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Peri Santoro
2011
A HERMENÊUTICA DA PERFORMANCE MUSICAL: UMA POÉTICA DA
INTERPRETAÇÃO DA OBRA DE ARTE
Peri Santoro
Rio de Janeiro
Abril de 2011
A HERMENÊUTICA DA PERFORMANCE MUSICAL: UMA POÉTICA DA
INTERPRETAÇÃO DA OBRA DE ARTE
Peri Santoro
Aprovada por:
_________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Antonio José Jardim e Castro
_______________________________________________
Profa. Dra. Maria Lúcia Guimarães de Faria - UFRJ
_______________________________________________
Profa. Dra. Regina Maria Meirelles Santos - UFRJ
_______________________________________________
Profa. Dra. Sônia de Almeida do Nascimento - EMVL
_______________________________________________
Profa. Dra. Rívia Silveira Fonseca - UFRRJ
_______________________________________________
Prof. Dr. Manuel Antônio de Castro – UFRJ (Suplente)
_______________________________________________
Prof. Dr. José Adriano da Silva Alves - FAETEC (Suplente)
SANTORO, Peri.
pensar poético.
Faria Coutinho, Luis Edmundo Bouças Coutinho e Ronaldes de Melo e Souza, pelo
Aos caríssimos colegas Sônia Almeida, Verônica Araújo, Kátia Rose Pinho,
André Vinícius Pessoa e Ronaldo Moutinho, que tanto me ajudaram com sua
momentos difíceis.
Ao meu filho André Cioli Taborda Santoro, por ser filho, simplesmente.
Ao meu neto Mateus Ventura Santoro, por ser neto, simplesmente, a quem
works through the appreciation and performance. With the author‟s artistic journey in
mind, interpretative approaches in significant genre and musical works were made,
from the point of view of the pedagogic and poetic appreciation regarding the
Medieval Songs, the Opera Orfeo from Monteverdi and the serenade nº 5: Modinha
from Heitor Villa Lobos. The author also studied the short story Minha Gente, from
Guimarães Rosa‟s literary work Sagarana, as an attempt to unveil the music within
the text. The revival of the early music, the debate between the scholar and the
popular, the oral and the written, the permanence and relevance of the work of art
and the inégalité, from the standpoint of the poetic work, all of these were the guiding
questions for this hermeneutic exercise. The poetic listening and the fruitful dialogue
between the work and the listener generated several methods of poetic
d'interprétation ont été faites sur les genres musicaux et les oeuvres musicales
ont été des questions d'orientation de cet exercice herméneutique. L'écoute poétique
1. INTRODUÇÃO, p. 11
3. A MÚSICA MEDIEVAL, p. 55
3.1 O REVIVAL DA MÚSICA ANTIGA: UMA QUESTÃO
POÉTICA, p. 55
3.2. A PRECISÃO E A INÉGALITÈ: CONSTITUINTES POÉTICOS
DA MÚSICA, p. 59
3.3 O CANTAR POÉTICO DAS PALAVRAS E A NOTAÇÃO
MUSICAL, p. 62
3.4 O CANCIONEIRO MEDIEVAL IBÉRICO: UMA PERSPECTIVA
POÉTICA, p. 69
3.5 MEDIEVO-NORDESTE: UMA PONTE POÉTICA ENTRE O
ANTIGO E O NOVO, p. 76
4. A ÓPERA, p. 86
4.1 A ÓPERA: A GRANDE INOVAÇÃO NA MÚSICA POR VOLTA
DE 1600, p. 86
4.2 ORFEO: ANTIGO VERSUS MODERNO, p. 91
4.3 UMA POÉTICA DO ORFEO, p. 94
7. CONCLUSÃO, p. 182
8. REFERÊNCIAS, p. 190
8.1 BIBLIOGRÁFICAS, p. 190
8.2 DOCUMENTOS SONOROS, p. 196
8.3 IMAGENS EM MOVIMENTO, p. 197
8.4 DOCUMENTOS ELETRÔNICOS, p. 198
ANEXOS, p. 199
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1. INTRODUÇÃO
repertório. Dissertar sobre cada uma dessas vertentes não constitui tarefa fácil e
pretium, de interpretium, comum a ambos e que diz das escolhas que se faz e do
Outra questão que se impõe é que a poética da música não pode ser
temporal da obra musical em gêneros, estilos e épocas, pois isso também não dá
Então, isso significa que não podemos falar sobre música? Antonio Jardim,
Embora não possamos falar sobre música, a resposta para esta pergunta não
será, em hipótese alguma, negativa. Não falamos sobre música, e sim deixamo-nos
tocar pela própria música. Falamos a partir dela, nela e, sobretudo, com ela. Sendo
assim, ao longo deste trabalho iremos nos debruçar, sempre que possível, em três
neste trabalho.
escrito. Além disso, a grafia de uma palavra pode nos remeter a representações nas
quais a correspondência entre fala e escrita assume caráter universal dentro de uma
determinada cultura. Ora, a música também não apresenta uma relação entre fala e
escrita? No que tange à música, também não há uma correspondência exata entre
som e grafia, mas apenas uma aproximação que admite vários graus de imprecisão
1
A leitura de uma partitura também recebe o nome de solfejo, quando cantada.
13
uma determinada obra musical significa deixar-se tocar pelo vigor da realidade da
da música.
subjetivo. Não apreendemos a vigência de uma música apenas pela fruição estética.
Quando um intérprete decide executar uma obra musical, sua escolha exige, dentre
executor ou do ouvinte. Isso decorre do fato de que apreciar uma música nada mais
de uma obra musical esteja ligada à sua fruição estética, ao passo que a
musical significa apreciar, mas a apreciação da obra musical não quer dizer
necessariamente interpretação.
devemos ter cuidado com o uso do termo “análise” ao limitá-lo ao sentido de uma
muitos estudiosos consideram que ao analisarmos uma obra, seja ela musical,
cair no esquecimento do ser da obra. É preciso deixar a obra acontecer para que,
pelo exercício da escuta, dialoguemos com o ser obra da obra para que possamos,
assim, dialogar com o real da música, com a sua essência, para que a obra opere,
em suma.
eclosão de sentido poético, a presença das coisas, do dito e do não dito, não são
Assim, o ritmo, a melodia, a duração e até mesmo os arranjos2 de uma obra musical
uma obra. Mesmo que esta seja desconhecida pelo próprio autor, ainda assim existe
2
Devemos compreender o ritmo, a melodia, a duração e os arranjos como elementos constitutivos da
música.
15
sonoros, a estrutura das obras e os efeitos, por exemplo. Todavia, devemos estar
A poética de uma obra musical não pode ser apreendida pelos contextos, e
sim pelas múltiplas possibilidades de realização do seu instante poético. Música não
metafísico e por isso devemos nos encaminhar para a interpretação poética da obra
utilizados na sua tarefa criativa são apenas aparatos que compõem o mistério e a
magia da criação.
Nada sabemos sobre “como” compor uma obra, pois não existe receita para a
3
Disciplinas teórico-musicais que ensinam a articular o discurso musical em termos acadêmicos.
16
Até mesmo em sua vigência escrita, na partitura, uma obra musical exibe
dizer e o não dizer no qual comparece Hermes4 e nos cede não a lira, pois essa já foi
silêncio e gestamos entre o que se mostra e vela, o dito e não dito, o silêncio e sua
convite para perscrutar o que não pode ser medido e, sim, experienciado em um
Segundo Rohden:
É no ir-e-vir, seja entre intérprete e obra, seja entre aquele que quer
compreender a verdade e os (pré)conceitos existentes, que uma concepção
de verdade pode ser elaborada. (in CASTRO, 2005, p.220)
que dispomos para interpretar uma obra dependem das nossas escolhas, dos
4
Filho de Zeus e de Maia, Hermes é conhecido como o deus mensageiro: “É na Odisséia que ele
aparece pela primeira vez como mensageiro dos deuses”. (OTTO, 2005, p. 98).
17
porém o que faz com que um intérprete execute determinada obra de uma certa
em seu ensaio Gadamer e as questões da arte, diz que “a linguagem poética possui
uma „relação peculiar, muito própria, com a verdade‟” (ROHDEN apud CASTRO,
nos toca. É justamente a partir desse aceno que o ser da obra presentifica o que
5
A verdade não como um conceito representativo, uma mera adequação de sujeito e objeto. Verdade
deve, antes de tudo, ser apreendida como aletheia que é o velar autovelante do real e suas
realizações.
6
A Música Antiga abarca os períodos medieval, renascentista e barroco, segundo os musicólogos
tradicionais.
18
interpretativa.
Entretanto, será que quando executamos uma música barroca com padrões
perdido” – mas que na verdade configura um caminhar que transita pelo ontem, o
musicalidade de uma obra literária no conto Minha Gente, de João Guimarães Rosa.
Podemos até mesmo afirmar que este nosso trabalho vai lidar todo o tempo,
século XIII e do Orfeo, de 1596, as obras mais recentes que estudamos foram a
“Serestas”, e o conto Minha Gente, do livro “Sagarana”, de 1937, como nos informa
Rosa, em carta a João Conde: “Lá por novembro, contratei com uma dactilógrafa a
se de uma obra que inaugura a presença do drama humano na música por meio da
interpretação de Monteverdi para o mito de Orfeu. Não estamos mais diante de uma
realidade sacra, como acontecia na Música Antiga e com as Cantigas de Louvor mas
inquietude concedem ao homem seu drama trágico. Luta incessante entre o viver e o
morrer, tanto o mito como a ópera Orfeo articulam o homem no divino e o divino no
humano.
esse fenômeno a partir da linguagem, dos sentimentos e dos modos de ser que
o imaginário que nos assola ao tratar das obras musicais tangidas pela pátina do
tempo, de um locus amoenus perdido para sempre, não fossem elas obras imortais
papel sob cada olhar que sobre ela se lança lendo, interpretando e escutando a fala
A música só pode existir na sociedade; não pode existir, como também não
o pode uma peça, meramente como página impressa, pois ambas
pressupõem executantes e ouvintes. Está, pois, aberta a todas as
influências que a sociedade pode exercer, bem como às mudanças nas
crenças, hábitos e costumes sociais (RAYNOR, 1981, p. 9).
Quanto às cantigas7 medievais, é preciso recriá-las, mas até que ponto uma
Do ponto de vista das cantigas, ocorre uma permanente recriação, seja pelas
neumas. Do ponto de vista poético, a obra está lá, vigendo no “no sono do papel”,
Kerényi:
com uma estruturação escrita erudita. Não estamos mais diante do trágico, como
7
Música medieval basicamente oral e com notação neumática, notação musical da Idade Média.
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Minha Gente do livro “Sagarana” de Guimarães Rosa. De tanto ouvirmos falar sobre
rosiana, por meio deste conto. Utilizamos o conceito de música programática para
obra, todos são intérpretes pelo diálogo, por isso a interpretação de uma obra é
universal aplicável às obras. Uma obra poética não é constituída por verdades
desvelamento.
obra tem uma abordagem que é dada por ela mesma. A obra musical é dinâmica na
sua percepção e na sua recriação, por isso não somos nós que decidimos sobre ela
e sim é a própria obra que no seu desabrochar nos acena com múltiplas
possibilidades. Por isso, quando há escolha de uma obra, esta se dá não como
intérprete capta esses acenos e também se faz obra na obra artística. Temos,
Há, no entanto, quem possa considerar este trabalho assaz abrangente. Ora,
como escolher um único assunto capaz de nos deslumbrar? Não nos debruçamos
sobre assuntos, mas deixamo-nos mover pelo vigor das questões. A verdade é que
tanta luz irradia daquilo que em música se chama interpretação – inclusive a partir
escolher por onde começar e decidir sobre o que vale e o que não vale a pena
investigar.
acima descritas trouxeram para o nosso fazer musical. O questionar o novo à luz do
antigo e o antigo à luz do novo, esta é a dialética que nos move neste trabalho. O
divino e o humano, o trágico e o lírico, são aquilo em que vale a pena nos
debruçarmos; são aquilo que provoca o desejo e cria sentido. Música, desejo e
sentido, estas as sendas em que nos debruçamos e que nos provocam nesta
intérprete/ executante faz sobre a maneira como a obra deverá ser interpretada.
possibilidades que a obra apresenta para o seu aparecer, se permite ouvir aquilo
que as musas lhe autorizam ouvir e fruir. Ambas são, portanto, fundamentais para o
originária foi o empenho aqui realizado; alcançar a clareira que ilumina e conduz ao
esclarecimento é o que não pudemos perder de vista, pois todo iluminar traz à
presença o que antes estava oculto. Dito em outras palavras, todo iluminar é sempre
mesmo vale para todas as artes – não é dada por conceituações ou esquemas
estabelecidos a priori, mas tão-somente pela escuta de como a obra opera na sua
experiência que possui os traços da experiência da obra de arte .” (in CASTRO, 2005,
219).
poética? A poética é algo que já está lá, no sono da obra ou se constrói na sua
Hermes, tu, mais do que todos os outros deuses, és o mais querido para ser
companhia do homem... Hermes gosta de se associar aos homens para
garantir um desejo ou para torná-los invisíveis... É da natureza de Hermes
não pertencer a qualquer localidade e não possuir habitação permanente;
ele está sempre a caminho entre aqui e acolá. (AGUIAR, 2004, p. 123).
palavra hermenêutica:
magia.
conhecimento das coisas do mundo. Essa luz é a verdade, aletheia, o perene ocultar
A grande obra de arte é o homem. Por isso, não depende se ele é filósofo,
se ela é artesão, se ele é cientista, se ele é técnico, se ele é político, se ele
é social, não depende disso. O fato de ele ser homem já é o percurso da
obra de arte. (in CASTRO, 2005, P. 120)
está mediado pelo mundo das coisas, ou melhor, pela linguagem que a tudo cerca e
8
Depoimento sobre hermenêutica concedido ao autor por Verônica Araújo, UFRJ, 2010.
27
musicais.
inteiramente, pois não é possível ver a totalidade do ser da obra. O que podemos,
na qualidade de grande obra de arte, que é o homem”, é dialogar com ela e nos
dinâmico.
28
hermenêutica:
nossas interpretações poéticas das obras musicais escolhidas. Cada um de nós terá,
E é com esse intuito que este trabalho será desenvolvido: como estrutura
luz o que estava oculto na obra, surge a pergunta: será que o poético da obra existe
Segundo Jardim:
Heráclito de Éfeso no qual entramos e não entramos no mesmo rio duas vezes: “No
mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos”. (ANAXIMANDRO, 2005,
p. 71).
Cada vez que temos contato com uma determinada obra, estamos e não
estamos diante dela mesma. O que a obra nos concede, enquanto manifestação
poética, são novos mergulhos no seu próprio silêncio, porém, o silêncio da obra não
isso, estamos e não estamos diante da mesma obra. Toda obra de arte firma-se e
hermenêutica é o fato de que não é possível interpretar algo que possua sentido
unívoco, cita Gadamer e diz que: “A arte requer interpretação porque é de uma
ele ressalta que, segundo Gadamer, “só se pode interpretar aquilo cujo sentido não
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esteja estabelecido, aquilo, portanto, que seja ambíguo, „multívoco‟” (in CASTRO,
2005, p. 214).
pressuporia um momento do fiat lux, mas sim do processo criador. O ato criador é o
fazer poético, que é o instante no qual a obra opera. Após a decisão de compor, o
Interpretar uma obra, em música, quer dizer penetrar nos interstícios do seu
silêncio e deixar que o mesmo instaure o dizer. O intérprete ou executante, por sua
vez, é aquele que executa a obra ao cantá-la, tocá-la ou regê-la. Para Antonio
Jardim:
descartando essa possibilidade, até porque aquilo que o compositor cria configura,
de alguma maneira, a sua visão do que está por vir. O que o compositor / criador
compõe já se encontrava no seu imaginário não como paradigma a ser seguido, mas
de criar uma obra não prescinde do entendimento prévio do que a obra de arte
sua intenção, surge a tensão que gesta o parto da obra. O ato criador não é
Como tensão entre o que se oculta e o que se revela no ser do ente, o ato
da obra, até porque, sendo a obra musical dinâmica e sujeita a revelações sem fim,
introduzindo novos atos criadores, novos fiat lux. A decisão de caminhar por aqui ou
por ali no processo composicional está sempre trazendo à luz a questão da decisão
interior que trava com o aceno da obra ainda em gestação. É a própria physis,
produzindo algo de novo no mundo, que sai da presença originária da obra e se faz
Esta magia circular que caminha pelo compositor, pela obra e pelo seu
do que não tem início nem fim. Podemos dizer, então, que o ato e o processo criador
caminham juntos e são um e o mesmo, porém não a mesma coisa. O que há, no
entanto, é um caminho apontado pelo gesto do compositor da obra. Este sim é que
irreparável e irreprodutível.
esperança. Saber como foi para poder saber como será. A nossa expectativa de
Nós achamos que a simples análise não dá conta das escolhas performáticas
obra, intérprete e ouvinte instaura, entre muitos outros fatores que estão sendo
musical – e fenômeno deve ser entendido, aqui, como aquilo que se mostra e se dá
diferentes acenos que uma mesma obra apresenta para o ouvinte. Esse viés
9
No período Barroco as afinações eram feitas um semitom abaixo da afinação de hoje, que tem o lá3
= 440 Hz.
10
Iremos abordar melhor a questão do comparatismo na música quando tratarmos a Seresta nº 5,
Modinha, de Villa-Lobos.
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versões que ainda estão por vir, da mesma obra, no tempo e no espaço.
caso de obras com partitura musical moderna temos, no caso de uma orquestra, a
figura do regente que, a partir de uma mesma partitura, e à luz dos parâmetros já
citados, entre muitos outros, bem como de sua intuição poética no momento da
A obra musical nunca está dada, ou seja, acabada para sempre. Ela sempre
exclusivo da música. Acontece com todas as artes cujo ser originário é o tempo,
Para Rohden, esse dom hermenêutico de “fazer falar de novo o texto” não é
algo dado a priori, mas é sempre uma tarefa, ou seja, ser capaz de compreender. (in
Cada intérprete possui sua visão própria de como a música deverá ser
assim, uma escola de interpretação musical nada mais é que uma vertente
que ainda permeiam toda a nossa cultura musical ocidental, e na chamada música
antiga, esta questão da “escola” se torna mais patente por conta do distanciamento
necessário um recriar, um re-interpretar, que podem se dar tanto por via de uma
O que permite que o executante traga à vigência aquilo que foi decidido
caminhos que conduzem a obra e são, na verdade, a própria obra. Porém tempo e
11
Trataremos do revival da Música Antiga quando abordarmos, no capítulo 3, as cantigas medievais
ibéricas.
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musical. O tempo como o próprio elemento que permite a existência dos sons
musicais por meio da vibração das partículas da matéria, e a memória como tempo
humano, tempo afetivo que traz a possibilidade de realização das coisas. Tempo e
do ser do ente.
obra musical, ao contrário do que se possa supor, não tem um ponto culminante.
teoria musical, mas essa não é a questão principal que aqui se coloca. Do ponto de
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vista poético, o ponto culminante de uma obra simplesmente não existe. O que há é
um círculo hermenêutico, sem começo nem fim no qual a obra se dá sendo pensada,
conhecida em música como interpretação. Em todo esse círculo criativo está sempre
propriamente dita. Por isso, podemos dizer que tanto a interpretação quanto a
a mesma coisa.
questão, no nosso caso, a obra musical. Em suma, do diálogo entre a fala da obra e
a escuta do intérprete.
12
Aqui nos referimos não só ao músico executante, mas ao ouvinte da plateia. Na realização do
processo descrito anteriormente, todos são ouvintes, intérpretes e criadores. Entretanto, não
podemos nos esquecer de que a obra musical tem pai (ou mãe), sempre.
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Interpretar, isto é, criar uma obra, é deixá-la ser e é penetrar no seu mistério.
que, por obra e graça dos deuses, o artista exterioriza algo surgido ex-nihilo. A sua
existência de ser social que se comunica, que apreende e transforma, faz supor que
haja sempre algo que está e não está presente. Essa fenda de presença e ausência
é o que permite à obra acontecer como obra, ou seja, como sentido que opera as
sua fase visível, a obra, surge algo novo e que não estava no mundo, mas que
Sabendo que a tradução pode ser deflagrada pelo espanto inicial que uma
pergunta: o que significa traduzir? Sempre que pensamos na tradução de uma obra
nos remetemos, imediatamente, para o texto literário. Ora, a tradução de uma obra
verdade, quando traduzimos não transcrevemos, mas deixamos que a própria obra
idioma para o outro, e sim na interpretação do aceno que a própria obra enseja. Por
isso, traduzir nada mais é senão a possibilidade de trazer à presença o ser da obra;
Uma mesma obra pode ser traduzida de maneiras distintas. Isso decorre de
olhar peculiar para a obra e é justamente nessa peculiaridade que o operar da obra
O tradutor é aquele que “rouba” aquilo que foi dado pelo espanto da obra e
tradução de uma obra configura sempre o combate entre a obra e o seu apreciador,
já que o exercício de traduzir é sempre uma escuta da fala da obra apesar de que,
mostrou.
obra literária13.
Para Jardim:
Entretanto, para nós, o tradutor, por sua vez, é um intérprete e como tal
descola e desloca a obra do papel para a imaginação do ouvinte que, por sua vez
fará a sua interpretação da obra. Essa interpretação do ouvinte criará, por sua vez,
uma nova obra, fruto da sua experiência poética que é dada pela escuta da fala da
obra. Por isso, o tradutor não transcreve nada e tampouco o intérprete reproduz.
iremos nos debruçar ao longo deste trabalho: a música antiga medieval, em especial
idiomas, a ópera Orfeo, de Monteverdi - uma obra pensada a partir do mito grego,
inglês e o conto “Minha Gente”, de Guimarães Rosa, autor cuja obra já foi vertida
13
A musicalidade de uma obra literária será abordada quando tratarmos do conto Minha Gente, de
Guimarães Rosa.
41
Todos esses textos, com exceção do conto, têm letra e música. Trabalhamos
o tempo todo aqui com a canção ou com árias de ópera, que são, como já dissemos,
de fato, lá está presente a tradução, pois para a nossa própria compreensão da obra
sentido para o cantor e para o ouvinte se houver uma tradução, pelo menos mental,
acontece com a música pura, aquela puramente instrumental, por isso levantamos a
A clareza é fundamental na canção, mas até que ponto é possível ter clareza
qual também muitas vezes é o próprio intérprete, até pela necessidade de, não
tendo o recurso do código escrito da partitura, mostrar para outros cantores como
realizar a obra.
semelhança operacional com a leitura de uma partitura, tem como objetivo a exata
literatura comparada, de uma “mesma obra” traduzida para duas línguas distintas, ou
Este caráter múltiplo do processo tradutório nos remete para uma questão
ainda não devidamente estudada, que é a tradução das poesias utilizadas como
letras de canções. Além da questão da parceria letra e música na canção, que já tem
os seus próprios percalços, calcados nos arranjos entre o texto literário e a melodia,
ao espírito da obra, no caso, uma canção. O consórcio letra/ música irá demandar
um tratamento tanto poético como técnico para se ter, pelo menos, a “ilusão” de
música, bem como pela tradução da poesia de uma canção, o que se espera, de um
modo geral, é que o “novo” texto se ajuste à estrutura fraseológica, melódica e até
14
Dinâmica em música está relacionada com o volume sonoro; é o “aspecto da expressão musical
resultante de variação de intensidade sonora” (SADIE, 1994, p.269); já agógica é o termo utilizado em
um “tipo de acentuação que se baseia antes na duração (um certo repouso sobre a nota a fim de
enfatizá-la) do que na intensidade (Id., Ibid., p.12).
15
Essa questão será desenvolvida quando investigarmos o comparatismo na Seresta nº 5, de Villa-
Lobos.
44
música tanto na canção popular, no lied16, na música sacra, dentre tantas outras
possibilidades musicais.
conformação original da obra e considera aquilo que está ouvindo como uma
sentido o mais próximo possível, similar, entre o texto original e sua tradução. Ao
princípio. O objetivo é dar conta no menor tempo possível da “tarefa” que se impõe,
a saber, verter um texto, falado ou escrito, de um idioma para outro com o máximo
de concisão e objetividade.
16 Termo geralmente usado para a canção de câmara romântica, de Schubert a Wolf e Strauss.
(SADIE, 1994, p.536)
45
aquele que faz a performance da música. Então, para ele, o intérprete é o músico
que “toca” a obra e, evidentemente não pode ser suprimido, pois, como já dissemos,
sonora para ter existência plena. O intérprete faz este papel, o de traduzir – como
desperto. Precisa também, como é óbvio, de ouvintes ou platéia, muito embora esta
seja a humildade. Humildade aqui não deve ser entendida como subserviência, mas
interpretativo.
sintonia com o autor e suas circunstâncias, bem como com seu estilo, história e
dimensão dialogal do tradutor/ intérprete, que não só traduz, mas cria e recria outra
obra.
perfeita, pois os falantes têm sonhos distintos, gerados no seio de seus idiomas
A interpretação musical que seguirá nas páginas deste trabalho não prescinde
de uma metodologia descritiva a respeito das fontes do fazer artístico de cada obra
escolhida. Por isso, o autor deste trabalho considera pertinente realizar, antes de
candentes que permeiam o discurso musical como, por exemplo, as distinções entre
não prescreve jamais e prova disso é que todos os gêneros musicais que aqui serão
música e pela expectativa do ouvinte ou da platéia; a ponte que liga uma dada
Jardim, “é pelas musas e pela arte das musas, portanto, que se constitui a própria
Seresta nº. 5: Modinha, de Villa-Lobos e também uma obra literária, o conto “Minha
e as questões da arte”:
Nenhum modelo, como tal, é destinado à escuta e isso por estarem desde
sua proveniência ideal repletos e super-povoados dos mais diversos
discursos proposicionais. Pois onde se fala demais, pouco espaço sobra
para a escuta essencial. (in CASTRO, 2005, p.74)
49
métodos, que darão conta das interpretações possíveis da obra, nas circunstâncias
O operar da própria obra irá trazer à luz, ou melhor, ao som do mundo, aquilo
Nas obras a seguir iremos nos debruçar sobre estilos, épocas e contextos
é um encontro com um acontecimento não acabado e, ela mesma uma parte desse
em um determinado local e momento, são aquilo que a obra é e também aquilo que
verdade da obra é a sua aletheia, é o que nela se guarda como sagrado e também é
que passa pela percepção, pela compreensão, pelo diálogo, pela interpretação e
Tudo isso é também o seu método e a sua verdade, pois o método se constrói
geral: interpretar, traduzir e iluminar com sons e gestos aquilo que sempre estará
faltando, preenchendo e dando sentido poético ao mundo - a arte, sua physis e sua
poiesis.
desvelamento dos métodos e das interpretações das obras de acordo com suas
século XX, pois esse movimento irá gerar toda uma pesquisa multifacetada e
como ela se deu no passado para resgatá-la no presente. Para Antonio Jardim, “uma
51
para o movimento da história qualquer que ele seja”. (JARDIM, 2005, p. 106)
Segundo Rohden:
impõem pela própria natureza da obra: trata-se da primeira ópera moderna, escrita e
encenada em 1596, pela primeira vez, na Itália. Sua escrita musical é semelhante à
divinos do trágico e do lírico, contados e cantados a fiore di labri, à flor dos lábios,
O texto dos libretti, ou seja, a história que está sendo contada, é o que
com o texto, mas, embora não haja ópera sem música, o que importa realmente no
Orfeo, como já foi dito, é a história que está sendo contada, com intensa
iluminação, vestuário, tudo, sem exceção, está a serviço da história que é contada e
cantada.
Talvez tenha acontecido assim nas performances do teatro grego, nas ágoras
história de Orfeo, e de algumas imbricações do texto com a música; como este não é
performances. O que causou a opção por este viés, o comparatismo, foi um estudo
que realizamos com esta obra musical - originalmente escrita para canto e piano -
coisas que tenham similitude total ou parcial, para criar uma tensão poética ou
mesma, e o que muda é a intenção das intérpretes revelada por suas performances.
Dessa forma, o viés comparatista acabou se impondo como o mais apropriado para
intérprete/ cantor. Cada artista desvela a obra como se sua música fosse, de sua
pensando no intérprete como co-autor da obra, de fato. É muito comum, aliás, muito
sejam dados aos intérpretes, que se tornam “autores”, e os verdadeiros autores, que
pelos vários intérpretes cria “várias obras” a partir da mesma obra, o que nos lembra
o Heráclito de Heidegger, que diz: “Só o diverso pode ser igual” (HEIDEGGER,
2002, p. 262) e que a comparação entre elas se torna necessariamente uma forma
também chamamos de “O riachinho”, como uma licença poética. Nesta obra, plena
interpretação poética de uma obra musical. Não temos, aqui, música, mas, sim,
“desentranhar” a música oculta no conto. Isso constituiu para nós uma abordagem
obra passa, neste caso, pela poesia imaginante que impregna musicalmente toda a
3. A MÚSICA MEDIEVAL
fenômeno recente, que começou de forma mais sistemática no início do século xx. O
música, sicut erat in principio17, pois isso só seria possível como uma utopia, e sim,
passado distante.
cronológico não se aplica às artes e muito menos à música, que é o próprio tempo
geral e óbvia, a música antiga é aquela que não é a de hoje, ou, aprofundando o
conceito numa apropriação poética, toda a música já escrita e ouvida é antiga - pelo
17
Assim como era no princípio: alusão bíblica em tradução livre nossa.
56
Então, como dissemos, toda música é antiga, pois mal acabamos de criá-la
ela já se encontra no passado, mal acabamos de ouvi-la ela já aconteceu e não está
mais aí. Isto é próprio da música e de todas as artes temporais, pois assim é o
próprio tempo e é próprio do tempo. O que torna as obras novas, vivas e vigentes é
O homem busca sempre o novo, uma linguagem que seja sempre inaugural.
envelhece, não tem tempo determinado e está sempre nos remetendo à origem.
Podemos dizer que não existe uma música antiga, mas várias. A musicologia,
ao longo do tempo, foi modificando o espectro temporal que temos deste tipo de
ao período clássico-romântico.
Expressão usada, principalmente a partir dos anos 1960, para designar não
apenas a música de uma época antiga, mas também uma atitude particular
com relação a sua execução. Aplica-se por vezes à música da Idade Média
e do Renascimento (i.e., até 1600), por vezes também à do período barroco
(até 1750), porém, e cada vez mais, até 1800, incluindo assim grande parte
do período clássico. (SADIE, 1994, p. 632)
ou mesmo em períodos, uma vez que o cânone interpretativo não esgota jamais as
57
ambigüidade da arte.
Quando tocamos uma música do século XIV, hoje, ela passa a ser música de
hoje e quanto mais pesquisamos o passado dessa música, seja pela musicologia ou
pela história, mais nova essa música se faz, porque o diálogo com o passado torna
novas não são tão novidades assim, pois não há como rompermos definitivamente
com o que julgamos ser o passado. No caso da música e nem só da música, o que
também são antigas – de cantar, tocar e executar, somos afetados por essa
antigo e esse algo novo é o que busca o revival: tornar novo o que era velho, tornar
atual o que era antigo. O revival torna contemporâneo o que era antigo.
A Música Antiga é uma música que encanta por sua novidade e o novo, para
justamente a sua antiguidade. Não devemos pensar o antigo como uma oposição ao
novo, mas como possibilidade de resgatar sua antiguidade enquanto tal, ou seja, na
58
sua originalidade. Quanto mais pesquisamos “o como” deveria ter sido aquela
Nova porque olhamos essa música com o olhar de hoje. Não podemos
resgatá-la como era na origem, mas podemos trazê-la para hoje buscando manter o
tentativa de resgatar a música originária – que nunca será encontrada tal qual era,
pois não se pode abarcar todo o seu ser, nem na época em que foi concebida e
mais pesquisamos o “como” deveria ter sido aquela música, mais ela se torna nova e
dissemos.
memória, e neste jogo que parece ser dual e dicotômico, mas não é, se dá o
processo de criação musical, sua poiesis. O tempo é seu leito e a memória seu
gozo.
Igreja, encontraram para registrar os sons das suas músicas; no mundo medieval a
transmissão e a fixação das músicas eram feitas principalmente de forma oral, como
esta escrita neumática que é uma espécie de linguagem figurada, feita de pequenas
linhas curvas colocadas sobre o texto e é relativamente limitada, para nós, na sua
possibilidade de decodificação.
Os neumas não são precisos, mas é através deles que re-criamos, con-
Talvez, a música sem partitura seja mais con-criativa que aquela que
apresente um registro escrito. Mas não estamos aqui para trabalhar com valores. O
60
atributo não dá conta da dimensão do fazer música, do ser da música. Por isso, o
como superior. O tempo da música não tem medidas, é acontecimento e como tal,
Como esta música era muitas vezes funcional, como as cantigas de louvor e o
longo das gerações - e, portanto quase dispensava o código escrito; esta escrita
gerava a escolha entre os agudos e graves e a própria duração dos sons era o
transitamos entre o vigor e o rigor, embora não busquemos o rigor, e sim o vigor de
vigor. Não se trata de uma imprecisão no sentido de que tudo é válido, uma vez que
por volta do século XI, com Guido D‟Arezzo, é não somente o registro matemático de
compositor a idealizou, entretanto, não basta apenas dispormos da técnica para “ler”
e executar uma partitura. Podemos executar uma determinada obra de acordo com o
que está previsto na partitura, mas o que irá permitir o descortino da obra é a escuta
Ora, a “imobilização” da partitura no papel não quer dizer que a música esteja
interpretação. Mesmo com seu registro escrito, a partitura musical, uma obra admite
ocidental e, por conseqüência, da própria música ocidental, dita erudita, sem que a
música pudesse ser escrita, sem que houvesse uma notação musical” (JARDIM,
2005, p.214)
musical, pelo menos como a entendemos aqui. Este assunto, por si só, já seria digno
18
Segundo o dicionário Grove, as notes inégales são: “Uma convenção rítmica da música francesa,
principalmente do período barroco, segundo a qual certas divisões do tempo ocorrem em valores
alternadamente longos e breves ainda que sejam escritas de forma igual.” (SADIE, 1994, p.657)
62
desde os aedos gregos, pois, na fase oral da cultura grega “o aedo era o principal e
escuta.
Segundo Harnoncourt:
várias do mundo que tinha constituído o Império Romano; a sua razão de ser é o
culto divino.
e magia nos sons musicais da nossa cultura ocidental, pois a pátina do tempo não
carvalho do tempo, como delegou-lhes novos sabores, quais rebentos novos que em
com a arte e em especial com a música, filha dileta do tempo e das musas, de
Orfeu21.
mortais e divinos, à luz dos sentimentos humanos. É como a distância que vai dos
grande linha de tempo e de canto, um grande legato que une esta música antiga,
os tempos, p.ex., que iremos também focalizar mais adiante neste trabalho e
sondamos as possibilidades infinitas de trazer à luz os entes sem fim desse ser da
nos revela a evolução da escrita com a utilização incipiente da pauta musical - que
pois inscritos no espaço da pauta musical; esta escrita deu mais definição e
musical, palácio ou mosteiro pudessem ser cantadas num outro local ou cidade com
novos neumas tinham nomes curiosos, tais como: punctus, virga, torculus, porrectus,
questão rítmica mais ligada ao sentido fraseológico do texto poético, de acordo com
a tradição.
época, embora, no que diz respeito à dinâmica do fazer musical, a sua poiesis, todas
essas influências passam também a “constituir” a obra, pois a obra de arte está
sempre aberta, num contínuo fluxo dialogal com tudo que há.
européia, bem como num movimento de pesquisa musicológica que remonta ao final
Antiga".
Acreditamos que o que se faz, na verdade, são releituras - cada vez mais
novas – das obras antigas e o que se busca de fato, está perdido para sempre, pois
sensibilidade jamais voltarão a ser como eram nos séculos XV, XVI e XVII, pois até o
Para Jardim:
modernos das notas musicais, tais como as conhecemos hoje e também, pouco a
pouco, os ritmos e as durações musicais tiveram uma notação cada vez mais
precisa e, ao longo dos séculos foi sendo adotada a divisão proporcional das figuras
com a escrita neumática não era possível. Explicando melhor, com essa nova escrita
gótico, no século XIII - período que focalizamos nas cantigas medievais ibéricas -
passa a conviver com a escrita horizontal das diversas polifonias. Como vinha
relação biunívoca entre notas e sons musicais, entre figuras e durações musicais e
escrever uma música "pura", pois só depende das notas musicais (alturas dos sons),
composicional. Porém, tal não se dá, pois o mistério da criação musical sempre irá
obras existirem e, mais que tudo, interagem com o seu criador, o que vem – mais
do ser da obra.
instrumental, tem duas possibilidades de expressão: a que imita os sons das vozes
humanas e a sua representação própria, que não depende mais das limitações dos
sons das vozes, pelo menos em tese. Aqui já nos encontramos no período
denominado Renascimento.
função e por incrível que pareça busca a primazia da palavra, da retórica e da teoria
dos afetos para valorizar o discurso musical e ser por ele valorizada; vai à Grécia
homens em sua plenitude, ri e chora; canta a dor dos amantes, dos abandonados
música, pois volta-se para um passado distante de onde extrai a sua beleza, o seu
sentido e sua razão de ser e neste grande salto vai arrastando e agregando
estéticas, linguagens e sentimentos. Tudo isso culmina com a primeira Ópera digna
mortal, Orfeu canta sua ventura e sua desgraça: amante de Eurídice, perde-a para
uma serpente em um bote mortal; tão grande é sua dor que convence as potestades
infernais a lhe permitir trazê-la do Hades com vida renovada, mas há uma
pelo novo. Muito pelo contrário, entendemos aqui esta descrição de períodos como
Para a obra de arte, o que importa é o que ela instaura de verdade no mundo
e o que ela possibilita de encanto e magia através das leituras de suas obras-primas
69
que o rei Dom Afonso X teve a intenção de preservá-las através de códices, que
Mendes, o códice de Toledo, “projetado para conter cem cantigas e que se acredita
ser esse o projeto inicial do rei” (MENDES, s/d, p. 1), cujo exemplar remanescente é
considerado uma cópia do século XIV, devido ao tipo de escrita musical”, assim
que, de tão antiga, como já dissemos, pode ser considerada uma música nova, e
de Santa Maria” (MENDES, s/d), trazem também músicas, poesias e iluminuras das
cantigas.
caso de Manuel Pedro Ferreira (1991) e Higino Angles (1943), bem como os
1272), que escreveu “De mensurabili musica”, que é, segundo Mendes, no artigo
ritmo modal das músicas escritas após 1250 e antes de 1279, e que deve ser levado
existiu, não existe e jamais existirá. Os códigos de escrita, tanto na música como na
cultura.
poético, isso não é possível nem desejável, pois o fluir da arte no tempo produz
poético da poiesis.
presença o que estava oculto, mas não todo o oculto, pois esse todo jamais se
mostra por inteiro. Percebemos apenas alguns entes que se deixam vislumbrar no
possibilidades do dizer das coisas. O seu desvelar cria mundo e sentido, pois traz à
presença o que não estava dado nem percebido, o lado da sombra das coisas que
Por outro lado, como sabemos, a “imobilização” dos sons e das palavras não
chegada para cristalizarmos o que foi desvelado pelo jogo poético e pelo círculo
do ser das musas, pois os caminhos da arte são os caminhos de Hermes em busca
do invisível e do insondável.
Antiga ou na Música Moderna, por exemplo, são dadas pelo próprio método que a
72
musical e sim de uma música cuja temporalidade é dada pelo instante poético da
sua execução. A música está lá, mas é sempre vigência originária de mundo e
A cada instante a música, independente de ser antiga ou não, está sendo feita
Segundo Sadie:
Porém, para nós, além da execução e recriação, que são questões ligadas ao
revival da Música Antiga, é mister cuidarmos da escuta dialogal entre obra e ouvinte,
existe, perdido e fixado que foi no momento da criação original da obra, mas através
intérprete de hoje.
que é próprio do ser da música e da arte em geral, a saber, sua perene novidade e
capacidade de surpreender.
73
alguns neumas associados ao texto poético que dizem como aquilo deveria soar,
como já comentamos. Por isso, não temos a “precisão” da música medieval. Aliás,
precisão é um termo que não cabe no mundo medieval. Não havia a precisão
matemática moderna nas medidas, mas havia coerência. Essa coerência era dada
É bom lembrar que, até o século XII as notas musicais não tinham nome. A
notação musical semelhante à que temos hoje surgiu com Guido d‟Arezzo no século
o que nos permite recriar esta música. A recriação, ou seja, a interpretação de como
ela poderia ter sido não significa dispor dos mesmos instrumentos utilizados no
período e executá-la “tal qual”, o que seria impossível. O que verificamos é o caráter
tudo isso pode auxiliar na recuperação desta música. Entretanto estas informações
medieval não era preciso, como, aliás, o nosso também não o é. As medidas, os
tempos, as horas, os sons fortes ou fracos, eram percebidos sem a medida dos
medidas com rigor. O que era, entretanto, a precisão? O que era “preciso” no mundo
medieval era a relação do homem com Deus, ou seja, com aquilo que dava sentido.
regras musicais absolutas e canônicas. Ora, se não temos precisão, não temos
22
Cf. Anexos 3, 4 e 5 – Notações musicais diversas referentes às Cantigas de Santa Maria.
75
tempo justo, do racionalismo. Tudo tem que ser igual e reprodutível. Essa idéia de
hoje, o mundo medieval europeu não tinha desenvolvido ainda a tecnologia científica
e não havia a idéia de reprodutibilidade rigorosa como a entendemos hoje, pois não
poético Prova disso é o nosso disco Medievo Nordeste, como veremos mais adiante.
que temos nada mais é do que todo um trabalho de interpretação que precede a
performance. Para cada gênero, temos que seguir um caminho. Essa interpretação
obra.
ponte que estabelece o elo entre o antigo e o novo, o popular e o erudito, o oral e o
A música é esta ponte, ou seja, o caminho que se está sempre a tecer entre o
das questões que estão sendo discutidas neste trabalho, é uma pesquisa do Música
resenha crítica da Profª. Maria do Amparo Tavares Maleval23. Ele mostra a interação
23
Diretora do Núcleo de Estudos Galegos da UFF e do Programa de Estudos Galegos da UERJ.
77
nací”, canção sefaradita espanhola, em dialeto ladino, que têm temáticas idênticas e
Vida e Morte25
24
“A perpetuação de cantares medievais no Brasil”: encarte do disco Medievo-Nordeste: Cantigas e
Romances. Conjunto Música Antiga da UFF, 2004.
25
Cf. Anexo 1 – Partitura de “Vida e Morte”.
78
A la una yo nací26
A la una yo nací
A las dos m’engrandecí
A las três tomi amante
A las cuatro me casí
Alma y vida y coraçón
Dizme nina donde vienes
Que te quero conocer
Y sino tienes amante
Yo te haré defender
Alma y vida y coraçón
Yendome para la guerra
Doz bezos al aire di
El uno es para mi mama
Y el outro para ti
Alma y vida y coraçón
nascimento (à uma hora eu nasci), morte (às oito no meu caixão), finitude e
quatro já me casava).
Dado que tudo isso se passa num Brasil remoto, na versão que aqui se
desenvolveu e se aclimatou, no tempo e no espaço, não havia muita coisa mais para
26
Cf. Anexo 2 – Partitura de “A la uma yo nascí”
79
ser comemorada e, portanto, o ciclo da vida vivida se confunde com o próprio ciclo
vital da existência.
desta cultura arcaica de música melismática, com rítmica muitas vezes frenética e
serestas de antanho e das modinhas, nos faz imaginar um canto suave e suavizado
pelas restrições e imposições morais. O sol, o calor e o mormaço, como poderia ter
dito Gilberto Freire27, somados aos fatores anteriormente citados, nos dá quase a
certeza de podermos pensar uma música para esta letra como andamento lento,
cadenciado e singelo.
Claro que tudo isto soa muito abstrato, mas é dessas abstrações que se extrai
o sentido musical escolhido para a obra, como um realejo que remói o sentido da
existência ao sabor da mão que afaga a sua manivela. Este sentido nos é dado pela
escuta e ausculta profícua, o que enseja um diálogo criativo entre o texto poético e
do que está ali, na obra, e que constitui o seu ser, se dá a revelar e, nesta aletheia
artística, vamos dando forma à obra musical como nos é revelada, e que é apenas
Esta é uma das maneiras que o Música Antiga da UFF utiliza para criar uma
27
Livre suposição nossa, ironizando, talvez, “Casa grande e senzala”.
80
A suposta obra original, se bem que ambas o são, também mostra, em sua
possíveis valores do medievo ibérico, embora com uma pujança mais espanholada e
m’engrandecí, A las três tomi amante, A las cuatro me casí, Alma y vida y coraçón),
nos sugere, para efeito da escolha de uma dinâmica musical apropriada, um ritmo
sequência muito próxima. Assim também se dará com a música interpretada e con-
musicais para uma poesia dada. “Alma y vida y coraçón” é uma expressão poética
diferenças - do tango na Argentina, p.ex., ainda mais para alguém que, “no espaço
para os amores de nosso herói e cavaleiro medieval, cruzado que vai para a terra
avessas, que vai para uma guerra real, as cruzadas, e que deixa suas mulheres
queridas esperando por sua volta, como acontece nas Cantigas de Amigo, também
aqui citadas.
81
também, como veremos mais adiante neste trabalho, no item sobre o Orfeu de
obras. Além do que está narrado nos tratados e mostrado nas iluminuras, é preciso
pensar na possibilidade de recriar estes instrumentos, se isso for possível, ou, dentro
Esta questão é uma das mais candentes na pesquisa da Música Antiga e das
Ideologias e Mentalidades:
de Alcaçuz, de Deífilo Gurgel (1992), de onde saíram algumas músicas deste disco
interpretação poética.
descendência poética.
O antigo se deparando com o novo (neste caso nem tão novo assim) e
fazendo surgir, na verdade, duas obras, a antiga e a mais atual, essa é e sempre
83
desvelar, num jogo poético que constitui a própria hermenêutica da obra de arte.
apresenta. No nosso caso, são as questões de interpretação das obras musicais que
nos interessam, lembrando sempre que, para nós, a interpretação é mais do que a
século XIII e Cantigas de Santa Maria, entre outras. Ao final de sua explanação do
deste cancioneiro:
complexa, pois demanda informações que muitas vezes só subsistem pela tradição
84
continua ativa nos mosteiros e em muitas igrejas católicas pelo mundo afora, os
minuciosas, da música folclórica e “de raiz”, de toda parte do mundo, inclusive das
eras pré-cristãs.
todo esse processo: o sentimento poético do intérprete que, à luz de todo este
luz a sua aletheia, a verdade do seu olhar sobre a obra e revelando ao mundo o seu
músicos e poetas eruditos que se debruçam sobre essa tradição ancestral, são
nossos aedos, nossos poetas maiores, pois mantêm acesa a chama dos saberes
4. A ÓPERA
La musique est pour l’opéra ce que les vers sont pour le drame:une
expression plus noble, um moyen plus fort de présenter les pensées et les
28
émotions (Pierre Augustin Caron de Beaumarchais, 1790)
aspecto musical embora em seus primórdios, como iremos ver, a ênfase era dada à
tradicional era (e ainda é) que os atores “cantavam” a história, mas era um canto
como é o caso de Monteverdi, que iremos examinar a seguir – encontraram para dar
destaque ao texto sem abrir mão da música. Para eles, em especial o grupo da
Camerata Fiorentina, como veremos, o importante na obra era o texto, com a música
28
A música é para a ópera o que os versos são para o drama: uma expressão mais nobre, um meio
mais forte de apresentar os pensamentos e as emoções (tradução livre nossa) (apud COELHO, 2000,
p.9)
29
Id., ibid.
87
“Ária” musical, termo que designa aquilo que vem acompanhado do ar que sai dos
cantores, protagonistas da história, dizem dos seus sentimentos, seus afetos, suas
dores e aflições. Para tanto a linha melódica é muito mais elaborada a fim de
espetáculo da Ópera.
obra, em latim.
isso já pertence à história da ópera propriamente dita, o que não nos interessa aqui.
cultura ocidental a partir dos aedos gregos: os contadores e cantadores das histórias
predominava. Não existia uma escrita grega – como no caso das sagas homéricas -
será contada nesta ópera em uma de suas muitas versões, atualizado desde as
definitivo, como não poderia deixar de ser, pois estamos tratando de obra de arte
30
Segundo o dicionário Grove, “Uma forma de espetáculo dramático-musical executado entre os atos
de peças teatrais no renascimento...Entre os temas incluíam-se cenas pastorais e de caça, a
mitologia clássica e as histórias de amor”. (SADIE, 1994., p.459)
89
Fiorentina e tinha entre seus participantes Vincenzo Galilei, pai do astrônomo Galileu
Galilei.
por um conjunto instrumental ou por um instrumento harmônico. Isto pode soar óbvio
para nós hoje, no século XXI, acostumados à canção popular, que tem a mesma
p.ex. o violão.
Naquela época, por volta de 1600, isto era quase uma absoluta novidade,
Segundo Harnoncourt,
31
Segundo o dicionário Grove, a Camerata é um: “Grupo de nobres e músicos que se reuniam na
casa do conde Giovanni de Bardi, em Florença, c.1573-87, para discutir poesia, música e ciências.
Caccini, Vincenzo Galilei e Piero Strozzi eram alguns deles. Seu desejo de recriar o drama grego
antigo com música levou-o às primeiras experiências em ópera” (SADIE, 1994, p.159)
90
A respeito dessa “grande inovação por volta de 1600”, nos diz Nikolaus
Harnoncourt:
Segundo Harnoncourt:
ópera introduz, na música, o drama e a tragédia com ênfase na palavra que, feita
Essa nova forma de fazer música, além de tornar clara para a platéia a
narrativa, traz, pela primeira vez na história da música ocidental, para o primeiro
plano, a figura do intérprete solista33 e sua performance, que são questões centrais
deste trabalho.
obra cujo título completo, conforme consta no fac-símile de um dos manuscritos com
32
Cf. Anexos 8 e 9 – Frontispício da edição de Orfeo e página da Tocatta da mesma obra.
33
O cantor do papel principal, ou o protagonista da história.
92
Esta forma de preservação oral dos saberes, como é o caso do mito de Orfeu,
nos brinquedos, nos autos, cheganças, reisados, pastoris e mais um número sem
A moderna música brasileira popular e “de raiz” ainda traz a marca desses
tempos originários, que remontam, como já dissemos, às priscas eras helênicas. Ela
Uma das versões do mito conta que Orfeu, ao regressar da expedição dos
Argonautas, casou-se com a ninfa Eurídice, a quem amava profundamente.
Ela, ao fugir da tentativa de violação do apicultor Aristeu, pisa numa
serpente, o que lhe causa a morte. Inconformado com a perda de sua
amada, Orfeu desceu ao Hades para trazê-la de volta. Com sua cítara e voz
divina, vai encantando a todos os seres do mundo inferior. Diante de tal
prova de amor, Plutão e Perséfone concordam em devolver-lhe Eurídice,
contanto que Orfeu não olhasse para trás até sair dos limites do império das
sombras; quase alcançando a luz move-lhe terrível dúvida: e se ela não o
estivesse seguindo, e se os deuses do Hades o tivessem enganado?
Movido pela incerteza, saudade, pela carência e pelo desejo grande da
presença de uma ausência, o cantor olhou para trás transgredindo a ordem
dada. Ao voltar-se, viu Eurídice, que se esvaiu numa sombra, morrendo pela
segunda vez, para sempre. (BRANDÃO, 1989, p. 345)
águas entre o antigo versus moderno, Orfeo é uma obra em que tanto a
legado musical da música medieval européia lançando, nesse sentido, uma nova luz
Brasil.
Esta obra possui como enredo não o relato de uma experiência humana, mas
seguirão a Monteverdi, tendo sua culminância nas óperas de Wagner até aos dias
atuais, gerarão músicas que irão resultar nas operetas, musicais, temas de filmes,
permeiam a poética da obra, bem como a relação entre mortais e divinos. Mas,
profano são sempre vigor de manifestação do sentido poético de ser, Orfeo destaca-
se, dentre as obras musicais que conhecemos, como a que nos proporcionou o
arrepio e o êxtase35.
encantamento da poesia da canção, sem volvermos o olhar para trás. O que Orfeo
35
Conforme depoimento de Piedade de Carvalho, professora da Universidade Federal Fluminense e
orientadora de mestrado do autor deste trabalho.
95
com uma das obras musicais mais significativas, desde os primórdios da ópera. Ela
possui o canto e o encanto dos mitos de Orfeu, Eurídice e Apolo, e é, neste sentido,
uma das histórias mais belas, jamais contadas e cantadas, onde vida, morte, paixão,
questões essenciais.
interpretação poética do texto, ou seja, dar ênfase ao poético, cujo sentido nos é
assim porque a obra nos sugeriu que assim o fosse, quando, a partir do aceno do
morte renascente é deixar-se tocar pela lira de Orfeu e inaugurar um caminho regido
feitos canto e encanto. Orfeu e Hermes, perder e ganhar, têm a mesma origem, pois
ao entrar no Hades, Orfeu tem a sorte de trazer sua amada de volta, mas ao volver
musas nos destinos dos homens. Orfeu encanta os seres infernais para pedir
aos céu olímpico em companhia de seu pai Apolo. E para nós? Cada qual que
espera é o inesperado.
feras e dos rochedos, sua voz é o que configura sentido e toda forma de vida
existente rende-se ao seu canto. Todavia, quem é este que ultrapassa os limites do
Orfeu, um canto de vida e morte no qual o amor resguarda o viço poético do ser.
Música, alegoria que apresenta seus atributos, seu poder, sua função na obra e que
Ela fala de seu poder, que pode consolar os espíritos aflitos e inflamar as mentes
mais gélidas ora com a mais nobre ira, ora com o amor.
LA MUSICA
Io la Musica son, ch’à i dolci accenti
sò far tranquillo ogni turbato core,
et hor di nobil ira, et hor d’amore
posso infiammar le più gelate menti.
[A MÚSICA
Eu sou a Música, que com suaves acentos
Posso acalmar cada coração perturbado,
E, ora com nobre ira, ora com amor
Posso inflamar as mais geladas mentes.]36
encantados da história trágica e salvífica que será contada e cantada, e que irá
Édipo.
dicotômicos.
Este é o poder da Música, aqui revelado por sua própria alegoria. O poder de
sensível, de uma escuta transformadora e uma visão inefável deste seu poder
Tudo feito de forma quase declamatória, com cada palavra sendo escandida
Este poder da música é “quem salva Orfeu nos momentos mais desesperados
37
Nas obras operísticas de Monteverdi, há, muitas vezes, uma interdependência entre a Ária, que é
um solo em que o cantor / intérprete de um personagem importante na trama canta os seus
sentimentos subjetivos, e o Recitativo, que é um anúncio quase falado, feito por um observador que
narra a cena. Aqui a Música é uma alegoria, que fala por si e anuncia também o que está por vir.
38
Quando a cada sílaba do texto cantado corresponde uma nota musical.
39
Suaves acentos (trad. nossa)
40
Na teoria dos afetos, utilizada no período barroco, os sentimentos são expressos pelos modos das
escalas.
99
de sua vida. É a criação artística, em última análise, que o homem tem como forma
alegórica, passemos para o hino de amor que Orfeu canta para sua amada Eurídice,
no 1º ato:
ORFEO
Rosa del ciel vita del mondo
E degna prole di lui che l’universo affrena
Sol ch’el tutto circondi e’l tutto miri
Da gli stellanti giri, dimmi:
Vedesti mai di me più lieto e fortunato amante?41
[ORFEU
Rosa do céu, vida do mundo,
Digna filha daquele que governa todo o universo,
Ó sol que tudo abraça e tudo mira de sua órbita celestial, diga-me
Se já viu um amante mais alegre e afortunado que eu?]
Assim designa Orfeu a Eurídice, como rosa do céu, vida e luz42 do mundo,
quando também pergunta ao sol se existe um amante mais alegre e afortunado que
amor por Eurídice comparando-a à flor, ao céu, à vida e ao mundo. Esta belíssima
obra, que é a do cantor apaixonado que glorifica sua musa inspiradora. Bardo,
41
Extraída da partitura do Orfeo de Monteverdi, libretto de A.Striggio.
42
Em outras versões, Gemma Del mondo: sol do mundo.
100
poeta, aedo. Ela também aí é comparada ao Sol, que tudo vê e tudo abraça.
Este sol, símbolo do deus Apolo, pai de Orfeu, representa também o mundo
gregos é o lugar de onde vem e para onde vai em pensamentos Orfeu. Entre céu e
terra e Hades, giram os afetos de nosso herói, que, como se verá, terá que seguir
este périplo hermenêutico, este caminhar caminhando que o faz pensar, sentir e
viver os sentimentos da paixão, dor e morte que afetam todos os mortais, como
deus com uma mortal e portanto susceptível de sofrer e padecer o pathos humano.
nossa cultura judaico-cristã. Hino de louvor místico, humano e lírico, mito que
mulheres, como vimos nas cantigas medievais, tanto sacras como profanas, e como
moderno.
bebe tanto na cultura medieval européia, num passado mítico cristão e também
olímpico e mediterrâneo, como aponta para o que há de vir e que continua nos
mulher nem sempre inacessível como a Dulcinea do Quixote, mas a mulher nossa
palavra clara e acessível que é o canto da voz que canta com um suporte harmônico
EURIDICE
Io non dirò qual sia
nel tuo gioir, Orfeo, la gioia mia,
che non hò meco il core,
ma teco stassi in compagnia d’Amore.
Chiedilo dunque à lui s’intender brami
quanto lieta gioisca, e quanto t’ami.
[EURÍDICE
Eu não direi o que seja
Ver na tua alegria, Orfeo, o meu regozijo,
Pois meu coração não mais está comigo
Mas sim contigo, em companhia do Amor.
Pergunte-lhe então, se desejar saber
Quão feliz ele está e quanto te ama.]43
Aqui, Amor é também alegoria, Eros e Cupido, como se fosse uma 3ª pessoa a
alegóricos desta ópera, tais como a Música, o Amor e a Esperança estão sempre
no desenrolar da obra. São, de uma certa forma os personagens míticos não divinos
43
Tradução livre nossa do original em italiano.
102
pela união com Orfeu, também carregam acentuações melódicas trágicas, como
quando ela canta no 4º verso: “Mas sim contigo, em companhia do Amor”. A música
Então, Eurídice canta seu canto amoroso que, no entanto, traz no seu bojo
melódico, por uma ironia do destino, a sua sina e seu terrível desfecho. É aí que a
música mostra também o seu poder de conhecer o que era, o que é e o que será.
Amor e Morte, Divino e Humano, Terra e Céu, Luz e Trevas, Olimpo e Hades.
esta história de amor e de tragédia, e que termina com um gran finale, como
apoiando sua partner num jogo de arsis e tesis44, alçando e apoiando, aproximando
O 2º ato abre com o canto de Orfeu, que canta o júbilo de estar presente no
ORFEO
Ecco pur ch’à voi ritorno
care selve e piagge amate,
da quel sol fatte beate
44
Arsis e Tesis: elevação e repouso, o ato de levantar o pé e pousá-lo no chão, na Grécia antiga.
103
ORFEU
[Eis que estou convosco novamente
Florestas e mares queridos,
Abençoados por tal sol
Que fez das minhas noites, meus dias].
comparada ao sol de Orfeu, que transforma o escuro em claro, claridade que ilumina
água, terra, sol, calor. Sol que parte de seu pai Apolo, deus do sol e volta-lhe, de
Entre festejos e cantos de Orfeu, das ninfas e pastores, segue Orfeu louvando
de solidão, enfim:
ORFEO
Vi ricorda ò boschi ombrosi,
de’ miei lunghi aspri tormenti,
quando i sassi ai miei lamenti
rispondean fatti pietosi?
[ORFEU
Vos lembrais, bosques sombreados
Dos meus longos e amargos tormentos
Quando as rochas aos meus lamentos
Respondiam piedosas?]
MESSAGGIERA
Ahi, caso acerbo! Ahi, fat’empio e crudele!
Ahi, stelle ingiuriose! Ahi, ciel avaro!
[MENSAGEIRA
Ah, amarga sorte! Ah, fardo ímpio e cruel!
Ah, estrelas injuriosas! Ah, céu avaro!]
A te ne vengo Orfeo
messagiera infelice
di caso più infelice e più funesto.
La tua bella Euridice...
………….
La tua diletta sposa è morta.
[A ti venho, Orfeo
Mensageira infeliz
De notícia a mais infeliz e funesta.
A tua bela Eurídice...
.................
A tua dileta esposa é morta.]
Eurídice, que foi picada por uma serpente quando, num prado florido, colhia flores
105
com suas companheiras para fazer uma guirlanda para a cabeça. Aí acontece a
hiato acontece o vazio pleno, que plenifica o sentido da história. O momento do não
Porém, é este momento final, desta notícia, que torna digna e significativa
acontecendo e o que está por vir. Dignidade que vem da percepção do tênue liame
tristeza do luto fazem Orfeu esquecer sua condição divina e beber do amargo cálice
Após esta funesta notícia, que é seguida por longo canto de Silvia explicando
ORFEO
Tu se’ morta, se’ morta , mia vita,
ed io respiro? tu se’ da me partita
per mai più non tornare, ed io rimango?
Nò, che se i versi alcuna cosa ponno,
n’andrò sicuro a più profondi abissi
e intenerito il cor del Rè de l’Ombre,
meco trarròtti a riveder le stelle.
O se ciò negheràmmi empio destino,
rimarrò teco in compagnia di morte,
A dio terra, à dio cielo, e sole, à dio.
[ORFEU
Tu estás morta, estás morta, minha vida,
E eu ainda respiro? Tu partiste, de mim
106
amor trágico, que culmina com a morte de Eurídice, picada por uma cobra. A
ironia da dor de quem toca a morte com o bafejo da vida, a ironia que nega a vida e
traz a morte.
de volta à vida desde que não volte os olhos para trás. Mas o desejo de ver, a ânsia
de saber-se atendido faz com que ele volte os olhos. No que volve os olhos, Orfeu
faz com que Eurídice morra pela segunda vez. Essa segunda morte não apresenta
poderia ser olhada, por imperativo de Plutão, senhor do Hades, o faz perdê-la para
com que Orfeu retorne para o Olimpo sob os cuidados e a bênção de seu pai Apolo,
dimensão hermenêutica da obra nos permite ultrapassar o par sujeito/ objeto e nos
apropriado para uma ária - conforme os ideais da Camerata Fiorentina, no que diz
polifônica.
As palavras morte, adeus e abismo são cantadas em notas graves e sol, céu
dos mortos, em busca de Eurídice, com quem deseja estar, e suas barganhas
astutas com as potestades ou espíritos infernais, com Caronte, o barqueiro que leva
a alma dos mortos para o Hades, através do rio Estige escoltado por Esperança que
ORFEO
Scorto da te mio Nume
Speranza, unico bene
de gl’afflitti mortali, omai son giunto
109
[ORFEU
Escoltado por ti, minha deusa
Esperança, único consolo
Dos mortais aflitos, enfim cheguei
Neste triste e tenebroso reino
Onde raio de sol jamais entrou.
Tu, minha companheira e guia
Em tão estranha e desconhecida via
Regeste meus passos débeis e trementes
Onde hoje ainda espero
Rever a beata luz daqueles olhos
Que, somente eles, aos meus olhos trazem o dia.]
SPERANZA
Ecco l’atra palude, ecco il nocchiero
che trahe l’ignudi spirti a l’altra riva
dove hà Pluton de l’ombre il vasto impero.
...................................................
Io fin qui t’hò condotto, hor più non lice
teco venir, ch’amara legge il vieta.
Legge scritta co’l ferro in duro sasso
de l’ima reggia in sù l’orribil soglia
ch’in queste note il fiero senso esprime,
Lasciate ogni speranza ò voi ch’entrate.
110
[ESPERANÇA
Eis o pântano sombrio, eis o timoneiro
Que leva os espíritos desencarnados à outra margem
Onde Plutão reina da sombra o vasto império.
.........................................................................
Até aqui te trouxe, mais longe não posso ir
Pois dura lei o proíbe.
Lei escrita com ferro na dura pedra
Sobre o terrível umbral do reino das profundezas,
Que com estas palavras o altivo senso exprime:
ABANDONEIS TODA ESPERANÇA, VÓS QUE ENTRAIS!]
Esperança fala-lhe do que ele irá encontrar “onde Plutão reina sobre seu
vasto império de sombras”45 e lhe diz que daí em diante não poderá estar mais com
Comédia”.
Ali, nem a Esperança poderia ajudá-lo, por se tratar do lugar onde não mais
se espera, por se tratar do Reino dos Mortos, o fim da memória, o final dos tempos,
sem nem mesmo a parousía, volta gloriosa do deus ressurrecto, como na mitologia
judaico-cristã.
“Onde estás indo, único doce conforto do meu coração?”, e depois, “Qual bem me
vai, / unico del mio cor dolce conforto? /Poi che non lunge homai)
Este Ato representa o caminhar de Orfeu pelo reino dos mortos em busca da
45
Tradução literal do texto italiano (libretto).
46
Tradução livre do libretto
111
após um conluio entre divino e mortal, Olimpo e Hades, consegue Orfeu um acordo
com Plutão e Prosérpina48, senhores do mundo das trevas: ele poderá trazer
Eurídice do mundo dos mortos para a vida, porém, com uma condição: não olhar
feminino em Prosérpina, que convence Plutão a dar uma outra oportunidade para o
47
Alusão bíblica (Salmo 23).
48
Perséfone, para os gregos.
112
PROSERPINA
[PROSÉRPINA
desposá-lo, segundo a lenda -, relembra a seu Senhor, que ele poderia talvez,
raptada para o mundo dos mortos. A entrega de seu desejo de vida plena é
do rei dos mortos ansiar pela volta à vida plena daquela que desposou o filho do rei
dos vivos: Phoebus/ Apolo, deus do sol e da vida, que ofereceu sua lira e o dom das
113
inebriada pelo canto musal da lira de Orfeu? Mover, piedade, coração: palavras do
feminino e do ritmo, liras que deliram pelo canto amoroso de Orfeu, movimento de
do amor... Virtudes tão femininas em Obra tão masculina; obra que celebra a vida,
O que ganha Orfeu, afinal, como se verá mais adiante, é a subida para o
da prédica de seu pai Apolo, é o que ganha Orfeu, afinal. E que ganho é esse,
apolíneo? São questões para se pensar e que estarão sinalizadas em imagens mais
PROSERPINA
49
A mulher é volúvel qual pluma ao vento (tradução livre nossa) – da Ópera Rigoletto, de Giuseppe
Verdi. O excerto talvez auxilie na compreensão dos lamentos aqui referidos, de Orfeo e de
Prosérpina.
114
[PROSÉRPINA
Ó, se desses olhos
Com amorosa doçura me atraístes
Se te acalma a suavidade desta fronte
Que tu chamas de teu céu, pela qual me jurastes,
Não invejar sua sorte a Júpiter,
Imploro-te, por aquele fogo,
Com que a grande alma o Amor te acende.
Faz com que Eurídice retorne ao gozo daqueles dias
Que ela dispendia entre festas e cantos
E, do mísero Orfeu, consola o pranto]
Plutão a ouvir o lamento de Orfeu e a dar uma nova oportunidade para que Eurídice
Porém, isso exige um trato, um compromisso de Orfeu com Plutão, que faz a
PLUTONE
[PLUTÃO
Ainda que severo e imutável destino
Contrariem, amada esposa, os teus desejos,
Nada se negue
A tal beleza conjugada a tantas preces.
A sua cara Eurídice
Contra a ordem do destino a Orfeu retorne
Mas, enquanto ele mantiver os pés nestes abismos
Não voltará para ela seus ávidos olhos,
Pois perdição eterna
Lhe seja certa, por um simples olhar causada,
Assim eu ordeno. No meu Reino,
Tornais público, Ministros, o meu desejo
Que o entenda Orfeo
Que o entenda Eurídice
E que ninguém o ouse mudar.]
é o sol e também os olhos. Sol de Apolo que traz vida e livra da morte. Isso, Plutão
não iria permitir, pois é preciso que haja sombra para haver a claridade e haja morte
para existir a vida. Sol, luz, Apolo, pai de Orfeu. Plutão, Perséfone ou Prosérpina,
A Lei do Pai, Plutão, é profanada e daí virá a interdição que opõe à vida, a
morte. Porém Orfeu, em sua forma humanizada, não está regido pela Lei, mas pelo
desejo, que, em essência, desconhece a Lei e se rege por seus próprios impulsos:
Eros e Tanatos.
Orfeu canta “Qual onor di te sia degno”, em louvor de sua lira, já no 4º ato, após os
CORO DI SPIRITI
Pietade oggi et Amore
Trionfan ne l’inferno.
ORFEO
Qual honor di te sia degno,
mia cetra onnipotente,
s’hai nel Tartareo regno
piegar potuto ogni indurata mente?
imagini celesti
ond’al tuo suon le stelle
danzeranno co’gir’hor tard’hor presti.
Io per te felice à pieno
vedrò l’amato volto,
e nel candido seno
de la mia donn’oggi sarò raccolto.
[ORFEU
Que honra de ti será digna
Minha lira onipotente,
Se, no tartáreo reino
Pudeste dobrar toda enrijecida mente.
encanto e magia da arte que, como diz o poeta: “ao teu som, as estrelas dançarão
em giros, ora lentos, ora rápidos” e é comparada às “mais belas imagens celestes”.
ORFEO
Ma che odo, ohimè lasso?
S’arman forse à miei danni
Com tal furor le Furie innamorate
118
[ORFEU
Mas que ouço, ai de mim lasso?
Se armam talvez para meu dano
Com tal furor as Fúrias encantadas
Para raptar o meu bem, e eu o consinto?]
ORFEO
O dolcissimi lumi, io pur vi veggio,
Io pur... ma qual eclissi ohimé v’oscura?
[ORFEU
Ó dulcíssimos olhos, eu pois vos vejo,
Eu pois... mas qual eclipse, ai de mim, te escurece?]
UNO ESPIRITO
Rott’hai la legge, e se’ di grazia indegno.
[UM ESPÍRITO
Quebrastes a lei e de misericórdia sois indigno.]
caminham entre o claro e o escuro, pois esta é a sua condição: superar a dor e a
Dito isto, nada mais há a considerar até o final deste 4º ato. A beleza e a
119
profundidade dos cantos que seguem com Eurídice, Orfeu e os Espíritos infernais
obra fala por si, solitária e soberana. Cabe-nos apenas escutar embevecidos o
EURIDICE
Ahi, vista troppo dolce e troppo amara;
Cosi per troppo amor dunque mi perdi?
Et io misera perdo
Il poder più godere
E di luce e di vista, e perdo insieme
Te d’ogni bem più caro, mio consorte.
[EURÍDICE
Ai, visão tão doce e tão amarga;
Assim por tanto amor me perdes?
E eu, miserável, perco
O poder de mais gozar
Da luz e da visão, e perco também
A ti, de todo o bem o mais caro, meu esposo.]
ORFEO
Dove te’n vai, mia vita: Ecco io ti seguo.
Ma chi me’l nieg’, ohimè:
Sogn’, o vaneggio?
Qual occulto poter, di questi orrori,
Da questi amati orrori
Mal mio grado mi tragge, e mi conduce
A l’odiosa luce?
[ORFEU
Para onde vais, minha vida: Eis que eu te sigo.
Mas quem mo impede, ai de mim:
Sonho, ou deliro?
Qual oculto poder, dentre esses horrores,
Destes amados horrores
Que mal grado me arrastam, e me conduzem
Para a odiosa luz?]
É la virtute um raggio
Di celeste bellezza,
Preggio de l’alma ond’ella sol s’apprezza:
Questa di temp’oltraggio
Non tem’, anzi maggiore
Nell’huom rendono gl’anni Il suo splendore.
Orfeo vinse l’inferno e vinto poi
Fù da gl’affetti suoi.
Deno d’eterna gloria
Fia sol colui c’havrà di se vittoria.
50
Na edição que usamos, de Malipiero, a palavra italiana Coro, por vezes, é grafada como Choro.
121
CORO DE ESPÍRITOS
[É a virtude um raio
De celeste beleza
Prêmio da alma onde somente ela se aprecia:
Esta que dos tempos do ultraje
Não teme, ainda que maiores
No homem rendem os anos o seu esplendor
Orfeu venceu o inferno e vencido pois
Foi por seus afetos.
Digno de eterna glória
Aquele que, por si, conquista a vitória.]
poética.
que tudo acontece num stretto51 alucinante e onde também são desvendados todos
alegórica, assim se apresenta: [“Eu sou a Música, que com suaves acentos / Posso
acalmar cada coração perturbado, / E, ora com nobre ira, ora com amor / Posso
A seguir, a paixão de um semideus por uma mortal [“Rosa do céu, vida e luz
do mundo, / Digna filha daquele que governa todo o universo, / Ó sol, que tudo
51
Seção conclusiva do gênero musical denominado “fuga”, em que todos os temas constitutivos da
obra são reapresentados em rápida sucessão, acelerando o seu final.
122
abraça e tudo mira de sua órbita celestial, / Diga-me se já viu um amante mais
O amor dos heróis e sua união, em especial o canto amoroso de Eurídice [“Eu
não direi o que seja / Ver na tua alegria, Orfeo, o meu regozijo, / Pois meu coração
sorte! Ai, fardo ímpio e cruel! / Ai, estrelas injuriosas! / Ai, céu avaro!... A ti venho,
Orfeo / Mensageira infeliz / De notícia a mais infeliz e funesta. / A tua bela Eurídice...
canta a ária mais importante e central da obra em que vida e morte, finitude e
[Tu estás morta, estás morta, minha vida, / E eu ainda respiro? Tu partiste,
de mim / Para nunca mais retornar, e eu permaneço? / Não, pois que se
meus versos alguma coisa podem, / Andarei seguro pelos mais profundos
abismos / E enternecerei o coração do Rei das Sombras, / E te trarei comigo
para rever as estrelas / Ou se isto me negar o cruel destino,/ Ficarei contigo
na companhia dos mortos: Adeus Terra, adeus Céu, adeus Sol, adeus...];
encontro no Hades, escoltado pela Esperança, no reino dos mortos, assim cantada
[“Escoltado por ti, minha deusa / Esperança, único consolo / Dos mortais
aflitos, enfim cheguei / Neste triste e tenebroso reino / Onde raio de sol
jamais entrou...] e Esperança lhe responde: [Eis o pântano sombrio, eis o
timoneiro52 / Que leva os espíritos desencarnados à outra margem / Onde
Plutão reina da sombra o vasto império.../ Até aqui te trouxe, mais longe não
posso ir / Pois dura lei o proíbe. / Lei escrita com ferro na dura pedra...];
52
Caronte, o barqueiro que faz a travessia das almas para o Hades. Cf autor.
123
da música [Que honra de ti será digna / Minha lira onipotente, / Se, no tartáreo reino
[Senhor, aquele infeliz / Que vaga pelos amplos domínios dos mortos /
Clamando por Eurídice, / E de quem vós ouvistes tão suaves lamentos, /
Moveram tanta piedade no meu coração / Que, mais uma vez, eu venho vos
implorar / Para que ouçais seus lamentos, meu Senhor.];
O acordo perverso do nosso herói Orfeu, imposto por Plutão, o rei do Hades:
que, vislumbrando a luz que emana de Orfeu, fenece para sempre nas trevas (“Ai,
visão tão doce e tão amarga; /Assim por tanto amor me perdes? / E eu, miserável,
perco / O poder de mais gozar / Da luz e da visão, e perco também / A ti, de todo o
bem o mais caro, meu esposo”) e o desencanto e infinita tristeza de nosso herói por
ter que abandonar sua querida para sempre (“Para onde vais, minha vida: / Eis que
Voltando então para o 5º ato, vejamos como termina esta história que, mais
preconizada por um dos seus maiores precursores: Claudio Monteverdi, nos moldes
sinergia entre o canto e o conto; a palavra inteligível que canta os cantos, os contos
Neste último ato, temos um cenário que é o mesmo do início, qual um círculo
Trácia, Ásia menor ao tempo dos gregos antigos ou nos Illo Tempore, os tempos de
Eurídice.
ORFEO
Questi i campi di Tracia, e quest’é Il loco
Dove passomm’il core
Per l’amara novella Il mio dolore.
Poice non hò più speme
Di ricovrar pregando
Piangendo e sospirando
Il perduto mio bene,
Che poss’io piú?
ORFEU
Estes são os campos da Trácia, e este é o lugar
Onde consumiu-se-me o coração
Pela amarga história de minha dor.
Pois já não tenho nenhuma esperança
De recobrar rezando,
125
Chorando e suspirando,
O perdido meu bem,
Que posso eu mais? ]
Nos campos da Trácia começou a nossa história em que Orfeu vem viver a
vida dos homens e rememorar suas origens de filho de Apolo e de uma ninfa; nesta
natureza arcaica que infunde poder aos deuses helênicos é que Orfeu vai buscar
deuses gregos, segundo Otto em “Os deuses da Grécia”, “Tal como sua essência,
seu poder não se funda em força mágica, mas no ser da natureza”. (OTTO, 2005,
contracapa)
Talvez sonhe Orfeu com o Olimpo, onde está seu pai Apolo que, como já
sabemos, virá resgatá-lo das vicissitudes terrenas. Talvez pense Orfeu nas
impossibilidades que os deuses também têm, como a de dar vida a quem já morreu.
Otto nos mostra que “Deus algum pode devolver a vida a quem já morreu” (OTTO,
2005, p. 238). A morte é o limite do que não pode ser ultrapassado, um non plus
ultra.
vazio e do nada, chega o momento em que ela o deixa à própria sorte em seu
não se trata só de que a divindade não tem poder sobre os mortos: ela
tampouco pode livrar da morte os vivos que lhe estão destinados... A própria
Atena diz, na Odisséia (3,236): “A divindade não pode apartar a morte dos
homens que ela ama, quando a funesta Moira (= “Destino”) da morte o
alcança” (OTTO, 2005, p.328).
Aqui se revela também o ardil de Plutão que, para agradar sua amada esposa
126
coexistência simultânea de luz e treva. Não pode haver luz na treva; o amor, nem
E assim, fica o nosso herói a meditar nos campos da Trácia sobre seu destino
e de recobrar o seu perdido bem, Eurídice, a impotência que até os deuses têm de
Então, surge Apolo, que desce numa nuvem cantando em tom amoroso e
paternal:
APOLLO
Perch’a lo sdegno et al dolor in preda
Cosi ti doni, ò figlio?
Non è, non è consiglio
Di generoso petto
Servir al próprio affetto.
Quinci biasmo e periglio
Già sovrastar ti veggio
Onde movo dal ciel per darti aita:
Hor tu m’ascolta e n’havrai lode e vita.
[APOLO
Por que ao desdém e à dor que te aprisionam
127
ORFEO
Padre cortese,
Al maggior uopo arrivi,
Ch’a disperato fine
Con estremo dolore
M’havean condotto già sdegn’e amore..
Eccomi dunque attentto a tue ragioni,
Celeste padre; hor cio che vuoi m’imponi.
[ORFEU
Pai amoroso,
Na minha maior necessidade chegastes,
Pois a desesperado fim
Com extrema dor
Me conduziram o desdém e o amor
Eis-me aqui atento à tua razão.
Celeste pai; ao vosso desejo me submeteis.]
.................................
Em última tentativa aflita, Orfeu pergunta ao pai:
ORFEO
Si non vedrò più mais
De l’amata Eurídice i dolci rai?
[ORFEU
Não verei jamais
128
APOLLO
Nel sole e nelle stelle
Vagheggerai le sue sembianze belle.
APOLO
[No sol e nas estrelas
Admirarás o seu semblante belo.]
APOLLO E ORFEO
Saliam cantand’al cielo,
Dove há virtù verace
Degno premio di sè, diletto e pace.
Degno premio di sè, diletto e pace.
[ORFEU E APOLO
Subamos cantando ao céu,
Onde há virtude veraz
Digno prêmio a si, deleite e paz
Digno prêmio a si, deleite e paz.]
53
Não há indicação na partitura de que se trate de um coro de espíritos, apenas supomos pelo
contexto.
54
Conforme a revisão que usamos neste trabalho, atribuída a Gian Francesco Malipiero.
129
Saudade do tempo,
Do tempo passado,
O tempo feliz
Que não volta mais.
E quando eu morrer,
Então, outra vez,
Pode ser que eu seja
Feliz sem saber.
55
Ah!
(Dante Milano)
55
Poesia de Dante Milano da Seresta nº 4 – Saudades de minha vida, de Villa-Lobos, 1926.
56
Seresta e serenata são expressões genéricas e provêm do latim nocturnus e significa o que se faz
durante a noite, que age nas trevas noturna. O termo diz ainda daquilo que é próprio do cair do dia, a
hora vespertina e a noite. A seresta é, tradicionalmente, associada ao cortejo da mulher amada e
evoca o céu, as estrelas, a lua, o violão e o cantador seresteiro.
57
Texto apresentado em forma de folheto de divulgação; sem referência bibliográfica; s/d.
131
[...]A serenata já aparece descrita por Gil Vicente na farsa Quem tem
farelos? em Portugal, 1505 (...) temos o relato do viajante francês Barbinais,
em Salvador, 1717: „...à noite só se ouviam os tristes acordes das violas,
tocadas por portugueses (espadas escondidas sob os camisolões) a
passear debaixo dos balcões de suas amadas, cantando, de instrumento
em punho, com voz ridiculamente terna...‟; segue o depoimento de
Ferdinand Denis em 1826...‟gente simples, trabalhadores, percorrem as
ruas à noite repetindo modinhas comoventes, que não se consegue ouvir
sem emoção‟.
[...] no séc. XIX parte essencial da produção poética destinava-se às
serenatas. Obrigatoriamente o único instrumento de sopro nas serenatas é
a flauta. Os demais, de cordas, o indispensável violão, os cavaquinhoas, às
vezes o violino e depois o bandolim, solista, nos intervalos melocomentando
a modinha etc. (CASCUDO, 1989, p. 707).
5. 1 A CANÇÃO SERESTEIRA
que:
[...] nos sistemas políticos em que se viveu até meados do séc. XIX, no
Brasil e na Europa, as férreas restrições sociais e religiosas eram,
provavelmente, sublimadas e deslocadas, entre outras coisas, para o
espaço ameno, inocente e puro das canções sentimentais feitas em louvor
da mulher. Esta mulher, supostamente, é amada, desejada e adornada com
os atributos da mãe, da mulher e da Virgem Maria (SANTORO, 2003, p.20).
[...] uma Seresta é a prefiguração da paixão masculina que toma corpo nos
autos de um pentagrama. Todo seresteiro traz dentro de si a sua paisagem
interna, psíquica: uma rua, cheia de casas e janelas e, por meio do toque
mágico de seu próprio olhar, essa janela se abre e surge, de dentro da
casa, a própria anima do homem – a mulher. Sendo assim, a Seresta, em si,
é uma varinha de condão: aquilo que desperta a bem-amada para o prazer;
aquilo que toca o coração e refaz a vida. Portanto, todo seresteiro é um
mago e a paisagem seresteira exige sempre a presença da lua – traço
inequívoco de uma cenografia. (CARVALHO e SANTORO, 2001, p. 181)
133
e amada e quanto mais distante mais forte e pulsante é este amor, sublime e
sublimado. Por isso, na canção seresteira o amor pleno não é fato consumado
134
apenas no encontro dos amantes, mas é na ausência da presença dos amantes que
serestas, o aspecto poético, visto que o discurso amoroso se mostra de forma mais
iremos desenvolver, terá que buscar outros caminhos para a sua realização, que não
a análise musical, pois não se trata de decodificar uma música pura, sem
televisão, passa pela sátira política, pela crônica de costumes, pela crônica policial e
sobretudo, pelo Carnaval carioca dos entrudos, dos cordões até chegar aos grandes
carioca.
tais como Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Anacleto de Medeiros, até chegar
aos músicos atuais como Chico, Caetano e tantos outros. Falam sobre o advento da
introduções das outras partes da obra os autores falam sobre o advento do samba e
compositora popular que o Brasil produziu” (MARIZ, 1977, p.193) e cita os velhos
seresteiros como Xisto Bahia, Antônio Calado e Cândido das Neves, entre outros
(MARIZ, 1977, p.176). Todos eles foram músicos populares e seresteiros pela
suas obras executadas nos salões, nas ruas, em cordões carnavalescos e também
nas serestas propriamente ditas, conduzidas em serenata pelas ruas, à luz da lua e
das estrelas.
Procuramos dar estas informações sobre a MPB no século XX, embora não
nosso estudo.
nossa prática musical ao longo de nossa carreira, o que não contempla a questão da
Música Popular Brasileira, strictu sensu, pois não militamos nessa área.
a suas interações com os outros projetos desenvolvidos neste trabalho, tais como as
Lobos e o conto “Minha” gente, de Guimarães Rosa, pois todos têm em comum, não
permeiam este trabalho sobre arte, como a oralidade, o culto à mulher , o lirismo, o
A seresta, como canção que é, calcada na música popular, tem o seu modo
como fato marcante, mais ainda do que na chamada música erudita, a qual, embora
Talvez uma das premissas deste trabalho que não tenha ficado clara é que há
erudita e da música seresteira, estudada aqui, bem como a música popular cantada:
a canção popular brasileira, por nós aqui entendida como uma continuação
Brasil.
burgueses, tendo como ícone o Conservatório de Paris no século XIX, até hoje
atrás, como, por exemplo, dos pianistas Rubinstein, Wanda Landovska, Guiomar
outros.
dizem mais do estilo interpretativo do executante – o que não é pouca coisa, pois é
isto que revela sua visão musical e de mundo, sua poiesis, enfim, o que torna cada
pertencem, que seriam talvez três ou quatro: francesa, italiana, russa e alemã.
Cada uma delas privilegia, em linhas gerais, alguns quesitos musicais como
da música alemã.
processo é bem distinto do que acontece com a música clássica, no que diz respeito
seresteiros e cantores populares, ou seja, dos agentes musicais que divulgam o que
ópera, a questão da palavra faz toda a diferença. A tradição dos conservatórios não
caso, cantam em português com nítidos sotaques italianos ou franceses -países que
chamada música erudita, mesmo que seja uma simples modinha brasileira ou
cantiga seresteira.
tendem a cantar do jeito que se fala no seu meio e no seu povo. As expressões, o
gestual, a indumentária e toda sua entourage cênica são aquilo que seu povo e seu
tempo são, vivem, desejam e praticam. Mais do que isso, a sua cultura e visão de
como aquele que repassa, pela execução, a criação de outrem, mas, sobretudo
como alguém que “faz” música. Ele “produz” e reinventa a obra musical como se sua
em especial, embora isto valha para qualquer tipo de interpretação; este “jogar-se no
poética.
No mundo da música popular não há “uma” obra interpretada por muitos. Há,
141
sim, a relação biunívoca, dialogal, entre a canção e o seu intérprete. Cada intérprete
fará de uma mesma e determinada canção a “sua obra”, e a relação com a língua
canção popular.
Então cada versão de uma mesma canção, com uma mesma letra, se torna
praticamente uma obra nova, pois carrega a pureza “originária” do intérprete, quando
Por esta razão decidimos dar um caráter comparativo – o que para nós
nosso.
comparatismo, fazer uma reflexão que nos ajude a pensar e entender melhor a
serestas de Villa-Lobos.
142
músicos de sua época, mas apenas Villa-Lobos participou como compositor. O que
A partir deste novo apelo poético, que enquanto tal é, além de inovador,
58
Cf. Anexo 6 – Capa do álbum das Serestas de Villa-Lobos.
59
Já examinada no Orfeo de Monteverdi, neste trabalho.
60
No período conhecido por Semana de 22, Villa-Lobos já dominava seu métier de compositor e era,
além de bastante conhecido no meio musical, ferozmente atacado por muitos, dentre eles, o crítico
Oscar Guanabarino. Villa-Lobos possuía uma obra musical alentada que incluía sonatas, óperas
como "A Prole do Bebê nº 1", "Choro nº 1", entre tantas outras.
143
que é seu caráter universal, mantendo assim o rigor acadêmico, tanto do ponto de
vista musical quanto poético. Isto decorre de que as serestas são canções e, como
folclóricos.
afirma:
Deste modo, pode-se dizer que o folclore brasileiro, assim como a música
popular urbana, está sempre presente na obra de Villa-Lobos, que usa este
material como um verdadeiro criador, e não como um folclorista. A respeito
das influências do folclore brasileiro sobre a sua música, VL disse: 'Não as
nego nem nunca as neguei. Mas rejeito que me queiram catalogar como
folclorista, hábil na estilização da música nativa brasileira. Muitas de minhas
obras transformam em música culta o espírito do meu povo e a alma da
minha raça. Plasmam a sensação de suas danças e de suas canções, de
seus mitos e lendas (NEVES, 1981, p. 27).
único músico carioca ou mesmo brasileiro, como já dissemos, e ainda sem a fama
de que viria desfrutar pouco depois. É possível que Villa as tenha composto
evento, posto que todas versam sobre temas populares brasileiros apesar de
erudito ao popular e o universal, visto que são canções e como tais são feitas de
letra, música e paixão, sem deixar de apresentar o rigor acadêmico tanto no que se
que encanta e promove todo ser humano, como faz a música das grandes obras.
dos catálogos de suas obras (HORTA, 1987), já apresentando desde então e até
seu tempo e prenunciador do futuro – antena da raça, como diria Ezra Pound em “O
musical deverá fazê-las caminhar juntas, num significado novo que dê conta desta
comparativa, que não se trata apenas de uma simples análise formal, técnica, mas
obras, vai lhes agregar sentido e mostrar o seu potencial poético e possibilitar
soma de personagens que perfazem a obra – e não apenas a partitura – irá, a cada
146
próprio do ser da obra, uma vez que é parte de sua própria natureza musical, ou
poesia com cantores distintos, esta poesia se torna distinta - embora esta seja uma
fazer que produza o encanto de transformar algo que não é no que este algo virá a
sua vez, se dá num universo comparativo, o que é uma questão muito especial
pelo que ele representa de eclosão das várias obras da obra, sua aletheia.
tempo todo estejamos lidando com a mesma “obra”, baseada na mesma partitura e
poesias, mas tem também aquilo que "move" a obra rumo ao infinito e ao
desconhecido: a paixão.
pode ter. Diante das várias performances, dos distintos modos de execução de uma
perceber que uma mesma obra enunciada por diferentes executantes pode
diversos.
semânticas fazendo com que uma mesma obra possa acontecer de várias maneiras,
permitindo, assim, escutas diferenciadas pelo diálogo interpretativo entre seu ouvinte
e seu executante.
mesmo, muitas vezes, a se alterar o sentido da letra com variâncias no próprio texto
da poesia, sem falar nas inúmeras variâncias nas propostas rítmicas e melódicas
de ser músico, que inclui tempo, distância e formação de escola (erudito versus
popular, antigo versus novo, passado versus presente) podem interferir na escuta da
obra tanto pelo ouvinte como naquilo que a própria obra diz e que vem a ser o
“diálogo musical”.
ânimo e cada intérprete tem o seu jeito, a sua intenção musical. No caso do canto,
isso ainda é mais patente, pois se tem a dicção, a emissão vocal, as escolas de
sutis diferenças entre altura e duração no canto e que fazem toda diferença na
alturas e durações em que cada nota musical tem uma afinação precisa e um tempo
justo dados pela física e pela matemática. É o que pretendem nos fazer acreditar as
partituras que lidam, quase que exclusivamente, com essas duas dimensões. A
saber, cada som musical tem uma afinação precisa determinada pela física como,
150
andamento do metrônomo.
SERESTA Nº 5 - MODINHA
bem distintas da "mesma obra". Quando afirmamos ser a "mesma obra", estamos
indicando que não há como se desprezar o fato de que se deram a partir da mesma
partitura.
ouviu, acredito, foram três obras distintas: uma versão cantada pela cantora lírica
ambientado na partitura original para piano; outra versão interpretada pela cantora
"regionalizado" (violão, cello, flauta e bandolim) e a terceira versão cantada por Nilza
comentarista do disco de Teca Calazans, cita Otto Maria Carpeaux, ("Uma nova
três obras, inspiradas pela mesma partitura original e mesma poesia. O que as
italiano, nos faz talvez ouvir a poesia de Bandeira e a música de Villa com
pois que se trata de uma cantora brasileira, interpretando uma canção com
compositor e poeta brasileiríssimos, tudo isto soando como uma ária de ópera
supor que seja da década de 70, pela expressão orquestral e pela própria qualidade
ainda marcada pela tradição do bel-canto, conforme praticada por Maria Lúcia
finalidades.
"ouvem" e “entendem“ o texto poético a partir não somente de seu amálgama com a
Fica aqui apenas este registro, como uma curiosidade intelectual, porém não tão
Além disso, os significados das palavras não são fixos, numa relação um-a-
um com os objetos ou eventos no mundo existente fora da língua. O
significado surge nas relações de similaridade e diferença que as palavras
têm com outras palavras no interior do código da língua... O que modernos
filósofos da linguagem - como Jacques Derrida, influenciados por Saussure
e pela 'virada linguística' - argumentam é que, apesar de seus melhores
esforços, o/a falante individual não pode, nunca, fixar o significado de uma
forma final, incluindo o significado de sua identidade. As palavras são
'multimoduladas'. Elas sempre carregam ecos de outros significados que
elas colocam em movimento, apesar de nossos melhores esforços para
cerrar o significado (HALL, 2005, p. 40)
sujeito moderno" (HALL, 2005, p. 41) e já citados acima, pois que é também com
estas categorias, entre outras, que volteia o intérprete, sua concepção da obra
cantora que, apesar das digressões acima, motivadas pelo seu cantar lírico e
tradicional, é considerada uma das mais belas vozes do cenário lírico brasileiro e
espaço da música popular brasileira. Este espaço da MPB é onde mora a Canção,
que é por definição, como já mostramos, o amálgama entre uma poesia e uma
piano.
Esta Modinha, que tem uma concepção interpretativa mais ao jeito da música
popular, gravada na década de 198061, nos faz lembrar o contexto nostálgico e por
isso mesmo talvez pós-moderno, que tem se dado em nosso meio musical brasileiro,
crescente pela vida do passado é uma tendência dos anos 1970 e 1980, um revival
61
Segundo o encarte do disco, a canção Modinha, de Villa-Lobos, foi gravada em 1987 pela
gravadora Idéia Livre, de Aluízio Falcão.
155
Villa", gravamos três discos de música brasileira e uma das obras gravadas foi
justamente esta Seresta de Villa-Lobos, cantada por uma diletante musical, com
Esta senhora, Nilza Oliveira, que não teve formação musical e muito menos
mundo, o que só realça essa passagem e travessia poética através de uma obra
musical, que, quase centenária, mantém seu vigor e sua atualidade, o que é próprio
da obra de arte.
possibilidades interpretativas de uma mesma canção – que não deixa de ser uma
Hermenêutica.
três performances, veremos que neste diálogo poético, teremos não uma, mas três
obras. Uma mesma obra pode ser vista de três formas distintas. Essa pluralidade de
desse modo, que o mesmo texto se transforme em outro texto na dimensão auditiva
como vimos na sua poesia, é através da voz das intérpretes mulheres que ela se faz
bastante diversos e como já mencionamos são a versão da cantora lírica Maria Lúcia
Godoy, acompanhada ao piano por Miguel Proença e a de Teça Calazans; são duas
É provável que Villa tenha sonhado de forma premonitória com o cantar liso,
lânguido e popular de Teca, mas, em sua época, eram as cantoras líricas que
realizavam a performance de suas obras – como, aliás, continua sendo até hoje,
com raras exceções, como Elizeth Cardoso, cantora popular, que interpretou as
1983), teremos uma interpretação poética que pode até dispensar o executante da
teórico importante da parte do leitor. Mesmo assim, iremos fazê-lo levando em conta
que alguns leitores deste trabalho certamente terão a formação necessária para este
anexo 10).
158
finalidade será realçar o poético que se revela na obra, então, para nós, neste caso,
trovador:
Seresta nº 5 – Modinha
Villa-Lobos
pela projeção que faz as notas alcançarem seu clímax já no 1º compasso da linha
século XX. Voltando à questão musical, este clímax é atingido através de saltos de
3as. (compasso 9), que formam um arpejo de 7ª; daí em diante ele segue alternando
em forma de acordes arpejados ascendentes; assim faz com "Na solidão da minha
vida" (compassos 9 e 10), "Morrerei querida" (compassos 10 e 11), e com "Do teu
dissonante e instável, como sói acontecer com este tipo de afeto (ou de vazio,
retórica musical, quando o trágico acorde diminuto (acorde este também traiçoeiro,
sensível, dó#, numa nota longa, quando o trovador se identifica e se resigna numa
temos vários graus conjuntos, diatônicos e cromáticos, a dar um caráter quase que
inevitável que toma conta do poeta, em sua tentativa sofrida de despertar o amor da
apresentara no início (é mais provável que ele agora consiga alcançar os seus
por conta do intérprete mostrar os dois estados de ânimo contidos na poesia; nem
mesmo o andamento foi mudado por Villa, talvez querendo propositalmente deixar
por conta do intérprete, a revelação deste novo pathos. Na verdade, sabemos que
as obras musicais possuem esta instância que as artes visuais não possuem, nem
registro da partitura e da oralidade, como supomos ter ficado evidente nas obras
caminho oposto: desentranhar a música escondida nas palavras, nos textos poéticos
62
O termo “O riachinho”, vem do texto de Ronaldes de Melo e Souza: “O narrador mitopoético da
saga rosiana de „Minha gente‟”, conforme trecho a seguir: “Na Paidéia poético-musical do artista
sertanejo, tudo se poematiza, inclusive o riachinho”. (2008, p. 68)
63
Cf. Anexo 7 – Ilustração de Poty para a obra Sagarana.
162
Segundo fonte citada por Carlos Alberto dos Santos Abel, Guimarães Rosa
costumava dizer que “a música sertaneja servia para fazer descer os seus
„caboclos‟, os que iam entrando nos seus livros” (SOUZA, 2008, p.68)
comentário do editor:
Em “Minha gente” temos um texto literário, na forma de um conto, que não foi
feito para servir de substrato a uma obra musical, mas apresenta fortes conotações
Falamos assim não porque tenhamos a intenção de fazer uma música para
literatura, até porque não temos, como já foi dito, uma obra musical que seja um
musical de fato.
Dito em outras palavras, não temos a intenção de fazer aqui uma música
objetivo de se criar uma obra artística, como p.ex., uma novela, um filme, um
Nesse tipo de obras, que requerem a música dita programática, ela constitui
mistério, pois esse artista vai fazer a “transliteração” de uma modalidade artística
dissemos, e é óbvio que não houve a intenção do autor de fazer música, portanto
64
Conforme definição do dicionário Grove: “Expressão usada pela primeira vez por escritores
alemães, para um ideal de música”pura” independente de palavras, arte dramática ou sentido
representativo...; sugeriu-se que esse tipo de música deveria ser compreendido como uma estrutura
objetiva sem conteúdo expressivo”. (SADIE, 1994, p. 632)
164
Este caso não é como os libretos de ópera que são criados com esta
Monteverdi, interpretada por nós poeticamente neste trabalho a partir do seu libreto,
Nem é como as cantigas medievais, que tinham poesia e música que nasciam
poesia de Manuel Bandeira, o Manduca Piá, que também estudamos neste trabalho.
normalmente se faz. É comum se ter uma história - drama, novela etc. - e, a partir
dela, se criar ou escolher uma obra musical, que no cerne de sua linguagem possa
65
O músico que deseja compor uma obra sobre um determinado tema, no nosso caso a história de
Orfeo e Eurídice, baseada na mitologia grega, contrata um libretista, que é um escritor de textos
poéticos a partir de um tema previamente escolhido. O libretista e o compositor vão juntos, em
parceria, construindo a obra.
165
fato, no conto "Minha Gente". Trata-se de uma obra literária tout court e também
porque é obra feita por um autor de obras literárias, e também por ser,
possibilidades criadoras, ou, como nos diz de forma mais apropriada Antonio Jardim
Num contexto maior, a essência da obra rosiana apresenta uma carga poética
forma que aquilo que em princípio rumava para um "causo interiorano bem contado",
comparatismo sui-generis , pois, a rigor, nunca é demais lembrar, a música não está
posta, neste caso, como fato concreto, ou seja, com as características tradicionais
de uma música no seu sentido mais simples, que são a melodia e o ritmo, em forma
Etiénne Souriau, cuja citação, embora um pouco longa, vale a pena ser mencionada
por ir direto às questões que estão em pauta aqui, pois o que nos interessa é fazer
cósmicas”, como nos explica Souriau na quinta parte do livro citado, “Música e
Shelley:
167
aos outros”, como também “as cores das Vogais”, de Rimbaud, apontados por
No conto “Minha Gente” há uma forte moldura musical, conforme narrado pelo
escritor dessas “Histórias adultas da Carochinha”, que é como ele, Rosa, se refere
Assim, pois, em 1937 – um dia, outro dia, outro dia... – quando chegou a
hora de o Sagarana ter de ser escrito, pensei muito. Num barquinho, que
viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder
colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia embarcar, inteira, no
momento, a minha concepção-do-mundo.
Tinha de pensar, igualmente, na palavra “arte”, em tudo o que ela para mim
representava, como corpo e como alma; como um daqueles variados
caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente. (ROSA, 2001,
p. 23)
Também lhe diz, após decidir que Sagarana iria ser composta de 12 novelas,
iluminação, o fiat lux , por onde começa a criação do bardo, aedo, poeta ou músico.
eclodir da physis vicejante, ato de liberdade do criador musical - surge uma idéia ou
um som musical, acolhido pelas velhas lembranças das “paisagens da minha terra”.
Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão” (ROSA, 2001, p.216), este
eclodir da physis na obra rosiana, de dentro para fora e do céu para o chão, pode
desvela-se a obra musical tomando a forma dos sons do mundo exterior, aqueles
Amante da língua - “De certo modo eu amava a língua. Apenas, não a amo
como a mãe severa, mas como a bela amante e companheira.” (ROSA, 2001, p. 25),
como declara na aludida carta a João Condé -, amante da arte, quando narra a
mãos, como uma metáfora vigorosa do processo criador: céu e terra, corpo e alma,
cavalo baio pelos vastos campos das Gerais em direção ao seu destino – que
parecia ser Maria Irma – que lhe espera na fazenda do seu tio Emílio:
conhecer sua filha, a de-Lourdes. Convite recusado, Bento Porfírio pensa para si:
“Eu não gosto desse passarinho!... Não gosto de violão... De nada que põe
caiu aqui perto de nós. Eu estou pensando... Talvez, num lugar que não conheço,
aonde nunca irei, more alguém que está a minha espera... E que jamais verei,
170
Neste lamento, que sai da alma de Bento, encontramos algumas das imagens
mais fortes do texto, no que diz respeito aos sons musicais: “um canto, de repente,
triste, triste, que faz dó”, porque essa citação das quatro notas do lamento do sabiá
Este “canto triste que faz dó” tem as quatro notas ou tetracorde, em
linguagem musical, que é o sistema que os gregos usavam para formar suas escalas
nota Alfa. Dela saíram as demais notas, todas pitagóricas, afinadas na base de uma
relação matemática, ou ratio, de : 1/2, 2/3 e assim por diante (ABDOUNUR, 1999, p.
10).
Mas o “canto triste, triste que faz dó” também fez o Dó, a nota primordial das
escalas musicais modernas, que já foi Gama dos gregos, já foi Ut, primeira nota de
musical e poético.
da poiesis dos homens, com algumas notas “molhadas” e outras “secas”, como os
tristes pios do sabiá de Rosa, que... “ao fim da página é que ele dobra o pio”,
66
UT queant laxis / RE - sonare fibris / Mi - ra gestorum / Fa - muli tuorum / Sol -ve polluti / La - bii
reatum / S - ancte I - oannes . (“Para que teus servos, possam ressoar claramente a maravilha dos
teus feitos, limpe nossos lábios impuros, ó São João.") (ABDOUNUR, 1999, p. 10)
171
bemol67 e notas “duras” (Dur – tom maior) - bequadro68. Belas e poéticas imagens
As notas blues do Jazz americano são exemplos destas tristes notas-pios abaixadas
p.ex. Eduard Hanslick, pensam diferente. Para ele, “O conteúdo da música são
formas sonoras em movimento” (HANSLICK, 1989, p.62) e nada mais, mas esta já é
uma outra questão, mais pertinente aos teóricos racionalistas da música, tais como o
amada.
67
Bemol, segundo SADIE, é um “Sinal de notação ( ), normalmente colocado à esquerda de uma
nota e indicando que a nota deve ter sua altura abaixada em um semitom (ref.?).
68
Bequadro é um “Sinal de alteração ( ) normalmente colocado à esquerda de uma nota e, com isso,
cancelando um bemol ou sustenido que, sem isso, a atingiriam (SADIE, 1994, p. 96)
69
No sentido de estarem afastados dos cânones musicais ocidentais modernos.
172
As cigarras em queixumes,
O balé dos vagalumes
Enfeitando a solidão.
A saudade é assim,
A saudade que guardei dentro de mim.
A saudade é a fonte...
Um riacho... uma ponte...
Lírios brancos pelo chão.
As cigarras em queixumes,
O balé dos vagalumes,
Enfeitando a solidão.
Na paisagem, a natureza
Põe um pouco de tristeza,
Quando a noite vai chegar.
Vagalumes da saudade
São estrelas pequeninas,
Pedacinhos de luar.
encontramos, por assim dizer, em todo o conto “Minha Gente” de Rosa. Para nós a
história de “Minha Gente” é uma história de amor, emoldurada pelos astros de Minas
Inútil nos defendermos, Bento! A tristeza já veio, já caiu aqui perto de nós.
173
Eu estou pensando... Talvez, num lugar que não conheço, aonde nunca irei,
more alguém que está a minha espera... E que jamais verei, jamais...
(ROSA, 2001, p.230)
música e letra, como uni-las, como separá-las, como entendê-las do ponto de vista
“Então o sabiá calou o bico e foi-se embora, porque a cantiga do Bento ainda
era mais melancolizante” (ROSA, 2001, p. 232), nos diz o narrador a respeito deste
Autêntica moda de viola, esta quadrinha quase que pode ser ouvida, mesmo
psiu de luz”, quando, após um jantar do Narrador e Maria Irma, sua prometida, ele
saudade é feita a seresta Balé dos vagalumes: “A saudade é assim, / A saudade que
temporal, entre o artigo "O narrador mitopoético da saga rosiana de 'Minha Gente'“
dos seus textos, revelando-se em uma metáfora do corpo e da alma em que, numa
apropriação poética, seu corpo são seus textos e a musicalidade que transpira e
175
poreja de suas obras é a sua alma. Textos e musicalidade que são aquilo que
compõe a canção; a canção brasileira, a nossa seresta, feita pura poesia num puro
texto.
Por ser músico poeta ou poeta músico, Guimarães Rosa se destaca como
escritor genuíno do sertão. Na Paidéia poético-musical do artista sertanejo,
tudo se poematiza, inclusive o riachinho:
“Topamos com um corguinho amável – um ribeiro filiforme, de corrida
cantada, entre marulho e arrulho, e água muito branca. Vinha da sombra e
atravessava a estrada. Sorria”. (SOUZA, 2008, p. 74)
"de repouso".
Ora, isto pode ser facilmente associado, mesmo que num primeiro momento
poética grafada; o discurso oral é mais livre e solto, por isso não foi considerado
aqui.
onomatopéia, que é uma excelente via de mão dupla para uma Interpretação lítero-
176
musical.
mitopoético” e alguns parâmetros musicais como pares coerentes, tais como volume
sonoro/ espaço geopoético e tempo musical/ mitopoética, dado que o volume sonoro
da música.
conceito puro e simples, mas como imagem que inscreve o rigor do pensamento
considerações são feitas a respeito de sua visão das Minas Gerais de Guimarães
177
acima, muito tem a ver com a questão musical. Pois a música enquanto arte vige
como aquilo que brota e se revela, como é próprio do fazer da arte e do destino do
ser humano.
Então a questão que se coloca, para nós, mais do que associar imagens ditas
literário e uma música que, de fato, não está aí, mas é apenas evocada através de
de Minas:
própria natureza física do som faz com ele seja concertante e superposto, pois que
vige em consenso superposto e não é possível deixar de sê-lo. Cada som são vários
178
cores - um conjunto de outros sons que se ocultam para permitir a plena realização
tímbrica do vigor daquele som escolhido e desejado para ser ouvido e apreciado.
Acreditamos que falar de música numa obra literária é como narrar cheiros,
sons e cores que não estão lá, mas que podem ser sentidos através da
inaudito e o dejà-vu.
Através de uma atenção e um cuidado para aquilo que a poesia do texto nos
revela, ele, o texto, nos dá a conhecer as suas próprias consonâncias musicais, num
pathos
melodia pura - se é que existe um significado para um canto sem palavras. Isto nos
O articulista de "O Narrador mitopoético" nos diz em "Minha Gente" que "o
narrador da saga de sua gente se comporta como corifeu no centro do círculo dos
sons e das vozes do sertão" e também que: "o narrador assume a antiga função
Rosa, é um terreno fértil para se levantar e aprofundar várias questões ligadas àquilo
maioria das vezes, o escrito-erudito: os “causos” que viram contos e cantos, vividos
e rememorados pela tradição e cultura ágrafa, apropriados pela cultura erudita que
cultura, que são os pontos de partida para os fazeres musicais, são bem
7. CONCLUSÃO
questão da interpretação poética da obra arte. No nosso caso, arte significou falar da
tanto como diálogo e como método. O diálogo entre a obra, o intérprete e o ouvinte
por Hermes não nos aponta a direção, mas faz com que nós mesmos nos
dado pelo diálogo entre a obra e o seu intérprete. Esse acordo não é universal; não
é um acordo decisivo no sentido de que não pode ser alterado mas, sim, é um
acordo dialogal. Enquanto em diálogo estamos sempre negociando com aquilo que
diálogo com esse caminho, nós temos o nosso acordo e entre várias possibilidades
escolhemos um caminho que nos foi acenado, mas nesse caminho não se esgotam
todas as possibilidades manifestativas da obra. É por isso que podemos ter várias
performances de uma mesma obra musical e que estamos e não estamos diante de
183
obra realizada pela escrita musical, por exemplo. Ressaltamos também que neste
que uma obra musical não surge ex-nihilo e possui, no mínimo, três agentes: a
possíveis futuros ouvintes da obra. Para nós, a tradição significa mais que uma
obediência cega ao antigo. Ao contrário do que se possa pensar, a tradição não tem
obra escolhida não apenas por sua vontade, mas pelo acordo que faz com a própria
obra. É importante ressaltar que o avaliador da obra – aquele que faz a apreciação
executante, ou apenas um intermediário que irá escolher esta obra ou não, para
avaliação, um diálogo e uma decisão. Esse agente também poderá ser um professor
de música, um aluno, em suma, alguém que lance um olhar sobre a obra e decida
que a música seja ouvida e não vista apenas. Em seguida, temos a performance,
final, pois não é possível “ler” uma obra musical sem imaginar como ela irá soar na
interpretação final. Essa apreciação ou escolha poderá ser feita por um editor de
anônimo ou não, que tenha escrito a sua obra em partitura musical com a notação
decodificar a notação musical de uma obra musical. Essa etapa do processo poderia
ser feita, por exemplo, nos dias de hoje pela escuta da obra apresentada sob a
partitura. Esse avaliador também pode ser alguém que ouviu a música sem lê-la.
quando a obra será interpretada através de sua execução. Como a obra poética é
a fala da obra e a sua escuta são infinitas, pois é assim que se dá com o ser da obra
caminhos inaugurados por Hermes, pelo dom das musas, por Mnemosyne, e o
intérprete executante é apenas aquele que faz a performance final. Assim, podemos
dizer que temos também o intérprete compositor, o intérprete executor que faz a
Sabemos que é mais usual utilizar o termo intérprete para o executante que
mundo.
erudito versus popular permeou todas as obras mencionadas, pois não é possível
deixar de considerar essas antinomias uma vez que, no caso específico da música,
mas talvez em todas as outras artes também, é muito tênue o fio que separa aquilo
chamamos de erudito é o que nos vem através de uma cultura acadêmica com
Odisséia de Homero, por exemplo, vieram de uma tradição oral. Apenas séculos
depois é que foram configuradas no papel. Elas perduraram pela memória – o que é
próprio do poder instaurador da música. Assim se deu também com a bíblia judaico-
cristã – toda advinda de uma cultura oral só codificada séculos após suas
enunciações primeiras.
representação escrita, fica até mais difícil saber onde começa e termina o domínio
de cada uma. Talvez, tivesse sido melhor nem consideramos estas questões. No
entanto, elas fazem parte da própria trajetória do acontecer das obras estudadas
187
neste trabalho e, por isso, não pudemos deixar de considerá-las. Achamos inclusive
imbricam e o que vai ser mais relevante é aquilo que perpassa a própria obra, ou
gêneros que fazem parte de nosso percurso musical e que possuem uma coerência
interna dada pelos próprios atributos das obras, entre eles, a questão da canção que
elas.
dos tratados, iluminuras, e da tradição oral dada, sobretudo, pelo canto gregoriano
hoje, como faz a poética heideggeriana, ao buscar a questão do ser dos pensadores
originários.
raspar as cinzas depositadas por séculos de conceitos até chegar a brasa viva do
pensamento originário ou, como diz o poeta Fernando Pessoa, “E raspar a tinta com
maleabilidade dada pela poiesis da obra, o que lhe permite ter infinitas
possibilidades de interpretação.
Claudio Monteverdi, com foco no libretto da ópera; o mito de Orfeu, a obra musical
hermenêutico, onde fizemos uma exegese dessa poesia que fala de deuses e
tentamos mostrar como, tanto o texto como a obra musical, podem ter caráter
musicais de uma obra puramente literária, no caso o conto Minha Gente. Nesta obra,
189
não havia intenção do autor de produzir música, o que, de fato, não fez. A
musicalidade que transborda da própria obra também será dada pelo seu intérprete-
leitor.
A escolha desses gêneros musicais foi feita com base na experiência docente
conto “Minha Gente”, de Guimarães Rosa, já como uma provocação para uma nova
frutos da "escuta da fala da obra", um diálogo entre a obra e o ouvinte. Todo esse
deixamos tocar pelos métodos anunciados pela própria fala das obras, o que nos
levou a alguns caminhos interpretativos que foram sendo mostrados à medida que
ou antiga. Ela Instaura uma espaço-temporalidade que lhe é própria. Isso acontece
nela mesma. Somente podemos falar sobre música na medida em que nos
8. REFERÊNCIAS
8.1 BIBLIOGRÁFICAS
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Perspectiva, 2000.
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ANEXOS
200
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205