-
retas, principia ! Vamos !
« O corro a crocitar pede vingança ! »

LUCIANO

U pensamento negro, activa e prompta a mão,


A peçonha mortal, de molde a occasião ,
O logar ermo e só ! Tudo o que me rodeia
Conspira em meu favor, protege a minha ideia !
Malefica poção por Hecate extrahida
Á noite d'uma planta infecta , emmurchecida !
248 HAMLET

Anda, veneno meu, mostra quanto és possante ,


Mata saude e vida, aqui, n'um mesmo instante !
Deita veneno no ouvido do rei adormecido .

HAMLET
Envenena-o no jardim para usurpar-lhe os esta-
dos. O seu nome é Gonzaga. A historia é verda--
deira, está escripta em castiço italiano . Ides já ver
como o assassino conquista o amor da mulher de
Gonzaga.
OPHELIA
O rei levanta-se !

HAMLET

O quê ? Com medo d'um fogo fatuo ?

RAINHA
O que tendes , senhor ?

POLONIO
Suspendei a peça.

REI
Tragam luzes ! Saiamos !

TODOS
Luzes! luzes ! luzes !
Sahem todos, ficando só Hamlet e Horacio.
ACTO III, SCENA II 249

HAMLET

O veado ferido corre e chora,


O illeso gamo tem prazer jucundo !
Dormem uns, outros velam na mesma hora.
Eis como passa a vida n'este mundo.

Não achas que (se a fortuna viesse a tratar-me


como turco a mouro) bastava uma scena egual a
esta, com uma floresta de pennas na cabeça e duas
rosas provençaes nos sapatos, para entrar como
companheiro n'uma matilha de comicos ( 13)?

HORACIO

Com meio quinhão .

HAMLET

Com um quinhão inteiro ( 14) .

N'este reino, que foi do proprio Jove,


Hoje domina a escoria, o vil enxurro,
Pois tu sabes, Damão, que elle se move
Á vontade d'um grande... um grande... pavão ( 15) .

HORACIO

Podieis ter rimado.


250 HAMLET

HAMLET

Ah! meu bom Horacio ! Aposto mil libras que o


espectro fallou verdade. Notaste ?

HORACIO
Muito bem, meu senhor.

HAMLET
Quando se tratou de envenenamento?...

HORACIO
Notei perfeitamente .

HAMLET
Ah ! ah ! Um pouco de musica . Venham as cha-
ramelas !

Pois se o rei da comedia não gostou,


Ora adeus ! é porque não lhe agradou.

Vamos ! um pouco de musica !

Entram ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN

GUILDENSTERN
Meu bom senhor, permitti que vos diga uma
palavra.
ACTO III, SCENA II 251

HAMLET
Uma historia inteira.

GUILDENSTERN
O rei, senhor...
HAMLET
O que lhe succedeu ?

GUILDENSTERN
Retirou-se aos seus aposentos, muito torvado.

HAMLET
Pela bebida ?

GUILDENSTERN
Não, meu senhor ; pela colera.

HAMLET
Andarieis melhor avisado participando isso ao
medico ; porque se eu intentasse purgal- o , talvez lhe
augmentasse a colera.

GUILDENSTERN
Senhor, ordenae as vossas respostas ; não salteis
assim fóra do meu assumpto .

HAMLET
Eis-me sereno, senhor ; dizei.
8*
252 HAMLET

GUILDENSTERN

A rainha, vossa mãe, na maior angustia e afflic-


ção, enviou -me á vossa presença .

HAMLET
Bemvindo sejaes.

GUILDENSTERN
Não, meu senhor ; esses requintes de cortezia
não são de boa lei. Se quereis dar-me uma res-
posta sã, cumprirei as ordens de vossa mãe ; sc
não, ponho fim ao meu encargo pedindo-vos li-
cença e retirando -me.

HAMLET
Senhor , não posso .

GUILDENSTERN
O quê, meu senhor ?

HAMLET

Dar-vos uma resposta sã ; tenho o juizo doente.


Mas a resposta, tal qual posso dar-vos, está ás
vossas ordens, ou antes como dizeis- está ás
ordens de minha mãe. Por consequencia, sem mais
delongas, passemos ao assumpto. Minha mãe diz ...
ACTO III, SCENA II 253

ROSENCRANTZ
Que o vosso procedimento causou-lhe estranheza
e maravilha.
HAMLET
Ó portentoso filho, que assim póde maravilhar
sua mãe ! Mas a esse espanto de mãe não se
segue alguma coisa ? Fallae .

ROSENCRANTZ

Deseja conversar comvosco no seu gabinete, an


tes de vos deitardes.

HAMLET
Obedeceremos ... Ainda que ella fosse dez vezes
nossa mãe. Tendes mais algum negocio a tratar
comnosco ?
ROSENCRANTZ

Senhor, houve tempo em que ereis meu amigo .

HAMLET

E ainda o sou, por estas duas mãos ( 16) .

ROSENCRANTZ

Meu bom senhor, qual é a causa da vossa en-


fermidade ? Occultando ao amigo as dores, que vos
affligem, fechaes a porta á vossa propria libertação.
254 HAMLET

HAMLET

Senhor, falta-me ser promovido.

ROSENCRANTZ

Como pode ser isso , quando tendes o voto do


proprio rei para lhe succederdes no throno de Di-
namarca ?
HAMLET

Sim ; mas « em quanto a herva cresce . …… » o pro-


verbio já está um pouco bolorento ( 17) .
Entram os COMICOS e tocadores de charamela.
Oh ! Charamelas ! Vejamos uma .
A Rosencrantz e Guildenstern, que lhe fazem signaes.
Que me retire comvosco ? Para que pretendeis
desviar-me do meu caminho, como se quizesseis
lançar-me n'um laço ?

GUILDENSTERN

Oh ! meu senhor ! Se o meu dever para com o


rei torna-me excessivamente ousado , a amizade que
vos consagro, é que me torna importuno.

HAMLET

Não comprehendo isso bem. Quereis tocar n'esta


charamela?
ACTO III, SCENA 11 255

GUILDENSTERN

Não me é possivel, meu senho ..

HAMLET
Peço eu.
GUILDENSTERN

Accreditae-me ; não posso.

HAMLET
Supplico.
GUILDENSTERN
Não sei como se toca esse instrumento, meu
senhor.
HAMLET
É tão facil como mentir. Ponde os dedos e o
pollegar sobre estes orificios ; soprae no instrumento
com a bocca, e elle emittirá a mais eloquente mu-
sica. Aqui tendes, os orificios são estes .

GUILDENSTERN
Mas não os posso obrigar a emittir nenhuma
sorte de harmonia ; não possuo essa arte.

HAMLET

Ora vede que coisa tão ignobil me julgaes ! Que-


rieis tirar som de dentro de mim ; querieis affectar
256 HAMLET

conhecer-me a fundo ; querieis arrancar a alma do


meu segredo ; querieis fazer vibrar desde a nota
mais baixa até ao maior agudo da minha escala, c
todavia não sois capaz de fazer fallar este pequeno
tubo, dentro do qual ha tanta musica e tão excel-
lente voz. Accreditaes por accaso, que é mais facil
tanger o meu peito do que uma charamela ? Dae-me
o nome do instrumento que quizerdes, moei-me á
vossa vontade, que nunca chegareis a tirar som.

Entra POLONIO

Deus vos abençoe, senhor.

POLONIO
Meu senhor, a rainha pretende fallar-vos, e já !

HAMLET

Vêdes aquella nuvem, que tem quasi a fórma de


um camello?
POLONIO
Pela santa missa ! Parece um camello, com
effeito.
HAMLET
Parece-me que é tal qual uma doninha.

POLONIO
Tem as costas como uma doninha.
ACTO III, SCENA II 257

HAMLET
Ou como uma baleia?

POLONIO
É exactamente uma baleia.

HAMLET

Bem, vou já ter com minha mãe . Tanto me


obrigam a fazer de doido, que hão de endoide-
cer-me devéras. Vou já , já .

POLONIO
Dir-lh'o-hei.
Polonio sahe.
HAMLET

Já, já, é facil dizer. Amigos, deixae-me só.


Sahem Rosencrantz, Guildenstern, Horacio, etc.
É esta a hora da noite mais propicia aos sor-
tilegios ; hora em que se abrem os tumulos, e o
proprio inferno vapora o contagio sobre o mundo.
N'este momento eu até era capaz de beber sangue
quente, e praticar acções tão amargas, que o dia
havia de tremer ao contemplal- as. Devagar ; vamos
ter com minha mãe ! Não percas a tua natureza,
coração ! Não deixes entrar a alma de Nero dentro
d'esse peito firme. Sejamos cruel, desnaturado não ;
a minha bocca vibrará punhaes ; porém as mãos hão
258 HAMLET

de estar nuas , desarmadas. Minha lingua e minha


alma, sêde hypocritas n'isto : por mais injurias e
ameaças que trovejem as palavras, nunca permittas,
alma, que sejam postas em execução !

SCENA III

UM QUARTO NO PALACIO
Entram o REI, ROSENCRANTZ
e GUILDENSTERN

REI

Não gosto d'elle, e alem d'isso, não estamos se-


guros, deixando em liberdade a sua doidice . Prepa-
rae-vos pois ; vou immediatamente expedir os vossos
despachos, e elle partirá comvosco para Inglaterra.
O interesse do nosso imperio não se compadece
com as perigosas eventualidades, que a cada mo-
mento podem surgir dos seus ataques de loucura.

GUILDENSTERN
Vamos apromptar-nos para partir. É sacratissima
e religiosissima a sollicitude, com que velaes pela
segurança de tantos e tantos corpos, que vivem e
se nutrem da vida de Vossa Magestade ( 18).
ACTO III, SCENA III 259

ROSENCRANTZ

Uma vida isolada, e particular tem obrigação de


preservar-se da desgraça com toda a força e todas
as armas do seu espirito ; porém tem obrigação
ainda muito maior uma vida, de cuja segurança
pendem as vidas de muitos outros. Um rei não
morre só ; mas, como abysmo , arrasta comsigo ,
attrahe o que lhe fica proximo . É uma roda co-
lossal, fixada no pincaro do monte mais elevado , em
cujos raios enormes estão cravadas, annexas dez
mil coisas de somenos importancia ; quando cahe,
todos os pequenos accessorios, todas essas mesqui-
nhas dependencias acompanham a ruidosa destrui-
ção . O rei nunca suspirou , sem que houvesse um
gemido universal.
REI

Peço-vos que vos aprompteis para esta viagem


precipitada ; queremos pôr cadeias a este terror,
que vae andando agora com o passo muito livre .

AMBOS

Vamos apromptar-nos depressa.


Sahem Rosencrantz e Guildenstern.

Entra POLONIO
260 HAMLET

POLONIO

Senhor, elle dirige-se para o gabinete da mãe ; col-


locar-me-hei atraz do reposteiro para ouvir a con-
versação. Asseguro -vos que a rainha vae reprehen-
del-o asperamente ; mas, como dissestes (e com
grande prudencia o dissestes) convem que um outro
ouvinte além da mãe (por isso que a natureza torna
parciaes as mães) escute o colloquio ás escondidas.
Adeus, meu suzerano. Antes de vos deitardes, irei
procurar-vos, e referir o que souber.

REI

Obrigado, meu caro senhor.


Polonio sahe.

Oh ! o meu crime é putrido ; chega a empestar


o ceo. Traz comsigo a primeira, a mais antiga mal-
dicção - o fratricidio ! ... Não posso rezar, ainda que
seja tão vivo o meu desejo como a necessidade de o
fazer ; o crime, por ser mais forte, leva de vencida a
forte resolução, e, como homem adstricto a dois de-
veres, fico perplexo não sabendo por onde principie,
e desprezo ambos. Pois quê ? Se o sangue fraterno
tornasse esta maldita mão mais espessa do que em
realidade é , não haveria no ceo piedoso chuva bas-
tante que a alvejasse como branca neve ? Para que
ACTO III, SCENA III 261

serve a misericordia senão para fazer rosto ao cri-


me ? E o que ha na reza senão esta dupla força -
suster-nos antes de cahirmos, ou perdoar-nos quando
já estamos em baixo ? Portanto alevantarei os olhos ;
a minha culpa já lá vae ... Oh ! mas que fórma
de oração convém á minha causa ? ... « Perdoae o
meu hediondo assassinio ? ...» Esta fórma não póde
ser, porque ainda estou na posse dos objectos, pelos
quaes perpetrei o homicidio - a minha coroa, a mi-
nha propria ambição , a minha rainha . Póde alguem
ser perdoado, sem reparar a offensa ? No inficio-
nado curso d'este mundo a mão doirada do crime
póde desencaminhar a justiça, e não raro se tem
visto comprar a lei com o proprio ganho crimi-
noso ; mas lá em cima não succede o mesmo . Lá
não ha sophysmas, lá a acção manifesta-se em
toda a verdade da sua natureza, e nós mesmos so-
mos compellidos a evidenciar-nos e a depôr ante o
rosto descoberto das nossas culpas. N'esse caso, o
que me resta ? Experimentar o que pode o arrepen-
dimento ? O que não poderá elle ? E todavia o que
pode, quando um homem se não pode arrepender ?
Ó deploravel situação ! Ó consciencia, negra como
a morte ! Ó alma enviscada, que quanto mais tra-
balhas por soltar-te , mais e mais te prendes ! An-
jos, esforçae-vos por soccorrer-me ! Dobrae-vos, joe-
lhos inflexiveis ! e tu, meu coração com fibras d'aço,
262 HAMLET

torna-te brando, tenro , como os nervos de creança


recem- nascida ! Tudo se pode remediar.
Ajoelha..
Entra HAMLET

HAMLET, aparte
Posso agora effeituar a obra ; está rezando ; e
agora
* devo executar ... Então vae elle para o ceo ...
e eu fico assim vingado ? Eis o que é preciso pon-
derar. Um villão mata meu pae ; e, por esse facto ,
eu -seu filho unico - envio para o ceo o mesmo
villão. Ah ! isso é uma recompensa, uma paga, não
uma vingança. Surprehendeu meu pae brutalmente,
cheio de pão ( 19) quando todos os seus delictos es-
tavam amplamente desabrochados, tão viçosos como
o mez de maio ... E quem sabe , senão Deus , as con-
tas que elle ha de prestar? Mas segundo a minha opi-
nião e as minhas conjecturas, a carga deve ser pesada.
E fico eu vingado surprehendendo este na occasião
de purificar a sua alma , quando está apercebido , e na
sazão propria para a viagem (20)? Não ! Alto, minha
espada ! Medita n'um golpe mais terrivel . Quando
elle estiver bebedo, a dormir, ou tomado de colera,
ou nos prazeres incestuosos do seu leito , jogando,
jurando, ou a ponto de praticar um acto, que não
tenha o mais leve sabor de salvação , então derru-
ba-o de forma que os seus calcanhares escoicinhem
ACTO III, SCENA IV 263

o ceo, e que a sua alma seja tão condemnada e tão


negra, como o inferno para onde vae. Minha mãe
está esperando. (Voltando-se para o rei) Este calmante
apenas prolonga os teus dias enfermos.
Sahe. O Rei levanta-se.

REI

As minhas palavras voam para o alto, os pen-


samentos não sahem da terra . Palavras sem pensa-
mentos nunca chegam ao ceo .
Sahe.

SCENA IV

O GABINETE DA RAINHA
Entram RAINHA e POLONIO

POLONIO

Elle vem já. Não vos esqueçaes de o reprehen-


der asperamente. Dizei-lhe que os seus desmandos
foram demasiado longe para serem supportados, e
que Vossa Majestade se collocou entre elle e uma
ardente colera . Ficarei aqui mesmo sem dizer nada.
Peço-vos que lhe falleis sem rodeios .

HAMLET, dentro
Mãe ! mãe ! mãe !
9
264 HAMLET

RAINHA
Asseguro-vos que fallo ; não duvideis de mim.
Retirae-vos ; elle ahi vem, já o oiço .
Polonio esconde-se.

Entra HAMLET

HAMLET
O que pretendeis, minha mãe?

RAINHA
Hamlet, fizeste grave offensa a teu pae.

HAMLET
Mãe, fizestes grave offensa a meu pae.

RAINHA

Vamos, vamos ; respondes com uma lingua in-


solente .
HAMLET

Vamos, vamos ; interrogaes com uma lingua cul-


pada.
RAINHA
Que quer isso dizer, Hamlet ?

HAMLET
Que quereis dizer?
ACTO III, SCENA IV 265

RAINHA

Esqueceste-te de quem sou ?

HAMLET
Pela santa cruz , não de certo ! Sois a rainha,
mulher do irmão de vosso marido , e- prouvera a
Deus que assim não fôra ! -sois minha mãe.

RAINHA
Visto isso, vou mandar quem possa fallar com-
tigo.
HAMLET
Então, então , sentae-vos ; não haveis de fallar
nem mover-vos ; não sahireis d'aqui, sem que vos eu
tenha apresentado um espelho, em que vejaes o in-
timo de vós mesma.
RAINHA

Que pretendes fazer ? Queres por ventura assas-


sinar-me? Soccorro ! soccorro ! soccorro !

POLONIO, dentro
Olá ! soccorro ! soccorro !

HAMLET
Que é isto? Um rato?
Atravessa o reposteiro com a espada.
Morto ! Aposto um ducado que está morto !
266 HAMLET

POLONIO , dentro
Oh! Estou assassinado !
Cahe e morre.
RAINHA

Ai de mim! O que fizeste ?

HAMLET
Não sei, por minha fé. Seria o iei?
Levanta o reposteiro, e arrasta o corpo de Polonio .

RAINHA

Oh ! que acção louca e sanguinaria !

HAMLET
Sanguinaria acção ! Quasi tão cruel, minha boa
mãe, como matar um rei e casar com o irmão.

RAINHA
Matar um rei ?
HAMLET

Sim, minha senhora, foi a minha phrase. (A Polonio)


Tolo, miseravel, entremettido nescio, adeus ! Tomei-
te por alguem melhor que tu ; soffre o teu destino ;
já sabes que ser zeloso de mais tem seu perigo .
(Á máe) Basta de torcer as mãos . Sentae-vos, e nem
palavra ! Vou torcer-vos o coração ... sim, hei de
torcel- o, se por ventura é feito de um estofo pene-
ACTO III, SCENA IV 267

travel, se o habito damnado de peccar não o bron-


zeou a ponto de ficar á prova e ao abrigo de toda
a sensação .
RAINHA
Que pratiquei eu para que ouses soltar a lingua
em tão rudes clamores contra mim?

HAMLET

Uma acção que desbota o rubor e a graça da


modestia ; chama á virtude hypocrisia ; arranca da
formosa fronte de um amor innocente a rosa pura
e casta, e planta em seu logar uma pustula ; torna
os votos do casamento falsos como juramentos de
jogador ! Oh ! uma acção tal, que do corpo do con-
tracto extirpa a propria alma, e transmuda a doce
religião n'uma rhapsodia de palavras ! A face do ceo
enrubesce; e a terra, -esta massa compacta e SO-
lida, com tristonho rosto como se estivesse pro-
ximo o dia de juizo, adoece de pensar em, simi-
lhante acção .
RAINHA

Ai ! que acção é essa , que ruge tão alto, e se


annuncia trovejando?

HAMLET

Olhae para este quadro, e para est'outro . São os


retratos de dois irmãos. Vêde a graça que se der-
268 HAMLET

rama n'aquella fronte : a ondeada cabelladura de


Hyperion ; o rosto do proprio Jove ; o olhar, como
o de Marte, rasgado para o commando e para a
ameaça ; a postura similhante á do arauto Mercurio
acabando de poisar n'um outeiro que beija o ceo ;
é na verdade um conjuncto e uma fórma, em que
parece haver cada um dos deuses posto o sello
para dar ao mundo a certeza de ver um homem.
Esse tal foi vosso marido. Attentae agora no que
se segue : é vosso esposo : dir-se-hia uma espiga
enferrujada, que destroe o florescente irmão . Ten-
des olhos? E pudestes deixar de viver sobre aquella
formosa montanha para vir chafurdar n'este pan-
tano ? Ah ! tendes olhos ? Não podeis chamar a
isto amor, porque na vossa edade os alvoroços
do sangue reprimem-se, tornam-se humildes, obe-
decem ao juizo. E que ente capaz de juizo saltaria
d'este para aquelle ? Tendes com certeza a facul-
dade de sentir ; de outro modo não serieis dotada
de movimento ; mas essa faculdade está sem duvida
enferma d'apoplexia , porque a propria loucura não
erraria tanto, nem a sensação seria jámais tão avas-
sallada pelo delirio, que lhe não sobrasse a quan-
tidade de criterio bastante para avaliar tamanha
differença . Que demonio vos logrou assim n'este
jogo de cabra-cega ? Os olhos sem o tacto, o tacto
sem a vista, os ouvidos sem as mãos nem os olhos,
ACTO III, SCENA IV 269

o olfacto sem mais nada, ou apenas uma parte


doente de um só dos nossos verdadeiros sentidos
não se embruteceria a esse ponto . Ó vergonha, onde
está o teu rubor? Rebelde inferno, se podes revol-
tar-te nos ossos de uma velha matrona , então seja a
virtude como cera para a ardente mocidade , e der-
reta-se no seu proprio fogo ! Não se proclame a ver-
gonha d'aquelle que se deixa arrastar pelo ardor
tyrannico da edade, uma vez que até o gelo se
abraza , e a razão serve de alcoviteira ao desejo.

RAINHA

Oh ! Hamlet ! não digas mais. Fazes-me volver


os olhos para o fundo da minha alma, e descubro
lá manchas tão negras, tão inveteradas, que nunca
mais hão de perder a côr.

HAMLET

E tudo para viver no infecto suor d'um leito


incestuoso, ferver na corrupção, dando beijos melli-
fluos, recebendo-os sobre uma esterqueira immunda !

RAINHA
Oh ! não continues ! Essas palavras entram-me
nos ouvidos como punhaes. Basta, querido Hamlet,
basta!
270 HAMLET

HAMLET
Um assassino e um scelerado ! um biltre, que
não vale a vigesima parte de um decimo do vosso
primeiro senhor ! um rei de farça ! um gatuno do
Estado e da lei , que roubou de cima d'uma estante
um precioso diadema, e metteu-o na algibeira !

RAINHA
Basta !
Entra a SOMBRA

HAMLET
Um rei de andrajos e farrapos ! .... Salvae-me,
guardas celestiaes ! adejae sobre mim com as vos-
sas azas ! (A sombra.) Que pretendeis, graciosa appa-
rição?
RAINHA
Ah! está doido !
HAMLET

Vieste por ventura reprehender o filho negli-


gente, que deixando passar o tempo e a paixão,
differe a execução importante do teu horrivel man-
dado ? Oh! dize !
SOMBRA

Não te esqueças. O unico fim d'esta minha appari-


ção é afiar o teu proposito quasi embotado . Porém,
olha ! tua mãe está tomada de assombro ; colloca-te
ACTO III, SCENA IV 271

entre ella e a sua alma , que n'este momento lutam.


Nos corpos mais fracos a imaginação actua com
mais força. Falla- lhe, Hamlet .

HAMLET
Que tendes, senhora ?

RAINHA

Ah! que tens tu, que fitas o olhar no vago , e


conversas com o ar incorporeo? A tua alma con-
centra-se toda nos teus olhos, d'onde espreita com
medo ; e á similhança dos soldados acordando ao
grito de alarma, os teus cabellos deitados erguem-se
do leito, como se tivessem vida, e eriçam-se na tua
cabeça ! Ó querido filho, derrama o orvalho fresco
da paciencia por sobre o fogo e a chamma do teu
delirio. Para onde olhas ?

HAMLET

Para elle ! para elle ! Vêde como reluz tão pal-


lido ! A sua fórma e o seu infortunio reunidos, se
fallassem ás pedras, eram capazes de as tornar sen-
siveis. (Ả Sombra) Não craves em mim os olhos, para
que o teu aspecto lamentavel não altere o rigor dos
meus actos. A acção, que devo executar , perde-
ria a verdadeira côr ; em vez de sangue, talvez la-
grimas.
272 HAMLET

RAINHA

A quem estás dizendo isso ?

HAMLET

Não vedes nada aqui ?

RAINHA

Absolutamente nada ; e , não obstante, vejo tudo


o que aqui está .
HAMLET

Não ouvistes nada ?

RAINHA

Nada, senão a nós mesmos.

HAMLET

Pois bem ; olhae para alli. Vêde como sahe fur-


tivamente ! Meu pae, trajando como em vida ! Vêde ;
lá vae elle, agora.... agora mesmo .... a sahir a
porta !
Sahe a sombra.
RAINHA

É imaginação tua. O delirio tem a grande facul-


dade de gerar essas creações incorporeas.
ACTO III, SCENA IV 273

HAMLET

Delirio! O meu pulso bate socegadamente como


o vosso, e tange a mesma musica de saude . Não
é loucura o que eu disse ; ponde-me á prova, e re-
petirei tudo palavra por palavra ; a loucura fu-
giria aos pulos . Mãe, por amor da salvação , não
derrameis sobre a vossa alma o balsamo enganador
de que não é o vosso crime, e sim a minha loucura
quem falla ; isso apenas serve para cobrir com uma
tenue pellicula o logar da ulcera, em quanto a gan-
grena sem ser vista, minando por baixo, inficiona
tudo. Confessae-vos ao ceo ; arrependei-vos do que
lá vae ; guardae-vos do que está para vir ; não dei-
teis estrume sobre a herva damninha, que se torna
mais vigorosa. Perdoae a minha virtude ; pois n'esta
epocha, offegante de gorda sensualidade, é neces-
sario que a virtude peça perdão ao vicio, e suppli-
que de joelhos licença para lhe fazer bem.

RAINHA

Oh ! Hamlet ! partiste-me o coração em dois.

HAMLET

Deitae fóra a parte peior, e vivei mais pura com


a outra metade. Boa noite ; mas não ide para o leito
de meu tio ; se não tendes virtude, affectae-a . O. ha-
274 HAMLET

bito, esse monstro que devora todo o sentimento e


que de ordinario é demonio , é todavia anjo n'uma
coisa para a pratica das acções boas e formosas
dá-nos tambem um trajo , uma libré, que é facil de
vestir. Abstende-vos esta noite, e isso facilitará a
proxima abstinencia ; a seguinte será ainda mais facil,
porque o habito pode quasi mudar o cunho da
natureza, pɔde senhorear o demonio ou expulsal-o
com um poder maravilhoso . Ainda uma vez : boa
noite ! e quando desejardes ser abençoada, então
pedir-vos-hei a benção. (Mostrando Polonio. ) Quanto
áquelle senhor, arrependo-me do que pratiquei ; mas
o ceo assim o quiz - castigal- o por minha interven-
ção, e a mim pór intervenção d'elle-; quiz que eu
fosse a um tempo seu açoite e seu ministro . Encar-
rego-me d'elle , e hei de responder pela morte que
lhe dei. Mais outra vez : boa noite ! Devo ser cruel.
com o fim unico de ser humano. O mal principia
agora ; o peior ainda está para vir. Só uma palavra
mais, senhora .
RAINHA

Que devo eu fazer ?

HAMLET

Nada, por fórma alguma, do que eu vos disse


que fizesseis. Deixae que o rei, impando , vos attraia
ACTO III , SCENA IV 275

novamente para a cama ; deixae que vos bellisque


as faces com ternura, que vos chame a sua rata ;
que por um par de beijos fetidos, ou fazendo-vos
cocegas no pescoço com os seus dedos malvados,
elle vos conduza ao ponto de descobrirdes todo este
negocio que não sou doido devéras mas doido
por artificio. Bom seria que lhe revelasseis tudo ;
pois, que mulher, sendo uma rainha bella, ajuizada
e casta, occultaria informações tão preciosas a um
sapo, a um morcego, a um gato ? Que mulher pro-
cederia assim ? Não, a despeito do juizo e da discre-
ção, abri a gaiola em cima do telhado, deixae voar
os passaros; e á similhança do famoso macaco, met-
tei-vos dentro da gaiola para fazer a experiencia e
quebrae o pescoço na queda.

RAINHA

Fica certo de que, se as palavras são feitas de


sopro, se o sopro é feito de vida, não tenho vida
para soprar o que me disseste.

HAMLET

Devo partir para Inglaterra ; sabeis ?

RAINHA

Ah ! Tinha-me esquecido . É negocio assentado.


276 HAMLET

HAMLET
As cartas estão selladas ; e os meus dois condis-
cipulos em quem me fio tanto como em viboras
peçonhentas - são portadores do mandado ; devem
abrir-me caminho , e fazer-me cahir na cilada. Dei-
xal-os ! É um divertimento fazer ir pelos ares o
engenheiro com o seu proprio petardo . Só se a coisa
for muito difficil, é que eu não hei de cavar uma
jarda abaixo das suas minas, e atirar com elles para
a lua. É o cumulo do prazer que duas ciladas se
encontrem rosto a rosto.
A Polonio.
Este homem faz com que eu principie a arrumar
as trouxas ; vou levar estas entranhas (21 ) para o
quarto proximo. Boa noite, mãe. Na verdade este
conselheiro, que era em vida um tratante, nescio e
linguarudo, está agora muito socegado, muito dis-
creto e muito grave. Acabemos com isto , senhor.
Boa noite, mãe.
Sahe a Rainha por um lado, e pelo outro sahe Hamlet
arrastando o cadaver de Polonio.
ACTO IV

SCENA PRIMEIRA

UMA SALA NO CASTELLO


Entram REI, RAINHA, ROSENCRANTZ
e GUILDENSTERN

REI

Esses gemidos, esses ais profundos teem uma


causa ; deveis explical-a ; é importante que a conhe-
çamos. Onde está vosso filho ?

RAINHA, a Rosencrantz e Guildenstern


Deixae-nos por um momento.
Sahem Rosencrantz e Guildenstern.
Ah ! meu bom senhor ! O que eu vi esta noite !
278 HAMLET

REI
O que foi, Gertrudes ? Como está Hamlet ?

RAINHA

Furioso como o mar e o vento, quando pleiteiam


entre si qual é mais forte. N'um accesso de loucura,
ouvindo mexer alguma coisa atraz do reposteiro , fus-
tiga o ar com a espada, e grita : Um rato ! um rato!
e n'esta perturbação mental mata o bom do velho,
que estava escondido.
REI

Oh ! deploravel acção ! Se eu estivesse lá, ter-me-


hia acontecido outro tanto. A sua liberdade é cheia
de ameaças para todos ; para vós, para mim, para
qualquer. Quem responderá por esse acto sangui-
nario ? Hão de lançar a responsabilidade sobre mim,
cuja previdencia deveria ter sopeado, enfreado, e
posto fóra de toda a companhia aquelle doido ra-
paz ; mas era tão grande o meu affecto, que não
quiz comprehender o que fosse mais acertado, e
procedi como aquelle, que padecendo nojenta en-
fermidade, com o receio de a divulgar, deixa-a cor-
roer até a medulla da vida. Para onde foi elle?

RAINHA

Foi pôr em logar afastado o corpo, que matou .


Praticando esta doidice, a sua alma conserva-se pura,
ACTO IV, SCENA I 279

como o oiro n'um minereo de vís metaes. Elle chora


pelo que fez.
REL
Gertrudes, saiamos ! Apenas o sol tiver tocado.
as montanhas, obrigaremos Hamlet a embarcar. Pre-
cisamos de toda a nossa finura e auctoridade para
disfarçar e desculpar aquella torpe acção. Olá ! Guil-
denstern !

Entram ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN

Amigos, ide buscar quem vos auxilie. Hamlet,


n'um impeto de loucura, matou Polonio, e arras-
tou-o para fóra do gabinete de sua mãe . Ide, pro-
curae-o ; fallae-lhe brando, e trazei o cadaver para
a capella. Aviae-vos, peço- vos.
Sahem Rosencrantz e Guildenstern.
Vamos, Gertrudes. Convocaremos os nossos ami-
gos mais cordatos, e informal-os-hemos d'aquillo,
que tencionamos fazer, e bem assim do que em má
hora se fez. D'este modo a calumnia - cujos mexe-
ricos despedem sobre a superficie do mundo a sua
carga envenenada, tão certeira como o canhão atira
ao alvo - a calumnia talvez erre o nosso nome, e fira
apenas o ar invulneravel. Vamos ! Tenho a alma
cheia de confusão e de terror.
Sahem.
280 HAMLET

SCENA II

UM QUARTO NO CASTELLO
Entra HAMLET

HAMLET
Ficou em logar seguro.

ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN , dentro


Hamlet! Hamlet!

HAMLET

Que ruido é este ? Quem chama por Hamlet ?


Oh! ahi veem elles.

Entram ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN

ROSENCRANTZ
Que fizestes do cadaver, senhor ?

HAMLET
Misturei-o com o pó, de que é parente .

ROSENCRANTZ
Dizei-nos onde está, a fim de que possamos ti-
ral-o, e transportal-o para a capella.
ACTO IV, SCENA II 281

HAMLET
Não accrediteis n'isso .

ROSENCRANTZ

Que não accreditemos em quê?

HAMLET

Em que cu possa guardar o vosso segredo, e não


o meu. Alem de quê, ser interrogado por uma es-
ponja ! O que ha de replicar sobre isso o filho de
um rei?
ROSENCRANTZ

Tomaes-me por uma esponja, senhor?

HAMLET

Sim ; uma esponja que embebe as graças do rei,


os seus favores e auctoridade. A final de contas ,
são esses os empregados, que melhores serviços
prestam ao rei ; elle guarda- os n'um canto da boca
á similhança do que faz o macaco : o primeiro que
entrou é o `ultimo a ser engulido ( 1 ) . Quando o rei
precisa do que chupastes, não tem mais do que ex-
premer-vos, e vós, esponja, ficaes outra vez secco.

ROSENCRANTZ

Não vos comprehendo, senhor.


282 HAMLET

HAMLET

Folgo com isso ; um proposito mao adormece


n'um ouvido tolo .
ROSENCRANTZ
Senhor, deveis dizer-nos onde está o corpo, e
acompanhar-nos á presença do rei .

HAMLET
O corpo está com o rei, mas o rei não está com
o corpo. O rei é uma coisa ...

ROSENCRANTZ
Uma coisa, senhor ?

HAMLET
Uma coisa de nada (2 ). Levae-me á presença
d'elle. Esconde-te raposa, e todos atraz (3) .

SCENA III
OUTRO QUARTO
Entra o REI ·

REI
Ordenei que procurassem Hamlet e descobrissem
o corpo. Como é perigoso que este homem ande á
ACTO IV, SCENA III 283

solta ! E comtudo não podemos applicar-lhe o rigor


da lei ; elle é querido da multidão hallucinada, que
não adora com a razão, mas com os olhos ; e
quando assim é , nunca se peza o crime, mas o cas-
tigo infligido ao criminoso . Para que tudo corra em
paz e em socego, é necessario que este repentino
afastamento pareça filho de uma pausada reflexão .
As doenças desesperadas curam-se com remedios
desesperados, ou não se curam de todo.

Entra ROSENCRANTZ

Então ? o que se passou ?

ROSENCRANTZ
Não fomos capazes de conseguir que nos dis-
sesse onde está o cadaver.

REI
E elle, onde está ?

ROSENCRANTZ

Alli fóra, senhor ; vigiado , esperando as vossas


ordens.
REI
Trazei-o á minha presença.
284 HAMLET .

ROSENCRANTZ

Olá ! Guildenstern ! Acompanha Sua Alteza.

Entram HAMLET e GUILDENSTERN

REI

Então, Hamlet, onde está Polonio?

HAMLET
Está a ceiar.
REI
A ceiar? onde ?
HAMLET

Não onde come ; porém onde é comido. Agora


mesmo está em cima d'elle um congresso de vermes
politicos. O verme é o unico imperador em assum-
ptos de banquete (4) ; nós engordamos todos os ou-
tros animaes para nos engordarmos, e engordamo-
nos a nós mesmos para engordar os vermes. Um
rei gordo e um mendigo magro não são mais do
que duas iguarias differentes ; dois pratos, mas para
a mesma mesa ; n'isto vem a dar tudo.

REI
Ai ! ai!
ACTO IV, SCENA III 285

HAMLET
Um homem pode pescar com o verme, que se
nutrio de um rei, e comer o peixe que se nutrio
d'esse verme .
REI
O que queres dizer com isso ?

HAMLET

Nada ; quero só mostrar como um rei pode fa-


zer uma viagem pelas tripas de um mendigo.

REI
Onde está Polonio?

HAMLET

No ceo ; mandae ver ; se o vosso mensageiro o


não encontrar lá, procurae-o vós mesmo no logar
opposto. Mas, fallando com verdade, se o não en-
contrardes dentro de um mez, haveis de sentir-lhe
o cheiro, quando subirdes a escada da galeria.

REI, aos do sequito


Ide lá procural-o.

HAMLET

Elle espera até a vossa chegada .


Sahem os do sequito.
286 HAMLET

REI

Hamlet, por tua segurança especial, que prézo


tanto quanto deploro a acção que praticaste, urge
que partas d'aqui com a presteza do relampago . Por
consequencia prepara-te ; o navio está prompto, e o
vento é de feição ; os teus companheiros esperam-
te, e tudo está disposto para seguires viagem para
Inglaterra.
HAMLET
Para Inglaterra?

REI
Sim , Hamlet .

HAMLET
Está bem.

REI

Assim poderias dizer, se conhecesses os meus


projectos.
HAMLET

Vejo um cherubim, que os vê. Mas vamos ; para


Inglaterra ! Adeus, querida mãe.

REI
Teu carinhoso pae, Hamlet.
ACTO IV, SCENA 111 287

HAMLET
ZO Minha mãe ; pae e mãe são marido e mulher ;
marido e mulher são uma e a mesma carne ; por
Por conseguinte, minha mãe. Vamos, para Inglaterra !
20 Sahe.
REI
Segui-o de perto ; instigae- o a ir já para bordo.
Nada de dilações ; quero-o d'aqui para fóra esta
noite. Ide ; tudo o que importa a este negocio está
despachado e sellado. Aviae-vos, peço eu .
Sahem Rosencrantz e Guildenstern.
E tu, Inglaterra, se tiveres em algum apreço a
minha amizade -e quanto ella vale ha de dizer-t'o
o meu grande poder, porque está ainda viva e ru-
bra a cicatriz, com que te marcou a espada dina-
marqueza, e porque me tributas homenagem por
um natural impulso de terror - tu , Inglaterra , não
receberás com frieza a minha mensagem soberana
que por meio de instantes cartas exige perempto-
riamente a morte immediata de Hamlet. Faze isso,
porque Hamlet é uma febre , que me abraza o san-
gue, e tu deves curar-me, ó Inglaterra ! Em quanto
eu não souber que foi cumprida esta ordem, não
haverá jubilo na minha alma, por mais que sorria
a fortuna.
Sahe.
9*
288 HAMLET

SCENA IV

UMA PLANICIE NA DINAMARCA


Entra FORTIMBRAZ á frente do exercito

FORTIMBRAZ

Capitão, ide saudar da minha parte o rei da Di-


namarca. Dizei-lhe que em vista do seu consenti-
mento, Fortimbraz requer a promettida passagem
atravez do seu reino . Sabeis onde devemos encon-
trar-nos. Se Sua Majestade quizer de nós alguma
coisa, iremos á sua presença tributar-lhe a nossa
homenagem. Fazei-o sabedor d'isto.

CAPITÃO
Obedecerei, senhor.

FORTIMBRAZ
Continuemos a marcha devagar.
Sahe Fortimbraz e o exercito.

Entram HAMLET, ROSENCRANTZ


e GUILDENSTERN
ACTO IV, SCENA IV 289

HAMLET

A quem pertencem aquellas forças, senhor ?

CAPITÃO
Á Noruega.
HAMLET

Dizei-me : para onde marcham ?

CAPITÃO

Marcham contra um certo ponto da Polonia.

HAMLET

Quem as commanda, senhor?

CAPITÃO
O sobrinho do velho rei da Noruega, Fortimbraz .

HAMLET

Dirigem-se contra o coração da Polonia, ou con-


tra alguma terra da fronteira ?

CAPITÃO
Para fallar verdade , e sem exaggeração , vamos
conquistar uma nesga de terra, que nenhum valor
tem alem do nome. Eu não a tomava de renda por
cinco ducados, cinco ; e nem a Polonia nem a No-
290 HAMLET

ruega tirariam d'ella maior lucro, se vendessem o


dominio.
HAMLET

N'esse caso os polacos nunca hão de defendel-a .

CAPITÃO

Defendem; já lá está uma guarnição.

HAMLET
Duas mil almas e vinte mil ducados não basta-
vam para resolver a questão d'aquella ninharia. É
como um abcesso proveniente da excessiva riqueza
e paz, que arrebenta no interior, e não mostra a
causa, que faz morrer o homem . Agradeço-vos hu-
mildemente, senhor.
CAPITÃO
Deus seja comvosco .
Sahe.
ROSENCRANTZ
Quereis partir, senhor ?

HAMLET
Dentro de um minuto estarei comvosco . Ide um
pouco adeante.
Sahem Rosencrantz e Guildenstern.
Como todas as circumstancias depõem contra
mim, e esporeiam a minha tarda vingança ! Que se-
ACTO IV, SCENA IV 291

ria o homem, se a principal ventura, o ganho da


sua vida fosse unicamente dormir e comer? Uma
besta, nada mais. Aquelle que nos formou com tão
vasta comprehensão , com tal poder de olhar para o
futuro e para o passado, de certo nos não deu essa
capacidade e razão divina para tomarem bolor á falta
de exercicio ( 5) . Ou seja por um esquecimento bes-
tial, ou pelo escrupulo cobarde de querer refle-
ctir excessivamente nas consequencias (reflexão que,
dividida em quatro partes tem apenas uma de pru-
dencia e tres de pusillaminidade) não sei por que
vivo sempre a dizer : deve-se fazer isto, tendo mo-
tivo , desejo, força e meios de o fazer. Exemplos,
grandes como a terra, tenho a exhortar-me ; sirva
de testemunha este exercito de tal massa e pezo,
conduzido por um principe joven e delicado, cujo
valor entumescido por uma ambição divina desafia
os acontecimentos invisiveis, e expõe o que n'elle
ha de mortal e fragil, a tudo o que podem ousar
a fortuna, a morte e o perigo. E tudo por uma
casca de ovo! ... Para ser grande devéras é necessa-
rio não ficar commovido sem grande causa ; mas
tambem é preciso armar corajosamente uma pen-
dencia por dá cá aquella palha (6) , quando n'isso
anda envolta a honra. O que sou então eu , que tenho
o pae assassinado e a mãe poliuida a incitarem-me
a razão e o sangue, e deixo dormir tudo ? ao passo
292 HAMLET

por minha vergonha vejo a morte imminente de


vinte mil homens, que por uma chimera, uma glo-
ria sem valor, caminham para a sepultura como para
o leito, combatendo por um pedaço de terra, em
que se não podem desdobrar as hostes numerosas,
e que é valla pequena de mais, récinto estreito para
cobrir os mortos ? Oh ! d'ora ávante sejam meus P-
pensamentos sanguinarios, ou então reduzam-se a e
nada ! sa
Sahe. de

al
SCENA V é

ELSENOR
UMA SALA NO CASTELLO
Entram a RAINHA e HORACIO

RAINHA
Não lhe quero fallar.

HORACIO

Ella quer por força ; está delirando com certeza,


o seu estado merece compaixão.

RAINHA
O que pretende?
Acro IV, SCENA V 293

HORACIO
Falla muito no pae ; diz que sabe que ha muita
maldade no mundo ; soluça , dá pancadas no peito ;
bate com o pé cheia de raiva por uma bagatella ;
não diz coisa com coisa . As suas phrases nada si-
gnificam , e todavia a forma estranha da linguagem
provoca os ouvintes á reflexão. Procuram o sentido
e sirzem as palavras segundo os seus proprios pen-
samentos ; e como ella acompanha-os com o piscar
dos olhos, o meneiar da cabeça e varios gestos,
qualquer poderia suppôr, que na verdade, existe
alli uma ideia, a qual, bem que não seja definida,
é comtudo muito sinistra.

RAINHA

Seria bom fallar-lhe, porque ella poderia semear


conjecturas perigosas nos espiritos propensos a jul-
gar mal. Mandae-a entrar.
Sahe Horacio.
Á minha alma enferma - é assim a verdadeira
natureza do peccado ! -qualquer coisa de nada affi-
gura-se o prologo de uma grande desventura. O
crime é tão cheio de inhabil desconfiança , que se
desvenda a si mesmo com o medo de ser desven-
dado.
Entram HORACIO e OPHELIA
294 HAMLET

OPHELIA
Onde está a formosa rainha da Dinamarca ?

RAINHA
O que é, Ophelia ?

OPHELIA, cantando.
Como é que d'amores perfidos
Se distingue o verdadeiro ?
Tem bordão ? usa sandalias ?
E conchas como um romeiro ?

RAINHA

Oh ! minha doce Ophelia, que significa esse can-


to ?
OPHELIA

O que dizeis ? Pois bem ; dae attenção.


Canta.
Morreu, e partio. Exanime
Partio ; na cova repousa.
Verde relva sobre o craneo,
Aos pés a marmorea lousa.
Oh!
RAINHA

Sim ; mas, Ophelia...


ACTO IV, SCENA V 295

OPHELIA
Dae attenção, peço- vos.
Canta.
Por sobre a mortalha nivea

Entra o REI

RAINHA
Ai! Vêde isto, senhor.

OPHELIA, continuando
Era um recamo de flores,
Orvalhadas por funereo
Pranto desfeito de dores.

REI

Como estás, formosa rapariga?

OPHELIA

Bem, Deus vos pague ! Dizem que a coruja era


filha de um padeiro (7). Senhor, sabemos o que so-
mos, porem não o que podemos ser. Deus esteja á
Vossa mesa.
REI
Refere-se ao pae .
296 HAMLET

OPHELIA
Nem mais palavra a esse respeito, por quem
sois ; mas, quando vos perguntarem o que isto signi-
fica, respondei :
O dia d'amanhã é de São Valentim ;
Para a tua janella a toda a pressa vim
Antes de rutilar a estrella matutina,
Porque desejo ser a tua Valentina (8).
O amante despertou , vestio-se, abrio a porta,
Faz protestos, jurou ; mas o que mais importa
É que ella entrou cingindo a virginal capella,
Depois, quando sahio ... já não sahio donzella.

REI
Encantadora Ophelia !

OPHELIA
Vou terminar sem dizer uma blasphemia.

« Ó Santa Caridade ! Ó Christo (8 ) ! Ai ! que desar ! »


Exclamava a infeliz.
Elle dizia só : «Qualquer no meu logar
Faria o que eu te fiz.»

« Pois sim ; mas prometteste (ó crua impiedade ! )


Com sorriso amoroso
Antes d'amarrotar a minha virgindade ,
Ser o meu terno esposo ».
ACTO IV, SCENA V 297

«E havia de cumprir, pois cumpro quanto digo,


Juro por este sol,
Se não tens vindo aqui deitar-te hoje comigo
Sob o mesmo lençol. >>

REI
Ha quanto tempo está ella assim ?

OPHELIA

Espero que tudo corra bem. É preciso ter pa-


ciencia ; mas não posso ... hei de chorar por força,
lembrando-me de que o puzeram debaixo da terra
fria. Meu irmão ha de sabel- o , e por isso agradeço os
vossos bons conselhos. Vamos, o meu coche ! Boa
noite, minhas senhoras ; boa noite, minhas queridas
senhoras ; boa noite, boa noite.
Sahe.
REI

Acompanhac-a, e tende cuidado n'ella , peço-vos.


Sahe Horacio.
É o veneno de uma dor profunda ; tudo procede
da morte do pae ! Ó Gertrudes, Gertrudes ! agora
repara bem : as desgraças, quando accommettem
não veem uma por uma como exploradores ; veem
formadas em batalhões. Primeiro assassinaram-lhe o
pae ; em seguida partio o teu filho, sendo elle pro-
prio o violentissimo auctor do seu justo exilio ; de-
298 HAMLET

pois, amotinou-se o povo lamacento, pernicioso em


suas ideias e murmurios sobre a morte de Polonio
- e andámos inconsideradamente enterrando-o em
segredo ; agora a pobre Ophelia arrebatada de si e
d'aquella nobre razão, sem a qual não passamos de
simulacros humanos ou de simples animaes ; por
ultimo (e este acontecimento abrange todos os ou-
tros) o irmão volta de França occultamente, alimen-
ta-se do seu pasmo, esconde- se entre nuvens , e não
The faltam moscas zumbidoras, que lhe inficionem
os ouvidos com pestilentes narrações da morte do
pae. N'essas narrações a necessidade de um assum-
pto miseravel fará com que, sem o minimo escru-
pulo, ande a nossa pessoa accusada de ouvido em
ouvido. Tudo isto, querida Gertrudes, á similhança
da metralha mortifera, dá-me superflua morte em
muitas partes.
Ruido dentro do theatro.

RAINHA
Ai! Que ruido é este ?

Entra UM CORTEZÃO

REI
Olá ! Onde estão os meus suissos ? Que fiquem
de guarda á porta ! ... De que se trata ?
ACTO IV, SCENA V 299

CORTEZÃO

Salvae-vos, senhor ! O oceano, transpondo as suas


barreiras não devora a planicie com mais impetuosa
rapidez, do que o joven Laertes, á testa dos revol-
tosos , lança por terra os vossos officiaes. A turba
chama-o senhor ; e como se o mundo estivesse em
principio agora, como se a antiguidade e o costume
- ratificação e esteio de todos os titulos - estives-
sem votados ao esquecimento, ou fossem desconhe-
cidos, os rebeldes exclamam em grita : « Temos di-
reito de escolher ! Laertes ha de ser rei!» Os cha-
peus, as mãos, as linguas applaudem até as nuvens
este grito : « Laertes ha de ser rei ! Laertes rei!»

RAINHA

Com que jubilo seguem, ladrando, um rasto en-


ganador ! Erraes a pista, falsos cães dinamarquezes.

REI
Arrombaram as portas.
'Ruido dentro do theatro.

Entra LAERTES seguido da multidão

LAERTES
Onde está esse rei ? ... Senhores, ficae todos fóra.
10 .
300 HAMLET

TODOS
Não ; entremos.
LAERTES
Peço que vos fieis em mim.

TODOS
Sim ! sim !
Retiram-se para fora da porta.

LAERTES
Obrigado. Ficae de guarda á porta. Ó tu, rei in-
fame, entrega-me meu pae.

RAINHA
Serenae-vos, bom Laertes.

LAERTES

A gotta de sangue, que serenasse dentro de mim,


proclamar-me-hia bastardo, deshonraria meu pae,
gravaria o ferrete -prostituta - na fronte immacu-
lada e casta de minha virtuosa mãe.

REI

Laertes, por que motivo se appresenta a tua re-


bellião com um aspecto de gigante ? Deixa-o , Ger-
trudes ; não temas pela minha pessoa. Ha uma di-
vindade, que fórma em torno do rei uma sebe de
ACTO IV, SCENA V 301

tal ordem , que a traição mal pode entrever a furto


o que desejava, e põe por obra pouco da sua von-
tade. Dize-me, Laertes : porque estás assim tão in-
flammado? Deixa- o , Gertrudes . Falla, homem.

LAERTES
Onde está meu pae?

REI
Morreu.
RAINHA
Não por culpa do rei.

REI
Deixa-o perguntar quanto quizer.

LAERTES

Como morreu elle ? Não quero que me illudam.


Para o inferno a obediencia ! Leve o diabo os ju-
ramentos ! vão para as profundas do abysmo a re-
ligião e a consciencia ! Desafio a condemnação ! Es-
tou chegado ao ponto de desprezar este mundo e
o outro, aconteça o que acontecer ! Só uma coisa
desejo : vingar a morte de meu pae até á ultima .

REI

Quem te poderá impedir?


302 HAMLET

LAERTES

A minha vontade, não a do mundo inteiro ; e


pelo que respeita aos meios, de que disponho, ap-
proveital-os-hei tão bem, que com pouco hão de ir
longe.
REI
Bom Laertes, se desejas saber a verdade da morte
de teu pae, está por ventura escripto na tua vin-
gança, que derrubarás com o mesmo golpe amigos
e inimigos, innocentes e culpados ?

LAERTES
Só os inimigos.
REI
Queres então conhecel-os ?

LAERTES

Aos seus amigos leaes recebel-os-hei de braços


abertos ; e como o terno pelicano , que dá a propria
vida, hei de nutril- os do meu sangue .

REI
Ainda bem; agora fallaste como bom filho e
completo cavalheiro. Assim como a teus olhos ap-
parece clara a luz do dia , tambem ha de apparecer
á tua razão que estou innocente da morte de teu
pae, e com ella experimento uma dôr profunda.
ACTO IV, SCENA V 303

O POVO, dentro.
Deixae-a passar .

LAERTES

Que é isto ? Que rumor é este ?

Entra OPHELIA corôada de flôres e palhas

Ó febre, escalda o meu cerebro ! Lagrimas, sete


vezes salgadas, queimae a sensibilidade e força dos
meus olhos ! Hão de pagar tão caro a tua loucura,
que o peso do castigo fará pender a balança para o
nosso lado. Rosa de maio, innocente donzella, irmã
carinhosa, doce Ophelia ! Ó ceos ! Pois é possivel
que o juizo d'uma rapariga seja tão mortal como a
vida de um ancião ? Apura-se a natureza com
amor, e depois de apurada, exhala de si mesma al-
guma essencia preciosa em seguimento do objecto
estremecido ( 10).

OPHELIA, cantando
Nem um veu sobre a fronte nobre e altiva !
Que lastima ! que pena sem egual !
Mas sobre a humilde campa se deriva
Uma fonte de lagrimas caudal.

Adeus, meu amor.


304 HAMLET

LAERTES
Se estivesses em teu juizo, e quizesses persua-
dir-me á vingança, não me commoverias tanto como
assim.
OPHELIA
Deveis cantar :

Abaixo, abaixo
Deitae-o abaixo !

Como cáe aqui tão bem o estribilho ! É o mor-


domo infiel, que roubou a filha de seu amo ( 11).

LAERTES

Estes nadas valem mais do que muitas coisas


ajuizadas .
OPHELIA, a Laertes.
Toma ... rosmaninho ; é para a memoria ; peço-
te, meu amor, que te lembres de mim. Isto são
amores perfeitos... para te fazerem pensar ( 12) .

LAERTES
Um raciocinio no meio da loucura ! A coexis-
tencia do pensamento e da memoria.

OPHELIA, ao Rei.
Para vós, funcho e papoilas ( 13).
Á Rainha.
ACTO IV, SCENA V 305

Aqui tendes arruda .... ainda ha um bocado para


mim.... podemos chamar-lhe herva santa dos domin-
gos.... nas vossas mãos tem uma significação diffe-
rente da que tem nas minhas ( 14).... Agora um mal-
mequer ( 15).... queria dar-vos tambem algumas vio-
letas.... murcharam todas quando morreu meu pae
( 16). Dizem que elle teve um bom fim .
Canta.

O formoso Robim é todo o meu prazer ( 17).

LAERTES

A tristeza, a afflicção, o desespero, o proprio in-


ferno -tudo ella converte em graça e em doçura .

OPHELIA, canta.
Elle virá outra vez ?
Elle virá outra vez?
Não vem que mofina sorte ! -
Jaz no seu leito de morte ,
Não, não.... não vem outra vez.

Tinha a barba como linho,


A cabeça era um arminho .
Partio ; não peço que venha....
É melhor não, Deus o tenha
Junto de si bem visinho !
306 HAMLET

E a todas as almas christas. Rogo a Deos ....


Deos seja comvosco .
Sahe.
LAERTES

Vêdes isto, ó Deus ?

REI

Laertes, eu devo associar-me á tua dor, ou pri-


vas-me de um direito. Retiremo-nos um instante ;
de entre os teus amigos mais prudentes escolhe os
que quizeres, e esses ouvirão e julgarão entre ti e
mim. Se me acharem compromettido por uma acção
directa ou collateral, entregar-te-hei como reparação
o meu reino, a minha coroa, a minha vida, e tudo
a que possa chamar meu. Se não, contenta-te de
prestar-me a tua paciencia, e trabalharei de accordo
com a tua alma para dar-lhe a devida satisfação.

LAERTES

Pois bem ; seja ! O genero de morte de meu


pae, o seu obscuro funeral - nem tropheo, nem es-
pada, nem escudo sobre o feretro, nenhum rito no-
biliario, nenhuma pompa official - gritam como voz
que se fizesse ouvir do ceo á terra, que é meu
dever inquirir sobre este assumpto.
ACTO IV, SCENA VI 307

REI

Pois inquire ; e caia o machado onde estiver o


crime. Peço-te, que venhas comigo.
Sahem.

SCENA VI

OUTRA SALA
Entram HORACIO e um CREADO

HORACIO

Quem são os homens, que me querem fallar ?

CREADO -
São marinheiros, senhor ; dizem que vos trazem
cartas .
HORACIO
Manda-os entrar.
Sahe o creado.

Não sei de que parte do mundo possa receber


cartas, a não ser de Hamlet.

Entram os MARINHEIROS

PRIMEIRO MARINHEIRO

Deus vos abençoe, senhor.


308 HAMLET

HORACIO
E tambem a ti.

PRIMEIRO MARINHEIRO

Ha de abençoar, se fôr da sua vontade. Aqui


tendes uma carta, senhor ; vem da parte do embai-
xador, que tinha embarcado para Inglaterra. Se o
vosso nome é Horacio, como me disseram, a carta
é para vós.
HORACIO, lê
«<Horacio, depois de teres lido esta, proporciona
a esses homens algum meio de se apresentarem ao
rei : levam cartas para elle. Ainda não eram pas-
sados dois dias que estavamos no mar, quando um
pirata muito bem esquipado em guerra nos deu caça.
Vendo que eramos demasiado fracos em vélas, re-
vestimo-nos de uma coragem desesperada. Deitado
o arpeo, abordei-os. No mesmo instante, desaferra-
ram-se do nosso navio, de fórma que só eu fiquei
prisioneiro. Usaram comigo como ladrões misericor-
diosos ; mas sabiam o que faziam ; estou na obri-
gação de pagar-lhes bem. Faze chegar ás mãos do
rei as cartas, que lhe envio, e vem ter comigo tão
depressa, como se fugisses da morte. Tenho coisas
para dizer-te ao ouvido, que te hão de fazer ficar
mudo, e todavia serão fraquissimas para a importan-
cia do negocio. Esses bons homens conduzir-te-hão
ACTO IV, SCENA VII 309

onde estou. Rosencrantz e Guildenstern continuam


a sua viagem para Inglaterra ; tenho muito que con-
tar-te a respeito d'elles. Adeus.- Aquelle que sabes
ser sempre teu,
HAMLET . >>

Vinde; vou proporcionar-vos a maneira de entre-


gardes as cartas. Fazei- o com a maior brevidade ,
para que possaes conduzir-me onde está a pessoa ,
de quem as trouxestes.
Sahem.

SCENA VII

OUTRA SALA
Entram o REI e LAERTES

REI

A tua consciencia deve agora confirmar a minha


justificação, e tu deves conceder- me no teu peito
um logar de amigo ; pois ouviste - e com ouvido in-
telligente que quem assassinou teu nobre pae, tra-
mava contra a minha vida.

LAERTES
É evidente ; mas dizei-me : porque não proce-
destes contra esses actos de natureza tão grave e
310 HAMLET

criminosa, como fortemente vos estimulavam a vossa


segurança, a vossa grandeza, o vosso juizo , tudo em
fim ?
REI

Oh ! por duas rasões especiaes, que talvez se te


afigurem de pouca monta, e que todavia são para
mim de grande peso. A rainha, sua mãe, vive quasi
dos olhos d'elle ; e pelo que me diz respeito ( ou
seja virtude ou seja infelicidade) ella está ligada tão
intimamente á minha vida e á minha alma, que não
pratico acção independente da sua vontade, como
estrella que apenas se move dentro da sua esphera.
O outro motivo, que me não deixa tirar uma inqui-
rição publica, é o grande amor, que lhe consagra
o povo, o qual afogaria no seu affecto todos os
crimes de Hamlet, e á similhança da fonte, que
torna a madeira em pedra, converteria as suas ca-
deias em signaes de graça. E d'esta sorte as minhas
flechas, de madeira extremamente leve para tão
impetuoso vento , voltariam ao meu arco em vez de
bater no alvo.
LAERTES

E entretanto perdi um nobre pae, vejo minha


irmã cahida n'um estado sem esperança, minha irmã,
cujo merito (se é possivel gabar o que já não existe)
levantado ao fastigio das suas perfeições, chamaria
ACTO IV, SCENA VII 311

todo o seculo a desafio. Mas a minha vingança ha


de chegar .
REI

Não percas o somno por tal causa ! Deves suppor


que não sou feito de massa tão insensivel e tão vil,
que o perigo me faça tremer a barba, e eu consi-
dere isso um passa-tempo . Dentro em breve has de
saber mais . Fui amigo de teu pae, e sou amigo de
mim mesmo, e isso - espero eu - te fará entender.....

Entra UM MENSAGEIRO

O que é? Que novidades ha ?

MENSAGEIRO
Cartas de Hamlet, senhor. Esta para Vossa Ma-
gestade, e esta para a Rainha.

REI
De Hamlet ? Quem trouxe?

MENSAGEIRO
Uns marinheiros, segundo me disseram, senhor ;
eu não os vi . As cartas foram-me entregues por
Claudio, que as recebeu de quem as trouxe .
312 HAMLET

REI

Vaes ouvir, Laertes . Deixa-nos.


Sahe o Mensageiro.

«Alto e poderoso senhor : - Sabereis que sou


chegado nu ao vosso reino . Amanhã pedirei licença
para apresentar-me aos vossos reaes olhos ; n'essa
occasião, implorando antecipadamente a vossa indul-
gencia, referirei a causa do meu subito e ainda
mais estranho regresso .
HAMLET.>>

Que significará isto ? Regressariam todos os ou-


tros ? Ou é um embuste, e não ha visos de ver-
dade?
LAERTES
Conheceis a lettra?

REI
É lettra de Hamlet. Nu !.... E aqui, em post-
scriptum accrescenta : Só. Podes explicar-me isto?

LAERTES
Não atino com o sentido, meu senhor. Mas ....
que venha. Inflamma-se- me o coração enfermo com
a ideia de que hei de viver, e dizer-lhe na cara :
«Eis o que fizeste! »
ACTO IV, SCENA VII 313

REI
Se assim for Laertes.- como é possivel ser as-
sim ? .... mas como poderia ser de outra fórma ?
-deixas-te guiar por mim?

LAERTES

Sim, meu senhor, com tanto que me não obri-


gueis a fazer a paz.
REI

Só a paz comtigo mesmo. Se é verdade que


Hamlet voltou, e descoroçoado da viagem não pensa
em emprehendel-a de novo, empenhal-o -hei n'uma
aventura, que trago amadurecida no pensamento, e
em que elle ha de infallivelmente succumbir. Por
causa da sua morte não murmurará um sopro de
accusação ; até a mãe absolverá o ardil, e chamar-
lhe-ha um acontecimento accidental.

LAERTES

Senhor, deixar-me-hei governar ; e de melhor


grado ainda, se dispozerdes as coisas de maneira
que possa eu ser o instrumento .

REL

Cahe bem. Depois da tua viagem tem-se fallado


muito de ti na presença de Hamlet, por uma habi-
lidade em que segundo affirmam - sobresahes .
314 HAMLET

Todos os teus merecimentos reunidos não lhe inspi-


raram tanta inveja, como este só, que em minha
opinião é de infima ordem (19).

LAERTES

Que merecimento é esse, meu senhor?

REI
Uma simples fita no chapeo da mocidade, e que
todavia lhe é necessaria -pois não quadram menos
á juventude os trajos garridos e louçãos, com que
se veste, do que assentam á edade madura as rou-
pagens negras e as pelles, convenientes á saude e á
gravidade. Esteve aqui, ha dois mezes, um cava-
lheiro da Normandia - eu servi contra os francezes,
conheço-os de perto, montam bem a cavallo- ; mas
este bravo mancebo era uma verdadeira maravilha ;
arraigava-se na sella, e conseguia do cavallo mane-
jos tão admiraveis, como se estivesse encorporado
com o nobre animal. Excedia a tal ponto a minha
imaginação, que por mais que eu phantasiasse ma-
nejos e exercicios de destreza, ficava sempre abaixo
do que elle fazia.
LAERTES
Era um Normando ?

Um Normando.
ACTO IV, SCENA VII 315

LAERTES
É Lamond, por vida minha !

REI
O mesmo.
LAERTES

Conheço-o bem ; é a joia, a perola de toda a


nação.
REI
Rendeu-te homenagem, e declarou-te mestre con-
summado na arte e exercicio da esgrima, especial-
mente no jogo da espada. Seria coisa muito para
ver-se - exclamou elle - se alguem te pudesse fazer
rasto; e jurava que os esgrimidores do seu paiz não
tinham agilidade, nem guarda, nem olho , quando
eras seu adversario. Este elogio envenenou Hamlet
com um tal ciume, que elle não fazia mais do que
desejar e pedir o teu prompto regresso para medir-
se comtigo. Agora, em vista d'isso....

LAERTES
Em vista d'isso, o quê, meu senhor ?

REI
Laertes, amavas teu pae, ou és como que o re-
trato de uma dor - um rosto sem coração?
316 HAMLET

LAERTES
Porque o perguntaes, senhor ?

REI

Não porque julgue que o não amavas ; mas eu


sei que o tempo faz nascer o amor, e vejo no de-
curso dos acontecimentos quotidianos que o tempo
The modera o brilho e o fogo . Mesmo no centro da
chamma do amor ha uma especie de torcida ou pa-
vio, que o ha de apagar. Nenhuma coisa se manteve
sempre em egual estado de perfeição , porque a per-
feição, crescendo até a plethora, morre de excesso
proprio. Aquillo, que tivessemos vontade de fazer,
deveriamos fazel- o no momento em que tivessemos
vontade ; porque essa vontade varía, e passa por tan-
tos abatimentos e dilações, quantas são as linguas, as
mãos, os accidentes que se interpoem ; converte- se
então n'um prodigo suspiro, que prejudica dando
allivio . Mas ... toquemos no vivo da ferida. Hamlet
está de volta. O que seria teu desejo emprehender
para mostrares , mais por obras do que por palavras,
que és em verdade filho de teu pae ?

LAERTES

Cortar-lhe as guelas, ainda que fosse n'uma


egreja.
ACTO IV, SCENA VII 317

REI

Com effeito, nenhum logar devia ser um san-


ctuario para o assassino, nem a vingança devia ter
limites. l'orém, meu bom Laertes, se desejas fazer
isso , deixa-te ficar fechado no teu quarto . Quando
Hamlet chegar, ha de saber que regressaste . Cer-
cal-o-hemos de pessoas, que exaltem a tua superio-
ridade, e accrescentem novo lustre aos elogios , que
te dispensou o Francez ; em fim, collocar-vos-hemos,
a ti e a elle, um defronte do outro, e apostaremos
sobre as vossas cabeças. Elle, que é inadvertido,
muito generoso , e livre de toda a suspeita, não exa-
minará as armas ; de sorte que sem difficuldade , ou
com um pouco de manha poderás escolher uma
espada de ponta, e n'um bote insidioso dar-lhe o
pago da morte de teu pae .

LAERTES

É o que vou fazer, e com esse intuito envene-


narei a minha espada . Comprei a um charlatão um
unguento tão mortal, que basta embeber n'elle uma
faca para que se esta fizer correr sangue - não
haja cataplasma por mais rara, composta de todos
os simples que possuem virtude debaixo da lua, que
possa salvar da morte um ente, que for apenas
arranhado. Mergulharei no tal veneno a ponta da
318 HAMLET

minha espada, a fim de que, se eu o tocar leve-


mente, seja a morte.

REI

Pensemos ainda mais sobre o assumpto ; ponde-


remos a occasião e os meios, que melhor possam
convir ao nosso intento. Se isto falhasse, ou se a
nossa intenção se descobrisse em virtude de uma im-
perfeita execução, melhor fôra que nada houvessemos
tentado. Por conseguinte o projecto deve ter uma
reserva, um segundo projecto, que resista, se o pri-
meiro arrebentar na prova (20) . Devagar.... veja-
mos.... Faremos uma aposta solemne sobre a mes-
tria de cada um. Ah ! .... já cá está .... Quando es-
tiverem ambos encalmados e sequiosos por causa
do combate (e para que assim aconteça atira os
botes com a maior violencia), quando elle pedir
de beber, terei preparada uma taça de proposito ;
tocando-lhe apenas com os labios, se por accaso
tiver evadido a tua folha envenenada, ainda assim
conseguiremos o nosso fim. Mas, silencio!. Que ruido
é este ?
Entra A RAINHA

O que é, minha querida rainha ?


ACTO IV, SCENA VII 319

RAINHA

Uma desgraça anda sempre na pista de outra


desgraça .... tão de perto se seguem ! Vossa irmã,
afogou se, Laertes.

LAERTES

Afogou-se ! oh ! onde ?

RAINHA

Na borda do regato ha um salgueiro, cujas folhas


prateadas se espelham na vitrea corrente. Alli se
achava ela entretecendo phantasticas grinaldas de
rainunculos, urtigas, boninas, e d'aquellas grandes
flores purpureas, a que os pastores soltos de lin-
gua dão mais grosseiro nome, e que as nossas cas-
tas donzellas chamam dedos de defunctos. Quando
trepava para nos ramos inclinados pendurar a sua
coroa de hervas agrestes, eis que a ponto se que-
bra uma vergontea inimiga, e Ophelia cahe no ri-
beiro lacrymoso de envolta com os seus rusticos
tropheos. Os vestidos incharam, e sustiveram- na
por algum tempo ao lume d'agua, como se fôra
uma sereia ; no entretanto ella cantava pedaços de
antigas trovas, como quem não formava ideia do
perigo, ou como creatura nascida e creada n'aquelle
elemento. Mas isto não podia durar muito ; os ves-
320 HAMLET

tidos a final ensopados arrancaram a infeliz ao seu


melodioso canto, deram-lhe morte no lodo.

LAERTES
Ah ! Então afogou - se ?

RAINHA
Afogou-se !
LAERTES
Já tens agua de mais, pobre Ophelia ; quero pois
conter as lagrimas. Mas é sestro nosso : a natureza
conserva os seus habitos, diga a vergonha o que
quizer. Enxutas estas lagrimas, não ficará em mim
nada feminil. Adeus, senhor ! Tenho palavras de
fogo, que haviam de arder em chammas, se esta
dôr insensata não as afogasse !
Sahe.
REI

Sigamol-o, Gertrudes. Quanto me custou a apla-


car-lhe a ira ! Receio que isto venha accendel- a de
novo ! Portanto sigamol-o !
Sahem.
ACTO V

SCENA PRIMEIRA

UM CEMITERIO

Entram DOIS RUSTICOS com enxadas.

PRIMEIRO RUSTICO
Deve enterrar-se em sagrado aquella, que por
sua vontade busca a propria salvação ?

SEGUNDO RUSTICO

Eu digo que sim ; portanto faze- lhe já a cova.


O official de justiça informou-se, e decidio que se
enterrasse em sagrado .
322 HAMLET

PRIMEIRO RUSTICO

Como póde ser isso, uma vez que ella se não


afogou em defeza propria ?

SEGUNDO RUSTICO
Então ! decidiram elles que sim.

PRIMEIRO RUSTICO

Não ha que ver ; afogou-se porque muito bem


quiz ( 1 ) ; não póde ser de outro modo. A coisa é
esta : Se eu me afogo de caso pensado, isso denota
uma acção ; ora uma acção consta de trez partes (2),
a saber : operar, fazer e executar. Ergo, afogou-se
de caso pensado.

SEGUNDO RUSTICO
Pois sim; mas ouve, compadre.

PRIMEIRO RUSTICO

Dá licença. Aqui está a agua ; bom. Alli está o


homem; bom. Se o homem vae para a agua e se
afoga-queira ou não queira - afoga -se porque vae
para lá ; nota bem isto. Mas se a agua vem para
o homem e o afoga, não é o homem que se afoga
a si mesmo. Ergo, aquelle que não tem culpa da
sua propria morte, não encurta a propria vida.
ACTO V, SCENA I 323

SEGUNDO RUSTICO
Mas essa é a lei?

PRIMEIRO RUSTICO

De certo que é ; é a lei do official de justiça.

SEGUNDO RUSTICO

Queres saber a verdade ? Se não fosse uma se-


nhora nobre, não lhe davam sepultura em sagrado.

PRIMEIRO RUSTICO

É como dizes ; e o que doe, é que n'este mundo


o direito de cada um se afogar ou enforcar pertença
mais aos grandes do que aos pobresinhos de Christo.
Vem d'ahi, minha enxada. Não ha nobreza tão an-
tiga como a dos jardineiros, cavadores e coveiros ;
continuam o officio do pae Adão.

SEGUNDO RUSTICO
Adão era nobre ?

PRIMEIRO RUSTICO

Foi quem primeiro trouxe armas (3) .

SEGUNDO RUSTICO
Qual ! Adão nunca teve armas.
10%
1
324 HAMLET

PRIMEIRO RUSTICO

O quê? Tu és pagão ? Como comprehendes tu


a Escriptura? A Escriptura diz : Adão cavava ; ora,
como havia de elle cavar sem armas ? Outra per-
gunta ; se me não responderes claramente, has de
confessar que és ...

SEGUNDO RUSTICO
Vá lá, dize .
PRIMEIRO RUSTICO

Quem é aquelle, que faz construcções mais soli-


das do que o pedreiro, o carpinteiro e o calafate ?

SEGUNDO RUSTICO

O que faz forcas ; porque essa construcção so-


brevive a mil inquilinos.

PRIMEIRO RUSTICO

Gósto da tua esperteza, palavra d'honra ! « A for-


ca » é boa . Mas boa como ? Faz bem aos que fa-
zem mal. Ora tu , dizendo que a forca é uma con-
strucção mais solida do que a egreja, fazes mal;
ergo, a forca devia fazer- te bem. Vamos, vê se res-
pondes.
SEGUNDO RUSTICO

Quem é aquelle, que faz construcções mais soli-


das do que o pedreiro, o carpinteiro e o calafate?
ACTO V, SCENA I 325

PRIMEIRO RUSTICO
Sim ; dize, e livra-te d'esse pezo .

SEGUNDO RUSTICO
Ah ! agora já sei.

PRIMEIRO RUSTICO
Dize lá !
SEGUNDO RUSTICO
Pela santa missa ! Não sei.

Entram HAMLET e HORACIO, e ficam a distancia.

PRIMEIRO RUSTICO
Não quebres mais a cabeça ; um burro, quando
é ronceiro, não muda de passo por mais que lhe
batam. Quando te fizerem outra vez esta pergunta,
responde : o coveiro. As casas, que elle faz, duram
até o dia de juizo . Anda, vae a casa de Youghan, e
traze-me uma pinga d'agua ardente .
Sahe o segundo rustico; o primeiro começa a cavar e a
cantar.

Eu amei na juventude
Amei e achei que era doce ;
Porém tudo quanto fosse
Casar, pareceu-me rude (4).
326 HAMLET

HAMLET

Este homem não terá o sentimento do que está


fazendo? Canta abrindo uma cova.

HORACIO
O costume familiarisou-o com o officio.

HAMLET

Effectivamente assim é ; a mão que trabalha


pouco, tem o tacto mais apurado.

PRIMEIRO RUSTICO

O tempo e o destino juntos


Vieram depois, e atrozes
Bradaram-me em altas vozes :
Vae viver entre defunctos.
Desenterra uma caveira.

HAMLET

Aquella caveira teve outr'ora uma lingua, e po-


dia cantar ; e este patife atira-a para o chão, como
se fosse a queixada de Caim, que commetteu o pri-
meiro homicidio ! O craneo, que esse asno trata
agora com tão pouco respeito, bem pode ter sido
a cabeça de um politico, d'um homem, que julgava
embahir o proprio Deus . Não é possivel ?
ACTO V, SCENA I 327

HORACIO

Muito possivel, senhor.

HAMLET

Ou a cabeça d'um cortezão, que sabia dizer :


«Bons dias, gracioso senhor ! Como ides meu bom
senhor?» É talvez o senhor Fulano, que elogiava o
cavallo do sr. Beltrano, quando lh'o queria apanhar.
Não pode ser?
HORACIO
Sim, meu senhor.
HAMLET
Póde sim, não ha duvida . E agora, desqueixado
e desnarigado pela enxada de um coveiro, esse cra-
neo pertence á senhora Bicharia. Formosa transfor-
mação seria esta, se por ventura soubessemos obser-
val-a. Estes ossos custaram tão pouco a sustentar ,
que devam servir para jogar a bola ? Os meus
doem-me quando penso em tal.

PRIMEIRO RUSTICO
Pá, enxada, picareta,
Branco lençol desdobrado,
Uma cova, em que se metta ...
E o morto fica hospedado.
Atira outra caveira.
328 HAMLET

HAMLET

Outra caveira ! Quem sabe se teria sido o cra-


neo de um advogado ? Onde estão as suas argucias,
as suas subtilezas, os seus casos, os seus pleitos , as
suas tricas? Por que demonio consente elle agora
que o maroto d'este labrego lhe bata na cabeça
com uma pá enlameada, e não intenta uma acção
por offensas corporaes ? Hum ! Este sujeito foi tal-
vez nos seus tempos um grande comprador de
terras com as suas hypothecas, as suas obriga-
ções, as suas multas, as suas duplas garantias, as
suas cobranças. E a isto se reduzio a multa das suas
multas, a cobrança das suas cobranças? ter a bella
cabeça cheia de lama ? Pois as suas garantias, apezar
de duplicadas, não lhe hão de assegurar de todas
suas compras mais do que um espaço do compri-
mento e largura de dois contractos? Os titulos de
transmissão das suas terras mal poderiam caber den-
tro d'esta caixa ; e é preciso que o proprietario não
tenha mais ? Hein ?
HORACIO

Nem mais uma linha, senhor.

HAMLET

O pergaminho não é feito de pelle de carneiro ?


+
*

ACTO V, SCENA I 329

HORACIO
Sim, meu senhor ; e tambem de pelle de bezerro.

HAMLET

Pois aquelles, que procuram garantias no perga-


minho, são carneiros e bezerros. Vou fallar com este
sujeito. De quem é esta cova, homem ?

PRIMEIRO RUSTICO
É minha, senhor.
Canta.
Uma cova em que se metta...
E o morto fica hospedado.

HAMLET
Effectivamente creio que é tua, porque estás lá
dentro.
PRIMEIRO RUSTICO

Vós estaes fóra , por consequencia não é vossa .


Por minha parte, não estou enterrado n'ella , e com-
tudo é minha.
HAMLET
Mentes, estando dentro d'ella, e dizendo que é
tua (5) ; a cova é para um morto, não para um vi-
vo ; por tanto mentes.
1
330 HAMLET

PRIMEIRO RUSTICO

É um desmentido vivo, senhor ; passa outra vez


de mim para vós.
HAMLET

Para que homem estás tu abrindo essa sepultura?

PRIMEIRO RUSTICO
Não é para homem, senhor.

HAMLET
Então, para que mulher ?

PRIMEIRO RUSTICO
Tambem não é para mulher.

HAMLET
Quem vae ser enterrado ahi ?

PRIMEIRO RUSTICO
Alguem, que foi mulher ; porem -Deus lhe falle
n'alma ! -já morreu .
HAMLET
Como é rigoroso este maroto ! E preciso tomar

conta quando se lhe falla , porque senão , atormenta-


nos com equivocos. Por Deus, Horacio ! O seculo

tornou-se tão ponteagudo (6), que o bico do pé do


ACTO V, SCENA I 331

camponez chega a tocar os calcanhares do cortezão


a ponto de ferir-lhe as frieiras. Ha quanto tempo
és coveiro ?
PRIMEIRO RUSTICO
De entre todos os dias do anno escolhi para
começar o officio o dia, em que o nosso defuncto
rei Hamlet venceu a Fortimbraz .

HAMLET
Quanto tempo haverá?

PRIMEIRO RUSTICO
Não o podeis dizer? Qualquer tolo sabe isso. Foi
no mesmo dia, em que nasceu o joven Hamlet ...
aquelle que está doido , e que mandaram para In-
glaterra.
HAMLET

Ah, sim ! E por que motivo o mandaram para


Inglaterra ?
PRIMEIRO RUSTICO

Por que motivo ? Porque está doido ; lá pode re-


cuperar o juizo ; tambem se não recuperar, é coisa,
que pouco monta n'aquelle paiz.

HAMLET

Porquê?
332 HAMLET

PRIMEIRO RUSTICO
Não se torna reparado ; lá é tudo tão doido, como
elle.
HAMLET
Como endoideceu Hamlet ?

PRIMEIRO RUSTICO
Dizem que d'um modo muito extraordinario.

HAMLET
Extraordinario ? como ?

PRIMEIRO RUSTICO
Perdendo o juizo.

HAMLET

E o que deu logar...

PRIMEIRO RUSTICO
Em que logar ? Aqui, na Dinamarca. Ha trinta
annos que sou coveiro aqui.

HAMLET
ho-
Quanto tempo poderá estar enterrado um
mem sem se corromper?
ACTO V, SCENA I 333

PRIMEIRO RUSTICO
Se já não estiver corrompido antes de morrer
(hoje em dia temos muitos cadaveres cheios de ve-
nerio que mal podem supportar o enterramento)
dura ahi ... oito ou nove annos. Um cortidor dura
nove annos.
HAMLET

Porque dura esse mais do que os outros ?

PRIMEIRO RUSTICO

Ora, senhor ! Porque tem a pelle tão cortida pelo


officio, que resiste muito tempo á agua ; e a agua
é o inimigo mais terrivel d'um diabo d'um de-
functo (7). Eis aqui uma caveira, que esteve enter-
rada vinte e trez annos.

HAMLET
De quem era ?

PRIMEIRO RUSTICO
D'um estupor d'um doido ! De quem pensaes que
era?
HAMLET
Não sei, homem.

PRIMEIRO RUSTICO
Diabo de maluco ! Raios o partam ! Uma vez
despejou-me na cabeça um frasco de vinho do Rhe-
334 HAMLET

no ! Esta mesma caveira, senhor, era a caveira de


Yorick, bobo do rei.

HAMLET, pegando na caveira.


Esta ?

PRIMEIRO RUSTICO
Esta mesma.
HAMLET

Ah ! pobre Yorick ! Conheci-o, Horario . Era um


rapaz de infinita graça, da mais excellente imagina-
ção . Andou mil vezes comigo ás costas, e agora en-
che-me de horror, faz -me nauseas. D'aqui pendiam
os labios, que beijei não sei quantas vezes ! Que é
feito das tuas facecias? das tuas cabriolas? das tuas
canções ? dos teus lampejos de alegria, que faziam
estrugir na mesa as gargalhadas ? Não te resta um só
para zombares da tua propria carantonha ? Não tens
boca ? Não tens lingua ? Vae ao toucador d'alguma
dama, e dize-lhe que, embora ponha uma pollegada
de pintura, ha de tornar-se n'este lindo estado . An-
da, provoca-lhe o riso com esta ideia ... Horacio,
peço-te que me digas uma coisa.

HORACIO

O que é, meu senhor ?


ACTO V, SCENA I 335

HAMLET
Julgas que Alexandre era d'este feitio debaixo da
terra ?
HORACIO
Sem tirar nem pôr.

HAMLET
E que cheirava assim ? Puh !
Atira a caveira.
HORACIO
Exactamente assim, meu senhor.

HAMLET
A que abjectos serviços podemos ser aviltados,
Horacio ! Porque não será dado á imaginação ir na
pista das nobres cinzas de Alexandre, até encontral-as
tapando o batoque d'um tonel ?

HORACIO
Examinar assim as coisas fora um exame dema-
siadamente forçado .
HAMLET
Não, por minha fé ; nem por sombras. Podemos
seguil-o até esse ponto com bastante moderação, e
guiar-nos pelo que for yerosimil. Por exemplo : Ale-
xandre morreu ; Alexandre foi enterrado ; Alexandre
tornou-se em pó ; o pó é terra ; com a terra faze-
II
336 HAMLET

mos barro ; e por que razão com o barro, em que


foi tornado Alexandre, se não poderia tapar um bar-
ril de cerveja ? O imperial Cesar, morto, convertido
em barro, pode calafetar uma fresta, e impedir a pas-
sagem do vento. Oh ! aquelle punhado de terra, que
enfreiava o mundo apavorado, servir hoje para re-
mendar um muro, e repellir as lufadas do inverno !
Mas silencio ! silencio ! Retiremo-nos ! Ahi vem o
rei.

Entram SACERDOTES em procissão; vem depois o corpo


de OPHELIA seguido de LAERTES,
e CARPIDEIRAS, depois o REI, a RAINHA e SEQUITO

HAMLET, continuando.
A rainha ! Os cortezãos ! Quem virão elles acom-
panhar? E com um ritual tão mutilado? Quer dizer
que o cadaver, que conduzem, destruiu a propria
vida com mão desesperada. Era pessoa de elevada
condição. Escondamo-nos um instante , e observe-
mos.
Retira-se com Horacio.

LAERTES
Que ceremonia falta ainda ?

HAMLET
É Laertes, mancebo muito nobre. Attenção !
ACTO V, SCENA I 337

LAERTES
Que ceremonia falta ?

PADRE

As exequias foram celebradas com toda a largueza


que estava em nossas mãos. Suscitaram-se duvidas
sobre a morte d'esta senhora, e se uma ordem su-
perior não tivesse despoticamente dominado a lei ,
ella teria sido alojada em terra profana, até que
soasse a trombeta final . Em vez de orações carido-
sas ter- se- hia lançado sobre o corpo saibro , casca-
lho e pedras; e todavia concederam- se-lhe as coroas
de virgem , as flôres de donzella , o dobre de sinos
e a sepultura em sagrado.

LAERTES
Não ha mais nada a fazer ?

PADRE

Nada mais. Seria profanar o rito funebre cantar


um requiem, implorando para ella o mesmo des-
canço reservado ás almas, que se partem do mundo
em paz.
LAERTES
Deponde-a na terra, e brotem violetas das suas
carnes bellas, impollutas. Uma coisa te digo, estu-
338 HAMLET

pido sacerdote : minha irmã será no ceo um anjo


ministrante, quando tu estiveres uivando no abysmo.

HAMLET

O quê ? A formosa Ophelia ?

RAINHA, espargindo flores sobre o cadaver.


Flores para a flor ! Adeus ! Doce virgem, alimen-
tei a esperança de que fosses mulher do meu Ham-
let ; cuidei que ornaria de flores o teu leito de noi-
va, nunca pensei espargil-as no teu tumulo .

LAERTES

Oh ! Uma triplice desgraça caia dez vezes tripli-


cada sobre a maldita cabeça, cujo delicto cruel te
privou da tua gentilissima razão ! Esperae um in-
stante ; não lanceis terra sobre o corpo, em quanto
eu não o estreitar nos meus braços ainda mais uma
vez.
Laertes salta para dentro da cova.
Agora amontoae o vosso pó sobre a morta e o
vivo, até que d'esta planicie tenhaes feito um mon-
te, que sobreleve o Pelion , ou o celeste pincaro do
Olympo azul .
HAMLET, avançando.
Quem é o homem, cuja dôr se traduz com tanta
emphasis ? Cuja phrase maguada conjura as estrellas
ACTO V, SCENA I 339

errantes, e obriga-as a parar, como ouvintes feridos


de . assombro ? Aquelle que disseste maldito, e cha-
maste miseravel, sou eu, Hamlet, o Dinamarquez !
Salta para dentro da cova.

LAERTES, arremettendo contra elle.


O diabo se apodere da tua alma !

HAMLET

Imprecaste um mal . Tira os dedos da minha gar-


ganta, peço-te. Ainda que eu não seja assomado ,
nem violento, tenho comigo alguma coisa de peri-
goso, que a tua prudencia deve temer . Tira as mãos.

REI
Separae-os!
RAINHA
Hamlet ! Hamlet !
TODOS
Senhores!
HORACIO

Meu bom senhor, tranquillisae-vos!


Hamlet e Laertes são separados por alguns do sequito, e
sahem da cova.

HAMLET

Sim, hei de luctar com elle por esta causa, até


que as minhas palpebras deixem de mover-se.
340 HAMLET

RAINHA
Oh ! meu filho ! Por esta causa ? qual causa ?

HAMLET

Eu amava Ophelia. Quarenta mil irmãos com


toda a quantidade do seu amor não eram capazes
de perfazer a minha somma. Que queres tu fazer
por ella?
REL
Está doido , Laertes.

RAINHA
Deixae-o, pelo amor de Deos !

HAMLET

Vamos lá, dize : o que queres fazer ? Queres


chorar? combater ? matar-te á fome ? cortar-te.em
pedaços ? beber vinagre (8) ? comer um crocodilo ?
Pois eu farei tudo isso. Vieste aqui choramingar?
afrontar-me saltando para a sua cova ? Sê enter-
rado vivo com ella ; eu farei outro tanto . E visto
que palras de montanhas, arrojem sobre nós mi-
lhões de geiras, até que o nosso globo , indo cha-
muscar a cabeça na zona torrida, faça parecer o
Ossa do tamanho de uma verruga ! Com os demo-
nios ! Se bradas em altas vozes, hei de vociferar tão
bem como tu.
ACTO V, SCENA I 341

RAINHA

Isto é pura doidice ! E o accesso ha de agital-o


assim por algum tempo ; depois ficará silencioso,
abatido , tão manso como a pomba, quando sahem
da casca os gemeos de pennugem doirada (9) .

HAMLET
Escutae, senhor. Porque razão me trataes assim ?
Fui sempre vosso amigo .... mas isso não importa !
Embora o proprio Hercules faça tudo o que puder,
o gato ha de miar, e o cão terá o seu dia.
Sahe.
REI
Peço-te que o acompanhes, bom Horacio.
Sahe Horacio.
REI, a Laertes.
Fortalece a tua paciencia com a nossa conver .
sação de hontem á noite . Vamos já pôr este nego-
cio a caminho . Boa Gertrudes, mandae vigiar o
vosso filho. (A parte.) Esta sepultura precisa de um
monumento vivo . Breve chegará para nós uma hora
de repouso. Até lá procedamos com paciencia.
Sahem.
342 HAMLET

SCENA II
UMA SALA NO PALACIO
Entram HAMLET e HORACIO

HAMLET
Basta d'este assumpto ; vejamos agora o outro.
Lembras-te de todas as circumstancias ?

HORACIO
Lembro-me, senhor.

HAMLET

Havia no meu coração uma especie de combate ,


que me não deixava dormir. Parecia-me estar peior
do que os marinheiros desobedientes ferrolhados em
cadeias (10) . Precipitadamente e abençoada pre-
cipitação ! ... É bom saber que a imprudencia ás ve-
zes serve-nos bastante, quando falham os calculos
mais profundos ; e isto deve ensinar- nos que ha
uma divindade, que dá fórma aos nossos destinos,
qualquer que seja a rudeza, com que os tenhamos
bosquejado.
HORACIO
É certissimo.
ACTO V, SCENA II 343

HAMLET

Precipitadamente saio do beliche, embuçado na


minha manta de marinheiro , e ás escuras vou pro-
curando pelo tacto ; consigo o meu desejo , lanço
mão do rolo, e torno a ir para o meu quarto. Como
o susto põe em esquecimento a educação, tenho a
audacia de abrir a mensagem soberana, e n'ella ,
Horacio, descubro uma regia malvadez, uma ordem
terminante, lardeada de todo o genero de razões,
que importam á salvação da Dinamarca e da Ingla-
terra - ah ! ah ! evocando papões e lobishomens se
eu escapasse ! -uma ordem para que, lido o des-
pacho, sem demora alguma —-não ! sem mesmo dar
tempo de afiar o cutello - me cortassem a cabeça.

HORACIO
É possivel?
HAMLET

Aqui tens a ordem ; lê-a com mais vagar. Que-


res saber agora o que fiz ?

HORACIO
Contae, peço-vos .

HAMLET
Enredado em traições (primeiro que eu pudesse
delinear um prologo no meu cerebro, já elle tinha
344 HAMLET

começado a peça) sento-me, invento uma nova men-


sagem , e escrevo-a com optima calligraphia. Eu
antigamente, á similhança dos nossos estadistas, re-
putava uma baixeza ter bom talho de lettra, e dili-
genceei muito esquecer essa habilidade ; mas, meu
amigo, n'aquelle ensejo prestou-me um serviço emi-
nente. Queres saber o theor do que escrevi ?

HORACIO
Sim, meu bom senhor.

HAMLET

Um instante pedido do rei - considerando que a


Inglaterra era sua fiel tributaria ; fazendo votos para
que a amizade florescesse como uma palmeira entre
ambas as nações, e a paz continuasse a cingir a sua
coroa de espigas e servisse de apertado nó ás boas
relações dos dois paizes ; e muitas outras coisas simi-
lhantes que davam carga bastante para um burro—
um pedido , repito , para que visto e entendido o
conteúdo d'aquelle despacho, fossem logo logo mor-
tos os seus portadores, sem consulta previa, sem
exame breve ou longo, sem lhes ser dado sequer
tempo de se confessarem .

HORACIO
E como foi sellado o despacho ?
ACTO V, SCENA II 345

HAMLET
Até n'isso foi providente o ceo. Eu tinha na
bolsa o sello de meu pae, que servira de modelo
ao da Dinamarca. Dobrei o escripto como o outro,
enderecei-o, sellei-o , colloquei - o cautamente no seu
logar, e nunca se percebeu a substituição . No outro
dia foi a batalha naval, e já sabes o que se seguio.

HORACIO

De maneira que Rosencrantz e Guildenstern vão


entregar o despacho.

HAMLET

Então, homem ! Elles requestaram essa commis-


são ; e por isso não me remorde a consciencia. A
sua ruina provém do importuno desejo de se inge-
rirem n'este negocio. Para pessoas de condição mais
baixa é arriscado metterem-se, durante o duello ,
entre as espadas iracundas e crueis de adversarios
poderosos.
HORACIO
Oh! Que rei este nosso !

HAMLET

Não te parece que me corre agora alguma obri-


gação ? Um homem, que matou meu pae, fez de mi-
nha mãe uma rameira, interpoz-se á eleição do povo
346 HAMLET

e ás minhas esperanças, lançou·-e com que aleivo-


sia ! -o harpeo á minha propria vida, não é acto
de boa consciencia dar-lhe o pago com este braço?
Não é merecer a condemnação eterna deixar que
esse cancro da nossa vida continue a alastrar e cor-
roer?
HORACIO

Dentro em pouco deve elle saber de Inglaterra


o exito do negocio.
HAMLET
Não tardará muito ; o intervallo é meu , e a vida
d'um homem não é mais do que o tempo de dizer
um . Mas penalisa-me, bom Horacio, ter-me esque-
cido de quem sou , offendendo Laertes, porque na
imagem da minha causa vejo o retrato da sua.
Quero ganhar-lhe a amizade, mas a jactancia da sua
dor arrebatou-me áquella paixão vertiginosa .

HORACIO
Silencio ! Quem vem ahi ?

Entra OSRICO

OSRICO

Dou a Vossa Alteza os emboras pelo seu feliz


regresso á Dinamarca ( 11 ) .
ACTO V, SCENA II 347

HAMLET
Agradeço-vos humildemente, senhor.
A Horacio.
Conheces este mosquito ?

HORACIO
Não, meu bom senhor.

HAMLET

Pois dá graças a Deus ; é um peccado conhe-


cel-o. Possue muitas terras e ferteis. Em uma besta
sendo senhor de bestas tem logo mangedoira á mesa
do rei. Isto é uma pêga ; mas, como te disse, possue
vastas propriedades de lama.

OSRICO
Gracioso senhor, se Vossa Alteza tivesse lazer,
ser-me-hia grato fazer-lhe uma communicação da
parte de Sua Magestade.

HAMLET
Ouvil-a-hei com toda a attenção . Dae ao vosso
chapeo o uso , que lhe é proprio ; foi feito para
estar na cabeça.
OSRICO

Obrigado a Vossa Alteza ; faz muito calor.


348 HAMLET

HAMLET

Podeis crer que não ; faz muito frio ; o vento


está norte .
OSRICO
Effectivamente, meu senhor, faz bastante frio.

HAMLET

E todavia parece-me que está um calor suffo-


cante ; ou o meu temperamento ....

OSRICO

Um calor excessivo, suffocante, como se disses-


semos .... nem eu sei o quê. Senhor, Sua Magestade
incumbio-me de significar-vos, que fez uma grande
aposta a vosso favor. Eis o de que se trata :

HAMLET, fazendo signal para que ponha o chapeo


Peço que vos lembreis....

OSRICO
Oh ! meu bom senhor ! Por minha fé, estou assim
mais commodamente . Senhor, temos um recem-che-
gado á côrte ; é Laertes. Accreditae no que vos
digo : é um perfeito cavalheiro, cheio das mais excel-
lentes qualidades, do mais fino trato, e de uma pre-
sença encantadora. Para fallar com a devida justiça,
é o calendario, a cartilha da galanterià ( 12), porque
ACTO V, SCENA II 349

n'elle encontrareis o compendio de todos os predi-


cados, que um cavalheiro possa contemplar e imitar.

HAMLET

Senhor, a enumeração das suas prendas não


perde na vossa bocca ; e comtudo sei que fazer o
inventario d'ellas seria atordoar a arithmetica da
memoria, sem conseguir mais do que dar guinadas
em comparação com a sua marcha veloz. Porém ,
mantendo-me nos limites verdadeiros do elogio, te-
nho-o por um espirito de grande alcance ; e o con-
juncto das suas qualidades é por tal fórma raro e
valioso que pode dizer-se d'elle com verdade que
o seu egual está só no seu espelho ; todo aquelle
que pretender seguir-lhe os passos, será a sua som-
bra, nada mais.
OSRICO

Vossa Alteza falla com muita infallibilidade a


a respeito d'elle.
HAMLET

A que proposito vem isto, senhor ? Porque esta-


mos nós rebuçando esse cavalheiro na rudeza da
nossa phrase?
OSRICO
Senhor.
350 HAMLET

HORACIO
Não haveria meio de nos entendermos n'outra lin-
gua ? Por certo que o podeis fazer, senhor.

HAMLET

Que importa á questão citar o nome d'esse ca-


valheiro?
OSRICO
De Laertes ?
HORACIO

Já tem a bolsa vasia ; gastou todas as palavras


doiradas.
HAMLET
Sim , d'elle.
OSRICO

Sei que não sois ignorante....

HAMLET

Oxalá que o soubesseis com certeza ; posto que,


se o soubesseis , não provava muito em meu abono .
Então, senhor ? ....
OSRICO

Não sois ignoranté de qual seja a superioridade


de Laertes ...
ACTO V, SCENA II 351

HAMLET

Não me atrevo a confessal- o por medo de com-


parar-me com elle na tal superioridade, pois conhe-
cer bem um homem é conhecer-se a si mesmo.

OSRICO

Refiro-me, senhor, á sua destreza no jogo das


armas ; segundo o juizo que d'elle fórma toda a
gente, não tem rival no genero .

HAMLET
Qual é a sua arma ?

OSRICO
Espada e adaga .
HAMLET
São duas armas ; porem, vamos.

OSRICO

O rei apostou seis cavallos da Barbaria, contra


os quaes -segundo oiço - Laertes empenhou seis es-
padas francezas e punhaes com os seus pertences-
boldriés, talabartes e o resto . É na verdade um
gosto ver tres d'esses trens ( 13) ; dizem perfeitamente
com os punhaes, são delicadissimos e da mais enge-
nhosa invenção .
352 HAMLET

HAMLET

A que chamaes trens?

HORACIO, a Hamlet
Eu já sabia que antes de chegar ao fim havieis
de recorrer ás notas marginaes ( 14 ).

OSRICO

Trens são os apparelhos, de que pendem as


espadas.
HAMLET
O termo seria mais proprio, se trouxessemos ao
lado uma peça de artilheria ; em quanto não traze-
mos, contentemo-nos em chamar-lhes talabartes.
Mas, continuae. Seis cavallos da Barbaria contra
seis espadas francezas, seus pertences, e tres tala-
bartes de primorosa invenção, eis a aposta do fran-
cez contra o dinamarquez. E porque empenharam
tudo isso ?
OSRICO
O rei apostou que em doze botes não serieis

tocado por Laertes mais de tres vezes ; Laertes


apostou que em doze botes vos tocaria nove vezes.
A questão seria resolvida immediatamente, se Vossa
Alteza quizesse dignar-se responder-me.
ACTO V, SCENA 11 353

HAMLET

Como? E se eu responder não?

OSRICO

Quero dizer : se vos dignasseis expôr o vosso


corpo á experiencia.
HAMLET

Senhor, eu vou passeiar aqui na sala. Sendo do


agrado de Sua Magestade , como esta é a hora em
que costumo distrahir-me, tragam para aqui os flore-
tes. Se esse cavalheiro quizer, e o rei mantiver o seu
proposito , farei o possivel para que elle ganhe a
aposta ; se não, ganharei apenas a vergonha, e os
botes, em que for tocado.

OSRICO

São esses os termos, em que hei dar a vossa


resposta?
HAMLET

N'este sentido , senhor, com todas as flores, que


o vosso talento suggerir.

OSRICO
Recommendo a minha dedicação a Vossa Alteza.
354 HAMLET

HAMLET
Todo vosso, todo vosso . Faz bem em recom-
mendar-se a si mesmo ; nenhuma outra lingua se
encarregaria de tal.
HORACIO

Parece um pavoncino que fugiu com a casca


pegada á cabeça .
HAMLET

Fez comprimentos á teta da ama antes de mamar.


São assim elle e muitos outros, que eu conheço , da
mesma laia, adorados por este seculo superficial .
Limitam-se a apanhar o tom da moda, e os habitos
exteriores da sociedade : é uma especie de collecção
de occas parvoices, que os elevam na opinião dos
espiritos mais escolhidos e sensatos ; mas, para os
experimentar, basta assoprar-lhes em cima ; arreben-
tam logo as bolhas ( 15).

Entra um SENHOR

SENHOR

Meu senhor, Sua Magestade mandou saudar-vos


por intervenção do joven Osrico, o qual voltou di-
zendo-lhe que o esperaveis n'esta sala. Agora en-
via-me a saber se é da vossa vontade começar o
combate com Laertes, ou se quereis que seja ad-
diado.
ACTO V, SCENA IL 355

HAMLET

Sou constante em meus propositos, e esses estão


subordinados á vontade do rei. Se lhe convém esta
occasião, estou prompto ; agora ou quando quizer,
uma vez que eu esteja tão bem disposto, como
agora.
SENHOR

O rei, a rainha, e toda à côrte veem já !

HAMLET
Em boa hora venham .

SENHOR

A rainha deseja que tenhaes com Laertes uma


conversação amigavel antes de principiar a luta.

HAMLET
É um optimo conselho.
Sahe o Senhor.
HORACIO
Ides perder a aposta, meu senhor.

HAMLET

Não me parece . Desde que elle foi para França ,


tenho-me exercitado continuamente ; com o partido,
que me dá, hei de ganhar. Mas não podes fazer
356 HAMLET

idéa do mal, que sinto aqui, do lado do coração.


Não importa !
HORACIO
Comtudo, meu bom senhor....

HAMLET

Não passa d'uma tolice ; uma especie de presen-


timento, que atterraria talvez uma mulher.

HORACIO
Se ao vosso espirito repugna alguma coisa, obe-
decei-lhe ; antecipar-me-hei á chegada do rei e da
côrte, e dir-lhes-hei que não estaes bem disposto .

HAMLET

De modo nenhum ; eu rio-me dos agoiros. Até na


morte de um passaro intervem uma providencia es-
pecial ( 16) . Se tem de ser agora, não está para vir; se
não está para vir, ha de ser agora. Se não fôr agora,
alguma vez ha de ser. A questão toda é estar pre-
parado. Se nenhum homem sabe o que deixa, que
importa deixal-o cedo (17)?

Entram REI, RAINHA, LAERTES ,


SENHORES DA CORTE , OSRICO , e CREADOS
com as armas
ACTO V, SCENA II 357

REI
Vem, Hamlet, vem, e recebe de mim esta mão .
Põe a mão de Laertes na de Hamlet.

HAMLET

Perdoae-me, senhor. Injuriei-vos ; mas perdoae- me


como cavalheiro, que sois. Sabem os presentes, e
deveis tambem ter ouvido que sou torturado por
um cruel desvario da razão . Quanto eu haja prati-
cado , que possa exasperar o vosso coração, a vossa
honra e austeridade, aqui proclamo que foi loucura.
Foi Hamlet quem offendeu Laertes ? Hamlet, nunca .
Se Hamlet for arrebatado de si mesmo, e, deixando
de ser quem é, fizer offensa a Laertes, não é Hamlet
quem pratica a acção , Hamlet nega-a. Quem fez
então a injuria ? A sua loucura ; e sendo assim,
Hamlet é do partido que recebeu o aggravo, e o
inimigo do pobre Hamlet é a sua propria loucura.
Senhor, em vista da negação , que acabo de fazer
perante este auditorio, de qualquer intenção má, per-
mitti que eu seja absolvido no vosso generoso pen-
samento, como se, disparando uma flecha por cima
da casa, eu tivesse ferido meu irmão .

LAERTES

O meu coração, cujo impulso poderia n'este


caso excitar-me á vingança, está plenamente satis-
358 HAMLET

feito ; porém nos termos da honra conservo-me


afastado, e não quero reconciliação alguma, sem
que juizes mais velhos e de reconhecido pundonor
dêem o voto, e estipulem os precedentes de paz,
que mantenham o meu nome sem mancha. Até lá
recebo como amizade a offerta da vossa amizade,
e não lhe trarei damno aleivoso.

HAMLET
Acceito de bom grado a segurança, que me daes,
e quero entrar lealmente n'esta justa fraternal. Dae-
nos os floretes. Vamos.

LAERTES
Vamos . Um para mim.

HAMLET

Serei o vosso alvo, Laertes ( 18) ; ao pé da mi-


nha ignorancia a vossa destreza ha de reluzir como
estrella em noite escura.

LAERTES
Zombaes de mim, senhor.

HAMLET

Não zombo , por esta mão.


ACTO V, SCENA II 359

REI

Dae-lhes os floretes, joven Osrico . Sabes qual é


a aposta, Hamlet ?
HAMLET
Perfeitamente, senhor. Vossa Magestade apostou
de mais pelo mais fraco.

REI
Nada receio ; tenho- os visto a ambos; mas como
elle se tem aperfeiçoado, exigimos um partido.

LAERTES, examinando o florete


Este é muito pezado ; deixae-me ver outro .

HAMLET
Gósto d'este . São todos do mesmo comprimento?
Preparam-se para esgrimir.

OSRICO
Sim, meu bom senhor.

REI
Ponham sobre essa mesa os frascos de vinho.
Se Hamlet acertar o primeiro ou o segundo bote,
ou se rebater o terceiro golpe, façam fogo todas as
baterias ; o rei beberá á saude de Hamlet, e deitará
dentro da taça uma perola mais preciosa, do que as
II*
360 HAMLET

que têem trazido quatro reis successivos na corôa


da Dinamarca. Dae- me as taças . Os timbales digam
ás trombetas, as trombetas ao artilheiro, os canhões
digam aos ceos, os ceos digam á terra : « Agora o
rei bebe á saude de Hamlet ! Vamos, principiae ; e
vós- -os juizes - olho álerta.

HAMLET
Vamos, senhor.
LAERTES
Vamos, meu senhor.
Principiam o combate.

HAMLET
Uma.
LAERTES
Não.
HAMLET
Decidam os juizes.

OSRICO
Uma estocada, uma estocada muito visivel.

LAERTES
Bem ... Outra vez.
ACTO V, SCENA II 361

REI

Esperae que me tragam vinho. Hamlet, esta pe-


rola é tua. Á tua saude ! Dae-lhe a taça .
Soam as trombetas ; ouvem- se tiros fóra.

HAMLET

Quero primeiro concluir este assalto ; ponde a


taça ahi ao lado . Vamos .
Recomeça o combate.
Outra estocada ; que dizeis ?

LAERTES

Fui tocado, fui tocado, confesso.

REI

O nosso filho ha de ganhar.

RAINHA

Elle está gordo, tem a respiração curta ( 19) . Ham-


let, aqui tens o meu lenço , enxuga a testa . A rainha
bebe á tua boa fortuna, Hamlet.

HAMLET
Minha boa senhora ...
362 HAMLET

REI
Gertrudes, não bebas.

RAINHA
Hei de beber, senhor ; desculpae-me, peço-vos.

REI, á parte
A taça envenenada ; é tarde de mais.

HAMLET
Não me atrevo a beber ainda, senhora ; d'aqui a
nada.
RAINHA
Vem ; deixa-me limpar-te a cara.

LAERTES , ao Rei
Senhor, vou dar-lhe agora uma estocada.

REI
Não creio .
LAERTES , à parte
E comtudo é quasi contra a minha consciencia.

HAMLET
Vamos ao terceiro , Laertes. Tendes estado a
brincar ; peço-vos que attaqueis com toda a força ;
receio que me estejaes tratando como creança.
ACTO V, SCENA II 363

LAERTES
Dizeis isso? Vamos.
Esgrimem.
OSRICO
Nada ; nem d'um, nem d'outro lado.

LAERTES
Ahi tendes agora.

Laertes fere Hamlet ; no ardor do combate trocam-se os


floretes, e Hamlet fere Laertes.

REI
Separae-os ; estão encolerisados.

HAMLET

Não ; vamos outra vez.


A rainha cahe.
OSRICO
Vede a rainha ! oh !

HORACIO
Estão ambos a escorrer sangue. Como estaes,
meu senhor ?
OSRICO
Como estaes, Laertes?
364 HAMLET

LAERTES

Oh! Como gallinhola cahida no proprio laço, Os-


rico. Morro e é justo pela minha perfidia.

HAMLET
O que tem a rainha ?

REI
Desmaiou quando viu sangue.

RAINHA

Não, não ; a bebida, a bebida ! Ó meu querido


Hamlet, a bebida ! a bebida ! Estou envenenada.
A rainha morre.
HAMLET
Villania ! Fechem as portas. Traição ! Descubra-
se a traição !
LAERTES
Eil-a aqui, Hamlet : tu estás morto ; não existe
no mundo remedio capaz de salvar-te ; em ti não ha
meia hora de vida ; o perfido instrumento está na
tua mão afiado e envenenado . A acção torpe vol-
tou-se contra mim ; eis-me prostrado para não mais
tornar a erguer-me. Tua mãe está envenenada ...
Já não posso ... O rei ... o rei é o criminoso.
ACTO V, SCENA II 365

HAMLET

A ponta envenenada ! Então, veneno, trabalha !


Fere o rei.
TODOS
Traição ! traição !
REI

Amigos, defendei-me ainda ; estou apenas ferido.

HAMLET
Ó incestuoso, assassino, maldito dinamarquez !
Acaba da engulir esta poção ! Está aqui dentro a
tua perola? Segue minha mãe !
O rei morre.
LAERTES
Déste-lhe o merecido castigo ; é um veneno pre-
parado por elle. Nobre Hamlet, perdoemo -nos um
ao outro . Não caiam sobre ti a minha morte e
a de meu pae, nem caia sobre mim a tua morte.
Morre.
HAMLET

O ceu te livre d'essa culpa. Vou seguir- te. Hora-


cio, eu morro. Desaventurada rainha, adeus ! Vós
que empallideceis e tremeis ante o funesto caso,
vós que sois apenas mudos ouvintes d'este drama,
se eu tivesse tempo (pois este cruel sargento (20),
a morte, é rigoroso nas capturas) ... Oh ! ... se eu
366 HAMLET

tivesse tempo... havia de contar-vos... mas ... dei-


xemos isso... Horacio, morro... tu ficas vivo... justi-
fica Hamlet e o seu procedimento aos que não
souberem como as coisas se passaram.

HORACIO

Não accrediteis que eu vos sobreviva : sou mais


um antigo romano do que um dinamarquez. Aqui
ainda ha liquido.
HAMLET

Se és homem, dá-me a taça ; larga-a ; pelo ceo


que a hei de ter ! Ó Deus ! Horacio , se as coisas
ficarem assim desconhecidas, que enlameado nome
deixarei de mim ! Se alguma vez me trouxeste no
teu peito, conserva-te por algum tempo ainda au-
sente da suprema felicidade, e n'este mundo cruel
emitte o alento da tua dolorosa respiração para
contar a minha historia .
Marcha militar ao longe; tiros d'artilheria dentro.
Que ruido bellicoso é este ?

OSRICO

É o joven Fortimbraz, que regressa triumphante


da Polonia, e sauda os embaixadores de Inglaterra
com uma salva marcial.
ACTO V, SCENA II 367

HAMLET

Oh ! Eu morro, Horacio ; o energico veneno der-


ruba-me o espirito completamente ; não poderei vi-
ver bastante para ouvir noticias de Inglaterra ; mas
prophetiso que a eleição recahirá sobre Fortimbraz;
dou-lhe o meu voto moribundo ; refere-lhe, com
maior ou menor numero de incidentes, o que pro-
vocou... O resto... é ... silencio.
Morre.
HORACIO

Assim estala um nobre coração ! Boa noite ,


amado principe ! Enxames de anjos te embalem o
repouso com o seu canto ! A que proposito vem
aqui o tambor?
Marcha militar fóra da scena.

Entram FORTIMBRAZ ,
OS EMBAIXADORES DE INGLATERRA, e outros.

FORTIMBRAZ
Onde está esse espectaculo ?

HORACIO
O que desejaes vêr ? Se é uma desgraça ou um
prodigio, não procureis mais longe.
368 HAMLET

FORTIMBRAZ

Este monte de cadaveres brada : Vingança ! Ó


morte orgulhosa ! Que festim se prepara no teu an-
tro infernal, para d'um golpe sangrento ferires tan-
tos principes ?
EMBAIXADOR
A vista é hororosa ; e a nossa mensagem chega
demasiado tarde de Inglaterra . Está insensivel o ou-
vido, que nos devia escutar, e a quem diriamos que
foi cumprida a sua ordem, que Rozencrantz e Guil-
denstern morreram. De quem receberemos os agra-
decimentos ?
HORACIO
Não da bocca d'elle, ainda que tivesse o poder
da vida para agradecer-vos ; nunca deu ordem para
taes mortes. Mas, como a ponto vos achaes em meio
d'este cruento lance, chegados - vós da guerra da
Polonia, e vós da Inglaterra — ordenae que estes ca-
daveres sejam expostos á multidão em cima d'um
estrado alto, e deixae-me relatar ao mundo, que ainda
o ignora, o modo como isto aconteceu. Ouvireis então
fallar de actos lascivos, sanguinarios , repugnantes á
natureza ; de sentenças lavradas pelo accaso, de
assassinios fortuitos, de mortes perpetradas por alei-
vosia ou por violencia, e-- como remate - de pro-
jectos, que por engano ruiram sobre as cabeças de
seus auctores. Tudo posso referir-vos sem mentir.
ACTO V, SCENA II 369

FORTIMBRAZ

Apressemo-nos a ouvil-o, e convoquemos os mais


nobres para a assembléa. Quanto a mim, acceito
com pesar a minha fortuna ; tenho sobre este reino
direitos antigos, que os meus interesses me obrigam
a invocar.
HORACIO
Terei tambem occasião de fallar-vos sobre esse
assumpto em nome de alguem, cujo voto ha de
trazer outros ; mas ponhamos já por obra esta reso-
lução, em quanto estão inquietos os espiritos ; não
succedam novas desgraças por erro ou por conspi-
ração .
FORTIMBRAZ
Quatro capitães levem Hamlet, como um guer-
reiro para cima do catafalco , porque é mais do que
provavel, que se houvesse alguma vez subido ao
throno, teria dado mostras de ser um grande rei.
Quando elle passar, as musicas militares e as salvas
guerreiras resoem bem alto em sua honra. Levae
d'ahi os corpos . Espectaculo, como este, convem ao
campo de batalha ; aqui faz mal. Ide ; ordenae aos
soldados, que deem uma salva.
Marcha funebre. Sahem levando os cadaveres ; ouve-se de-
pois uma salva.
NOTAS

PRIMEIRO ACTO

( 1)

O original diz : a piece of him.


Francisco Hugo traduz : un peu.
Guizot : un petit morceau de lui.
Rusconi : un brano di lui.
Não comprehendemos o que seja um pouco
d'elle, um pedaço d'elle, etc ; e como desejavamos
traduzir a phrase de um modo intelligivel, procurá-
mos todas as accepções, que póde ter a palavra
piece. No grande diccionario de Johnson encon-
trámos a accepção de picture, a representation of
any thing by drawing, a resemblance to the eye
or understanding. Já nos bastava isso ; porem fomos
ainda consultar o diccionario de Webster , depois o
12
372 HAMLET

de Walker, depois o Imperial Dictionary, e em


todos encontrámos a mesma accepção auctorisada
com exemplos de Pope e Dryden.
Portanto piece tambem quer dizer : a figura, a
representação, a similhança, a coisa parecida, o vul-
to. Eis o motivo da nossa interpretação , que está
perfeitamente de accordo com as circumstancias,
em que se acha Horacio. É noite funda . Bernardo
distingue apenas vultos, e querendo saber quem se-
jam os dois homens, acabados de chegar, pergunta :
«É Horacio quem está ahi ?» A resposta é natura-
lissima: «O vulto d'elle .>>

(2 )

O original diz : approve our eyes. Ora isto na


opinião dos mais distinctos commentadores quer
dizer : add a new testemony to that of our eys. E o
que se exprime em portuguez pelo verbo corroborar.

(3)

Em inglez lê-se scholar, que significa um lettra-


do, um erudito . Marcello accentua bem essa quali-
dade, que distinguia Horacio, porque, segundo a
crença popular da edade media, para fallar com os
espiritos era preciso ser sabio.
NOTAS 373

(4)
Did squeak and gibber.
Francisco Hugo diz : les morts en linceul allè-
rent, poussant des cris rauques.
Guizot : les morts en linceul s'en allaient criant
et gémissant.
To squeak no diccionario de Webster é to utter
a shrill sound, emittir um grito agudo, lamentoso .
Não precisamos da periphrase , a que recorreram
aquelles traductores, porque temos o verbo ulular,
que significa dar grandes gritos lamentosos, e que
se encontra a cada passo em Garrett, Camillo, La-
tino Coelho, e nos antigos classicos .

(5)

A truant disposition.
Francisco Hugo traduz : un caprice de vagabond.
Guizot : un naturel de vagabond.
Montégut : une envie de dissipation.
No diccionario de Webster truant quer dizer
idle, ocioso, desapplicado . Mandriar é fazer vida
de ocioso, desapplicado .
374 HAMLET

(6)

Antigamente era costume servir iguarias frias ás


pessoas, que assistiam ao funeral. Em alguns con-
dados inglezes esta pratica perpetuou-se entre os
yeomen.

(7)

No tempo, a que Shakespeare se refere, a mo-


narchia na Dinamarca era electiva.

(8)

Dulls the edge of husbandry. Em quasi todos os


traductores se encontra esta phrase traduzida litte-
ralmente. Não duvidámos seguir-lhes o exemplo ,
porque os nossos bons auctores escrevem muitas
vezes : embotar os fios do desejo, querendo significar
diminuir, entibiar, enfraquecer o desejo . Tambem
dizem, pelo contrario, dar fios ao temor, á esperan-
ça, no sentido de tornar mais vivos esses affectos.
Como se vê, é metaphora tirada do fio das armas,
-observa Moraes.

(9)
Francisco Hugo, traduzindo litteralmente, diz :
débauches ; mas, ainda que modernamente se em-
NOTAS 375

pregue o termo deboche, preferimos pagode porque


o julgamos mais portuguez, e porque exprime a
ideia com todo o rigor . Os nossos bons auctores
applicam a palavra pagode para significar as «fun-
cções e divertimentos de comesaina e danças »..

( 10)

A phrase ingleza é questionable shape.


Francisco Hugo diz : une forme si émouvante.
Guizot: une forme si provoquante .
Montégut : une forme si inquiétante.
Rusconi : forma si sacra.
Nenhuma d'estas interpretações nos satisfaz tão
completamente, como a de um erudito commenta-
dor, que attribue ao adjectivo questionable uma ou-
tra accepção. Diz elle que no tempo de Shakespeare
to question significava to converse, e portanto ques-
tionable shape quer dizer : a shape or form capable
of being conversed with. Ora tratavel em portuguez
significa exactamente o homem com quem se pode
tratar, conversar.

(11)

Os reis da Dinamarca eram enterrados assim .


376 HAMLET

(12)

Esta comparação é de uma belleza encantadora .


A palavra meditation era consagrada pelos mysticos
para designar o arrebatamento da alma, que aspira
ao gozo da suprema ventura. De sorte que Hamlet
só acha comparavel á rapidez da sua vingança as
duas coisas mais rapidas, que é possivel imaginar :
a ardencia da paixão divina e humana, experimen-
tada por um fanatico e por um amante .

( 13)

Horacio diz : É um prodigio estranho, e Hamlet


faz o trocadilho, que se pode traduzir perfeitamente
em portuguez : Acolhei-o como se faz a um estranho.
Quer dizer: dae-lhe guarida dentro de vossa casa
ou melhor - occultae-o , alludindo ás leis da hos-
pitalidade. E era isso o que Hamlet pretendia.
SEGUNDO ACTO

(1)
As you may season it in the charge.
Guizot e Francisco Hugo traduziram tempérer la
chose, e Montégut usa do verbo atténuer...
Em portuguez ha o verbo sazonar com a signi-
ficação de temperar, dar bom sabor ao comer ; e
no figurado diz- se : sazonar o discurso com boas
razões. Preferimos comtudo o verbo doirar por ser
hoje mais empregado. Bocage escreveu : « A cur-
vada lisonja os crimes doira. » É perfeitamente o
nosso caso .

(2)

Nenhum dos escriptores, a que nos temos refe-


rido, traduz o que está no original : hands of for-
378 HAMLET

tune. Talvez não haja em suas linguas a expressão


litteral correspondente . Em portuguez ha. Os bons
auctores dizem : Tocou-o a mão de Deus, isto é ,
enviou-lhe Deus trabalho, e provações. O dicciona-
rio de Moraes cita uma phrase de Arraes - aggra-
vou-se a mão de Deus sobre elle -na significação
de enviou lhe males, castigos pezados.

(3 )
Na tragedia ingleza lê-se clown . Ora clown no
diccionario de Webster significa a rustic, a rude, un-
polished person. A isto corresponde em portuguez
um rustico, isto é, um homem inculto, sem arte,
um homem rude, grosseiro. Não nos parece que
clown se deva traduzir bôbo. Quando Shakespeare
quer dizer bôbo, não escreve clown, escreve jester
ou fool. No Rei Lear, por exemplo, ha um bôbo ,
e o auctor na lista dos personagens põe Fool. No
Hamlet, ao principiar o quinto acto, para dizer
que entram os dois coveiros diz : Enter two clowns,
que evidentemente significa dois rusticos, e não dois
bôbos ; e quando o primeiro rustico falla na caveira
de Yorick, bôbo do rei, não diz king's clown, diz
king's jester.
NOTAS 379

(4)
Diz o notavel commentador Steevens que não
era permittido aos actores uma residencia fixa por
causa do novo costume de introduzir nas comedias
allusões pessoaes.

( 5)
O theatro de Shakespeare , que se chamava thea-
tro do Globo, tinha por emblema Hercules transpor-
tando o mundo.

(6)
Era um antigo proverbio.

(7)
This great baby, diz o original. Os francezes
traduzem grand bambin, grand marmot, grand en-
fant. Nós traduzimos creancinha pela propriedade,
que tem a nossa lingua, de dar mais força á pala-
vra empregando-a no diminuitivo : Aquillo sempre .
é uma mulhersinha ! Sahiu-me um sujeitinho ! Cas-
tilho dizia : canalhinha, augmentativo de canalha.
Além disso, temos a expressão : É uma creancinha
para significar um finorio, um sujeito, que ninguem
embaça.
380 HAMLET

(8)
Parece ser o primeiro verso de uma ballada.

(9)
Dirige-se a um actor, que fazia papeis de mu-
lher.

(12)
Like John-a-dreams, umpregnant of my cause.
Francisco Hugo diz : Jeannot rêveur, impuissant
pour ma propre cause.
Guizot : Jeannot rêveur, mal imprégné de la fé-
condité de ma cause.
Pretende Guizot que este John-a-dreams seja
allusão ao personagem d'alguma historia popular ;
e dizendo que em França dava-se antigamente o
nome de Guillot le Songeur aos que passavam a
vida excogitando meios de acção, diz tambem que
esse nome deriva de um personagem do Amadis
chamado Guillan le Pensif.
Ora nós temos José sonhador, o que sonha a
miudo ; e no figurado, o devaneador, o scismador,
por allusão ao José do Egypto ..
Unpregnant of my cause, segundo um bom com-
mentador, significa not quickened with a new desire
NOTAS 381

of vengeance. Por isso traduzimos : inerte como um


José sonhador, não sinto esporas para a vingança .

(13)

Shakespeare, na opinião de Guizot, allude a uma


aventura do seu tempo . Conta-se que os comicos
do conde de Sussex representavam na provincia
de Norfolk uma peça cujo enredo era o seguinte :
« Certa mulher, que se apaixonára por um rapaz
filho de uma familia illustre, assassinou o marido
ás escondidas para mais livremente dar largas á
paixão ; mas a sombra do morto persegui-a cons-
tantemente, apparecendo-lhe nos logares mais afas-
tados e mais sós. »>
Assistia ao espectaculo uma rapariga da terra ,
que sempre gozara de optima reputação, e vendo
o phantasma principiou a gritar : «Meu marido ! meu
marido estou a ver a sombra de meu marido ! » Os
espectadores rodearam-na , e perguntaram-lhe o mo-
tivo da sua perturbação. A rapariga respondeu que,
havia sete annos, para consagrar- se toda a um
amante, tinha envenenado o marido , cuja imagem
terrivel se lhe representara sob a fórma d'aquelle
espectro . Levada a juizo , confessou tudo, e foi con-
demnada. Os actores, e muitos habitantes da cidade
presenciaram este facto.
TERCEIRO ACTO

(1)

We do sugar over the devil himself.


Francisco Hugo diz : emmieller le diable lui-même.
Guizot : Nous faisons paraître doux comme su-
cre le diable lui-même.
Em portuguez temos adoçar na accepção de
mitigar, suavisar ; temos adoçar a bocca a alguem,
isto é, enganal- o com bons modos ; e temos até a
phrase adoçar o demonio, que é a traducção litteral
da expressão ingleza .

(2)

Ainda que no original se leia scorns of time, tra-


duzimos d'esta epocha em virtude da explicação do
384 HAMLET

doctor Warburton . Segundo este, os males, a que


Hamlet se refere , não são os que derivam do tempo,
mas de um seculo corrompido. Devemos suppor—
continúa Warburton - que Shakespeare escreveu
scorns of this time. Effectivamente a descripção, que
se segue, dos males de uma epocha pervertida, con-
firma esta observação .

(3)

Termagant, diz o original.


Nos antigos mysterios havia uma divindade sar-
racena, chamada Termagante , cujo caracter, assim
como o de Herodes, era violento, bravateador . Gui-
zot diz que era uma especie de Mata-moiros tragico
e tomado a serio.

(4)

To shew... the very age and body of the time


his form and pressure .
Traduzimos a cada seculo, a cada encarnação
do tempo, seguindo o exemplo de Guizot e Fran-
cisco Hugo, que adoptaram a correcção de Mason.
Em logar de the very age, que não dá sentido al-
gum admissivel, Mason diz que se deve lêr every
age and body of the time.
NOTAS 385

(5)

Segundo um proverbio inglez, as palavras de


um homem deixam de pertencer-lhe, logo que são
proferidas.
(6)

Como é facil de ver, ha aqui o trocadilho entre


as palavras Bruto e bruto (Brutus e brute) , e as
palavras Capitolio e capital ( Capitol e capital), que
em inglez soam quasi da mesma fórma .

(7)
A phrase ingleza é : do you think I meant coun-
try manners? O doctor Johnson diz que o sentido
é este : « do you imagine that I meant to sit in your
lap, with such rough gallantry as clowns use to
their lasses ?» Eis o motivo, pelo qual traduzimos :
cuidaes que eu fallava como um rustico ?

(8)

Na tragedia lê-se : to lie between maid's legs.

(9)
Shakespeare escreve : I'll have a suit of sables.
Sable quer dizer a pelle da marta zibelina , que
386 HAMLET

era o enfeite mais luxuoso no tempo de Shakes-


peare ; e na linguagem heraldica significa tam-
bem a côr negra. O auctor, empregando esta pala-
vra, quiz deixar o publico hesitante entre os dois
sentidos. Hamlet dissimulava ; e por consequencia
dizia a Ophelia : « Vista- se o diabo de preto ! eu
quero o luxo, e elegancia das martas zibilinas ! » Ao
mesmo tempo segredava a si mesmo : « Não ; o trajo
que me convem, e que eu desejo, é o luto piedoso,
que finjo querer deixar » .

( 10)

Nas festas populares do mez de maio havia um


cavallinho de pao, que era objecto de uma dança
e de varias farças. Os puritanos condemnaram e
proscreveram aquelles divertimentos, e em conse-
quencia d'isso appareceu uma ballada ou cantiga ,
lamentando a sorte do cavallinho . Hamlet canta uma
parte da ballada , oppondo ao esquecimento, em que
tinha cahido a innocente victima dos sectarios, a
eterna memoria, que deixava de si o fundador de
qualquer egreja.

(11 )
Still better, and worse.
Traduzimos de melhor a peior, seguindo a opi-
NOTAS 387

nião de Steevens. Este explica assim a phrase :


«better in regard to the wit of your double enten-
dre, but worse in respect of the grossness of your
meaning. »
( 12 )

Allude á promessa, feita pela mulher, de acom-


panhar o marido na melhor e na peior fortuna .

(13)

Antigamente os sapatos. elegantes eram golpea-


dos, como os vestidos , para deixarem apparecer os
forros de cores diversas. Tinham atacadores, shoe-
strings, e no centro, onde os atacadores se encon-
travam , punha- se-lhes um grande laço de fita em
forma de rosa.
Shakespeare diz matilha de comicos, por allusão
ás matilhas de caça . N'aquelle tempo, escreve um
commentador, a matilha de caça, pack of hounds,
chamava-se: cry of hounds. Na tragedia lê-se : cry
of players, matilha de comicos.

(14)
Os actores não tinham ordenados fixos. Eram
todos, como hoje se diz, societarios, e dividiam en-
tre si os lucros da empreza, segundo a parte, que
388 HAMLET

pertencia a cada um. Os secundarios tinham meio


quinhão, os mais importantes um quinhão inteiro.
Horacio diz que Hamlet terá apenas meio quinhão,
porque foi simples collaborador na peça, que fez
representar. Hamlet requer um quinhão inteiro, at-
tendendo ao bom exito do seu plano .

(15)
Hamlet diz : a very peacok. A rima devia ser a
very ass. Horacio entende que o rei da Dinamarca
era mais digno da qualificação de burro, do que
de pavão.
( 16)

Na tragedia lê-se : by these pickers and stealers.


Esta periphrase é tirada do velho catecismo inglez,
que ensina ao catechumeno : « Prohibe ás tuas duas
mãos que furtem e roubem » .

(17)
O proverbio era : « Emquanto a herva cresce, o
cavallo faminto emmagrece ».

( 18)

O original diz : those many many bodies.


Os traductores dizem : innombrables existences,
NOTAS 389

ces milliers d'hommes, tante migliaia d'uomini &.


A todas estas fórmas achamos preferivel a ele-
gantissima forma portugueza : tantos e tantos corpos.

(19)

Expressão biblica tirada de Ezechiel. Fallando de


Sodoma diz o propheta : « Eis aqui qual foi a ini-
quidade de Sodoma , tua irmã : a soberba, a fartura
de pão, e a abundancia, e a ociosidade, d'ella e de
suas filhas ; e não estendiam a mão para o pobre
indigente. >>

(20)

When he is fit and season'd for his passage.


Guizot traduz : lorsqu'il est prêt et accommodé
pour le voyage.
Hugo : quand il est en mesure et préparé jour le
voyage.
Ora fit corresponde perfeitamente ao termo por-
tuguez apercebido, isto é, provido do necessario, pre-
parado. Season'd tambem tem na nossa lingua o seu
• equivalente estar na sazão propria, isto é , na
occasião opportuna, na quadra favoravel. D'ahi, o
modo como traduzimos.
390 HAMLET

(21)

I'll lug the guts.


Guts quer dizer tripas ; mas no tempo de Sha-
kespeare tinha uma significação mais ampla , e de-
signava todas as visceras contidas nas cavidades
thoracica e abdominal. É isto o que em portuguez
se exprime por meio da palavra entranhas. Francisco
Hugo tambem traduz ses entrailles.
QUARTO ACTO

(1)
Hanmer explicou esta phrase do seguinte modo :
«Os macacos, quando comem, guardam dentro da
bocca os primeiros pedaços de alimento, e só os
engolem no fim de tudo . >»

(2)

Guizot diz que a expressão é tirada do psalmo


CXLIV, onde se lê, segundo a traducção ingleza :
«O homem é uma coisa de nada» .

(3 )

É um jogo de creanças, que se chama hide fox,


392 HAMLET

and all after, e que é similhante ao nosso jogo das


escondidas.

(4)
Worms, escreveu Shakespeare. Foi na cidade de
Worms, que os imperadores da Allemanha reuni-
ram as mais celebres dietas. Vê-se portanto que
Hamlet n'este gracejo envolve o imperador, a dieta,
e os vermes.

( 5)
To fust in us unus'd.
Guizot e Francisco Hugo traduziram to fust por
moisir.
Diogo de Paiva de Andrade escreveu : « Enten-
dimentos que, se não exercitam, tomam bolor » . Ado-
ptámos a expressão por ser quasi traducção litteral
da phrase de Shakespeare.

(6)
É locução portuguezissima, que significa: por
coisa de nenhuma substancia ou momento. Encon-
tra-se a cada passo em bons auctores, como Jorge
Ferreira de Vasconcellos e outros, e é pelo menos
tão fiel como a traducção de Francisco Hugo : trou-
ver une querelle dans un brin de paille.
NOTAS 393

(7)
Conta uma legenda de Gloucestershire que Nosso
Senhor Jesus Christo entrou um dia na casa de um
padeiro, que tinha uma fornada a cozer, e pedio um
pedaço de pão . A mulher do padeiro metteu logo
no forno um bocado de massa ; porem a filha
começou a ralhar dizendo que era muito grande, e
tirou-lhe mais de metade. Apenas entrou no forno,
a massa principiou a crescer, e tornou- se um pão
enorme. Vendo isto , a rapariga desatou a gritar :
«hê! hê! hê! », o que deu a Jesus Christo a ideia de
a transformar em coruja para castigo da sua ava-
reza.

(8)
A festa de S. Valentim é a 14 de fevereiro. Em
alguns condados inglezes toda a rapariga devia ac-
ceitar por namorado o primeiro rapaz, que visse na
manhã d'aquelle dia, e vice-versa . Em outros con-
dados mettiam-se n'uma urna pequenos papeis com
os nomes dos rapazes , e as raparigas tiravam á
sorte uma por uma. Aquelle, cujo nome sahia, ficava
sendo o Velentim d'aquella que tirava a sorte, e
ella a sua Valentina.
Costumes identicos se observam entre nós pelas
festas de Santo Antonio , S. João e S. Pedro.
394 HAMLET

(9)
O verso inglez é : By Gis, and by Saint Charity.
Gis é corruptela de Jesus, e deriva das lettras
J. H. S. com que se escrevia o nome do Senhor
nos altares, nas capas dos livros etc. Santa Caridade
não é a virtude theologal ; mas uma santa invocada
frequentemente na antiga poesia ingleza, e que tem
logar no martyrologio no dia 1 d'agosto , por ter
padecido o martyrio em Roma, juntamente com
duas outras virgens chamadas Fé e Esperança , no
tempo do imperador Adriano.

( 10)
Traduzimos assim baseando -nos na seguinte in-
terpretação do doctor Johnson : « O amor ( diz Laer-
tes) é a paixão que. mais subtiliza e requinta a
natureza ; e assim como as substancias requintadas
e subtilizadas obedecem facilmente a qualquer im-
pulso ou seguem qualquer attracção, tambem qual-
quer parte da natureza subtilizada e requintada pelo
amor voa em seguimento do objecto amado .

( II )
No Primeiro Hamlet, escreveu Shakespeare a
seguinte rubrica : «Ophelia entra com os cabellos
NOTAS 395

esparsos, tocando cithara e cantando. » É de suppor


que cantasse o estribilho Abaixo, abaixo, cuja es-
plicação o doctor Johnson confessa ignorar.

(12 )
O rosmaninho, segundo affirmavam os medicos
arabes, tinha a propriedade de fortalecer o cerebro
e a memoria. Era o emblema da fidelidade , porque
está sempre verde, e por isso trazia-se sempre nas
bodas e nos funeraes. Os amores perfeitos eram a
flor do pensamento por causa do seu nome Pansies,
de Pensées.

(13)
Funcho era o symbolo da lisonja e da dissimu-
lação. A papoila a flor do esquecimento .

( 14)
A arruda era o emblema da tristeza, porque -
diz Steevens - rue (arruda) significava antigamente
o mesmo que ruth (tristeza) . Chamava-se a herva
santa dos domingos, porque os padres catholicos
deitavam arruda na bebida, que davam aos posses-
sos, quando os exorcisavam, e os exorcismos tinham
logar aos domingos.
12*
396 HAMLET

(15)

O malmequer, segundo a opinião de Greene,


servia para aconselhar ás donzellas que não accre-
ditassem nas promessas dos rapazes.

(16) .

Ha aqui uma delicadeza de sentimento, que é


na realidade extraordinaria. A violeta era a flor da
fidelidade ; mas Ophelia suppõe que murcharam to-
das com a morte de seu pae.

(17)

É um verso d'uma canção antiga.

(18 )

( original diz I must common . Temos em por-


tuguez o verbo communicar n'esta accepção de
participar, associar-se : Os santos communicam nas
boas obras. Communicar no prazer, na dôr etc.
Não o empregámos , porque associar-se dá a
mesma ideia, e é hoje mais vulgar.
NOTAS 397

(19)
Unworthiest siege, que se lê na tragedia, é o
mesmo que of the lowest rank, segundo um com-
mentador. Por isso traduzimos de infima ordem .

(20)

Metaphora derivada do ensaio ou experiencia


das armas de fogo, que muitas vezes arrebentam
na prova .
QUINTO ACTO

( I)
O original diz : se offendendo .

(2)
Shakespeare ridiculisa as subtilezas da jurispru-
dencia do seu tempo .

(3 )
Agora ridiculisa a aristocracia.

(4)
As tres estancias cantadas pelo coveiro são ex-
trahidas de um pequeno poema The aged Lover
400 HAMLET

renounceth Love, escripto por Henrique Howard,


conde de Surrey, que floresceu no reinado de Hen-
rique vi , e foi decapitado em 1547 pela falsa ac-
cusação de traidor.
(5)
Aqui ha um jogo de palavras, que é de todo o
ponto impossivel traduzir. O verbo to lie umas ve-
zes significa mentir, outras estar ou jazer.

(6)
So picked, escreveu Shakespeare ; e Hanmer in-
terpreta so smart, so sharp, tão agudo, tão espiri-
tuoso ; mas o doctor Johnson diz que n'aquella epo-
cha era moda usar-se a picked shoe, a shoe with a
long pointed toe, um sapato de biqueira comprida
e aguda, a que a allusão parece referir-se .

(7)
Whoreson dead body, diz o texto .

(8)
Costumavam os namorados do tempo de Sha-
kespeare dar ás suas amadas as demonstrações de
affecto mais extravagantes . Uma era beber qualquer
liquido desagradavel.
NOTAS 401

(9)

É sabido que a pomba nunca põe mais de dois


ovos em cada postura ; e quando os filhos sahem
da casca, permanece tres dias immovel no ninho
sem consentir que o macho fique em sem logar.

( 10)
Mutines in the bilboes.
Traduzimos : marinheiros desobedientes ferrolha-
dos em cadeias pelas seguintes razões :
Mutines é um termo francez, que se applica aos
desobedientes ou revoltosos do exercito e da arma-
da.
Bilboes, diz Steevens, é uma barra de ferro, com
cadeias annexas, a que se prendiam antigamente os
marinheiros sublevados e desordeiros. Alem d'isso
na Chronica de D. João ш , citada por Moraes, lê-se :
"ferrolhou todos os marinheiros com cadeias ».

(11)

Esta scena é uma satyra á falsa delicadeza, e


aos estupidos requintes de forma e de elegancia,
que usavam os cortezãos no tempo de Shakespeare .
402 HAMLET

(12)
Allusão aos manuaes de boas maneiras, e de
estylo elegante, que serviam de norma aos euphuis-
tas e ás preciosas ridiculas.

(13)
No original lê-se carriages..
Francisco Hugo traduziu trains e Guizot équipa-
ges.
Nós traduzimos trens, porque a palavra trem si-
gnifica a reunião de moveis e utensilios precisos
para um certo serviço, destinados a um certo fim.
Mais abaixo Hamlet diz : « O termo seria mais pro-
prio, se trouxessemos ao lado uma peça de artilhe-
ria». Ora em portuguez chama-se trem d'artilheria
todo o aparelho d'ella .

(14)

Nos livros antigos as notas explicativas ou com-


mentarios eram vulgarmente impressas nas margens .

(15)
O emprego, que fizemos, da palavra occas ba-
seia-se no seguinte exemplo citado pelo diccionario
NOTAS 403

de Moraes : « Em ventosas aereas esperanças lhe


está lidando a occa phantasia, sempre cevada em
loucos devaneios, illusões delirosas » .

( 16)
Esta passagem é extrahida do Evangelho de S.
Matheus, x, 29. « Por ventura não se vendem dois
passarinhos por um asse, e um d'elles não cahirá
sobre a terra sem vosso pae ?»

( 17)
O doctor Johnson commenta assim a phrase :
« Visto que nenhum homem sabe coisa alguma do
estado de vida que deixa, visto que não póde ima-
ginar o que lhe succederia, se vivesse mais tempo,
de que lhe serve ter medo de deixar cedo a vida ?...
Desprezo todo o agoiro e superstição, porque re-
pugnam ao intendimento e á piedade ; a minha con-
solação é que não posso morrer senão por um de-
creto da Providencia » .

(18)
Traduzimos alvo, por nos não atrevermos a
traduzir plastron, que é o termo technico de esgri-
ma, e que nos parece indispensavel adoptar.
404 HAMLET

( 19)
Querem alguns ver n'esta phrase uma allusão á
gordura do actor Burbage. Não accreditamos que o
seja. Shakespeare , que era um observador profun-
dissimo, e a quem não escapava a minima particu-
laridade, dotou o seu heroe com um dos caracteres
physicos, que geralmente acompanham a vida se-
dentaria. Alem d'isso , os nevroticos, como Hamlet,
são por via de regra homens robustos.

(20)
This fell serjeant.
Guizot traduz huissier, que é o meirinho .
Francisco traduz recors, que corresponde a be-
leguim.
São palavras differentes, mas significam ambas
um official de Justiça. O nosso riquissimo idioma
tem a palavra sargente que é tambem um official
de justiça, e que é traducção litteral de serjeant.
HA

Eau.
RC

DIPUTACIÓ DE BARCELONA

Biblioteca de Catalunya

Reg. 560.320

Sig. 841.6 16
Sba =6
Biblioteca
de Catalunya

# 84.8au

1106

CA DE CATALUNYA

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