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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES / DEPARTAMENTO DE


LITERATURA
Prof. Geraldo Augusto Fernandes, Literatura Portuguesa I – 2023.1

RENASCIMENTO EM PORTUGAL (1527-1580)

A criação de Adão. Michelangelo, 1508-1512, Capela Sistina, Vaticano

Os personagens principais desta pintura são Deus e Adão. Adão foi representado ao
lado esquerdo inferior da imagem. Ele está nu, com o corpo levemente erguido. Um dos
braços do personagem está estendido em direção a Deus, que foi representado do lado
direito superior da imagem, como um homem branco mais velho, com barbas e cabelos
longos e brancos, vestindo uma roupa solta e leve, de cor rosa (semelhante às roupas
da Antiguidade). Deus está rodeado de anjos e de outros “seres celestes”. Ele está
estendendo sua mão direita em direção a Adão. A mulher que está sob um dos braços
de Deus é Eva.
Fonte; http://rosangelal.blogspot.com/2015/05/atividade-p-105-7-ano.html

1
CLASSICISMO – PRELIMINARES
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2008 (adaptado).

O marco inicial do Classicismo português é 1527, quando se dá o retorno do


escritor Sá de Miranda de uma viagem feita à Itália, de onde trouxe as ideias de
renovação literária e as novas formas de composição poética, como o soneto. O período
se encerra em 1580, ano da morte de Luís Vaz de Camões e do domínio espanhol sobre
Portugal.
Para Massaud Moisés, o Renascimento foi decisivo para a Literatura Portuguesa.
O Humanismo antecedeu ao Classicismo e preparou o movimento cultural, em especial
“pela descoberta dos monumentos culturais do mundo greco-latino, de modo particular
as obras escritas, em todos os recantos do saber humano, e por uma concepção de vida
centrada no conhecimento do homem, não de Deus”.
A descoberta do caminho marítimo para as Índias em 1498 por Vasco da Gama,
e dois anos depois o "achamento" do Brasil, permitiram a Portugal gozar de um
prestígio cultural e econômico, mesmo que momentâneo, no reinado de D. Manuel.
Este otimismo ufanista chega ao fim com a batalha em Alcácer-Quibir, no ano
de 1578, quando morre D. Sebastião e Portugal passa ao domínio espanhol. Sob Felipe
II, Camões reflete essa atmosfera de exaltação épica e desafogo financeiro que cruza as
primeiras décadas do século XVI, mas não deixa de refletir também o desalento dos
lúcidos perante a efêmera superioridade portuguesa através da fala do Velho do Restelo
e do epílogo d’ Os Lusíadas.
Do Classicismo ao teocentrismo medieval, vai opor-se uma concepção
antropocêntrica do mundo, em que o "homem é a medida de todas as coisas"
(Protágoras, sofista, 486 a.C/411 a.C). Enfatiza-se a imitação dos autores clássicos
gregos e romanos da antiguidade: Homero, Virgílio, Ovídio, etc.; uso da mitologia: os
deuses e as musas, inspiradoras dos clássicos gregos e latinos aparecem também nos
clássicos renascentistas. Em Os Lusíadas:
(Vênus) = a deusa do amor e (Marte) o deus da guerra, protegem os portugueses
em suas conquistas marítimas; predomínio da razão sobre os sentimentos: a linguagem
clássica não é subjetiva nem impregnada de sentimentalismos e de figuras, porque
procura coar, através da razão, todos os dados fornecidos pela natureza e, desta forma
expressou verdades universais; linguagem sóbria, simples, sem excesso de figuras
literárias; idealismo: o classicismo aborda os homens ideais, libertos de suas
necessidades diárias, comuns.
Os personagens centrais das epopeias (grandes poemas sobre grandes feitos e
atos heroicos) nos são apresentados como seres superiores, verdadeiros semideuses, sem
defeitos. Amor Platônico: Os poetas clássicos revivem a ideia de Platão de que o amor
deve ser sublime, elevado, espiritual, puro, não físico; busca da universalidade e
impessoalidade.
A obra clássica torna-se a expressão de verdades universais, eternas e despreza o
particular, o individual, aquilo que é relativo. O saber concreto, "científico" e objetivo,
tende a valorizar-se em detrimento do abstrato; notável avanço opera-se no campo das
ciências experimentais; a mitologia greco-latina, esvaziada de significado, passa a
funcionar apenas como símbolo ou ornamento; em suma: o humano prevalece ao
divino.
Em 1527, depois de ausente seis anos, Sá de Miranda regressa da Itália,
impregnado das novas ideias. Introduziu, ou colaborou para introduzir o verso
decassílabo, o terceto, o soneto, a epístola, a elegia, a canção, a ode, a oitava, a écloga, a

2
comédia clássica (escreveu Os Estrangeiros em 1526). Tornou-se o principal divulgador
do Classicismo, mas o papel de teórico do movimento coube a António Ferreira1.

A ESTÉTICA CLÁSSICA
Para Moisés, o classicismo consistia, antes de tudo, numa concepção de arte
baseada na imitação dos clássicos gregos e latinos, considerados modelos de suma
perfeição estética. Imitar não significava copiar, mas criar obras de arte segundo as
fórmulas, as medidas, empregadas pelos antigos.
Estabelece-se, ou deseja-se, um equilíbrio entre Razão e imaginação, no afã de
criar uma arte universal e impessoal. Todavia, a universalidade e a impessoalidade
implicavam uma concepção absolutista de arte onde provém que os clássicos
renascentistas procurem a Beleza, o Bem e a Verdade, com maiúsculas iniciais, em
virtude dessa concepção absolutista e idealista de arte. Percebe-se por isso que os
clássicos atribuíam à arte objetivos éticos, identificados com o Bem e a Verdade.
O Classicismo português se inicia e termina com um poeta: Sá de Miranda e
Camões. Numa visão de conjunto, este último é o grande poeta, enquanto os demais se
colocam em plano inferior, naturalmente ofuscados pelo seu brilho.

SÁ DE MIRANDA
Fonte:https://pt.slideshare.net/soniavanail/a-literatura-portuguesa-moises-massaud-30981863

Escritor português, natural de Coimbra. De família fidalga, surge no


Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516), onde colaborou com poemas em
português e em castelhano (como era habitual nos escritores da época). Em 1521, fez
uma viagem à Itália, lá permanecendo até 1527 onde foi introduzido ao Renascimento
italiano.
Sá de Miranda foi o introdutor, na Literatura Portuguesa, do soneto, do terceto,
da oitava, de subgêneros poéticos como a canção, a carta, a écloga e a elegia, do verso
decassílabo e da comédia clássica.
Sá de Miranda concebeu as primeiras comédias clássicas portuguesas
(Estrangeiros e Vilhalpandos), embora não tenha sido bem recebido pelo público,
habituado aos autos à moda de Gil Vicente. Sá de Miranda deixou uma importante obra
epistolográfica e uma série de éclogas, entre outros textos. A sua obra foi publicada
postumamente, em 1595. Influenciou decisivamente escritores, seus contemporâneos e
posteriores, como António Ferreira, Diogo Bernardes, Pero Andrade de Caminha, Luís
de Camões, D. Francisco Manuel de Melo ou ainda, mais recentemente, Jorge de Sena,
Gastão Cruz e Ruy Belo, entre outros.

No soneto apresentado a seguir, um dos mais belos do poeta, ele trata do tema da
mudança, observando as transições na natureza e comparando-as consigo mesmo
(“também mudando-m’eu fiz doutras cores”), verificando que não possui, no entanto, a
mesma capacidade de renovação.

1
António Ferreira, escritor e humanista português. É considerado um dos maiores
poetas do classicismo renascentista de língua portuguesa, conhecido como "o Horácio
português". 1528/1569.
3
O SOL É GRANDE, CAEM CO’A CALMA AS AVES

O sol é grande, caem co’a calma as aves,


do tempo em tal sazão, que sói ser fria; (estação) / (soer=costuma)
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves. (Pensamentos, preocupações)

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,


qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,


vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,


também mudando-m’eu fiz doutras cores:
E tudo o mais renova, isto é sem cura!

QUE FAREI QUANDO TUDO ARDE?

Desarrezoado amor, dentro em meu peito,


tem guerra com a razão. Amor, que jaz
i já de muitos dias, manda e faz
tudo o que quer, a torto e a direito.

Não espera razões, tudo é despeito,


tudo soberba e força; faz, desfaz,
sem respeito nenhum; e quando em paz
cuidais que sois, então tudo é desfeito.

Doutra parte, a Razão tempos espia,


espia ocasiões de tarde em tarde,
que ajunta o tempo; enfim vem o seu dia:

Então não tem lugar certo onde aguarde


Amor; trata traições, que não confia
nem dos seus. Que farei quando tudo arde?

NÃO SEI QUEM EM VÓS MAIS VEJO

Não sei qu'em vós mais vejo; não sei que


mais ouço e sinto ao rir vosso e falar;
não sei qu'entendo mais, té no calar,
nem quando vos não vejo a alma que vê;

Que lhe aparece em qual parte qu'esté,


olhe o céu, olhe a terra, ou olhe o mar;
e, triste aquele vosso suspirar,
em que tanto mais vai, que direi qu'é?
4
Em verdade não sei; nem isto qu'anda
antre nós: ou se é ar, como parece,
se fogo doutra sorte e doutra lei,

Em que ando, e de que vivo; nunca abranda;


por ventura que à vista resplandece.
Ora o que eu sei tão mal, como o direi?

LUIZ VAZ DE CAMÕES

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2008 (adaptado).

Pouco se conhece da vida de Luís Vaz de Camões. Escritor de dados biográficos


muito obscuros, Camões é o maior autor do período. Teria nascido em 1524 ou 1525,
talvez em Lisboa, Alenquer, Coimbra ou Santarém. Pelo seu talento e cultura, teria
provocado paixões entre damas da Corte, dentre as quais a lnfanta D. Maria, filha de D.
Manuel e irmã de D. João III, e D. Catarina de Ataíde. Por causa desses amores
proibidos, é "desterrado" algum tempo para longe da Corte, até que resolve "exilar-se"
em Ceuta (1549), como soldado raso. Perde um olho, e regressa a Lisboa. Em 1552, na
procissão de Corpus Christi, fere Gonçalo Borges, é preso e solto, em seguida, sob a
condição de engajar-se no serviço militar ultramarino. Com efeito, em fins de 1553,
chega à Índia. Em 1556, dá baixa, e é nomeado "provedor mor dos bens de defuntos e
ausentes", em Macau. Ali, teria escrito parte d'Os Lusíadas. Acusado de prevaricação,
vai a Goa defender-se, mas naufraga na foz do rio Mecon: salva-se a nado, levando Os
Lusíadas mas perdendo sua companheira, Dinamene. Em 1572, Camões publica Os
Lusíadas, poema épico que celebrava os recentes feitos marítimos e guerreiros de
Portugal. A obra fez tanto sucesso que o escritor recebeu do rei D. Sebastião uma
pensão anual – que mesmo assim não o livrou da extrema pobreza em que vivia.
Camões morre pobre e abandonado, em 10 de junho de 1580.
Escreveu teatro ao modo vicentino (Auto de Filodemo e El-Rei Seleuco) e ao
clássico (Anfitriões), mas sem alcançar maior nível, relativamente à sua poesia e aos
comediógrafos do tempo. Sua correspondência contém valor biográfico ou histórico-
literário.

5
A POESIA ÉPICA DE CAMÕES
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2008 (adaptado).

Os Lusíadas representam a faceta épica da poesia camoniana. Considerada o


"Poema da Raça", "Bíblia da Nacionalidade" etc., a epopeia constrói a visão do mundo e
dos homens quinhentistas portugueses, retratando o exato momento em que Portugal
atingia o ápice de sua evolução histórica. Recorre a todo material produzido por
escritores portugueses anteriormente: Fernão Lopes, Gomes Eanes de Zurara, Garcia de
Resende e Antônio Ferreira.
O cerne da ação desenvolve-se em torno da viagem de Vasco da Gama às Índias.
A palavra “lusíada” é um neologismo inventado por André de Resende para designar os
portugueses como descendentes de Luso (filho ou companheiro do deus Baco).

FONTES: MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2008 (adaptado)

http://www.qieducacao.com/2010/08/camoes-epico-os-lusiadas-i.html
http://auladeliteraturaportuguesa.blogspot.com.br/2008/12/os-lusadas.html
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/os_lusiadas
http://www.jornaldepoesia.jor.br/camoes1.html e
http://www.jornaldepoesia.jor.br/camoes2.html

Contém 10 cantos, 1102 estrofes ou estâncias e, portanto, 8816 versos2; as


estâncias estão organizadas em oitava-rima [oito versos em cada estrofe]. O poema
está dividido em três partes:

2
A Ilíada de Homero contém 24 cantos; 15.693 versos. Cada canto
corresponde a uma letra do alfabeto grego. A Odisseia de Homero
6
Primeira parte:
Proposição (canto I, estrofes 1 a 3);
Invocação (canto I, estrofes 4 e 5);
Dedicatória (canto I, estrofes 6 a 18);
Segunda parte: Narração - (estrofes 19 do Canto I a 144 do Canto X);
Terceira parte: Epílogo (estrofes 145 a 156 do Canto X).

Síntese do poema:

Cantos I e II - Após as partes introdutórias e a rápida apresentação dos navegadores em


pleno Oceano Índico, narra-se o Consílio dos Deuses no Olimpo3. Convocados por
Júpiter, os deuses irão deliberar sobre o destino dos novos argonautas 4. Baco é contrário
aos portugueses, pois teme que eles superem seus feitos no Oriente. Vênus, e depois
Marte, toma a defesa dos lusos. Júpiter encerra o consílio, decidindo a favor dos
navegadores. Baco, inconformado, resolve agir. Assumindo a forma humana de um
velho sábio, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses, põe a bordo da
esquadra um traidor, falso piloto, arma ciladas em Quiloa5 e Mombaça6. Graças às
intervenções de Vênus, das nereidas7, de Mercúrio e à coragem e astúcia de Vasco da
Gama, os portugueses chegam a Melinde8, terra de muçulmanos que, por obra de
Mercúrio, enviado por Júpiter, a pedido de Vênus, tinham se tornado simpáticos aos
portugueses. Durante os perigos e provações, o capitão roga a proteção da Providência
Divina e agradece por ela ao Deus cristão, mas quem atende às suas preces é Vênus,
divindade pagã, meiga e sedutora, deusa do amor, que convence Júpiter a ajudar seus
protegidos. Paganismo e cristianismo juntos, sem qualquer constrangimento.

Nota: Essa ação mitológica, a disputa entre Vênus e Baco, tem o propósito de elevar os
navegadores à condição de semideuses. Numa clara alegoria, os portugueses, senhores
do amor e da guerra, protegidos por Vênus e Marte, triunfam sobre os oceanos (Netuno)
e sobre seus adversários no Oriente (Baco).

também contém 24 cantos; 12.000 versos; 5 partes. A Eneida de


Virgílio contém 12 cantos; 9826 versos.
3
Morada dos 12 deuses. Monte mais alto da Grécia. Nomes em grego
e em latim: Zeus / Júpiter [deus dos deuses]; Hera / Juno; Poseidon /
Netuno [deus dos mares]; Atena / Minerva; Ares / Martes [deus da
guerra]; Deméter / Ceres; Apolo / Febo; Ártemis / Diana; Hefesto /
Vulcano; Afrodite / Vênus [deusa do amor, da sexualidade, da beleza];
Hermes / Mercúrio; Dioniso / Baco [deus do vinho, das festas].
4
Nau ARGO que saiu à busca do velocino de ouro.
5
Tanzânia
6
Quênia
7
50 filhas de Nereu e de Dóris, ninfas do mar
8
Quênia
7
TRECHOS DA PRIMEIRA PARTE:

- PRIMEIRA PARTE - Proposição (canto I, estrofes 1 a 3): É a exposição do


assunto do poema, ou seja, do que o poema tratará. Nela o poeta se propõe a cantar os
feitos heroicos dos soldados e navegadores portugueses, bem como a memória dos reis
portugueses que expandiram as fronteiras lusas e a fé cristã.

I, 1
As armas e os barões assinalados
Que, da ocidental praia lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana, (Ceilão/Sri Lanka)
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram.

I, 2
E também as memórias gloriosas
Daqueles reis que foram dilatando
A Fé, o Império e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valorosas
Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e a arte (Técnica / habilidades)

I, 3
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre9 e de Trajano10
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

- PRIMEIRA PARTE - Invocação (canto I, estrofes 4 e 5): Nesse momento, o poeta


pede inspiração às musas. No caso da epopeia de Camões, as musas não serão nenhuma
representante da tradição clássica. O poeta escolhe como fonte de inspiração as ninfas
do rio Tejo (rio português), chamadas por ele de Tágides. Nesse sentido, podemos dizer
que Camões nacionaliza suas musas.

9
Alexandre, o Grande, 356-323 a.C. Macedônia, filho de Felipe.
Conquistou o Egito e a Índia. Foi aluno de Aristóteles.
10
Trajano, 53-117 a.C.; imperador romano que conquistou a maior
extensão do império.
8
I, 4
E vós, Tágides minhas, pois criado (musas do Tejo)
Tendes em mim um novo engenho ardente
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto, e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene,
Que não tenham inveja às de Hipocrene11.

- PRIMEIRA PARTE - Dedicatória (canto I, estrofes 6 a 18): Camões dedicou seu


poema ao rei D. Sebastião, seu protetor e a quem se deve a publicação do livro. Nas
estrofes dedicadas ao rei, o poeta faz menção à juventude de D. Sebastião, que, por não
haver outro herdeiro legítimo do trono, assumiu o império com apenas catorze anos. O
poeta também se refere à extensão alcançada pelo Império português.

I, 7
Vós, tenro e novo ramo florescente
De uma árvore, de Cristo mais amada
Que nenhuma nascida no Ocidente,
Cesárea ou Cristianíssima chamada,
Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos mostra a vitória já passada,
Na qual vos deu por armas e deixou
As que Ele para si na Cruz tomou;

I, 8
Vós, poderoso rei, cujo alto império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce, o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério (autoridade / difamação)
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
Do Turco Oriental e do Gentio
Que ainda bebe o licor do santo Rio.
(...)

I, 10
Vereis amor da pátria, não movido
De prémio vil, mas alto e quase eterno;
Que não é prémio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor supremo,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.

11
Fonte de Hélicon, consagrada a Apolo e às musas; teria brotado de
uma pedra fendida por uma patada de Pégaso
9
- SEGUNDA PARTE – Narração - (estrofes 19 do Canto I a 144 do Canto X):

Canto III - Após Camões invocar a inspiração de Calíope, musa grega da poesia épica,
Vasco da Gama começa a contar ao rei de Melinde a história de Portugal.

III, 1
Agora tu, Calíope, me ensina
O que contou ao Rei o ilustre Gama:
Inspira imortal canto e voz divina
Neste peito mortal, que tanto te ama.
Assim o claro inventor da Medicina,
De quem Orfeu pariste, ó linda Dama,
Nunca por Dafne12, Clície13 ou Leucotoe14,
Te negue o amor devido, como soe

Vasco da Gama principia pela localização geográfica do país no mapa da Europa:

III, 20
Eis aqui, quási cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Febo15 repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floreça
Nas armas contra o torpe Mauritano, (da Mauritânia, África)
Deitando-o de si fora; e lá na ardente
África estar quieto o não consente.

Fala das origens de Portugal, do primeiro herói, Viriato, o Pastor da Serra da Estrela,
que resistiu à dominação romana. Na Guerra de Reconquista, que os povos já
cristianizados moveram contra árabes invasores, no século XII, surge o Reino de
Portugal e a Primeira Dinastia, a Casa de Borgonha. O terceiro canto contém a história
de todos os reis dessa dinastia, destacando-se seu fundador, Afonso Henriques de
Borgonha. vencedor da Batalha de Ourique, contra os árabes, ao lado de Egas Moniz,
símbolo nacional de lealdade e honradez. Ainda sob a Dinastia de Borgonha, no reinado
de D. Afonso IV, ocorre o episódio de Inês de Castro, aquela “que depois de ser morta
foi rainha".

12
Ninfa por quem Apolo se apaixonou por obra de Cupido/Eros.
Também é atingida por uma flecha, mas de chumbo. Apolo a persegue
e o pai dela a transforma em loureiro. Por isso, Apolo sempre anda
com um ramo de louros na cabeça.
13
Ninfa filha de Oceano e Tétis. Apaixona-se por Hélio, mas não é
correspondida. Vive sentada olhando o sol e à noite chora. Alimenta-
se das suas lágrimas.
14
Ninfa, deusa branca. Protetora dos marinheiros.
15
Apolo, deus dos músicos, das poesias e o deus Sol.
10
Episódio de Inês de Castro, III, 118 a 135

Passada esta tão próspera vitória,


Tornado Afonso à Lusitana Terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e dino da memória, (digno)
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.

Tu, só tu, puro amor, com força crua,


Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga, (suavizar)
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.

Estavas, linda Inês, posta em sossego,


De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego, (feliz)
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego, (rio de Portugal)
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes insinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

Do teu Príncipe ali te respondiam


As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fernosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.

(...)

Pera o céu cristalino alevantando,


Com lágrimas, os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos);
E despois, nos mininos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfindade como mãe temia,
Pera o avô cruel assi dizia:

(Se já nas brutas feras, cuja mente


Natura fez cruel de nascimento,
11
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas tem o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento
Como co a mãe de Nino16 já mostraram,
E cos irmãos17 que Roma edificaram:

Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito


(Se de humano é matar hûa donzela,
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.

E se, vencendo a Maura18 resistência,


A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida, com clemência,
A quem peja perdê-la não fez erro.
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente, (região da Eurásia/Irã)
Onde em lágrimas viva eternamente.

Põe-me onde se use toda a feridade,


Entre leões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, co amor intrínseco e vontade
Naquele por quem mouro, criarei (eu morro)
Estas relíquias suas que aqui viste,
Que refrigério sejam da mãe triste.)
(...)

As filhas do Mondego a morte escura


Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram.
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores.

16
Semíramis, rainha da Síria (mãe de Nino); Nino foi abandonada
pela mãe num monte e alimentada por aves de rapina
17
Rômulo e Remo, abandonados quando crianças e foram alimentados
por uma loba
18
Maura (de mauro, em latim. Mauru = mouro)
12
Canto IV - Vasco da Gama prossegue a narrativa da história de Portugal, concentrando-
se na Segunda Dinastia, a Casa de Avis. Fala da Revolução de Avis (1383-1385), de seu
grande herói, D. Nuno Álvares Pereira, da Batalha de Aljubarrota e de D. João I, Mestre
de Avis, que funda o Estado Nacional Português, consolida a centralização monárquica
e inicia a expansão ultramarina, com a Tomada de Ceuta [norte da África], em 1415. A
partir do reinado de D. Manuel I, o Venturoso, Vasco da Gama começa a narrar os
episódios preliminares de sua viagem. D. Manuel tivera um sonho profético: os rios
Indo e Ganges, sob forma de dois anciões, profetizam os sucessos e perigos que os
portugueses enfrentariam no Oriente. Estimulado por esse sonho, D, Manuel I pede a
Vasco da Gama que monte uma esquadra para concretizar a profecia. Na partida das
naus da praia de Belém, um ancião, o Velho do Restelo, faz uma enfática advertência
contra as navegações portuguesas.

IV, 30 - Aljubarrota
Começa-se a travar a incerta guerra;
De ambas partes se move a primeira ala;
Uns leva a defensão da própria terra,
Outros as esperanças de ganhá-la;
Logo o grande Pereira, em quem se encerra (Nuno Álvares)
Todo o valor, primeiro se assinala:
Derriba, e encontra, e a terra enfim semeia
Dos que a tanto desejam, sendo alheia.

IV, 47, 48
Não sofre o peito forte, usado à guerra,
Não ter amigo já a quem faça dano;
E assim não tendo a quem vencer na terra,
Vai cometer as ondas do Oceano.
Este é o primeiro Rei que se desterra
Da Pátria, por fazer que o Africano
Conheça, pelas armas, quanto excede
A lei de Cristo à lei de Mafamede. (Maomé)

Destas e outras vitórias longamente


Eram os Castelhanos oprimidos,
Quando a paz, desejada já da gente,
Deram os vencedores aos vencidos,
Depois que quis o Padre onipotente
Dar os Reis inimigos por maridos
As duas ilustríssimas Inglesas,
Gentis, formosas, ínclitas princesas.

Trechos do episódio do Velho do Restelo

IV, 94
Mas um velho, de aspecto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
13
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

IV, 95
- "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!

IV, 96
- "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!

IV, 97
- "A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?

Canto V - Vasco da Gama conclui a narrativa de sua viagem até Melinde. Fala da
partida da esquadra, do Cruzeiro do Sul, descreve o fogo-de-santelmo19, depois uma
tromba marítima na costa da Guiné, e a aventura cômica de Veloso20. Perto da África do
Sul, na travessia do Cabo das Tormentas, os portugueses defrontam-se com o Gigante
Adamastor, monstro disforme que simboliza a superação do medo do “Mar Tenebroso”
e o domínio do homem sobre as crendices medievais e sobre a natureza. De volta a
Melinde, Vasco da Gama conclui o seu relato elogiando a tenacidade portuguesa.
Encerrando a primeira parte da epopeia, Camões retoma a palavra para lamentar o
descaso dos portugueses pela poesia.

19
Descarga elétrica provocada pela ionização do ar
20
Fernão Veloso, marinheiro, aventureiro, fanfarrão, pouco dado a
feitos históricos. Ao desembarcar na costa africana, um etíope o
convida para conhecer o local; não se dá conta do perigo, é perseguido
e volta correndo para o navio
14
V, 37
(...)
Hüa nuvem, que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.

V, 38
Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
"Ó Potestade (disse) sublimada: (poder; potência; força)
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?"

V, 39
Não acabava, quando hüa figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

V, 40
Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rodes21 estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo.
Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!

V, 41
E disse: "Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados de estranho ou próprio lenho;

(...)

21
Estátua de Hélio (292 a.C.). 30 m de altura, 70 toneladas; de bronze
15
V, 43
"Sabe que quantas naus esta viagem
Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,
Inimiga terão esta paragem,
Com ventos e tormentas desmedidas!
E da primeira armada, que passagem
Fizer por estas ondas insofridas,
Eu farei de improviso tal castigo,
Que seja mor o dano que o perigo! (maior)

V, 44
"Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu suma vingança.
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinace confiança:
Antes, em vossas naus vereis, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte!

(...)

V, 47
"Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor gerados e nacidos;
Verão os Cafres, ásperos e avaros, (negros africanos)
Tirar à linda dama seus vestidos;
Os cristalinos membros e perclaros (distintos, ilustres)
À calma, ao frio, ao ar verão despidos,
Despois de ter pisada, longamente,
Cos delicados pés a areia ardente.

V, 48
"E verão mais os olhos que escaparem
De tanto mal, de tanta desventura,
Os dous amantes míseros ficarem
Na férvida e implacábil espessura.
Ali, despois que as pedras abrandarem
Com lágrimas de dor, de mágoa pura,
Abraçados, as almas soltarão
Da fermosa e misérrima prisão."

Canto VI - Enquanto os portugueses rumam em direção às Índias, Baco desce ao


palácio de Netuno e incita os deuses marinhos contra a esquadra de Vasco da Gama.
Novamente Vênus e as nereidas salvam os navegadores. A bordo da nau capitânia, o
marinheiro Veloso entretém seus companheiros com a narrativa cavaleiresca de Os

16
Doze de Inglaterra: doze portugueses, liderados pelo Magriço22, vão à Inglaterra
resgatar a honra de doze donzelas inglesas ultrajadas por doze cavaleiros bretões. Os
navegadores avistam Calicute, e o narrador medita sobre o sentido e valor da glória.

VI, 58
Chega-se o prazo e dia assinalado
De entrar em campo já cos doze Ingleses,
Que pelo Rei já tinham segurado;
Armam-se de elmos, grevas e de arneses. (Partes da armadura/arreio)
Já as damas têm por si, fulgente e armado,
O Mavorte feroz dos Portugueses; (Marte, deus da guerra)
Vestem-se elas de cores e de sedas,
De ouro e de joias mil, ricas e ledas.

VI, 59
Mas aquela, a quem fora em sorte dado
Magriço, que não vinha, com tristeza (Álvaro G. Coutinho)
Se veste, por não ter quem nomeado
Seja seu cavaleiro nesta empresa;
Bem que os onze apregoam que acabado
Será o negócio assi na corte Inglesa,
Que as damas vencedoras se conheçam,
Posto que dous e três dos seus faleçam.

VI, 60
Já num sublime e púbrico teatro
Se assenta o Rei Inglês com toda a corte.
Estavam três e três e quatro e quatro,
Bem como a cada qual coubera em sorte;
Não são vistos do Sol, do Tejo ao Batro, (afluente do Oxo, Afeganistão)
De força, esforço e de ânimo mais forte,
Outros doze sair, como os Ingleses,
No campo, contra os onze Portugueses.

VI, 61
Mastigam os cavalos, escumando,
Os áureos freios, com feroz sembrante;
Estava o Sol nas armas rutilando,
Como em cristal ou rígido diamante;
Mas enxerga-se, num e noutro bando,
Partido desigual e dissonante
Dos onze contra os doze, quando a gente
Começa a alvoroçar-se geralmente.

22
Álvaro Gonçalves Coutinho, um dos 12 de Inglaterra. História
semificticia, semirreal. Conduta de honra entre d. João I e Ricardo II
da Inglaterra. Doze damas teriam sido ofendidas por 12 nobres. D.
João I escolhe 12 cavaleiros que vão defendê-las
17
VI, 62
Viram todos o rosto aonde havia
A causa principal do rebuliço:
Eis entra um cavaleiro, que trazia
Armas, cavalo, ao bélico serviço;
Ao Rei e às damas fala, e logo se ia
Pera os onze, que este era o grão Magriço.
Abraça os companheiros, como amigos
A quem não falta, certo nos perigos.

VI, 63
A dama, como ouviu que este era aquele
Que vinha a defender seu nome e fama,
Se alegra e veste ali do animal de Hele23, (personagem mitológica)
Que a gente bruta mais que virtude ama.
Já dão sinal, e o som da tuba impele
Os belicosos ânimos, que inflama;
Picam de esporas, largam rédeas logo,
Abaxam lanças, fere a terra fogo.

Cantos VII e VIII - Vasco da Gama faz contato com as autoridades de Calicute. O
samorim (rei) determina ao catual (governador) que receba os navegadores. Vasco da
Gama desembarca na Índia, visita o samorim e oferece a amizade dos portugueses, em
nome de D. Manuel. O catual colhe informações sobre os recém-chegados e, em visita à
esquadra, indaga Paulo da Gama acerca do significado das figuras desenhadas nas
bandeiras lusas. O irmão do comandante assume a narrativa e conta os feitos dos heróis
da pátria (Viriato, D. Afonso Henriques, Egas Moniz, D. Nuno Álvares e outros). Os
muçulmanos tramam contra os cristãos portugueses e envenenam as boas relações com
o samorim. Novas ciladas. Vasco da Gama é feito prisioneiro. Negocia com o catual sua
liberdade, em troca de mercadorias europeias. O poeta encerra o oitavo canto com
dissertação sobre o poder do dinheiro.
VIII, 96
Nas naus estar se deixa, vagaroso,
Até ver o que o tempo lhe descobre;
Que não se fia já do cobiçoso
Regedor, corrompido e pouco nobre.
Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assi como no pobre,
Pode o vil interesse e sede imiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.

23
Personagem de Jasão e os argonautas.Helesponto Hele teria caído
no mar quando a mãe a levava e Frixo seu irmão; fugiam da ira de Ino.
18
VIII, 97
A Polidoro24 mata o Rei Treício25,
Só por ficar senhor do grão tesouro;
Entra, pelo fortíssimo edifício,
Com a filha de Acriso26 a chuva de ouro;
Pode tanto em Tarpeia27 avaro vício,
Que, a troco do metal luzente e louro,
Entrega aos inimigos a alta torre,
Do qual quase afogada em pago morre.
VIII, 98
Este rende munidas fortalezas;
Faz tredoros e falsos os amigos; (traidores)
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências;
VIII, 99
Este interpreta mais que sutilmente
Os textos; este faz e desfaz leis;
Este causa os perjúrios entre a gente
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude.

Cantos IX e X - Ainda em Melinde, na partida das naus, dois feitores portugueses que
vendiam mercadorias em Calicute são retidos em terra para retardar a partida das naus e
permitir que fossem alcançadas e destruídas por uma esquadra muçulmana. Em represália,
Vasco da Gama retém a bordo vários mercadores indianos. Trocam-se os feitores
portugueses pelos mercadores orientais, o samorim manda devolver as fazendas que os
portugueses pagaram como resgate pelo capitão, e os navegadores, cumprida sua missão,
iniciam a viagem de regresso a Lisboa. Os historiadores registram ter sido uma viagem

24
Filho de Príamo; teria sido enviado a Polimnestor, que, sabendo da
derrota dos troianos, mata Polidoro e rouba suas riquezas
25
Polimnestor, da Trácia, filho de Príamo, rei de Troia. Teria sido
morto porque trazia riquezas da negociação de paz quando Troia foi
derrotada
26
Rei de Argos, Grécia. Acrísio e Preto, gêmeos, já brigavam no
útero. Quando adultos, guerrearam pelo reino. Acrísio vence
27
Romana que traiu a cidadela aos sabinos e recebeu como prêmio a
morte. Tarpeia viu que os sabinos levavam braçadeiras de ouro propôs
trair a cidadela. Tarpeia abriu os portões para Tácio. Morre com as
braçadeiras que foram atiradas contra ela
19
acidentada, mas Camões encerra aqui a matéria propriamente histórica do poema. O longo
episódio da Ilha dos Amores pertence já ao plano mitológico, fantástico. É o congraçamento
entre os homens e os deuses, a elevação dos navegadores à esfera da imortalidade.
IX, 52
De longe a Ilha viram, fresca e bela,
Que Vénus pelas ondas lha levava
(Bem como o vento leva branca vela)
Pera onde a forte armada se enxergava;
Que, por que não passassem, sem que nela
Tomassem porto, como desejava,
Pera onde as naus navegam, a movia
A Acidália, que tudo, enfim, podia. (Afrodite)

IX, 53
Mas firme a fez e imóbil, como viu
Que era dos Nautas vista e demandada,
Qual ficou Delos, tanto que pariu (ilha grega)
Latona28 Febo e a Deusa à caça usada. (Diana / Ártemis)
Pera lá logo a proa o mar abriu,
Onde a costa fazia hüa enseada
Curva e quieta, cuja branca areia
Pintou de ruivas conchas Citereia. (Vênus)

IX, 54
Três fermosos outeiros se mostravam, (pequenas elevações)
Erguidos com soberba graciosa,
Que de gramíneo esmalte se adornavam,
Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa.
Claras fontes e límpidas manavam
Do cume, que a verdura tem viçosa;
Por entre pedras alvas se deriva
A sonorosa linfa fugitiva. (água)

IX, 55
Num vale ameno, que os outeiros fende, (colinas)
Vinham as claras águas ajuntar-se,
Onde hüa mesa fazem, que se estende
Tão bela quanto pode imaginar-se.
Arvoredo gentil sobre ela pende,
Como que pronto está pera afeitar-se,
Vendo-se no cristal resplandecente,
Que em si o está pintando propriamente.

IX, 56
Mil árvores estão ao céu subindo,
Com pomos odoríferos e belos;

28
Latona (romano) / Leto (grego); mãe de Febo. Era uma titã do
amanhecer
20
A laranjeira tem no fruito lindo
A cor que tinha Dafne29 nos cabelos.
Encosta-se no chão, que está caindo,
A cidreira cos pesos amarelos;
Os fermosos limões ali, cheirando,
Estão virgíneas tetas imitando.

Vênus decide premiar os navegadores e, numa ilha paradisíaca, reúne as nereidas


(ninfas marinhas), feridas por Cupido com suas setas, para que ardam de amor pelos
portugueses. Estes, deslumbrados com o espetáculo divino, passam a perseguir as ninfas
que se deixam alcançar e se entregam, entre gritinhos de prazer. É a mais clara
manifestação do pan-erotismo, da ideia de que não há pecado sexual.

IX, 83
Oh! Que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vênus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.

Após um banquete oferecido por Tétis [ninfa do mar] e pelas ninfas, uma delas, Sirena
(ou sereia), anuncia as futuras conquistas portuguesas. Tétis conduz Vasco da Gama a
uma elevação e mostra a ele a Máquina do Mundo, réplica em miniatura do sistema
solar, segundo a teoria geocêntrica de Ptolomeu30, e que somente os deuses podiam
contemplar. Descobrindo o orbe [globo] terrestre, Tétis aponta os lugares onde os
portugueses ainda se farão presentes. Aí, sem que se dê particular importância, fala-se
do Descobrimento do Brasil.

X, 140
Mas cá onde mais se alarga, ali tereis
Parte também, co pau vermelho nota;
De Santa Cruz o nome lhe poreis;
Descobri-la-á a primeira vossa frota.
Ao longo desta costa, que tereis,
Irá buscando a parte mais remota
O Magalhães, no feito, com verdade,
Português, porém não na lealdade.

Nota: A obra Os Lusíadas passou pela censura inquisitorial, desafiando o espírito da


Contrarreforma, as convenções moralistas e repressoras da corte, orientada pelos
jesuítas. A publicação deveu-se ao empenho de alguns admiradores de Camões: D.
Manuel de Portugal, Dona Francisca de Aragão (amiga íntima da rainha), os

29
Dafne, em grego. Ninfa por quem Apolo se apaixonou
30
Romano, 90-168 a.C. Matemático, astrólogo, astrônomo, geógrafo,
cartógrafo.
21
dominicanos, a quem não deviam desagradar as críticas do poema aos jesuítas. O censor
da obra, o frei dominicano Bartolomeu Ferreira, não só aprovou a obra como também a
elogiou.
- TERCEIRA PARTE – Epílogo (estrofes 145 a 156 do Canto X): Conclusão do
poema - contém um fecho dramático e pessimista sobre o futuro da Nação portuguesa.
O poeta lamenta a decadência de seu país e do povo português que, cego pela cobiça e
pelas suas glórias, esqueceu-se dos valores nacionalistas. O eu lírico desabafa
melancolicamente que, apesar dos grandes feitos narrados, entristece-se que tenha
cantado “a gente surda e endurecida”. Esse tom crítico e desencantado parece ser uma
premonição da derrocada sofrida, pouco depois, por Portugal, que, derrotada na batalha
de Alcácer-Quibir, foi submetida ao domínio espanhol. Nesse sentido, o epílogo de Os
Lusíadas contrapõe-se com o tom ufanista com que se desenvolveu toda a trama, mais
uma característica que difere a obra da epopeia clássica. Também podemos dizer que no
epílogo do poema de Camões há uma atitude subjetiva do poeta que desabafa sobre os
seus próprios conflitos íntimos e da vida de privações que teve nos seus últimos dias de
vida.
X , 145
Não mais, Musa, não mais que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.
(...)
X, 154
Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,
De vós não conhecido nem sonhado?
Da boca dos pequenos sei, contudo,
Que o louvor sai às vezes acabado.
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.
X, 155
Pera servir-vos, braço às armas feito;
Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Dina empresa tomar de ser cantada,
Como a pressaga mente vaticina, (que adivinha, faz presságios)
Olhando a vossa inclinação divina,

22
X, 156
Ou fazendo que, mais que a de Medusa31,
A vista vossa tema o monte Atlante, (na África)
Ou rompendo nos campos de Ampelusa (Cabo entre Ceuta e Tânger)
Os muros de Marrocos e Trudante. (capital de província, perto do Marrocos)
A minha já estimada e leda Musa (alegre)
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja, (O Grande)
Sem à dita de Aquiles32 ter enveja.

PAPEL E SIGNIFICADO DA MITOLOGIA EM OS LUSÍADAS


Camões utiliza a mitologia pagã pelas seguintes razões:
- Obedece às regras da epopeia clássica: conter um plano mitológico com os
deuses da sua civilização, e tal ato apenas revela o enorme conhecimento e a profunda
admiração que Camões nutria pela Antiguidade Clássica;
- Assegura a ação interna do poema épico ao opor deuses e humanos,
possibilitando a demonstração de emoções sem por isso enfraquecer o seu poder;
- Embeleza a intriga, tornando a obra mais do que um especial relato de viagem,
e criando outro ponto de interesse sem, porém, tirar a importância ao plano da narração;
"enfeita", dando mais emoção à história, tornando-a mais uma espécie de “novela” do
que apenas um “relatório”;
- Mostra que até mesmo os deuses conseguem exprimir sentimentos como o
amor, ódio, inveja e sensualidade;
- Glorifica o povo português ao colocá-lo em cenários adversos criados pelos
deuses, mas que ainda assim conseguem ser superados, criando uma comparação entre a
força de ambos;
- Evidencia a grandeza dos feitos portugueses como: vencer o mar (Netuno),
ultrapassar o gigante Adamastor e vencer as guerras (Marte);
- Demonstra que os portugueses enquanto heróis são deuses, pois se tornam
"imortais" pelos feitos praticados.
Na verdade, o poeta se viu obrigado a colocar maior ênfase naquilo que era
marginal ao eixo central da epopeia, como se pode observar na fisionomia de alguns
episódios fundamentais: a Ilha dos Amores, os Doze de Inglaterra, Inês de Castro, o
Gigante Adamastor, a fala do Velho do Restelo. Essas inovações ressaltam a
criatividade de Camões e a edificação duma epopeia renascentista, moderna.

31
Monstro ctônico, feminino, uma das três Górgonas: Medusa, a
impetuosa, Esteno, a que oprime e Euríale, a que corre o mundo
32
Herói da guerra de Troia e maior guerreiro da Ilíada de Homero
23
A LÍRICA CAMONIANA

Camões é grande, dentro e fora dos quadros literários portugueses, por sua
poesia. Escreveu versos tanto na medida velha quanto na medida nova. Seus poemas
heptassílabos, geralmente, são compostos por um mote e uma ou mais estrofes que
constituíam glosas (ou voltas a ele). Os sonetos são a parte mais conhecida da lírica
camoniana. As composições líricas de Camões oscilam entre dois polos: o lirismo
confessional, em que o autor dá vazão à sua experiência íntima, e a poesia pura arte, em
que pretende transpor os sentimentos e os temas a um plano formal, lúdico. Em outras
palavras, Camões demonstra, em seus sonetos, uma luta constante entre o amor
material, manifestação da sensualidade e do desejo, e o amor idealizado, puro,
espiritualizado, capaz de conduzir o homem à realização plena.
Isso faz que o poeta abstraia a mulher, ou as mulheres, em favor da Mulher.
Camões pinta com o auxílio da Razão o retrato da Mulher, formado da reunião de todas
e de nenhuma em particular, porque subordinado a um ideal de beleza perene e
universal. Nessa perspectiva, o poeta concilia o amor como ideia e o amor como forma,
tendo a mulher como exemplo de perfeição, ansiando pelo amor em sua integridade e
universalidade.
O poeta procura conhecer, conceituar o Amor, o que só consegue realizar
lançando mão de antíteses e paradoxo. À longa e dramática meditação acerca dos
mistérios do Amor, Camões acrescenta idêntica reflexão a propósito da condição
humana. A vida, tema muito mais vasto que o da mulher e o amor, é que agora lhe
interessa. Para tanto, porém, o poeta somente conta com o recurso da autossondagem,
pois em si encontra a súmula da tragédia humana espalhada pelos quatro cantos do
mundo. E à proporção que aprofunda a análise, vai reparando que uma espécie de
fatalismo, o "fado", o impede mesmo de recorrer ao desespero. A mente se debate num
mar de paradoxos e pensamentos desencontrados, e não pode interromper o processo
nem com a ajuda da desesperação: é o desconcerto do mundo.
Em síntese, o núcleo da poesia reflexiva de Camões: “a vida não tem razão de
ser, e descobri-lo e pensá-lo incessantemente é inútil, além de perigoso, pois apenas
acentua quão irremediavelmente miserável a condição humana”.
Fonte: MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2008 (adaptado).

POEMAS DE LUÍS VAZ DE CAMÕES

AO DESCONCERTO DO MUNDO

Os bons vi sempre passar


no Mundo grandes tormentos;
e pera mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
assim que, só pera mim,
anda o Mundo concertado.

24
Tema: Desconcerto do mundo

Não é soneto, a métrica retoma as cantigas medievais: redondilha maior (7 sílabas


poéticas)
Maneirismo: no próprio tema, jogo de contrários (Bem e Mal)
Faz uma análise da sociedade que o cerca: Os bons se dão mal e os maus se dão bem (1a
parte)
Mundo governado por uma lógica injusta
Para tentar alcançar sucesso, muda seu comportamento ('fui mau'). Entretanto, não
consegue alcançar seu objetivo, sua maldade é punida.
"Mas" - oposição à lógica injusta evidenciada anteriormente
O poeta lastima-se não só por verificar o sucesso constante dos maus, mas também por
seu próprio destino - mesmo tentando ser mau, é punido e não consegue alcançar os
objetivos.
O autor considera na primeira parte de seu poema que todos que são bons
passam por “grandes tormentos” e que a vida de quem é mau, um “mar de
contentamentos”. Em seguida, revela que para garantir essa vida feliz resolveu ser mau,
porém foi castigado, e conclui que só para ele vale a regra de que só alcança o bem
quem é bom: “assim que, só para mim, anda o Mundo concertado”; para o poeta, um
desconcerto do mundo é premiar quem é mau e castigar quem é bom.
Neste poema encontramos a força musical nas suas rimas, no jogo entre as
palavras bom,bem,mal,mau e também no uso da medida velha com o emprego da
redondilha maior (versos de sete sílabas poéticas: Os/bons/vi/sem/pre/pas/sar), que
garantem a musicalidade e a graça, características da lírica medieval mas que o poeta
renova com o relato das experiências da sua vida e cujo resultado é a beleza de cenas do
cotidiano humano.

Cantor dos desconcertos do mundo

Camões é o maior poeta lírico do Classicismo português. Dotado de inegável


genialidade, coube a ele a melhor performance do soneto em língua portuguesa. Camões
segue estritas regras de composição, obedecendo ao princípio da imitação, embebendo-
se em fontes italianas como as do poeta Petrarca. A brevidade do soneto -- dois
quartetos, dois tercetos -- requer grande concentração emocional, geralmente disposta
sob a forma de tese-antítese com desfecho conclusivo que busca a síntese ou a unidade.
A linguagem é condensada no decassílabo, utilizando a palavra de forma precisa,
permeada pelo controle rígido da razão, mesmo quando o tema é uma aparente
desordem. Assim, Camões é capaz de expressar-se de maneira extremamente concisa
em sonetos narrativos como o famoso "Sete anos de pastor Jacó servia" e de lamentar de
maneira semirromântica a ausência da amada em "Alma minha gentil, que te partiste". É
nos sonetos de análise que o poeta alcança maior desenvoltura, tecendo reflexões sobre
o tempo - "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" - buscando uma definição do
amor, ilustrada por uma de suas mais famosas produções - "Amor é fogo que arde sem
se ver". Ele capta a psicologia feminina através de versos inesquecíveis, cujo exemplo
mais significativo está em "Um mover de olhos, brando e piedoso". São muitas as
composições lírico-amorosas, em que a mulher e o amor são idealizados como forma de
atingir a supremacia do Bem e da Beleza. Camões se deixa levar por um certo
sensualismo carnal que se opõe ao ideal petrarquiano do amor, ilustrado por
"Transforma-se o amador na coisa amada". Além do tema amoroso, Camões se faz
cantor dos desconcertos do mundo. Espírito muito atento à sua época tem plena

25
consciência de que tudo muda nada é eterno. O homem, embora queira sempre atingir o
ideal e a perfeição, depara-se com a terrível restrição imposta pela própria condição
humana. O poeta chega à conclusão de que não existe o absoluto ou o eterno, restando a
ele divagar sobre o real e o ideal, o eterno e o transitório, a morte e a vida, o pessoal e o
universal. Nesses pares, encontram-se as mais profundas tensões que a lírica já deixou
transparecer.

VERDADE, AMOR, RAZÃO E MERECIMENTO

Verdade, Amor, Razão, Merecimento,


qualquer alma farão segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
têm do confuso mundo o regimento.

Efeitos mil revolve o pensamento


e não sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que é mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.

Doctos varões darão razões subidas,


mas são experiências mais provadas,
e por isso é melhor ter muito visto.

Cousas há i que passam sem ser cridas


e cousas cridas há sem ser passadas,
mas o melhor de tudo é crer em Cristo.

O autor coloca em seu soneto os valores, como personagens, que garantem a


elevação da alma, “Verdade, Amor, Razão, Merecimento”, em oposição aos valores que
regem o mundo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte”. Sua intenção é mostrar a essência do
contraste entre a visão religiosa que proporciona a vida eterna e a visão materialista que
busca os prazeres do mundo, e que mais que o homem pense, não consegue entender.
Para tanto, seguindo a sua crença, indica que tudo deve ser visto com os olhos da fé em
Cristo, como explicitado no verso “mas o melhor de tudo é crer em Cristo”.
Essa crença em Cristo é apresentada como o caminho para se encontrar a
solução da questão do confronto entre o bem e o mal, o certo e o errado, reflexo de uma
angústia que mostra a força dramática do poema. As oposições e os contrastes que
Camões utiliza mostram também uma característica que aparece em muitos de seus
poemas, o maneirismo, que se utiliza de antíteses e paradoxos para demonstrar o drama
interior do poeta, uma das características dos artistas do Renascimento.

ERROS MEUS, MÁ FORTUNA, AMOR ARDENTE

Erros meus, má fortuna, amor ardente


em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente


a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.
26
Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa a que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.


Oh! quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro gênio de vinganças!

Observa-se claramente neste soneto a vida do poeta, onde autor e eu lírico se


fundem, sendo enfatizados seus erros, causa de castigo da deusa Fortuna: “Errei todo o
discurso de meus anos; dei causa a que a Fortuna castigasse”. O sentimento de
arrependimento se faz presente numa confissão e também a compreensão de que
somente o amor, na sua essência, era o suficiente.
Encontramos a força do lirismo último, quando o autor apresenta um
questionamento sobre suas ambições, que de uma forma geral, são as ambições
humanas. Esta acaba por englobar a força intelectual com suas questões existenciais
(que exigem conhecimento) e a força dramática com seus contrastes (no caso, o certo e
o errado).
Olhando por outra ótica, podemos também incluir este poema na tensão “os
desconcertos do mundo”, que será vista com mais detalhe posteriormente, e que nos
apresenta o desengano com a existência. O autor demonstra uma desesperança diante da
vida quando diz “a não querer já nunca ser contente”, com um toque de dramaticidade
causada, como vimos, pelo conflito entre o que é certo e errado.

PEDE-ME O DESEJO, DAMA, QUE VOS VEJA

Pede-me o desejo, Dama, que vos veja,


não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa a qual natural seja


que não queira perpétuo seu estado;
não quer logo o desejo o desejado,
porque não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana;


que, como a grave pedra tem por arte
o centro desejar da natureza,

assim o pensamento (pela arte


que vai tomar de mim, terrestre [e] humana)
foi, Senhora, pedir esta baixeza.

Encontramos neste soneto um pensamento sobre o amor, inicialmente falando-se


sobre o desejo e de como quem ama não sabe ao certo o que deseja. O sentimento tão
físico de desejar se transforma em platônico e não sendo concretizado é condição para
que o amor seja eterno. Existe, então, o conflito entre o espiritual e o carnal quando o eu
lírico expõe a sua condição terrena e humana.

27
O amor e a referência à mulher são levados para o sentimento platônico, como
pode se observar na primeira estrofe “É este amor tão fino e tão delgado”, porém
também existe a contrariedade da condição humana em “que vai tomar de mim, terrestre
[e] humana”, características que dão força dramática ao poema. Durante todo o tempo
existe o conhecimento do que seja eterno e também a contrariedade do desejo físico,
num questionamento que exprime também a força intelectual do poema.

AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER

Amor é fogo que arde sem se ver;


É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;


É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;


É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor


Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

O poema O amor é fogo que arde sem se ver, de Luís de Camões, faz parte da
lírica clássica do autor, a medida nova.
Neste poema, Camões procurou conceituar a natureza contraditória do amor.
Não é um tema novo. Já na Antiguidade, o amor era visto como uma espécie de
cegueira, uma doença da razão, uma enfermidade de consequências às vezes
devastadoras. Nas cantigas de amor medievais, os trovadores exprimiam seu sofrimento,
a coita, provocada pela desorientação das reações do artista diante de sua Senhora, de
sua Dona. Petrarca e os poetas do dolce stil nuovo privilegiaram, na Renascença
italiana, o tema do desencontro amoroso, das contradições entre o amar e o querer e do
sofrimento dos amantes e apaixonados.
O poeta buscou analisar o sentimento amoroso racionalmente, por meio de uma
operação de fundo intelectual, racional, valendo-se de raciocínios próximos da lógica
formal. Mas como o amor é um sentimento vago, imensurável, Camões acabou por
concluir pela ineficácia de sua análise, desembocando no paradoxo do último verso. O
sentir e o pensar são movimentos antagônicos: o sentir deseja e o pensar limita, e, como
o poeta não podia separar aquilo que sentia daquilo que pensava, o resultado, na prática
textual, só podia ser o acúmulo de contradições e paradoxos. Essa feição contraditória e
o jogo de oposições aproximam Camões do Maneirismo e, no limite, do Barroco.
Os versos têm estrutura bimembre e contêm afirmativas que se repartem em enunciados
contrários (antitéticos). Essas oposições simetricamente dispostas nos versos,
acumulam-se em forma de gradação (clímax), para desembocar na desconcertante
interrogação/conclusão do último verso sobre os efeitos do amor. As contradições, por
vezes, são aparentes porque o segundo membro do verso funciona como complemento
28
do primeiro, especificando-o e tornando-o ainda mais expressivo, quando confronta
duas realidades diversas: uma sensível ("ferida que dói") e uma espiritual, que
transcende a primeira ("e não se sente").
É o caso do 1º, 2º, 4º e 5º versos. No 1º verso, por exemplo, o segundo membro
("sem se ver" significa interiormente;) no 2º verso, o Amor "é ferida que
dói (exteriormente) e não se sente" (interiormente); no 4º verso, o Amor "é dor que
desatina (exteriormente) "sem doer" (interiormente) e, no 5º verso, a noção é a de que
não é possível querer mais, de tanto que se quer, de tanto que se ama. Mesmo que se
tome o referencial fogo como elemento de contraste entre os dois membros desses
versos, este mesmo fogo, contraditoriamente, "arde sem se ver".
A reiteração do verbo ser ("É") no início dos versos, do 2º ao 11º, configura uma
sucessão de anáforas, uma cadeia anafórica. O soneto inicia-se e termina com a mesma
palavra - Amor -, sentimento contraditório, que é o tema da composição.
Quanto à métrica, os versos são decassílabos (dez sílabas poéticas), com predomínio
dos decassílabos heroicos, nos quais a sexta e a décima sílabas são sempre tônicas

TRANSFORMA-SE O AMADOR NA COUSA AMADA

Transforma-se o amador na cousa amada,


Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,


Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,


Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;


[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.

Especulação racional sobre o amor, mostrando a luta entre a satisfação no plano


ideal (amor platônico) e o desejo no plano corpóreo.
1ª e 2ª estrofes: remetem à teoria platônica do amor, dizendo que a união por
meio da imaginação deveria satisfazer o amante.
3ª e 4ª: "Mas" - oposição à ideia platônica, é impossível se satisfazer apenas com
ideias, sendo necessária a realização física para se sentir completo (Aristóteles)
Esse é o poema mais belo de Camões e nele existe filosofia pura. “Transforma-
se o amador na cousa amada” pode ser reflexo de uma opinião de pseudo-Dionísio, que
foi um filósofo neoplatônico que afirmou que o amor é uma força unitiva e consistente,
e que São Tomás esclareceu que isso quer dizer que existem duas formas de união entre
o amador e o amado: a primeira é a união real, e a segunda é a união intelectual e a
inclinação que a pessoa tem em relação à outra, de maneira que ela passa a participar da
pessoa amada de alguma forma. Como participa da pessoa amada, o amante só pode ter
nele a parte desejada.

29
Não necessitando do amor dos corpos, pois já existe uma ligação das almas, o
amante contempla a “semideia” . “Como um acidente em seu sujeito” pode ser referente
a afirmação de São Tomás, inspirado por Aristóteles, que “o sujeito está para o acidente
como a potência para o ato; pois, em relação ao acidente, o sujeito é, de certo modo,
atual”.
A amada está em seu pensamento como uma Ideia platônica que busca a forma
aristotélica no mundo da physis. O poema é uma batalha entre as duas escolas, a
platônica e a aristotélica, que reflete o mundo da filosofia no Renascimento. O mundo
das ideias de Platão misturado com a matéria e forma de Aristóteles fazem desse poema
uma das obras-primas da poesia de todos os países em todos os tempos

ALMA MINHA GENTIL, QUE TE PARTISTE

Alma minha gentil, que te partiste


Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,


Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te


Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,


Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

O soneto, que os biógrafos associam à morte de Dinamene, chinesa com quem


Camões teria vivido em Macau, é dos mais conhecidos. Segundo a tradição, acusado de
delitos administrativos, Camões e Dinamene teriam sido levados da China para a Índia,
onde seria julgado o poeta. Na viagem, por volta de 1560, o navio naufraga nas costas
do Camboja, junto à foz do rio Mekong.
Camões teria conseguido salvar-se e salvar Os Lusíadas, que trazia quase
concluído, mas teria perdido Dinamene, a sua "alma gentil", relembrada em elevado
tom elegíaco, quase místico.
O platonismo revela-se, no soneto, pela sublimação eternizadora da amada, a
partir de sua morte. O poeta contempla a amada transubstanciada em puro espírito ("lá
no assento etéreo"), por via do muito amar.
O apelo aos sentidos é transcendentalizado, imaterializado buscando Dinamene
no Céu, em Deus, entendidos como valores filosóficos, míticos, e não apenas religiosos
ou cristãos. A morte implica uma espécie de purificação. A amada, que partiu para esse
"mundo das ideias e formas eternas", também se torna objeto de elevação e saudade.
Mas a "reminiscência", neste caso, tem mão dupla: do poeta, que se eleva à beleza
imaterial da amada, como usual, e também na direção oposta, pois o poeta sugere a
possibilidade de que a amada se lembre dele, "lá do assento etéreo".

30
O poeta equilibra a expressão de seus transes existenciais com a disciplina
clássica.
Emoção e razão, expressão pessoal e imitação modelam uma dicção sóbria,
contida, mas nem por isso menos comovente. Mesmo quando aproveita o material
autobiográfico, não há o "descabelamento" desesperado dos românticos. A morte da
amada serve também ao exercício poético da imitação, no caso, do modelo petrarquista:
"Quest anima gentil che si diparte / Anzi tempo chiamata a l'altra vita".
Observe que, curiosamente, em "Alma minha..." o ouvido de Camões foi
indiferente a uma cacofonia ("maminha"), que hoje seria de todo modo evitada.
A situação conflitante que o poeta retrata projeta uma tensão que se aproxima do
Maneirismo e, por essa via, do Barroco: a presença da morte, o tom fatalista, o dualismo
que opõe vida e morte, passado e presente, serenidade e sofrimento.
DESCALÇA VAI PERA A FONTE
MOTE: Descalça vai pera a fonte
Leanor pela verdura,
Vai fermosa e não segura.
VOLTAS
Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata. (vasilha)
Cinta de fina escarlata, (tecido vermelho de lã)
Sainho de chamalote, (casaco curto)
Traz a vasquinha de cote (saia com muitas pregas / de uso diário)
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa, e não segura.
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado,
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça a fermosura.
Vai fermosa, e não segura.
O tema deste vilancete é como se tivesse tirado dos antigos cancioneiros
medievais, incluindo os elementos bucólicos, típicos para as pastorelas, como a fonte ou
o caminho cheio da verdura. Também a métrica dos versos faz nos lembrar o
trovadorismo medieval, usando o autor a medida velha, ainda acentuada pelo uso do
refrão em cada estrofe (inclusive no mote).
Os vestígios da transição da poesia trovadoresca medieval para a renascentista
(fenómenos sintomáticos para o Cancioneiro Geral) é possível ver no retrato da Leanor,
que de certa maneira podia até ser considerada como uma “mulher petrarquiana”: loira,
bela e graciosa, acentuando a graça espiritual.
MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

31
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

INTERTEXTUALIDADE
Provavelmente Camões fez uma releitura da cantiga trovadoresca de JOHAN
AYRAS, BURGES DE SANTIAGO, publicada no CANCIONEIRO DA
BIBLIOTECA NACIONAL, Poema 906. 3ª estrofe:

Todalas cousas eu vei mudar,


Mudon ss os tempos e muda ss o al,
Muda ss a gente en fazer o bem ou mal,
Mudan ss os uentos e tod outra ren,
Mays non sse pode coraçon mudar
Do meu amigo [amigo de mjn querer ben]

Tema: inconstância
Embora não faça uso de antíteses, o poema é expressão do Maneirismo.
Apresenta a mudança como a essência da vida humana.
1ª estrofe: afirma-se a instabilidade tanto do mundo exterior ('os tempos') como
do interior ('as vontades'); daí parte uma afirmação influenciada pela filosofia de
Heráclito (todo o mundo é composto por mudança): ou seja há inconstância em todas as
áreas da vida
2ª estrofe: 'Continuamente vemos novidades/diferentes em tudo da esperança' -
sempre vemos mudanças, diferentes do que se espera; postura pessimista diante das
mudanças
3ª estrofe: dá um exemplo: a mudança do inverno para a primavera. Embora
essa passagem seja geralmente associada à felicidade, para o eu lírico ela traz
melancolia (converte em choro o doce canto)
4ª estrofe: "já não se muda como soía" - já não se muda do mesmo modo como
costumava mudar, ou seja, até a própria mudança é inconstante, imprevisível, diferente
de antigamente. Isso causa estranheza e inadaptação no eu lírico.
DE QUANTAS GRAÇAS TINHA, A NATUREZA
De quantas graças tinha, a Natureza
Fez um belo e riquíssimo tesouro,
E com rubis e rosas, neve e ouro,
Formou sublime e angélica beleza.
Pôs na boca os rubis, e na pureza
Do belo rosto as rosas, por quem mouro;
No cabelo o valor do metal louro;
No peito a neve em que a alma tenho acesa.
32
Mas nos olhos mostrou quanto podia,
E fez deles um sol, onde se apura
A luz mais clara que a do claro dia.
Enfim, Senhora, em vossa compostura
Ela a apurar chegou quanto sabia
De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.
POSTO ME TEM FORTUNA EM TAL ESTADO
Posto me tem Fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me tem rendido!
Não tenho que perder já, de perdido;
Não tenho que mudar já, de mudado.
Todo o bem pera mim é acabado;
Daqui dou o viver já por vivido;
Que, aonde o mal é tão conhecido,
Também o viver mais será escusado,
Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convém;
E curarei um mal com outro mal.
E, pois do bem tão pouco bem espero,
Já que o mal este só remédio tem,
Não me culpem em querer remédio tal.

VERDES SÃO OS CAMPOS

Verdes são os campos,


De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes


Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis


Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.

33
NO RENASCIMENTO, RENOVAÇÃO DOS CLÁSSICOS: PASSEIO
PELOS TEMAS E FORMAS DO CANCIONEIRO GERAL
Fonte: Adaptado de FERNANDES, Geraldo Augusto. Fernão da Silveira, poeta e coudel-mor:
paradigma da inovação no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. 238p. Dissertação. (Literatura
Portuguesa). 2006. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2006.

O labirinto parece trazer ao poeta possibilidades infinitas: a começar pelo


próprio nome, o qual pressupõe a procura de várias saídas. Mais do que tudo, sua
pluralidade de leituras instiga o poeta a fazer do labirinto um jogo lúdico. Assim o
usavam os antigos. A estética literária que mais explorou a forma labiríntica, em todo o
contexto artístico, foi o Barroco. Todavia, no Renascimento, Camões retoma essa forma
poética e renova-a. Um exemplo é o seu poema “Estanças na medida antiga, que têm
duas contrariedades, louvando e deslouvando uma dama”, em que pluraliza o sentido
original.

Vós sois uma Dama Do grão merecer


Das feias do mundo; Sois bem apartada;
De toda a má fama Andais alongada
Sois cabo profundo. Do bem parecer.

A vossa figura Bem claro mostrais


Não é para ver; Em vós fealdade:
Em vosso poder Não há i maldade
Não há formosura Que não precedais.

Vós fostes dotada De fresco carão,


De toda a maldade; Vos vejo ausente;
Perfeita beldade Em vós é presente;
De vós é tirada. A má condição.

Sois muito acabada De ter perfeição


De taixa e de glosa: Mui alheia estais;
Pois, quanto a formosa Mui muito alcançais
Em vós não há nada. De pura razão.33

O tema é a mulher. Entretanto, Camões materializa a dualidade da dama pela leitura


múltipla: na horizontal, apresenta-se louvada, suas qualidades positivas são realçadas;
na vertical, o poeta a deslouva, mostrando qualidades negativas. Nas composições
desenvolvidas por Camões, percebe-se uma atenção à personalidade humana da mulher,
nada estanque, monológica ou divinizada como o fizeram os poetas da Idade Média.
No poema de Camões, a modernidade apresenta-se pelo jogo ambíguo que
propõe na leitura: horizontalmente, usa a medida nova, mas com tema e visão da mulher
próprios das cantigas trovadorescas; entretanto, na vertical, adota as redondilhas,
recurso das antigas canções medievais, e revoluciona a temática: a mulher é apresentada
33
Apud MACHADO, Irene A. O romance e a voz. A prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin. Rio de
Janeiro: Imago/FAPESP, 1995. (Série Diversos) p. 191. Optou-se por essa versão, tirada das Obras de
Luís de Camões. Porto: Lello, 1970, por facilitar a visualidade da forma labiríntica. Corrigiram-se
algumas grafias, baseadas na Lírica de Camões, p. 88.
34
grotescamente, desprezando, portanto, a nobreza e a suavidade, atributos da mulher
medieval. Apresenta, então, uma visão satírico-trovadoresca do sexo feminino34. Esse
artifício equivale ao que Baltasar Gracián denomina “epigrama retrógrado”: “especie de
enigmas que hablan a dos luces, y se há de entender en ellos todo lo contrario de lo que
dicen35”. Comenta também que

aunque es agudeza material, se estima por su picante malicia. Fue


celebrado este epigrama, que leído al revés, y comenzando por la
última palabra, dice todo lo contrario de lo que parece, pero no de lo
que pretende:
Lares tua, non tua fraus, virtus, non copia rerum
Scandere te fecit hoc decus eximium.
Condito tua sit stabilis, nec tempore parvo.
Vivere te faciat hic Deus Omnipotens36.

Percebe-se nesses exemplos que a tradição – começada ao que parece na


Antiguidade latina – veio se transformando pela leitura distinta que cada poeta criativo
fez. Nessas peças, não há dúvida, além da releitura, prima o artista inventivo por dar sua
contribuição individual.
É ainda de Camões um soneto anagramático37, “Vencido está de amor”, que
também traz originalidades métrica e formal, plenas de criatividade. Se no poema
anterior o poeta escolheu os redondilhos menores em duas colunas, que somadas
formam um decassílabo ou medida nova, neste, a originalidade está em que a primeira
coluna é formada por redondilhos de arte maior ou de sete sílabas. Lido o soneto na
horizontal, têm-se hendecassílabos, uma vez que na coluna da direita o metro é formado
por versos de quatro sílabas poéticas. Fora essa novidade, as primeiras letras de cada
verso, tanto os da esquerda quanto os da direita, formam uma frase: “Vos[s]o como
catjvo / Mvi alta senhora”. Além do acróstico, usa Camões letras do português arcaico,
derivado do latim: o “s” com som forte, o “j” por “i” e o “v” por “u”. Um jogo muito ao
gosto do poeta que inova mesclando o tradicional com o novo. Está assim editado o
soneto na Lírica de Camões:

Vencido está de amor Meu pensamento,


O mais que pode ser Vencida a vida,
Sujeita a vos servir e Instituída,
Oferecendo tudo A vosso intento.
Contente deste bem, Louva o momento
Ou hora em que se viu Tão bem perdida;
Mil vezes desejando, Assim ferida,

34
Apud MACHADO, op. cit., p. 193.
35
GRACIÁN, Baltasar. Agudeza y Arte de Ingenio. (Ed.) Evaristo C. Calderón. Madri: Clásicos
Castalia, 1988, p. 166.
36
Possível tradução: “Os Lares teus não teu agravo; tua virtude, não tua fortuna / Esta glória exímia fez te
elevares. / O tempo, que te seja constante, não breve instante determinado./ Aqui te faça viver Deus
Onipotente”. (AGNOLON, Alexandre. Epigrama retrógrado... tradução comentada. Mensagem
eletrônica recebida por <geraldoaugust@uol.com.br>, em 18.out.2005).
37
Caracteriza-se o anagrama pela formação de uma nova palavra ou frase transposta das letras de outra
palavra ou frase. Escreve Ana Hatherly sobre esse recurso: “atribuído aos hebreus, conhecido de gregos e
romanos, praticado largamente durante a Idade Média, [o anagrama] reemerge fulgurante no Barroco”.
HATHERLY, Ana. A experiência do prodígio. Bases teóricas e antologia de textos-visuais portugueses
dos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983. (Temas Portugueses), p.
185).
35
Outras mil renovar Seu perdimento.
Com esta pretensão Está segura
A causa que me guia Nesta empresa,
Tão sobrenatural, Honrosa e alta,
Jurando não querer Outra ventura,
Votando só por vós Rara firmeza,
Ou ser no vosso amor Achado em falta.38
Em Camões a criatividade está não na feitura do anagrama, e sim na métrica
diferenciada, ao separar os hemistíquios, da mesma forma que fez com o labirinto em
que mescla a medida velha com a nova.

38
Cf. LÍRICA de Camões. Edição crítica pelo Dr. José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira.
Coimbra: Imprensa da Universidade, 1932, p. 129. As letras em negrito são grifos meus.
36
ECOS DA ÉPICA E DA LÍRICA CAMONIANA NA POESIA DE
ONTEM E DE HOJE
REVISTA CAMONIANA, 2005. AUTOR: LUÍS MAFFEI
(...)
Outro erótico Camões do séc. XX será o de Herberto Helder, e o exemplar
provavelmente mais conhecido da presença camoniana na poesia do autor de Cobra é o
poema “I” do “Tríptico” de A colher na boca, de 1961: o poema assume a citação a
partir das aspas que residem em seu verso inicial.
Herberto Helder glosa o soneto de Camões: o trabalho de leitura que é seu
poema promove uma radical erotização do que há de sensível no amor, traço do texto de
Camões que lá convive, em estado de tensão, como predomínio neoplatônico da ideia:

Mas esta linda e pura semideia,


Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma.

Está no pensamento como ideia;


[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.

O poema herbertiano faz com que seu amador não apenas se transforme na coisa
amada, mas que se transforme de instante para instante, o que revela o quão vital é o
trabalho de leitura: o amador é o leitor que refaz, ao ler, o poema alheio, por sua vez a
coisa amada, e tal amador se transforma incomparavelmente porque os sentidos
fornecidos pela recepção jamais se podem tornar estanques:
Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal, a coluna vertebral e o espírito
Das mulheres sentadas.
Verifica-se no texto de Herberto Helder uma patente transformação mútua entre
amador e coisa amada, pois o cantor que recanta Camões não apenas é o amador que
bate e transforma a coisa amada, o soneto camoniano, mas também é o receptor que, ao
modo feminino, recolhe, deixa-se penetrar pela obra do outro.
Em seus poemas, Herberto Helder corre no claro e no escuro, na violência e na
paz da ternura. Através do abusivo uso de antíteses e metáforas, maneja as palavras e as
imagens, por quem se deixa trair abertamente, para que elas sejam o veículo que nos
conduza à verdadeira obra poética: mundo/poeta/obra-leitor.

"Transforma-se o amador na coisa amada" com seu


feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.
37
De início, o próprio verbo transformar nos indica o desmembramento, a
dimensionalidade e a procura. O adjunto adverbial de tempo de instante para instante,
concretiza o dinamismo do ser nesse desmembramento. O amador é algo volátil porque
não para, e imortal porque não se coloca, "corre pelas formas dentro" "com o
assombrado silêncio da sua última vida". Eis englobado aqui o processo de recriação
que demonstra, não só o poder do ser em transformar-se, como também de ser
onipresente. O "amador", apesar de ser um fato simbólico, é o motivo que alcança o ser
fazendo-o tomar consciência de sua condição, posição no cosmos, deveres e
possibilidades. E por que "transforma-se o amador na coisa amada"? Porque não
especifica a razão (ou objetivo) da mensagem: ela é geral, para tudo e todos. É a
necessidade de reciprocidade de ações entre os seres do cosmos, assim como a aceitação
das ações individuais e a busca da comunicação.

"Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher


que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
A arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme,
naquele grito do amador.
Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador, dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único
grito anterior de amor".

POESIA TODA 1 — A Colher na Boca — 1953-60, "Transformo-se o Amador na Coisa Amada" p. 15.

REVISTA CAMONIANA, 2005. AUTOR: LUÍS MAFFEI

O diálogo que Adília Lopes propõe é com um dos mais célebres sonetos de
Camões, e também dos mais antitéticos:
Amor é fogo que se arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

O verso de abertura do soneto há muito se tornou pertença da cultura; esse uso


frequente tende a ser vítima de cristalização. E Adília Lopes traz para seu poema a
metáfora camoniana refletindo exatamente essa cristalização, já que ela vem em
conexão com uma frase feita do idioma: com o fogo não se brinca.
Ao lado de um dito cristalizado, metáfora camoniana, talvez tão conhecida
quanto o dito, é devolvida, por contraste ao estatuto da peculiaridade poética. Se tão
contrário a si é o mesmo amor, o jogo se dá não apenas na relação que aqui tem lugar
entre poetas, mas também na própria sugestão vivencial que advém daquela que ama e
que, ludicamente, sequer nomeia o amor, tarefa já cumprida por seu amante do séc.XVI.

UM JOGO BASTANTE PERIGOSO:

Com o fogo não se brinca


porque o fogo queima
com o fogo que arde sem se ver

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ainda se deve brincar menos
do que com o fogo com fumo
porque o fogo que arde sem se ver
é um fogo que queima
muito
e como queima muito
custa mais
a apagar
do que o fogo com fumo
Adília Lopes, de Um Jogo Bastante Perigoso (1985)

ESTUDOS CAMONIANOS
Manuel de Freitas, A última porta
Estavas linda, Inês, e Camões
decerto não se importará
se eu disser que tinhas
posta no lugar a carne inteira
do meu futuro desassossego.

Aos poucos vai o corpo apodrecendo,


gentil da terra furor de que esquecemos
notícia e lastro, entretidos a morrer
por novas avenidas velhas
que em breve nos não verão mais,
apartados pela vidinha.

Mas estavas tu linda, Inês,


alheia ou talvez nem tanto
ao cego conhecido engano
que por vezes se dissipa
antes mesmo de existir.

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O CONTO
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2008 (adaptado).

Segundo Massaud Moisés, “(...) o conto, de remota e vaga origem, cujas


primeiras manifestações se localizam nas Mil e Uma Noites, foi pouco apreciado em
Portugal antes do Romantismo”. O primeiro nome que merece ser lembrado
historicamente é o de Gonçalo Fernandes Trancoso, que escreveu breves narrativas de
fundo moral, logo publicadas sob o título de Contos e Histórias de Proveito e Exemplo.
O êxito que de imediato conheceu não se alterou durante o século XVII,
inclusive no Brasil, especialmente no Nordeste, onde passaram a chamar-se de "estórias
de Trancoso" as narrativas populares de imaginação e exemplo moral.
Numa prosa desataviada, coloquial, ingênua, Trancoso mistura o sobrenatural
com o real sem medo à inverosimilhança, aproveitando-se da tradição oral e dos
ensinamentos de contistas espanhóis, como D. Juan Manuel, e italianos, como
Boccaccio, autor do conhecido Decameron, do inglês Geoffrey Chaucer, autor de The
Canterbury Tales, entre outros.

GONÇALO FERNANDES TRANCOSO


Gonçalo Fernandes Trancoso nasceu em Trancoso na segunda década do século XVI
(por volta de 1529) e faleceu em 1596. Terá sido professor de Humanidades. Vivia em
Lisboa quando a cidade foi assolada pela peste em 1569, tendo-lhe morrido nessa altura
a mulher, dois filhos e um neto. Escreveu Contos e Histórias de Proveito e Exemplo
(1575). As suas histórias comungam em certa medida da tradição de Geoffrey Chaucer e
Giovanni Boccaccio. É um dos primeiros contistas portugueses. A sua obra teve grande
sucesso, sofrendo múltiplas reimpressões até ao século XVIII.

ALGUNS CONTOS DE GONÇALO FERNANDES TRANCOSO


CONTOS E HISTÓRIAS DE PROVEITO E EXEMPLO

CONTO I
DA PRIMEIRA PARTE

No princípio desta obra, me pareceu bem dizer que, ainda que é muito bom,
como o é, rogar aos Santos que roguem por nós e nos sejam advogados diante do
Senhor, para nos alcançar o que desejamos, todavia é necessário, nós, de nossa parte,
fazer o que podemos para haver o que queremos. Porque, se nós fazemos o contrário do
que rogamos, nunca o haveremos. E quadrou-me um exemplo que disse um padre da
Companhia, que ensinava no Colégio de Santo Antão, de Lisboa, que é:
Num ermo, morava um virtuoso ermitão ao qual se chegou um salteador de
caminhos, dizendo-lhe:
– Vós rogais a Deus por todos. Rogai-lhe que me tire deste ofício que trago,
senão hei-de matar-vos.
E, ido dali, tornava a fazer o mesmo que dantes. E outra vez tornava ao padre,
dizendo:
– Vós não quereis rogar a Deus por mim. Pois hei-de matar-vos.
Tantas vezes fez isto, que uma [vez] veio determinado para matar o padre, o qual
lhe pediu e disse:

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– Já que me queres matar, tiremos primeiro ambos uma laje que tenho sobre a
minha sepultura e, morto, lançar-me-ás dentro sem muito trabalho.
Ele o aceitou e, assim, foram ambos a erguer a laje. Porém, como o salteador
trabalhava quanto podia por erguê-la, assim trabalhava o padre ermitão por que não se
erguesse e, dessa maneira, ambos não faziam mudança da laje. Atentou o salteador no
caso e disse assim:
– E se vós não ajudais, como posso eu erguê-la? Que ainda que eu erga da minha
parte, vós fazeis da vossa com que não aproveite o que faço.
Antes que passasse adiante, lhe disse o padre ermitão:
– Vês aí, irmão, o que eu te digo? Que me presta, a mim, rogar a Deus por ti,
pedindo-lhe que te tire do pecado e mau ofício que trazes, se tu não te queres tirar e
estás muito de propósito perseverando nele?
Quis o sábio mestre com isto dizer a seus discípulos que, além das lições e
ensino que ele lhes dava, eles, por sua parte, haviam de trabalhar de estudo, por
aprender, para lhe aproveitar o que ele ensinava. E, assim, eu ainda que tenha desejo de
escrever, este mês, trinta histórias ou ditos, para desenfadamento dos que gostarem de
os ouvir, trabalhando de noite, ou para recreação dos que os contarem, caminhando de
dia, não basta desejá-lo eu, nem pedir ao glorioso apóstolo S. Pedro, cujo freguês sou, a
quem peço que ele me alcance, do Senhor, graça para que tudo o que fizer seja bom. E
que, para seu serviço e louvor, venha esta obra à luz, senão, que com isso que é muito
bom. E que, para seu serviço e louvor, venha memória, estude e, tomando a pena na
mão, escreva o que aprendi, ouvi ou li. E trabalhando eu por minha pessoa, pondo-me a
isto, ajudar-me-ão os rogos do Santo e, por eles, me dá o Senhor graça com que esta
obra venha a efeito. E, assim, todos os que quiserem dos Santos que lhes alcancem, de
Deus, nosso Senhor, alguma coisa, peçam-lha fazendo da sua parte conforme ao que
pedem, que Deus lho concederá, se for seu serviço. E, não lho concedendo, será para
seu maior merecimento. Que eu, com esta confiança comecei esta obra, espero em Deus
acabá-la em seu louvor e para seu santo serviço.

CONTO II

Uma virtuosa dona de boa vida tinha uma filha de tão má inclinação que não
queria tomar os nobres conselhos da mãe, nem a aprender seus louvados costumes; mas
em tudo seguia seu próprio parecer, sem obediência de pessoa alguma, nem correição de
vizinha, nem parenta, porque era preguiçosa, gulosa, andeja, muito faladeira e de outras
feias manhas. A mãe, como mãe desejosa de seu bem, e de lhe dar marido antes que
aqueles viços a levassem a torpe pecado, determinou dar a um mancebo tudo o que a
pobre velha tinha porque casasse com a filha, tendo para si que o marido lhe faria fazer,
com castigo, o que ela não podia com ensino, repreensões e exemplos. E, concertada
com ele no dote, quis o mancebo que não dessem conta à moça até que ele a fosse ver, o
dia seguinte, seguindo o conselho do rifão que diz: Antes que cases olha o que fazes.
Foi a velha contente e disse que assim faria. Porém, porque a filha estivesse [de]
sobreaviso e não caísse em alguma fraqueza a tal tempo, crendo que, para casar, tomaria
seu conselho, lhe descobriu aquela noite tudo o que passava, dizendo-lhe:
– Filha, toda tua vida seguiste tua opinião, sem querer entender meus conselhos.
Agora te rogo que, este dia, me oiças e aceites o que te disser.
E, com discretas palavras, lhe admoestou que o dia seguinte não se erguesse de
um lugar, que sempre estivesse calada, fiando, ou, ao menos, com a toca na cinta, pois o
futuro marido a queria ver, a achasse quieta e ocupada em virtuoso exercício, coisa que
as moças sempre deviam de fazer, porque a inquietação e a ociosidade nelas,
comumente as leva a mui perigosos pensamentos, contrários da virtude, boa fama e
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honesta vida. E, para mais ajuda, a velha, aquele serão, quase até meia noite e, pela
manhã, pôs-lhe à filha uma grande rocada na cinta e deixou-lhe as maçarocas que fiara
no regaço. Fê-la assentar, tal que à vista dos olhos a quem a não conhecera, parecia uma
diligente fiandeira, quase uma das Parcas que fiam a vida. Porém, como aquele não era
seu costume, tanto que a mãe desceu à porta (porque havia de esperar ali o mancebo), a
moça deixou a roca e, com diligência, fez lume e nele uma honesta tigela de papas. E
porque se esfriassem, prestes as lançou em cinco ou seis escudelas que logo chegou
derredor de si e, soprando e fervendo, estava a pobre moça mui apressada por acabar
sua obra, antes de ser sentida. A este tempo chegou o mancebo à porta e, ainda que o
viu a velha, pelo que tinham concertado, não se falaram, mas ele subiu manso, por ver
em que se ocupava a que ele queria receber por mulher. E a velha o deixou ir, tendo
para si, acharia a filha, ao menos com a roca na cinta, como a deixara. Mas, ainda que
ele subiu dez ou doze degraus da escada, ela, de ocupada, não no sentiu, nem posto que
meteu a cabeça em casa o não viu. Mas ela foi dele muito bem vista e, notando o ofício
em que estava, disse entre si:
– Nunca nos faremos boa matalutagem porque, quem tanto e com tal pressa
madruga a comer, pouco prol pode fazer. Não é esta a que me arma.
E, sem falar, se desceu. E a velha, vendo-o vir tão prestes, lhe perguntou:
– Que vos parece, filho, que cuidado de moça?
E querendo-lha gabar, porque imaginava que estaria fiando e mais, com a roca
cheia, lhe disse:
– Viste a pressa que tinha e a habilidade de suas mãos e o que já tinha
despachado? Pois eu vos prometo que daquelas enche e vaza sete no dia.
Querendo a velha dizer as rocadas da roca, mas o mancebo, sem descobrir o que lhe vira
fazer, respondeu:
– Senhora, não me arma, que, se ela é tal, não na posso sustentar. E assim esteja em
vossa casa e, se as vazar e encher tantas vezes, seja embora de vossa farinha e não já da minha.
E foi-se. A mãe, ouvindo isto, foi ver o [porquê] o dissera e achou a filha como
contámos e disse-lhe:
– Sem açúcar, filha, espera! Dar-te-ei um pequeno.
E com grande fúria, sem atentar o que fazia, que era grande pecado, tentada do
demónio, tirou de uma boceta um pouco de solimão e polvorejou-lho por cima, que a moça
comeu, crendo que era açúcar, tão cega estava. Mas, antes de muito, com o ardor e angústias
mortais, deu o espírito antes de dar fim à sua obra.
Este conto se escreveu para exemplo das filhas que sejam obedientes a suas mães e
virtuosas.

Gonçalo Fernandes Trancoso, Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, Lisboa, Passado Presente, 1988,
pp. 15-21. Adequação do texto de Armando Moreno.

162. QUANTO VALE A BOA SOGRA


Fonte: http://pt.wikisource.org/wiki/Autor:Gon%C3%A7alo_Fernandes_Trancoso

Uma nobre dona deu a um mancebo que ia para Indias de Castella, uma beatilha,
muito fina, que lh'a levasse de encommenda, dizendo, que lhe rogava que a vendesse
pelo mais que pudesse, e partiriam ambos o dinheiro. E o mancebo, não por cobiça do
ganho, mas por fazer bem á viuva, que tinha uma filha virtuosa que manter, a guardou e
levou a recado. Perderam os portuguezes toda a mercadoria que levavam, e de nojo
morreram quasi todos antes de vinte dias; porém como não perdiam a roupa de seu
corpo, houve este mancebo o caixão da roupa de linho, donde metera a beatilha, e como
se viu solto determinou por misericordia pedir a fazenda que perdera, e para se lhe fazer
n'isto favor teve maneira como mandou aquella beatilha rica de presente á molher do

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Justiça Mayor d'aquella terra. E ella tanto que a viu a acceitou, e desde logo trabalhou
com o marido todo o que pode para que desse a fazenda áquelle homem. E assi lhe
deram cinco vezes mais do que lhe tomaram, e vendeu tão bem o que lhe ficou na roupa
de linho, que fez grande fazenda, e tudo feito em pedaços de ouro, veiu a Portugal
riquissimo.
Estando este mancebo já repousado em sua casa, disse-lhe um dia a sua propria
mãe:
— Filho, se fizeste algum dinheiro da beatilha da visinha, rogo-vos que o
mandeis a sua filha, que ficou orfã.
E elle vendo isto, e tendo diante dos olhos que tudo o que trouxe lhe veiu de
presentar a beatilha como presentou, tomou cincoenta cruzados em ouro e deu-os á mãe:
— Dizei-lhe que tome isto por então.
Assi lh'os mandou, e isto fez por quatro vezes; e a mãe, vendo que elle tinha já
dado tanto dinheiro, e que lhe parecia não ter satisfeito, lhe disse:
— Filho, se vós tanto lhe deveis, que com o que lhe tendes dado não vos parece
que pagaes, fazei o que vos eu disser, que eu vos rogo que caseis com ella, e que
verdadeiramente por sua pessoa o merece.
O mancebo ouvindo isto de sua mãe, acceitou o casamento, que se logo tratou.
Foram desposados e a seu tempo recebidos, porém como diz o rifão, que a orfã não
gosa nem o dia da sua boda, assim aconteceu a esta, que o dia que os receberam,
azevieiros defamadores vinham da egreja detraz d'elles murmurando do noivo porque se
casára com aquella que sua mãe a vendera primeiro. E isto diziam tam
desavergonhadamente, que deram occasião a que o noivo o ouvisse. Porém, des então
lhe ficou um rencor no coração, e tam grande menencoria comsigo, que se não podia
consolar, tendo-a tambem contra sua mãe. E assi despedida a gente que os acompanhou
até casa, elle disse que ia por certa cousa que lhe faltava por trazer, e tambem se sahiu
de casa sem nunca mais tornar a ella.
Ficou a este tempo a noiva mais triste que a noite, sem ter consolação de
ninguem, nem saber a causa d'aquella mudança, que não sabia que conselho tomar, e
certo se deixára morrer de nojo, se não fôra a boa sogra que tinha, que esta a
acompanhou todo o tempo que lhe durou seu trabalho.
Porém como o mancebo tinha para si que era enganado, apartado d'aquella
visinhança, em outra rua tomou casa, em que a poz de mercadorias que elle sabia tratar,
com um sobrado em cima em que viveu mais de dois annos. N'este tempo indo a mãe a
vêr o filho, algumas vezes lhe achou molheres em casa. E tanto que a mãe sintiu isto,
imaginou o que havia de fazer, e foi-se a casa e disse a sua nora:
— Filha, sempre tomastes meu conselho, e espero tambem tomareis agora este
que vos der: e é, que deixeis estes trages tão honestos e tristes e vos façaes
muito fermosa e leda com outro trage que pareça de molher que vae em corpo fóra.
Fiae-vos de que vos acompanharei até vos mostrar a logea de vosso marido; entrae
n'ella, e fingi comprar para um corpinho.
D'aqui lhe aconselhou o que havia de fazer e se foi com ella até lhe mostrar a
porta da logea, e a velha se tornou para casa. A moça viu seu marido, envergonhada,
pelo transe em que estava lhe veiu outra côr ao rosto, que a fez mais fermosa, ainda que
ella o era assaz, e esteve um pouco suspensa. O marido que a viu, não suspeitando nem
por imaginação que fosse, lhe perguntou o que queria, e a fez entrar, e deu ordem como
despedir os que ali estavam, e ficando com ella só começou a fallar-lhe de amores, a que
ella de envergonhada não sabia que responder. Elle a importunou, e ella acceitou ficar
alli aquella noite, em que elle conheceu claro que ella era donzella quando alli veiu e

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viu que sem falta era muito fermosa. E chegada a menhã, ella lhe pareceu que já não era
razão nem tempo de usar de tanta vergonha:
— Muito tempo ha que vos tenho por meu senhor, e se até agora tardei e estive
sem vol-o notificar foi por vos dar mostra de minha pessoa, que foi tão mofina, que sem
me vêr nem haver porquê, me engeitastes. E se todavia agora me engeitaes, mandae
chamar vossa mãe que me leve, que ella me trouxe.
Quando elle entendeu isto e viu ser aquella sua molher, não sabia determinar o
que faria, que por aquella noite que a teve, se ella não fôra sua molher, e elle fôra
solteiro, lhe pareceu que lhe merecia casar-se com ella. E estando n'estas considerações,
começaram a bater-lhe rijo á porta, e elle chegou a uma fresta, e conhecendo que quem
batia era sua mãe, lhe foi abrir, a qual, em entrando pela casa, disse:
— Filho, que vos parece da donzella que vos acompanhou esta noite? Crêdes
que é a que eu disse, já que sabeis que é vossa molher?
Elle vendo a fermosura da molher e sua grande humildade, e conhecendo que o
que ouvira foi engano, pesou-lhe do tempo em que deixou de estar com sua nobre e
virtuosa molher, e com bom coração na vontade pedia perdão do agravo que até então
lhe tinha feito, e se começaram a abraçar como se então se viram a primeira vez, e
ficaram marido e molher muito contentes, e tiveram a velha mãe d'elle por mãe
d'ambos, que por esta se póde bem dizer:
A sogra boa
Da nóra é corôa. (Trancoso, Contos e Historias, Parte II, conto I.)

169. O ACHADO DA BOLSA


Fonte: http://pt.wikisource.org/wiki/Autor:Gon%C3%A7alo_Fernandes_Trancoso

Havia um mercador muito rico, e assim como cada dia se lhe iam acrecentando
suas riquezas, assim n'elle se lhe ia multiplicando tanta avareza, que em outra cousa não
trazia o sentido senão em ajuntar dinheiro. Este estando um dia vendendo suas
mercadorias, tomou quatrocentos cruzados em ouro, que havia vendido, e deitou-os em
uma bolsa, e despois de recolher seu fato se foi para sua casa enthesourar. Indo pelo
caminho fazendo suas contas com a imaginação, lhe acertou a cahir a bolsa, e até que
chegou a casa a não achou menos. Esteve para perder o juizo juntamente com a bolsa.
Com grande dôr e paixão se foi ao Duque, que era senhor d'aquella cidade, e lhe pediu
que mandasse sua excellencia em seu nome apregoar que quem achasse uma bolsa com
quatrocentos cruzados em ouro, que os trouxesse diante d'elle, que lhe daria quarenta
cruzados de achado. Foi dado o pregão pela cidade, e sendo ouvido de todos, chegou a
ouvidos de quem tinha achado a bolsa, que era uma mulher viuva, muito pobre e
virtuosa. E ouvindo dizer, que davam quarenta cruzados de achado foy mui leda,
entendendo que ficar com a bolsa seria infernar sua alma. Assim com esta determinação
se foi diante do Duque e lhe poz em sua mão a bolsa que havia achado assim e
da maneira que o mercador a havia perdido. Vendo o Duque a pobreza d'esta mulher, e
que era digna de ser grandemente favorecida, logo mandou chamar o mercador e lhe
disse como a bolsa havia já apparecido, que não faltava mais que cumprir sua promessa
áquella mulher honrada que a havia achado. Folgou em extremo o avarento mercador,
porém achegou-lhe á alma o vêr que havia de dar os quarenta cruzados que tinha
promettido de achado, e assim imaginou logo n'aquelle instante um ardil para os não
dar, e foi que tomou a bolsa e vasou o dinheiro em uma meza que ali estava, e contou-o,
e posto que o achasse certo, comtudo isso revirando para a mulher que o havia achado,
lhe disse:

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— Molher de bem, aqui n'esta bolsa faltam trinta e quatro escudos venezianos, que
estavam de mais dos quatrocentos cruzados em ouro que aqui estão.
A boa velha affrontada e corrida, lhe disse:
— De maneira, senhor, que crêdes de mim que vos havia de furtar o vosso
dinheiro! Quem me obrigava, tendo eu em meu poder essa bolsa, a trazel-a aqui, senão
não querer eu o alheio?
Não deixava o mercador de gritar e dar vozes dizendo que lhe fosse buscar os trinta
e quatro escudos venezianos que faltavam, se queria que lhe désse o achado que tinha
promettido. O Duque, conhecendo a malicia do mercador e tudo aquillo que fazia e
dizia era a fim de se escusar de dar o que promettera, entendendo que quanta era a
bondade da virtuosa mulher tanta era a maldade do avarento mercador, imaginou que a
maior pena que podia dar a um homem tão ruim como aquelle era fazer que com seu
engano se offendesse a si mesmo, e a esta causa, virando-se para elle, lhe disse:
— Vinde cá; se isto é assi como dizeis, porque me não declarastes que a bolsa
levava mais esses escudos de ouro? Ora eu tenho entendido que vós sois tal que quereis
fazer o alheio vosso, e que esta bolsa que essa mulher honrada achou não é vossa, pois
n'ella faltam esses ducados venezianos que dizeis; antes essa bolsa que se achou sem
duvida nenhuma é uma que esse proprio dia perdeu um meu criado com esta mesma
somma de dinheiro que essa tem, e pois sendo assim como é, a mim e não a vós
pertence.
E dizendo isto, virou-se para onde estava a velha, e lhe disse:
— Boa mulher, pois que achastes esta bolsa com estes cruzados de ouro, eu vos
faço graça d'ella com o dinheiro que tem.
Não se atreveu o inconsiderado avarento a replicar ao que o Duque dizia; antes
arrependido de não haver cumprido a palavra que promettera se foi para sua casa chorar
seu desastre. (Trancoso, Ibid., Parte III, conto VII.)

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ATIVIDADE - RENASCIMENTO

PARTE I

1. Por que a estética renascentista tem o nome de RENASCIMENTO?


2. Quem introduziu o Classicismo literário em Portugal e como o fez?
3. Quais as duas modalidades de textos literários que Camões cultivou?
4. Quais as características dos contos desenvolvidos por Gonçalo Fernandes
Trancoso?

PARTE II

1. Leia o soneto a seguir e responda às questões:

EU CANTAREI DE AMOR TÃO DOCEMENTE


Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, pera cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.

a) Identifique a métrica clássica usada no poema;


b) Apresente o esquema rimático do poema lido;
c) Interprete o conteúdo do poema.

2. Leia o fado (MÚSICA PORTUGUESA) a seguir e responda às questões:

FORMOSA INÊS Mário Pacheco / Rosa Lobato de Faria

Antiga como a sina dos amantes,


A audácia de morder o infinito,
Acesa pelas noites delirantes,
Paixão que se fez lenda e se fez mito.

Depois foram razões que o Reino tece,


Foi o dia mais triste, o mais maldito,
A espada ao alto erguida e foi a prece,
Amor desfeito em sangue... e foi o grito.

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D. Pedro, desvairado brada e clama,
Leva da terra em terra a sua amada,
Não tem morada certa, pois quem ama,
Saudade tem por única morada.

Da morta, fez rainha, porque é louco,


Porque é amante e rei e português,
E eu que te cantei e sou tão pouco,
Também te beijo a mão formosa Inês.

In: O Mar – A Música dos Povos de Língua Portuguesa. São Paulo: Oboré, ENL CD001, 1997.

A morte de Inês de Castro, no ano de 1355, e as circunstâncias trágicas que a envolvem


têm sido um dos temas amorosos mais caros aos escritores portugueses, justamente por
simbolizar aspectos radicais do sentimentalismo lusitano. Inês era uma formosa dama
castelhana, que acompanhara a infanta D. Constança quando esta chegou a Portugal
para casar-se com o príncipe-herdeiro D. Pedro. Já casado com Constança, Pedro se
apaixona por Inês, o que desperta iras e intrigas na Corte. Essa situação se complica
após a morte de Constança, e culmina com o assassinato de Inês por ordem do rei D.
Afonso IV, pai de D. Pedro. Tempos depois, já rei de Portugal, D. Pedro realiza cruel
vingança contra os assassinos de sua amada, e jura que era casado clandestinamente
com D. Inês.
Tomando por base esses fatos históricos e lendários, releia atentamente a letra do fado
“Formosa Inês” e, a seguir,

a) Na primeira estrofe, a que se refere o primeiro verso?


b) Explique o verso “Amor desfeito em sangue... e foi o grito.”, da segunda estrofe.
c) Releia a terceira estrofe e explique o último verso: “Saudade tem por única
morada.”
d) Qual a possível relação entre o eu lírico do fado e d. Pedro?

3. Leia o poema abaixo do poeta brasileiro modernista Jorge de Lima, em releitura


do Canto III, 118-135, de Os Lusíadas de Camões, sobre a tragédia de Inês de
Castro.

MUSA INÊS

Estavas linda Inês posta em repouso


mas aparentemente bela Inês;
pois de teus olhos lindos já não ouso
fitar o torvelinho que não vês,
o suceder dos rostos cobiçoso
passando sem descanso sob a tez;
que eram tudo memórias fugidias,
máscaras soto-postas que não vias.

Tu, só tu, puro amor e glória crua,


não sabes o que à face traduzias.
Estavas, linda Inês, aos olhos nua,
transparente no leito em que jazias.

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Que a mente costumeira não conclua,
nem conclua da sombra que fazias,
pois, Inês em repouso é movimento,
nada em Inês é inanimado e lento.

As fontes dulçurosas desta ilha


promanam da rainha viva-morta;
o punhal que feriu é doce tília
de que fez a atra brisa santa porta,
e em cujos ramos suave se enrodilha,
e segredos de amor ao céu transporta.
Não há na vida amor que em vão termine,
nem vão esquecimento que o destine.

Fonte: LIMA, Jorge de. Poesia. Rio de Janeiro: INL/Aguilar, 1974. V. 3. “Invenção de Orfeu”, p. 97.

a) Quais as relações formais e conteudísticas entre o poema de Jorge de Lima e o


episódio dedicado a Inês de Castro em Os Lusíadas?
b) Explique os dois últimos versos do poema: “Não há na vida amor que em vão
termine, / nem vão esquecimento que o destine”.

4. Leia o soneto a seguir e responda às questões

TOMOU-ME VOSSA VISTA SOBERANA

Tomou-me vossa vista soberana


Aonde tinha as armas mais à mão,
Por mostrar que quem busca defensão
Contra esses belos olhos, que se engana.

Por ficar da vitória mais ufana,


Deixou-me armar primeiro da razão;
Cuidei de me salvar, mas foi em vão,
Que contra o Céu não vale defensa humana.

Mas porém, se vos tinha prometido


O vosso alto destino esta vitória,
Ser-vos tudo bem pouco está sabido.

Que posto que estivesse apercebido,


Não levais de vencer-me grande glória;
Maior a levo eu de ser vencido.

a) Qual a métrica do soneto?


b) Qual o esquema rimático?
c) Com o que o eu lírico compara o amor?
d) Qual o nome da seguinte construção (1º verso, 3ª estrofe) “Mas porém”. Por que
o poeta teria usado esta construção?
e) Interprete o conteúdo do poema.

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