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Universidade Federal do Rio de Janeiro

A HERMENÊUTICA DA PERFORMANCE MUSICAL: UMA POÉTICA DA


INTERPRETAÇÃO DA OBRA DE ARTE.

Peri Santoro

2011
A HERMENÊUTICA DA PERFORMANCE MUSICAL: UMA POÉTICA DA
INTERPRETAÇÃO DA OBRA DE ARTE

Peri Santoro

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


de Pós-graduação em Ciência da Literatura,
Faculdade de Letras da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em
Ciência da Literatura (Poética).

Orientador: Prof. Dr. Antonio José Jardim e


Castro

Rio de Janeiro

Abril de 2011
A HERMENÊUTICA DA PERFORMANCE MUSICAL: UMA POÉTICA DA
INTERPRETAÇÃO DA OBRA DE ARTE

Peri Santoro

Orientador: Prof. Dr. Antonio José Jardim e Castro

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência da


Literatura, vinculado à Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Ciência da Literatura (Poética).

Aprovada por:

_________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Antonio José Jardim e Castro

_______________________________________________
Profa. Dra. Maria Lúcia Guimarães de Faria - UFRJ

_______________________________________________
Profa. Dra. Regina Maria Meirelles Santos - UFRJ

_______________________________________________
Profa. Dra. Sônia de Almeida do Nascimento - EMVL

_______________________________________________
Profa. Dra. Rívia Silveira Fonseca - UFRRJ

_______________________________________________
Prof. Dr. Manuel Antônio de Castro – UFRJ (Suplente)

_______________________________________________
Prof. Dr. José Adriano da Silva Alves - FAETEC (Suplente)
SANTORO, Peri.

A Hermenêutica da Performance Musical – uma poética da


interpretação da obra de arte / Peri Santoro. - Rio de Janeiro : UFRJ /
2011.
211f.: 30 cm.
Orientador: Antonio José Jardim e Castro
Tese (Doutorado) UFRJ, Faculdade de Letras, Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Literatura, 2011.
Bibliografia: f. 190-98
1. Música. 2. Arte. 3. Interpretação. 4. Hermenêutica.
I. Castro, Antonio José Jardim e. II. Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Ciência da Literatura, Poética. III. Título
Dedico este trabalho à minha physis e minha
poiesis: meu neto Mateus.
AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Antonio Jardim, por ter me introduzido nas sendas do

pensar poético.

Ao caro professor Manuel Antônio de Castro, pelo apoio e incentivo.

Aos professores do Curso de Poética: Eduardo Mattos Portella, Eduardo de

Faria Coutinho, Luis Edmundo Bouças Coutinho e Ronaldes de Melo e Souza, pelo

mundo novo que descortinaram para mim.

À coordenadora do Programa de Ciência da Literatura, professora Vera Lins,

pela compreensão e cooperação.

A Maria de Fátima Quintela Campelo, funcionária da secretaria da pós-

graduação, e aos seus colegas.

Aos caríssimos colegas Sônia Almeida, Verônica Araújo, Kátia Rose Pinho,

André Vinícius Pessoa e Ronaldo Moutinho, que tanto me ajudaram com sua

amizade, encorajamento e pelas valiosíssimas sugestões.

Às amigas queridas Dora Margarida Cioli Taborda e Marília Accorsi Peçanha,

pelas revisões dos resumos em francês e inglês, respectivamente.

A Rívia Fonseca, pela paciência e pela competente revisão do texto.

A Marco Antonio Coutinho Jorge, pelo incentivo e pela escuta paciente de

minhas elocubrações existenciais.

A Wellington Mendes de Oliveira, pela cooperação e companhia nos

momentos difíceis.

Ao meu filho André Cioli Taborda Santoro, por ser filho, simplesmente.

Ao meu neto Mateus Ventura Santoro, por ser neto, simplesmente, a quem

dedico este trabalho.


RESUMO

SANTORO, Peri. A hermenêutica da performance musical: Uma poética da


interpretação da obra de arte. Rio de Janeiro, 2011. Tese (Doutorado em Ciência da
Literatura - Poética) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2011.

Este trabalho de hermenêutica trata da interpretação poética de obras

musicais através da apreciação e da performance. Foram feitas abordagens

interpretativas de gêneros e obras musicais significativas no percurso artístico do

autor, do ponto de vista da apreciação poética e pedagógica, tais como as Cantigas

Medievais, a Ópera Orfeo de Monteverdi e a Seresta nº 5 de H. Villa-Lobos:

Modinha. Também foi estudado o conto “Minha Gente” da obra “Sagarana” de

Guimarães Rosa, de onde se procurou desvelar a música do texto. O revival da

música antiga, a questão do erudito e do popular, o oral e o escrito, a permanência e

atualidade da obra de arte e a inegalité, do ponto de vista da poética da obra, foram

questões norteadoras deste exercício hermenêutico. A escuta poética e o diálogo

profícuo entre obra e ouvinte resultaram nos métodos de interpretação poética,

razão de ser deste trabalho.

Palavras-chave: Música. Interpretação. Poética. Hermenêutica.


ABSTRACT

SANTORO, Peri. The hermeneutics of the musical performance: The Poetics of


the Interpretation of the Work of Art. Rio de Janeiro, 2011. Doctoral Thesis (PhD in
Science of Literature – Poetics) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

This work in Hermeneutics deals with the poetical interpretation of musical

works through the appreciation and performance. With the author‟s artistic journey in

mind, interpretative approaches in significant genre and musical works were made,

from the point of view of the pedagogic and poetic appreciation regarding the

Medieval Songs, the Opera Orfeo from Monteverdi and the serenade nº 5: Modinha

from Heitor Villa Lobos. The author also studied the short story Minha Gente, from

Guimarães Rosa‟s literary work Sagarana, as an attempt to unveil the music within

the text. The revival of the early music, the debate between the scholar and the

popular, the oral and the written, the permanence and relevance of the work of art

and the inégalité, from the standpoint of the poetic work, all of these were the guiding

questions for this hermeneutic exercise. The poetic listening and the fruitful dialogue

between the work and the listener generated several methods of poetic

interpretations which were the reason for this thesis.

Key-words: Music. Interpretation. Poetic. Hermeneutics.


RÉSUMÉ

SANTORO, Peri. L'herméneutique de la performance musicale: une poétique de


l‟interprétation de l‟œuvred'art. Rio de Janeiro, 2011. (Doctorat en Science de la
Littérature – Poétique) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

Ce travail sur l'herméneutique s‟agit de l'interprétation poétique des œuvres

musicales a travers de l'appréciation et de la performance. Les approches

d'interprétation ont été faites sur les genres musicaux et les oeuvres musicales

importantes dans le parcours artistique de l'auteur, au point de vue de l'évaluation

pédagogique et poétique, comme le chansons médiévaux, l´Opera Orfeo de

Monteverdi et la Sérénade nº5 de H.Villa-Lobos:Modinha. Nous avons également

étudié le conte "Minha Gente" du livre "Sagarana" de Guimarães Rosa, d‟où on a

cherché dévoiler la musique contenu dans le texte. Le renouveau de la musique

ancienne, la question entre l‟érudit et le populaire, l‟oral et l‟écrit, la permanence et

l‟actualité d'une œuvre d‟art et l‟inegalité, du point de vue de la poétique de l‟oeuvre,

ont été des questions d'orientation de cet exercice herméneutique. L'écoute poétique

et le dialogue fructueux entre l‟oeuvre et l‟auditeur ont resulté à des méthodes

d‟interprétation poétique, la raison d‟être de ce travail.

Mots-clés: Musique. Interprétation. Poétique. Herméneutique.


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO, p. 11

2. A HERMENÊUTICA E SUAS QUESTÕES, p. 25


2.1 A HERMENÊUTICA: CAMINHOS, p. 25
2.2 A INTERPRETAÇÃO E A PERFORMANCE COMO ATOS
CRIADORES, p. 28
2.3 O MÚSICO INTÉRPRETE E O TRADUTOR INTÉRPRETE, p. 38
2.4 BREVE INTRODUÇÃO PARA A QUESTÃO DA OBRA DE
ARTE, p. 47

3. A MÚSICA MEDIEVAL, p. 55
3.1 O REVIVAL DA MÚSICA ANTIGA: UMA QUESTÃO
POÉTICA, p. 55
3.2. A PRECISÃO E A INÉGALITÈ: CONSTITUINTES POÉTICOS
DA MÚSICA, p. 59
3.3 O CANTAR POÉTICO DAS PALAVRAS E A NOTAÇÃO
MUSICAL, p. 62
3.4 O CANCIONEIRO MEDIEVAL IBÉRICO: UMA PERSPECTIVA
POÉTICA, p. 69
3.5 MEDIEVO-NORDESTE: UMA PONTE POÉTICA ENTRE O
ANTIGO E O NOVO, p. 76

4. A ÓPERA, p. 86
4.1 A ÓPERA: A GRANDE INOVAÇÃO NA MÚSICA POR VOLTA
DE 1600, p. 86
4.2 ORFEO: ANTIGO VERSUS MODERNO, p. 91
4.3 UMA POÉTICA DO ORFEO, p. 94

5. A SERESTA: SAUDADE DO TEMPO QUE NÃO VOLTA MAIS, p. 130


5. 1 A CANÇÃO SERESTEIRA, p. 132
5.1.1 Considerações sobre o erudito e o popular na
canção, p. 137
5.2 AS SERESTAS DE HEITOR VILLA-LOBOS, p. 142
5.2.1 O erudito e o popular nas serestas de
Villa-Lobos, p. 143
5.3 O SENTIDO DO TEXTO NA CANÇÃO SERESTEIRA, p. 145
5.4 O COMPARATISMO SERESTEIRO: UMA INTERPRETAÇÃO
POÉTICA, p. 147

6. O “RIACHINHO” DE ROSA: A MÚSICA DO TEXTO, p. 161

7. CONCLUSÃO, p. 182

8. REFERÊNCIAS, p. 190
8.1 BIBLIOGRÁFICAS, p. 190
8.2 DOCUMENTOS SONOROS, p. 196
8.3 IMAGENS EM MOVIMENTO, p. 197
8.4 DOCUMENTOS ELETRÔNICOS, p. 198

ANEXOS, p. 199
11

1. INTRODUÇÃO

Em nossa prática musical profissional, trabalhamos com algumas vertentes do

saber musical como, por exemplo, o magistério, a performance e a pesquisa de

repertório. Dissertar sobre cada uma dessas vertentes não constitui tarefa fácil e

certamente não iremos fazê-lo.

Uma dificuldade decorre da impossibilidade de investigarmos isoladamente

cada uma dessas vertentes; no entanto, em função de nossa experiência

pedagógica, acreditamos que o foco de nosso trabalho será o da apreciação musical

e poética, pois é a respeito da interpretação que estaremos discorrendo todo o

tempo e a apreciação é um modo de ser da interpretação, até mesmo pelo étimo

pretium, de interpretium, comum a ambos e que diz das escolhas que se faz e do

valor que se atribui às coisas. (CASTRO, 2004)

Outra questão que se impõe é que a poética da música não pode ser

mensurada, mas tão-somente experienciada como tempo e memória daquilo que se

apresenta. A música e suas possibilidades de realização constituem uma questão

multifacetada, ultrapassando, assim, toda e qualquer tentativa de classificação

temporal da obra musical em gêneros, estilos e épocas, pois isso também não dá

conta da compreensão da verdade da obra de arte. Segundo Antonio Jardim,

A história perde o seu compromisso essencial com a unidade originária e se


vê repartida em épocas e estilos que se sucedem de forma pretensamente
evolutiva. (JARDIM, 2005, p. 102)

Então, isso significa que não podemos falar sobre música? Antonio Jardim,

em Música: vigência do pensar poético, nos diz que:

Falar de música não é realizá-la. Falar de música é uma possibilidade de


abstratamente fazê-la aparecer. Mas na fala a música enquanto música se
ausenta. A música tem um comprometimento essencial com o concreto.
(JARDIM, 2005, p. 175)
12

Embora não possamos falar sobre música, a resposta para esta pergunta não

será, em hipótese alguma, negativa. Não falamos sobre música, e sim deixamo-nos

tocar pela própria música. Falamos a partir dela, nela e, sobretudo, com ela. Sendo

assim, ao longo deste trabalho iremos nos debruçar, sempre que possível, em três

questões essenciais para a compreensão da poética da música: a percepção, a

apreciação e a interpretação, sendo que a interpretação é a nossa questão principal

neste trabalho.

A percepção, na terminologia atual do ensino da música, diz respeito ao

estudo e à leitura da partitura musical1, ao reconhecimento auditivo de uma obra

tocada ou cantada e sua conversão em partitura. Dito em outras palavras, a

percepção é um exercício semelhante à leitura e ao ditado de um texto em

vernáculo. Essa semelhança, entretanto, ocorre apenas superficialmente. O registro

escrito de uma música e o registro escrito de um texto são radicalmente distintos. A

começar pelo caráter monofônico do ditado em vernáculo, no qual as palavras

representam signos linguísticos. A relação entre a palavra falada e a palavra escrita

parece biunívoca e mantém, geralmente, uma relação próxima entre o dito e o

escrito. Além disso, a grafia de uma palavra pode nos remeter a representações nas

quais a correspondência entre fala e escrita assume caráter universal dentro de uma

determinada cultura. Ora, a música também não apresenta uma relação entre fala e

escrita? No que tange à música, também não há uma correspondência exata entre

som e grafia, mas apenas uma aproximação que admite vários graus de imprecisão

ou de inegalité, o que iremos desenvolver mais à frente.

Os sons musicais não representam coisas ou ideias. A vigência da música dá-

1
A leitura de uma partitura também recebe o nome de solfejo, quando cantada.
13

se nela mesma, na sua instauração de mundo e sentido. Apreender o poético de

uma determinada obra musical significa deixar-se tocar pelo vigor da realidade da

música se realizando. A sua percepção poética é, portanto, mais do que a mera

representação e sim, uma atividade musical que possibilita a experienciação do ser

da música.

Todavia, a percepção do ser da música não é um exercício meramente

subjetivo. Não apreendemos a vigência de uma música apenas pela fruição estética.

Quando um intérprete decide executar uma obra musical, sua escolha exige, dentre

outros fatores, comprometimento, atitude e preferência. Não podemos, com isso,

separar a experiência da percepção musical da apreciação e da sua interpretação.

A apreciação musical é sempre um ato criativo, tanto do criador quanto do

executor ou do ouvinte. Isso decorre do fato de que apreciar uma música nada mais

é senão interpretá-la. Em um primeiro momento, podemos pensar que a apreciação

de uma obra musical esteja ligada à sua fruição estética, ao passo que a

interpretação diz respeito à sua execução / performance. Interpretar uma obra

musical significa apreciar, mas a apreciação da obra musical não quer dizer

necessariamente interpretação.

A apreciação situa-se no âmbito da ausculta e do processo de entendimento

da estrutura composicional da obra. É pela apreciação que podemos ampliar nossos

conhecimentos teórico-musicais e ultrapassar os padrões formais de uma

determinada obra; já a interpretação não é um mero caminho, mas o próprio

caminho no qual o ser da obra inaugura suas múltiplas possibilidades de realização.

Pensar o ser da obra significa também analisar o poético da obra, porém

devemos ter cuidado com o uso do termo “análise” ao limitá-lo ao sentido de uma

mera classificação, até porque, segundo Jardim:


14

A análise é sem dúvida um dentre os muitos modos que se tem de acesso


às obras artísticas. Nesse sentido, o papel da análise é, pensamos, ser uma
forma de conhecimento do real. (JARDIM, 2005, p.116)

Aparentemente, a análise é uma forma fria de aproximação da obra. Aliás,

muitos estudiosos consideram que ao analisarmos uma obra, seja ela musical,

pictórica, cinematográfica ou literária, apenas para citar alguns exemplos, podemos

cair no esquecimento do ser da obra. É preciso deixar a obra acontecer para que,

pelo exercício da escuta, dialoguemos com o ser obra da obra para que possamos,

assim, dialogar com o real da música, com a sua essência, para que a obra opere,

em suma.

O real da música é o tempo e a memória eclodindo poeticamente. Nessa

eclosão de sentido poético, a presença das coisas, do dito e do não dito, não são

representações, mas um movimento contínuo de manifestação da própria realidade.

Assim, o ritmo, a melodia, a duração e até mesmo os arranjos2 de uma obra musical

inauguram uma espaço-temporalidade que lhes é própria.

Entretanto, o que dizer da musicologia que, ao tentar demonstrar como o

compositor “estruturou” uma determinada obra faz um percurso de análise não

interpretativo, mas tão-somente descritivo? Por que quando pensamos sobre a

análise de uma obra musical repousamos, primeiramente, na intenção do

compositor? Como o compositor criou a obra? Em que medida a obra é executada

como gesto do seu criador?

Não podemos negar que há sempre uma intencionalidade na produção de

uma obra. Mesmo que esta seja desconhecida pelo próprio autor, ainda assim existe

uma intenção. Muitos compositores utilizam-se, no instante poético, dos recursos

2
Devemos compreender o ritmo, a melodia, a duração e os arranjos como elementos constitutivos da
música.
15

composicionais como, por exemplo, o contraponto, a fuga, a inversão, a variação 3,

dentre outros. Pelo emprego de tais recursos, é possível identificar os materiais

sonoros, a estrutura das obras e os efeitos, por exemplo. Todavia, devemos estar

atentos a que a permanência apenas em abordagens descritivas dos eventos

estruturais da obra silencia o poético.

A poética de uma obra musical não pode ser apreendida pelos contextos, e

sim pelas múltiplas possibilidades de realização do seu instante poético. Música não

apresenta adjetivos. A poeticidade de uma obra musical nada mais é senão

acontecimento poético no qual o operar da obra resguarda a verdade do ser.

Portanto, a questão da análise da obra deve ultrapassar o caráter racional e

metafísico e por isso devemos nos encaminhar para a interpretação poética da obra

como uma superação da metafísica em direção à hermenêutica da obra de arte. O

criador é simplesmente aquele que cria. Os processos, os materiais e os recursos

utilizados na sua tarefa criativa são apenas aparatos que compõem o mistério e a

magia da criação.

Nada sabemos sobre “como” compor uma obra, pois não existe receita para a

criação. Dispomos de recursos técnicos e teóricos, mas a disponibilidade desses

recursos não assegura o acontecer poético e nem permite a compreensão do

mistério que perpassa a criação poética. O processo de configuração de uma obra é

profundamente hermenêutico e nos faz caminhar em um círculo no qual princípio e

fim tocam-se silenciosamente, pois, sem princípio ou fim determinados previamente,

assim acontece o poético.

O acontecer poético de uma obra conclama sempre instâncias interpretativas

e a primeira instância é o instante em que apreendemos a obra, ou seja, é o instante

3
Disciplinas teórico-musicais que ensinam a articular o discurso musical em termos acadêmicos.
16

em que somos tocados pela originalidade poética. Todas as possibilidades

sensíveis, todos os parâmetros inteligíveis são trazidos à baila em um só instante

poético e inauguram infinitas possibilidades de realização, e é diante dessas

possibilidades que o som se dá a conhecer na sua originalidade.

Até mesmo em sua vigência escrita, na partitura, uma obra musical exibe

várias possibilidades interpretativas. É uma luta de escolhas, é um gesto entre o

dizer e o não dizer no qual comparece Hermes4 e nos cede não a lira, pois essa já foi

destinada a Apolo, mas a posse do gesto inaugural no qual gestamos em música o

silêncio e gestamos entre o que se mostra e vela, o dito e não dito, o silêncio e sua

pretensão de vir-a-ser música.

Mais uma vez nos debruçamos sobre a interpretação e suas questões e

assim será a tessitura deste trabalho: um ir e vir contínuo entre as questões; um

convite para perscrutar o que não pode ser medido e, sim, experienciado em um

processo circular e hermenêutico no qual criador e criatura (intérprete e ouvinte) se

configuram como um e o mesmo.

Segundo Rohden:

É no ir-e-vir, seja entre intérprete e obra, seja entre aquele que quer
compreender a verdade e os (pré)conceitos existentes, que uma concepção
de verdade pode ser elaborada. (in CASTRO, 2005, p.220)

A compreensão da obra musical é sempre um vaivém ininterrupto em que

cada instância poética se concretiza pela interpretação. É verdade que os dados de

que dispomos para interpretar uma obra dependem das nossas escolhas, dos

nossos critérios, ou seja, de uma práxis e vontade musical de todos os elementos

envolvidos na nossa decisão, entretanto o exercício da interpretação somente é

4
Filho de Zeus e de Maia, Hermes é conhecido como o deus mensageiro: “É na Odisséia que ele
aparece pela primeira vez como mensageiro dos deuses”. (OTTO, 2005, p. 98).
17

possível quando entregamos nossos ouvidos ao apelo da linguagem, pois “a

essência do homem é a linguagem. E a linguagem é mundo. Ora, as obras de arte é

que manifestam o próprio do homem: a linguagem, isto é, mundo”. (FRANCO, 2009)

Consideramos que o termo interpretação musical apresenta um sentido

abrangente, já que agrega a leitura, a compreensão e a execução de uma obra,

porém o que faz com que um intérprete execute determinada obra de uma certa

forma ante um vasto universo de possibilidades é a poética inaugurada pela obra,

que indica os possíveis caminhos para a interpretação.

No círculo de suas infinitas realizações, a obra manifesta a verdade 5. Rohden,

em seu ensaio Gadamer e as questões da arte, diz que “a linguagem poética possui

uma „relação peculiar, muito própria, com a verdade‟” (ROHDEN apud CASTRO,

2005, p. 216) e também, citando Gadamer e Pareyson: “a verdade não se dá senão

no interior da interpretação” (ROHDEN apud CASTRO, 2005, p. 215).

Entregue à escuta da verdade da obra há um aceno, dentre tantos outros, que

nos toca. É justamente a partir desse aceno que o ser da obra presentifica o que

estava oculto. Manifestar o velado e velar-se no manifesto significa configurar o ser

da obra enquanto acontecimento poético.

E como apreenderemos, neste trabalho, o ser da obra?

Nosso ponto de partida será a hermenêutica da performance musical. Em

seguida, levantaremos questões de interpretação da chamada Música Histórica ou

Antiga6 e, sobretudo, do revival musical. É importante ressaltar que houve um

“hiato”, ou seja, um esquecimento desse tipo de música, desde o barroco musical

até o romantismo, no início do século XIX. Somente após o romantismo é que se

5
A verdade não como um conceito representativo, uma mera adequação de sujeito e objeto. Verdade
deve, antes de tudo, ser apreendida como aletheia que é o velar autovelante do real e suas
realizações.
6
A Música Antiga abarca os períodos medieval, renascentista e barroco, segundo os musicólogos
tradicionais.
18

tentou resgatar o espírito da Música Antiga a partir de uma nova roupagem

interpretativa.

Segundo Harnoncourt, em O Diálogo Musical:

O objetivo, hoje em dia, é considerar a composição em si mesma como a


única e legítima fonte, apresentando-a pelos seus méritos próprios. Em
especial, no que se refere a Bach, devemos procurar ouvir e tocar as suas
obras-primas como se jamais tivessem sido interpretadas – uma leitura que
ignore toda a tradição interpretativa do Romantismo. (HARNONCOURT,
1993, p. 52)

Entretanto, será que quando executamos uma música barroca com padrões

modernos, por exemplo, temos a mesma música?

Em O Discurso dos Sons, no capítulo: “Princípios fundamentais da música e

da interpretação”, Harnoncourt afirma que:

uma execução só será fiel se ela traduzir a concepção do compositor no


momento da composição. Sabemos que isso é possível, mas até certo
ponto: a idéia original de uma obra deixa-se apenas adivinhar, sobretudo
quando se trata de música muito distante de nós no tempo.
(HARNONCOURT, 1988, p.19)

Na esteira do revival da Música Antiga o que se pretende é justamente

reencontrar, por meio de pesquisas históricas e musicológicas, um suposto “elo

perdido” – mas que na verdade configura um caminhar que transita pelo ontem, o

hoje e o amanhã – das interpretações originárias. Para Rohden:

A verdade, nesse caso, efetiva-se no movimento de ir-e-vir, entre sujeito e


objeto, entre passado, presente e projeção futura numa experiência de
simultaneidade na qual se experiencia a verdade espelhável na sentença de
Heráclito: „o mesmo caminho que sobe é o mesmo que desce‟ (in CASTRO,
2005, p. 218)

Até que ponto as mudanças estruturais – a forma de escrever uma partitura,

por exemplo –, que ocorreram entre o classicismo e o romantismo musical

contribuíram para o esquecimento da Música Antiga? Até que ponto as condições de


19

performance, incluindo as características físicas dos locais para concertos, as

mudanças nos instrumentos musicais e na preferência musical dos ouvintes também

ajudaram a promover esse esquecimento?

A seguir estudamos a revolução musical que representou a ópera Orfeo, de

Cláudio Monteverdi, as Serestas de Heitor Villa-Lobos através de um viés

comparativo, mais especificamente a Seresta nº 5, Modinha, e também a

musicalidade de uma obra literária no conto Minha Gente, de João Guimarães Rosa.

Acreditamos que a apreciação dessas obras trouxe uma compreensão mais

adequada da hermenêutica da performance musical.

Podemos até mesmo afirmar que este nosso trabalho vai lidar todo o tempo,

de uma certa forma, com questões relativas à interpretação e à performance,

semelhantes ao revival da música antiga, pois, depois das cantigas medievais do

século XIII e do Orfeo, de 1596, as obras mais recentes que estudamos foram a

Seresta nº 5, de Villa-Lobos, de 1926, conforme consta do fac-símile do álbum das

“Serestas”, e o conto Minha Gente, do livro “Sagarana”, de 1937, como nos informa

Rosa, em carta a João Conde: “Lá por novembro, contratei com uma dactilógrafa a

passagem a limpo. E, a 31 de dezembro de 1937, entreguei o original, às 5 e meia

da tarde, na Livraria José Olympio”. (ROSA, 2001, p.25).

O que podemos falar da ópera Orfeo, de Monteverdi? Divisor de águas entre

o velho e o novo, o antigo e o moderno, o sacro e o profano, o oral e o escrito, trata-

se de uma obra que inaugura a presença do drama humano na música por meio da

interpretação de Monteverdi para o mito de Orfeu. Não estamos mais diante de uma

realidade sacra, como acontecia na Música Antiga e com as Cantigas de Louvor mas

sim da própria realidade tal qual ela se apresenta.

Com essa ópera saímos do fundamentalismo cristão medieval e entramos


20

não em lutas de conquistas de terras ou de celebração do divino, mas na

valorização do homem humano. Não há mais cisão entre o divino e o terreno, o

sagrado e o profano, o finito e o infinito. O mito de Orfeu recupera o sentido de ser

do homem. Vida e morte, alegria e tristeza, queda e elevação, serenidade e

inquietude concedem ao homem seu drama trágico. Luta incessante entre o viver e o

morrer, tanto o mito como a ópera Orfeo articulam o homem no divino e o divino no

humano.

Em seguida, lançamos um olhar poético-musical para a Seresta nº 5,

Modinha, de Villa-Lobos. Buscamos esse olhar tentando entender o seu tempo e,

principalmente, a obra musical do autor.

No entanto, falar desta música, de 1926, é falar da sociedade que engendrou

esse fenômeno a partir da linguagem, dos sentimentos e dos modos de ser que

despertaram e despertam, e como tudo isso é visto e sentido hoje, configurado

enquanto memória e identidade, com a perspectiva temporal de quase um século, e

o imaginário que nos assola ao tratar das obras musicais tangidas pela pátina do

tempo, de um locus amoenus perdido para sempre, não fossem elas obras imortais

plenas de memória e vigor poéticos, sempre dispostas a reviver do letárgico sono do

papel sob cada olhar que sobre ela se lança lendo, interpretando e escutando a fala

da obra; segundo Raynor:

A música só pode existir na sociedade; não pode existir, como também não
o pode uma peça, meramente como página impressa, pois ambas
pressupõem executantes e ouvintes. Está, pois, aberta a todas as
influências que a sociedade pode exercer, bem como às mudanças nas
crenças, hábitos e costumes sociais (RAYNOR, 1981, p. 9).

As Serestas de Villa-Lobos, que utilizamos como uma das questões centrais

deste trabalho e a partir das quais estudamos as questões poético-musicais na obra,

foram compostas em 1926, em data próxima, portanto, dos acontecimentos da


21

semana de 22 e após sua estada na Europa em 1923/24.

Investigamos, assim, quatro momentos musicais distintos. Todavia, o que

aproxima e distancia esses momentos? Ora, simplesmente a interpretação poética.

Quanto às cantigas7 medievais, é preciso recriá-las, mas até que ponto uma

recriação mantém-se próxima do original? Podemos falar em uma “música original”?

E o que elas significam na contemporaneidade?

Do ponto de vista das cantigas, ocorre uma permanente recriação, seja pelas

iluminuras, pelos cantos gregorianos e por uma interpretação atualizada dos

neumas. Do ponto de vista poético, a obra está lá, vigendo no “no sono do papel”,

nas suas formas poéticas ainda veladas.

Werner Aguiar, a respeito dos “acontecimentos da arte e do mito”, diz, citando

Kerényi:

Estes se referenciam ao que como origem permanece arcaico, isto é, aquilo


que permanece eterno, inexaurível, invencível numa primordialidade e num
tempo imperecível por que se manifesta eternamente em repetidos
renascimentos (in CASTRO, 2005, p. 75).

Já em Orfeo, temos a presença de uma partitura moderna erudita – que

inaugura a moderna música homofônica e dramática no ocidente - moderna, mas

não contemporânea e também contemporânea, pois “participa de um mesmo

tempo”, segundo Jardim:

Contemporâneo é o que habita uma mesma temporalidade. Se


compreendermos assim, a contemporaneidade será composta tanto pelo
que se faz hoje, quanto pelo que se fez no passado e que, de um ou outro
modo, ainda persiste e insiste em permanecer vigendo, conformando e
confirmando esta mesma contemporaneidade. (JARDIM, 2005, p.111)

Nas Serestas ocorre o domínio de um popular no âmbito lírico-poético, mas

com uma estruturação escrita erudita. Não estamos mais diante do trágico, como

7
Música medieval basicamente oral e com notação neumática, notação musical da Idade Média.
22

acontece em Orfeu e também não estamos mais diante do predomínio do religioso,

como acontece na música medieval. O que encontramos é uma mescla do erudito

com o popular, tanto no âmbito da música propriamente dita de Villa, como na

poesia lírica e seresteira de Bandeira.

Após a seresta de Villa-Lobos trabalhamos em uma obra literária: o conto

Minha Gente do livro “Sagarana” de Guimarães Rosa. De tanto ouvirmos falar sobre

a “musicalidade” da obra de Rosa, nos detivemos no conto mencionado, a partir de

um ensaio de Ronaldes de Melo e Souza: O narrador mitopoético de “Minha Gente”,

em que pudemos constatar enfaticamente a questão da musicalidade da obra

rosiana, por meio deste conto. Utilizamos o conceito de música programática para

mostrarmos o potencial musical desta obra.

Do ponto de vista poético a vigência da música é determinada pelo diálogo

entre o aceno da obra e o momento poético do executor e do ouvinte. Na escuta da

obra, todos são intérpretes pelo diálogo, por isso a interpretação de uma obra é

sempre histórica, dialogal e particularizada a cada intérprete e ouvinte. Mesmo

quando supomos modelos canônicos de interpretação, não existe um conceito

universal aplicável às obras. Uma obra poética não é constituída por verdades

absolutas e sempre se deixa escapar ao sabor do momento poético de seu

desvelamento.

Interpretar poeticamente é o que confere sentido à própria obra, pois cada

obra tem uma abordagem que é dada por ela mesma. A obra musical é dinâmica na

sua percepção e na sua recriação, por isso não somos nós que decidimos sobre ela

e sim é a própria obra que no seu desabrochar nos acena com múltiplas

possibilidades. Por isso, quando há escolha de uma obra, esta se dá não como

vontade do sujeito, e sim a partir do diálogo entre a obra e seu intérprete. O


23

intérprete capta esses acenos e também se faz obra na obra artística. Temos,

portanto, o aceno da obra, e o aceno do intérprete. Na escuta dialogal entre obra e

intérprete, a obra opera e inaugura novas possibilidades de abertura para o sentido

musical, revelado pela performance.

Há, no entanto, quem possa considerar este trabalho assaz abrangente. Ora,

como escolher um único assunto capaz de nos deslumbrar? Não nos debruçamos

sobre assuntos, mas deixamo-nos mover pelo vigor das questões. A verdade é que

tanta luz irradia daquilo que em música se chama interpretação – inclusive a partir

de nossas trajetórias estéticas e afetivas no campo da música – que fica difícil

escolher por onde começar e decidir sobre o que vale e o que não vale a pena

investigar.

Então as escolhas foram feitas pelo nosso percurso profissional e afetivo

como já dissemos, e, principalmente pela curiosidade e pelo espanto que as obras

acima descritas trouxeram para o nosso fazer musical. O questionar o novo à luz do

antigo e o antigo à luz do novo, esta é a dialética que nos move neste trabalho. O

divino e o humano, o trágico e o lírico, são aquilo em que vale a pena nos

debruçarmos; são aquilo que provoca o desejo e cria sentido. Música, desejo e

sentido, estas as sendas em que nos debruçamos e que nos provocam nesta

caminhada, sob a invocação e a bênção das musas.

Julgamos importante dizer que a análise e a interpretação, mais do que

imprescindíveis, são partes constitutivas do próprio acontecer do fenômeno musical.

Remetem à avaliação da estrutura formal da obra, de suas características estilísticas

e do seu entorno espaço-temporal. Mas remetem também às escolhas que o

intérprete/ executante faz sobre a maneira como a obra deverá ser interpretada.

Tudo isso imprime um corpo sonoro e poético à obra musical e sedimenta as


24

características que o intérprete pretende realçar durante a performance da obra.

A análise remete à observação e ao entendimento da “gramática musical” que

constitui os aspectos formais da obra, como já foi dito. A interpretação transforma

esta retórica sonora em realização poética, quando o artista, antenado com as

possibilidades que a obra apresenta para o seu aparecer, se permite ouvir aquilo

que as musas lhe autorizam ouvir e fruir. Ambas são, portanto, fundamentais para o

acontecimento da performance musical.

Ser tocado pelas questões e evocar o pensamento em sua dimensão

originária foi o empenho aqui realizado; alcançar a clareira que ilumina e conduz ao

esclarecimento é o que não pudemos perder de vista, pois todo iluminar traz à

presença o que antes estava oculto. Dito em outras palavras, todo iluminar é sempre

um acontecimento propiciador e apropriador tanto da descoberta quanto do

desabrochar de uma questão.

A produção do sentido, ou seja, da verdade de uma obra musical – e o

mesmo vale para todas as artes – não é dada por conceituações ou esquemas

estabelecidos a priori, mas tão-somente pela escuta de como a obra opera na sua

manifestação de mundo. Rohden afirma, acerca da experiência da arte, que “a

verdade é mais que adequação da inteligência à coisa ou vice-versa, ela é uma

experiência que possui os traços da experiência da obra de arte .” (in CASTRO, 2005,

219).

Pensar, portanto, a hermenêutica da música sem dissecá-la em "tecidos"

distintos, preservando e enriquecendo o dizer da obra e deixando vir à luz a sua

poética? A poética é algo que já está lá, no sono da obra ou se constrói na sua

performance? Estas foram algumas das questões norteadoras deste trabalho.


25

2. A HERMENÊUTICA E SUAS QUESTÕES

2.1 A HERMENÊUTICA: CAMINHOS

Hermes, tu, mais do que todos os outros deuses, és o mais querido para ser
companhia do homem... Hermes gosta de se associar aos homens para
garantir um desejo ou para torná-los invisíveis... É da natureza de Hermes
não pertencer a qualquer localidade e não possuir habitação permanente;
ele está sempre a caminho entre aqui e acolá. (AGUIAR, 2004, p. 123).

De que trata a hermenêutica?

A hermenêutica trata da compreensão de um texto e dos caminhos que levam

a esse compreender; esses caminhos são o método que permitem a compreensão;

esses caminhos são metá-hodós, “caminho do entre” em grego, o caminhar que se

faz caminhando e que, através deste percurso, produz o esclarecimento e o

desvelamento, bem como o velamento, daquilo que se pretende compreender. A

palavra hermenêutica:

deriva-se de hermeneutike, cujo sentido se determina pelo verbo


hermeneuein, que os romanos traduziram com interpretari. Hermeneuein,
hermeneia e hermeneus não dizem, como sempre de novo se ouve,
esclarecer no sentido de conduzir uma coisa estranha e obscura para o
âmbito claro e familiar da razão e do discurso. Esta maneira de se entender
a hermenêutica parte de pressupostos indiscutidos. Por um lado, supõe que
razão e discurso são a coisa mais clara do mundo. Por outro, que o
originário e decisivo é a discursividade e a racionalidade. Pois precisamente
estes pressupostos é que discute e questiona o pensamento radical. O
originário e decisivo não é o inteligível e racional, mas o inefável e o
mistério. (LEÃO, 1997, p. 248).

Hermenêutica vem de Hermes, o deus dos caminhos, da ambiguidade e da

magia.

Hermenêutica, neste sentido, nos remete para o deus mensageiro Hermes.


Mas ao contrário do que se possa pensar, Hermes não é mero mensageiro.
Ele é a própria mensagem que se doa na construção de mundo e sentido. A
mensagem anunciada por Hermes não é relato daquilo que ainda está por
vir, mas sim travessia poética para o Mistério da Linguagem. Interpretar o
26

que Hermes revela velando e velando diz torna-se possível na medida em


que nos dispomos na ausculta do dizer do mistério nas vozes da obra.
Nesse sentido, hermenêutica nada mais é que o acontecer da Linguagem
na estrutura de toda obra poética. Por isso, o mito de Hermes não se limita
apenas à mediação entre mortais e divinos. Ele é mais! Palavra originária na
qual o silêncio e a fala, o oculto e a presença, a identidade e a diferença, a
ação e o repouso, o tudo e o vazio são sempre um e o mesmo, Hermes se
8
concretiza como a manifestação do próprio mistério.

A dinâmica da compreensão das obras é a dinâmica do movimento das

coisas no mundo, de sua condensação e expansão; é o movimento, filho do tempo e

da memória. A busca incessante pelo entendimento deixa vir à tona a luz do

conhecimento das coisas do mundo. Essa luz é a verdade, aletheia, o perene ocultar

e desocultar, o que se mostra e o que se esconde.

No jogo poético da poiesis, há o diálogo da arte que é o homem, com a arte

das obras que se mostram como fenômeno. Pois, segundo Leão:

A grande obra de arte é o homem. Por isso, não depende se ele é filósofo,
se ela é artesão, se ele é cientista, se ele é técnico, se ele é político, se ele
é social, não depende disso. O fato de ele ser homem já é o percurso da
obra de arte. (in CASTRO, 2005, P. 120)

A dinâmica, dynamos, diz do movimento, do tempo e do próprio processo de

criação da physis e de sua poiesis e também diz da concentração e da condensação

dos elementos constitutivos das coisas que se dão a compreender.

No movimento e no tempo dados pela dinâmica da compreensão surge o

entendimento que gera o sentido e a clareza e que engendra a compreensão que é

sempre historicamente condicionada, pois a cada momento o ente que se mostra

está mediado pelo mundo das coisas, ou melhor, pela linguagem que a tudo cerca e

que está sempre em constante processo de mudança, o que é próprio do desvelar

da physis e de sua poiesis.

O movimento é o próprio processo gerador de luz e do calor que dão vida a

8
Depoimento sobre hermenêutica concedido ao autor por Verônica Araújo, UFRJ, 2010.
27

tudo que há. O movimento também é gesto e gestual interpretativo e poético;

celebração do potencial hermenêutico das obras, em especial das obras musicais,

onde tempo e memória engendram o movimento harmônico das esferas sonoras e

musicais.

Como este trabalho versa sobre as questões ligadas à hermenêutica da

interpretação e performance de obras musicais, devemos enfatizar que, para nós, no

caso da música, a interpretação e a performance são coisas distintas, porém

interligadas; ao longo deste trabalho iremos nos referir ora à hermenêutica da

interpretação, ora à hermenêutica da performance.

Do ponto de vista ontológico, a hermenêutica, aqui, é desenvolvida como

compreensão da verdade da arte enquanto questão poética. Segundo Aguiar:

Bem ao contrário do conceito, a questão de todas as questões da arte trata


de por em obra a passagem do não-ser para o ser (poiesis) como o
acontecimento da verdade. Nesse acontecimento se dá a mútua
apropriação de ser e homem, homem e mundo. A arte põe em obra o
acontecimento da verdade do ser, isto é, de seu sentido. Por isso,
radicalmente diferente do conceito, a questão da arte em seu acontecer
poético (in CASTRO, 2005, p. 72).

Para nós, aquilo que as obras musicais revelam e que demandam

necessariamente uma terceira pessoa para sua evidência, o intérprete – além,

obviamente, da própria obra e de um ouvinte – é mais do que o que “simplesmente”

aparece ou transparece na partitura ou na audição de uma música, até porque não

sabemos nem saberemos jamais o que a obra diz, totalmente.

Sua verdade, sua aletheia, é parcimoniosa e nunca se dá a perceber

inteiramente, pois não é possível ver a totalidade do ser da obra. O que podemos,

na qualidade de grande obra de arte, que é o homem”, é dialogar com ela e nos

transformar constantemente pela experiência deste contato transformador e

dinâmico.
28

Para Luiz Rohden, esse diálogo é o que constitui o diferencial da experiência

hermenêutica:

Assim, o modo por excelência de experiência – artística e hermenêutica – é


o diálogo. Por isso dizemos que “a interpretação resulta bela não porque
copie aspectos que satisfazem necessidades da vida, mas porque
corresponde a um modo de viver, não a um „viver em si‟, que haveria de ser
alcançado por alguma suposta sensibilidade ou genialidade, a interpretação
tem de viver-se, é experiência e existência. Assim, tanto o ler como o
compreender vem a ser [...] um fazer em que algo volte a falar de novo. (in
CASTRO, 2005, p. 211)

Então é a transformação propiciada pela experiência hermenêutica da

verdade – sempre dinâmica, ambígua e misteriosa – que buscaremos relatar em

nossas interpretações poéticas das obras musicais escolhidas. Cada um de nós terá,

a cada momento, sua experiência de verdade neste encontro amoroso e poético, o

que constituirá o sentido verdadeiramente hermenêutico da interpretação poética.

A filosofia hermenêutica se entende, não como „uma posição absoluta‟, mas


como um caminho de experiência de maneira que „a hermenêutica não é um
mero procedimento de leitura, nem uma simples técnica, nem uma atividade
isolada dos seres humanos, mas estrutura fundamental de nossa
experiência da vida. (in CASTRO, 2005, p. 210)

E é com esse intuito que este trabalho será desenvolvido: como estrutura

fundamental de nossa experiência de vida.

2.2 A INTERPRETAÇÃO E A PERFORMANCE COMO ATOS CRIADORES

Considerando que no campo da poética musical – ou da poética,

simplesmente, como nos diz Antonio Jardim: “A poética é, portanto a vigência, em

qualquer realidade ou em qualquer realização, em qualquer espaço ou brecha no

espaço, em qualquer tempo ou lapso de tempo, do que na música é música.”

(JARDIM, 2005, p. 155) – o intérprete pode ser um compositor, um instrumentista,


29

um cantor ou um maestro e que todos estão revestidos pela possibilidade de trazer à

luz o que estava oculto na obra, surge a pergunta: será que o poético da obra existe

em si mesmo haja vista tantas possibilidades interpretativas?

Segundo Jardim:

O poético é, portanto, a dimensão mais própria do fazer, como o fazer que


se constitui habitação do desconhecido e que, em sendo assim, dá ensejo a
que este desconhecido possa vir a ser conhecido, venha desencadear um
processo de co-nascere, isto é, o que se produz mediante a possibilidade
de realizar a experiência de nascer junto a, cada vez. (JARDIM, 2005,
p.186)

A resposta dessa pergunta pode nos remeter ao fragmento do pensador

Heráclito de Éfeso no qual entramos e não entramos no mesmo rio duas vezes: “No

mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos”. (ANAXIMANDRO, 2005,

p. 71).

Cada vez que temos contato com uma determinada obra, estamos e não

estamos diante dela mesma. O que a obra nos concede, enquanto manifestação

poética, são novos mergulhos no seu próprio silêncio, porém, o silêncio da obra não

é o seu esgotamento, mas condição de novas possibilidades de acontecimento. Por

isso, estamos e não estamos diante da mesma obra. Toda obra de arte firma-se e

confirma-se como espaço infinito de versões interpretativas sendo, portanto,

polissêmica por excelência.

No seu texto “Gadamer e as questões da arte: arte e verdade em Hans-Georg

Gadamer”, Rohden, ao afirmar que um dos pressupostos fundamentais da

hermenêutica é o fato de que não é possível interpretar algo que possua sentido

unívoco, cita Gadamer e diz que: “A arte requer interpretação porque é de uma

multivocidade inesgotável” (in CASTRO, 2005, p. 214). Ainda no mesmo parágrafo

ele ressalta que, segundo Gadamer, “só se pode interpretar aquilo cujo sentido não
30

esteja estabelecido, aquilo, portanto, que seja ambíguo, „multívoco‟” (in CASTRO,

2005, p. 214).

Quando tratamos de uma obra musical, devemos lembrar que a interpretação

e a performance são co-partícipes, não exatamente do ato criador, o que

pressuporia um momento do fiat lux, mas sim do processo criador. O ato criador é o

instante no qual o compositor decide e começa a compor, todavia, no momento da

decisão de compor existe o fazer enquanto produção de um artefato – techne e o

fazer poético, que é o instante no qual a obra opera. Após a decisão de compor, o

compositor desenvolve o processo criador, utilizando o arsenal teórico, técnico e,

sobretudo poético, para ir compondo a obra.

Considerando ainda que a performance poética, no contexto deste trabalho,

refere-se à atuação do intérprete ao “revelar” a obra para o seu ouvinte, ou seja,

para a sua plateia, o que significa interpretar uma obra musical?

Para Antonio Jardim:

Ouvir ou performatizar uma música é uma experiência única e impossível de


ser substituída ou representada. É a vigência da unidade que faz eclodir
sempre a diferença. Se há substituição ou representação o sentido se esvai,
se perde, não se apresenta. O saber do bardo é presença constituidora,
jamais ausência substituída por representação. Não há possibilidade de que
uma narrativa acerca de música valha por sua audição. O sentido musical
se retrai na ausência. (JARDIM, 2005, p.191)

Interpretar uma obra, em música, quer dizer penetrar nos interstícios do seu

silêncio e deixar que o mesmo instaure o dizer. O intérprete ou executante, por sua

vez, é aquele que executa a obra ao cantá-la, tocá-la ou regê-la. Para Antonio

Jardim:

O fazer poético é aquele que, de um modo ou de outro, desencadeia, como


sua própria condição de possibilidade, a vigência da possibilidade de
encaminhamento do desconhecido ao conhecimento, ao co-nascimento.
(JARDIM, 2005, p.186)
31

Não levantaremos aqui, no entanto, a possibilidade de considerar o

compositor da obra também como um intérprete. É claro que não estamos

descartando essa possibilidade, até porque aquilo que o compositor cria configura,

de alguma maneira, a sua visão do que está por vir. O que o compositor / criador

compõe já se encontrava no seu imaginário não como paradigma a ser seguido, mas

como questão que se desdobra, em obra, no acontecer poético da arte. O processo

de criar uma obra não prescinde do entendimento prévio do que a obra de arte

inaugura. O criar de obras é sempre interpretação poética da dinâmica da realidade.

A obra de arte, à sua maneira, abre inauguralmente o ser do sendo. Na obra


acontece esta abertura inaugural, ou seja, o revelar; ou seja, a verdade do
sendo. Na obra de arte a verdade do sendo se pôs em obra. A obra é o pôr-
se-em obra da verdade (HEIDEGGER, 2010, p. 95).

Em música, o ato criador acontece quando o compositor resolve compor e, na

sua intenção, surge a tensão que gesta o parto da obra. O ato criador não é

obscuro, e sim o anúncio do “Mistério da Linguagem”. É o fazer e o desabrochar não

só do processo criativo, mas da própria arte circunscrita no âmbito da poiesis.

Como tensão entre o que se oculta e o que se revela no ser do ente, o ato

criador manifesta a verdade não apenas como vontade ou determinação do artista,

mas como o que, em um só tempo, vela e desvela. A obra de arte é também o

repouso quando à obra permite que se apresente e ilumine a clareira da existência

deste novo ser no mundo.

O ato criador, embora esteja mais ligado ao momento inicial da “inspiração”

do compositor, está sempre sendo atualizado no ciclo de velamento e desvelamento

da obra, até porque, sendo a obra musical dinâmica e sujeita a revelações sem fim,

manifesta o acontecer da physis e de sua poiesis.

Assim, o ato e o processo criador são inseparáveis e, a cada instante que o


32

compositor avança no processo de composição da obra, ele também está

introduzindo novos atos criadores, novos fiat lux. A decisão de caminhar por aqui ou

por ali no processo composicional está sempre trazendo à luz a questão da decisão

poética na obra. Dentre as várias possibilidades que lhe são apresentadas, o

compositor decide continuar o processo, não apenas diante das teorias

composicionais, mas também e talvez, principalmente, obedecendo ao diálogo

interior que trava com o aceno da obra ainda em gestação. É a própria physis,

produzindo algo de novo no mundo, que sai da presença originária da obra e se faz

presente em ação e em co-criação no diálogo e na ausculta da obra que vai sendo

gestada e se dá como presença poético-ontológica, pois:

Assim como necessariamente o artista é a origem da obra, de um modo


diferente daquele que a obra é a origem, é também certo que a arte, ainda
de um outro modo, é, ao mesmo tempo, o originário para o artista e para a
obra (HEIDEGGER, 2010, p. 37 )

Esta magia circular que caminha pelo compositor, pela obra e pelo seu

processo de des-velamento é também o que se denomina de o círculo hermenêutico

do que não tem início nem fim. Podemos dizer, então, que o ato e o processo criador

caminham juntos e são um e o mesmo, porém não a mesma coisa. O que há, no

entanto, é um caminho apontado pelo gesto do compositor da obra. Este sim é que

se concretiza como o agente inaugurador, se assim podemos dizer.

A interpretação musical, neste contexto, nada mais é do que a compreensão

de como se dará a performance / execução da obra. Por outro lado, a performance

propriamente dita é o momento mágico sem volta em que se dá o despertar da obra

no ouvinte. Filha do tempo e da memória, a performance vige em um instante único,

irreparável e irreprodutível.

Entretanto, em música, a palavra performance normalmente tem um viés

ligado à comparação entre performances ou escolas de interpretação musical.


33

Para Antonio Jardim, “nós, músicos, estudamos análise, um pouco, nesta

esperança. Saber como foi para poder saber como será. A nossa expectativa de

unidade advém de uma memória verossimilhante”. (JARDIM, 2005, p. 100)

Nós achamos que a simples análise não dá conta das escolhas performáticas

e é necessário que o percurso da tradição e a própria novidade que o diálogo entre

obra, intérprete e ouvinte instaura, entre muitos outros fatores que estão sendo

mencionados neste trabalho, colaboram para o surgimento da performance em um

momento singular de “aparição” da obra.

A questão da comparação é inata em relação ao fenômeno interpretativo

musical – e fenômeno deve ser entendido, aqui, como aquilo que se mostra e se dá

a conhecer. Isso decorre de que existem não só várias tendências de estilos

interpretativos, mas também a limitação das condições práticas e pragmáticas do

aparato musical que o músico tem à mão.

Do ponto de vista teórico-musical, podemos destacar alguns parâmetros que

os regentes de orquestra p.ex., utilizam para traduzir (interpretar) a partitura

seguindo, ou não, as indicações do compositor: no que se refere aos instrumentos,

os originais versus cópia, o material utilizado na fabricação dos instrumentos, a

afinação ou o diapasão9, as ornamentações citadas em tratados, que podem ser

mantidas ou não, os andamentos, a quantidade de instrumentos, a expressão

musical, mais seca ou mais romântica, entre outros.

É importante ainda ressaltar que a interpretação dada pelo regente apresenta

sempre um viés comparatista10, porque o comparatismo, em música, são os

diferentes acenos que uma mesma obra apresenta para o ouvinte. Esse viés

9
No período Barroco as afinações eram feitas um semitom abaixo da afinação de hoje, que tem o lá3
= 440 Hz.
10
Iremos abordar melhor a questão do comparatismo na música quando tratarmos a Seresta nº 5,
Modinha, de Villa-Lobos.
34

comparatista é fecundo e não mera comparação banal. É fecundo e fecunda as

versões que ainda estão por vir, da mesma obra, no tempo e no espaço.

Contrariamente à escultura do Davi de Michelangelo, que é uma obra pronta e

dada para sempre – excluindo-se as intempéries e o desgaste natural do tempo - e

que depende apenas da interpretação do seu apreciador, a interpretação de uma

obra musical envolve, até o momento da sua execução, diversos parâmetros. No

caso de obras com partitura musical moderna temos, no caso de uma orquestra, a

figura do regente que, a partir de uma mesma partitura, e à luz dos parâmetros já

citados, entre muitos outros, bem como de sua intuição poética no momento da

performance, irá determinar a feição da obra.

A obra musical nunca está dada, ou seja, acabada para sempre. Ela sempre

irá depender do intérprete e da sua performance. Esse caráter de inacabada não é

exclusivo da música. Acontece com todas as artes cujo ser originário é o tempo,

como, por exemplo, a dança, o cinema e o teatro. Quando tratamos da arquitetura, a

interveniência do tempo se dá pelo apreciador, mas não tem a figura do intérprete /

executante intermediando a obra, ou seja, não há performance.

Para Rohden, esse dom hermenêutico de “fazer falar de novo o texto” não é

algo dado a priori, mas é sempre uma tarefa, ou seja, ser capaz de compreender. (in

CASTRO, 2005, p.212)

Cada intérprete possui sua visão própria de como a música deverá ser

interpretada na sua vigência técnica, expressiva e dinâmica. Apenas quando uma

determinada interpretação se torna canônica, ela cria o que se chama de “escola”.

As escolas, de um modo geral, se referem à maneira com que uma

determinada cultura “canoniza” a obra. Às vezes, a questão da escola pode se

aplicar a um determinado período histórico, país ou continente. O idioma local e a


35

cultura de uma determinada população podem afetar a maneira como se concebe

determinada obra, ou, mais provavelmente, um determinado estilo musical. Sendo

assim, uma escola de interpretação musical nada mais é que uma vertente

interpretativa com visão própria e específica de como a música, estilo musical ou

gênero musical deverá “soar”.

Nas músicas mais afastadas da tradição clássico-romântica e europeia, mas

que ainda permeiam toda a nossa cultura musical ocidental, e na chamada música

antiga, esta questão da “escola” se torna mais patente por conta do distanciamento

no tempo e pelo “esquecimento” dessas músicas e estilos musicais. Faz-se

necessário um recriar, um re-interpretar, que podem se dar tanto por via de uma

volta ao passado originário dessas músicas – o que é bastante questionável – ou por

uma “atualização” à luz das concepções mais “modernas” de performance musical –

o que também é questionável.

Como solucionar este impasse? Esta é a grande questão do revival da música

antiga europeia: o que é possível resgatar na sua autenticidade e pureza e o que é

preciso recriar, por falta de informações fidedignas11.

O que permite que o executante traga à vigência aquilo que foi decidido

acerca da interpretação da obra é a memória. Seja por meio da observação

perceptiva da escrita ou da audição, como também da apreciação do que o

compositor desejou perenizar, a memória resguarda não apenas o que é digno de

ser lembrado, mas, principalmente, o que manifesta o sentido poético da arte.

É por isso que, em música, tempo e memória fazem a travessia entre a

intenção fugaz do criador e o gozo do ouvinte, pois o tempo e a memória são

caminhos que conduzem a obra e são, na verdade, a própria obra. Porém tempo e

11
Trataremos do revival da Música Antiga quando abordarmos, no capítulo 3, as cantigas medievais
ibéricas.
36

memória são fugazes e passam rápido:

Matérias-primas inefáveis e inconsúteis, indizíveis e inteiriças, o tempo e a

memória dão-se a acontecer no momento mágico e hermenêutico da performance

musical. O tempo como o próprio elemento que permite a existência dos sons

musicais por meio da vibração das partículas da matéria, e a memória como tempo

humano, tempo afetivo que traz a possibilidade de realização das coisas. Tempo e

memória são um e o mesmo, e conferem o tom da performance e atualizam o

sentido da interpretação, da apreciação e da percepção musical, configurando,

assim, a obra na sua plenitude.

A performance / execução da obra musical acontece no momento do

descortinar da obra para o ouvinte da plateia. Descortinar é descobrir, tornar

manifesto, revelar. Entregue à ação de desencobrimento acontece a physis e a

poiesis da obra, daquilo que brota de si mesmo e que se revela, infinitamente, na

sua plenitude mágica e plural. A performance é, portanto, única e irreprodutível. Aqui

não estamos considerando, obviamente, a reprodução eletrônica. Mas essa também

é plural, pois é próprio da physis o constante desdobrar-se em um desvelar sem fim

do ser do ente.

Há quem considere o ponto culminante de uma obra a sua performance. Uma

obra musical, ao contrário do que se possa supor, não tem um ponto culminante.

Ora, culminar não seria completar, terminar, encerrar? Do ponto de vista da

fraseologia musical, há algumas definições e considerações a respeito do ponto

culminante. O ponto culminante seria, grosso modo, o momento de tensão máxima,

do máximo esgarçamento das alturas, durações e cadências harmônicas.

A explicação disso demandaria algumas considerações do ponto de vista da

teoria musical, mas essa não é a questão principal que aqui se coloca. Do ponto de
37

vista poético, o ponto culminante de uma obra simplesmente não existe. O que há é

um círculo hermenêutico, sem começo nem fim no qual a obra se dá sendo pensada,

sentida, analisada, apreciada, interpretada e executada12. O ponto culminante, caso

exista, é a respiração presa, a agonia, a palpitação, o êxtase que acontecem quando

a obra poética, poetizante e vigorosa, acontece no mundo.

Ao acontecer da execução musical chamamos de performance, mais

conhecida em música como interpretação. Em todo esse círculo criativo está sempre

presente a ideia da interpretação: no criar, no apreciar e na interpretação

propriamente dita. Por isso, podemos dizer que tanto a interpretação quanto a

performance são momentos criadores no âmbito do fazer musical. O que as

diferencia é mera questão de foco. Ambas constituem o mesmo fenômeno em que a

magia do círculo hermenêutico se faz presente sempre sendo e não-sendo, portanto,

a mesma coisa.

Quando se focaliza o momento da execução da obra para um ouvinte ou

plateia, chamamos de performance a obra executada por um intérprete. Somente no

momento da execução é que temos a performance. Por outro lado, o termo

interpretação abrange não só a performance, como também as etapas anteriores da

“produção” da obra musical. E aqui a palavra interpretação está mais ligada ao

sentido originário de valorização, de decisão e das escolhas feitas sobre a coisa em

questão, no nosso caso, a obra musical. Em suma, do diálogo entre a fala da obra e

a escuta do intérprete.

A interpretação é sempre uma decisão e uma escolha, um acordo entre um

possível caminho, dentre tantos outros caminhos possíveis de serem percorridos no

processo de produção e recepção da obra, se é que podemos dizer dessa forma. Na

12
Aqui nos referimos não só ao músico executante, mas ao ouvinte da plateia. Na realização do
processo descrito anteriormente, todos são ouvintes, intérpretes e criadores. Entretanto, não
podemos nos esquecer de que a obra musical tem pai (ou mãe), sempre.
38

decisão e na escolha está sempre presente a questão da comparação, pois, na

nossa maneira de ver, a comparação é inerente à interpretação, até mesmo por

força da etimologia do termo interpretação, que diz da decisão e escolha do valor da

coisa que se pretende conhecer e trazer à luz do entendimento e da apreciação.

Interpretar, isto é, criar uma obra, é deixá-la ser e é penetrar no seu mistério.

O mistério do impetus criador não significa, evidentemente, um processo mágico, em

que, por obra e graça dos deuses, o artista exterioriza algo surgido ex-nihilo. A sua

existência de ser social que se comunica, que apreende e transforma, faz supor que

haja sempre algo que está e não está presente. Essa fenda de presença e ausência

é o que permite à obra acontecer como obra, ou seja, como sentido que opera as

transformações entre o conhecido e o desconhecido. No mistério da criação e na

sua fase visível, a obra, surge algo novo e que não estava no mundo, mas que

também não podia deixar de estar. Obra é, portanto, o ato criador.

2.3 O MÚSICO INTÉRPRETE E O TRADUTOR INTÉRPRETE

Sabendo que a tradução pode ser deflagrada pelo espanto inicial que uma

determinada obra pode provocar no seu apreciador, ainda assim faremos a

pergunta: o que significa traduzir? Sempre que pensamos na tradução de uma obra

nos remetemos, imediatamente, para o texto literário. Ora, a tradução de uma obra

não se restringe ao texto escrito. Há várias possibilidades de traduzir como, por

exemplo, a tradução de legendas para um filme e a tradução simultânea. Na

verdade, quando traduzimos não transcrevemos, mas deixamos que a própria obra

se manifeste. É justamente nesse irromper da obra que o tradutor “capta” o que

antes estava velado.


39

Tradução, para Houaiss é:

Aquilo que reflete, que expressa de modo indireto; repercussão, imagem,


reflexo. Ou: ato de tornar claro o significado de algo; interpretação,
compreensão, explicação.... Do latim traduco, is „levar para lá, fazer passar,
dar em espetáculo, traduzir. (HOUAISS, 2009, p.1683)

Entretanto, a tradução de uma obra de arte, seja em idioma estrangeiro ou em

vernáculo, não se limita, como citado anteriormente, na transcrição lingüística de um

idioma para o outro, e sim na interpretação do aceno que a própria obra enseja. Por

isso, traduzir nada mais é senão a possibilidade de trazer à presença o ser da obra;

é a possibilidade de penetrarmos no mistério da própria obra.

Uma mesma obra pode ser traduzida de maneiras distintas. Isso decorre de

que a experiência com o poético não segue um paradigma determinado

previamente. O aceno poético é plural e a obra, enquanto aceno poético, enseja

sempre inúmeras possibilidades interpretativas. Cada tradutor, portanto, lança um

olhar peculiar para a obra e é justamente nessa peculiaridade que o operar da obra

instaura sua multiplicidade interpretativa.

Quem é, no entanto, o tradutor?

O tradutor é aquele que “rouba” aquilo que foi dado pelo espanto da obra e

nos devolve, de maneira singular, uma possibilidade originária de sentido poético. A

tradução de uma obra configura sempre o combate entre a obra e o seu apreciador,

já que o exercício de traduzir é sempre uma escuta da fala da obra apesar de que,

segundo Rohden, no que concerne à arte, “O conhecimento conceitual não pode

traduzi-la adequadamente” (in CASTRO, 2004, p. 214).

Tradução é interpretação. Interpretação é tradução. Ambas não acontecem

isoladamente. Só podemos traduzir e/ ou interpretar uma obra porque esta já se

mostrou.

Sendo assim, podemos compreender o fenômeno interpretativo como, por


40

exemplo, a tradução de um texto escrito, a atuação artística no palco, o ato criativo

musical e a atualização da “mensagem” do compositor – através de uma nova

compreensão ou entendimento da obra -, a tradução de poesias utilizadas como

letras de canções, que também se reveste de um forte componente interpretativo, e

também a possibilidade mais sutil de tradução que é a “musicalidade” de um uma

obra literária13.

Para Jardim:

A música é o mistério insondável de um modo de substantivamente


apresentar-se e, dessa maneira, configura sentido e restabelece sempre a
possibilidade do mistério não se deixar decifrar. Assim, por seu
característico modo de ser, resguarda o real tanto das tentativas de
circunscrever-se a uma mera ordenação de realizações, quanto de se ver
trocado por sua própria representação. (JARDIM, 2005, p.172)

Entretanto, para nós, o tradutor, por sua vez, é um intérprete e como tal

descola e desloca a obra do papel para a imaginação do ouvinte que, por sua vez

fará a sua interpretação da obra. Essa interpretação do ouvinte criará, por sua vez,

uma nova obra, fruto da sua experiência poética que é dada pela escuta da fala da

obra. Por isso, o tradutor não transcreve nada e tampouco o intérprete reproduz.

Traduzir e interpretar são sempre fenômenos co-criadores de toda arte.

Falamos de tradução aqui em virtude das questões poéticas sobre as quais

iremos nos debruçar ao longo deste trabalho: a música antiga medieval, em especial

as cantigas que utilizam o latim, o galaico-português e o castelhano, entre outros

idiomas, a ópera Orfeo, de Monteverdi - uma obra pensada a partir do mito grego,

cantada em italiano e traduzida para outras línguas através de legendas, a Seresta

nº 5, de Villa-Lobos, com poesia brasileira, mas já certamente traduzida para o

inglês e o conto “Minha Gente”, de Guimarães Rosa, autor cuja obra já foi vertida

13
A musicalidade de uma obra literária será abordada quando tratarmos do conto Minha Gente, de
Guimarães Rosa.
41

para vários idiomas.

Todos esses textos, com exceção do conto, têm letra e música. Trabalhamos

o tempo todo aqui com a canção ou com árias de ópera, que são, como já dissemos,

consórcios melódicos e poéticos.

Mesmo quando cantamos essas obras em idioma estrangeiro, sem traduzi-las

de fato, lá está presente a tradução, pois para a nossa própria compreensão da obra

é necessário que entendamos o que estamos cantando. O sentido poético do texto é

indissociável da sua “compreensão” e a sua interpretação e performance só fazem

sentido para o cantor e para o ouvinte se houver uma tradução, pelo menos mental,

do texto. Assim é como nós entendemos esse processo.

Quando trabalhamos com a canção, a tradução é um fator fundamental para o

entendimento e a apreciação da obra, como dissemos. O mesmo, entretanto, não

acontece com a música pura, aquela puramente instrumental, por isso levantamos a

importância de articular a questão da tradução em uma obra musical.

A clareza é fundamental na canção, mas até que ponto é possível ter clareza

em uma tradução? Aqui, retomamos nossa questão anterior: o fenômeno

interpretativo. O sabor das palavras nos remete, continuamente, para novas

possibilidades. A tradução, então, torna-se parte intrínseca de uma obra musical na

medida em que ela representa as culturas de um idioma.

Antes de entramos na questão propriamente dita do músico/ intérprete e do

tradutor/ intérprete faz-se necessário realizar um cotejamento entre as principais

modalidades de matrizes interpretativas com que lidamos no cotidiano, a saber: - a

interpretação como tradução de um texto escrito e que pode ser estendida à

tradução simultânea, que é um processo muito mais acelerado e dinâmico; - a

interpretação como atuação artística no palco a fim de realizar no mundo sensível


42

dos sons e imagens aparentes as intenções do dramaturgo ou autor teatral e que

também envolve a música das palavras com suas harmonias e polifonias e,

principalmente, é claro, a música programática ou ambiental da peça; - a

interpretação musical como atualização e comunicação das mensagens do

compositor e do poeta contidas numa partitura, ou, no caso da música popular de

um modo geral, como uma reprodução oral criativa da intenção do compositor, o

qual também muitas vezes é o próprio intérprete, até pela necessidade de, não

tendo o recurso do código escrito da partitura, mostrar para outros cantores como

realizar a obra.

Segundo Rohden, “a obra, de modo geral, em sua virtualidade - para

Gadamer – „faz soar uma espécie de espaço de jogo de possibilidades de

atualização‟” (in CASTRO, 2005, p.213).

A interpretação como tradução de um texto escrito, em que pese a

semelhança operacional com a leitura de uma partitura, tem como objetivo a exata

correlação de sentido entre duas línguas vernáculas, geralmente a língua materna

do tradutor e a língua na qual o texto será vertido, em que “a atuação do tradutor-

intérprete é marcada pela fidelidade e pela literalidade” (AGUIAR, 2007, p. 90).

A leitura do texto em vernáculo, ao ser vertido para o novo idioma deverá

primar, conforme costumamos observar, pela precisão e justeza das

correspondências, como também, na medida do possível, deverá resgatar a

ambiência poético-literária da obra original. De qualquer forma sempre estará

presente o impasse representado pela colocação “traduttore – traditore”, tradutor –

traidor, pois não é possível encontrar correspondências perfeitas, nem mesmo na

literatura comparada, de uma “mesma obra” traduzida para duas línguas distintas, ou

até mesmo nas versões de tradução do mesmo idioma.


43

Este caráter múltiplo do processo tradutório nos remete para uma questão

ainda não devidamente estudada, que é a tradução das poesias utilizadas como

letras de canções. Além da questão da parceria letra e música na canção, que já tem

os seus próprios percalços, calcados nos arranjos entre o texto literário e a melodia,

ambos com suas necessidades rítmicas e fraseológicas, nuances expressivas e de

adequação das acentuações dinâmicas e agógicas14.

Refletindo agora acerca das referências entre letras/ poesias traduzidas

utilizadas na mesma canção, verifica-se que se somam, evidentemente, todas as

complicações advindas da adequação da parceria letra/ música, como a fidelidade

ao espírito da obra, no caso, uma canção. O consórcio letra/ música irá demandar

um tratamento tanto poético como técnico para se ter, pelo menos, a “ilusão” de

semelhança ou identidade entre as obras. Cabe aí, portanto, investigar uma

complexa questão: trata-se da mesma obra ou não?15

No trabalho artístico-musical elaborado tanto pela adequação da poesia à

música, bem como pela tradução da poesia de uma canção, o que se espera, de um

modo geral, é que o “novo” texto se ajuste à estrutura fraseológica, melódica e até

harmônica da obra musical, como acontece nos musicais, na ópera, na música

popular, menos freqüentemente traduzida, nos hinos sacros e nas cadências

melódico-harmônicas. Entretanto, isso não é tudo, pois as correspondências

sensoriais -as sonoridades das palavras e dos ruídos, independente de sua

compreensão semântica - e afetivas também participam da parceria entre letra/

14
Dinâmica em música está relacionada com o volume sonoro; é o “aspecto da expressão musical
resultante de variação de intensidade sonora” (SADIE, 1994, p.269); já agógica é o termo utilizado em
um “tipo de acentuação que se baseia antes na duração (um certo repouso sobre a nota a fim de
enfatizá-la) do que na intensidade (Id., Ibid., p.12).
15
Essa questão será desenvolvida quando investigarmos o comparatismo na Seresta nº 5, de Villa-
Lobos.
44

música tanto na canção popular, no lied16, na música sacra, dentre tantas outras

possibilidades musicais.

Se levarmos em conta que o ouvinte, via de regra, desconhece a

conformação original da obra e considera aquilo que está ouvindo como uma

originalidade que se apresenta à sua audição e à sua sensibilidade, a

responsabilidade do tradutor/ intérprete aumenta. A necessidade de mostrar um

“frescor” na obra, ou seja, de passar a sugestão de que se ouve a concepção

primeira, faz com que o tradutor/ intérprete assuma o compromisso de “respeitar”,

sempre que possível, o movimento originário que gerou a obra.

A respeito da questão tradutor/intérprete, Werner Aguiar revela que:

A princípio, da mesma maneira o tradutor-intérprete não pode, ou pelo


menos não deveria interferir no significado do que originalmente se diz. Sua
atividade prima pela correta utilização de técnicas e recursos de
transformação e adaptação linguísticas aplicadas às línguas estrangeira e
materna. Assim, a atuação do tradutor-intérprete é marcada pela fidelidade
e pela literalidade (AGUIAR, 2007, p. 90).

Aqui, o articulista se refere ao tradutor técnico de um idioma para outro, em

que a precisão e a correspondência semântica são um fim em si. Desta forma,

reduz-se o espectro vocabular ao estritamente necessário e essencial para dar um

sentido o mais próximo possível, similar, entre o texto original e sua tradução. Ao

que parece, as sutilezas da língua e a expressividade dos vocábulos, bem como

suas possíveis conotações culturais e afetivas, não são levadas em conta, a

princípio. O objetivo é dar conta no menor tempo possível da “tarefa” que se impõe,

a saber, verter um texto, falado ou escrito, de um idioma para outro com o máximo

de concisão e objetividade.

Segundo Werner Aguiar:

16 Termo geralmente usado para a canção de câmara romântica, de Schubert a Wolf e Strauss.
(SADIE, 1994, p.536)
45

Na música, o intérprete, ao contrário, não pode simplesmente desaparecer,


pois, ao contrário do tradutor, ele não realiza a mera justaposição de termos
e seus significados precisos. Tampouco opera sistemas de significação
marcados pela correspondência e semelhança. A presença do intérprete na
música não pode simplesmente ser dispensada em virtude de não
reproduzir mecanicamente aquilo que supostamente o compositor
prescreveu. Em que pese o fato de muitos músicos defenderem a
necessidade de fidelidade ao compositor, isso simplesmente não ocorre
devido ao fato de que nem o compositor é capaz de prescrever com
exatidão coisa alguma, nem o intérprete é capaz de reproduzir as intenções
daquele fielmente (AGUIAR, 2007, p. 90).

Neste parágrafo, é importante entendermos o que o autor chama de

intérprete. Pelo que entendemos do seu texto, o intérprete é o executante, ou seja, é

aquele que faz a performance da música. Então, para ele, o intérprete é o músico

que “toca” a obra e, evidentemente não pode ser suprimido, pois, como já dissemos,

a “música dormita no sono do papel” e necessita de se transformar em matéria

sonora para ter existência plena. O intérprete faz este papel, o de traduzir – como

um fazer aparecer – a obra, fazê-la surgir à luz (e ao som) e à claridade do mundo

desperto. Precisa também, como é óbvio, de ouvintes ou platéia, muito embora esta

seja uma questão controversa, ou seja, se a música existe sem o ouvinte.

A questão da fidelidade ou exatidão de uma tradução é controversa e

redundante, no caso da interpretação musical, pois a verdade da obra, como já

dissemos, é plural e depende do diálogo poético que se estabelece entre a música

escrita e a percepção, a apreciação e a interpretação do executante. No entanto,

todas essas categorias são dinâmicas e vigem no tempo e no espaço afetivo e

cultural da memória e dos micro-sinais ou gestos que emanam do corpo e da mente

do intérprete, bem como de suas intenções poéticas.

De acordo ainda com Werner Aguiar:

o conceito de fidelidade nas artes, sobretudo na música, é absolutamente


inócuo, um resquício moral apenas. Sendo essencialmente criativa, isto é,
poética, a execução musical está diretamente ligada ao intérprete acima de
tudo porque a interpretação não é um atributo exclusivo deste ou daquele,
46

mas sim um acontecimento presente tanto no compositor como no


executante e, também, pasme-se, no ouvinte. A interpretação não é um
atributo, mas um acontecimento. (AGUIAR, 2007, p. 91).

Acreditamos que o único atributo essencial no processo poético de produção

da obra de arte musical, a saber: a composição, a interpretação e a performance

seja a humildade. Humildade aqui não deve ser entendida como subserviência, mas

como atitude de busca da verdade. Todos os agentes envolvidos na busca da

verdade da obra - o que, para simplificarmos, começa com o sonho do compositor -

devem estar, sempre, empenhados em desvelá-la, respeitando a ideia inicial do

compositor. Se assim não fora, estaríamos instalando o caos no processo

interpretativo.

Caos, aqui, não como o somatório das infinitas possibilidades poéticas de

desvelamento da obra, sua aletheia. Poeticamente, a instauração do caos é uma

atitude benfazeja de admiração e espanto perante um universo infinito de

possibilidades de realizações da obra. O caos que rechaçamos é o da falta de

sintonia com o autor e suas circunstâncias, bem como com seu estilo, história e

trajetória. Este seria então o nosso caos metafísico, limitado e desviante.

Então, para nós, a busca da fidelidade na obra musical é um imperativo do

fazer artístico e que não aliena as possibilidades expressivas e interpretativas como

uma contribuição legítima do executante.

Entretanto, o mesmo processo não ocorre na tradução poética de um texto

literário em prosa ou poesia. A questão estética sobe ao primeiro plano e o trabalho

da tradução focaliza mais a correspondência poética entre os dois textos, com a

dimensão dialogal do tradutor/ intérprete, que não só traduz, mas cria e recria outra

obra.

No caso da tradução técnica, isso também se dá, porém o foco é a concisão,


47

a objetividade e a clareza, como já dissemos. E também se dá porque não é

possível, em nenhuma relação de tradução e interpretação, a correspondência

perfeita, pois os falantes têm sonhos distintos, gerados no seio de seus idiomas

maternos. O imaginário poético que acompanha cada universo vernacular é sempre

especial e próprio, irredutível a qualquer outro apelo linguístico.

A interpretação musical que seguirá nas páginas deste trabalho não prescinde

de uma metodologia descritiva a respeito das fontes do fazer artístico de cada obra

escolhida. Por isso, o autor deste trabalho considera pertinente realizar, antes de

entrarmos na hermenêutica da obra musical, algumas reflexões sobre as questões

candentes que permeiam o discurso musical como, por exemplo, as distinções entre

o erudito e o popular, entre outras, porque a discussão entre o erudito e o popular

não prescreve jamais e prova disso é que todos os gêneros musicais que aqui serão

abordados têm profundas raízes no imaginário mítico e popular.

2.4 BREVE INTRODUÇÃO PARA A QUESTÃO DA OBRA DE ARTE

“A arte é um modo extraordinário de ser real. Não se trata de um saber fazer.


Trata-se do sabor de fazer. A arte erige em obra o sabor de lidar com a
realidade. Um sabor no qual surgem e se instalam possibilidades que,
entregue a si mesma, a realidade nunca chegaria a produzir e apresentar”
(LEÃO, 2000, P. 248)

Na seção anterior falamos da obra de arte como acontecimento poético de

mundo e sentido e indagamos sobre como pensar as diversas possibilidades

interpretativas levando em conta as diferentes correntes de performance musical

como um fazer musical ordenador de caos.

Segundo Antonio Jardim:


48

É pela música que se vai configurar uma modalidade de espácio-


temporalidade capaz de produzir, criar, engendrar, enfim, fazer manifestar
mundo. A arte das musas foi, é e será, portanto, um dos meios privilegiados
de ordenação do caos, isto é, produção de mundaneidade, enfim, de
configuração de mundo. (JARDIM, 2005 p.179)

O fazer musical da performance está permanentemente ligado à questão da

oralidade e da memória, pela tradição impregnada em qualquer realização da

música e pela expectativa do ouvinte ou da platéia; a ponte que liga uma dada

performance a um determinado ouvinte é, para nós, o sentido da música, é a sua

compreensão se manifestando através de sua poiesis, que instaura mundo. Para

Jardim, “é pelas musas e pela arte das musas, portanto, que se constitui a própria

mundaneidade do mundo, tanto na cultura grega arcaica, quanto em qualquer

modalidade de cultura oral”. (JARDIM, 2005, p.179)

Neste novo capítulo iremos pensar a respeito das possibilidades

interpretativas de alguns gêneros e obras musicais específicos, que, como já

prenunciados, são: as cantigas medievais portuguesas, o Orfeo de Monteverdi, a

Seresta nº. 5: Modinha, de Villa-Lobos e também uma obra literária, o conto “Minha

gente”, de Guimarães Rosa.

O empenho de interpretar poeticamente essas obras nos foi sinalizando sobre

a necessidade de aprofundarmos cada vez mais a questão da escuta da obra de

arte musical e, como já comentamos no cap. I: “A hermenêutica e suas questões”,

percebemos que esta escuta se dá em diálogo permanente com o ouvinte.

A respeito da escuta é bom ouvir o comentário de Werner Aguiar em “O mito

e as questões da arte”:

Nenhum modelo, como tal, é destinado à escuta e isso por estarem desde
sua proveniência ideal repletos e super-povoados dos mais diversos
discursos proposicionais. Pois onde se fala demais, pouco espaço sobra
para a escuta essencial. (in CASTRO, 2005, p.74)
49

E este diálogo provocado pela escuta é que irá sinalizar o método, ou

métodos, que darão conta das interpretações possíveis da obra, nas circunstâncias

de um dado momento. Para Rohden, “Assim, o modo por excelência de experiência

– artística e hermenêutica – é o diálogo.” (in CASTRO, 2005, p.211)

Isso quer dizer que não podemos separar as instâncias do processo

interpretativo em segmentos estanques de compreensão da obra. Entendemos que

a compreensão e interpretação de uma obra musical são indissociáveis da

percepção e do diálogo poético que se estabelece na sua escuta. Todos estes

elementos perfazem o ser da obra e são constituídos pelo método interpretativo, o

que vai permitir a sua performance final, num dado momento.

O operar da própria obra irá trazer à luz, ou melhor, ao som do mundo, aquilo

que esse diálogo autorizou: a sua vigência própria.

Nas obras a seguir iremos nos debruçar sobre estilos, épocas e contextos

diversos e buscaremos, por meio de uma escuta criteriosa, encontrar os métodos

próprios para interpretá-las. Esta busca se constituirá, principalmente, de um diálogo

fecundante de onde surgirá a revelação possível deste encontro.

Segundo Rohden, “a experiência, enquanto encontro com a linguagem da arte

é um encontro com um acontecimento não acabado e, ela mesma uma parte desse

acontecimento.” (in CASTRO, 2005, p.217)

Percebemos então que as emanações da obra para um determinado ouvinte,

em um determinado local e momento, são aquilo que a obra é e também aquilo que

ela pode ser, no seu infinito processo de encobrimento e desencobrimento. A

verdade da obra é a sua aletheia, é o que nela se guarda como sagrado e também é

a verdade do intérprete e do ouvinte.

Interpretar uma obra é percorrer o círculo hermenêutico de seu desvelamento,


50

que passa pela percepção, pela compreensão, pelo diálogo, pela interpretação e

pela sua performance.

Tudo isso é também o seu método e a sua verdade, pois o método se constrói

no caminhar da descoberta poética, que é a razão de ser do músico e do artista em

geral: interpretar, traduzir e iluminar com sons e gestos aquilo que sempre estará

faltando, preenchendo e dando sentido poético ao mundo - a arte, sua physis e sua

poiesis.

Nos exemplos que seguem procuraremos ilustrar o processo de

desvelamento dos métodos e das interpretações das obras de acordo com suas

próprias e inerentes características poéticas.

As cantigas medievais apresentam, logo de início, uma questão marcante,

decisiva e essencial para a sua compreensão: a distância no tempo -cerca de 7

séculos - e a dificuldade de compreensão de seus códigos de leitura, de percepção

e de interpretação das obras. Segundo Rohden,

a hermenêutica, in nuce, caracteriza-se como essa postura de criar pontes


seja ao modo de Hermes entre divinos e humanos, seja ao modo do
intérprete entre ele e uma obra, seja ao modo do artista entre ele e seu
tempo, seja entre quem interpreta e a obra de arte produzida por alguém
depois de um determinado tempo. Aqui já podemos perceber os laços
inextrincáveis existentes, desde sempre, entre hermenêutica e estética à
medida que ambos pontificam diferentes tempos ou recriam experiências
num determinado tempo (in CASTRO, 2005, p. 212)

Também para Rohden, a obra e o autor reproduzem “a atitude de Hermes, o

mediador de sentido”, pois “ambas criam pontes entre as distâncias temporais,

culturais e os diferentes tempos”.

Será abordada também uma questão essencial: o revival da música antiga no

século XX, pois esse movimento irá gerar toda uma pesquisa multifacetada e

multidisciplinar, cujo objetivo é “atualizar” essa música, ou seja, buscar entender

como ela se deu no passado para resgatá-la no presente. Para Antonio Jardim, “uma
51

grande obra é potencialmente sempre contemporânea, isto é, é capaz de concorrer

para o movimento da história qualquer que ele seja”. (JARDIM, 2005, p. 106)

As tentativas de compreensão dessas obras se traduzirão nas suas exegeses

e também nos seus métodos. Interpretação, método e pesquisa musicológica são

estatutos inseparáveis no resgate poético de músicas tão longínquas no tempo e na

memória, mas também tão próximas, como se verá adiante.

Segundo Rohden:

O autêntico modo de pensar e de conhecer efetiva-se enquanto arte de


fazer algo voltar a falar, isto é, de confrontar-se com o sentido de ser por ele
tocado e envolvido num tempo e espaço diferentes daquele em que algo foi
criado. Estamos às voltas com um modo de pensar que conserva a tensão
entre passado, presente e futuro à medida que não se pauta por um modo
de proceder ou pretensamente arqueológico ou puramente teleológico, mas
que articula, criativamente, no presente, um diálogo com o sentido que nos
precede e que nos procede (in CASTRO, 2005, p. 212).

No Orfeo de Claudio Monteverdi outros pressupostos metodológicos se

impõem pela própria natureza da obra: trata-se da primeira ópera moderna, escrita e

encenada em 1596, pela primeira vez, na Itália. Sua escrita musical é semelhante à

contemporânea, não acarretando problemas sérios de decodificação da partitura;

seu libretto está escrito em italiano moderno e é bastante inteligível; os instrumentos

da orquestra são todos razoavelmente conhecidos ou resgatáveis, na atualidade, por

meio da pesquisa musicológica, já mencionada, do revival musical.

Qual é o seu diferencial, então, no nosso ponto de vista? A palavra cantada

inteligível, que narra um drama humano e/ ou olímpico; a história que se conta, em

sinergia com o poder da música, será o fio condutor da interpretação poética da

obra, pois é isso que acontece na sua performance: os sentimentos humanos e

divinos do trágico e do lírico, contados e cantados a fiore di labri, à flor dos lábios,

com todo o sentimento colocado no personagem narrador, com a máxima

potencialização dramática expressa no gestual cantante do solista.


52

O texto dos libretti, ou seja, a história que está sendo contada, é o que

realmente importa na ópera daquela época. A música faz o contraponto dramático

com o texto, mas, embora não haja ópera sem música, o que importa realmente no

Orfeo, como já foi dito, é a história que está sendo contada, com intensa

expressividade dramática e teatral. Todos os instrumentos da orquestra, cenários,

iluminação, vestuário, tudo, sem exceção, está a serviço da história que é contada e

cantada.

Talvez tenha acontecido assim nas performances do teatro grego, nas ágoras

e anfiteatros dos tempos clássicos: música, texto e gestual dramático a serviço da

catarse e da purificação dos sentimentos.

Por tudo isso, nos detivemos na contemplação e interpretação poética da

história de Orfeo, e de algumas imbricações do texto com a música; como este não é

um trabalho técnico sobre música, optamos por um olhar direcionado à interpretação

poética do texto, com o contraponto da música, e não o contrário.

Já na interpretação da Seresta nº 5: Modinha, de Villa-Lobos, tudo muda de

foco e optamos por uma visão hermenêutica baseada na comparação entre

performances. O que causou a opção por este viés, o comparatismo, foi um estudo

que realizamos com esta obra musical - originalmente escrita para canto e piano -

executada por três cantoras absolutamente distintas em estilo, resultando em

performances também completamente distintas.

O que chamamos de comparatismo aqui vem de uma das acepções que

Houaiss dá ao termo: “figura que consiste em aproximar e cotejar duas idéias ou

coisas que tenham similitude total ou parcial, para criar uma tensão poética ou

visando à clareza”. (HOUAISS, 2009, p. 503)

A discussão a respeito do que se mantinha da partitura original e do que se


53

diferenciava devido às diferentes performances das intérpretes, que cantavam

obviamente a mesma poesia de Manuel Bandeira, suscitou inúmeras questões a

respeito da interpretação musical e da carga de significado de um texto apropriado

de formas tão distintas. Isso levou à elaboração de um caso sui generis de

comparatismo, em que a obra literária em questão, a poesia da música, é sempre a

mesma, e o que muda é a intenção das intérpretes revelada por suas performances.

Dessa forma, o viés comparatista acabou se impondo como o mais apropriado para

a interpretação poética da obra, ou das obras.

Na canção popular, de um modo geral, quem dá o “tom” da música é o

intérprete/ cantor. Cada artista desvela a obra como se sua música fosse, de sua

autoria, o que também é verdade. Esta especificidade da música popular cantada,

de praticamente trazer para o intérprete a “autoria” da obra, nos ensejou a trabalhar

pensando no intérprete como co-autor da obra, de fato. É muito comum, aliás, muito

mais comum do que supomos, que os créditos de autoria de músicas populares

sejam dados aos intérpretes, que se tornam “autores”, e os verdadeiros autores, que

elaboraram primordialmente a letra e a música, caem no esquecimento.

Pensando assim, achamos que as diferenças de interpretação apresentadas

pelos vários intérpretes cria “várias obras” a partir da mesma obra, o que nos lembra

o Heráclito de Heidegger, que diz: “Só o diverso pode ser igual” (HEIDEGGER,

2002, p. 262) e que a comparação entre elas se torna necessariamente uma forma

de entender a obra no conjunto das diferentes versões sugeridas pelos cantores.

Isso motivou a escolha do que chamamos de “comparatismo”, para a interpretação

poética deste tipo de música. As serestas de Villa-Lobos também são canções e

como tal podem ser compreendidas e estudadas neste contexto comparativo.

O último caso estudado é o conto Minha gente, de Guimarães Rosa, que


54

também chamamos de “O riachinho”, como uma licença poética. Nesta obra, plena

de paisagens, sentimentos e sensações sonoras, musicais, aromáticas e tácteis,

procuramos destacar o conteúdo musical, não só latente, mas também aparente,

que impregna toda a obra.

Este caso representou uma inversão e total mudança de foco na questão da

interpretação poética de uma obra musical. Não temos, aqui, música, mas, sim,

imagens literárias poeticamente musicais e, a partir destas imagens, buscamos

“desentranhar” a música oculta no conto. Isso constituiu para nós uma abordagem

em que o “riachinho” canta um conto e um canto. O nosso diálogo musical com a

obra passa, neste caso, pela poesia imaginante que impregna musicalmente toda a

obra. Buscamos aqui a música do texto e não o texto da música.


55

3. A MÚSICA MEDIEVAL

3.1 O REVIVAL DA MÚSICA ANTIGA: UMA QUESTÃO POÉTICA

A tentativa de resgatar a música de outrora, que chamamos de revival, é um

fenômeno recente, que começou de forma mais sistemática no início do século xx. O

revival da Musica Antiga não tem a intenção de reproduzir exatamente a mesma

música, sicut erat in principio17, pois isso só seria possível como uma utopia, e sim,

permitir a experiência do desvelamento e da interpretação poética da música de um

passado distante.

No entanto, a música do passado é também a música de hoje, pois o tempo

cronológico não se aplica às artes e muito menos à música, que é o próprio tempo

se dando a acontecer em forma poética.

Então, como questiona Antonio Jardim:

Como explicar, na contemporaneidade, a vigência de tantas obras do


passado? Apelar para o conservadorismo dos intérpretes e do público seria
simplista e bisonho. Naturalmente se o passado persiste se constitui e
constitui presente é porque o desafio se mantém no presente. Se
tentássemos configurar uma contemporaneidade apenas com o que é feito
hoje não conseguiríamos. Seria o mesmo que tentássemos abolir a
memória. Da contemporaneidade participa o presente e o que do passado
insiste por vigor. (JARDIM, 2005, p.105)

A musicologia apresenta algumas definições para a Música Antiga e alguns

musicólogos acreditam que mesmo as músicas dos séculos XVIII e XIX, do

classicismo e do romantismo, podem ser consideradas antigas. De uma maneira

geral e óbvia, a música antiga é aquela que não é a de hoje, ou, aprofundando o

conceito numa apropriação poética, toda a música já escrita e ouvida é antiga - pelo

menos é o que achamos que deveria ser.

17
Assim como era no princípio: alusão bíblica em tradução livre nossa.
56

Então, como dissemos, toda música é antiga, pois mal acabamos de criá-la

ela já se encontra no passado, mal acabamos de ouvi-la ela já aconteceu e não está

mais aí. Isto é próprio da música e de todas as artes temporais, pois assim é o

próprio tempo e é próprio do tempo. O que torna as obras novas, vivas e vigentes é

o olhar que lhes lançamos.

O homem busca sempre o novo, uma linguagem que seja sempre inaugural.

A performance da música é sempre um ato inaugural e novo, pois a arte não

envelhece, não tem tempo determinado e está sempre nos remetendo à origem.

Na verdade, existe uma classificação formal para o que chamamos de Música

Antiga que se inicia no período medieval românico e se estende até o final do

período barroco, em 1750, ano da morte de J. S. Bach.

Podemos dizer que não existe uma música antiga, mas várias. A musicologia,

ao longo do tempo, foi modificando o espectro temporal que temos deste tipo de

música, aproximando-a do século XX e afastando-a para passados cada vez mais

remotos, à medida que avançam os estudos musicológicos e etno-musicológicos.

Tradicionalmente, os musicólogos consideram como Música Antiga a que antecede

ao período clássico-romântico.

O dicionário Grove de música diz que Música Antiga é uma:

Expressão usada, principalmente a partir dos anos 1960, para designar não
apenas a música de uma época antiga, mas também uma atitude particular
com relação a sua execução. Aplica-se por vezes à música da Idade Média
e do Renascimento (i.e., até 1600), por vezes também à do período barroco
(até 1750), porém, e cada vez mais, até 1800, incluindo assim grande parte
do período clássico. (SADIE, 1994, p. 632)

Esta música não é, ao contrário do que se possa pensar, tão perdida no

tempo e nem tão isenta de códigos representativos, a notação musical, como se

supõe. Aliás, a vigência da música ultrapassa a classificação em gêneros musicais

ou mesmo em períodos, uma vez que o cânone interpretativo não esgota jamais as
57

possibilidades do dizer poético da obra, pois teremos sempre o mistério, a magia e a

ambigüidade da arte.

Quando tocamos uma música do século XIV, hoje, ela passa a ser música de

hoje e quanto mais pesquisamos o passado dessa música, seja pela musicologia ou

pela história, mais nova essa música se faz, porque o diálogo com o passado torna

novas as coisas velhas.

O que suscita a novidade é o diálogo com o antigo e as coisas que julgamos

novas não são tão novidades assim, pois não há como rompermos definitivamente

com o que julgamos ser o passado. No caso da música e nem só da música, o que

torna velhas as coisas antigas é a dissimulação de intérpretes de hoje, que, ao

recriarem obras de tempos passados, pensam que podem dispensar a tradição, o

método e a visão poética.

O diálogo com a antiguidade musical, o revival, deve alterar os critérios que

utilizamos hoje para a performance, pois ao descobrirmos formas novas – que

também são antigas – de cantar, tocar e executar, somos afetados por essa

pesquisa histórica, que é um método de ausculta da obra e passamos a ter um

compromisso com a verdade da música. Essa verdade é aletheia na medida em que

realizamos um acordo e um esforço para entrar na vigência da musica. O revival é

um movimento dialético do passado com o presente que cria o novo na vigência do

antigo e esse algo novo é o que busca o revival: tornar novo o que era velho, tornar

atual o que era antigo. O revival torna contemporâneo o que era antigo.

A Música Antiga é uma música que encanta por sua novidade e o novo, para

o revival, é o perene e o que tem valores originários. A novidade do antigo é

justamente a sua antiguidade. Não devemos pensar o antigo como uma oposição ao

novo, mas como possibilidade de resgatar sua antiguidade enquanto tal, ou seja, na
58

sua originalidade. Quanto mais pesquisamos “o como” deveria ter sido aquela

música, mais ela se torna nova.

Nova porque olhamos essa música com o olhar de hoje. Não podemos

resgatá-la como era na origem, mas podemos trazê-la para hoje buscando manter o

seu sentido originário. A busca do sentido originário é retirar-lhe as cinzas e a pátina

do tempo e deixá-la eclodir.

O trabalho do revival da Música Antiga, do ponto de vista poético, é a

tentativa de resgatar a música originária – que nunca será encontrada tal qual era,

pois não se pode abarcar todo o seu ser, nem na época em que foi concebida e

muito menos hoje, devido à diacronia e ao paradoxo de buscar a presença de suas

nuances originais na diáspora do tempo e do espaço. O que importa é que quanto

mais pesquisamos o “como” deveria ter sido aquela música, mais ela se torna nova e

inspira novas possibilidades poéticas de interpretação e performance, como já

dissemos.

Como a música se dá na pura vigência do tempo, é próprio do seu ser aquilo

que é próprio do tempo físico e metafísico, ou seja, a fugacidade. Para nós,

entretanto, a música vai além do tempo simplesmente metafísico, é feita de tempo e

memória, e neste jogo que parece ser dual e dicotômico, mas não é, se dá o

processo de criação musical, sua poiesis. O tempo é seu leito e a memória seu

gozo.

O que constatamos na música antiga medieval, que iremos abordar aqui, é a

ausência de notações musicais precisas para os nossos padrões atuais e também a

impossibilidade de retroagirmos até a época de sua criação através de esquemas

de reprodução, impressos ou fonográficos, por serem inexistentes muitas vezes e

não apresentarem registros originais em partitura.


59

Trata-se, no caso das cantigas galaico-portuguesas, de música

essencialmente monofônica, ou seja, de apenas uma linha melódica - quando ainda

não se havia desenvolvido o canto em bases harmônicas modernas - baseada no

canto gregoriano e, às vezes, acompanhada de instrumentos rítmicos.

A escrita neumática foi a forma que os músicos medievais, principalmente da

Igreja, encontraram para registrar os sons das suas músicas; no mundo medieval a

transmissão e a fixação das músicas eram feitas principalmente de forma oral, como

também acontecia com outras formas de conhecimento. O canto medieval utilizou

esta escrita neumática que é uma espécie de linguagem figurada, feita de pequenas

linhas curvas colocadas sobre o texto e é relativamente limitada, para nós, na sua

possibilidade de decodificação.

3.2. A PRECISÃO E A INÉGALITÈ: CONSTITUINTES POÉTICOS DA MÚSICA

Os neumas não são precisos, mas é através deles que re-criamos, con-

criamos e re-memoramos a música, no entanto, é possível recriar essa música não

só através dos neumas. As iluminuras, o canto gregoriano, a oralidade são fatores

essenciais para o desvelamento dessa música. Isso decorre de que a vigência da

música medieval repousa na memória criativa e poética e não em reminiscências.

Enquanto oralidade e enquanto presença de um tempo não cronológico e de

um espaço geo-poético, a música medieval não carece de uma precisão matemática

pois ela ultrapassa os ditames da matematização de um mundo de medidas e

instaura uma espaço-temporalidade que lhe é própria, poética.

Talvez, a música sem partitura seja mais con-criativa que aquela que

apresente um registro escrito. Mas não estamos aqui para trabalhar com valores. O
60

atributo não dá conta da dimensão do fazer música, do ser da música. Por isso, o

que pretendemos não é reproduzir a música de outrora ou eleger a música de agora

como superior. O tempo da música não tem medidas, é acontecimento e como tal,

dá-se a cada instante.

Como esta música era muitas vezes funcional, como as cantigas de louvor e o

canto gregoriano, o processo de aprendizado se dava na convivência próxima no

espaço e era ininterrupta no tempo - no interior dos mosteiros e dos palácios e ao

longo das gerações - e, portanto quase dispensava o código escrito; esta escrita

neumática na verdade apenas "sugeria", com razoável grau de precisão para a

época, o movimento dos sons e das notas musicais associando curvaturas

ascendentes a sons agudos e curvaturas descendentes a sons graves , e o que

gerava a escolha entre os agudos e graves e a própria duração dos sons era o

sentido das palavras e a ondulação natural do discurso.

No trabalho de recuperação das músicas antigas podemos dizer que

transitamos entre o vigor e o rigor, embora não busquemos o rigor, e sim o vigor de

uma música cuja vigência é dada pela memória poética.

Numa partitura moderna temos a precisão, o rigor, e nos neumas temos o

vigor. Não se trata de uma imprecisão no sentido de que tudo é válido, uma vez que

a visão de mundo medieval é totalmente distinta da nossa. A partitura, que surgiu

por volta do século XI, com Guido D‟Arezzo, é não somente o registro matemático de

alturas e durações da música, uma memória metafísica, mas também é a memória

rememorativa e poética da música, se assim a soubermos ler, e esse é um dos

empenhos do revival musical: perceber o perene e o novo naquilo que foi

imobilizado na escrita musical.

Através dessa rememoração é que podemos executá-la “tal qual” o seu


61

compositor a idealizou, entretanto, não basta apenas dispormos da técnica para “ler”

e executar uma partitura. Podemos executar uma determinada obra de acordo com o

que está previsto na partitura, mas o que irá permitir o descortino da obra é a escuta

poética e dialogal entre a obra e o ouvinte.

Ora, a “imobilização” da partitura no papel não quer dizer que a música esteja

esquecida, ou pior, aprisionada em um registro escrito. O que confere sentido e

singularidade à obra musical, de qualquer época, são os distintos modos de

interpretação. Mesmo com seu registro escrito, a partitura musical, uma obra admite

várias performances dadas pelas diversas possibilidades hermenêuticas que ela

revela. É inegável que a partitura facilita a disseminação e a execução e impede que

determinada música se perca, mas a vigência da música se dá ao nível do poético.

Para Antonio Jardim, “é impossível se pensar o desenvolvimento da polifonia

ocidental e, por conseqüência, da própria música ocidental, dita erudita, sem que a

música pudesse ser escrita, sem que houvesse uma notação musical” (JARDIM,

2005, p.214)

Se a partitura fosse universal e tivesse precisão absoluta, como querem

muitos estudiosos da música, não haveria tantas interpretações e não teríamos a

mesma obra experienciada de vários modos. É próprio da vigência da performance

da música a desigualdade e a imprecisão ou, como os compositores franceses

barrocos chamavam: inégalitè.

No caso do barroco francês, as “notes inégales”18 designavam as

discrepâncias entre a escrita rítmica da música e a sua realização na performance.

Acreditamos que sem as “inégalitès” não haveria sequer interpretação

musical, pelo menos como a entendemos aqui. Este assunto, por si só, já seria digno

18
Segundo o dicionário Grove, as notes inégales são: “Uma convenção rítmica da música francesa,
principalmente do período barroco, segundo a qual certas divisões do tempo ocorrem em valores
alternadamente longos e breves ainda que sejam escritas de forma igual.” (SADIE, 1994, p.657)
62

de merecer uma monografia completa, no entanto queremos apenas salientar que a

inégalitè, na música – e também em todas as formas de comunicação - é a sua

própria possibilidade de vigência, pois, sem ela, a reprodutibilidade ou performance

seria impossível ou sem sentido.

3.3 O CANTAR POÉTICO DAS PALAVRAS E A NOTAÇÃO MUSICAL

A associação de palavras com melodias, no que denominamos de

correspondências lítero-musicais, foi sempre uma forma natural de fazer música,

desde os aedos gregos, pois, na fase oral da cultura grega “o aedo era o principal e

mais eficiente veículo de manifestação da memória.” (JARDIM, 2005, p.107) O falar

e o cantar são próprios da expressão humana desde tempos imemoriais e a

passagem de uma forma de expressão para outra constitui um continuum

inexprimível, a depender do estado de ânimo e da intensidade poética da fala e

escuta.

Segundo Harnoncourt:

É interessante saber que em várias línguas “poesia” e “canto” se exprimem


pela mesma palavra. Ou seja, a partir do momento em que a linguagem
transcende a sua função de informação prática e adquire profundidade, ela
está associada ao canto, pois com a sua ajuda, a mensagem, que
ultrapassa a simples informação, poderá ser expressa com maior clareza.
(HARNONCOURT, 1988, p.23)

O Canto Gregoriano é a base da música ocidental a partir do período

românico; este canto se desenvolve desde os primórdios do Cristianismo utilizando-

se dos cantos hebraicos e da música oriental da Ásia Menor, somando influências

várias do mundo que tinha constituído o Império Romano; a sua razão de ser é o

culto divino.

Podemos perceber a força originária destas músicas, que foram agregando,


63

desde tempos praticamente imemoriais, valores e sentidos com as experiências

vividas e de pensamento de tantas culturas e fazeres artísticos. Há muito de mistério

e magia nos sons musicais da nossa cultura ocidental, pois a pátina do tempo não

só os revestiu dos aromas dos vinhos envelhecidos nos imemoriais tonéis de

carvalho do tempo, como delegou-lhes novos sabores, quais rebentos novos que em

suas novidades carregam os segredos do mundo.

Novidade, maturidade e velhice, tempos dos homens, da vida e da cultura no

mundo. Tempos de se criar e de fazer música, arte e conhecimento. Tempos de

apreciação, diálogo, caminhos, métodos, interpretação e performance, como se dá

com a arte e em especial com a música, filha dileta do tempo e das musas, de

Calíope poética, de Euterpe musical e de Terpsícore dançarina19, e filha de Lino20, o

inventor do ritmo e da melodia, aparentado, segundo os mitos com Hermes, Apolo e

Orfeu21.

Paralelamente a esta música sacra temos os cânticos e danças medievais

profanas difundidos pelos menestréis e jograis, e também compilações como as

Cantigas de Santa Maria, de Afonso X e as Cantigas de Amigo, de Martin Codax, no

mundo medieval ibérico.

Neste mundo medieval, o que está em questão é o divino, diferentemente do

protobarroco Orfeu, que estudaremos a seguir, onde acontecem os embates entre

mortais e divinos, à luz dos sentimentos humanos. É como a distância que vai dos

cosmólogos primitivos que perscrutavam o céu em busca de explicações para suas

questões e o mundo utilitário e da reprodutibilidade vazia dos dias de hoje. Há uma


19
Calíope, Euterpe e Terpsícore são três das nove musas, filhas de Zeus e Mnemósina (BRANDÃO,
2000, vol. II).
20
Lino: “filho de Anfímero e de uma das musas, Urânia, Calíope ou Terpsícore. Cantor excelente,
desafiou Apolo para um certame. O deus, irritado, o matou a flechadas. A Lino se atribuiu a invenção
do ritmo e da melodia” (Idem, ibidem, p. 63).
21
“Segundo Vergílio, na Quarta Écloga, 55-57: Ninguém me há de sobrepujar com seus cantos, /
Nem Orfeu da Trácia, nem tampouco Lino, embora assistidos / Um por sua mãe, outro pelo pai: Orfeu
por Calíope, Lino pelo formoso Apolo” (Id., ibid, p. 63).
64

grande linha de tempo e de canto, um grande legato que une esta música antiga,

primordial e originária, às músicas de hoje.

Pois assim se dá com a arte, que é trans-temporal como as serestas de todos

os tempos, p.ex., que iremos também focalizar mais adiante neste trabalho e

também porque, segundo Antonio Jardim, “A obra de arte é sempre possibilidade de

contemporaneidade” (JARDIM, 2005, p. 112). O que permite o eclodir da arte é a

curiosidade e o espanto. Somente quando mergulhamos no mistério é que

sondamos as possibilidades infinitas de trazer à luz os entes sem fim desse ser da

música. No caso da música medieval, trata-se de uma música em que os cânticos de

louvor a Deus são o que confere sentido à vida e ao fazer musical.

Com o decorrer do tempo, ainda no período medieval, a paleografia musical

nos revela a evolução da escrita com a utilização incipiente da pauta musical - que

se tornou o lugar da representação dos sons musicais - e de neumas mais precisos,

pois inscritos no espaço da pauta musical; esta escrita deu mais definição e

delimitação aos cantos, permitindo que as músicas de um determinado centro

musical, palácio ou mosteiro pudessem ser cantadas num outro local ou cidade com

mais fidedignidade, sem o liame da transmissão oral, ao menos em parte. Estes

novos neumas tinham nomes curiosos, tais como: punctus, virga, torculus, porrectus,

entre outros, que sugeriam principalmente as entonações melódicas, ficando a

questão rítmica mais ligada ao sentido fraseológico do texto poético, de acordo com

a tradição.

A tradição oral e o legado musical da Igreja Católica, através principalmente

do Canto Gregoriano ou Cantochão, nos sinalizam, ainda hoje, embora de forma

imperfeita, caminhos para uma interpretação poética da música medieval. A

influência árabe e judaica na Península Ibérica tratou, por sua vez, de


65

descaracterizar - no sentido de mascarar o caráter próprio, se é que isto existe - o

legado do medievo português, enquanto possibilidade expressiva da música daquela

época, embora, no que diz respeito à dinâmica do fazer musical, a sua poiesis, todas

essas influências passam também a “constituir” a obra, pois a obra de arte está

sempre aberta, num contínuo fluxo dialogal com tudo que há.

No entanto, a imaginação criativa, alicerçada em dados da tradição musical

européia, bem como num movimento de pesquisa musicológica que remonta ao final

do séc. XIX, quando da redescoberta de Bach por Mendelsohn, tem produzido

centros de estudos - na Europa, América do Norte e América Latina - sobre a música

de época e a busca da "autenticidade" na Interpretação da chamada "Música

Antiga".

Acreditamos que o que se faz, na verdade, são releituras - cada vez mais

novas – das obras antigas e o que se busca de fato, está perdido para sempre, pois

somos cidadãos novos, já no século XXI, e os nossos ouvidos, nossa cultura e

sensibilidade jamais voltarão a ser como eram nos séculos XV, XVI e XVII, pois até o

ar e os sons do planeta mudaram. No entanto a busca da utopia, dos horizontes

móveis e as ambigüidades próprias do homem, podem ajudá-lo a produzir uma arte

sempre nova e renovada, mesmo quando se trata de échos du temps passé.

Para Jardim:

Se é verdade que não somos contemporâneos de músicos como Bach,


Mozart, Beethoven, não é menos verdade que suas obras são tão
contemporâneas nossas quanto as de Stockhausen, Boulez, Berio, Guerra-
Peixe, Villa-Lobos etc. Uma grande obra é potencialmente sempre
contemporânea, isto é, é capaz de concorrer para o movimento da história
qualquer que ele seja. A história é precisamente a contemporaneidade
vigendo como e com os acontecimentos memoráveis. Nesse sentido ela não
se distingue de qualquer outra época histórica, na medida em que, em
qualquer época a pretensão do ser humano é constituir e constituir-se como
memorável. (JARDIM, 2005, p.106)

A partir do séc. X, com Guido d´Arezzo, passou-se a utilizar os nomes


66

modernos das notas musicais, tais como as conhecemos hoje e também, pouco a

pouco, os ritmos e as durações musicais tiveram uma notação cada vez mais

precisa e, ao longo dos séculos foi sendo adotada a divisão proporcional das figuras

musicais, rigorosa, matemática e metafísica; aí podemos dizer que já se trata da

Notação Musical Moderna.

Com esta notação musical moderna é possível se descolar das "intenções de

um texto literário" e se criar novas músicas a partir do sistema de notação, o que

com a escrita neumática não era possível. Explicando melhor, com essa nova escrita

é possível fazer música independente de um texto prévio.

A passagem do período denominado de Românico – até o século XI – para o

gótico, no século XIII - período que focalizamos nas cantigas medievais ibéricas -

representa, no nosso entender, a passagem do pensamento musical linear,

verticalizado na sua intenção de ascese, e monofônico na sua textura, para a

tridimensionalidade polifônica. Passa-se da ascese para os afetos, da oralidade para

a escrita, do particular para o geral e do local para o universal.

O Renascimento na música, que se dá em meados do séc. XV, traz à

presença a Notação Musical Moderna plenamente desenvolvida. A partir daí o

sistema musical do ocidente passa da concepção "modal", baseada nos modos

gregos e eclesiásticos, para a concepção "tonal" das escalas maiores e menores; os

ritmos e os compassos – que tratam da duração dos sons e da dinâmica da

acentuação rítmica - adquirem uma característica racional e matemática com os

compassos simples (subdivisão binária) e compostos (subdivisão ternária); a noção

de harmonia se estabelece, com a superposição de sons com intervalos regulares e

previsíveis formando as "tríades".

A escrita vertical em acordes, consagrada posteriormente no Coral Luterano,


67

passa a conviver com a escrita horizontal das diversas polifonias. Como vinha

acontecendo desde o período Gótico, estabelece-se um código preciso com uma

relação biunívoca entre notas e sons musicais, entre figuras e durações musicais e

entre as frases (idéias musicais) e um número determinado de compassos; entramos

na representação simbólica "rigorosa e precisa". Aqui começamos a nos deparar

com a idéia da música abstrata ou absoluta.

A partir daí, poderíamos dizer que o compositor pode dispensar as emoções

ou as idéias ou as rememorações da vida e das funções e ritos cotidianos para

escrever uma música "pura", pois só depende das notas musicais (alturas dos sons),

dos valores ou figuras musicais (duração dos sons) e de um "processo"

composicional. Porém, tal não se dá, pois o mistério da criação musical sempre irá

permanecer como uma constante de tudo que se produz: a imprevisibilidade, a

inegalité, o diálogo, o tempo e a memória, tudo isso dinamiza as possibilidades de as

obras existirem e, mais que tudo, interagem com o seu criador, o que vem – mais

uma vez afirmamos – a constituir o diálogo, o método e o caminho para a ausculta

do ser da obra.

Como vinha acontecendo também desde o período gótico, a música

instrumental passa a disputar espaço com a música vocal; essa música,

instrumental, tem duas possibilidades de expressão: a que imita os sons das vozes

humanas e a sua representação própria, que não depende mais das limitações dos

sons das vozes, pelo menos em tese. Aqui já nos encontramos no período

denominado Renascimento.

A seguir, entramos no período barroco, que na verdade representa o que se

poderia talvez denominar de um corte epistemológico, quando o conceito de obra

musical se aproxima e se afasta ao mesmo tempo, de forma radical, de tudo que


68

aconteceu antes com a música ocidental. A música mesma muda de natureza e de

função e por incrível que pareça busca a primazia da palavra, da retórica e da teoria

dos afetos para valorizar o discurso musical e ser por ele valorizada; vai à Grécia

antiga em busca da Tragédia, do lírico, do sensual e do dramático; canta o amor dos

homens em sua plenitude, ri e chora; canta a dor dos amantes, dos abandonados

pelos Deuses - é a Ópera: a Obra de Arte Total preconizada pela Camerata

Fiorentina do Conde Bardi e outros intelectuais de Florença no alvorecer do séc.

XVII, como veremos mais adiante.

O Barroco representa, na nossa maneira de ver, o 1º grande revival da

música, pois volta-se para um passado distante de onde extrai a sua beleza, o seu

sentido e sua razão de ser e neste grande salto vai arrastando e agregando

estéticas, linguagens e sentimentos. Tudo isso culmina com a primeira Ópera digna

deste nome: Orfeo, de Claudio Monteverdi. Semi-Deus, filho de Apolo e de uma

mortal, Orfeu canta sua ventura e sua desgraça: amante de Eurídice, perde-a para

uma serpente em um bote mortal; tão grande é sua dor que convence as potestades

infernais a lhe permitir trazê-la do Hades com vida renovada, mas há uma

condição... que iremos apreciar poeticamente no próximo item deste trabalho.

O objetivo de descrevermos algumas características de alguns períodos

históricos da musicologia ocidental nada tem a ver com a idéia de valorização do

desfile histórico dos acontecimentos musicais, ou mesmo da “superação” do antigo

pelo novo. Muito pelo contrário, entendemos aqui esta descrição de períodos como

uma rememoração de algumas características ou qualidades poéticas marcantes

que foram acontecendo ao longo destas épocas.

Para a obra de arte, o que importa é o que ela instaura de verdade no mundo

e o que ela possibilita de encanto e magia através das leituras de suas obras-primas
69

de todos os tempos, bem como a simultaneidade, a superposição e a perene

atualidade e atualização que revelam a cada tempo a inesgotabilidade do dom das

musas: a memória musical.

Para Antonio Jardim:

A história linear é progressiva e não admite a simultaneidade. Na prática, no


entanto, a nossa experiência com a história nos chama a atenção
precisamente para a sua densidade. Talvez o que nos permita entender
melhor uma história que tenha densidade seja refletir sobre a
contemporaneidade, especialmente no que diz respeito à arte. (JARDIM,
2005, p.105)

3.4 O CANCIONEIRO MEDIEVAL IBÉRICO: UMA PERSPECTIVA POÉTICA

Voltando às cantigas medievais, objetos de estudo deste item, no caso das

Cantigas de Santa Maria, estas músicas só resistiram ao tempo porque se supõe

que o rei Dom Afonso X teve a intenção de preservá-las através de códices, que

sobreviveram em alguns manuscritos, a saber, como nos informa Lenora Pinto

Mendes, o códice de Toledo, “projetado para conter cem cantigas e que se acredita

ser esse o projeto inicial do rei” (MENDES, s/d, p. 1), cujo exemplar remanescente é

considerado uma cópia do século XIV, devido ao tipo de escrita musical”, assim

como O códice Escorial,

também chamado de Códice Príncipe, é o mais completo deles. É todo


iluminado e traz como abertura, ilustrando a primeira cantiga, uma iluminura
do rei D. Afonso, rodeado por seus músicos e poetas. O texto está escrito
em duas colunas de 40 linhas em letra francesa do século XIII. A cada 10
cantigas aparecem iluminuras de músicos tocando uma diversidade de
instrumentos do período. Por causa disso este códice também é chamado
de códice dos músicos e constitui uma importante fonte de informação para
a reconstrução dos instrumentos utilizados na interpretação das músicas.
(MENDES, s/d, p.1)

Este códice, entre outros elementos paleográficos, é fonte importante para os

musicólogos e, principalmente, para os músicos que buscam resgatar esta música


70

que, de tão antiga, como já dissemos, pode ser considerada uma música nova, e

mesmo novíssima, para as novas gerações de platéias. De tão desgarrada no tempo

e na cultura brasileira, ela possui um sabor de novidade total, como pudemos

constatar em nossas apresentações com o “Música Antiga da UFF”, com o “Conjunto

Roberto de Regina” e com o “Conjunto de Música Antiga da Rádio MEC”, 1º grupo

de Música Antiga no Brasil, até onde sabemos.

O códice Rico e o de Florença, entre outros, assinalados no artigo “Cantigas

de Santa Maria” (MENDES, s/d), trazem também músicas, poesias e iluminuras das

cantigas.

Para Lenora Pinto Mendes:

A leitura musical das cantigas de Santa Maria assim como de todo o


repertório monódico do Século XIII, é simples do ponto de vista melódico,
não apresentando problema para quem conhece as normas básicas da
escrita musical guidoniana que não deixa dúvidas quanto à altura dos sons.
Já o ritmo traz muitas incertezas o que leva muitos musicólogos a deixar de
lado esse rico repertório por considerá-lo corrupto e ilegível. (MENDES, s/d,
p. 1)

Ainda segundo Lenora Pinto Mendes, continuam se desenvolvendo na

península ibérica os estudos para resgate e compreensão dessas obras, como é o

caso de Manuel Pedro Ferreira (1991) e Higino Angles (1943), bem como os

tratadistas medievais Franco de Colônia, de 1280 e Johannes de Garlândia (1190-

1272), que escreveu “De mensurabili musica”, que é, segundo Mendes, no artigo

“Cantigas de Santa Maria”: “importante fonte de informações para a compreensão do

ritmo modal das músicas escritas após 1250 e antes de 1279, e que deve ser levado

em consideração para a transcrição musical das cantigas” (MENDES, s/d).

É importante salientar que esta “precisão” da notação já mencionada não

existiu, não existe e jamais existirá. Os códigos de escrita, tanto na música como na

palavra, são sempre reduções ou mesmo rememorações dos acontecimentos da


71

cultura.

Da forma como entendemos a questão da interpretação, do ponto-de-vista

poético, isso não é possível nem desejável, pois o fluir da arte no tempo produz

sempre a novidade e um vir-a-ser que está sempre sendo e produzindo o jogo

poético da poiesis.

O desvelamento ou aletheia das palavras e das notas musicais traz à

presença o que estava oculto, mas não todo o oculto, pois esse todo jamais se

mostra por inteiro. Percebemos apenas alguns entes que se deixam vislumbrar no

fenômeno poético da criação artística.

A notação musical e as palavras são uma pequena mostra da gama infinita de

possibilidades do dizer das coisas. O seu desvelar cria mundo e sentido, pois traz à

presença o que não estava dado nem percebido, o lado da sombra das coisas que

se doam para quem pode perceber e ouvir.

Por outro lado, como sabemos, a “imobilização” dos sons e das palavras não

é desprovida, em absoluto, de valor e de sentido. Ao contrário, ela permite que

tenhamos um porto de partida para o processo criativo e também um porto de

chegada para cristalizarmos o que foi desvelado pelo jogo poético e pelo círculo

hermenêutico que gera a compreensão e a interpretação das coisas.

Interpretar é fazer o jogo poético da poiesis, é adentrar o mistério, é

perscrutar a magia do insondável na busca incessante dos caminhos de Hermes.

Desocultar é interpretar, é dialogar de forma compreensiva com as inúmeras faces

do ser das musas, pois os caminhos da arte são os caminhos de Hermes em busca

do invisível e do insondável.

As múltiplas possibilidades de verdade do ser da música, seja na Música

Antiga ou na Música Moderna, por exemplo, são dadas pelo próprio método que a
72

obra instaura, pois o método interpretativo que a obra acena ultrapassa a

compreensão cronológica do tempo.

Por isso, quando falamos de Música Antiga, não falamos de um passado

musical e sim de uma música cuja temporalidade é dada pelo instante poético da

sua execução. A música está lá, mas é sempre vigência originária de mundo e

sentido, porque o mistério da música suplanta as categorias espaciais e temporais.

A cada instante a música, independente de ser antiga ou não, está sendo feita

e re-feita, criada e re-criada. Esse movimento de criação e re-criação contínuo é o

que é próprio da arte: o brotar e re-brotar de si mesma. Por isso, em música, a

compreensão apenas cronológica do tempo não esgota as suas possibilidades, pois

o tempo da música é poético.

Segundo Sadie:

[...] o movimento de “música antiga” ocupa-se particularmente da prática de


execução e da recriação e utilização de instrumentos de época, bem como
de técnicas e concepções, também de época, sobre questões como
notação, ritmo, andamento e articulação, conforme o estabelecido em textos
que reflitam as intenções do compositor. (SADIE, 1994, 632)

Porém, para nós, além da execução e recriação, que são questões ligadas ao

revival da Música Antiga, é mister cuidarmos da escuta dialogal entre obra e ouvinte,

pois as “intenções do compositor” estão associadas a um momento que não mais

existe, perdido e fixado que foi no momento da criação original da obra, mas através

de um despertar poético e originário a obra pode ser revivificada e con-criada pelo

intérprete de hoje.

Isso é o que chamamos de revival musical: um método próprio de desvelar,

de forma multifacetada - através de um diálogo e de um caminhar junto à obra - o

que é próprio do ser da música e da arte em geral, a saber, sua perene novidade e

capacidade de surpreender.
73

Isso é o que chamamos de interpretação poética da obra de arte.

Como o termo Música Antiga é muito abrangente, escolhemos aqui, como já

vimos, as Cantigas do Portugal Medieval como fio condutor deste capítulo.

Vamos então definir Cantiga, à luz do dicionário Grove:

Canção monofônica medieval, espanhola e portuguesa. Além de seis


canções de amor de Martin Codax, a única música que chegou até nós é
uma coletânea de mais de 400 canções, feita c.1250-80, sob a direção de
Alfonso, o Sábio, e conhecida como as Cantigas de Santa Maria. A maioria
delas com melodias provavelmente de origem secular, são narrativas em
estilo balada de milagres realizados pela Virgem Santíssima, e cada décima
cantiga é um hino em seu louvor. O rei Alfonso pode ter pessoalmente
escrito algumas das letras e das músicas. Os textos e as ilustrações nos
quatro MSS sobreviventes fornecem valiosas noções dos métodos de
execução e de outros aspectos da vida medieval. (SADIE, 1994, p. 165)

A cultura do medievo português era ágrafa, oral e as cantigas possuem

alguns neumas associados ao texto poético que dizem como aquilo deveria soar,

como já comentamos. Por isso, não temos a “precisão” da música medieval. Aliás,

precisão é um termo que não cabe no mundo medieval. Não havia a precisão

matemática moderna nas medidas, mas havia coerência. Essa coerência era dada

pelo divino em todas as instâncias do viver humano em um mundo regido pela

oralidade plena e pela relação com o divino.

A imprensa de Gutenberg revolucionou o desenvolvimento das ciências e a

transmissão dos conhecimentos, permitindo que as gravuras, as iluminuras e as

partituras na escrita da época chegassem até nós, hoje.

É bom lembrar que, até o século XII as notas musicais não tinham nome. A

notação musical semelhante à que temos hoje surgiu com Guido d‟Arezzo no século

XI, como já vimos, e o sistema de notação grego havia se perdido.

Segundo Lenora Pinto Mendes, Santiago de Compostela, onde acontecia a

irradiação do trovadorismo, na região da Galícia, já era importante rota de

peregrinações e era também “o centro urbano de maior poderio econômico e


74

projeção internacional”, na Península Ibérica.

As Cantigas de Santa Maria, atribuídas ao rei Afonso X, de Leão e Castela,


herdeiras diretas do movimento trovadoresco, que se iniciou no sul da
França no início do século XII e se espalhou por toda a Europa, constituem
a expressão mais rica, tanto no aspecto poético e musical quanto no
aspecto plástico, do trovadorismo ibérico. (MENDES, s/d, p.4)

Os trovadores, entre eles o próprio rei, provavelmente eram acompanhados


por jograis, músicos profissionais que viviam nas cortes e algumas cantigas
podiam até mesmo ser acompanhadas de dança. Essas músicas e histórias
de milagres relatadas nas Cantigas tiveram uma repercussão imensa por
todo o mundo Ibérico além de uma grande longevidade. (MENDES, s/d,
22
p.4)

A temática do amor, da mulher, do lirismo e o seu distanciamento no tempo é

o que nos permite recriar esta música. A recriação, ou seja, a interpretação de como

ela poderia ter sido não significa dispor dos mesmos instrumentos utilizados no

período e executá-la “tal qual”, o que seria impossível. O que verificamos é o caráter

hermenêutico da obra musical, o que abre caminho para várias possibilidades

interpretativas. Como podemos então atualizá-la, torná-la presente?

A tradição oral, os tratados, a escrita neumática das cantigas, as iluminuras,

tudo isso pode auxiliar na recuperação desta música. Entretanto estas informações

não representam fontes precisas. A imprecisão se dá porque o mundo no período

medieval não era preciso, como, aliás, o nosso também não o é. As medidas, os

tempos, as horas, os sons fortes ou fracos, eram percebidos sem a medida dos

metrônomos, diapasões e decibéis modernos. Não podemos restaurar padrões e

medidas com rigor. O que era, entretanto, a precisão? O que era “preciso” no mundo

medieval era a relação do homem com Deus, ou seja, com aquilo que dava sentido.

O mundo medieval português é do âmbito do mágico, do divino, do

transcendental e não da realidade científica, da precisão matemática e nem de

regras musicais absolutas e canônicas. Ora, se não temos precisão, não temos

22
Cf. Anexos 3, 4 e 5 – Notações musicais diversas referentes às Cantigas de Santa Maria.
75

reprodutibilidade, então como ficamos?

É no âmbito da interpretação e da recriação poética que podemos atualizar e

tornar novas as coisas velhas, como já dissemos. Atualizar aqui é a palavra de

ordem para o que chamamos de revival musical.

Precisão é coisa moderna, pois vivemos no tempo das medidas

cientificamente controladas, no sistema da reprodutibilidade técnica, da perfeição, do

tempo justo, do racionalismo. Tudo tem que ser igual e reprodutível. Essa idéia de

precisão matemática, que é essencialmente metafísica, confirma-se como uma idéia

dos tempos modernos. “Navegar é preciso. Viver não é preciso”. Ao contrário de

hoje, o mundo medieval europeu não tinha desenvolvido ainda a tecnologia científica

e não havia a idéia de reprodutibilidade rigorosa como a entendemos hoje, pois não

havia sistemas de medidas cientificamente padronizados, então quase tudo era

dado pela oralidade.

A música da Idade Média pode parecer perdida no tempo e no espaço, mas o

fato de se situar em um passado longínquo não impede sua interpretação hoje,

principalmente se levarmos em conta a busca das fontes originárias do pensamento

poético Prova disso é o nosso disco Medievo Nordeste, como veremos mais adiante.

Será que temos a mesma música? É possível reproduzir com a precisão?

Este resgate da Música Antiga é dado tanto pela hermenêutica da

performance musical como pelo entendimento dos métodos que levam à

performance. Na recriação não só da Música Antiga, mas da execução da música,

de um modo geral, o que temos é a interpretação poética. Dito em outras palavras, o

que temos nada mais é do que todo um trabalho de interpretação que precede a

performance. Para cada gênero, temos que seguir um caminho. Essa interpretação

apropriada permite uma performance avalizada em cima de métodos seguros,


76

adequados e a adequação e segurança são dadas pelo dialogo entre o intérprete e a

obra.

3. 5 MEDIEVO-NORDESTE: UMA PONTE POÉTICA ENTRE O ANTIGO E O NOVO

O disco “Medievo-Nordeste: Cantigas e Romance”, do conjunto Música Antiga

da Universidade Federal Fluminense – do qual, na qualidade de membro integrante,

o autor desta pesquisa participou como cantor e instrumentista –, nos remete à

ponte que estabelece o elo entre o antigo e o novo, o popular e o erudito, o oral e o

escrito, que são também as questões centrais do revival da Música Antiga.

A música é esta ponte, ou seja, o caminho que se está sempre a tecer entre o

passado e o presente, numa dinâmica própria, que é a dinâmica do processo de

criação, da physis e da poiesis. Neste caminho poético, o tempo, mais do que o

tempo cronológico e metafísico, é o tempo poético, que encaminha as questões da

arte, da permanência e da diversidade enriquecedora de tudo que há no mundo.

O disco aludido, que colocamos aqui como um marco e registro importante

das questões que estão sendo discutidas neste trabalho, é uma pesquisa do Música

Antiga da UFF, que pretende mostrar e comprovar a pertinência e veracidade do que

estamos tentando questionar, a saber, a questão da permanência das atitudes e

valores musicais, remotos e ancestrais, no nosso cancioneiro brasileiro, o que

também é uma questão própria do revival musical.

O encarte do disco, que teve o patrocínio da Xunta de Galícia, traz uma

resenha crítica da Profª. Maria do Amparo Tavares Maleval23. Ele mostra a interação

do medievo ibérico e do folclore brasileiro, através de obras musicais com temáticas

23
Diretora do Núcleo de Estudos Galegos da UFF e do Programa de Estudos Galegos da UERJ.
77

e esquemas musicais absolutamente assemelhados, embora colhidos em épocas e

continentes distintos. O título desse encarte é - A perpetuação de cantares

medievais no Brasil e, nele, Amparo Maleval nos diz que o CD

oferece ao público um original trabalho de interação entre a música


medieval ibérica e músicas do nosso folclore, apresentando-nos cânticos
medievais e algumas das suas versões que se perpetuaram no Brasil,
principalmente no Nordeste. Para tanto, utilizam instrumentos musicais que
intensificam esse diálogo entre a Idade Média e o Brasil recente.
Valorizando sobremodo a importância das nossas raízes ibéricas, sobretudo
galego-portuguesas, e contribuindo de forma decisiva para a sua
24
propagação em meio a um vasto público.

O disco apresenta alguns pares de obras, recolhidas no interior do Brasil e na

península ibérica, tais como: “Vida e morte”, recolhida em Goiás, e “A la una yo

nací”, canção sefaradita espanhola, em dialeto ladino, que têm temáticas idênticas e

falam dos tempos significativos da vida humana.

Segundo Lenora Pinto Mendes, comentando sobre essa transposição para o

Brasil, “trazidas pelos colonizadores, narrativas de origem medieval que se

mantiveram em voga no século XVI, acabaram se incorporando à cultura popular,

principalmente na região do norte e nordeste.” (MENDES, s/d, p.4)

A seguir, apresentamos as poesias de ambas:

Vida e Morte25

À uma hora eu nasci


Às duas me batizei
Às três já lhe namorava
Às quatro já me casava
Às cinco estava doente
Às seis com grande paixão
Às sete em cima da mesa

24
“A perpetuação de cantares medievais no Brasil”: encarte do disco Medievo-Nordeste: Cantigas e
Romances. Conjunto Música Antiga da UFF, 2004.
25
Cf. Anexo 1 – Partitura de “Vida e Morte”.
78

Às oito no meu caixão.


Às nove acompanhada
Às dez na porta da igreja
Às onze no cemitério
À meia noite no céu.

A la una yo nací26

A la una yo nací
A las dos m’engrandecí
A las três tomi amante
A las cuatro me casí
Alma y vida y coraçón
Dizme nina donde vienes
Que te quero conocer
Y sino tienes amante
Yo te haré defender
Alma y vida y coraçón
Yendome para la guerra
Doz bezos al aire di
El uno es para mi mama
Y el outro para ti
Alma y vida y coraçón

Em Vida e Morte, a temática enxuta é reduzida às dimensões mais humanas

e primordiais da vida humana, tudo assinalado pela matriz do tempo implacável da

duração da vida. Os dias, as horas e os eventos que balizam a roda da vida:

nascimento (à uma hora eu nasci), morte (às oito no meu caixão), finitude e

transcendência (à meia-noite no céu); amor e vida (às três já lhe namorava, às

quatro já me casava).

Dado que tudo isso se passa num Brasil remoto, na versão que aqui se

desenvolveu e se aclimatou, no tempo e no espaço, não havia muita coisa mais para

26
Cf. Anexo 2 – Partitura de “A la uma yo nascí”
79

ser comemorada e, portanto, o ciclo da vida vivida se confunde com o próprio ciclo

vital da existência.

Este torpor da passagem da vida num Brasil supostamente colonial e

interiorano, época em que devem ter chegado as influências da cultura sefaradita da

diáspora judaico-ibérica, deve ter amainado bastante o lado moçárabe e judaico

desta cultura arcaica de música melismática, com rítmica muitas vezes frenética e

até quase orgiástica.

O filtro da geopoética brasileira, das cantilenas das procissões católicas, das

serestas de antanho e das modinhas, nos faz imaginar um canto suave e suavizado

pelas restrições e imposições morais. O sol, o calor e o mormaço, como poderia ter

dito Gilberto Freire27, somados aos fatores anteriormente citados, nos dá quase a

certeza de podermos pensar uma música para esta letra como andamento lento,

cadenciado e singelo.

Claro que tudo isto soa muito abstrato, mas é dessas abstrações que se extrai

o sentido musical escolhido para a obra, como um realejo que remói o sentido da

existência ao sabor da mão que afaga a sua manivela. Este sentido nos é dado pela

escuta e ausculta profícua, o que enseja um diálogo criativo entre o texto poético e

os indícios existentes, orais ou escritos, da música supostamente original. Um pouco

do que está ali, na obra, e que constitui o seu ser, se dá a revelar e, nesta aletheia

artística, vamos dando forma à obra musical como nos é revelada, e que é apenas

uma das suas infinitas possibilidades de realização.

Esta é uma das maneiras que o Música Antiga da UFF utiliza para criar uma

versão musical própria na fase de pesquisa e de elaboração das interpretações e

performances das obras musicais de seu repertório, quando carecem de uma

27
Livre suposição nossa, ironizando, talvez, “Casa grande e senzala”.
80

musicologia consolidada e, sobretudo, de fontes musicais fidedignas, escritas ou

orais, o que é caso da maioria das obras do medievo europeu.

A suposta obra original, se bem que ambas o são, também mostra, em sua

primeira parte, os momentos mais significativos da vida humana, segundo os

possíveis valores do medievo ibérico, embora com uma pujança mais espanholada e

dramática. Um fluxo acelerado de emoções (A la una yo nací, A las dos

m’engrandecí, A las três tomi amante, A las cuatro me casí, Alma y vida y coraçón),

nos sugere, para efeito da escolha de uma dinâmica musical apropriada, um ritmo

enérgico e rápido, a fim de criar uma sinergia na correspondência entre o poema e a

música propriamente dita.

Nesta versão as horas voam, com sucessões de eventos marcantes em

sequência muito próxima. Assim também se dará com a música interpretada e con-

criada pelo conjunto. Desta forma “descobrimos” e desenvolvemos os apelos

musicais para uma poesia dada. “Alma y vida y coraçón” é uma expressão poética

que demanda, musicalmente, percussões, pandeiros, castanholas, volteios e toda

sorte de um gestual tradicional ibérico, como é o caso – respeitando-se as

diferenças - do tango na Argentina, p.ex., ainda mais para alguém que, “no espaço

de quatro horas” nasceu, cresceu, tomou amante e se casou.

As mulheres amadas, a mãe e a amante, se entrecruzam num jogo de guerra

e paz. Há a tragicidade heróica da ida para a guerra, entre beijos lançados ao ar

para os amores de nosso herói e cavaleiro medieval, cruzado que vai para a terra

santa defender os valores da cruz e da espada de seu Senhor. É o nosso Quixote às

avessas, que vai para uma guerra real, as cruzadas, e que deixa suas mulheres

queridas esperando por sua volta, como acontece nas Cantigas de Amigo, também

aqui citadas.
81

É a vertigem existencial que precisa ser colocada em música. Desta forma

também, como veremos mais adiante neste trabalho, no item sobre o Orfeu de

Monteverdi, acontecem as escolhas musicais, ou melhor, lítero-musicais. No entanto

esta questão se reveste de um aspecto muito técnico e musicológico, que

evitaremos aprofundar neste trabalho sobre interpretação poética.

É também o caso da organologia, ou da instrumentação adequada a essas

obras. Além do que está narrado nos tratados e mostrado nas iluminuras, é preciso

pensar na possibilidade de recriar estes instrumentos, se isso for possível, ou, dentro

de uma perspectiva poética, recriá-los, adaptá-los, ou numa atitude mais radical,

interpretar tudo com o instrumental musical moderno, por que não?

Esta questão é uma das mais candentes na pesquisa da Música Antiga e das

mais importantes no que diz respeito ao revival da música medieval, e mesmo

renascentista ou barroca. Não iremos, no entanto, nos aprofundar neste viés

musicológico em nosso trabalho.

Em resumo, é esta soma de fatores e conhecimentos que nos propiciará as

escolhas das interpretações e das performances das obras executadas e gravadas

pelo Música Antiga da UFF.

A respeito dessas obras, nos diz Amparo Maleval:

Todos esses romances se apresentam em redondilha-maior, da mesma


forma que a cantiga “Vida e morte”. Esta, de origem sefaradita, se encontra
na coletânea elaborada por Regina Lacerda, recolha de canções folclóricas
ouvidas de goianos, intitulada Cantigas e cantares. Músicas folclóricas e
modinhas goianas (Goiânia: Ed. Da Universidade Federal de Goiás,
1985;2.ed.,p.7). Focaliza a sucessão de momentos da vida humana,
levando-nos com simplicidade à reflexão sobre a sua brevidade, da mesma
forma que a versão “A la una yo naci”, da tradição oral dos judeus
espanhóis, que destaca o amor nesse percurso existencial... Essas
melodias, em sua maioria, são de caráter profano e focalizam temas do
cotidiano e acontecimentos do ciclo da vida, que fazem parte da história da
humanidade em todos os tempos, tais como: nascimentos (com destaque
para as cantigas de ninar), casamentos, problemas com a sogra, amores
não correspondidos, traições, etc. No Brasil, um dos destinos dos judeus
expulsos, não conhecemos nenhum estudo sobre a influência dos judeus
que aqui se refugiaram, influência que é patente em muitos exemplos, como
82

na cantiga “Vida e morte”, de que já falamos. (MALEVAL, 2004, s/p)

Segundo Lenora Pinto Mendes, em seu artigo “Permanências: fragmentos da

Idade Média na música e na cultura popular brasileira”, citando Michel Vovelle em

Ideologias e Mentalidades:

Os traços de um comportamento...perduram, com inércia real até nossos


dias, quando as próprias condições iniciais desaparecem . Constatamos que
não só os traços comportamentais perduram mas também as formas de
produção, no nosso caso, artísticas. Importantes aspectos da arte poética e
musical da Idade média permanecem até nossos dias presentes na cultura
popular brasileira. (MENDES, s/d, p.2)

Este achado precioso da sobrevivência de cantares tão antigos, medievais, e

suas transposições para o Brasil interiorano, como demonstra, p.ex., o Romanceiro

de Alcaçuz, de Deífilo Gurgel (1992), de onde saíram algumas músicas deste disco

(Juliana e D.Jorge e Paulina e D.João), é o que vai permitir a constituição de um

método interpretativo vivo, que estamos denominando neste trabalho de

interpretação poética.

A apreciação das duas fontes da “mesma” obra originária estabeleceu o

diálogo e o método poético para a interpretação / compreensão e a performance das

obras. Este é um exemplo vivo de uma das possibilidades do revival musical

enquanto método, caminho ou ponte, que une a obra ancestral e a sua

descendência poética.

Assim se deu o processo de interpretação criativa dessas obras, como se

pode constatar ao ouvi-las no disco “Medievo-Nordeste”.

O antigo se deparando com o novo (neste caso nem tão novo assim) e

fazendo surgir, na verdade, duas obras, a antiga e a mais atual, essa é e sempre
83

será a essência do fazer artístico: um constante ir e vir, aprofundar e aflorar, velar e

desvelar, num jogo poético que constitui a própria hermenêutica da obra de arte.

Nos outros exemplos deste trabalho outras modalidades de interpretação

poética irão surgindo, mostrando, apesar do pequeno número de exemplos

apresentados, a imensa gama de possibilidades que a hermenêutica da arte

apresenta. No nosso caso, são as questões de interpretação das obras musicais que

nos interessam, lembrando sempre que, para nós, a interpretação é mais do que a

performance, é a própria poiesis se revelando enquanto arte e sentido, o que é

próprio do ser da música enquanto arte.

O CD aborda também algumas Cantigas de amigo, canções trovadorescas do

século XIII e Cantigas de Santa Maria, entre outras. Ao final de sua explanação do

encarte, Amparo Maleval descreve sucintamente a ambientação sonoro-musical

deste cancioneiro:

Nas canções trovadorescas e, principalmente, nas cantigas de Santa Maria


estão as raízes de toda a música que se faria na Península Ibérica nos
séculos posteriores. Essas cantigas eram apresentadas com
acompanhamento instrumental e os trovadores se faziam acompanhar por
jograis, músicos ambulantes que viajavam de corte em corte a fim de se
apresentarem em castelos e torneios medievais. Trazidas pelos
colonizadores, muitos do s seus temas acabaram se incorporando à cultura
popular, principalmente na região do Nordeste, onde a literatura de cordel
até hoje reflete a sua influência. A coletânea de Contos tradicionais do
Brasil, organizada por Câmara Cascudo, é um dos ricos veios para a
pesquisa dessa perpetuação medieva, inclusive através das cantigas de
Santa Maria.
Resta frisar que os sistemas de escalas modais nos moldes gregorianos são
recorrentes na música nordestina, tornando claras as suas raízes medievas.
Os instrumentos utilizados nesta cantoria são a rabeca, o violão e a viola,
variantes da viola renascentista utilizada no século XVI. Enfim, os
trovadores e jograis de hoje são os cantadores de viola, que nas feiras
perpetuam os sons e os temas das cantigas medievais. Esse diálogo
musical com o passado é o que em boa hora o Conjunto de Música Antiga
da UFF nos apresenta neste precioso CD. (MALEVAL, 2004, s/p)

A questão da escolha da interpretação musical destas obras se torna

complexa, pois demanda informações que muitas vezes só subsistem pela tradição
84

oral – o que não impossibilita o trabalho, de forma alguma. Resulta de um somatório

de fontes interpretativas, tais como a tradição gregoriana, que se perpetuou e

continua ativa nos mosteiros e em muitas igrejas católicas pelo mundo afora, os

músicos regionalistas brasileiros, que de alguma forma incorporaram essa influência

ancestral através da colonização e da catequese, como já foi dito, a música

sefaradita judaica, no caso das obras de origem medievo-ibérica, bem como as

músicas árabes, africanas e indianas, entre muitas outras.

Atualmente existe um grande acervo em discos de música medieval e

renascentista européia, bem como gravações, cada vez mais abrangentes e

minuciosas, da música folclórica e “de raiz”, de toda parte do mundo, inclusive das

eras pré-cristãs.

Então a performance musical deste repertório singular se dará incorporando-

se todos esses saberes poéticos disseminados pelos meios de comunicação,

tratados, universidades, a discografia, sobretudo, e por aquilo que é o inefável em

todo esse processo: o sentimento poético do intérprete que, à luz de todo este

conhecimento fará suas escolhas, interferindo em todo esse processo e trazendo à

luz a sua aletheia, a verdade do seu olhar sobre a obra e revelando ao mundo o seu

acontecer e desabrochar, a sua physis e a sua poiesis.

Nas feiras brasileiras, como a do Pavilhão de São Cristóvão, no Rio de

Janeiro, pode-se, ainda, presenciar as performances dos cantadores e contadores

de histórias: os cordelistas. Suas indumentárias e gestuais, representam a

permanência e o vigor de culturas ancestrais, bem como a resistência cultural e a

manutenção das diferenças, apesar das pressões pela padronização do gosto

estético e de toda sorte de valores da cultura atual.

Os nossos cordelistas, os cantores populares, os contadores de história e os


85

músicos e poetas eruditos que se debruçam sobre essa tradição ancestral, são

nossos aedos, nossos poetas maiores, pois mantêm acesa a chama dos saberes

artísticos, primordiais e originários de nossa memória cultural e imemorial.


86

4. A ÓPERA

La musique est pour l’opéra ce que les vers sont pour le drame:une
expression plus noble, um moyen plus fort de présenter les pensées et les
28
émotions (Pierre Augustin Caron de Beaumarchais, 1790)

A ópera é uma coisa absurda. Ordens são dadas cantando, discute-se


política num dueto. Dança-se em cima de um túmulo e dão-se punhaladas
melodicamente (Clemens Kraus / Richard Strauss, o Conde em Capriccio,
29
1942)

4. 1 A ÓPERA: A GRANDE INOVAÇÃO NA MÚSICA POR VOLTA DE 1600

A ópera se caracterizou, desde sempre, como um espetáculo artístico

múltiplo, ou melhor, multimídia, como dizemos hoje. Ancorou-se fortemente no

aspecto musical embora em seus primórdios, como iremos ver, a ênfase era dada à

palavra, à história que estava sendo contada. A diferença em relação ao teatro

tradicional era (e ainda é) que os atores “cantavam” a história, mas era um canto

“recitado”, o que chamamos de estilo recitativo, com pouca ênfase no aspecto

representacional da história, como é o caso do teatro.

Esse estilo recitativo foi a forma que os compositores primordiais da ópera -

como é o caso de Monteverdi, que iremos examinar a seguir – encontraram para dar

destaque ao texto sem abrir mão da música. Para eles, em especial o grupo da

Camerata Fiorentina, como veremos, o importante na obra era o texto, com a música

servindo para dar emoção e expressividade ao desenrolar da história, que, segundo

eles supunham, era o que acontecera no teatro clássico grego.

O recitativo é então uma “declamação lírica”, com poucas inflexões melódicas

e rítmicas autônomas, como no Canto Gregoriano. As pontuações musicais,

28
A música é para a ópera o que os versos são para o drama: uma expressão mais nobre, um meio
mais forte de apresentar os pensamentos e as emoções (tradução livre nossa) (apud COELHO, 2000,
p.9)
29
Id., ibid.
87

principalmente através das variações de intensidade, duração e altura, três

parâmetros musicais, entre outros, fazem parte de todo e qualquer fenômeno

musical. No entanto nos absteremos de entrar nestes detalhes técnicos musicais,

pois não é o nosso objetivo neste trabalho.

No caso de se desejar um canto mais musical, propiciador de um lirismo

expressivo e de uma dramaticidade mais acentuada, os compositores utilizavam a

“Ária” musical, termo que designa aquilo que vem acompanhado do ar que sai dos

pulmões, poeticamente, a emoção que sai do peito. Na Ária, os personagens

cantores, protagonistas da história, dizem dos seus sentimentos, seus afetos, suas

dores e aflições. Para tanto a linha melódica é muito mais elaborada a fim de

enfatizar, musical e poeticamente, os sentimentos sentidos e representados no

espetáculo da Ópera.

O recitativo fica reservado para os comentários que pontuam a história, tanto

do ponto de vista dos protagonistas ou heróis, bem como dos personagens

acessórios ou alegóricos: a Música, a Esperança, o Amor, A Mensageira, como se

apresentam no Orfeo de Monteverdi.

A Ópera foi pensada pelos seus formuladores iniciais, em especial os

intelectuais da Camerata Fiorentina, como um espetáculo de arte total e abrangia,

desde então, a representação teatral, a música - instrumental e vocal, a

indumentária, a cenografia e a iluminação. Daí veio o nome Ópera, plural de opus,

obra, em latim.

Ao longo dos últimos séculos a Ópera foi mudando de rumo e de

configuração, trazendo a figura do intérprete solista para o primeiro plano e fazendo

do virtuosismo dos cantores protagonistas e da música da orquestra quase que a

única razão de ser do espetáculo, afastando-se das premissas da Camerata. Mas


88

isso já pertence à história da ópera propriamente dita, o que não nos interessa aqui.

A Ópera é, segundo o dicionário Grove de música, uma:

Obra musical dramática em que alguns ou todos os papéis são cantados


pelos atores; uma união de música, drama e espetáculo, com a música
normalmente desempenhando a principal função.
30
Entre os antecedentes da ópera inclui-se o intermédio , mas as primeiras
óperas encenadas pelo grupo da CAMERATA para mecenas em Florença
eram entretenimentos cortesãos em forma de pastoral. A difusão do novo
stile rappresentativo para outras cortes italianas começou com o Orfeo, de
Monteverdi (Mântua, 1607) (SADIE, 1994, p.672)

Esses textos cantados pelos atores, ou seja, a palavra cantada, chegam à

cultura ocidental a partir dos aedos gregos: os contadores e cantadores das histórias

e estórias, dos grandes mitos fundadores e das façanhas do povo grego, na

antiguidade clássica da civilização helênica, em suma. Nessa época a oralidade

predominava. Não existia uma escrita grega – como no caso das sagas homéricas -

e muito menos o papel impresso, que só surgirá, no ocidente, em meados do século

XV, com o início da impressão da bíblia de Gutenberg.

A obra que iremos estudar, O Orfeo de Claudio Monteverdi, associa estas

duas representações da tradição artística ocidental: o mito de Orfeu - cuja estória

será contada nesta ópera em uma de suas muitas versões, atualizado desde as

priscas eras helênicas através da oralidade e da permanência da cultura grega no

mundo renascentista europeu – e a ópera de Monteverdi propriamente dita, escrita e

impressa e, portanto, “imobilizada” e tornada “definitiva” pelo código escrito, embora,

como veremos, no mundo da physis e através da poiesis, nada é imóvel nem

definitivo, como não poderia deixar de ser, pois estamos tratando de obra de arte

interpretada e compreendida através do pensamento poético, que tenta superar a

via metafísica de nossa cultura ocidental, em busca da verdade do ser da obra.

30
Segundo o dicionário Grove, “Uma forma de espetáculo dramático-musical executado entre os atos
de peças teatrais no renascimento...Entre os temas incluíam-se cenas pastorais e de caça, a
mitologia clássica e as histórias de amor”. (SADIE, 1994., p.459)
89

Segundo Nikolaus Harnoncourt:

Uma das mais radicais reviravoltas na história da música ocorreu em torno


de 1600. A ordem estabelecida da música ocidental foi repentinamente
posta em questão por um bizarro círculo de influentes estudiosos da
Antiguidade Clássica, ou melhor, por restauradores daquela Antiguidade.
(HARNONCOURT, 1993, p. 26)

Este círculo de intelectuais foi denominado pelos musicólogos de Camerata31

Fiorentina e tinha entre seus participantes Vincenzo Galilei, pai do astrônomo Galileu

Galilei.

A principal característica dessa música nascente, denominada de Ópera, é,

do ponto de vista estritamente musical, a utilização prioritária da textura homofônica,

ou seja, em breves palavras, um cantor solista acompanhado de acordes produzidos

por um conjunto instrumental ou por um instrumento harmônico. Isto pode soar óbvio

para nós hoje, no século XXI, acostumados à canção popular, que tem a mesma

configuração musical – o canto solista acompanhado por instrumento harmônico,

p.ex. o violão.

Naquela época, por volta de 1600, isto era quase uma absoluta novidade,

pois na tradição musical erudita medieval, a música sacra era monofônica ou

polifônica; monofônica quando cantada ou tocada a uma só voz - voz, aqui, no

sentido usual em música, de linha melódica independente e não no sentido de

cantor individual. Quanto à música profana medieval a textura musical foi se

modificando e passando de monofônica para polifônica – cantada ou tocada a várias

vozes, com várias linhas melódicas independentes e superpostas.

Segundo Harnoncourt,

A “nova música” deveria ser essencialmente monódica, a linha melódica

31
Segundo o dicionário Grove, a Camerata é um: “Grupo de nobres e músicos que se reuniam na
casa do conde Giovanni de Bardi, em Florença, c.1573-87, para discutir poesia, música e ciências.
Caccini, Vincenzo Galilei e Piero Strozzi eram alguns deles. Seu desejo de recriar o drama grego
antigo com música levou-o às primeiras experiências em ópera” (SADIE, 1994, p.159)
90

regida pela palavra e o acompanhamento do baixo (o baixo contínuo)


composto em harmonias simples que sublinhassem determinadas palavras,
sem jamais atrair a atenção “musicalmente”. Era preciso estudar o modo de
falar das diversas camadas da população, para imitá-lo nas novas obras. É
impossível imaginar um contraste maior do que o encontrado entre a música
então tradicional e a nova monodia. Foi, sem sombra de dúvida, a revolução
mais radical da história da música ocidental. (HARNONCOURT, 1993, p.27)

Na música renascentista predominou, em breves linhas, a música com textura

polifônica diferenciada da medieval: vozes ou linhas melódicas com entradas

sucessivas, no estilo denominado de polifonia imitativa, como é o caso do gênero

musical denominado Cânon ou Cânone, em que as vozes vão sendo introduzidas

com a mesma melodia em momentos diferentes, como, por exemplo, na cantiga de

roda francesa Frère Jacques.

A respeito dessa “grande inovação por volta de 1600”, nos diz Nikolaus

Harnoncourt:

Até então, tanto a música religiosa quanto a profana (os motetos e os


madrigais) eram, em princípio, escritas a várias vozes – ora homofônicas,
ora com mais frequência, polifônicas – no estilo do contraponto imitativo. O
texto era quase sempre incompreensível, pois as palavras, cantadas nas
diferentes vozes, não soavam simultaneamente. Esse, aliás, não era o
propósito essencial. O verdadeiro trabalho artístico consistia no sofisticado
relacionamento das diferentes vozes independentes em um complexo
emaranhado polifônico. Tais obras podiam receber tranquilamente, sem que
sua essência fosse alterada, outros textos ou, ainda, servir de base para a
música puramente instrumental, executada sem nenhum texto e traduzida
pelos instrumentos, com alguma adaptação e ornamentação, em sua
linguagem própria. Esta música, requintada e esotérica, pode ser
considerada como o ponto final e culminante da evolução de quase dois
séculos. (HARNONCOURT, 1993, p.26)

Neste contexto surge a obra capital de Claudio Monteverdi, a ópera Orfeo.

Monteverdi foi contemporâneo dos intelectuais da Camerata e utilizou os

pressupostos desta escola, que são a primazia da tragédia grega da antiguidade

clássica em forma de melodrama cantado, para compor a sua obra-prima.

Segundo Harnoncourt:

Como o modelo grego, do ponto de vista cultural, era considerado


insuperável, seria logicamente necessário que o “melodrama” monódico
91

fosse a única forma musical correta. Em seguida foram estabelecidas


severas regras (vide Le nuove musiche, de Caccini), segundo as quais
apenas a poesia era senhora da música e só determinados textos (imitando
antigas tragédias e pastorais clássicas) eram dignos de serem musicados.
Conseqüentemente, toda a música polifônica foi condenada sob a alegação
de que era bárbara e destruidora do sentido expressivo do texto.
(HARNONCOURT, 1993, p. 26).

4.2 ORFEO32: ANTIGO VERSUS MODERNO

Em música, quando dizemos o Orfeo de Cláudio Monteverdi, estamos nos

referindo, como sugere a Camerata Fiorentina, ao início da ópera moderna. Essa

ópera introduz, na música, o drama e a tragédia com ênfase na palavra que, feita

canto e encanto, narra os sentimentos humanos encarnados em personagens e em

enredos às vezes trágicos ou épicos e quase sempre mitológicos.

Essa nova forma de fazer música, além de tornar clara para a platéia a

narrativa, traz, pela primeira vez na história da música ocidental, para o primeiro

plano, a figura do intérprete solista33 e sua performance, que são questões centrais

deste trabalho.

Então, na música moderna - representada por Orfeo de Cláudio Monteverdi,

obra cujo título completo, conforme consta no fac-símile de um dos manuscritos com

libreto de Alessandro Striggio, de 1607, é: L’ORFEO – FAVOLA IN MVSICA -, o que

se apresenta é a primazia da palavra cantada, reveladora dos sentimentos dos

homens, seus afetos e sua história.

Musicalmente falando, este canto se faz, sempre, acompanhado de uma base

instrumental que lhe dá o suporte harmônico e o sentimento da tonalidade ou do

32
Cf. Anexos 8 e 9 – Frontispício da edição de Orfeo e página da Tocatta da mesma obra.
33
O cantor do papel principal, ou o protagonista da história.
92

“modo”34 utilizado. É a música chamada, talvez impropriamente, homofônica. Este

termo designa, em música, como já comentamos, a melodia ou canto solista

acompanhado de um ou mais instrumentos harmônicos, sendo que, neste caso, o

acompanhamento instrumental apresenta qualidades poéticas próprias, não sendo

apenas uma mera “base harmônica” para apoiar o solista.

Porém Monteverdi ultrapassa em muito os pressupostos da Camerata e,

como nos diz Harnoncourt a respeito dessa “nova música”:

Sem jamais se preocupar em abrir mão das importantes conquistas de estilo


antigo, ele descobriu os meios que permitiram a transformação do canto
falado na ária e no recitativo dramático, sendo assim o verdadeiro criador da
ópera. Ele associou todas as formas já conhecidas na música vocal e
instrumental às fecundas e avançadas idéias dos inovadores florentinos,
sem se deixar perturbar por seus dogmas. (HARNONCOURT, 1993, p.27)

Esta forma de preservação oral dos saberes, como é o caso do mito de Orfeu,

se prolonga por toda a Idade Média, com os jograis, trovadores e menestréis,

passando pelas cantigas galaico-portuguesas, um dos objetos de estudo deste

trabalho, chegando-nos ao Brasil colonial através dos padres da Igreja, missionários

jesuítas, cuja presença ainda se faz sentir na música do norte-nordeste brasileiro,

nos brinquedos, nos autos, cheganças, reisados, pastoris e mais um número sem

fim de manifestações artísticas, passando pelas modinhas, lundus e serestas.

A moderna música brasileira popular e “de raiz” ainda traz a marca desses

tempos originários, que remontam, como já dissemos, às priscas eras helênicas. Ela

é devedora e muito, da tradição musical da ópera e da música medieval européia,

como vimos no capítulo anterior.

Voltando ao mito de Orfeu, na obra Mitologia Grega de Junito de Souza

Brandão, temos um verbete com a descrição de uma versão do mito que se

aproxima da versão que possuímos do libreto da ópera Orfeo de Monteverdi:


34
Série de notas musicais que configuram uma escala musical.
93

Uma das versões do mito conta que Orfeu, ao regressar da expedição dos
Argonautas, casou-se com a ninfa Eurídice, a quem amava profundamente.
Ela, ao fugir da tentativa de violação do apicultor Aristeu, pisa numa
serpente, o que lhe causa a morte. Inconformado com a perda de sua
amada, Orfeu desceu ao Hades para trazê-la de volta. Com sua cítara e voz
divina, vai encantando a todos os seres do mundo inferior. Diante de tal
prova de amor, Plutão e Perséfone concordam em devolver-lhe Eurídice,
contanto que Orfeu não olhasse para trás até sair dos limites do império das
sombras; quase alcançando a luz move-lhe terrível dúvida: e se ela não o
estivesse seguindo, e se os deuses do Hades o tivessem enganado?
Movido pela incerteza, saudade, pela carência e pelo desejo grande da
presença de uma ausência, o cantor olhou para trás transgredindo a ordem
dada. Ao voltar-se, viu Eurídice, que se esvaiu numa sombra, morrendo pela
segunda vez, para sempre. (BRANDÃO, 1989, p. 345)

Símbolo da atualidade e da permanência, o Orfeo é uma obra essencial na

medida em que traduz o ser da música, o sentimento musal originário, não só do

ponto de vista lírico-textual mas, sobretudo, do ponto de vista poético. Divisor de

águas entre o antigo versus moderno, Orfeo é uma obra em que tanto a

instrumentação quanto a fatura composicional se aproveitam e se apropriam do

legado musical da música medieval européia lançando, nesse sentido, uma nova luz

para os estilos musicais que iriam desabrochar séculos depois na Europa e no

Brasil.

Esta obra possui como enredo não o relato de uma experiência humana, mas

a própria vigência do drama humano. Todos os movimentos operísticos que se

seguirão a Monteverdi, tendo sua culminância nas óperas de Wagner até aos dias

atuais, gerarão músicas que irão resultar nas operetas, musicais, temas de filmes,

novelas e teatro, e incorporarão as qualidades dos temas musicais aos personagens

e às situações dramáticas importantes na trama da obra.

Mas o que nos diz o Orfeu, de Monteverdi?

O que Orfeu anuncia no seu canto encantado são as questões que

perpassam todo e qualquer homem. Amor, vida, morte, esperança de ressurreição,

bodas, alegria, paixão, instâncias comemorativas e rememorativas que tornam o


94

homem vivo, vívido e vivido.

Por outro lado, a precariedade da existência, o espanto e a agonia também

permeiam a poética da obra, bem como a relação entre mortais e divinos. Mas,

acima de tudo, o leitmotiv da obra é o amor. O amor entre o semideus Orfeu e a

ninfa Eurídice que, devido às vicissitudes da vida, é interrompido - ou será que o

amor transcende a morte? e conduz Orfeu do mundo terreno, das vicissitudes

humanas, para a bem-aventurança olímpica ao lado de seu pai Apolo.

Travessia em que princípio e fim, vida e morte, alegria e dor, sagrado e

profano são sempre vigor de manifestação do sentido poético de ser, Orfeo destaca-

se, dentre as obras musicais que conhecemos, como a que nos proporcionou o

arrepio e o êxtase35.

Entretanto, debruçarmo-nos sobre esta ópera é tarefa de muito fôlego, é um

árduo exercício que se assemelha à tentativa de Orfeu em trazer sua amada

Eurídice de volta do Hades e vê-la novamente fenecer por causa de um olhar

duvidoso, de um sentimento da fraqueza, da vulnerabilidade, e, por que não dizer,

de temor e tremor humano, ao tentarmos rememorar e comemorar este Orfeo nas

considerações que iremos fazer adiante.

Mas, se nos situarmos na margem do poético, traremos a cítara e o

encantamento da poesia da canção, sem volvermos o olhar para trás. O que Orfeo

nos incita é, portanto, um mergulho na poética da vida e do amor.

4.3 UMA POÉTICA DO ORFEO

Realizar um estudo interpretativo da 1ª Ópera Moderna, o Orfeo de

35
Conforme depoimento de Piedade de Carvalho, professora da Universidade Federal Fluminense e
orientadora de mestrado do autor deste trabalho.
95

Monteverdi, pode parecer um grande atrevimento na medida em que nos deparamos

com uma das obras musicais mais significativas, desde os primórdios da ópera. Ela

possui o canto e o encanto dos mitos de Orfeu, Eurídice e Apolo, e é, neste sentido,

uma das histórias mais belas, jamais contadas e cantadas, onde vida, morte, paixão,

ressurreição, compaixão e o poder trágico dos homens e dos deuses constituem

questões essenciais.

O papel da música, neste caso, é o de conceder expressividade para a

história. Numa interpretação onde a dramaticidade do texto é o mais importante

cabe, primordialmente, uma interpretação do texto, o que não invalidaria uma

interpretação musical ou lítero-musical. Aqui buscamos evitar uma interpretação

baseada nas correlações teórico-musicais, pois o que pretendemos é realizar uma

interpretação poética do texto, ou seja, dar ênfase ao poético, cujo sentido nos é

apresentado pela própria obra.

É claro que a parte musical é importante, mas como não se trata de um

trabalho específico de música, pensaremos, sobretudo, o poético do texto. Fizemos

assim porque a obra nos sugeriu que assim o fosse, quando, a partir do aceno do

texto poético da obra, construímos, não metodologias, mas um caminhar ambíguo

que configura o método que se nos desvelou na ausculta da obra.

Acompanhar as peripécias do caminho que conduz da vida morrente e da

morte renascente é deixar-se tocar pela lira de Orfeu e inaugurar um caminho regido

pela égide do destino. Travessia, passagem, o que temos é a possibilidade de

encontrar no ordinário o extraordinário. A lira de Orfeu são os caminhos de Hermes

feitos canto e encanto. Orfeu e Hermes, perder e ganhar, têm a mesma origem, pois

ao entrar no Hades, Orfeu tem a sorte de trazer sua amada de volta, mas ao volver

os olhos para trás desobedecendo ao mandamento de Plutão, a perde. Perde sua


96

amada em função de um olhar duvidoso. Os caminhos de Hermes são misteriosos,

assim como os métodos e as interpretações.

O caminho de Orfeu é o do encantamento, do canto encantado e da ação das

musas nos destinos dos homens. Orfeu encanta os seres infernais para pedir

passagem e, somente encantando é que entra no mundo dos mortos. Esse é o

poder da música, de encantar, adormecer, deixar passar...

Esse caminhar de Orfeu e sua travessia na barca de Caronte é também o

nosso caminhar. Temos sorte ou azar? Deus da fugacidade, o mesmo ocorre no

entendimento da própria música, pois seu tempo é fugaz. O que ouvimos é um já

acontecido e que ainda mostra o que virá.

E como termina a estória? Para Eurídice a morte, para Orfeu a espera

esperançada da volta de Eurídice à vida. Mas existe o inesperado: a subida de Orfeu

aos céu olímpico em companhia de seu pai Apolo. E para nós? Cada qual que

encontre o seu caminho, seu método, rumo ao desconhecido no qual o que se

espera é o inesperado.

A grandiloquência de Orfeu é o que mais se difunde acerca do mito. No seu

canto encantado o dito e, principalmente o não-dito, configura sempre um jogo

originário e está intimamente ligado às potencialidades da própria physis que nele se

doa como linguagem anunciadora de um mistério. Acalanto das potestades, das

feras e dos rochedos, sua voz é o que configura sentido e toda forma de vida

existente rende-se ao seu canto. Todavia, quem é este que ultrapassa os limites do

humano e adentra nas profundezas da terra?

Enquanto fabulação mitico-poética, Orfeu é uma potência reveladora de um

mundo essencialmente telúrico e seu canto nos é dado pelo encantamento da

realidade que se anuncia. Esse encantamento decorre de que há, na música de


97

Orfeu, um canto de vida e morte no qual o amor resguarda o viço poético do ser.

Como se dá, no entanto, este resguardo do ser?

Ouçamos então, daqui por diante, o desenrolar deste drama pronunciado

pelos seus personagens nesta obra: L’Orfeo – favola in musica.

Prólogo: os suaves acentos das musas

No Prólogo da ópera L’Orfeo, de Claudio Monteverdi, temos a aparição da

Música, alegoria que apresenta seus atributos, seu poder, sua função na obra e que

também permeia toda a estória, pontuando-a em seus momentos mais expressivos.

Ela fala de seu poder, que pode consolar os espíritos aflitos e inflamar as mentes

mais gélidas ora com a mais nobre ira, ora com o amor.

Assim canta a Música, na partitura do Orfeo:

LA MUSICA
Io la Musica son, ch’à i dolci accenti
sò far tranquillo ogni turbato core,
et hor di nobil ira, et hor d’amore
posso infiammar le più gelate menti.

[A MÚSICA
Eu sou a Música, que com suaves acentos
Posso acalmar cada coração perturbado,
E, ora com nobre ira, ora com amor
Posso inflamar as mais geladas mentes.]36

Nesta ária em estilo recitativo37, se podem perceber os sentimentos de


36
Tradução livre nossa, daqui em diante em todos os textos do libreto de Striggio, em que buscamos
preservar a sonoridade e a prosódia rítmica dos versos italianos, mesmo com algum prejuízo da
fluência compreensiva em português, com a finalidade de tentar preservar o “sabor” da língua e da
versificação originais.
98

ambivalência, mistério e destino, onipresentes neste Orfeo. É cantada por um

personagem alegórico, a Música, que, vez por outra vai pontuando os

acontecimentos, em estilo monódico38. Este jogo entre alegoria, personagem e obra,

chama a participação dos ouvintes, conclama-os também como cúmplices

encantados da história trágica e salvífica que será contada e cantada, e que irá

culminar na catarse e redenção, típicas da tragédia grega, como p.ex., a história de

Édipo.

“A Música”, que se autodenomina como possuidora de dolci accenti39,

capazes de acalmar os corações agoniados, mostra suas possibilidades expressivas

e encantatórias. Mostra seus afetos40, à luz dos afetos humanos: a suavidade, o

ritmo, a dramaticidade e o lirismo e sua capacidade de “inflamar as mais geladas

mentes”, ou seja, poeticamente, agir no campo da razão e do sentimento afetivo,

trazendo-os para a presença do agir poético e da superação dos sentimentos

dicotômicos.

Este é o poder da Música, aqui revelado por sua própria alegoria. O poder de

extrair de sua essência e de sua physis esta dinâmica propiciatória da eloqüência

sensível, de uma escuta transformadora e uma visão inefável deste seu poder

mágico, fantástico e hermenêutico.

Tudo feito de forma quase declamatória, com cada palavra sendo escandida

de forma a valorizar o consórcio poético-melódico. Como a dizer que estas duas

instâncias artísticas são inseparáveis. Que são um e o mesmo.

Este poder da música é “quem salva Orfeu nos momentos mais desesperados
37
Nas obras operísticas de Monteverdi, há, muitas vezes, uma interdependência entre a Ária, que é
um solo em que o cantor / intérprete de um personagem importante na trama canta os seus
sentimentos subjetivos, e o Recitativo, que é um anúncio quase falado, feito por um observador que
narra a cena. Aqui a Música é uma alegoria, que fala por si e anuncia também o que está por vir.
38
Quando a cada sílaba do texto cantado corresponde uma nota musical.
39
Suaves acentos (trad. nossa)
40
Na teoria dos afetos, utilizada no período barroco, os sentimentos são expressos pelos modos das
escalas.
99

de sua vida. É a criação artística, em última análise, que o homem tem como forma

suprema de dar sentido à sua vida”. (COELHO, p.58).

1º ato: Eurídice a rosa do céu de Orfeu

Após esta introdução da ópera, em que a Música é apresentada de forma

alegórica, passemos para o hino de amor que Orfeu canta para sua amada Eurídice,

no 1º ato:

ORFEO
Rosa del ciel vita del mondo
E degna prole di lui che l’universo affrena
Sol ch’el tutto circondi e’l tutto miri
Da gli stellanti giri, dimmi:
Vedesti mai di me più lieto e fortunato amante?41

[ORFEU
Rosa do céu, vida do mundo,
Digna filha daquele que governa todo o universo,
Ó sol que tudo abraça e tudo mira de sua órbita celestial, diga-me
Se já viu um amante mais alegre e afortunado que eu?]

Assim designa Orfeu a Eurídice, como rosa do céu, vida e luz42 do mundo,

quando também pergunta ao sol se existe um amante mais alegre e afortunado que

ele. É a canção de Orfeu apaixonado que, transbordante de alegria, manifesta seu

amor por Eurídice comparando-a à flor, ao céu, à vida e ao mundo. Esta belíssima

introdução laudatória e amorosa é a nossa primeira e grandiosa imagem-questão na

obra, que é a do cantor apaixonado que glorifica sua musa inspiradora. Bardo,

41
Extraída da partitura do Orfeo de Monteverdi, libretto de A.Striggio.
42
Em outras versões, Gemma Del mondo: sol do mundo.
100

poeta, aedo. Ela também aí é comparada ao Sol, que tudo vê e tudo abraça.

Este sol, símbolo do deus Apolo, pai de Orfeu, representa também o mundo

da placidez e bem-aventurança apolínea. Esta órbita celestial, o Olimpo dos deuses

gregos é o lugar de onde vem e para onde vai em pensamentos Orfeu. Entre céu e

terra e Hades, giram os afetos de nosso herói, que, como se verá, terá que seguir

este périplo hermenêutico, este caminhar caminhando que o faz pensar, sentir e

viver os sentimentos da paixão, dor e morte que afetam todos os mortais, como

Eurídice, mas que também o impulsionam na sua dupla condição de filho de um

deus com uma mortal e portanto susceptível de sofrer e padecer o pathos humano.

A paixão, morte, ressurreição e subida aos céus se apresentam nesta “favola

in musica” como reminiscências imemoriais de várias teogonias e, principalmente, da

nossa cultura judaico-cristã. Hino de louvor místico, humano e lírico, mito que

antecede em milênios as manifestações dos sentimentos líricos dos homens pelas

mulheres, como vimos nas cantigas medievais, tanto sacras como profanas, e como

iremos ver mais à frente, quando questionarmos o mundo seresteiro no Brasil

moderno.

Podemos reafirmar então os sentidos imemoriais e proféticos desta obra, que

bebe tanto na cultura medieval européia, num passado mítico cristão e também

olímpico e mediterrâneo, como aponta para o que há de vir e que continua nos

sensibilizando até os dias hoje: o cantar ameno e poético do lirismo encantado da

mulher nem sempre inacessível como a Dulcinea do Quixote, mas a mulher nossa

de cada dia, sempre propalada e enaltecida no cancioneiro popular brasileiro.

A forma musical deste acontecer poético se dá sempre pela conjugação da

palavra clara e acessível que é o canto da voz que canta com um suporte harmônico

que lhe realça o sentido musical e poético, musal portanto.


101

Continuando a apresentação dos personagens, temos agora Eurídice,

apresentada por Orfeu, conforme o libretto da partitura em questão, quando ela

canta sua doce ária de enlevo:

EURIDICE
Io non dirò qual sia
nel tuo gioir, Orfeo, la gioia mia,
che non hò meco il core,
ma teco stassi in compagnia d’Amore.
Chiedilo dunque à lui s’intender brami
quanto lieta gioisca, e quanto t’ami.

[EURÍDICE
Eu não direi o que seja
Ver na tua alegria, Orfeo, o meu regozijo,
Pois meu coração não mais está comigo
Mas sim contigo, em companhia do Amor.
Pergunte-lhe então, se desejar saber
Quão feliz ele está e quanto te ama.]43

Nessas palavras femininamente amorosas, aceita Eurídice o amor de Orfeu.

Aqui, Amor é também alegoria, Eros e Cupido, como se fosse uma 3ª pessoa a

desejar, por força do destino, a consumação desta união. Os personagens

alegóricos desta ópera, tais como a Música, o Amor e a Esperança estão sempre

dialogando com os personagens humanizados, têm voz própria e possuem destaque

no desenrolar da obra. São, de uma certa forma os personagens míticos não divinos

que aconselham, instruem e consolam os protagonistas em suas vicissitudes. São

seus próprios sonhos divinos e humanos.

Mas as palavras de Eurídice, ao mesmo tempo em que anunciam sua alegria

43
Tradução livre nossa do original em italiano.
102

pela união com Orfeu, também carregam acentuações melódicas trágicas, como

quando ela canta no 4º verso: “Mas sim contigo, em companhia do Amor”. A música

que ela canta neste momento tem a mesma conformação rítmico-melódica do

lamento fúnebre de Orfeo, 2º ato: “Permanecerei contigo, na companhia da morte”.

Então, Eurídice canta seu canto amoroso que, no entanto, traz no seu bojo

melódico, por uma ironia do destino, a sua sina e seu terrível desfecho. É aí que a

música mostra também o seu poder de conhecer o que era, o que é e o que será.

Amor e Morte, Divino e Humano, Terra e Céu, Luz e Trevas, Olimpo e Hades.

É na presença deste embate entre as forças telúricas e olímpicas que se desenrola

esta história de amor e de tragédia, e que termina com um gran finale, como

acontece em todas as óperas...

A melodia realçando o texto poético, agregando-lhe sinergia e novos

significados. Os versos transmutando os sons musicais em palavras inefáveis e

sensíveis, como um cavalheiro conduzindo sua dama na contra-dança e um bailarino

apoiando sua partner num jogo de arsis e tesis44, alçando e apoiando, aproximando

e afastando: o jogo do amor!

2º ato: A amarga sorte de Orfeu

O 2º ato abre com o canto de Orfeu, que canta o júbilo de estar presente no

mundo, exaltação ensolarada de seu amor:

ORFEO
Ecco pur ch’à voi ritorno
care selve e piagge amate,
da quel sol fatte beate

44
Arsis e Tesis: elevação e repouso, o ato de levantar o pé e pousá-lo no chão, na Grécia antiga.
103

per cui sol mie nott’han giorno.

ORFEU
[Eis que estou convosco novamente
Florestas e mares queridos,
Abençoados por tal sol
Que fez das minhas noites, meus dias].

Com estas palavras de júbilo e regozijo em que novamente Eurídice é

comparada ao sol de Orfeu, que transforma o escuro em claro, claridade que ilumina

e aquece os elementos da natureza: a floresta da terra e os mares do oceano -

água, terra, sol, calor. Sol que parte de seu pai Apolo, deus do sol e volta-lhe, de

forma encantada, pelo amor de Eurídice.

Entre festejos e cantos de Orfeu, das ninfas e pastores, segue Orfeu louvando

a criação e seu amor, lembrando-se também de seu passado de dores e tristezas,

de solidão, enfim:

ORFEO
Vi ricorda ò boschi ombrosi,
de’ miei lunghi aspri tormenti,
quando i sassi ai miei lamenti
rispondean fatti pietosi?

[ORFEU
Vos lembrais, bosques sombreados
Dos meus longos e amargos tormentos
Quando as rochas aos meus lamentos
Respondiam piedosas?]

Sol per te, bella Euridice,


benedico il mio tormento.
Dopò’l duol vi è più contento,
dopò’l mal vi è più felice.
104

[Só por ti, bela Euridice


Bendigo os meu tormentos, pois
Após a dor se é mais contente,
Após o mal se é mais feliz].

Eis que surge, então, Silvia (selva, terra?), a Mensageira, companheira de

alegrias de Euridice, trazendo a funesta notícia, em tom dramático e lamentoso:

MESSAGGIERA
Ahi, caso acerbo! Ahi, fat’empio e crudele!
Ahi, stelle ingiuriose! Ahi, ciel avaro!

[MENSAGEIRA
Ah, amarga sorte! Ah, fardo ímpio e cruel!
Ah, estrelas injuriosas! Ah, céu avaro!]

A te ne vengo Orfeo
messagiera infelice
di caso più infelice e più funesto.
La tua bella Euridice...
………….
La tua diletta sposa è morta.

[A ti venho, Orfeo
Mensageira infeliz
De notícia a mais infeliz e funesta.
A tua bela Eurídice...
.................
A tua dileta esposa é morta.]

Aqui se dá o ponto culminante desta história, com a notícia da morte de

Eurídice, que foi picada por uma serpente quando, num prado florido, colhia flores
105

com suas companheiras para fazer uma guirlanda para a cabeça. Aí acontece a

suspensão dramática da cena: Um anúncio de morte, o anúncio da morte. Neste

hiato acontece o vazio pleno, que plenifica o sentido da história. O momento do não

mais voltar, da impossibilidade do recuo. Momento final.

Porém, é este momento final, desta notícia, que torna digna e significativa

toda a trama e a ação dramática. Uma mensageira alegórica trazendo a trágica

notícia para Orfeu, um semideus, que semi-sabe e semi-sente o que está

acontecendo e o que está por vir. Dignidade que vem da percepção do tênue liame

que une a vida e a morte. A estupefação e a incredulidade e também a infinita

tristeza do luto fazem Orfeu esquecer sua condição divina e beber do amargo cálice

das vicissitudes da vida terrena.

Após esta funesta notícia, que é seguida por longo canto de Silvia explicando

todo o acontecido, através de uma longa ária em forma de recitativo, ouvimos o

canto / lamento de Orfeu, a mais célebre ária desta ópera:

ORFEO
Tu se’ morta, se’ morta , mia vita,
ed io respiro? tu se’ da me partita
per mai più non tornare, ed io rimango?
Nò, che se i versi alcuna cosa ponno,
n’andrò sicuro a più profondi abissi
e intenerito il cor del Rè de l’Ombre,
meco trarròtti a riveder le stelle.
O se ciò negheràmmi empio destino,
rimarrò teco in compagnia di morte,
A dio terra, à dio cielo, e sole, à dio.

[ORFEU
Tu estás morta, estás morta, minha vida,
E eu ainda respiro? Tu partiste, de mim
106

Para nunca mais retornar, e eu permaneço?


Não, pois que se meus versos alguma coisa podem,
Andarei seguro pelos mais profundos abismos
E enternecerei o coração do Rei das Sombras,
E te trarei comigo para rever as estrelas.
Ou, se isto me negar o cruel destino,
Ficarei contigo na companhia dos mortos:
Adeus Terra, adeus Céu, adeus Sol, adeus...]

Neste canto belíssimo, uma das obras-primas do repertório lírico de todos os

tempos, cruzam-se céu e terra, vida e morte, permanência e finitude e, sobretudo, o

amor trágico, que culmina com a morte de Eurídice, picada por uma cobra. A

interveniência da fatalidade e do destino na mesma paleta onde se dão os

sentimentos humanos de amor e de esperança. A esperança que tece o fio da

memória e permite que passado presente e o futuro sejam um e o mesmo tempo. A

ironia da dor de quem toca a morte com o bafejo da vida, a ironia que nega a vida e

traz a morte.

Eurídice é o momento humano da vida de Orfeu e Orfeu é o momento divino

da vida de Eurídice. Nesta passagem / travessia entre a vida e a morte, acontece o

existir, a claridade e a fugacidade da vida. O resto são silêncios, sombras, o nada...

O trágico no Orfeu não é a primeira morte de Eurídice. A tragédia se dá

quando, após descer as profundezas da terra, Orfeu tem a possibilidade de trazê-la

de volta à vida desde que não volte os olhos para trás. Mas o desejo de ver, a ânsia

de saber-se atendido faz com que ele volte os olhos. No que volve os olhos, Orfeu

faz com que Eurídice morra pela segunda vez. Essa segunda morte não apresenta

possibilidade alguma de renascimento. Eurídice está morta para sempre e nada

mais pode ser feito.

O simples gesto de olhar para Eurídice, que, naquelas circunstâncias, não


107

poderia ser olhada, por imperativo de Plutão, senhor do Hades, o faz perdê-la para

sempre. O destino trágico de Orfeu é perder Eurídice já nas bordas do mundo

exterior da vida mostrando, portanto, nossa fraqueza e indecisão, pois embora o

homem sempre escolha a vida, não pode se liberar da morte.

A morte de Eurídice anuncia, dentre outras coisas, o fim da importância do

feminino nas “priscas eras” helênicas e o advento do mundo olímpico que é

essencialmente masculino. Isso decorre de que a segunda morte de Eurídice faz

com que Orfeu retorne para o Olimpo sob os cuidados e a bênção de seu pai Apolo,

que desce à terra para revelar a bem-aventurança do mundo olímpico. Inconsolado,

confuso e abandonado, Orfeu aceita o convite de Apolo e sobe aos céus.

A tragédia protagonizada por Orfeu mostra o efêmero do humano, ou seja, a

precariedade e finitude que é própria da vida humana. Por isso, a escuta da

dimensão hermenêutica da obra nos permite ultrapassar o par sujeito/ objeto e nos

lança na unidade do ser.

Todos estes afetos são cantados em forma de um misto de recitativo e ária,

onde o que importa é a dramaticidade do texto e não a ornamentação ou

embelezamento das notas musicais e do virtuosismo musical – o que seria mais

apropriado para uma ária - conforme os ideais da Camerata Fiorentina, no que diz

respeito ao uso do recitativo e a preferência pela textura homofônica no lugar da

polifônica.

Aqui, o que importa verdadeiramente é a secura do sentimento trágico da

perda e do desalento perante o inevitável e o insuperável, como é o caso da morte,

e, mais ainda, da morte da mulher amada.

As correspondências lítero-musicais originadas pelo acoplamento de texto e

melodia são evidentes na forma como o compositor associa as palavras do texto


108

com as notas musicais e a instrumentação da partitura, mas nós não nos

aprofundaremos muito nesta seara. O intenso cromatismo e a violenta oscilação

entre os modos maior e menor na tonalidade da música representam, neste caso, os

sentimentos conflituosos e desesperados do nosso herói.

As palavras morte, adeus e abismo são cantadas em notas graves e sol, céu

e estrelas em notas agudas. O andamento lento (Largo), o acompanhamento com

acordes simples e graves em instrumentos de timbres também graves e outras

expressões musicais criam a sinergia perfeita entre os sentimentos de Orfeu e a

musicalidade da obra, proporcionando ao ouvinte um impacto de alta intensidade

dramática, como queria Monteverdi.

No entanto não iremos nos aprofundar na questão das correspondências

lítero-musicais da obra, por fugir ao escopo deste trabalho.

3º ato: Orfeu no reino dos mortos

No 3º ato acontecem as peripécias da entrância de Orfeu no Hades, o reino

dos mortos, em busca de Eurídice, com quem deseja estar, e suas barganhas

astutas com as potestades ou espíritos infernais, com Caronte, o barqueiro que leva

a alma dos mortos para o Hades, através do rio Estige escoltado por Esperança que

o acompanha até os umbrais do mundo inferior.

Neste momento eles tecem um diálogo que denuncia a insegurança de Orfeu

por adentrar na região do Mistério:

ORFEO
Scorto da te mio Nume
Speranza, unico bene
de gl’afflitti mortali, omai son giunto
109

a questi mesti et tenebrosi regni


ove raggio di sol giamai non giunse.
Tù mia compagna e duce
in così strane e sconosciute vie
regesti il passo debole e tremante,
ond’oggi ancora spero
di riveder quelle beate luci
che sol’à gl’occhi miei portan’ il giorno.

[ORFEU
Escoltado por ti, minha deusa
Esperança, único consolo
Dos mortais aflitos, enfim cheguei
Neste triste e tenebroso reino
Onde raio de sol jamais entrou.
Tu, minha companheira e guia
Em tão estranha e desconhecida via
Regeste meus passos débeis e trementes
Onde hoje ainda espero
Rever a beata luz daqueles olhos
Que, somente eles, aos meus olhos trazem o dia.]

Ao lá chegar, Esperança lhe diz:

SPERANZA
Ecco l’atra palude, ecco il nocchiero
che trahe l’ignudi spirti a l’altra riva
dove hà Pluton de l’ombre il vasto impero.
...................................................
Io fin qui t’hò condotto, hor più non lice
teco venir, ch’amara legge il vieta.
Legge scritta co’l ferro in duro sasso
de l’ima reggia in sù l’orribil soglia
ch’in queste note il fiero senso esprime,
Lasciate ogni speranza ò voi ch’entrate.
110

[ESPERANÇA
Eis o pântano sombrio, eis o timoneiro
Que leva os espíritos desencarnados à outra margem
Onde Plutão reina da sombra o vasto império.
.........................................................................
Até aqui te trouxe, mais longe não posso ir
Pois dura lei o proíbe.
Lei escrita com ferro na dura pedra
Sobre o terrível umbral do reino das profundezas,
Que com estas palavras o altivo senso exprime:
ABANDONEIS TODA ESPERANÇA, VÓS QUE ENTRAIS!]

Esperança fala-lhe do que ele irá encontrar “onde Plutão reina sobre seu

vasto império de sombras”45 e lhe diz que daí em diante não poderá estar mais com

ele, e comenta sobre o dístico gravado na entrada do Hades: “Abandoneis toda

esperança, vós que entrais”, numa alusão ao Inferno de Dante em “A Divina

Comédia”.

Ali, nem a Esperança poderia ajudá-lo, por se tratar do lugar onde não mais

se espera, por se tratar do Reino dos Mortos, o fim da memória, o final dos tempos,

sem nem mesmo a parousía, volta gloriosa do deus ressurrecto, como na mitologia

judaico-cristã.

Orfeu, num gesto de desalento, desabafa com a Esperança, dizendo-lhe:

“Onde estás indo, único doce conforto do meu coração?”, e depois, “Qual bem me

resta agora, se vós me abandonastes, dulcíssima Esperança?”46(Dove, ah dove te‟n

vai, / unico del mio cor dolce conforto? /Poi che non lunge homai)

Este Ato representa o caminhar de Orfeu pelo reino dos mortos em busca da

vida que feneceu. Aqui se apresenta da forma mais patente a ambigüidade da

45
Tradução literal do texto italiano (libretto).
46
Tradução livre do libretto
111

existência de Orfeu: deus e homem à procura do amor no mundo dos mortos.

Paradoxo, contra-senso, caminho misterioso de busca do que não mais se pode

encontrar: a vida no seio da morte.

É destes sentimentos aparentemente antagônicos que se nutre toda a obra e

que se evidencia especialmente neste mundo sombrio do Hades, onde a luz de

Orfeu e o encanto e a magia de sua música, podem fazer brotar o que

aparentemente fenecera, iluminar o que escurecera e sonorizar o que silenciara.

A travessia na barca de Caronte, o barqueiro das almas perdidas, apresenta a

fluidez e o continuum desta passagem em que sempre estamos transitando: o dia e

a noite, o alto e o baixo, o silêncio e o som, a vida e a morte. Nesta passagem

acontece o mistério do vazio e do nada, preenchido pela magia da música do canto

de Orfeu, trazendo à presença a arte, como plenitude de sentido e de vida!

Após a experiência macabra do caminhar pelo “vale da sombra da morte” 47 e

após um conluio entre divino e mortal, Olimpo e Hades, consegue Orfeu um acordo

com Plutão e Prosérpina48, senhores do mundo das trevas: ele poderá trazer

Eurídice do mundo dos mortos para a vida, porém, com uma condição: não olhar

para trás durante a viagem de retorno.

Isso acontece, voltando um pouco na história, devido à compaixão do

feminino em Prosérpina, que convence Plutão a dar uma outra oportunidade para o

amor de Orfeu e Eurídice.

4º ato: Eros e Tanatos

Assim canta Prosérpina suas amáveis e ardilosas sutilezas, para enternecer o

47
Alusão bíblica (Salmo 23).
48
Perséfone, para os gregos.
112

coração de Plutão e substituir o jugo da Lei, pelo suave aroma do Amor:

PROSERPINA

Signor, quel infelice


che per queste di morte ampie campagne
và chiamand’Euridice,
ch’udit’hai tù pur dianzi
così soavemente lamentarsi,
moss’hà tanta pietà dentr’al mio core
ch’un’altra volta io torno a porger preghi
perchè il tuo Nume al suo pregar si pieghi.

[PROSÉRPINA

Senhor, aquele infeliz


Que vaga pelos amplos domínios dos mortos
Clamando por Eurídice,
E de quem vós ouvistes tão suaves lamentos,
Moveram tanta piedade no meu coração
Que, mais uma vez, eu venho vos implorar
Para que ouçais seus lamentos, meu Senhor.]

A compaixão de Prosérpina – que havia sido raptada por Plutão para

desposá-lo, segundo a lenda -, relembra a seu Senhor, que ele poderia talvez,

devolver a alguém a possibilidade de retornar ao mundo dos vivos. Este lamento,

possivelmente, é o próprio lamento de Prosérpina espelhada em Eurídice, também

raptada para o mundo dos mortos. A entrega de seu desejo de vida plena é

oferecido a Eurídice pelo caminho da persuasão de Plutão.

O que significa ouvir os lamentos “daquele infeliz”? O que significa a esposa

do rei dos mortos ansiar pela volta à vida plena daquela que desposou o filho do rei

dos vivos: Phoebus/ Apolo, deus do sol e da vida, que ofereceu sua lira e o dom das
113

musas a seu filho Orfeu?

Estes “tão suaves lamentos” serão, na verdade, de quem?

De Prosérpina a Plutão, por sua própria redenção? De Orfeu para Prosérpina,

inebriada pelo canto musal da lira de Orfeu? Mover, piedade, coração: palavras do

feminino e do ritmo, liras que deliram pelo canto amoroso de Orfeu, movimento de

Hermes / Orfeu / Zéfiro / Cupido em direção ao coração do feminino, que se move

amorosamente pela piedade, gesto de doação, entrega, oferenda da vida, do afeto e

do amor... Virtudes tão femininas em Obra tão masculina; obra que celebra a vida,

sofrimento e redenção do homem-deus Orfeu, filho de Apolo. Orfeu, que ganha,

perde, ganha e perde novamente a veleidade, a voluptuosidade e a volatilidade da

Mulher: “La donna è móbile / Qual piuma al vento,”49... Será?

O que ganha Orfeu, afinal, como se verá mais adiante, é a subida para o

Olimpo em companhia de seu pai, Apolo. O advento da serenidade e da paz, através

da prédica de seu pai Apolo, é o que ganha Orfeu, afinal. E que ganho é esse,

então? – talvez a Era do masculino, do logos / ratio, da razão prudente e

serenamente meditada para evitar o sentimento do trágico e do mistério? Para evitar

as dúvidas e as incertezas? Para vencer a morte? A troca do mundo dionisíaco pelo

apolíneo? São questões para se pensar e que estarão sinalizadas em imagens mais

para o final desta ópera.

PROSERPINA

Deh, se da queste luci


amorosa dolcezza unqua trahesti
se ti piacqu’il seren di questa fronte

49
A mulher é volúvel qual pluma ao vento (tradução livre nossa) – da Ópera Rigoletto, de Giuseppe
Verdi. O excerto talvez auxilie na compreensão dos lamentos aqui referidos, de Orfeo e de
Prosérpina.
114

che tù chiami tuo cielo, onde mi giuri,


di non invidiar sua sorte à Giove,
pregoti, per quel foco,
con cui già la grand’alma Amor t’accese,
fa ch’Euridice torni a goder di quei giorni
che trar solea vivend’in feste e in canto,
e del miser Orfeo consola’l pianto.

[PROSÉRPINA
Ó, se desses olhos
Com amorosa doçura me atraístes
Se te acalma a suavidade desta fronte
Que tu chamas de teu céu, pela qual me jurastes,
Não invejar sua sorte a Júpiter,
Imploro-te, por aquele fogo,
Com que a grande alma o Amor te acende.
Faz com que Eurídice retorne ao gozo daqueles dias
Que ela dispendia entre festas e cantos
E, do mísero Orfeu, consola o pranto]

Com estas palavras e súplicas amorosas, Prosérpina acaba convencendo

Plutão a ouvir o lamento de Orfeu e a dar uma nova oportunidade para que Eurídice

volte a ver a luz do sol.

Porém, isso exige um trato, um compromisso de Orfeu com Plutão, que faz a

seguinte exigência, como se verá no canto seguinte de Plutão, dirigido a Prosérpina:

PLUTONE

Benchè severo ed immutabil fato


contrasti, amata sposa, a i tuoi desiri,
pur null’homai si nieghi
a tal beltà congiunta a tanti prieghi.
La sua cara Euridice
contra l’ordin fatale Orfeo ricovri.
115

Ma pria che trag’il piè da questi abissi


non mai volga ver lei gli avidi lumi,
che di perdita eterna
gli sia certa cagion un solo sguardo.
Io così stabilisco. Hor nel mio Regno
fate o Ministri il mio voler palese,
sì che l’intenda Orfeo
e l’intenda Euridice
ne di cangiar l’altrui sperar più lice.

[PLUTÃO
Ainda que severo e imutável destino
Contrariem, amada esposa, os teus desejos,
Nada se negue
A tal beleza conjugada a tantas preces.
A sua cara Eurídice
Contra a ordem do destino a Orfeu retorne
Mas, enquanto ele mantiver os pés nestes abismos
Não voltará para ela seus ávidos olhos,
Pois perdição eterna
Lhe seja certa, por um simples olhar causada,
Assim eu ordeno. No meu Reino,
Tornais público, Ministros, o meu desejo
Que o entenda Orfeo
Que o entenda Eurídice
E que ninguém o ouse mudar.]

Olhos, lumi, sol, a potência da visão interditando o resgate de Eurídice. A luz

é o sol e também os olhos. Sol de Apolo que traz vida e livra da morte. Isso, Plutão

não iria permitir, pois é preciso que haja sombra para haver a claridade e haja morte

para existir a vida. Sol, luz, Apolo, pai de Orfeu. Plutão, Perséfone ou Prosérpina,

profundezas abissais e escuridão. Nesta cosmogonia configura-se o ver e o existir,

próprios do fenômeno, que mostra e esconde o que aí está.


116

A Lei do Pai, Plutão, é profanada e daí virá a interdição que opõe à vida, a

morte. Porém Orfeu, em sua forma humanizada, não está regido pela Lei, mas pelo

desejo, que, em essência, desconhece a Lei e se rege por seus próprios impulsos:

Eros e Tanatos.

Nesta travessia de saída do mundo subterrâneo, com Eurídice atrás de si,

Orfeu canta “Qual onor di te sia degno”, em louvor de sua lira, já no 4º ato, após os

Espíritos Infernais cantarem:

CORO DI SPIRITI
Pietade oggi et Amore
Trionfan ne l’inferno.

[CORO DOS ESPÍRITOS


Piedade hoje, e Amor,
Triunfaram sobre o inferno.]

E a seguir um espírito canta:

UNO ESPIRITO DEL CORO


Ecco Il gentil cantore,
Che sua sposa conduce al ciel superno.

[UM ESPÍRITO DO CORO


Eis o gentil cantor,
Que sua esposa conduz às alturas celestes.]

ORFEO
Qual honor di te sia degno,
mia cetra onnipotente,
s’hai nel Tartareo regno
piegar potuto ogni indurata mente?

Luogo havrai fra le più belle


117

imagini celesti
ond’al tuo suon le stelle
danzeranno co’gir’hor tard’hor presti.
Io per te felice à pieno
vedrò l’amato volto,
e nel candido seno
de la mia donn’oggi sarò raccolto.

[ORFEU
Que honra de ti será digna
Minha lira onipotente,
Se, no tartáreo reino
Pudeste dobrar toda enrijecida mente.

Um lugar tereis entre as mais belas


Imagens celestes
Onde, ao teu som, as estrelas
Dançarão em giros, ora lentos, ora rápidos.

Graças a ti, cheio de alegria,


Verei a amada face
E no cândido seio
Da minha senhora, hoje estarei recolhido.]

Aqui aparece o poder da lira de Orfeu, o poder da Música, alegoria perfeita do

encanto e magia da arte que, como diz o poeta: “ao teu som, as estrelas dançarão

em giros, ora lentos, ora rápidos” e é comparada às “mais belas imagens celestes”.

Mas, logo a seguir, após ouvir um rumor ao fundo, canta Orfeu:

ORFEO
Ma che odo, ohimè lasso?
S’arman forse à miei danni
Com tal furor le Furie innamorate
118

Per rapirmi Il mio bem, ed io’l consento?

[ORFEU
Mas que ouço, ai de mim lasso?
Se armam talvez para meu dano
Com tal furor as Fúrias encantadas
Para raptar o meu bem, e eu o consinto?]

E, voltando-se para Eurídice, canta:

ORFEO
O dolcissimi lumi, io pur vi veggio,
Io pur... ma qual eclissi ohimé v’oscura?

[ORFEU
Ó dulcíssimos olhos, eu pois vos vejo,
Eu pois... mas qual eclipse, ai de mim, te escurece?]

Um espírito, então, canta:

UNO ESPIRITO
Rott’hai la legge, e se’ di grazia indegno.

[UM ESPÍRITO
Quebrastes a lei e de misericórdia sois indigno.]

E assim, desta forma, cumpre-se o vaticínio de Plutão, determinando a volta

para sempre de Eurídice, para o reino do Hades. A humanidade e o amor de Orfeu

salvaram e perderam Eurídice para sempre. Os mortais não reviverão, só os deuses

caminham entre o claro e o escuro, pois esta é a sua condição: superar a dor e a

tragédia da vida e da morte, habitando na bem-aventurança olímpica.

Dito isto, nada mais há a considerar até o final deste 4º ato. A beleza e a
119

profundidade dos cantos que seguem com Eurídice, Orfeu e os Espíritos infernais

nos impedem de nos pronunciarmos. Aqui, a linguagem que habita na morada do

ser do homem passa a ser escuta, meditação e oração. É o momento mágico em

que a obra descarta qualquer interpretação, análise ou palavras laudatórias. Aqui a

obra fala por si, solitária e soberana. Cabe-nos apenas escutar embevecidos o

mistério e a magia da beleza desta obra de arte.

EURIDICE
Ahi, vista troppo dolce e troppo amara;
Cosi per troppo amor dunque mi perdi?
Et io misera perdo
Il poder più godere
E di luce e di vista, e perdo insieme
Te d’ogni bem più caro, mio consorte.

[EURÍDICE
Ai, visão tão doce e tão amarga;
Assim por tanto amor me perdes?
E eu, miserável, perco
O poder de mais gozar
Da luz e da visão, e perco também
A ti, de todo o bem o mais caro, meu esposo.]

UNO ESPIRITO DEL CORO


Torn’a l’ombre di morte
Infelice Eurídice,
Nè più sperar di riveder le stele
Ch’omai fia sordo à preghi tuoi l’inferno.

[UM ESPÍRITO DO CORO


Volta para a sombra da morte
Infeliz Eurídice,
Não mais esperar rever estrelas
Pois agora ensurdecerá a tuas orações o inferno.]
120

ORFEO
Dove te’n vai, mia vita: Ecco io ti seguo.
Ma chi me’l nieg’, ohimè:
Sogn’, o vaneggio?
Qual occulto poter, di questi orrori,
Da questi amati orrori
Mal mio grado mi tragge, e mi conduce
A l’odiosa luce?

[ORFEU
Para onde vais, minha vida: Eis que eu te sigo.
Mas quem mo impede, ai de mim:
Sonho, ou deliro?
Qual oculto poder, dentre esses horrores,
Destes amados horrores
Que mal grado me arrastam, e me conduzem
Para a odiosa luz?]

CHORO DE SPIRITI (encerrando o 4º ato)50

É la virtute um raggio
Di celeste bellezza,
Preggio de l’alma ond’ella sol s’apprezza:
Questa di temp’oltraggio
Non tem’, anzi maggiore
Nell’huom rendono gl’anni Il suo splendore.
Orfeo vinse l’inferno e vinto poi
Fù da gl’affetti suoi.
Deno d’eterna gloria
Fia sol colui c’havrà di se vittoria.

50
Na edição que usamos, de Malipiero, a palavra italiana Coro, por vezes, é grafada como Choro.
121

CORO DE ESPÍRITOS

[É a virtude um raio
De celeste beleza
Prêmio da alma onde somente ela se aprecia:
Esta que dos tempos do ultraje
Não teme, ainda que maiores
No homem rendem os anos o seu esplendor
Orfeu venceu o inferno e vencido pois
Foi por seus afetos.
Digno de eterna glória
Aquele que, por si, conquista a vitória.]

E assim termina este 4º ato do Orfeo, digno de nossa contemplação e escuta

poética.

5º ato: O Olimpo e as estrelas

No 5º e último ato de nossa ópera - ao contrário das novelas televisivas, em

que tudo acontece num stretto51 alucinante e onde também são desvendados todos

os enigmas que prendem o espectador até o último capítulo para “entender” a

história -, tudo já foi desvendado:

Em primeiro lugar, logo no início da Ópera, a própria música, que, em forma

alegórica, assim se apresenta: [“Eu sou a Música, que com suaves acentos / Posso

acalmar cada coração perturbado, / E, ora com nobre ira, ora com amor / Posso

inflamar as mais geladas mentes”];

A seguir, a paixão de um semideus por uma mortal [“Rosa do céu, vida e luz

do mundo, / Digna filha daquele que governa todo o universo, / Ó sol, que tudo

51
Seção conclusiva do gênero musical denominado “fuga”, em que todos os temas constitutivos da
obra são reapresentados em rápida sucessão, acelerando o seu final.
122

abraça e tudo mira de sua órbita celestial, / Diga-me se já viu um amante mais

alegre e afortunado que eu?”];

O amor dos heróis e sua união, em especial o canto amoroso de Eurídice [“Eu

não direi o que seja / Ver na tua alegria, Orfeo, o meu regozijo, / Pois meu coração

não mais está comigo / Mas sim contigo, em companhia do Amor”];

A morte trágica da heroína relatada por Silvia, a Mensageira [“Ai, amarga

sorte! Ai, fardo ímpio e cruel! / Ai, estrelas injuriosas! / Ai, céu avaro!... A ti venho,

Orfeo / Mensageira infeliz / De notícia a mais infeliz e funesta. / A tua bela Eurídice...

/ A tua dileta esposa... é morta.];

O desespero lamentoso de Orfeu ao saber de tão funesta desdita, quando

canta a ária mais importante e central da obra em que vida e morte, finitude e

plenitude se adensam e se concentram num raio de dor, espanto e agonia, quando a

Teogonia e a Cosmogonia se encontram e rendem um preito de amor e de saudade:

[Tu estás morta, estás morta, minha vida, / E eu ainda respiro? Tu partiste,
de mim / Para nunca mais retornar, e eu permaneço? / Não, pois que se
meus versos alguma coisa podem, / Andarei seguro pelos mais profundos
abismos / E enternecerei o coração do Rei das Sombras, / E te trarei comigo
para rever as estrelas / Ou se isto me negar o cruel destino,/ Ficarei contigo
na companhia dos mortos: Adeus Terra, adeus Céu, adeus Sol, adeus...];

A sua determinação de ir resgatá-la do esquecimento e da morte indo ao seu

encontro no Hades, escoltado pela Esperança, no reino dos mortos, assim cantada

pelo nosso herói:

[“Escoltado por ti, minha deusa / Esperança, único consolo / Dos mortais
aflitos, enfim cheguei / Neste triste e tenebroso reino / Onde raio de sol
jamais entrou...] e Esperança lhe responde: [Eis o pântano sombrio, eis o
timoneiro52 / Que leva os espíritos desencarnados à outra margem / Onde
Plutão reina da sombra o vasto império.../ Até aqui te trouxe, mais longe não
posso ir / Pois dura lei o proíbe. / Lei escrita com ferro na dura pedra...];

52
Caronte, o barqueiro que faz a travessia das almas para o Hades. Cf autor.
123

O seu caminhar no Hades, confiante no poder da sua lira, símbolo do poder

da música [Que honra de ti será digna / Minha lira onipotente, / Se, no tartáreo reino

/ Pudestes curvar toda enrijecida mente?] que havia acalmado as potestades

infernais com sua música divina;

A interseção da rainha das trevas enternecida pelo poder encantatório de

Orfeu e sua lira:

[Senhor, aquele infeliz / Que vaga pelos amplos domínios dos mortos /
Clamando por Eurídice, / E de quem vós ouvistes tão suaves lamentos, /
Moveram tanta piedade no meu coração / Que, mais uma vez, eu venho vos
implorar / Para que ouçais seus lamentos, meu Senhor.];

O acordo perverso do nosso herói Orfeu, imposto por Plutão, o rei do Hades:

[Ainda que severo e imutável destino / Contrariem, amada esposa, os teus


desejos, / Nada se negue / A tal beleza conjugada a tantas preces. / A sua
cara Eurídice / Contra a ordem do destino a Orfeo retorne / Mas, enquanto
ele mantiver os pés nestes abismos / Não voltará para ela seus ávidos
olhos, / Pois perdição eterna / Lhe seja certa, por um simples olhar causada,
/ Assim eu ordeno... / E que ninguém ousará mudar.];

O fracasso da empreitada devido à hesitação humana do herói divino, que se

esquece da determinação da ordem real e olha para trás, e o sofrimento da heroína

que, vislumbrando a luz que emana de Orfeu, fenece para sempre nas trevas (“Ai,

visão tão doce e tão amarga; /Assim por tanto amor me perdes? / E eu, miserável,

perco / O poder de mais gozar / Da luz e da visão, e perco também / A ti, de todo o

bem o mais caro, meu esposo”) e o desencanto e infinita tristeza de nosso herói por

ter que abandonar sua querida para sempre (“Para onde vais, minha vida: / Eis que

eu te sigo. / Mas quem mo impede, ai de mim: / Sonho, ou deliro?”) devido à Lei

inexorável: (“Quebrastes a lei e de misericórdia sois indigno”).

Voltando então para o 5º ato, vejamos como termina esta história que, mais

do que uma estória trágica e melodramática sobre as vicissitudes do conluio entre


124

deuses e mortais, é a própria história da modernidade da música ocidental, conforme

preconizada por um dos seus maiores precursores: Claudio Monteverdi, nos moldes

configurados pela intelligentsia veneziana dos anos 1600, a Camerata Fiorentina – a

sinergia entre o canto e o conto; a palavra inteligível que canta os cantos, os contos

e os encantos dos dramas dos homens e dos deuses; em suma, a ÓPERA.

Neste último ato, temos um cenário que é o mesmo do início, qual um círculo

hermenêutico onde se está sempre começando e recomeçando: os campos da

Trácia, Ásia menor ao tempo dos gregos antigos ou nos Illo Tempore, os tempos de

antigamente, quando deuses e homens se co-pertenciam e davam o sentido do

existir e do estar no mundo, lá onde a nossa história começou, a nossa história

ocidental e também a história que estamos contando: a do amor trágico de Orfeu e

Eurídice.

Ali o nosso herói reflete sobre os acontecimentos humanos e marcantes de

sua vida de semideus, conforme narrados no decorrer desta ópera, e canta:

ORFEO
Questi i campi di Tracia, e quest’é Il loco
Dove passomm’il core
Per l’amara novella Il mio dolore.
Poice non hò più speme
Di ricovrar pregando
Piangendo e sospirando
Il perduto mio bene,
Che poss’io piú?

ORFEU
Estes são os campos da Trácia, e este é o lugar
Onde consumiu-se-me o coração
Pela amarga história de minha dor.
Pois já não tenho nenhuma esperança
De recobrar rezando,
125

Chorando e suspirando,
O perdido meu bem,
Que posso eu mais? ]

Nos campos da Trácia começou a nossa história em que Orfeu vem viver a

vida dos homens e rememorar suas origens de filho de Apolo e de uma ninfa; nesta

natureza arcaica que infunde poder aos deuses helênicos é que Orfeu vai buscar

forças para superar o sentimento da experiência trágica do humano, pois, para os

deuses gregos, segundo Otto em “Os deuses da Grécia”, “Tal como sua essência,

seu poder não se funda em força mágica, mas no ser da natureza”. (OTTO, 2005,

contracapa)

Talvez sonhe Orfeu com o Olimpo, onde está seu pai Apolo que, como já

sabemos, virá resgatá-lo das vicissitudes terrenas. Talvez pense Orfeu nas

impossibilidades que os deuses também têm, como a de dar vida a quem já morreu.

Otto nos mostra que “Deus algum pode devolver a vida a quem já morreu” (OTTO,

2005, p. 238). A morte é o limite do que não pode ser ultrapassado, um non plus

ultra.

Por isso, no caminhar de Esperança junto a Orfeu em direção à escuridão do

vazio e do nada, chega o momento em que ela o deixa à própria sorte em seu

périplo em busca de Eurídice, no umbral do Hades, onde está escrito, como já

vimos: “Abandoneis toda a esperança, vós que entrais”.

Para os gregos, ainda segundo Otto,

não se trata só de que a divindade não tem poder sobre os mortos: ela
tampouco pode livrar da morte os vivos que lhe estão destinados... A própria
Atena diz, na Odisséia (3,236): “A divindade não pode apartar a morte dos
homens que ela ama, quando a funesta Moira (= “Destino”) da morte o
alcança” (OTTO, 2005, p.328).

Aqui se revela também o ardil de Plutão que, para agradar sua amada esposa
126

Prosérpina, lhe promete resgatar Eurídice. É a impossibilidade material da

coexistência simultânea de luz e treva. Não pode haver luz na treva; o amor, nem

divino nem humano, salva da morte.

E assim, fica o nosso herói a meditar nos campos da Trácia sobre seu destino

e sobre sua dor. Segundo Otto,

Compreendemos assim que os poderes da vida e a lei da morte não são a


mesma coisa. Assim captamos a infinita estranheza com que elas se
contrapõem (...) os deuses sabem o que a Moira determinou. Mas com
freqüência os vemos tomar conhecimento do destino com tristeza e sujeitar-
se de muito mau grado a suas determinações. (OTTO, 2005, p.239)

Por isso o canto lamentoso de Orfeu fala da impossibilidade de ter esperança

e de recobrar o seu perdido bem, Eurídice, a impotência que até os deuses têm de

superar o interdito. Por isso ele se questiona: “Que posso eu mais?”

Ouçamos então, sem mais comentários, por serem desnecessários para a

apreciação poética, os momentos finais desta favola:

Então, surge Apolo, que desce numa nuvem cantando em tom amoroso e

paternal:

APOLLO
Perch’a lo sdegno et al dolor in preda
Cosi ti doni, ò figlio?
Non è, non è consiglio
Di generoso petto
Servir al próprio affetto.
Quinci biasmo e periglio
Già sovrastar ti veggio
Onde movo dal ciel per darti aita:
Hor tu m’ascolta e n’havrai lode e vita.

[APOLO
Por que ao desdém e à dor que te aprisionam
127

Assim te dedicas, ó filho?


Não, não é conselho
De generoso peito
Servir ao próprio afeto
Onde de culpa e perigo
Já a se aproximar te vejo
Eis que venho do céu para dar-te ajuda
Então escuta-me e terás louvor e vida.]

Ao que Orfeu lhe responde:

ORFEO
Padre cortese,
Al maggior uopo arrivi,
Ch’a disperato fine
Con estremo dolore
M’havean condotto già sdegn’e amore..
Eccomi dunque attentto a tue ragioni,
Celeste padre; hor cio che vuoi m’imponi.

[ORFEU
Pai amoroso,
Na minha maior necessidade chegastes,
Pois a desesperado fim
Com extrema dor
Me conduziram o desdém e o amor
Eis-me aqui atento à tua razão.
Celeste pai; ao vosso desejo me submeteis.]
.................................
Em última tentativa aflita, Orfeu pergunta ao pai:

ORFEO
Si non vedrò più mais
De l’amata Eurídice i dolci rai?
[ORFEU
Não verei jamais
128

Da amada Eurídice os doces olhos?]

Ao que Apolo, consolando Orfeu, responde:

APOLLO
Nel sole e nelle stelle
Vagheggerai le sue sembianze belle.

APOLO
[No sol e nas estrelas
Admirarás o seu semblante belo.]

A seguir, Apolo e Orfeu sobem aos céus cantando:

APOLLO E ORFEO
Saliam cantand’al cielo,
Dove há virtù verace
Degno premio di sè, diletto e pace.
Degno premio di sè, diletto e pace.

[ORFEU E APOLO
Subamos cantando ao céu,
Onde há virtude veraz
Digno prêmio a si, deleite e paz
Digno prêmio a si, deleite e paz.]

Após tudo isto, um coro de espíritos53 entoa laudas de glorificação e bem-

aventurança aos heróis, em sua ascensão ao mundo celestial do Olimpo – casa e

destino dos deuses gregos, encerrando a história de Orfeu e Eurídice, conforme

contada na versão do libretista Alessandro Striggio, publicada em 1607, por ocasião

da 1ª representação desta obra, acontecida em 160754:

53
Não há indicação na partitura de que se trate de um coro de espíritos, apenas supomos pelo
contexto.
54
Conforme a revisão que usamos neste trabalho, atribuída a Gian Francesco Malipiero.
129

Vanne, Orfeo, felice a pieno


A goder celeste honore,
La ve ben non mai vien meno,
La ve mai non fu dolore,
Mentr’altari incense e voti
Noi t’offriam lieti e devoti.
Cosi va chi non s’arretra
Al chiamar di nume eterno,
Cosi grazia in ciel impetra
Chi qua giù provo l’inferno,
E chi semina fra doglie
D’ogni grazia Il frutto coglie.

[Vai, Orfeu, feliz e pleno


A gozar celestes honras
Para vós o bem e não mais o “menos”
Para vós não mais a dor,
Entre altares, incensos e votos
Nós te oferecemos alegres e devotos.
Assim vai quem não se arreda
Ao chamado do Pai eterno,
Que assim graças ao céu impetra
Quem aqui em baixo provou do inferno,
E quem semeia entre dores
E de toda graça o fruto colhe]
130

5. A SERESTA: SAUDADE DO TEMPO QUE NÃO VOLTA MAIS

Saudade do tempo,
Do tempo passado,
O tempo feliz
Que não volta mais.

Deus queira que um dia


Eu encontre ainda
Aquela inocência
Feliz sem saber.

Mas hoje que eu sei


De toda a verdade,
Já não acredito
Na felicidade.

E quando eu morrer,
Então, outra vez,
Pode ser que eu seja
Feliz sem saber.
55
Ah!
(Dante Milano)

A seresta56 nada mais é que uma canção popular, no entanto apresenta

algumas particularidades que a distinguem, no nosso caso, da MPB, a Música

Popular Brasileira, como veremos.

Segundo Tárik de Souza, jornalista e crítico musical brasileiro e uma das

maiores referências do jornalismo musical voltado para MPB,

Mais do que um simples gênero ou tendência, a seresta é uma espécie de


estado de espírito da música brasileira. Ela assume o formato da música
brasileira da época. Por exemplo, na época das valsas de salão, lá estava a
seresta. Na época do choro, dos violões plangentes, lá estava a seresta. Há
sempre um seresteiro no Brasil, há sempre um formato seresteiro dentro da
música brasileira, seja ele de violões ou de cavaquinho. Esteja esse
seresteiro na Zona Sul, sofisticada, ou na Zona Norte, com o brega, sempre
tem alguma coisa de seresteiro nesse tipo de cantor, porque a seresta faz
57
parte da alma da música brasileira. E a alma, como se sabe, é imortal

55
Poesia de Dante Milano da Seresta nº 4 – Saudades de minha vida, de Villa-Lobos, 1926.
56
Seresta e serenata são expressões genéricas e provêm do latim nocturnus e significa o que se faz
durante a noite, que age nas trevas noturna. O termo diz ainda daquilo que é próprio do cair do dia, a
hora vespertina e a noite. A seresta é, tradicionalmente, associada ao cortejo da mulher amada e
evoca o céu, as estrelas, a lua, o violão e o cantador seresteiro.
57
Texto apresentado em forma de folheto de divulgação; sem referência bibliográfica; s/d.
131

De modo geral, a seresta se refere a um grande número de eventos musicais

abrangentes, no tempo e no espaço, e pode ser rastreada desde a antiga Grécia,

como nos relata Câmara Cascudo:

[...] todos os povos históricos tiveram a serenata... os Romanos amavam a


serenata e Horácio alude ao costume nas Odes (III, VII e X), especialmente
na VII Ad Asterien: Prima nocte Claude, neque in vias / etc...os gregos
chamavam a serenata de Paraclausithyron.(CASCUDO, 1989, p. 707)

Depois, a encontramos no Portugal renascentista, na Salvador colonial e

também em depoimentos à época do Brasil império, já no século XIX, conforme

atesta Câmara Cascudo:

[...]A serenata já aparece descrita por Gil Vicente na farsa Quem tem
farelos? em Portugal, 1505 (...) temos o relato do viajante francês Barbinais,
em Salvador, 1717: „...à noite só se ouviam os tristes acordes das violas,
tocadas por portugueses (espadas escondidas sob os camisolões) a
passear debaixo dos balcões de suas amadas, cantando, de instrumento
em punho, com voz ridiculamente terna...‟; segue o depoimento de
Ferdinand Denis em 1826...‟gente simples, trabalhadores, percorrem as
ruas à noite repetindo modinhas comoventes, que não se consegue ouvir
sem emoção‟.
[...] no séc. XIX parte essencial da produção poética destinava-se às
serenatas. Obrigatoriamente o único instrumento de sopro nas serenatas é
a flauta. Os demais, de cordas, o indispensável violão, os cavaquinhoas, às
vezes o violino e depois o bandolim, solista, nos intervalos melocomentando
a modinha etc. (CASCUDO, 1989, p. 707).

Também segundo Anésio Dutra, um pesquisador seresteiro de Conservatória:

O costume das serenatas se enraíza nos principais centros urbanos da


época e, durante o século XVIII e primeira metade do século XIX, era
comum ver-se, nas cidades, grupos de cantadores e violeiros ou um violeiro
solitário, cantando pelas ruas ou debaixo da janela da amada. Mas,
somente no Segundo Reinado, com o advento de uma classe média de
certo modo diferenciada no Brasil, iam aparecer, de fato, os primeiros
cantadores de modinhas realmente populares, porque os antigos
seresteiros que cantavam pelas ruas da cidade, em virtude do florescimento
econômico propiciado pela descoberta do ouro, saem das ruas e
transformam-se em cantadores de salão. Para esses românticos cantadores
de modinhas criaram-se nomes como serenateiros, serenatistas, sereneiros
e seresteiros. (DUTRA, 1986, p. 19)

No Brasil, a seresta deriva da canção romântica do séc. XIX e da modinha e

lundu do séc. XVIII; tem a característica da canção sentimental trovadoresca e é


132

possível também traçar o seu percurso retrocedendo até às Cantigas de Amigo do

Portugal medieval e também até às Canções de Santa Maria, em louvor à Virgem.

5. 1 A CANÇÃO SERESTEIRA

Fazendo um hiato, da época das cantigas medievais para o Brasil colonial,

escrevemos a respeito da canção modinheira e sentimental, em nossa dissertação

de mestrado "Retomando a seresta: uma poética e uma estética da vida seresteira",

que:

[...] nos sistemas políticos em que se viveu até meados do séc. XIX, no
Brasil e na Europa, as férreas restrições sociais e religiosas eram,
provavelmente, sublimadas e deslocadas, entre outras coisas, para o
espaço ameno, inocente e puro das canções sentimentais feitas em louvor
da mulher. Esta mulher, supostamente, é amada, desejada e adornada com
os atributos da mãe, da mulher e da Virgem Maria (SANTORO, 2003, p.20).

Neste sentido, as nossas serestas têm como característica essencial um

lirismo amoroso no qual a mulher é sempre exaltada. Na sublimação e no

enaltecimento da mulher, há todo um ideário que remonta ao amor cortês dos

cavaleiros medievais europeus. Trata-se de um amor inacessível, idealizado, em que

a mulher está situada em um pedestal.

Em nosso trabalho: “Seresta & Serenata, escrito em parceria com nossa

orientadora de mestrado, Piedade Carvalho, dizemos que:

[...] uma Seresta é a prefiguração da paixão masculina que toma corpo nos
autos de um pentagrama. Todo seresteiro traz dentro de si a sua paisagem
interna, psíquica: uma rua, cheia de casas e janelas e, por meio do toque
mágico de seu próprio olhar, essa janela se abre e surge, de dentro da
casa, a própria anima do homem – a mulher. Sendo assim, a Seresta, em si,
é uma varinha de condão: aquilo que desperta a bem-amada para o prazer;
aquilo que toca o coração e refaz a vida. Portanto, todo seresteiro é um
mago e a paisagem seresteira exige sempre a presença da lua – traço
inequívoco de uma cenografia. (CARVALHO e SANTORO, 2001, p. 181)
133

Como nos sugere a canção “A rosa”, com música de Pixinguinha (Alfredo da

Rocha Viana Filho) e letra de Otávio de Souza, de 1937:

Tu és, divina e graciosa, estátua majestosa,


Do amor, por Deus esculturada e formada com o ardor
Da alma mais linda flor de mais ativo olôr
Que na vida é preferida pelo beija-flor.
Se Deus, me fora tão clemente, aqui neste ambiente
De luz formada numa tela, deslumbrante e bela
O teu coração, junto ao meu, lanceado, pregado
E crucificado sobre a rósea cruz do arfante peito teu.

Tu és, a forma ideal, estátua magistral


Oh! alma perenal do meu primeiro amor, sublime amor
Tu és, de Deus a soberana flor
Tu és, de Deus a criação, que em todo o coração
Sepultas o amor, o riso, a fé e a dor em sândalos olentes
Cheios de sabor, em vozes tão dolentes como um sonho em flor
És, láctea estrela, és mãe da realeza,
És tudo enfim que tem de belo
Em todo o resplendor da santa natureza.
Perdão, se ouso confessar-te, eu hei de sempre amar-te
Oh! flor, meu peito não resiste, oh! meu Deus quanto é triste
A incerteza de um amor que mais me faz penar
Em esperar, em conduzir-te um dia ao pé do altar
Jurar, aos pés do Onipotente em preces comoventes
De dor, e receber a unção de tua gratidão
Depois, de remir meus desejos em nuvens de beijos
Hei de te envolver até meu padecer, de todo o fenecer.

Fica evidente que a idealização da mulher sustenta os versos do poema. Ela

é distante, inacessível e é exatamente nesta distância que a mulher se faz presente

e amada e quanto mais distante mais forte e pulsante é este amor, sublime e

sublimado. Por isso, na canção seresteira o amor pleno não é fato consumado
134

apenas no encontro dos amantes, mas é na ausência da presença dos amantes que

o viço da paixão se mantém aceso.

Enquanto canção popular e de louvor à mulher temos que considerar, nas

serestas, o aspecto poético, visto que o discurso amoroso se mostra de forma mais

evidente através da poesia seresteira e, portanto, a interpretação musical, que aqui

iremos desenvolver, terá que buscar outros caminhos para a sua realização, que não

a análise musical, pois não se trata de decodificar uma música pura, sem

significação extramusical, e sim uma música afetiva, amorosa, carregada de

significações extramusicais. Em outras palavras, é a interpretação poética que irá

dar conta desta tarefa.

Já a nossa música popular, tem, no século XX, um caráter mais urbano e

cosmopolita. Sua temática é muito mais abrangente do que a da seresta e trata,

além das questões sentimentais e líricas evocadas na seresta, do cotidiano da vida

das pessoas da cidade grande, em especial do Rio de Janeiro, nosso local de

observação neste trabalho.

A MPB, associada no século passado ao desenvolvimento do rádio e da

televisão, passa pela sátira política, pela crônica de costumes, pela crônica policial e

picaresca, pela música romântica dos boleros latino-americanos, pela bossa-nova e,

sobretudo, pelo Carnaval carioca dos entrudos, dos cordões até chegar aos grandes

desfiles apoteóticos das passarelas e sambódromos, espetáculos de massa com

divulgação internacional, impulsionadores do turismo e do suposto way of life

carioca.

Segundo Vasco Mariz:

A maior emulação para o desenvolvimento da música popular brasileira


sempre foi o carnaval. Os grandes festejos anuais de Momo constituem o
centro de atração de todas as atividades musicais urbanas e serviram de
estímulo para a produção de modinhas, polcas, cançonetas, tangos,
135

maxixes, chótis, marchinhas, sambas, baiões, etc. (...) A antiga capital da


República sempre liderou as tendências musicais no terreno popular.
Embora o Nordeste tenha contribuído com diversas formas musicais de
êxito nacional e internacional, quem persiste em dar a orientação é o Rio de
Janeiro. (...) A grande aglomeração cosmopolita recebe a contribuição
musical da província, tritura-a sem dó, industrializa-a e a devolve ao interior
quase sempre deturpada e falsificada, a perturbar a pureza do nosso
folclore, semeando a dúvida no cantador popular que a ouve através do
rádio ou do disco. Esse é o fenômeno dos tempos modernos, incombatível,
fatal, verdadeiro delenda do folclore nacional. (MARIZ, 1977, p.171)

Em “A canção no tempo – 85 anos de músicas brasileiras”, de Jairo de

Severiano e Zuza Homem de Mello, os autores traçam um perfil da evolução das

músicas brasileiras populares ao longo do século XX e, na Introdução da 1ª parte do

1º volume (1901 a 1916), dizem:

A música popular brasileira do período 1901-1916 repete basicamente as


características que já predominavam no final do século XIX. São os mesmos
gêneros - valsa, modinha, cançoneta, chótis, polca -, as mesmas maneiras
de cantar e tocar, as mesmas formações instrumentais, a mesma predileção
pela música de piano. Também continua a predominar a influência musical
européia, principalmente a francesa. Uma importante novidade, entretanto,
aconteceria na área tecnológica: o advento do disco brasileiro em agosto de
1902. E será o repertório registrado nesses discos que, em
complementação às partituras, ensejará uma melhor avaliação da produção
musical da época (SEVERIANO E MELLO, 2002, p.17)

Ainda nesta introdução somos informados sobre os grandes nomes da MPB,

tais como Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Anacleto de Medeiros, até chegar

aos músicos atuais como Chico, Caetano e tantos outros. Falam sobre o advento da

marchinha, do samba, na chamada Época de Ouro, época da profissionalização da

MPB; passam pelas modas do baião, do samba canção e da bossa-nova.Nas

introduções das outras partes da obra os autores falam sobre o advento do samba e

da marchinha, a chamada Época de Ouro, quando a nossa MPB se profissionaliza.

Passam posteriormente pelas modas do baião e do samba-canção e a bossa-nova.

O musicólogo e diplomata Vasco Mariz, em sua obra A canção brasileira –

erudita, folclórica, popular, também faz considerações muito importantes sobre a

MPB. Para ele, Chiquinha Gonzaga “foi incontestavelmente a primeira grande


136

compositora popular que o Brasil produziu” (MARIZ, 1977, p.193) e cita os velhos

seresteiros como Xisto Bahia, Antônio Calado e Cândido das Neves, entre outros

(MARIZ, 1977, p.176). Todos eles foram músicos populares e seresteiros pela

intencionalidade e lirismo de suas produções musicais, seu apelo popular, tendo

suas obras executadas nos salões, nas ruas, em cordões carnavalescos e também

nas serestas propriamente ditas, conduzidas em serenata pelas ruas, à luz da lua e

das estrelas.

Procuramos dar estas informações sobre a MPB no século XX, embora não

seja esse o foco do nosso trabalho, com o intuito de associá-la com as

características poéticas e musicológicas da seresta, esta sim, parte integrante de

nosso estudo.

Como informamos na introdução deste trabalho, estamos desenvolvendo uma

proposta de reflexão hermenêutica sobre os gêneros musicais que visitamos em

nossa prática musical ao longo de nossa carreira, o que não contempla a questão da

Música Popular Brasileira, strictu sensu, pois não militamos nessa área.

No entanto, não poderíamos deixar de citá-la, mesmo que en passant, devido

a suas interações com os outros projetos desenvolvidos neste trabalho, tais como as

Cantigas medievais, a ópera Orfeo de Monteverdi, as próprias Serestas de Villa-

Lobos e o conto “Minha” gente, de Guimarães Rosa, pois todos têm em comum, não

só a nossa vivência musical, mas também as questões poético-musicais que

permeiam este trabalho sobre arte, como a oralidade, o culto à mulher , o lirismo, o

amor, o divino e o humano, e a paixão.

A seresta, como canção que é, calcada na música popular, tem o seu modo

de ser e de fazer baseado no que é próprio da cultura popular, que é a oralidade. É

a partir do contexto da oralidade que entra, novamente, a questão da interpretação


137

como fato marcante, mais ainda do que na chamada música erudita, a qual, embora

possa ser percebida através de várias leituras e sutilezas interpretativas, está

sempre, de uma forma ou de outra, "amarrada" a uma partitura.

5.1.1 Considerações sobre o erudito e o popular na canção

Na música popular, a questão da interpretação é, talvez, o parâmetro mais

importante para identificação das obras e dos intérpretes.

Talvez uma das premissas deste trabalho que não tenha ficado clara é que há

uma diferença fundamental entre a questão da interpretação da música clássica-

erudita e da música seresteira, estudada aqui, bem como a música popular cantada:

a canção popular brasileira, por nós aqui entendida como uma continuação

modificada daquele estilo modinheiro e seresteiro que remonta ao séc. XIX, no

Brasil.

A música clássica veio sendo sedimentada, padronizada e canonizada, desde

o classicismo vienense com a criação dos conservatórios de música em moldes

burgueses, tendo como ícone o Conservatório de Paris no século XIX, até hoje

referência pedagógico-musical no Brasil.

Este cânone musical preconiza a fidelidade à tradição pedagógica, à partitura,

bem como a técnica e o virtuosismo na performance. Explicando melhor: um músico,

em especial um instrumentista, formado numa escola de música européia no início

do século XX, interpreta as músicas de seu repertório de forma muito semelhante a

um músico de hoje. Basta ouvirmos as gravações reconstituídas de quase um século

atrás, como, por exemplo, dos pianistas Rubinstein, Wanda Landovska, Guiomar

Novaes, Magdalena Tagliaferro, só para ficarmos no campo dos teclados, e


138

compararmos com as gravações modernas de Nelson Freire e Cristina Ortiz, entre

outros.

Veremos que as diferenças fundamentais entre eles são muito poucas e

dizem mais do estilo interpretativo do executante – o que não é pouca coisa, pois é

isto que revela sua visão musical e de mundo, sua poiesis, enfim, o que torna cada

intérprete especial e único – do que das escolas de performance a que eles

pertencem, que seriam talvez três ou quatro: francesa, italiana, russa e alemã.

Cada uma delas privilegia, em linhas gerais, alguns quesitos musicais como

marca de seu estilo: a delicadeza do acabamento das frases musicais, derivada do

impressionismo francês, o ímpeto dramático do estilo italiano, vindo, talvez, da

tradição operística italiana, o virtuosismo e o expressionismo russos, e o rigor formal

da música alemã.

Outras diferenças cabem mais no âmbito dos processos de gravação e da

tecnologia sonora: dos primeiros cilindros de reprodução mecânica - com música

gravada pelo próprio Debussy na França, os gramofones com processos mecânicos

de prensagem, gravação e reprodução, o advento da energia elétrica e a captação

eletro-mecânica dos sons, sulcados em discos de cera e posteriormente enformados

e reproduzidos, o vinil, a gravação em fita e após esta fase analógica, o mundo da

digitalização dos sons, e por aí vai...

Estas diferenças foram citadas porque acreditamos que a questão da

performance através dos meios de reprodução sonora afeta, de forma radical, a

“qualidade” da interpretação do executante e que isso tudo tenha influenciado mais

as características de performance no século XX, do que qualquer outra coisa.

O que entendemos é que a questão da hermenêutica da música passa por

todos esses condicionamentos e determinantes, mas, no entanto, permanece


139

sempre a mesma: o incessante desvelar da obra musical, sua verdade como

aletheia, o mistério de sua physis e o vigor de sua poiesis.

A riqueza da obra de arte deriva de sua inesgotabilidade, de suas surpresas,

suas revelações e sua sintonia com os canais sagrados da beleza do mundo.

Voltando à nossa questão inicial, supomos que, na música popular, o

processo é bem distinto do que acontece com a música clássica, no que diz respeito

às variedades de reprodutibilidade dos sons. Para os fins propostos nesta reflexão

vamos considerar a música popular na sua vertente cantada, dos modinheiros,

seresteiros e cantores populares, ou seja, dos agentes musicais que divulgam o que

denominamos de canção: uma conjugação de poesia e música, que, de forma

sinérgica, cria a unidade a partir da pluralidade das manifestações cantantes.

Na música cantada, mesmo no caso da música erudita, como por exemplo, a

ópera, a questão da palavra faz toda a diferença. A tradição dos conservatórios não

pode e não consegue suplantar as barreiras naturais dos idiomas vernáculos. O

texto poético, em si mesmo, tem conotações muito próprias e específicas, pois

remete a questões profundas ligadas à comunicação entre as pessoas, a cultura, o

afeto e, por que não dizer, aos sotaques.

Sabemos da esdrúxula questão que será mencionada neste texto dos

cantores líricos brasileiros e também de qualquer outra nacionalidade, que, no nosso

caso, cantam em português com nítidos sotaques italianos ou franceses -países que

possuem escolas de canto muito influentes em escala mundial -, quando se trata da

chamada música erudita, mesmo que seja uma simples modinha brasileira ou

cantiga seresteira.

É que a formação técnica desses cantores utiliza fundamentalmente

exercícios denominados de vocalizes com sonoridades exógenas e, como se diz, “o


140

hábito faz o monge”.

Já os cantores populares, que não passaram por escolas formais de canto,

tendem a cantar do jeito que se fala no seu meio e no seu povo. As expressões, o

gestual, a indumentária e toda sua entourage cênica são aquilo que seu povo e seu

tempo são, vivem, desejam e praticam. Mais do que isso, a sua cultura e visão de

mundo conformam e individualizam toda a sua prática cantante.

Assim, o canto popular é muito mais sujeito a modificações, modismos,

idiossincrasias pessoais e tem uma marca extremamente forte: o intérprete; não

como aquele que repassa, pela execução, a criação de outrem, mas, sobretudo

como alguém que “faz” música. Ele “produz” e reinventa a obra musical como se sua

fosse, de sua própria lavra.

Para Maria Lúcia Guimarães de Faria, pensando a respeito da permanência

da poética em Bachelard, do ponto de vista da literatura:

A contemplação passiva e ociosa da obra de arte deve ceder lugar à


comparticipação ativa e passional, em que o intérprete verdadeiramente
joga o seu destino no ato da interpretação, pois é efetivamente um novo
horizonte vital que se lhe descortina. À originalidade artística do escritor
deve replicar a inventividade hermenêutica do leitor, que se traduz num
ganho existencial e num acréscimo de ser. Poema autêntico é aquele que
suscita uma metamorfose; intérprete legítimo é o que se deixa transformar
pelo poema (FARIA, 2007, p.61)

É assim que pensamos a questão do intérprete seresteiro da música popular

em especial, embora isto valha para qualquer tipo de interpretação; este “jogar-se no

ato da interpretação” em performance abissal é o que faz a originalidade artística do

intérprete e é o que pontua seu gesto poético em cada descortino da obra. A

“inventividade hermenêutica do leitor”, no nosso caso, do ouvinte, em diálogo

profundo com o intérprete coloca verdade e sentido na manifestação da obra

poética.

No mundo da música popular não há “uma” obra interpretada por muitos. Há,
141

sim, a relação biunívoca, dialogal, entre a canção e o seu intérprete. Cada intérprete

fará de uma mesma e determinada canção a “sua obra”, e a relação com a língua

materna do poema da canção faz toda a diferença no approach interpretativo da

canção popular.

Então cada versão de uma mesma canção, com uma mesma letra, se torna

praticamente uma obra nova, pois carrega a pureza “originária” do intérprete, quando

em diálogo hermenêutico com o ouvinte, se é que podemos dizer assim.

Por esta razão decidimos dar um caráter comparativo – o que para nós

caracteriza um verdadeiro diálogo hermenêutico entre os intérpretes, mesmo quando

não se conhecem ou não se ouviram - à experiência da audição de três cantoras

brasileiras cantando a mesma modinha de Villa-Lobos, que fizemos em um estudo

nosso.

As diferenças de performances são tão gritantes que se pode dizer que se

trata de três músicas distintas, em todos os sentidos: o texto cantado é o mesmo e

não é, tamanhas as diferenças de dicção, articulação e sentido expressivo, e a

música também assume colorações muito próprias de acordo com a formação

musical e cultural do intérprete, sem falar nas diferentes possibilidades de arranjo,

orquestração, ritmo, gingado e tudo o mais que a música popular, calcada na

oralidade, permite, como forma de liberdade e criatividade poética, ao intérprete.

Não pretendemos fazer um estudo comparatista ortodoxo, mas, mostrando

um pouco as possibilidades de conexão entre as áreas da música, da poética e do

comparatismo, fazer uma reflexão que nos ajude a pensar e entender melhor a

questão da interpretação da música popular brasileira, no nosso caso focalizada nas

serestas de Villa-Lobos.
142

5.2 AS SERESTAS DE HEITOR VILLA-LOBOS58

As serestas de Villa-Lobos surgem na década de 20 do século passado, mais

precisamente em 1926, arejadas pelos ecos da Semana de Arte Moderna de 1922.

Como já havíamos comentado em nossa dissertação de mestrado intitulada

“Retomando a seresta: uma poética e uma estética da vida seresteira” (SANTORO,

2003), um grupo de artistas brasileiros de vanguarda decide, na década de 20,

reinventar o Brasil “real” para os brasileiros. Eles buscavam eliminar o ranço

academicista das “belas-artes”, presentes na cultura européia desde o renascimento

e transplantadas para o Brasil com a vinda da família imperial em 1808.

A “Semana de 22” foi representada, na música, por Villa-Lobos, entre outros

músicos de sua época, mas apenas Villa-Lobos participou como compositor. O que

se buscava na música da época, era a superação de conceitos fundamentais para a

música, de melodia e tonalidade, que vigiam desde o Renascimento, frutos da

hegemonia do pensamento metafísico, incrementados pelo Iluminismo e pela

primazia do modelo musical da homofonia italiana da Camerata Fiorentina59.

A partir deste novo apelo poético, que enquanto tal é, além de inovador,

propiciador de novas possibilidades de manifestações do real, surgem novas

questões com a negação e a obsolescência dos ideais pictóricos, literários e

musicais do século XIX. Nesse contexto de ruptura e descontentamento desponta a

figura de Villa-Lobos60 e também uma nova forma de ser da música popular

brasileira, que vai abandonando aos poucos as traduções lusas e européias.

58
Cf. Anexo 6 – Capa do álbum das Serestas de Villa-Lobos.
59
Já examinada no Orfeo de Monteverdi, neste trabalho.
60
No período conhecido por Semana de 22, Villa-Lobos já dominava seu métier de compositor e era,
além de bastante conhecido no meio musical, ferozmente atacado por muitos, dentre eles, o crítico
Oscar Guanabarino. Villa-Lobos possuía uma obra musical alentada que incluía sonatas, óperas
como "A Prole do Bebê nº 1", "Choro nº 1", entre tantas outras.
143

Esses princípios estão presentes na obra de Villa-Lobos denominada

Serestas (1926) e, poeticamente, unem o erudito ao popular em uma questão maior

que é seu caráter universal, mantendo assim o rigor acadêmico, tanto do ponto de

vista musical quanto poético. Isto decorre de que as serestas são canções e, como

tais, feitas de letra, música e paixão.

Elas possuem uma temática rítmica e melódica típica da música popular

brasileira; as parcerias com os poetas mais representativos da época como Manuel

Bandeira, Dante Milano e Ronald de Carvalho, entre tantos outros; a estruturação

harmônica sofisticada, de matriz européia erudita, sem abrir mão de sua

contrapontística extremamente rica e pessoal, e a utilização de elementos

folclóricos.

No que diz respeito à utilização de elementos folclóricos, José Maria Neves

afirma:

Deste modo, pode-se dizer que o folclore brasileiro, assim como a música
popular urbana, está sempre presente na obra de Villa-Lobos, que usa este
material como um verdadeiro criador, e não como um folclorista. A respeito
das influências do folclore brasileiro sobre a sua música, VL disse: 'Não as
nego nem nunca as neguei. Mas rejeito que me queiram catalogar como
folclorista, hábil na estilização da música nativa brasileira. Muitas de minhas
obras transformam em música culta o espírito do meu povo e a alma da
minha raça. Plasmam a sensação de suas danças e de suas canções, de
seus mitos e lendas (NEVES, 1981, p. 27).

5.2.1 O erudito e o popular nas serestas de Villa-Lobos

As Serestas de Villa-Lobos são uma série de quatorze peças para canto e

piano escritas em 1926, e é a sua mais importante contribuição para o gênero.

Villa-Lobos foi o principal responsável pela descoberta de uma linguagem

caracteristicamente nacional em música. Aos doze anos, passou a tocar violoncelo

em teatros, cafés e bailes; paralelamente, interessou-se pela intensa musicalidade


144

dos “chorões”, representantes da melhor música popular do Rio de Janeiro, e, nesse

contexto, desenvolveu-se também no violão.

Nos anos 20, produziu as Serestas, os Choros, os Estudos para Violão e as

Cirandas para piano.

Músico síntese da cultura brasileira, Villa-Lobos compôs estas obras pouco

depois da Semana de Arte Moderna de 1922, da qual participou, talvez, como o

único músico carioca ou mesmo brasileiro, como já dissemos, e ainda sem a fama

de que viria desfrutar pouco depois. É possível que Villa as tenha composto

influenciado pelo espírito nacionalista e vanguardista que predominou naquele

evento, posto que todas versam sobre temas populares brasileiros apesar de

possuírem uma escrita musical em linguagem bastante avançada para a época.

As Serestas de Villa-Lobos constituem uma pesquisa poética que une o

erudito ao popular e o universal, visto que são canções e como tais são feitas de

letra, música e paixão, sem deixar de apresentar o rigor acadêmico tanto no que se

refere à esfera musical quanto na poética.

O movimento Modernista no Brasil foi o contexto do trabalho criativo e poético

desenvolvido por Villa-Lobos nas Serestas, as quais irão reproduzir os princípios do

pensamento modernista e, ultrapassando em muito esses pressupostos devido à

sua genialidade, irão também resguardar as utopias existentes nos corações e,

nesse sentido, defender o poético que encanta e promove o (re)encontro do ser

humano com a arte.

Neste sentido, falar de Villa-Lobos e da seresta é, na verdade, uma tentativa

de resguardar as utopias existentes em todos os corações a favor da paz, da beleza,

da fraternidade, da tolerância e da inclusão entre os homens, portanto, é uma crítica

ao nacionalismo e ao pensamento metafísico unilateralizante, em defesa do poético


145

que encanta e promove todo ser humano, como faz a música das grandes obras.

Além disso, consideramos que Villa-Lobos tinha uma posição, como

compositor, consolidada no Rio de Janeiro, na década de 20, com uma parte

razoável do conjunto de sua obra já elaborada, como se pode comprovar através

dos catálogos de suas obras (HORTA, 1987), já apresentando desde então e até

mesmo antecipando os cânones modernistas e mostrando o seu poder poético

criador, devido a sua personalidade singular de verdadeiro artista em sintonia com

seu tempo e prenunciador do futuro – antena da raça, como diria Ezra Pound em “O

ABC da Literatura” (POUND, 2006).

A lírica poética seresteira carrega dois discursos distintos, porém

inseparáveis, a saber: música e poesia; a parceria da poética literária com a lírica

musical deverá fazê-las caminhar juntas, num significado novo que dê conta desta

relação música/palavra; propomos então uma interpretação poética, dialogal e

comparativa, que não se trata apenas de uma simples análise formal, técnica, mas

que, através da contribuição dos intérpretes-executantes, também parceiros das

obras, vai lhes agregar sentido e mostrar o seu potencial poético e possibilitar

diferentes interpretações e performances.

5.3 O SENTIDO DO TEXTO NA CANÇÃO SERESTEIRA

A consistência do sentido poético da canção seresteira, da mesma forma que

em qualquer canção, irá depender de todos esses parceiros envolvidos na obra: o

compositor da música, o poeta, os executantes, a poesia e a música. Quase íamos

esquecendo-nos de um parceiro mais que importante: o ouvinte ou a platéia. Esta

soma de personagens que perfazem a obra – e não apenas a partitura – irá, a cada
146

instante, fazer jorrar uma luz sonoro-poética sobre a sua plenitude.

Para Werner Aguiar,

A interpretação jamais é ato exclusivo de uma só pessoa, mas o


acontecimento que em cada um de nós nos atinge a unidade de ser e
sentido na compreensão.
A interpretação não se comporta como um ato deliberado de um sujeito que
conhece e por isso interpreta para os outros que não conhecem. Ao
contrário, interpretar diz respeito não ao trânsito, mas ao transe em que nos
encontramos suspensos entre o conhecido e o desconhecido. (AGUIAR,
2007, p.94)

Na canção popular e seresteira, esta concomitância de fatores e este “transe

em que nos encontramos suspensos entre o conhecido e o desconhecido” é o que é

próprio do ser da obra, uma vez que é parte de sua própria natureza musical, ou

melhor, de sua essência. A seresta, em especial, além de todos esses figurantes,

tem também a paisagem noturna, a lua e as estrelas e, sobretudo, a visão mirífica da

mulher amada, conhecida e desconhecida, e do amor impossível.

A carga de significados agregados à poesia pelos seus parceiros e

principalmente pelos executantes – cantor e instrumentistas – traz sempre novas

possibilidades de entendimento e compreensão do poético da obra, pois do ponto de

vista técnico, a obra é sempre a mesma. É e não é, pois ao se cantar a mesma

poesia com cantores distintos, esta poesia se torna distinta - embora esta seja uma

questão controversa. A poética da obra é, segundo Antonio Jardim, “todo e qualquer

fazer que produza o encanto de transformar algo que não é no que este algo virá a

ser... Todo poema é poema de uma sonoridade e de uma temporalidade de

presenças e ausências”. (JARDIM, 2007, p.5)

As distintas versões cantadas de uma mesma canção, por intérpretes

diferentes, dão margem a se pensar na questão do diálogo comparativo, como

veremos mais adiante. Isso se dá em especial na música popular e seresteira em

que a força poética do intérprete-cantor, principalmente, pode de uma certa forma


147

criar obras novas, dentro da mesma partitura e poesia, como já discutimos

anteriormente. A comparação se dá pelo tipo da interpretação e a interpretação, por

sua vez, se dá num universo comparativo, o que é uma questão muito especial

ligada especialmente à música popular.

A comparação, para nós, não representa um critério de valoração de uma

obra em detrimento de outra, mas, sim, a possibilidade do enriquecimento poético

pelo que ele representa de eclosão das várias obras da obra, sua aletheia.

Como vimos, na música clássica erudita as diferentes concepções

interpretativas se dão a partir de algumas “escolas” consagradas de interpretação.

No caso da música popular ou seresteira, cada intérprete constitui uma “escola” de

interpretação, através de suas performances marcadamente pessoais, embora, o

tempo todo estejamos lidando com a mesma “obra”, baseada na mesma partitura e

no mesmo texto e isto é a riqueza da hermenêutica musical.

Como o sempre renovado leito do rio heraclitiano em que nos banhamos,

assim é o ser da música, e da poesia que lhe é colada e amalgamada no ser da

canção seresteira. A cada momento estamos e não estamos ouvindo a mesma

música, pois as inefáveis poesias e as silenciosas melodias estão sempre

produzindo o jogo poético da poíesis, que é o vigor da ação no próprio processo de

seu desvelamento. O fazer-se presente em ação, que é o que acontece no curso e

transcurso da obra, tem a verticalidade da aglutinação dos acordes, melodias e

poesias, mas tem também aquilo que "move" a obra rumo ao infinito e ao

desconhecido: a paixão.

5.4 O COMPARATISMO SERESTEIRO: UMA INTERPRETAÇÃO POÉTICA


148

Em música, quando pensamos em comparatismo, estamos pensando, como

já dissemos, nas diferentes possibilidades de performance que uma mesma obra

pode ter. Diante das várias performances, dos distintos modos de execução de uma

mesma obra podemos verificar as múltiplas “falas” da obra a ponto de

questionarmos se estamos diante da mesma obra ou não. Trata-se, na verdade, de

perceber que uma mesma obra enunciada por diferentes executantes pode

transformá-la, em certo sentido, em obras distintas. Então, somente através de um

diálogo comparativo – não valorativo, é que se pode evidenciar a riqueza desse

potencial semântico ou de enunciado da mesma obra, a partir de executantes

diversos.

As distintas performances que iremos abordar trazem distintas possibilidades

semânticas fazendo com que uma mesma obra possa acontecer de várias maneiras,

permitindo, assim, escutas diferenciadas pelo diálogo interpretativo entre seu ouvinte

e seu executante.

Diferentemente da música erudita, que divide as linhas de interpretação em

“escolas”, na música seresteira há uma grande liberdade de expressão poética da

obra – e não é isso que caracteriza também o poético na obra? – chegando-se

mesmo, muitas vezes, a se alterar o sentido da letra com variâncias no próprio texto

da poesia, sem falar nas inúmeras variâncias nas propostas rítmicas e melódicas

estabelecidas, supostamente, pelo compositor.

Segundo Werner Aguiar, “o desejo pela interpretação uniforme ou por

modelos interpretativos é uma das conseqüências nefastas do ingresso da música

na academia, embora existam outras bastante positivas”. (AGUIAR, 2007, p. 95)

Nosso intuito aqui será mostrar a importância das características do

executante, daquele que faz a performance e de como as diferenças, no seu modo


149

de ser músico, que inclui tempo, distância e formação de escola (erudito versus

popular, antigo versus novo, passado versus presente) podem interferir na escuta da

obra tanto pelo ouvinte como naquilo que a própria obra diz e que vem a ser o

“diálogo musical”.

Com esse diálogo, criamos uma interpretação que depende, não da

visualização da partitura – já que essa é a mesma –, e sim da apreciação da obra

pelo cantor, pois a diferença na personalidade do intérprete, o seu extrato cultural e

as suas visões de música e de mundo é que darão sentido ao poético,

independente da tradição, da partitura e das normas canônicas e acadêmicas que

são estabelecidas pelas escolas musicais. No diálogo comparativo, portanto, a

diferença é dada pelo perfil do intérprete.

A música lida com a imponderabilidade, com as sutilezas, com os estados de

ânimo e cada intérprete tem o seu jeito, a sua intenção musical. No caso do canto,

isso ainda é mais patente, pois se tem a dicção, a emissão vocal, as escolas de

canto, a ginga, e aquilo que chamamos de inegalitè, já abordada neste trabalho – as

sutis diferenças entre altura e duração no canto e que fazem toda diferença na

performance final da obra. O que aqui chamamos de altura e duração são

parâmetros usuais que, em música, dizem do calibre das afinações e entonações –

altura; no caso da duração, são as pequenas variantes do tempo musical que o

interprete impõe à obra.

A racionalização metafísica criou critérios absolutos e idealizados para definir

alturas e durações em que cada nota musical tem uma afinação precisa e um tempo

justo dados pela física e pela matemática. É o que pretendem nos fazer acreditar as

partituras que lidam, quase que exclusivamente, com essas duas dimensões. A

saber, cada som musical tem uma afinação precisa determinada pela física como,
150

por exemplo, o som da nota lá3=440 Hz e a duração de uma semínima em um dado

andamento do metrônomo.

Se isso fosse verdade, todas as interpretações seriam iguais. O que

possibilita interpretações distintas, dentre outros parâmetros musicais, é a inegalitè,

ou seja, as diferenças sensíveis de percepção e apreciação reveladas pelos

intérpretes. A partitura escrita é bidimensional. Tem apenas alturas e durações. Mas

não tem aquilo que caracteriza o fazer artístico: a ambiguidade.

É dentro desta ambiguidade poética que iremos nos debruçar sobre a

“Seresta nº 5”, de Villa-Lobos, da coleção Serestas – 12 peças para canto e piano,

com poesia de Manduca Piá (pseudônimo de Manuel Bandeira), e dedicada a Catulo

da Paixão Cearense, escrita em 1926.

SERESTA Nº 5 - MODINHA

Na solidão da minha vida


Morrerei, querida,
Do teu desamor.
Muito embora me desprezes,
Te amarei constante,
Sem que a ti distante
Chegue a longe e triste voz
Do trovador!

Feliz te quero! Mas se um dia


Toda essa alegria
Se mudasse em dor
Ouvirias do passado
A voz do meu carinho
Repetir baixinho
A meiga e triste confissão
Do meu amor!
151

Para tanto, fizemos um estudo comparativo com a audição de três versões

bem distintas da "mesma obra". Quando afirmamos ser a "mesma obra", estamos

indicando que não há como se desprezar o fato de que se deram a partir da mesma

partitura.

A despeito da questão da interpretação e da concepção poética, o que se

ouviu, acredito, foram três obras distintas: uma versão cantada pela cantora lírica

brasileira Maria Lúcia Godoy com acompanhamento orquestral arranjado e

ambientado na partitura original para piano; outra versão interpretada pela cantora

popular Teca Calazans, com acompanhamento de quarteto camerístico do tipo

"regionalizado" (violão, cello, flauta e bandolim) e a terceira versão cantada por Nilza

Oliveira, do coral Seresteiros do Villa, formado por alunos da 3ª idade da Escola de

Música Villa-Lobos, acompanhada pelo autor deste trabalho ao piano.

A respeito de Villa-Lobos e desta coleção, Aluízio Falcão, produtor e

comentarista do disco de Teca Calazans, cita Otto Maria Carpeaux, ("Uma nova

história da música") no encarte do disco "Teca Calazans canta Villa-Lobos":

O estilo do compositor, embora reflita marcas de Debussy e Stravinsky,


incorporando efeitos de um aprofundado estudo da obra de Bach e de
outros mestres, tem no folclore nacional a sua base, o seu ponto de partida.
Classifica seu ciclo de canções mais tipicamente folclórico, as 14 Serestas,
como fator decisivo para a difusão internacional do seu trabalho na
interpretação de cantores e cantoras famosas. E acrescenta que Villa deu
forma musical superior a uma boa parte da poesia brasileira, enobrecendo
textos que não sobreviveriam sem essa vestimenta melódica, ou
'adaptando-se ao alto pensamento poético de um Manoel Bandeira'
(CALAZANS, 1999)

Voltando à Seresta Modinha, diríamos que o que se ouve, são na verdade,

três obras, inspiradas pela mesma partitura original e mesma poesia. O que as

diferencia é justamente a questão da Interpretação, que é uma categoria ao mesmo

tempo estética, cultural e identitária.


152

O apelo lírico da cantora Maria Lúcia Godoy, com a tradição do bel-canto

italiano, nos faz talvez ouvir a poesia de Bandeira e a música de Villa com

conotações exóticas e excêntricas, com um sentido de descentramento às avessas,

pois que se trata de uma cantora brasileira, interpretando uma canção com

compositor e poeta brasileiríssimos, tudo isto soando como uma ária de ópera

italiana. Embora não tenhamos a data da gravação da versão de Godoy, podemos

supor que seja da década de 70, pela expressão orquestral e pela própria qualidade

vocal da cantora, que nesta época estava em seu auge.

É digna de nota a discussão da passagem de uma concepção interpretativa

ainda marcada pela tradição do bel-canto, conforme praticada por Maria Lúcia

Godoy – apesar da tradição modinheira e seresteira que a cantora possuía quando

ainda participante do Madrigal Renascentista mineiro, à época, década de 60, regido

por Isaac Karabtchevsky –, e a concepção de Teca Calazans, da década de 80, já

com outros pressupostos, não só na concepção interpretativa em si mesma, como

também pelas diferentes visões ideologizadas da cultura brasileira, que permeiam a

Interpretação, os arranjos, ou seja, a própria concepção da obra e de suas

finalidades.

Outra questão que poderia surgir daqui é a maneira como as pessoas

"ouvem" e “entendem“ o texto poético a partir não somente de seu amálgama com a

sua melodia parceira, mas também de acordo com os diferentes sotaques, as

expressividades individuais dos cantores e as suas escolas interpretativas.

É provável que a compreensão da letra cantada possa significar, de fato,

coisas inteiramente distintas de acordo com o lugar de enunciação de cada cantor.

Fica aqui apenas este registro, como uma curiosidade intelectual, porém não tão

distante assim da questão em pauta que é a Interpretação poética.


153

Ainda a propósito da questão da Interpretação associada a uma visão de

mundo e a um posicionamento cultural do intérprete em relação a obras musicais -

tanto de um passado distante, como o mundo medieval das Cantigas de Santa

Maria, bem como das diversas possibilidades interpretativas, que refletem

necessariamente uma visão de mundo e uma tomada de posição em relação aos

fatos da cultura -, examinamos o pensamento de Stuart Hall, em seu livro A

identidade cultural na pós-modernidade, o qual talvez nos ajude a entender estes

fenômenos, quando, discorrendo acerca do descentramento do sujeito, nos diz, a

respeito da linguagem segundo Saussure:

Saussure argumentava que nós não somos, em nenhum sentido, os


"autores" das afirmações que fazemos ou dos significados que
expressamos na língua. A língua é um sistema social e não um sistema
individual. Ela preexiste a nós. Falar uma língua não significa apenas
expressar nossos pensamentos mais interiores e originais; significa também
ativar a imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa
língua e em nossos sistemas culturais (HALL, 2005, p. 40).

Ora, ao falarmos da questão da interpretação, necessariamente nos voltamos

também para a questão do processo criador subjacente ao intérprete no momento

da performance e na sua concepção da obra - e aí nos lembramos que, na mesma

obra de Hall, ele nos diz, na sequência da citação anterior:

Além disso, os significados das palavras não são fixos, numa relação um-a-
um com os objetos ou eventos no mundo existente fora da língua. O
significado surge nas relações de similaridade e diferença que as palavras
têm com outras palavras no interior do código da língua... O que modernos
filósofos da linguagem - como Jacques Derrida, influenciados por Saussure
e pela 'virada linguística' - argumentam é que, apesar de seus melhores
esforços, o/a falante individual não pode, nunca, fixar o significado de uma
forma final, incluindo o significado de sua identidade. As palavras são
'multimoduladas'. Elas sempre carregam ecos de outros significados que
elas colocam em movimento, apesar de nossos melhores esforços para
cerrar o significado (HALL, 2005, p. 40)

Acreditamos que os conceitos emitidos por Saussure, Derrida entre outros

citados no livro de Hall, a respeito da língua, possam ser projetados e absorvidos no


154

âmbito da música cantada, especialmente a Canção, conforme aqui colocado,

inclusive os conceitos da fluidez do "falante individual", sua inconclusividade e o

"significado de sua identidade" apresentados no capítulo "Nascimento e morte do

sujeito moderno" (HALL, 2005, p. 41) e já citados acima, pois que é também com

estas categorias, entre outras, que volteia o intérprete, sua concepção da obra

poético-musical, seu pathos e sua expressão artística e criadora, enfim.

À guisa de justificação, dando prosseguimento a nossa apresentação da

Modinha de Villa-Lobos, estávamos falando da versão de Maria Lúcia Godoy,

cantora que, apesar das digressões acima, motivadas pelo seu cantar lírico e

tradicional, é considerada uma das mais belas vozes do cenário lírico brasileiro e

que nós, particularmente, admiramos e respeitamos.

A segunda versão da Seresta mencionada, cantada por Teca Calazans, nos

apresenta uma interpretação calcada em princípios estéticos e culturais bem

diferentes da versão anterior. Baseada numa concepção mais seresteira, popular e

urbana, o canto de Teca Calazans, nos aproxima do lugar onde já estamos: o

espaço da música popular brasileira. Este espaço da MPB é onde mora a Canção,

que é por definição, como já mostramos, o amálgama entre uma poesia e uma

melodia, normalmente acompanhada por instrumento harmônico, como o violão e o

piano.

Esta Modinha, que tem uma concepção interpretativa mais ao jeito da música

popular, gravada na década de 198061, nos faz lembrar o contexto nostálgico e por

isso mesmo talvez pós-moderno, que tem se dado em nosso meio musical brasileiro,

e mais especificamente carioca, no nosso caso. Não sabemos se essa nostalgia

crescente pela vida do passado é uma tendência dos anos 1970 e 1980, um revival

61
Segundo o encarte do disco, a canção Modinha, de Villa-Lobos, foi gravada em 1987 pela
gravadora Idéia Livre, de Aluízio Falcão.
155

recentíssimo, portanto, ou se se trata de uma necessidade advinda da insatisfação

com os novos valores estéticos, ou com um momento de esterilidade e desencanto

nas artes e em especial na música.

Todas estas questões foram suscitadas pela comparação entre a

performance da Modinha de Villa-Lobos pela cantora lírica Maria Lúcia Godoy e a

interpretação da mesma obra pela cantora popular Teca Calazans.

Quanto à terceira performance citada, da mesma Modinha, ela representa um

esforço de desenvolver um trabalho musical com alunos da 3ª Idade da Escola de

Música Villa-Lobos do Rio de Janeiro. Com este grupo, denominado "Seresteiros do

Villa", gravamos três discos de música brasileira e uma das obras gravadas foi

justamente esta Seresta de Villa-Lobos, cantada por uma diletante musical, com

acompanhamento nosso ao piano, que faz um contraponto entre as duas cantoras

profissionais, representativas de certa forma de diferença de visão entre o erudito e

o popular na música brasileira.

Esta senhora, Nilza Oliveira, que não teve formação musical e muito menos

atividade profissional na música, se reporta à era de ouro das rádios cariocas e, na

sua forma de compreensão e interpretação da obra em questão emula as cantoras

do rádio de sua geração que são a sua fonte de inspiração e de concepção de

mundo, o que só realça essa passagem e travessia poética através de uma obra

musical, que, quase centenária, mantém seu vigor e sua atualidade, o que é próprio

da obra de arte.

Em suma, devemos dizer que a justificativa desta descrição das diferentes

possibilidades interpretativas de uma mesma canção – que não deixa de ser uma

digressão do tema em questão que é a Poética nos processos interpretativos, além

dos objetivos anteriormente apontados –, e devido a uma sensação que tende a se


156

tornar uma convicção, é que estudar as diferentes formas de performances de uma

mesma obra, pode mostrar um caminho para a compreensão do que é a

Interpretação especificamente musical, com o concurso do pensamento poético e da

Hermenêutica.

O que percebemos, neste estudo comparativo, foram três versões distintas de

uma mesma obra, a Seresta nº 5. Se observarmos atentamente a realização das

três performances, veremos que neste diálogo poético, teremos não uma, mas três

obras. Uma mesma obra pode ser vista de três formas distintas. Essa pluralidade de

sentido decorre de que o significado das palavras, da poesia e do texto, muda de

acordo com a performance musical.

As mesmas palavras são ditas de modos diferentes em decorrência, por

exemplo, da emissão vocal, da sonoridade, do timbre, da rítmica, do suingue, dos

instrumentos utilizados na execução e agregam novo sentido ao texto, permitindo,

desse modo, que o mesmo texto se transforme em outro texto na dimensão auditiva

e compreensiva. Para Werner Aguiar,

O sentido da obra de arte se dá nela, com ela e a partir dela. E, no entanto


e ao mesmo tempo, articula não somente diferentes espaços e
temporalidades, mas diferentes pessoas e culturas, incluindo aí
compositores, intérpretes e ouvintes. A obra de arte reúne a multiplicidade
do real num lógos poético. (AGUIAR, 2007, p. 92)

Então, neste caso, a forma de pensar a questão da interpretação poética da

obra deu-se pelo viés que denominamos de diálogo comparativo e mostra um

caminho ou um método de interpretação poética, baseado na associação poética

entre vários protagonistas de uma mesma obra musical.

Muito embora esta Modinha cante o lamento de um trovador desesperançado,

como vimos na sua poesia, é através da voz das intérpretes mulheres que ela se faz

ouvir em recitais e discos e não temos notícia de nenhuma gravação ou recital da


157

obra, ou mesmo da coleção das Serestas, cantadas por homens.

As duas gravações antológicas destas obras que conhecemos são de cunhos

bastante diversos e como já mencionamos são a versão da cantora lírica Maria Lúcia

Godoy, acompanhada ao piano por Miguel Proença e a de Teça Calazans; são duas

visões extremamente diferentes desta obra.

É provável que Villa tenha sonhado de forma premonitória com o cantar liso,

lânguido e popular de Teca, mas, em sua época, eram as cantoras líricas que

realizavam a performance de suas obras – como, aliás, continua sendo até hoje,

com raras exceções, como Elizeth Cardoso, cantora popular, que interpretou as

Bachianas nº 5 de Villa-Lobos, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e no Teatro

Municipal de São Paulo, em 64. Esta performance de Elizeth, ovacionada nessas

apresentações, é a síntese do erudito e do popular na música e a prova de que,

acima de classificações acidentais, a perenidade da obra musical de arte se dá na

sua radicalidade poética.

Se examinarmos apenas a partitura da Seresta nº 5 – Modinha, de Villa-

Lobos, fazendo uma leitura casada da poesia e da melodia e remontando às

correspondências das artes, segundo o pensamento de Etiènne Souriau (SOURIAU,

1983), teremos uma interpretação poética que pode até dispensar o executante da

performance musical. É uma interpretação em que se olha para a obra escrita e se

entra em diálogo profundo com suas verdades poéticas.

No entanto este tipo de interpretação requer um conhecimento musical

teórico importante da parte do leitor. Mesmo assim, iremos fazê-lo levando em conta

que alguns leitores deste trabalho certamente terão a formação necessária para este

mister. Para tanto, disponibilizaremos, em anexo, a partitura da obra (conforme

anexo 10).
158

Desta forma poderemos comentar algumas partes de nossa interpretação

desta Modinha, como já fizemos em nossa dissertação de mestrado já citada.

Embora estejamos fazendo na verdade uma análise lítero-musical, a nossa

finalidade será realçar o poético que se revela na obra, então, para nós, neste caso,

a análise lítero-musical e a interpretação poética são a mesma coisa, basicamente.

Pelas artes da música e suas convenções, por vezes contraditórias, cabe a

uma mulher cantar, nesta obra, a dor da solidão e o sofrimento masculino de um

trovador:

Seresta nº 5 – Modinha
Villa-Lobos

Na solidão da minha vida


Morrerei, querida,
Do teu desamor.
Muito embora me desprezes,
Te amarei constante,
Sem que a ti distante
Chegue a longe e triste voz
Do trovador!

O sentido de dilaceração e desesperança é traduzido musicalmente por Villa

pela projeção que faz as notas alcançarem seu clímax já no 1º compasso da linha

melódica. Tal sentido, associado à palavra minha, reforça um sentimento de solidão

existencial e individualismo, que será a tônica do amor e do afeto de nosso já antigo

século XX. Voltando à questão musical, este clímax é atingido através de saltos de

3as. (compasso 9), que formam um arpejo de 7ª; daí em diante ele segue alternando

graus conjuntos descendentes e arpejos de 3 e de 5 sons.

Como que a mostrar uma certa brejeirice, já prenunciada no ritmo sincopado


159

e bastante marcado da introdução, tece o compositor linhas melódicas arqueadas

em forma de acordes arpejados ascendentes; assim faz com "Na solidão da minha

vida" (compassos 9 e 10), "Morrerei querida" (compassos 10 e 11), e com "Do teu

desamor" (compassos 11 e 12), muito embora esta última expressão já se torne

dissonante e instável, como sói acontecer com este tipo de afeto (ou de vazio,

melhor dizendo); em “desamor” já não acontecem as appoggiaturas de "vida" e de

"querida"; é um desamor abrupto, descendente e patético!

No acorde de 7ª diminuta que contorna a expressão "Muito embora me

desprezes" (compassos 12 e 13), acontece um daqueles felizes momentos da

retórica musical, quando o trágico acorde diminuto (acorde este também traiçoeiro,

porquanto é modulante por excelência e nos leva de uma tonalidade a outra de

forma sutil, pelas asas da paixão e das artimanhas da harmonia musical), se

identifica perfeitamente com seu par verbal significante.

A cada novo verso, reinicia Villa o lamento do bardo, associando os

queixumes do trovador às notas descendentes da escala de ré menor, até atingir a

sensível, dó#, numa nota longa, quando o trovador se identifica e se resigna numa

longa tônica de 5 compassos (compassos 17 a 21). Precedendo esta nota sensível,

temos vários graus conjuntos, diatônicos e cromáticos, a dar um caráter quase que

espectral ao texto, dissonante e instável: "Chegue a longe e triste voz".

Este vaivém da melodia tenta retratar musicalmente o desalento progressivo e

inevitável que toma conta do poeta, em sua tentativa sofrida de despertar o amor da

donzela através dos sentimentos de piedade e autocomiseração, bastante típicos

dos poetas ultra-românticos. Sobre a questão romântica, vale citar Piedade

Carvalho, posto que a autora sintetiza a idéia romântica da interpretação:

Só os românticos souberam viver a intensidade da palavra interpretar – ver


a especificidade, o valor, a intensidade e tudo, enfim, de um tempo histórico,
160

com a alma e o coração desse mesmo tempo. Interpretar é, então desenhar


a identidade de uma nação... Interpretar é então desenhar. E desenhar é ir
até ao âmago do outro que nos acerca, seja ele uma pessoa ou uma obra
de arte, para entende-lo melhor; ou ir até outra cultura, para com ela
conversar melhor, se trocar melhor. O romantismo é tudo isso e o céu
também. Ele é universal, quando explana a natureza, quando olha no fundo
dos olhos das escolas de um país, configurada por seu idioma e sua cultura
popular.
O romantismo está em tudo aquilo que a música tem de erudito, porque
tudo que aí se passa é fruto de uma imaginação que cria, que realiza a
poïétique da existência sonora; é popular, porque está onde o povo está,
com todas as suas raízes. (CARVALHO, 2000, p. 127)

Já na 2ª estrofe da poesia, que diz:

Feliz te quero! Mas se um dia


Toda essa alegria
Se mudasse em dor
Ouvirias do passado
A voz o meu carinho
Repetir baixinho
A meiga e triste confissão
Do meu amor!

O poeta muda o tom e fala de felicidade, alegria, carinho e amor, traduzindo

corajosamente os seus afetos e tirando o véu da tristeza e desencanto com que se

apresentara no início (é mais provável que ele agora consiga alcançar os seus

intentos!); porém, como a música é a mesma (compasso 24 em diante), vai-se deixar

por conta do intérprete mostrar os dois estados de ânimo contidos na poesia; nem

mesmo o andamento foi mudado por Villa, talvez querendo propositalmente deixar

por conta do intérprete, a revelação deste novo pathos. Na verdade, sabemos que

as obras musicais possuem esta instância que as artes visuais não possuem, nem

tampouco as artes literárias: o intérprete! Além disso, como Villa-Lobos foi um

chorão e bebeu nas águas do cancioneiro popular, deveria valorizar a criatividade e,

talvez mesmo, a improvisação dos intérpretes.


161

6. O “RIACHINHO”62 DE ROSA: A MÚSICA DO TEXTO

Topamos com um corguinho amável – um ribeiro filiforme, de corrida


cantada, entre marulho e arrulho, e água muito branca. Vinha da sombra e
atravessava a estrada. Sorria (ROSA, 2001, p. 217)

Até aqui, discutimos a questão da interpretação poética de obras musicais

propriamente ditas. Todavia, é importante ressaltar que a música ultrapassa o

registro da partitura e da oralidade, como supomos ter ficado evidente nas obras

precedentes, interpretadas poeticamente. Do ponto de vista poético, são múltiplas as

possibilidades de afloramento do ser das obras musicais, através de suas

interpretações e execuções, suas exegeses enfim e, principalmente, pelo diálogo

compreensivo entre a escuta do dizer da obra e o momento poético do ouvinte. Isto

constitui, para nós, a hermenêutica da música.

Cabe-nos agora buscar um outro caminho, ou melhor dizendo, buscar o

caminho oposto: desentranhar a música escondida nas palavras, nos textos poéticos

e, sobretudo, nos exemplos que iremos interpretar poeticamente, como é o caso do

conto “Minha gente”, da obra “Sagarana”63, de Guimarães Rosa.

Para tanto, faremos um encontro dialogal entre o texto de “Minha Gente”, o

artigo “O narrador mitopoético da saga rosiana de „Minha Gente‟”, de Ronaldes de

Melo e Souza (2008), e os nossos devaneios poético-musicais desta obra rosiana,

baseando-nos também nos comentários de Antonio Jardim na capa de “A saga

rosiana do sertão”, obra que contém o artigo citado:

Pode-se dizer que a conexão entre o pensamento rosiano e a música como


forma de compreensão de desdobramento da narrativa é a primordial
realização de Ronaldes de Melo e Souza neste livro. E aí se percebe que o
autor propõe uma maneira própria de abordar o Guimarães Rosa de

62
O termo “O riachinho”, vem do texto de Ronaldes de Melo e Souza: “O narrador mitopoético da
saga rosiana de „Minha gente‟”, conforme trecho a seguir: “Na Paidéia poético-musical do artista
sertanejo, tudo se poematiza, inclusive o riachinho”. (2008, p. 68)
63
Cf. Anexo 7 – Ilustração de Poty para a obra Sagarana.
162

Sagarana e Corpo de baile. Mesmo sem deixar de levar em conta o rigor da


escritura, esta obra se caracteriza pela disposição de fazer mais-ouvir as
sonorizações das tramas rosianas. O Rosa aqui pensado é múltiplo, é
amplo, é tocado pelas musas...
...O João Guimarães Rosa retratado por Ronaldes de Melo e Souza se
deixa atravessar por um princípio poético-musical de construção e
constituição em sua narrativa. Assim, ao lermos este livro, nos encantamos
e nos envolvemos com duas musicalidades simultaneamente: se por um
lado, a musicalidade portentosa da narrativa rosiana é re-memorada todo o
tempo, por outro, somos embalados pela co-memoração em que o texto de
Ronaldes nos lança. (SOUZA, 2008, orelhas do livro)

O próprio Ronaldes de Melo e Souza diz:

Segundo fonte citada por Carlos Alberto dos Santos Abel, Guimarães Rosa
costumava dizer que “a música sertaneja servia para fazer descer os seus
„caboclos‟, os que iam entrando nos seus livros” (SOUZA, 2008, p.68)

Temos também, na contracapa de “A saga rosiana do sertão”, o seguinte

comentário do editor:

Ao conceber o sertão como forma em gestação, e não simplesmente como


tema, Ronaldes de Melo e Souza corresponde ao princípio musical de cada
uma das sagas rosianas, que se caracterizam como bailados narrativos de
um movimento sinfônico. (SOUZA, 2008, contracapa)

Em “Minha gente” temos um texto literário, na forma de um conto, que não foi

feito para servir de substrato a uma obra musical, mas apresenta fortes conotações

musicais emanadas da descrição lírica e poética das cenas e das onomatopéias

sugeridas pelo texto.

Falamos assim não porque tenhamos a intenção de fazer uma música para

um texto, e sim observar a musicalidade descortinada poeticamente na própria obra.

Não iremos discutir o mistério que subjaz às correspondências entre música e

literatura, até porque não temos, como já foi dito, uma obra musical que seja um

“programa” e nem estaremos pretendendo, nem induzindo, à criação de uma obra

musical de fato.

Apenas se tentará, à luz do que o próprio texto evoca, para um determinado


163

apreciador que se mova na esfera do ponto de vista musical, descolar imagens

musicais emanadas da escuta poética e da musicalidade que se revelam

poeticamente nos contos / cantos de Guimarães Rosa.

Dito em outras palavras, não temos a intenção de fazer aqui uma música

programática, embora não possamos descartá-la inteiramente. Na música

programática – ao contrário da música denominada absoluta, ou seja, a música

puramente instrumental, sem sentido dramático ou representativo, música pura64,

enfim – busca-se extrair a intenção musical de um texto em prosa ou poesia com o

objetivo de se criar uma obra artística, como p.ex., uma novela, um filme, um

musical, ou uma peça, dentre outras modalidades do fazer artístico.

Nesse tipo de obras, que requerem a música dita programática, ela constitui

um componente fundamental para dar expressividade e sentido poético, o que só

ela, a música, é capaz de fazer.

Nesse caso, cabe, então, ao criador musical, encontrar o sentido musical ou

interpretar o sentido musical no texto. Esse processo de criação tem um tanto de

mistério, pois esse artista vai fazer a “transliteração” de uma modalidade artística

literária para outra, a música, e necessitará encontrar os pontos de contato poéticos

que lhe permitam traduzir, musicalmente, o texto.

No caso de “Minha gente”, temos uma situação sui generis. Trata-se de um

conto do qual emanam sugestões poético-musicais do próprio texto, como já

dissemos, e é óbvio que não houve a intenção do autor de fazer música, portanto

procuraremos interpretar poeticamente a musicalidade do texto a partir de nossa

própria escuta da obra literária rosiana.

64
Conforme definição do dicionário Grove: “Expressão usada pela primeira vez por escritores
alemães, para um ideal de música”pura” independente de palavras, arte dramática ou sentido
representativo...; sugeriu-se que esse tipo de música deveria ser compreendido como uma estrutura
objetiva sem conteúdo expressivo”. (SADIE, 1994, p. 632)
164

Este caso não é como os libretos de ópera que são criados com esta

finalidade, ou seja, de se tornarem música. É o caso da ópera L’Orfeo de

Monteverdi, interpretada por nós poeticamente neste trabalho a partir do seu libreto,

sendo que a idéia de criar a obra musical parte do autor da música65.

Nem é como as cantigas medievais, que tinham poesia e música que nasciam

juntas, apesar das partituras muitas vezes inexistentes, rememoradas através da

tradição oral, ou escritas em notações musicais imprecisas para os padrões de

precisão da escrita musical atual e relegadas ao esquecimento, em parte, como as

Cantigas de Santa Maria de Afonso X e as Cantigas de amigo de Martin Codax, já

mencionadas, e que demandam uma pesquisa de contextualização e atualização,

que denominamos revival, para poderem ser novamente interpretadas poeticamente

e usufruídas pelos ouvintes de hoje.

Também não é como as serestas de Villa-Lobos, músico que escolheu

poesias de poetas de seu tempo, para musicá-las e agregar-lhes sentido musical e

poético, um sentido modinheiro, como é o caso da Seresta nº 5: Modinha, com

poesia de Manuel Bandeira, o Manduca Piá, que também estudamos neste trabalho.

Neste caso, o ponto de partida do processo composicional é dado pelas

sugestões lítero-musicais do texto poético, que procuramos interpretar poeticamente.

A música programática, no nosso contexto, terá um viés oposto ao que

normalmente se faz. É comum se ter uma história - drama, novela etc. - e, a partir

dela, se criar ou escolher uma obra musical, que no cerne de sua linguagem possa

criar ou demonstrar uma expressão ou pathos que acentue a carga dramática da

história, ou então que lhe acrescente, por um comparatismo semântico, novas

65
O músico que deseja compor uma obra sobre um determinado tema, no nosso caso a história de
Orfeo e Eurídice, baseada na mitologia grega, contrata um libretista, que é um escritor de textos
poéticos a partir de um tema previamente escolhido. O libretista e o compositor vão juntos, em
parceria, construindo a obra.
165

cargas de significados poéticos.

Em primeiro lugar porque, como sabemos, a música não está presente, de

fato, no conto "Minha Gente". Trata-se de uma obra literária tout court e também

porque é obra feita por um autor de obras literárias, e também por ser,

primordialmente, obra poética, e poética em seu sentido de poiesis, ou seja, daquilo

que se mostra e se oculta, num constante velar e desvelar de mundos e de

possibilidades criadoras, ou, como nos diz de forma mais apropriada Antonio Jardim

em "Música: vigência do pensar poético":

O poético é, portanto, a dimensão mais própria do fazer, como o fazer que


se constitui habitação do desconhecido e que, em sendo assim, dá ensejo a
que este desconhecido possa vir a ser conhecido, venha desencadear um
processo de co-nascere, isto é, o que se produz mediante a possibilidade
de realizar a experiência de nascer junto a, cada vez. Não é, portanto,
qualquer fazer que é poético. O fazer poético é aquele que, de um modo ou
de outro, desencadeia, como sua própria condição de possibilidade, a
vigência da possibilidade de encaminhamento do desconhecido ao
conhecimento, ao co-nascimento. (JARDIM, 2005, p.186).

Num contexto maior, a essência da obra rosiana apresenta uma carga poética

multifacetada, onde as diferentes manifestações da criação artística surgem não

somente num primeiro plano em discurso verbal inspirado, mas também em

diferentes instâncias do pensar e do sentir humanos.

O nosso mister é a música e música que se descola do silêncio do texto do

papel para ganhar a dimensão sonora, de um vazio pleno de significados, que, ao

aflorar, entre em diálogo reciprocizante entre escritor, leitor, músico e intérprete, de

forma que aquilo que em princípio rumava para um "causo interiorano bem contado",

se dá a perceber também como coisa sonora e musical.

As "equivalências" sonoro-literárias questionadas neste trabalho serão vistas

à luz do comparatismo literário, conforme nos mostra o Prof. Eduardo Coutinho no

seu artigo "Literatura Comparada e interdisciplinaridade", embora se trate de um


166

comparatismo sui-generis , pois, a rigor, nunca é demais lembrar, a música não está

posta, neste caso, como fato concreto, ou seja, com as características tradicionais

de uma música no seu sentido mais simples, que são a melodia e o ritmo, em forma

escrita (notação musical) e/ou oralizada, cantada ou tocada.

Na verdade, a relação entre a literatura e a música, e em particular a poesia


e a música, vem dos tempos mais remotos e bastaria recordar que as
primeiras poesias foram escritas para serem cantadas com
acompanhamento musical [...] Do mesmo modo não são poucas as
composições poéticas que são encaradas como canções, e lembre-se aqui
o célebre debate, até hoje evidentemente sem solução, que ocupou durante
tanto tempo os palcos sobre a distinção entre poesia e letras de música
popular. Acrescente-se a isto a questão da adaptação de uma obra literária
à música e vice-versa e as interferências constantes de uma área na outra.
(COUTINHO, 2003, p. 16)

Ou ainda, também, como uma "correspondência das artes", no entender de

Etiénne Souriau, cuja citação, embora um pouco longa, vale a pena ser mencionada

por ir direto às questões que estão em pauta aqui, pois o que nos interessa é fazer

um programatismo às avessas, pois não se trata de "evocar" musicalmente, de fato,

ou seja, com a criação de uma obra musical inspirada em “correspondências

intersensoriais diretas entre as diferentes ordens sensoriais psicológicas e

cósmicas”, como nos explica Souriau na quinta parte do livro citado, “Música e

Literatura”, em "As pretensas correspondências intersensoriais diretas":

Evidentemente, não se trata aqui de estudarmos, uma a uma, todas as


correspondências de uma arte a outra... Estudaremos apenas alguns
exemplos, escolhidos entre os mais importantes.
O primeiro problema a ser visto é aquele (já referido) da música e da
literatura, as duas artes que, no esquema de conjunto, apresentam uma
situação bastante particular devido a seu caráter quase complementar.
(SOURIAU, 1983, p. 119)

E as “correspondências interartísticas”, a saber: as sinestesias e relações

associativas adquiridas na cultura descritas, como p.ex., o “Epipsychidion” de

Shelley:
167

And every motion, odour, beam and tone


With that deep music is in unison:
Which is soul within the soul - they seem
Like echoes of an antenatal dream.

[E cada movimento, aroma, irradiação ou som


Com essa música profunda está em uníssono:
Música que é alma dentro da alma - eles semelham
Ecos de um sonho anterior ao nascimento.]
(SOURIAU, 1983, p.120)

Ou versos de Baudelaire: “os perfumes, as cores e os sons respondem uns

aos outros”, como também “as cores das Vogais”, de Rimbaud, apontados por

Souriau, na mesma obra.

Para Souriau a questão está em saber “se as sonoridades das sílabas na

poesia e das notas na música”, possuem:

correspondências funcionais, fundadas na unidade profunda e íntima de


uma ação sempre igual a si mesma (apesar das diversidades causadas por
suas diferentes combinações, em mundos sensorialmente variados), quer
se chame ela pintura ou poesia, arquitetura ou música. (SOURIAU, 1983,
p.124)

No conto “Minha Gente” há uma forte moldura musical, conforme narrado pelo

escritor dessas “Histórias adultas da Carochinha”, que é como ele, Rosa, se refere

aos contos de Sagarana, na carta a João Condé.

Nessa carta, Guimarães Rosa lhe revela os “segredos” de Sagarana:

Assim, pois, em 1937 – um dia, outro dia, outro dia... – quando chegou a
hora de o Sagarana ter de ser escrito, pensei muito. Num barquinho, que
viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder
colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia embarcar, inteira, no
momento, a minha concepção-do-mundo.
Tinha de pensar, igualmente, na palavra “arte”, em tudo o que ela para mim
representava, como corpo e como alma; como um daqueles variados
caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente. (ROSA, 2001,
p. 23)

Também lhe diz, após decidir que Sagarana iria ser composta de 12 novelas,

entre elas a nossa “Minha gente”:


168

Então, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas


sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, “revendo”
paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso. Quando a
máquina esteve pronta, parti. Lembro-me de que foi num domingo, de
manhã. (ROSA, 2001, p.25).

No passar das “horas de dias”, no cantar cantigas, no aboio do gado imenso,

no espaço recluso da imaginação poética, sem tempo e sem lugar, acontece a

iluminação, o fiat lux , por onde começa a criação do bardo, aedo, poeta ou músico.

“Revendo paisagens”, como paisagens sonoras - acontecimento propiciador do

eclodir da physis vicejante, ato de liberdade do criador musical - surge uma idéia ou

um som musical, acolhido pelas velhas lembranças das “paisagens da minha terra”.

Assim se pensa o fazer musical de Rosa e, quando a máquina está pronta,

parte-se. Rumo ao desconhecido, ao inaudito e ao que sempre esteve lá “num

domingo, de manhã”, dia do descanso, dia do Senhor, dia do criador e de sua

criatura, Dominus Dei.

Amante da mãe-natureza e, sobretudo, de Minas Gerais, “Minas Gerais...

Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão” (ROSA, 2001, p.216), este

eclodir da physis na obra rosiana, de dentro para fora e do céu para o chão, pode

também ser compreendido, numa interpretação poética, como um processo de

criação musical, ou até mesmo de qualquer criação artística, possivelmente

inspirado em sua obra, em que de dentro do silêncio dos sons adormecidos

desvela-se a obra musical tomando a forma dos sons do mundo exterior, aqueles

sons que o homem reconhece como música.

Amante da língua - “De certo modo eu amava a língua. Apenas, não a amo

como a mãe severa, mas como a bela amante e companheira.” (ROSA, 2001, p. 25),

como declara na aludida carta a João Condé -, amante da arte, quando narra a

chegada da hora de escrever Sagarana: o barquinho descendo o rio ao alcance das


169

mãos, como uma metáfora vigorosa do processo criador: céu e terra, corpo e alma,

temporal e eterno, elementos primordiais de tudo que vive e respira e que se

transforma poeticamente em obras de arte.

Nesta geopoética rosiana, o narrador de “Minha Gente” caminha em lombo de

cavalo baio pelos vastos campos das Gerais em direção ao seu destino – que

parecia ser Maria Irma – que lhe espera na fazenda do seu tio Emílio:

E a vista se dilatara: léguas e léguas batidas, de todos os lados: colinas


redondas, circinadas, contornadas por fitas de caminhos e serpentinas de
trilhas de gado; convales tufados de mato musgoso; cotilédones de outeiros
verde-crisoberilo; casas de arraiais, igrejinhas branquejando;
desbarrancados vermelhos; restingas de córregos; píncaros azuis,
marcando no horizonte uma rosa-dos-ventos; e mais pedreiras, tabuleiros,
canhões, canhadas, tremembés e itambés, chãs e rechãs.
Ali, até uma criança, só de olhar ficava sabendo que a Terra é redonda. E
eu, que gosto de entusiasmar-me, proclamei:
-Minas Gerais... Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão...
(ROSA, 2001, p. 216)

Em dado momento de sua travessia rumo ao sítio do tio Emilio - quando

Santana, seu companheiro de viagem cita a história de Bento Porfírio, pescador e

personagem dramático do conto -, surge Agripino, que o havia convidado para

conhecer sua filha, a de-Lourdes. Convite recusado, Bento Porfírio pensa para si:

Oh, tristeza! Da gameleira ou do ingazeiro, desce um canto, de repente,


triste, triste, que faz dó. É um sabiá. Tem quatro notas, sempre no mesmo,
porque só ao fim da página é que ele dobra o pio. Quatro notas, em menor,
a segunda e a última molhadas. Romântico. (ROSA, 2001, p. 229)

Em dado momento Bento Porfírio se inquieta com os sentimentos de Porfírio:

“Eu não gosto desse passarinho!... Não gosto de violão... De nada que põe

saudades na gente.” (ROSA, 2001, p.230)

Ao que Porfírio retruca: “Inútil nos defendermos, Bento! A tristeza já veio, já

caiu aqui perto de nós. Eu estou pensando... Talvez, num lugar que não conheço,

aonde nunca irei, more alguém que está a minha espera... E que jamais verei,
170

jamais...” (ROSA, 2001, p.230).

Neste lamento, que sai da alma de Bento, encontramos algumas das imagens

mais fortes do texto, no que diz respeito aos sons musicais: “um canto, de repente,

triste, triste, que faz dó”, porque essa citação das quatro notas do lamento do sabiá

contém a verdade de tudo que a nossa música ocidental é e produz, conforme

percebemos poeticamente no texto.

Este “canto triste que faz dó” tem as quatro notas ou tetracorde, em

linguagem musical, que é o sistema que os gregos usavam para formar suas escalas

musicais: 4 notas seguidas justapostas a mais 4 notas musicais; assim se

constituíram todos os sistemas musicais do ocidente, chamados modos, com a lira,

talvez de Orfeo, dando o tom e o som da 1ª de todas as notas: a nota primordial, a

nota Alfa. Dela saíram as demais notas, todas pitagóricas, afinadas na base de uma

relação matemática, ou ratio, de : 1/2, 2/3 e assim por diante (ABDOUNUR, 1999, p.

10).

Mas o “canto triste, triste que faz dó” também fez o Dó, a nota primordial das

escalas musicais modernas, que já foi Gama dos gregos, já foi Ut, primeira nota de

um Hino medieval a S.João Batista66, razão e sentimento religioso formando sentido

musical e poético.

Ao se entrecruzarem esses e muitos outros sons, ecos da physis do mundo e

da poiesis dos homens, com algumas notas “molhadas” e outras “secas”, como os

tristes pios do sabiá de Rosa, que... “ao fim da página é que ele dobra o pio”,

dobram os tetracordes e formam as nossas escalas musicais de oito sons, embora

há quem diga que são sete.

Os alemães as chamam também de notas “moles” (Moll – tom menor) –

66
UT queant laxis / RE - sonare fibris / Mi - ra gestorum / Fa - muli tuorum / Sol -ve polluti / La - bii
reatum / S - ancte I - oannes . (“Para que teus servos, possam ressoar claramente a maravilha dos
teus feitos, limpe nossos lábios impuros, ó São João.") (ABDOUNUR, 1999, p. 10)
171

bemol67 e notas “duras” (Dur – tom maior) - bequadro68. Belas e poéticas imagens

musicais dos sentimentos ou afetos sugeridos pelas melodias de todos os tempos.

As notas blues do Jazz americano são exemplos destas tristes notas-pios abaixadas

e melancolizadas. As sétimas notas das escalas musicais modernas, quando a

serviço de cantos gregorianos, e de outros cantos exóticos ou excêntricos 69, também

são amolecidas ou abaixadas com um bemol a serviço de cantos “pios” e espirituais.

Do ponto de vista estritamente musical os musicólogos formalistas, como

p.ex. Eduard Hanslick, pensam diferente. Para ele, “O conteúdo da música são

formas sonoras em movimento” (HANSLICK, 1989, p.62) e nada mais, mas esta já é

uma outra questão, mais pertinente aos teóricos racionalistas da música, tais como o

próprio Hanslick e Stravinsky, entre outros.

Do texto poético acima destacamos alguns estados de alma como o violão, a

tristeza, a saudade, o desencanto... a mulher oculta, invisível, inacessível, qual uma

Dulcinéa à brasileira e que denotam um sentimento seresteiro, típico das Minas

Gerais, como a letra do poeta Manoel Bandeira, já interpretada neste trabalho.

Sentimentos da terra, do céu, da lua, das estrelas, do violão e sobretudo da mulher

amada.

Em Conservatória, cidade das serestas, encontramos um equivalente

fluminense a essa saudade mineira, na forma de uma canção seresteira chamada

“Balé dos vagalumes” do seresteiro de Conservatória José Borges de Freitas Netto,

a quem entrevistamos para o nosso trabalho de mestrado sobre serestas e que

demonstra a permanência no tempo e no espaço destes valores e sentimentos

67
Bemol, segundo SADIE, é um “Sinal de notação ( ), normalmente colocado à esquerda de uma
nota e indicando que a nota deve ter sua altura abaixada em um semitom (ref.?).
68
Bequadro é um “Sinal de alteração ( ) normalmente colocado à esquerda de uma nota e, com isso,
cancelando um bemol ou sustenido que, sem isso, a atingiriam (SADIE, 1994, p. 96)
69
No sentido de estarem afastados dos cânones musicais ocidentais modernos.
172

interioranos, dos quais as serestas são os melhores exemplos:

BALÉ DOS VAGALUMES

As cigarras em queixumes,
O balé dos vagalumes
Enfeitando a solidão.

A saudade é assim,
A saudade que guardei dentro de mim.
A saudade é a fonte...
Um riacho... uma ponte...
Lírios brancos pelo chão.

As cigarras em queixumes,
O balé dos vagalumes,
Enfeitando a solidão.

Na paisagem, a natureza
Põe um pouco de tristeza,
Quando a noite vai chegar.

Vagalumes da saudade
São estrelas pequeninas,
Pedacinhos de luar.

Este sentimento seresteiro de saudade pela musa distante é o que

encontramos, por assim dizer, em todo o conto “Minha Gente” de Rosa. Para nós a

história de “Minha Gente” é uma história de amor, emoldurada pelos astros de Minas

e pelos personagens interioranos que margeiam entre matutos, espertos, ingênuos e

líricos, como nos diz o Narrador, a respeito do sentimento de Agripino:

Inútil nos defendermos, Bento! A tristeza já veio, já caiu aqui perto de nós.
173

Eu estou pensando... Talvez, num lugar que não conheço, aonde nunca irei,
more alguém que está a minha espera... E que jamais verei, jamais...
(ROSA, 2001, p.230)

A lírica poética seresteira e as lânguidas modinhas e canções populares

românticas carregam afinal dois discursos distintos, porém inseparáveis, a saber,

música e letra, como uni-las, como separá-las, como entendê-las do ponto de vista

da interpretação poética? Porém em um texto literário, como entendê-lo

musicalmente? Essa é a nossa questão aqui.

Mais adiante no texto, o Narrador, “com saudade dos estranhos sussurros do

poço” e ainda impressionado com o canto do sabiá, diz:

O ribeirão mudou de tom. Você ouviu, Bento? Ronca. Está se enchendo


outra vez, sem turvar a água... De repente, o sabiá! Veio molhar o pio no
poço, que é um bom ressoador. E quer passar a sua tristeza para a gente.
(ROSA, 2001, p.232)

Ao que Bento respondeu cantando alto:

“Ouvi um sabiá cantando


na beira do ribeirão...
Ô pássaro que canta triste!
Não me traz consolação...”
(ROSA, 2001, p. 232)

“Então o sabiá calou o bico e foi-se embora, porque a cantiga do Bento ainda

era mais melancolizante” (ROSA, 2001, p. 232), nos diz o narrador a respeito deste

“dueto” entre Bento e o sabiá.

Autêntica moda de viola, esta quadrinha quase que pode ser ouvida, mesmo

sem a música, tamanha a sua afinidade como as cantorias sertanejas, os desafios e

a chamada “música de raiz” ou caipira!

Quanta semelhança entre “Ouvi um sabiá cantando / na beira do ribeirão...”

do canto de Bento acima e “As cigarras em queixumes, / O balé dos vagalumes /


174

Enfeitando a solidão”; e entre “Vagalumes da saudade / São estrelas pequeninas, /

Pedacinhos de luar” e “Noite sem lua...” e o “vagalume lanterneiro, que riscou um

psiu de luz”, quando, após um jantar do Narrador e Maria Irma, sua prometida, ele

admira os cheiros e as luzes da noite:

Fechei-me no quarto. Pela janela aberta entrava um cheiro de mato


misantropo. Debrucei-me. Noite sem lua, concha sem pérola. Só silhuetas
de árvores. E um vagalume lanterneiro, que riscou um psiu de luz (ROSA,
2001, p.231).

De melancolia e de saudade é feito o conto “Minha Gente”, como também de

saudade é feita a seresta Balé dos vagalumes: “A saudade é assim, / A saudade que

guardei dentro de mim. / A saudade é a fonte... / Um riacho... uma ponte... / Lírios

brancos pelo chão”.

O mesmo sentimento “melancolizante” de Rosa é o de José Borges em Balé

dos vagalumes. É todo o sentimento do mundo espremido entre as montanhas das

Gerais e a cidadezinha de Conservatória.

Em uma das possíveis abordagens do tema da música sugerida em uma obra

literária, que consiste, como já dissemos, em “desentranhar” a música escondida nas

palavras, podemos levar em conta um concerto peculiar, imaginário e trans-

temporal, entre o artigo "O narrador mitopoético da saga rosiana de 'Minha Gente'“

de Ronaldes de Melo e Souza, o conto "Minha Gente" do livro Sagarana de

Guimarães Rosa e nossos conhecimentos pessoais sobre música, como já

havíamos comentado, num consenso imaginário entre discursos aparentemente tão

distantes e devido também ao hiato de sete décadas entre o texto de Guimarães

Rosa e suas exegeses.

A musicalidade intensa da obra rosiana transparece o tempo todo no corpo

dos seus textos, revelando-se em uma metáfora do corpo e da alma em que, numa

apropriação poética, seu corpo são seus textos e a musicalidade que transpira e
175

poreja de suas obras é a sua alma. Textos e musicalidade que são aquilo que

compõe a canção; a canção brasileira, a nossa seresta, feita pura poesia num puro

texto.

Para Ronaldes de Melo e Souza:

Por ser músico poeta ou poeta músico, Guimarães Rosa se destaca como
escritor genuíno do sertão. Na Paidéia poético-musical do artista sertanejo,
tudo se poematiza, inclusive o riachinho:
“Topamos com um corguinho amável – um ribeiro filiforme, de corrida
cantada, entre marulho e arrulho, e água muito branca. Vinha da sombra e
atravessava a estrada. Sorria”. (SOUZA, 2008, p. 74)

A música, do ponto de vista musicológico, entre muitas outras categorias

ligadas ao ritmo, à harmonia e à instrumentação, é principalmente a idéia de uma

linha melódica com tema ou sujeito, desenvolvimento temático de várias ordens e

conclusão ou repouso, quando se dá o adensamento temático, denominado em

música de stretto ou a resolução pura e simples em graus escalares ou cadências

"de repouso".

Ora, isto pode ser facilmente associado, mesmo que num primeiro momento

soe leviano, à idéia de sujeito, predicado e objeto do discurso verbal e na prosa

poética grafada; o discurso oral é mais livre e solto, por isso não foi considerado

aqui.

A par da idéia de tema, desenvolvimento e conclusão, que advém de uma

matriz metafísica racionalizante, como são constituídas tradicionalmente a sintaxe e

a gramática no discurso verbal, temos na música, como também na literatura, os

denominados elementos expressivos tais como a dinâmica e a agógica. A dinâmica

trata dos crescendo e decrescendo, ou seja, as variações de volume, e a agógica,

com seus accelerando e rittardando, trata da dimensão do tempo, sem falar da

onomatopéia, que é uma excelente via de mão dupla para uma Interpretação lítero-
176

musical.

No entanto, estes elementos expressivos podem ser considerados como os

elementos poéticos, aqueles que manifestam a poiesis presente no texto musical.

Mas como a questão da interpretação poética é multifacetada, haverá tantas

possibilidades interpretativas ou hermenêuticas quantas se queira, apesar do

caráter, digamos, positivista, das classificações anteriores.

Segundo Heidegger em "Ser e Tempo" (PARTE I): "Interpretar não é tomar

conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas

na compreensão" (HEIDEGGER, 2005, p.204).

Talvez seja possível considerar uma associação com o dito em “O narrador

mitopoético” e alguns parâmetros musicais como pares coerentes, tais como volume

sonoro/ espaço geopoético e tempo musical/ mitopoética, dado que o volume sonoro

musical é a propriedade que espacializa o som, ou melhor dizendo, aloca-o na

tridimensionalidade, juntamente com a superposição harmônica dos sons, sempre

na moldura do tempo musical, que a tudo precede e é a condição de possibilidade

da música.

O volume sonoro é responsável pela propagação esférica do som no

ambiente, o que, por todos os motivos da física mecânica, bem como da

sensibilidade auditiva e da expressividade poética, situa-o na dimensão mítica e

poética do sentimento da audição lírica e sensível dos horizontes e dos deslimites.

Segundo Ronaldes de Melo e Souza, "o horizonte não se define como

conceito puro e simples, mas como imagem que inscreve o rigor do pensamento

inteligível no vigor da plenitude sensível" (SOUZA, 2008, p.70) e "Na percepção do

horizonte, o mundo sempre se mostra em perspectiva" (SOUZA, 2008, p.70). Estas

considerações são feitas a respeito de sua visão das Minas Gerais de Guimarães
177

Rosa, reveladas em sua obra "Minha gente".

De ponto de vista musical, a conceituação de rigor e vigor, conforme descrita

acima, muito tem a ver com a questão musical. Pois a música enquanto arte vige

entre o rigor e a maciez. Rigor de rigorosidade mas também de rigidez, e maciez de

fluidez e daquilo que é o inconsútil, maciço e inteiro dos sons musicais.

Na música, transitamos sempre entre o rigor do signo e a maciez do

som/sonho, que estão sempre a se encontrar e a se separar. O rigor visto como o

código escrito da partitura, ou mesmo de uma interpretação consagrada, e o vigor

como aquilo que brota e se revela, como é próprio do fazer da arte e do destino do

ser humano.

Então a questão que se coloca, para nós, mais do que associar imagens ditas

sonoro-musicais no discurso poético literário de Guimarães Rosa, é discutir a própria

condição de possibilidade desta leitura "comparatista" sui generis entre o texto

literário e uma música que, de fato, não está aí, mas é apenas evocada através de

correlações psicológicas que surgem na leitura dos contos rosianos.

Souza ainda diz, em "O narrador mitopoético", sobre a questão mitopoética

de Minas:

A região mineira se representa como centro do mundo. Fica bem claro,


portanto, que, no estatuto calculado da arte rosiana, a posição central do
conjunto sinfônico das sagas de Sagarana tenha sido reservada para
"Minha gente", que designa os viventes do interior sertanejo, na acepção
ampla do termo, que inclui, num mutirão polifônico, homens, animais, aves,
plantas, riachos e montanhas, em suma, a natureza do sertão. (SOUZA, s/d,
p.71)

É próprio da natureza da música ser sinfônica e polifônica, pois que não é

possível haver música sem concerto de sons e sem superposição de sons. A

própria natureza física do som faz com ele seja concertante e superposto, pois que

vige em consenso superposto e não é possível deixar de sê-lo. Cada som são vários
178

sons, cada emissão sonora fundamental carrega consigo - à semelhança do

fenômeno luminoso, em que a luz branca é, na realidade, um amplo espectro de

cores - um conjunto de outros sons que se ocultam para permitir a plena realização

tímbrica do vigor daquele som escolhido e desejado para ser ouvido e apreciado.

Portanto, em música, vigir e vigorar são um e o mesmo.

Acreditamos que falar de música numa obra literária é como narrar cheiros,

sons e cores que não estão lá, mas que podem ser sentidos através da

representação simbólica das palavras e das correspondências sensíveis entre o

inaudito e o dejà-vu.

Através de uma atenção e um cuidado para aquilo que a poesia do texto nos

revela, ele, o texto, nos dá a conhecer as suas próprias consonâncias musicais, num

sentido originário do tempo musical e do ser da música, feito de tempo, silêncio e

pathos

Por força de uma tradição ancestral, em tempos em que o dizer do bardo ou

do aedo era um falar cantado ou um cantar falado, e também porque a

representação do discurso verbal seja mais objetiva do que o significado de uma

melodia pura - se é que existe um significado para um canto sem palavras. Isto nos

remete para a questão da música, já mencionada, considerada como sendo isenta

de significações extramusicais, segundo Hanslick em “Do belo musical”.

Quando o riachinho de Rosa canta, ele canta um canto, um conto, ou conta

um cantar? Será possível separar estes dois discursos?

O articulista de "O Narrador mitopoético" nos diz em "Minha Gente" que "o

narrador da saga de sua gente se comporta como corifeu no centro do círculo dos

sons e das vozes do sertão" e também que: "o narrador assume a antiga função

poético-musical do educador que detém o conhecimento integrado da poesia, da


179

dança e da música”. (SOUZA, 2008, p.68)

A nossa incursão por assunto tão delicado como é o da separação e da união

da letra e da música de uma canção, motivados pelo "riachinho" de Guimarães

Rosa, é um terreno fértil para se levantar e aprofundar várias questões ligadas àquilo

que se denomina de Canção, ou mesmo de Seresta, e ao fato de, comumente,

encontrarmos um texto literário, ou poesia, qualificado como música, sem que a

própria música se manifeste objetivamente através do discurso musical ou de seu

código escrito apropriado.

Como nos diz Souza:

Importa assinalar que a singularidade artística da obra rosiana no contexto


nacional e internacional resulta da interpenetração poético-musical de duas
tradições, uma oral, que se perpetua na expressividade das estórias
contadas pela gente do sertão, e outra erudita, que se consuma na
poeticidade da forma narrativa das sagas do sertão. (SOUZA, 2008, p.74).

É assim que se dá também na questão do erudito e do popular na música,

como já mencionamos neste trabalho, ou seja, o oral-popular alimentando, na

maioria das vezes, o escrito-erudito: os “causos” que viram contos e cantos, vividos

e rememorados pela tradição e cultura ágrafa, apropriados pela cultura erudita que

os fixa na escrita do papel e, ao mesmo tempo, os universaliza pela possibilidade de

transmissão do meio impresso, dando margem à eclosão de novas oralidades e

assim por diante.

Estas tradições enunciadas, a oral e a erudita, perpassam também todo fazer

musical de nossa cultura artística brasileira, seja num cordel da Feira de S.

Cristóvão, numa Folia de Reis pelas estradas do interior fluminense, a que já

tivemos a oportunidade de assistir, numa obra como “Minha Gente” ou também em

nossos cancioneiros de toda ordem.

O movimento rítmico das palavras e das manifestações da natureza e da


180

cultura, que são os pontos de partida para os fazeres musicais, são bem

demonstrados por Souza na sua apresentação de “A saga rosiana do sertão”, no

seu comentário sobre a dinâmica da natureza mitopoética do conto “Minha Gente”:

No encontro orquestral com a natureza, o sertanejo rosiano se representa


como o artista que dança em consonância com a mobilidade pura do corpo
telúrico, que se manifesta em formação e transformação, revelando-se
como a unidade proliferante, que se desdobra na multiplicidade das formas
polifônicas e multicoloridas de todos os seres viventes. O sertanejo mais
sintonizado com o sertão é o narrador rosiano, que concebe a natureza
telúrica do mundo sertanejo como uma forma em movimento contínuo,
como fenômeno que advém e está sempre em transição, em vias de vir a
ser, que não cessa de manifestar-se, de aparecer e mostrar-se. Ao ritmo
formativo da natureza corresponde a plasticidade da linguagem rítmica, que
se configura na construção musical da narrativa. A forma deveniente da
natureza e a forma dinâmica da linguagem mutuamente se implicam,
sobretudo porque jamais se representam conformadas no contorno externo
de uma configuração aparentemente estática e acabada, mas sempre como
um dinamismo que supõe uma energia própria, uma ânsia de realização, um
desejo de metamorfose. (SOUZA, 2008, p. 13)

“A forma deveniente da natureza e a forma dinâmica da linguagem”, da

citação acima são, segundo nosso entendimento, o equivalente na música a sua

physis e sua poiesis. A idéia do tema musical que nasce da imaginação do

compositor é sua matéria-prima, sua natura, enquanto que o desenvolvimento da

obra é feito com os recursos musicais da lógica composicional, a techne, mas,

sobretudo, com o mistério e a magia do processo hermenêutico de poetização da

physis primordial, originária, e que dá ao desenvolvimento temático musical

características próprias do fazer poético. E isso nos é apresentado em toda a

extensão de “A saga rosiana do sertão”.

Buscar essa conexão entre o pensamento rosiano e a música, e “mais ouvir

as sonorizações das tramas rosianas”, foi o que buscamos questionar neste

trabalho, do nosso ponto de vista de músico.

E para encerrar, gostaríamos de copiar Antonio Jardim e repetir o final de seu


181

comentário em “A saga rosiana do sertão”: “Assim sendo: silêncio! Vamos ouvir!

Afinal, precisamos sempre ser todo-ouvidos” (SOUZA, 2008, orelha da contracapa).


182

7. CONCLUSÃO

Nosso trabalho versou sobre a hermenêutica da performance musical e a

questão da interpretação poética da obra arte. No nosso caso, arte significou falar da

música, ou melhor, de como se dá a interpretação musical. Procuramos conceituar

hermenêutica, pois é disso que trata a interpretação poética. A performance, a

apreciação, a análise e, sobretudo, a interpretação da obra musical foram vistas

tanto como diálogo e como método. O diálogo entre a obra, o intérprete e o ouvinte

constituíram métodos que foram se delineando na medida em que nos debruçamos

sobre as obras e os gêneros musicais escolhidos. Iniciamos tentando aprofundar a

questão da hermenêutica do ponto de vista da interpretação poética e, para tanto,

convocamos Hermes para o diálogo ao percorrermos os sentidos da palavra

hermenêutica, traduzida pelos romanos como interpretação.

Hermes é o deus grego das encruzilhadas, dos entre-caminhos cabendo,

portanto, a nós apreendermos esse caminho que é indicado. O caminho sugerido

por Hermes não nos aponta a direção, mas faz com que nós mesmos nos

embrenhemos nos seus entre-caminhos e ao fazê-lo acontece um acordo, que é

dado pelo diálogo entre a obra e o seu intérprete. Esse acordo não é universal; não

é um acordo decisivo no sentido de que não pode ser alterado mas, sim, é um

acordo dialogal. Enquanto em diálogo estamos sempre negociando com aquilo que

se nos apresenta e se ausenta. Por isso, Hermes nos indica o caminho e, em

diálogo com esse caminho, nós temos o nosso acordo e entre várias possibilidades

escolhemos um caminho que nos foi acenado, mas nesse caminho não se esgotam

todas as possibilidades manifestativas da obra. É por isso que podemos ter várias

performances de uma mesma obra musical e que estamos e não estamos diante de
183

uma mesma obra.

Mostramos que a interpretação, para nós, tem vários significados; significa

inicialmente as escolhas que o compositor faz ao transformar a obra sonhada em

obra realizada pela escrita musical, por exemplo. Ressaltamos também que neste

primeiro momento há um diálogo profundo entre o compositor e a tradição. Achamos

que uma obra musical não surge ex-nihilo e possui, no mínimo, três agentes: a

tradição musical que precedeu o compositor, o seu poder criativo e musical e os

possíveis futuros ouvintes da obra. Para nós, a tradição significa mais que uma

obediência cega ao antigo. Ao contrário do que se possa pensar, a tradição não tem

um sentido conservador, mas dinâmico e vivo como é próprio da physis. Assim, a

tradição é um conhecimento poético e como tal é atualizada continuamente até se

tornar parte viva do compositor e dos intérpretes da obra.

Depois da obra criada, temos outra instância interpretativa que é a avaliação

ou a apreciação que alguém fará acerca da obra no intuito de executá-la ou usá-la

como parâmetro composicional ou pedagógico. O intérprete executante irá avaliar a

obra escolhida não apenas por sua vontade, mas pelo acordo que faz com a própria

obra. É importante ressaltar que o avaliador da obra – aquele que faz a apreciação

inicial ou a escolha – poderá também ser o intérprete final desta cadeia, o

executante, ou apenas um intermediário que irá escolher esta obra ou não, para

compor um repertório e, nesta escolha da obra, haverá como já dissemos uma

avaliação, um diálogo e uma decisão. Esse agente também poderá ser um professor

de música, um aluno, em suma, alguém que lance um olhar sobre a obra e decida

tirá-la do sono do papel e trazê-la à vigência plena da música altissonante, e para

que a música seja ouvida e não vista apenas. Em seguida, temos a performance,

que é a última etapa desse processo de apreciação / avaliação e interpretação da


184

obra musical propriamente dita, quando a obra se dá a conhecer ao público ouvinte

através da performance do intérprete.

Para nós, bem como para qualquer ouvinte, os termos interpretação e

performance se confundem às vezes. Essa confusão decorre de que a interpretação

é uma performance e a performance é uma interpretação. Mesmo nas etapas

anteriores desse processo a performance sempre se dará na imaginação do

compositor, do apreciador / avaliador, aquele que escolhe a obra, e do intérprete

final, pois não é possível “ler” uma obra musical sem imaginar como ela irá soar na

vigência dos sons. O processo criativo se dá em todas estas instâncias. A obra

musical imaginada pelo compositor não será necessariamente a mesma, do ponto

de vista da interpretação, daquela do apreciador e do executante.

Mostramos, ao longo deste trabalho, que a ênfase na questão da apreciação

musical nem sempre apresenta uma relação direta com a composição e a

interpretação final. Essa apreciação ou escolha poderá ser feita por um editor de

partituras ou, como já dissemos, por um professor ou pelo próprio executante da

obra, maestro, instrumentista ou cantor.

Em princípio, pelos objetivos aqui traçados, consideramos um compositor,

anônimo ou não, que tenha escrito a sua obra em partitura musical com a notação

adequada do seu tempo. O apreciador ou avaliador foi, para a nossa finalidade,

aquele que tem o conhecimento acadêmico-musical e, portanto, a capacidade de

decodificar a notação musical de uma obra musical. Essa etapa do processo poderia

ser feita, por exemplo, nos dias de hoje pela escuta da obra apresentada sob a

forma fono-mecânica ou eletrônica. O apreciador pode ouvir a música e ler a

partitura. Esse avaliador também pode ser alguém que ouviu a música sem lê-la.

Na etapa seguinte, que é a da performance, consideramos um evento único


185

quando a obra será interpretada através de sua execução. Como a obra poética é

inesgotável, sempre poderá haver muitas outras interpretações e versões que

poderão vir a acontecer em outras performances. As possibilidades de diálogo entre

a fala da obra e a sua escuta são infinitas, pois é assim que se dá com o ser da obra

poética: sempre se revelando e se ocultando. Pudemos ainda dizer que isso

acontece em todas as instâncias interpretativas surgidas na experiência da obra. O

que chamamos de performance acontece em todas as etapas mencionadas. O

fenômeno musical, ou o mostrar-se da música se insere no círculo hermenêutico da

obra de arte: não tem início nem fim.

Voltando à questão da performance, consideramo-la também como

interpretação, pois o executante, no instante em que a obra é executada, também

está sempre tomando decisões, fazendo escolhas e se deixando possuir pelos

caminhos inaugurados por Hermes, pelo dom das musas, por Mnemosyne, e o

intérprete executante é apenas aquele que faz a performance final. Assim, podemos

dizer que temos também o intérprete compositor, o intérprete executor que faz a

performance, o intérprete apreciador, que avalia e escolha a obra, e o intérprete mor

que é a tradição, que liga em um só tempo, passado, presente e futuro.

Sabemos que é mais usual utilizar o termo intérprete para o executante que

faz a performance. Porém, ao longo deste trabalho tentamos mostrar as várias

instâncias do dizer interpretante tornando a interpretação e a performance ao

mesmo tempo uma só coisa e também, paradoxalmente, coisas distintas. O

originário da obra de arte é sempre um mistério. Há sempre muitos espaços para

negociações e escolhas em todo o processo gerador não só de uma obra musical,

mas também na arte de um modo geral. Interpretamos o tempo. Interpretar é próprio

do homem. É condição sine qua non do homem para compreensão do sentido do


186

mundo.

Para abordarmos os gêneros e obras musicais escolhidas neste trabalho

levamos em conta questões como o erudito e o popular, o antigo e o novo, o

sagrado e o profano, o oral e o escrito e, sobretudo, o lirismo do feminino e do amor

presentes em todas as obras que aqui foram citadas.

As questões do antigo e do novo permearam principalmente os dois primeiros

itens que foram as Cantigas Medievais e o Orfeo de Monteverdi. A questão do

erudito versus popular permeou todas as obras mencionadas, pois não é possível

deixar de considerar essas antinomias uma vez que, no caso específico da música,

mas talvez em todas as outras artes também, é muito tênue o fio que separa aquilo

que se considera erudito ou popular, se é que é mesmo possível separá-los. O que

chamamos de erudito é o que nos vem através de uma cultura acadêmica com

representações escritas e notações musicais mais ou menos precisas e definidas; já

o que chamamos de popular, para os nossos objetivos, advém de uma cultura

ágrafa, portanto, sem codificação escrita. No entanto, procuramos não estabelecer

um critério de valor entre a cultura erudita ou a cultura popular ágrafa. A Ilíada e

Odisséia de Homero, por exemplo, vieram de uma tradição oral. Apenas séculos

depois é que foram configuradas no papel. Elas perduraram pela memória – o que é

próprio do poder instaurador da música. Assim se deu também com a bíblia judaico-

cristã – toda advinda de uma cultura oral só codificada séculos após suas

enunciações primeiras.

Se considerarmos que o que separa a cultura erudita da cultura popular é a

representação escrita, fica até mais difícil saber onde começa e termina o domínio

de cada uma. Talvez, tivesse sido melhor nem consideramos estas questões. No

entanto, elas fazem parte da própria trajetória do acontecer das obras estudadas
187

neste trabalho e, por isso, não pudemos deixar de considerá-las. Achamos inclusive

que as antinomias mencionadas entre o oral e o escrito, o antigo e o novo, o

sagrado e o profano, o erudito e o popular não podem, de um modo geral, ser

consideradas de formas excludentes. Não há dicotomia, vimos que todas elas se

imbricam e o que vai ser mais relevante é aquilo que perpassa a própria obra, ou

melhor, vai depender das próprias sinalizações emanadas por ela.

Em nosso trabalho procuramos discutir as questões da hermenêutica

enquanto possibilidade de criação de um método poético e interpretativo das obras

musicais aqui estudadas. Tratamos da questão da interpretação, ou seja, da

hermenêutica da performance musical. Para tanto, escolhemos algumas obras ou

gêneros que fazem parte de nosso percurso musical e que possuem uma coerência

interna dada pelos próprios atributos das obras, entre eles, a questão da canção que

é a ligação ou amálgama de uma poesia à melodia -com exceção, conforme vimos,

do conto Minha Gente, de Guimarães Rosa em que se dá algo diferente -, com

ênfase no sentido poético da poesia dessas obras. Apesar da diacronia entre as

obras escolhidas, também foram enfatizadas nessas obras as questões do feminino

e do amor e as questões do revival e do enfoque comparativo presentes em todas

elas.

O revival, conforme explicamos no trabalho, é a visão do século XX sobre as

músicas do passado e uma tentativa de resgatar as obras musicais fora do contexto-

clássico romântico vigente, com pesquisas musicológicas, etno-musicológicas, à luz

dos tratados, iluminuras, e da tradição oral dada, sobretudo, pelo canto gregoriano

da igreja católica. O revival, como entendemos, é uma tentativa de revalorização e

atualização das linguagens musicais. Procuramos, ao abordarmos o revival, fazer

algumas reflexões, do ponto de vista hermenêutico, sobre a música do cancioneiro


188

medieval ibérico, enfatizando a questão da notação musical e da oralidade, numa

perspectiva poética, bem como a permanência e atualidade dessa música conforme

ilustrado no disco Medievo-nordeste do Música Antiga da UFF.

É uma forma de trazer a música de um passado distante para a vigência do

hoje, como faz a poética heideggeriana, ao buscar a questão do ser dos pensadores

originários.

Quando se busca o sentido do ser, segundo depoimento do professor Manuel

Antonio de Castro, é preciso depurar os termos e os jargões, ou seja, é preciso

raspar as cinzas depositadas por séculos de conceitos até chegar a brasa viva do

pensamento originário ou, como diz o poeta Fernando Pessoa, “E raspar a tinta com

que me pintaram os tecidos” (CASTRO, 2006). Falamos ainda da precisão e da

inégalitè como fatos inerentes à interpretação musical, ou seja, à própria

maleabilidade dada pela poiesis da obra, o que lhe permite ter infinitas

possibilidades de interpretação.

A seguir, tratamos de alguma questões poéticas envolvidas na obra Orfeo, de

Claudio Monteverdi, com foco no libretto da ópera; o mito de Orfeu, a obra musical

de Monteverdi e a ênfase no texto poético perpassaram esse exercício

hermenêutico, onde fizemos uma exegese dessa poesia que fala de deuses e

humanos, vida, morte e ressurreição, amor e perdas.

Na visão comparativa na Seresta nº 5 de Villa-Lobos, abordamos as

diferentes performances da mesma obra realizadas por três cantoras, em que

tentamos mostrar como, tanto o texto como a obra musical, podem ter caráter

polissêmico a depender da visão e da cultura de cada intérprete.

Finalmente, abordamos uma questão que não é usual: extrair as conotações

musicais de uma obra puramente literária, no caso o conto Minha Gente. Nesta obra,
189

não havia intenção do autor de produzir música, o que, de fato, não fez. A

musicalidade que transborda da própria obra também será dada pelo seu intérprete-

leitor.

A escolha desses gêneros musicais foi feita com base na experiência docente

e de intérprete musical do autor desse trabalho que, conforme já citados, foram a

música medieval, a ópera Orfeo de Monteverdi, a Seresta nº 5 de Villa-Lobos, e o

conto “Minha Gente”, de Guimarães Rosa, já como uma provocação para uma nova

questão que é “a música do texto”.

Estas interpretações não foram analíticas, e sim poéticas, ou seja, foram

frutos da "escuta da fala da obra", um diálogo entre a obra e o ouvinte. Todo esse

percurso foi orientado pelos entre-caminhos inaugurados por Hermes e nos

deixamos tocar pelos métodos anunciados pela própria fala das obras, o que nos

levou a alguns caminhos interpretativos que foram sendo mostrados à medida que

dialogamos com as obras.

A música está além do registro escrito da partitura ou da oralidade, moderna

ou antiga. Ela Instaura uma espaço-temporalidade que lhe é própria. Isso acontece

porque a vigência da música é a memória poética e a sua unidade poética dá-se

nela mesma. Somente podemos falar sobre música na medida em que nos

deixamos tocar pelo ser da música.


190

8. REFERÊNCIAS

8.1 BIBLIOGRÁFICAS

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8.2 DOCUMENTOS SONOROS

CARLOS POYARES. Brasil, seresta. Discos Marcus Pereira – MLP 9305, 1975. 1
LP.

CONSERVATÓRIA . A Vila das Ruas Sonoras. INEPAC, 1986. 1CD.

CRISTINA BUARQUE E HENRIQUE CAZES. Sem tostão 2... a crise continua


(Henrique Cazes / Noel Rosa / Cristina Buarque). Kuarup Discos, KCD 153, RJ,
2001.

GRUPO DE SERESTA ARTE MIÚDA. Uma Jóia Rara. Diamantina: Solar de Cultura
Artística/ Arte Miúda, s/d. 1CD.
197

HEITOR VILLA-LOBOS. Os choros de câmara. Kuarup Discos. Técnico de


gravação: Walter de Oliveira. Estúdios Haway, Rio. Set./Out. 1977. RJ.

MARCO AURÉLIO. Serestas - para matar minha saudade. Movieplay, São Paulo:
1998. 1 CD.

MARIA LÚCIA GODOY. 14 Serestas de Villa-Lobos. PolyGram, 1983. 1 CD.

MÚSICA ANTIGA DA UFF. Cânticos de amor e louvor. Niterói: UFF, 1997. 1 CD.
(Gravado na Igreja de São Francisco Xavier, em Niterói. Técnico de gravação: Jamil
Chevitarese)

MÚSICA ANTIGA DA UFF. Medievo-nordeste: Cantigas e Romances. Niterói: UFF,


2004. 1 CD. (Gravado no “Drum Studio” em outubro de 2004. Rua Alice, 106,
Laranjeiras, Rio de Janeiro, RJ. Técnico de Gravação: Alexandre Hang)

NIGEL ROGERS & CHARLES MEDLAM. Monteverdi: L’Orfeo - favola in musica,


Germany: EMI Classics, 1993. 1 CD.

PAULO TAPAJÓS E ELTON MEDEIROS. Conservatória - a vila das ruas sonoras.


INEPAC, RJ, 1986. 1 CD. – gravado ao vivo no Museu da Seresta e nas ruas de
Conservatória.

SERESTAS E SERESTEIROS. Fontana Special, 1976. 1 CD.

TECA CALAZANS. Teca Calazans canta Villa-Lobos. Kuarup Discos, 1999. 1 CD.
(Técnico de gravação: Flávio Augusto Barreira, Studio Eldorado, SP; e Julien Jauny
e Liza Glen, Studio JJS, Le Vésiner, França. 1998)

8.3 IMAGENS EM MOVIMENTO

L‟ORFEU – Claudio Monteverdi. Regência: Jordi Savall. Barcelona: BBC – Opus


Arte, 2002. 1 DVD
198

8.4 DOCUMENTOS ELETRÔNICOS

CASTRO, Manuel Antonio de. Cancioneiro pensador: 10/06/06 – Notas provisórias.


Disponível em: www.travessiapoetia.com. Acesso em: 5 de novembro de 2006.

FRANCO, Bruno. Entrevista sobre o livro Arte: corpo, mundo e terra, de 30 de julho
de 2009, de Manoel de Castro, para o Jornal da UFRJ/ Coordcom. Disponível em:
http://travessiapoetica.blogspot.com/2009/07/entrevista-sobre-o-livro-arte-corpo.html.
Acesso em 10 de abril de 2011.

LIBRETTO bilingue italiano / inglês do Orfeo de Monteverdi: “L‟Orfeo”. Disponível


em: http://www.pinchgutopera.com.au/cms/uploads/productions/libretto_lorfeo.pdf.
Acesso em 27 de abril de 2010.

LIBRETTO bilíngüe italiano / inglês do Orfeo de Monteverdi: “L‟Orfeo”. Disponível


em: http://www.hoasm.org/VB/LOrfeoLibretto.pdf. Acesso em: 27 de abril de 2010

LIBRETTO bilíngüe italiano / inglês do Orfeo de Monteverdi: “L‟Orfeo – favola in


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27 de abril de 2010.

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LIBRETTO em italiano: “L‟Orfeo – favola in musica” Disponível em:
http://www.librettidopera.it/zpdf/orfeo.pdf. Acesso em: 16 de abril de 2010.
199

ANEXOS
200

ANEXO 1 - Vida e morte

(LACERDA, Regina. Cantigas e cantares - músicas folclóricas e modinhas goianas.


Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás, 1985, p.74)
201

ANEXO 2 – A la una yo naci

(LEVY, Isaac. Chants judeo-espagnols. Israel: Editión de l'auteur, 1971, p.64)


202

ANEXO 3 - Santa Maria strela do dia (fac-símile)

(RIBERA, Julian. La musica de las Cantigas: estudio sobre su origem y naturaleza


com reproducciones del texto y transcripión moderna. Madri:Real academia
española, 1922, p.104-105)
203

ANEXO 4 - Santa Maria strela do dia


204

ANEXO 5 - Des oge mas (moderna)

(Anglés, Higino. La musica de las cantigas de Santa Maria del Rey Alfonso el sabio.
Barcelona: Departamento de música de la Biblioteca de Catalunya, 1943-64)
205

ANEXO 6 – Capa do álbum das Serestas de Villa-Lobos


206

ANEXO 7 – Ilustração de Poty para o livro Sagarana, de Guimarães Rosa.


207

ANEXO 8 - Frontispício da primeira edição deL'Orfeo.


208

ANEXO 9 – Página inicial da Toccata, a abertura instrumental de L'Orfeo.


209

ANEXO 10 – Partitura de Modinha


210
211

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