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ESCOLA DE MÚSICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

O PIANISTA CO-REPETIDOR E A ARTE DO ACOMPANHAMENTO: SEU


SIGNIFICADO E IMPORTÂNCIA NO CENÁRIO MUSICAL ATUAL.

André Távora Kacowicz

RIO DE JANEIRO
2011
ESCOLA DE MÚSICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

O PIANISTA CO-REPETIDOR E A ARTE DO ACOMPANHAMENTO: SEU


SIGNIFICADO E IMPORTÂNCIA NO CENÁRIO MUSICAL ATUAL.

Dissertação apresentada à Escola de


Música da Universidade Federal do Rio
de Janeiro como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de
Mestre em Práticas Interpretativas –
piano.

Orientadora: Professora Dra. Myrian Dauelsberg

RIO DE JANEIRO
2011
DEDICATÓRIA

À minha amada esposa e companheira Ana, pela eterna


compreensão e apoio durante uma vida dedicada à música, à abstração e à leitura.
Pela paciência interminável...
Por amar os meus defeitos...
Por me ensinar a não ter medo de amar.
AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, à minha orientadora, mestra e amiga, Professora


Dra. Myrian Dauelsberg, por sua luta inabalável e incentivadora de tantos alunos e
profissionais da música, responsável pela formação e oportunidades riquíssimas que
proporciona a tantos talentos, filhos de nosso país, e à própria vida cultural da
cidade do Rio de Janeiro, trazendo o que há de melhor e mais atualizado no cenário
musical internacional, das maiores responsáveis por colocar nossa querida pátria no
circuito artístico mundial.

À minha querida e admirada mãe, Silvia Távora, com quem aprendi a


aprender. Não há ninguém tão entusiasmada pela cultura como um todo. Sobretudo,
sabe utilizar com maestria esta ferramenta tão poderosa. O mundo é um lugar
melhor porque ela existe.

Ao papito! Pelo exemplo de vida e perseverança durante momentos de


extrema dificuldade; pelo grande amigo em que se transformou; mas, acima de tudo,
por ser, simplesmente, meu querido... pai.

Agradeço também ao professor Dr. Marcos Nogueira, coordenador do curso


de pós-graduação, sempre pronto a esclarecer quaisquer dúvidas e por sua
disponibilidade em ajudar a mim e aos futuros mestres em suas infindáveis dúvidas
e idiossincrasias.

Agradeço aos professores Luiz Carlos Ramos de Lima e Helena Aguiar


Ramos, meus queridos sogros e amigos, que durante todo o processo de confecção
deste trabalho não deixaram, por um momento sequer, de oferecer palavras de
incentivo e sabedoria, além de preciosa e imensurável ajuda na viabilização das
condições necessárias à pesquisa e recolhimento pessoal, características inerentes
e indispensáveis a esse ofício.

Ao querido amigo e dos maiores especialistas na arte da regência coral desse


país, o Professor Pós-Doutor David Junker, que me concedeu a honra de participar
de minha banca examinadora, e com quem tanto aprendi ao longo dos anos
dedicados à graduação e trabalhos de extensão como seu assistente na
Universidade de Brasília.

Agradeço especialmente à grande pianista e amiga Lígia Moreno, pela


excelente participação em meu recital final de Mestrado, quando, justamente como
co-repetidora (aliás, tema cerne desta dissertação), acompanhou-me na versão
orquestral escrita para o segundo piano dos concertos Liszt nº2 e Beethoven nº4.
Pessoa extremamente espontânea e prestativa, por um momento sequer cogitou a
possibilidade de negar sua preciosa ajuda. Obrigado!

Ao caríssimo professor Dr. Paulo Peloso, pela contribuição decisiva e


extremamente valorosa durante o processo final de compreensão e aquisição das
informações necessárias e indispensáveis ao correto procedimento encerramento do
mestrado acadêmico. Por demonstrar grande interesse e colocar-se imediatamente
disponível a contribuir com sua valiosa participação em minha banca de defesa da
dissertação de mestrado.

Ao professor Dr. Marcelo Verzoni, pelas valiosas aulas nos Seminários de


Práticas Interpretativas, que, de fato, me ampliaram os horizontes no que se refere
ao verdadeiro significado da pesquisa, me levando a insights preciosos que
contribuíram para o esclarecimento de uma série de dúvidas que carregava até
então.

À professora Dra. Ruth Serrão, pelo interesse imediato no tema de minha


dissertação e pela valiosa participação em minha banca de defesa de Dissertação
de Mestrado.

À professora Dra. Salomé Gandelman, por aceitar prontamente meu convite a


participar de minha banca da defesa de Dissertação de Mestrado.

Ao professor Dr. Jacob Herzog, sempre disposto a contribuir com tantos


alunos durantes os vários anos acadêmicos durante os quais tem dedicado sua vida
ao crescimento, estímulo e aprimoramento dos estudantes.
Ao professor Dr. Achille Picchi, das maiores autoridades no que diz respeito à
co-repetição no país, professor de composição e análise musical do Instituto de
Artes da UNESP, por apoiar e enriquecer a iniciativa do autor de valorização da arte
da co-repetição, por sua preciosa contribuição no questionário confeccionado.

Ao grande pianista e co-repetidor Joaquim Paulo Espírito Santo, a quem tive o


privilégio de conhecer durante um dos Festivais de Inverno de Campos do Jordão do
qual participei, ainda em tenra idade. Lembro-me do fascínio de observá-lo reduzir
grades orquestrais, de primeira vista, para o ensaio de cantores e preparação dos
espetáculos de ópera. Por sua preciosa contribuição ao responder o questionário de
forma tão espontânea e consciente.

Ao amigo, grande musicista e co-repetidor Flávio Augusto, pianista da Escola


de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Práticas
Interpretativas por esta mesma instituição de ensino, por responder de forma
magistral às questões elaboradas pelo autor desta dissertação.
EPÍGRAFE

“... são dois os motivos pelos quais abraçamos uma


profissão: por vocação, e por ausência de vocação. A vocação surge
de um amor intenso por uma profissão, que se entende pouco e com
que se tem devaneado muito”.

Emile Faguet.
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RESUMO

KACOWICZ, André Távora. O pianista co-repetidor e a arte do acompanhemento:


seu significado e importância no cenário musical atual. Rio de Janeiro, 2011.
Dissertação (Mestrado em Práticas Interpretativas) – Escola de Música da
Universidade Federal do Rio Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.

Este trabalho tem como principal objetivo valorizar a arte da co-repetição e do


pianista que a exerce, através da pesquisa das técnicas de acompanhamento ao
piano, leitura à primeira vista e transposição. Foram realizados estudos de caso por
meio de questionário específico elaborado pelo autor, apresentando as vivências e
observações de alguns dos maiores nomes da co-repetição no Brasil. Também
contribuem para um maior enriquecimento da dissertação as significativas
referências bibliográficas encontradas, que se demonstraram fator decisivo para o
embasamento deste trabalho. Foram acrescentadas pesquisas científicas sobre os
movimentos oculares, dada a sua importância nos processos cognitivos durante o
ato da leitura. Nos apêndices, como forma de orientação ao estudante e mesmo aos
profissionais que já exercem o ofício, propuseram-se as diretrizes necessárias ao
desenvolvimento e prática da leitura musical. Concluiu-se que a inclusão em nível
superior de matérias como transposição, línguas, improvisação, noções de regência,
canto e fisiologia vocal, ao currículo acadêmico do pianista bacharel deveria ser
obrigatória, pois completaria lacunas em sua formação e supriria futuras carências
dentro do crescente mercado de trabalho para este profissional específico e
especializado. Ademais, o domínio das técnicas da sight reading e
acompanhamento ao piano talvez delimitem aqui o grande diferencial que esta arte
de ampliação dos horizontes musicais tanto contribui para uma visão totalmente
nova na forma de aprender e fazer música, já que as formas tradicionalistas e
arcaicas de estudo constituem verdadeiro obstáculo ao aprendizado do aluno.

Palavras chave: co-repetição; acompanhamento; transposição; movimentos


oculares; piano; leitura; (Brasil).
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ABSTRACT

KACOWICZ, André Távora. O pianista co-repetidor e a arte do acompanhemento:


seu significado e importância no cenário musical atual. Rio de Janeiro, 2011.
Dissertação (Mestrado em Práticas Interpretativas) – Escola de Música da
Universidade Federal do Rio Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.

The chief aim of this work is to enhance the value of the art of co-repetition
and of pianists performing it. This research examines the techniques of
accompaniment on the piano, first-sight reading and transposition. This case study
was accomplished using a specialized questionnaire prepared by the author, and it
presents the experience and observations of some of the greatest names in co-
repetition to be found in Brazil. This dissertation has been further enhanced with
significant bibliographical references proving decisive in supporting this work. It also
uses scientific research on eye movements for a better understanding of the
cognitive processes taking place during the act of reading. The appendices contain
proposed guidelines to help develop and perform music reading, as an orientation for
both students and for working professionals. It was concluded that for degree level
piano students the addition of subjects such as sight reading and transposition
techniques, languages, improvisation as well as the principles of conducting, singing
and vocal physiology should be obligatory, in order to cover any gaps in their
schooling, and to meet the future needs of the growing demand for this particular
specialized professional. The mastery of sight reading and accompaniment on the
piano may indeed define the major difference thanks to which this art, by expanding
horizons, contributes to a completely new vision in learning music and making music.
Traditional and archaic forms of studying present students with a real obstacle to
learning.

Keywords: co-repeat; sight-reading, questionnaire, monitoring, transposition, eye


movements, (Brazil).
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SUMÁRIO
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INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é destacar a importância de um profissional do


piano praticamente desconhecido além dos limites do mundo operístico e
camerístico: o pianista denominado Especialista, ou, como é mais comumente
denominado, pianista Co-repetidor. Para tanto, foram realizados estudos sobre as
técnicas de leitura à primeira vista, transposição ao piano e movimentos oculares
durante o processo da leitura musical, além de breve histórico sobre a arte do
acompanhamento.
Um dos grandes achados desta pesquisa consiste no fato de que o estudo da
co-repetição, em todas as suas facetas, constitui verdadeiro catalisador do processo
da própria abordagem do instrumento – piano. Propõe-se, em função disso, a
inclusão, nos cursos de música em nível superior de todo o país, das disciplinas que
compõem esta especialização pianística, tais quais serão relacionadas nesta
dissertação. Isto contribuiria para uma mudança completa de paradigma no que se
refere à dinâmica do aprendizado do pianista.
Lembre-se sempre o fato de que o preparador é, antes de tudo, um pianista,
que normalmente possui conhecimentos que vão muito além dos de um solista, um
cantor, algum outro instrumentista ou grupo com quem venha a colaborar ou
“acompanhar”. Por esse motivo, deve ser encarado e valorizado como tal, em sua
condição de professor e coordenador de tantos artistas e ensaios, já que isso
raramente acontece.
Pretende-se incentivar uma abordagem crítica dos moldes e padrões arcaicos
da escola de pedagogia musical, baseada em protocolos autolimitadores para a
prática da leitura da partitura e do próprio aprendizado do instrumento.
A expressão “co-repetidor” tem sua origem associada estritamente ao
acompanhamento de música vocal. O pianista acompanhador apenas auxiliava as
vozes solistas ou corais, dobrando-as ao piano.
Há vários termos utilizados dentro do âmbito musical como sinônimos, que
tentam caracterizar ou resumir num só nome as habilidades desse pianista
especializado, tais como acompanhador, colaborador, ensaiador, correpetidor,
(grafado sem o hífen), ou coach, proveniente do termo em francês: co-repetiteur ou,
como explica PICCHI (2004), “o pianista que ajuda a ensaiar uma peça. Co-repetidor
seria, então, aquele que ensaia ao mesmo tempo”. A palavra coach, (em inglês,
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treinador ou técnico), também é corriqueiramente utilizada nos Estados Unidos e


Inglaterra como sinônimo, talvez até carregando significado mais abrangente do que,
simplesmente, co-repetidor.
O termos co-repetidor ou co-repetição, portanto, serão utilizados pelo autor
ou substituídos ao longo do texto pelos análogos mencionados – apesar de alguns
autores separarem em diferentes ramos de atuação os pianistas que exercem as
funções denominadas acima.
Co-repetidor, assim como todas as nomenclaturas co-relacionadas, faz
referência a um complexo espectro de conhecimentos, inerentes ao desempenho da
função do pianista que exerce este ofício, e não somente ao ato quase passivo de
acompanhar.
Graças ao desenvolvimento da escrita e dos próprios instrumentos musicais,
sem mencionar o advento das diferentes formas musicais, essas terminologias – que
estão sutilmente ligadas a diferentes campos de atuação – foram criadas.
Alguns autores procuram delimitar os campos de atuação do co-repetidor,
para melhor compreender os segmentos dentro da co-repetição, separando os
pianistas que exercem esta função. Segundo ADLER (1976), aqueles que tocam em
conjuntos, estão divididos em três categorias: pianista acompanhador, pianista de
grupos de câmara e coach (instrumental e vocal).
Segundo o autor, os pianistas cameristas, (o que constituiria uma quarta
categoria, diferente de grupos de câmara), são aqueles que se dedicam
exclusivamente ao repertório camerístico, excluindo quaisquer possibilidades de
execuções de obras como reduções orquestrais, (muito comuns ao trabalho do
pianista de orquestra e de grupos de câmara).
Propõe-se também um estudo detalhado sobre as técnicas de leitura à
primeira vista e transposição ao piano, talvez os dois dos principais alicerces para
obtenção da proficiência na co-repetição, além de curiosos estudos sobre os
movimentos oculares durante o ato da leitura musical.
Além de referências consistentes e pertinentes ao assunto, a confecção de
um questionário demonstrou-se indispensável à obtenção dos resultados desejados,
pois ainda se trata de uma arte desenvolvida empiricamente no Brasil. As questões
elaboradas são baseadas não apenas na própria experiência acumulada ao longo
dos anos pelo autor como pianista solista e co-repetidor, mas também nas opiniões
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de profissionais experientes e que desempenham e dedicam suas vidas a este


ofício.
Este mesmo questionário propõe-se, estará disponível na internet, para que,
não somente os próprios pianistas, instrumentistas diversos e cantores possam
participar da pesquisa, mas principalmente o público em geral, interessado em
descobrir o que é de fato e quais são os campos de atuação do co-repetidor. Com
isso, busca-se ampliação dos horizontes dos próprios pianistas com a captação de
possíveis investidores que, munindo-se das informações presentes no questionário,
venham a apoiar a iniciativa de criação, também em universidades particulares, das
condições e infra-estrutura necessárias à criação de um curso propriamente dito de
bacharelado em piano com especialização em co-repetição.
Parece enriquecedora a compreensão dos fatores fisiológicos envolvidos no
ato de ler, como fonte de aprimoramento e estímulo para os pianistas. Ao final do
trabalho, encontram-se, no apêndice, sugestões de formas de desenvolvimento das
técnicas de leitura, confeccionadas pelos pesquisadores Drs. LEHMANN e
MCPHERSON (2002) e SLOBODA (2005).
Concluiu-se, portanto, que o pianista “co-repetidor” ou especialista (como
prefere o autor), dentro de sua formação profissional na faculdade de música ou
conservatório correspondente, deveria ter incluídas em seu currículo acadêmico as
disciplinas consideradas de vital importância para o aprimoramento da matéria em
questão. Isso se deve também à crescente demanda no mercado de trabalho da
figura do pianista especialista, em ensaios e preparações de produtos musicais.
Diz-se especialista porque não se trata aqui de um profissional comum, mas
sim daquele que domina e carrega em si as inúmeras qualidades e aptidões que o
tornam capazes de atender a essa demanda.
A prática tem-se demonstrado o maior professor do pianista colaborador.
Entretanto, dentre a grande maioria dos pianistas que acabam de se formar, ou
mesmo aqueles solistas que não fizeram um curso superior, há enorme carência de
informações e respaldo acadêmico de matérias que venham a embasá-los
satisfatoriamente no futuro exercício da co-repetição.
Tais disciplinas seriam, além do implícito estudo e domínio absoluto do piano,
a leitura à primeira vista, estudada não apenas empiricamente como embasada em
densa bibliografia e direcionada pelo professor; a transposição e improviso ao piano,
que dariam ferramentas preciosas e maior segurança ao estudante durante os vários
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tipos de ensaios que terá de conduzir e situações inesperadas com as quais terá de
lidar; noções de regência coral e orquestral, para aquisição dos conhecimentos
necessários dos vários instrumentos e técnicas de ensaio, e, sobretudo, como
conduzi-los durante o preparo dos vários formatos musicais; estudo de línguas,
fisiologia vocal e canto – de preferência aprender a cantar e dominar o
conhecimento dos vários registros vocais; bem como ópera, musicais e
orquestração.
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CAPÍTULO 1
BREVE HISTÓRICO DO ACOMPANHAMENTO

A forma mais rudimentar e primitiva de acompanhamento é a que se expressa


através do ritmo – batidas com bastões, percussão corporal e objetos entrechocados
- que acompanhava o que seriam os rituais dos povos antropóides da era terciária
ou Cenozóica – cerca de 65 milhões de anos a 500 mil anos atrás.
Além do ritmo, que é o elemento propulsor e mantenedor do movimento,
sobre o qual o acompanhamento exerce função motriz, há: a harmonia, elemento
que proporciona ao solo lugar definido no meio sonoro, que lhe empresta sentido
tonal e cria-lhe a atmosfera adequada, sobre a qual o acompanhamento exerce
função envolvente. Quanto à melodia, o acompanhamento exerce função
interlocutora. Quanto ao timbre, elemento diferenciador, o acompanhamento exerce
função matizante (MAUL, 1977).
Com o surgimento do Homo Sapiens, por volta de 70.000 a 50.000 anos
atrás, deu-se o desenvolvimento do controle da altura, intensidade e timbre da voz, à
medida que as demais funções cognitivas também se desenvolviam.
A criação dos primeiros instrumentos musicais deu-se paralelamente ao
aparecimento da linguagem falada e do canto. Os instrumentos eram utilizados para
imitar os sons da natureza, acompanhar os cantos e rituais desses povos, e não
possuíam uma altura determinada.
Apenas entre os considerados, dentro dos moldes contemporâneos, como
“civilizados” – cerca do século VII antes de Cristo -, pode-se começar a encontrar o
acompanhamento por instrumentos de sopro ou corda, obedecendo já a algum
sistema de organização.
Incluem-se, na categoria mencionada, o acompanhamento praticado nos
primórdios da civilização helênica pelos Rapsodos, que viajavam de cidade em
cidade recitando poemas de Homero, principalmente as epopéias (poemas épicos) -,
ou Aédos, que, diferentemente dos Rapzodos, compunham seus próprios poemas e
os cantavam, servindo-se da Lira para acompanhá-los.
No último período daquela civilização, entretanto, o acompanhamento
começara a assumir grande importância. Ele era um dos elementos integrantes do
Etos. Esta teoria nascida e desenvolvida na Grécia antiga, admitia que os
fenômenos sonoros se achavam em correspondência imediata com os movimentos
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da alma. O Etos de um canto estava, então, estreitamente relacionado com o ritmo,


o modo e o acompanhamento (MAUL, 1977).
Os instrumentos acompanhantes não se limitavam a dobrar o canto a
uníssono ou à oitava. Executavam certos ornamentos e certas figuras de
acompanhamento compostas pelo que se chama hoje de appogiatura e notas de
passagem (RIEMANN, 1913).
Inclusive, o ritmo ganhou relevância e maior importância em função da
variedade de instrumentos de que dispunham à época: lira, cítara, keras (corno),
phorminx (trombeta), trígonos (triângulo pelo grego; é também o nome de um tipo de
harpa primitiva), etc.
Entretanto, deve-se ter em mente o fato de que toda música da antiguidade
era monódica (canto gregoriano ou cantochão em uníssono), e que o
acompanhamento, não obstante as figuras mencionadas acima, se fazia com a
duplicação do canto.
Foi na Idade Média (476 a 1453 dC), que apareceram as primeiras tentativas
de realização de música a várias vozes.
Consistia essa espécie de acompanhamento, primitivamente, numa série de
quartas, quintas e oitavas paralelas, processo esse denominado “organum” ou
“diafonia”, (termos equivalentes), cujas origens, segundo D’INDY (1897 / 98), se
prendem a causas fisiológicas que determinam as diferenças de tessitura das vozes,
concluindo ele que o povo, associado para a execução dos cânticos litúrgicos,
cantava, de modo geral, em oitavas (homens e mulheres), mas certas vozes menos
exercitadas, atingindo dificilmente as notas agudas ou graves, as substituíam
instintivamente por sons intermediários, regulando sua justaposição com a melodia
principal.
Segundo outros autores, esse hábito deriva do acompanhamento do órgão –
em sua forma primitiva – uma vez que os executantes acompanhavam a uníssono
ou oitava, e posteriormente, foram introduzindo as quartas e quintas, como no
exemplo da figura 1, abaixo:

Figura 1.
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Bem mais tarde, aparece a figura do “falso bordão”, que consiste em forma de
acompanhamento por terças e sextas, e foi um aperfeiçoamento da “Diafonia”. O
“falso bordão” constava de uma melodia principal – cantus firmus ou tenor – de
terças e quintas, mais o baixo – bordão – e era cantado à oitava superior, daí o
nome “falso bordão”, donde resultavam terças e sextas (MAUL, 1977).
“Organum” e “falso bordão” são, antes, formas de acompanhamento do que
contraponto, porque contraponto consiste não na união de várias vozes que cantam
a mesma melodia a intervalos diferentes, mas sim, na simultaneidade de diversas
melodias e diversos movimentos (apud MAUL, 1977).
E por falar-se em contraponto e a evolução da escrita musical, para o pianista
co-repetidor, seu estudo e domínio podem fazer a diferença entre uma boa leitura da
partitura ou incompetência no acompanhamento.
Os primeiros registros de verdadeiro contraponto encontram-se no discanto
(discantus), o que significa dizer que as vozes caminham por movimento contrário,
ganhando, com isso, certa independência e sentido melódico próprios, como no
exemplo da figura 2, abaixo:

Figura 2.

Discantus significa Canto Duplo.


A fase áurea do contraponto se deu entre 1445 e 1594, segunda metade do
século XVI, portanto, primeiramente com Josquin dês Prés (1445-1521) com suas
idéias de equilíbrio, clareza e simplicidade, além de dar novo tratamento entre texto
e música e ter estendido e aplicado sistematicamente o recurso da imitação,
desconhecidos em seu tempo, mas, principalmente, com Palestrina (1525-1594),
que transformou o contraponto medieval em verdadeiro conjunto harmonioso e
polifônico de melodias.
Uma análise acurada de sua música é mesmo capaz de demonstrar a linha
evolutiva do acompanhamento. Sua escrita polifônica sugere com nitidez o que virá
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a ser o Acorde (logicamente em seu estágio embrionário), e, em sua música,


pressente-se já a Tonalidade.
Essa linha que aparentemente se interrompe no ponto em que o organum
evolui para o discanto, e este para o contraponto, apresenta-se claramente
identificável na música trovadoresca, nesse mesmo período, onde a tendência para
o canto solo, com acompanhamento instrumental, (com a Viola D’arco ou Alaúde),
vai se concretizando ao mesmo tempo em que os teóricos e compositores eruditos
atingem o conceito do Acorde e ao estabelecimento da Tonalidade.
A síntese dessas tendências aparece, por fim, consubstanciada na Melodia
Acompanhada, caracterizada pela supremacia da voz mais aguda e transformação
da parte mais grave em baixo fundamental da harmonia, completada, esta, pelas
vozes intermediárias. Efetivamente, vilhuelistas e alaudistas reduzem as vozes a
simples acordes – realização prática e inconsciente do sistema temperado. Nessas
composições, o canto principal aparece escrito integralmente, sendo que as demais
partes da polifonia vêm cifradas; este processo assinala historicamente o
nascimento do Acorde (MAUL, 1977).
No entanto, a prática de cifrar a parte do baixo vem dos organistas.
Daí originou-se o sistema do baixo cifrado, que disseminou-se rapidamente a
partir de finais do século XVI e século XVII. Colocavam-se acima ou abaixo da parte
do contínuo (baixo), e indicavam os intervalos que entravam na formação dos
acordes.
A principal característica dessa fase é o aparecimento da Melodia
Acompanhada. Ela marca o surgimento tanto do período contrapontístico quanto o
despertar da fase harmônica.
Esse é o período que marca a necessidade da união entre a música e a
poesia, tal como haviam concebido os gregos. Fixam-se, então, as bases para o
nascimento da ópera e do drama lírico.
O Melodrama adquire alto poder expressivo e representativo com Claudio
Monteverdi (1567 – 1643), e a parte orquestral começa a ter vida própria, como
valioso auxiliar da expressão dramática; e, finalmente, com Gluck (1714 – 1787),
que pregava que a música deveria assumir uma função reforçadora dessa
expressão dramática, o acompanhamento orquestral ganha grande importância.
Julga-se oportuno, nesse ponto, ressaltar a necessidade que tem o pianista
acompanhador de conhecer os pormenores técnicos e históricos da música
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dramática, visto que inúmeras páginas desse repertório se acham transcritas para
canto e piano, onde o piano executa a parte correspondente a da orquestra.
O acompanhamento ao piano aparece, especificamente, com o aparecimento
do Lied artístico. E o nome que assinala esse momento histórico do
acompanhamento é Franz Schubert (1797-1828).
Schubert estiliza as canções oriundas do povo e cria o Lied alemão. O piano,
então, não se limita mais a acompanhar o canto; passa a ser agora a voz onisciente
que comenta e ambientaliza a obra, e, até mesmo, descrevendo o texto musical.
Entretanto, foi Schumann (1810-1856) que, apossando-se do Lied, iguala e
funde a expressividade da voz e do piano com perfeição estética. Representa ele, o
momento supremo da Canção. Nos seus Lieder, o piano, ultrapassando o papel
habitual de acompanhador, realiza toda uma partição justaposta ao canto; completa-
o ou o contrasta, envolve, prolonga o poema e sugere a idéia da orquestra.
Schumann realiza um impressionismo de alma, valendo-se de uma rítmica viva e
variada, de magistrais combinações de timbre e de ordenação e solidez tais, que
nos deixam ver no fundo o classicismo de Bach (MAUL, 1977).
Já na música de Brahms (1833-1897), o equilíbrio espiritual se reflete na
expressão do sentimento, e o acompanhamento serve estritamente à expansão das
emoções, nunca pretendendo produzir impressões externas.
Para completar e enriquecer a evolução do papel fundamental da parte
relativa ao acompanhamento, vale observar que é com Gabriel Fauré (1845-1924)
na França onde torna-se notório o alto estilo pianístico da parte do
acompanhamento. Suas melodias exprimem as sutilezas do espírito francês com a
mesma propriedade que Schumann e Brahms exprimem o sentimento alemão.
Atualmente, as partes do acompanhante dão extremo valor ao sentido étnico,
ressaltando o ponto de vista da ambientação da obra.
Étnico remete imediatamente a etnomusicologia e à questão da etnografia e
das práticas de campo. Discutir esses temas é adentrar um território bem conhecido
da antropologia, cheio de dilemas e questionamentos que surgem a partir do
contexto contemporâneo. Pode-se dizer que o princípio primário da etnomusiclogia
surge com o interesse pelo “Outro” tal como desponta a partir do Iluminismo francês
e do pensamento romântico alemão (FREIRE, 2010).
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A questão étnica referente ao tipo, à forma de acompanhar e de se escrever a


parte do acompanhamento é de fundamental importância para uma perfeita
compreensão do estilo musical e ambientação da obra que se está ensaiando.
Para realçar ainda mais a visão holística proposta pelo autor sobre a co-
repetição, o que engloba principalmente a leitura à primeira vista e suas técnicas, o
esforço por aprofundar-se cada vez mais nos detalhes e características da arte do
acompanhamento demonstra-se de grande valia para o aprimoramento do texto,
além de trazer maior compreensão a respeito do significado desse assunto. Em
função disso, cada vez mais, procuram-se novos estudos e peculiaridades que
possam, de alguma forma, vir a enriquecê-lo.
Cabe, portanto, breve explanação a respeito das duas acepções teóricas nas
quais o termo “acompanhamento” pode ser tomado.
Primeiramente, acompanhamento designa a coisa em si, isto é, a apenas a
parte acompanhante em razão de sua constituição, estrutura e finalidade. Em
segundo, tem-se o acompanhamento como o conjunto de normas que regem a
atuação do acompanhador, e que ditam sua atuação ao acompanhar.
Ao se defrontar com a parte acompanhante de uma peça escrita pala solo e
acompanhamento, verifica-se que essa parte inclui todos os elementos constitutivos
da música: ritmo, harmonia, melodia e o elemento diferenciador – o timbre.
Quanto ao ritmo, elemento propulsor e mantenedor do movimento, o
acompanhamento exerce função motriz, (daí a importância citada do estudo e
domínio da prosódia).
Com relação à harmonia, que proporciona ao solo um lugar definido no meio
sonoro, que lhe empresta sentido e cria-lhe a atmosfera adequada, o
acompanhamento exerce função envolvente (no sentido harmônico).
Quanto à melodia, isto é, o elemento melódico pertinente mesmo à parte do
acompanhante, o acompanhamento exerce função interlocutora.
Ao timbre, que é o elemento diferenciador, o acompanhante exerce função
matizante, ou seja, nos vários tipos de “toques”, nas mais variadas nuances.
Em suma, todos os atributos do acompanhamento conferem-lhe caráter de
elemento ambientalizador, criando a atmosfera propícia à vida do solo.
Para citar algumas das grandes obras que falam sobre o assunto, estão:
L’education Musicale de Albert Lavignac (1846-1916) – professor de Claude
Debussy (1862-1918) e Vincent D’indy (1851-1931) -, e Traité de L’accompagment
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de La Partition sur Le Piano de François-Joseph Fétis (1784–1871) – um dos mais


influentes críticos musicais do século XIX, além de maestro, compositor, historiador
e musicólogo.
Segundo Lavignac (1903), é necessário ao bom acompanhador, talento, boa
técnica pianística, presença de espírito para resolver certos problemas que
aparecem repentinamente, e todas as qualidades de um virtuose.
Fétis (1829) também se expressa de forma semelhante, numa extensa
explanação da necessidade que deve ter o bom acompanhador de conhecer os
variados estilos e peculiaridades dos diferentes compositores.
Por enquanto, apesar do alto estado de desenvolvimento em que se
encontram inúmeros pianistas co-repetidores ou acompanhadores, sem mencionar
uma demanda muito grande e crescente de trabalho para estes profissionais, esta
matéria ainda é tratada (e raramente) apenas em nível de especialização, e, mesmo
assim, são pouquíssimas as universidades, escolas e conservatórios de música no
país que proporcionam as condições necessárias ao seu aprendizado e
desenvolvimento. Quando muito, tais condições são desenvolvidas e estudadas
empiricamente.
Não constitui apenas uma “sombra” sobre a qual brilha absoluto um
instrumentista ou um cantor, o que se chama acompanhamento. Foi-se o tempo em
que cabia realizar apenas o baixo cifrado aos instrumentistas do teclado.
Como exemplo de grande valor de obras internacionalmente conhecidas do
repertório dos grandes violinistas em todo o mundo, estão as 6 sonatas para cravo e
violino de J. S. Bach. Elas comprovam que não foi apenas com o piano que peças
de grande importância seriam reservadas aos instrumentos de teclado. Nesse caso,
a parte do cravo, hoje em dia tocada pelo piano, é a de maior importância.
Desde os tempos do Madrigal Acompanhado, parecem bem definidas as
funções do pianista e dos cantores, onde se observa que, em vários momentos
durante a execução desses madrigais, o pianista toma maior importância, e os
cantores se ”recolhem aos bastidores”.
Esta não é, de forma alguma, uma afirmação pejorativa; muito pelo contrário,
tem a intenção de valorizar o papel fundamental do acompanhamento, que é capaz
de criar a atmosfera sem a qual a linha melódica não existiria.
Outro exemplo interessante é o famoso Liebstraum de Franz Liszt, na sua
versão original para piano solo. Aqui, observa-se facilmente a melodia “flutuando”
22

sobre um acompanhamento arpejado, e que nem por isso esse acompanhamento


está recolhido aos “bastidores”; ele enriquece e cria a mencionada atmosfera
essencial à valorização da linha melódica. É um exemplo exato de melodia
acompanhada.
O acompanhamento, em suma, é o verdadeiro responsável pelo brilho e
embelezamento da melodia. Muitas vezes na música de câmara, num dueto com
violino ou um trio como o de Mendelssohn em Ré menor, desenvolve-se um diálogo
entre piano, violino e violoncello, e, por várias vezes, cabe ao piano a incumbência
de realizar também a melodia, enquanto acompanhado pelo violino e o cello.
O ato de acompanhar envolve, ademais, um fator muito especial, mas
abstrato e intuitivo: a fusão, por assim dizer, que deve haver do pianista em relação
ao solista com quem colabora, seja em se tratando de música de câmara,
acompanhamento de corais, orquestras ou demais instrumentistas.
Isto significa afirmar que é imprescindível ao pianista a qualidade de “ouvir”
acuradamente o instrumento principal, perceber e absorver seu tempos e
andamentos, seu sentimento, suas emoções e respirações, a intensidade de seu
som. Estas são qualidades que não se ensinam, mas que podem de fato impedir a
realização de uma obra musical, se não forem desenvolvidas ao extremo.
De acordo com Vincent D’indy:

“Toutefois, à mesure que Le role de l’instrument s’efface,


en tant qu’accompagnateur, Il s’affirme au contraire pendant lês
silences du chanteur principal, rendus plus longs par les
traditions alors en vaquer. En effet, dans l’execution de ces
madrigaux accompagnés, le chanteur n’apparaissait devant
l’auditorie qu’au moment de commencer son solo, est revenait
ensuite à sa place … dans la coulisse, si l’on peut ainsi
s’exprimer”.1

Parece estar cada vez mais claro o significado da co-repetição, que reúne, a
bem da verdade, um grande conjunto de submatérias, (todas já mencionadas ao
longo do texto, como harmonia, técnicas de leitura à primeira vista, transposição ou

1
(Tradução do autor): Contudo, à medida que o papel do instrumento se apaga, na condição de
acompanhador, ao contrario ele se afirma durante os silêncios do cantor principal tornados mais longos pelas
tradições em vigor na época. Na realidade, na execução destes madrigais acompanhados, o cantor só aparecia
na frente do auditório no momento de começar o seu solo e retornava logo a seguir ao seu lugar atrás do
palco , se e que podemos nos exprimir desta forma.
23

regência, apenas para citar algumas delas), e que deveriam compor a “disciplina”
co-repetição, devendo fazer parte da grade curricular de formação do pianista
bacharel.
Não só o estudo da leitura à primeira vista e arte e técnicas do
acompanhamento ao piano, entretanto, fazem parte das propostas deste trabalho.
O próprio aprendizado musical e capacidade de estudo e apreensão das
informações contidas no código dos símbolos musicais se beneficiaria com o estudo
de tais matérias. Essa nova abordagem de aprendizado implica uma mudança
completa de paradigma no que se refere à forma com que o estudante aprende a ler
e preparar as obras a que se propõe. Pode mesmo contribuir como implemento ao
aprendizado e aprimoramento da interpretação de tais obras.
24

CAÍTULO 2
O PIANISTA ESPECIALISTA

O que esta expressão, pianista especialista, significa? Qual sua importância


no cenário musical?
De fato, o termo especialista é utilizado como sinônimo de acompanhador, co-
repetidor, entre tantos outros. Entretanto, co-repetir não significa apenas estar em
segundo plano, enquanto uma melodia ou tema principal “pairam” sobre o
acompanhamento do piano; mas envolve uma série de técnicas e conhecimentos
que vão muito além do ato de acompanhar, como será visto ao longo do texto.
Mesmo na interpretação de uma obra para piano solo, como, por exemplo, na
Sonata para piano em Si menor de Franz Liszt, assim como em tantas outras, há
vários momentos onde a melodia deve se sobressair ao acompanhamento. No
entanto, isto não significa colocá-lo em segundo plano, como algo de menor
importância e menosprezada pelo compositor. Muito pelo contrário, é justamente
através dele, o acompanhamento, que se cria a atmosfera imprescindível à
compreensão e assimilação das idéias e sensações objetivadas pelo compositor,
além de conduzir a audição da melodia de forma a criar uma ideia holística e
coerente da obra, como pode ser observado nos exemplos correspondentes Às
figuras 3 e 4, abaixo:

Figura 3.
25

Ou ainda:

Figura 4.

Como se pode perceber, o que seria da melodia, pura e simples, sem todo o
magistral encadeamento harmônico criado por Liszt, na condução das vozes, e da
forma tão peculiar de escrita musical, ora através de acordes majestosos (na figura
1), ora através de arpejos da mão esquerda (na figura 2), que complementam e
mesmo se fundem à linha melódica, criando o ambiente perfeito à apreensão de
suas intenções?
São ainda poucos os pianistas no Brasil habilitados a cumprir todas as
exigências técnicas para a preparação, ensaio e realização das mais variadas obras
musicais. Mas esta elite existente precisa de apoio, inclusive para auxiliar a
formação de outros profissionais para o segmento.
26

Como muito bem colocado por PAPA (2011), “O entendimento de suas


atribuições passa pelo próprio nome da atividade. Ao invés de pianista
acompanhador, repetidor ou co-repetidor, melhor seria o título de pianista
preparador, pois, de fato, se exige uma abrangência muito maior que a função
prevista”.
Atualmente, o termo acompanhador vem sendo substituído por colaborador,
em algumas partes da Europa e dos Estados Unidos, em função de uma possível
conotação depreciativa do primeiro nome (MUNDIM, 2009).
Entretanto, a expressão colaborador, esta sim, parece rotular a atividade do
pianista como sendo a de um mero coadjuvante, quando, na verdade, suas funções
vão muito além das do próprio solista. As duas expressões, bem como as demais
utilizadas ao longo do texto, exprimem uma significação implícita mais completa, isto
é, a de um artista que domina seu instrumento e as técnicas de leitura à primeira
vista, transposição, repertório vocal e tessitura e fisiologia vocais, noções de
regência coral e orquestral, e as principais línguas utilizadas normalmente pelos
compositores operísticos e de musicais, como alemão, italiano, francês, russo, inglês
e latim.
Vale ressaltar que, dentre as expressões utilizadas para designar o pianista
que exerce essa função, o autor concluiu que nada poderia defini-lo melhor do que,
simplesmente: pianista; cabe ao pianista, portanto, tornar-se apto a desempenhar,
desenvolver e mesmo criar as características e aptidões técnicas necessárias e
inerentes ao ofício.
PAJARES (2004) discorda dos termos acompanhador e co-repetidor, por
achar que diminuem a importância do pianista, visto que muitos os tratam apenas
como acessórios, onde o cantor ou instrumentista solista têm maior destaque. Ela
concorda com o autor quando salienta que a nomenclatura ideal também deve ser
pianista, pois resume e envolve todas as complexidades enfrentadas por este
profissional.
Fica uma sugestão, porém, de nomenclatura que poderia ser adotada no
intuito de diferenciar o pianista solista do pianista acompanhador, uma vez que o
termo pianista encontra-se completamente associado à solista ou concertista; esta
expressão, como já mencionado, seria: pianista especialista.
27

Um especialista sim reuniria em si as inúmeras características inerentes e


indispensáveis ao perfeito exercício da profissão em questão, sem a conotação
diminutiva ou pejorativa mencionada por PAJARES (2004).
A necessidade enfrentada pelo especialista no ato de ler à primeira vista, de
precisar absorver tantos aspectos simultaneamente, o obriga a desenvolver uma
série de qualidades que o permitirão processar e sincronizar instantaneamente a
captação e percepção com a realização, durante o ensaio.
Esta necessidade desenvolve no pianista uma nova condição de aprendizado,
que acelera este processo exponencialmente, contribuindo para melhor
desempenho das próprias peças e concertos solo que tenha de realizar.
Algumas considerações devem ser tecidas, com o intuito de auxiliar o
processo de reconhecimento da atividade do pianista co-repetidor que, por razões
naturais, muitas vezes é encarado apenas como um suporte técnico à atividade do
canto, música de câmara ou orquestra, e não na verdadeira dimensão de seu
trabalho, imprescindível para o sucesso de inúmeras iniciativas.
Para tanto, vale citar um trecho de texto recente escrito pelo Maestro
Henrique LIAN (2011), a respeito do piano e a ópera:

Todos os que atuam no universo da ópera compreendem


muito bem o papel das chamadas "reduções para piano" na
preparação de regentes, cantores solistas, coralistas, diretores
cênicos e pessoal de apoio (como operadores de luz, maquinário e
legendas), tanto durante os ensaios individuais dos artistas quanto
nos necessários ensaios de cena sem orquestra, além de servirem
de guia e suporte durante as próprias récitas. De forma muito mais
imediata, e principalmente econômica, a versão pianística de uma
ópera desempenha a função quase heróica, senão utópica, de captar
o essencial de uma partitura completa e reproduzi-la, em preto-e-
branco (sem os matizes dos diversos instrumentos da orquestra),
preservando, tanto quanto possível, sua estrutura e estilo originais.

Como se sabe, existem inúmeras funções desempenhadas por este


profissional, uma vez que seus limites não foram ainda oficialmente bem definidos.
Esta afirmação significa tão somente a ausência de orientação dos estudantes ou
mesmo cursos superiores, em nível de bacharelado, no Brasil, que visem sua
formação.
Por outro lado, é interessante notar que sem um rótulo específico, das
matérias que constituiríam-se necessárias à criação ou implantação do referido
28

curso, o universo de estudos e atuações do pianista permanece extremamente


amplo, o que favorece o aprendizado e busca cada vez maior de inúmeros
conhecimentos – isto pressupõe crescimento ilimitado do artista.
O que se está querendo defender aqui, paradoxalmente, é a existência de
um aspecto também positivo presente na liberdade de ação dos pianistas co-
repetidores causada pela ausência de um rótulo estigmatizável, o que é comum a
toda a atividade desenvolvida autonomamente.
Reafirma-se aqui a importância dos estudos relacionados à disciplina
chamada co-repetição ou, melhor dizendo, especialização pianística (nas palavras
do autor), é sem sombra de dúvidas, fundamental. Mas não se pode deixar de lado o
fato de que, a partir do momento que ainda não estão bem definidos os limites de
atuação deste profissional - pois há controvérsias entre os autores quanto aos
nichos de atuação do pianista colaborador - isso faz com que ele tenha de
desenvolver-se cultural e tecnicamente na direção em que for solicitado, de acordo
com a demanda do mercado de trabalho, seja tocando num trio, dentro de uma
orquestra sinfônica ou ensaiando e preparando uma ópera ou musical.
A partir destas palavras, defende-se também o argumento de que a rotulação
do profissional em questão, proposta por ADLER (1976), reduz significativamente
seu espectro de atuação, bem como não representa a condição real do pianista co-
repetidor nos dias de hoje. Talvez sua intenção ao definir uma expressão seja
justamente a de facilitar a compreensão e exercício de suas funções, ao separar em
ramos de atuação as atividades do co-repetidor.
Como visto, apesar de tema controverso, tanto o estímulo à implantação de
cursos que visem formar o pianista também como especialista, como a ausência de
tal curso oficialmente nas instituições de ensino, constituem um caminho inexorável
ao aprimoramento deste profissional.
Há, nas universidades do país, como se sabe, cursos de bacharelado em
praticamente todos os instrumentos; mas, dentre as matérias que compõem o
histórico de disciplinas acadêmicas obrigatórias e optativas, e mesmo dentro do
próprio curso de piano, por que não haver sequer um incentivo ao estudo, à busca
ou à metodologia de pesquisa de assuntos que refiram-se à co-repetição, em todas
as suas acepções, já que esta constitui profissão tão solicitada no meio musical?
29

O piano é um instrumento que permite uma simultaneidade e intensidade


sonoras, além possibilidades harmônicas e variedade de nuances como nenhum
outro, sendo capaz mesmo de comportar o resumo de uma partitura orquestral.
Diante dessas características tornou-se o instrumento ideal para ser utilizado
como suporte a todos os tipos de ensaios e preparações musicais, grupos de
câmara, desde óperas e teatro musical até os concertos sinfônicos.
Seria uma injustiça deixar de citar um dos principais instrumentos utilizados
durante o período barroco (finais do século XVI) no acompanhamento das vozes na
ópera – como exemplo, os recitativos das óperas de Mozart – cantatas e oratórios, e
em todas as formas de música de câmara. A partir da segunda metade do século
XVIII deu lugar ao piano. Mais recentemente, o cravo foi utilizado por compositores
modernos como Poulenc, de Falla, que escreveram concertos para ele (WESTRUP,
HARRISON, 1976).
Imagine-se a tarefa impossível para um músico não pianista ou mesmo um
regente, a cada vez que precisasse ensaiar uma peça, ter de contratar uma
orquestra inteira para preparar cantores, corais, pianistas concertistas, ou qualquer
outro instrumentista solista, conjuntos corais ou instrumentais, se todo esse trabalho
pode ser executado por apenas um único instrumentista?
Aos poucos, a figura do pianista como acompanhador foi se formando e
firmando no mundo musical, e desenvolveu-se a expressão – que nem de longe faz
justiça a todas as aptidões que ele reúne – de pianista co-repetidor; co-repetir
significaria apenas um músico tocando simultaneamente ao solista, para que este
execute seu solo instrumental ou vocal.
De fato, esta também é uma das funções desempenhadas pelo co-repetidor,
que precisa por muitas vezes colocar-se apenas como um acompanhador,
procurando compreender as “respirações” e intenções do músico com quem
colabora, e colocar-se diante da obra a que se propôs de forma neutra e realmente
como um coadjuvante.
Mesmo assim, após vários anos de experiência como pianista solista e co-
repetidor, e respaldado em significativa referência bibliográfica e estudo de campo, o
autor insiste em tentar demonstrar que as funções do pianista co-repetidor vão muito
além das de um mero e “mudo” acompanhador.
Este virtuoso artista carrega em si inúmeras responsabilidades, que vão
desde o ato de ensinar interpretação, estilos e formas musicais, canto, passando
30

pelo conhecimento de línguas – no caso do ensaio de cantores solistas e conjuntos


vocais – leitura à primeira vista, análise musical, regência coral e orquestral,
harmonia, transposição, improvisação, conhecimento dos limites e capacidades dos
vários instrumentos, e as principais características de cada obra segundo as
concepções dos respectivos compositores.
Às vezes, até mesmo, desenvolvem carreiras paralelas como professores de
canto e, principalmente, de “como” se deve cantar e se colocarem, os solistas e
corais, dentro de uma obra cênica, prestando especial atenção à prosódia (estudo
do ritmo, entonação e demais atributos correlatos na fala), e agógica (ou Cinética
Musical - do grego Kine = movimento - que é a parte da música que estuda a
velocidade ou andamento com que determinada peça deve ser executada).
O aspecto do domínio do instrumento como um todo (piano), e do conjunto
resultante (a obra em questão, uma ópera por exemplo, com seus inúmeros
integrantes - coral, solistas, balé e cenografia), ou seja, da capacidade de visão e
audição do todo, se dá de uma forma também muito intuitiva, já que tantos são os
canais em que precisa se fixar o pianista. Isso tudo exige, é claro, muita
objetividade, pois esta é uma qualidade inerente ao ato de transmitir o
conhecimento, mas, sobretudo, grande capacidade de abstração e percepção, já
que tudo ocorre normalmente em “tempo real”, isto é, sem aquele espaço temporal
prévio, a “sós” com a obra proposta, de estudo reflexivo para seu aprendizado.
Segundo PAPA (2011), muito acostumado a trabalhar com pianistas co-
repetidores, estas são as responsabilidades de tal profissional:
1- conhecer profundamente o instrumento.
2- conhecer os diferentes estilos: o piano deve “fazer um baixo contínuo”, soar
sutil e delicado em Mozart, com peso em Verdi.
3- a compreensão da redução de piano e sua relação com a partitura de
orquestra. Em trabalho conjunto com um regente, deve reconhecer as várias
possibilidades e exigências da regência, suas variações de andamento,
interpretação e, na ausência do regente, substituí-lo nos ensaios, preparando os
cantores conforme as determinações recebidas.
4- conhecer voz e isto significa entender as necessidades e dificuldades do
canto, sua fisiologia, os estilos de cada registro, a história do canto e seus
intérpretes, os padrões tradicionais reconhecidos entre outros inúmeros aspectos.
31

5- em trabalho conjunto com o diretor cênico, entender as exigências cênicas


e auxiliar a preparação vocal identificando possibilidades de interpretação musical,
modificando tempos, em ação coordenada com a direção musical do espetáculo.
6- conhecer profundamente o trabalho de preparação de coro, auxiliando o
regente no estabelecimento dos diálogos entre os diversos registros, os padrões de
interpretação entre outros.
7- caso trabalhe no apoio à produção de espetáculos, durante as
apresentações, seu trabalho pode ampliar-se auxiliando a direção de palco, dando
entradas de solistas, figurantes, materiais de contra-regra, ruídos e efeitos especiais,
aberturas e fechamentos de cortina, mudanças de cena entre outros.
8- ainda em espetáculos, sua presença auxiliar é necessária na projeção de
legendas (subtítulos traduzidos) fundamentais na ópera moderna.
Como se pode observar, o pianista acompanhador é um profissional especial.
Sua função não é autômata. Pelo contrário, seu papel junto ao cantor ou a qualquer
outro instrumentista é de professor e orientador – professor, portanto – sendo
responsável por deixá-los preparados para apresentar-se.
Nos conservatórios, escolas e faculdades seu papel é a base de sustentação
para a formação do músico e sua atuação é de construção da voz em conjunto com
os professores de canto ou, quando atua com o aluno isoladamente, repetindo e
ampliando as ações propostas nas aulas.Nas aulas de música de câmara também
desenvolve conjuntamente aos professores o ensino das nuances, a
ambientalização e estilo das obras propostas. Nos espetáculos, seu trabalho é
complementar ao do professor de canto e do maestro, pois atua com o pressuposto
de que o artista esteja pronto e seu papel é prepará-lo segundo premissas
estabelecidas pelas direções musicais e cênicas (PAPA, 2011).
Por tudo isso, é indispensável ressaltar a grande dificuldade em encontrar-se
um direcionamento de estudos sobre a co-repetição e as matérias que a compõem.
Essa dificuldade na busca por informações a respeito e no aprendizado da arte em
questão encontra-se diretamente ligada à deficiência dos cursos superiores e
conservatórios de música, que não disponibilizam em seu corpo docente professores
com a experiência teórica e prática tão necessária à complementação da formação
do aluno de piano.
Com efeito, é muito comum encontrar-se nas mesmas universidades
inúmeros pianistas exercendo a função de acompanhador, seja de outros
32

instrumentos solistas, seja na música de câmara ou no preparo de óperas e


musicais. Mas, esses mesmos pianistas, executam tal função intuitivamente e sem o
respaldo acadêmico necessário ao desempenho do ofício.
Aliás, mesmo correndo o risco de desviar-se brevemente do assunto, fica uma
importante sugestão: não existe qualquer direcionamento dentro da graduação em
música com relação aos cursos de pós-graduação, mestrado ou doutorado, de sua
importância aos recém formados interessados em dar prosseguimento à carreira
acadêmica, e de como isso contribuiria para o enriquecimento das universidades e
para o crescimento cultural do país. Esta carência de informações traz prejuízo ao
magistério superior e, paralelamente, forma alunos bacharéis cada vez menos
capacitados. Esse ciclo vicioso, pelo menos no que diz respeito ao estudo da música
no Brasil, tem contribuído essencialmente para o declínio acentuado do nível tanto
dos futuros professores, como no interesse por parte dos alunos e recém formados a
dedicar suas vidas à mais nobre das profissões.
São muito poucos os professores no Brasil capazes de esclarecer e
encaminhar o estudante interessado em aprender a co-repetição; na sua maioria,
não são habilitados em demonstrar suas técnicas e conduzir seu aprendizado de
forma concisa, atualizada e eficiente.
Tem-se observado que muitos destes professores de música exigem a
habilidade de leitura de seus estudantes, mas não orientam como se pode
desenvolvê-la. Quando o fazem, simplesmente dizem que os alunos devem olhar
trechos adiante enquanto executam partes anteriores. Por outro lado, vê-se também
a cobrança dessa perícia em vários testes ou concursos (SLOBODA, 2005).
A bem da verdade – e o que paralelamente deveria ser esclarecido dentro das
instituições e ensino de música, no intuito de que os futuros profissionais da música
não fossem “pegos de surpresa” - é a realidade enfrentada pela grande maioria dos
pianistas solistas atualmente, que consiste na diminuição exponencial no interesse
da sociedade por concertos e recitais de música erudita no Brasil.
Por outro lado, há verdadeiro crescimento da procura pelo profissional co-
repetidor, pois este tem condições de adaptar-se e exercer tantas quantas forem as
funções solicitadas, como, por exemplo, a direção de um musical (tão em voga nos
dias de hoje), que implica a preparação vocal dos cantores e atores, o
acompanhamento musical durante os ensaios e, algumas vezes até mesmo a
regência do espetáculo.
33

Não se aprende esse ofício, portanto, durante as aulas particulares e horas a


fio de estudos solitários como pianista solista, que prepara as peças de forma
vagarosa e conservadora, com tempo para observar os detalhes de dedilhado e
notas, andamentos, ritmos e posicionamento das mãos, para uma futura e perfeita
execução e interpretação.
Essa forma de estudar, que vem sendo adotada pelos instrumentistas ao
longo dos séculos, constitui mesmo um obstáculo para o desenvolvimento de sua
criatividade e para o aprendizado e aprimoramento das potencialidades necessárias
a atingir o status de um artista completo, como deveria ser o co-repetidor.
É evidente que a prática por si só é um grande professor, talvez o maior de
todos os mestres.
Entretanto, é extremamente frustrante para o pianista inexperiente, dar início
ao trabalho complexo e desafiador que constitui começar a ler as reduções para
piano, e não conseguir fazê-lo desembaraçadamente, por ainda não se capaz de
captar simultaneamente um número infindável de variáveis presentes não apenas na
partitura – que não fôra originalmente escrita para piano – como também na
interação com o solista; o ápice desta questão aparece quando ele, o próprio
pianista, acaba por tornar-se muitas vezes um obstáculo ao desempenho das obras
musicais a que se propôs.
Isto fere e estigmatiza o aluno, que ficar rotulado por seus colegas, dentro do
meio musical onde convive, e sempre de uma forma pejorativa, que pode até mesmo
criar traumas no processo de aprendizado. Aparentemente uma boa habilidade de
leitura musical à primeira vista é um dom para poucos agraciados; entretanto,
reafirma-se a idéia de que, com o devido encaminhamento e orientação, o estudante
esforçado poderá atingir um alto grau de desempenho em sua leitura.
Observe-se que a bibliografia disponível sobre os inúmeros temas
relacionados à co-repetição, sight reading, transposição e acompanhamento ao
piano é até bastante significativa; entretanto, a orientação apenas empírica, sem
embasamento teórico e correto direcionamento das referências por parte dos
professores de piano, acaba por desestimular o aluno e causar a falsa impressão de
que esta é uma disciplina de menor valor.
Essa idéia precisa ser modificada dentro e fora do âmbito musical, e essa
tarefa pode ser mais simples do que aparenta ser; daí a grande importância da
publicação do questionário confeccionado e respondido pelo autor, além de outros
34

especialistas no assunto, pois trará à tona a verdadeira condição e significado do


pianista co-repetidor, valorizando este artista de tal forma a consagrá-lo como
verdadeira sinônimo de evolução de um indivíduo dentro da música.
O pianista necessita desenvolver a capacidade de criar soluções às lacunas
na partitura acompanhante ou mesmo diante de situações imprevistas, como falhas
de memória do solista ou entradas precipitadas do grupo com quem toca.
Dito isso, não se pode deixar de mencionar outra grande arte dentro da co-
repetição, ou, melhor dizendo, na qual o pianista especialista se “alimenta” e que
implica profundos conhecimento e intimidade com o instrumento - a arte da
improvisação.
Esse é por si só, um tema fascinante, por tratar-se antes de tudo, da própria
forma com que o ser humano se coloca diante do mundo e de seus semelhantes; da
maneira como se relaciona com a vida e lida com as mais diversas situações,
inclusive na música.
Para dar início a assunto de tamanha magnitude, antes de mais nada, vale
citar trecho escrito por LUCA (1990), em sua abertura ao livro intitulado Ser Criativo:
O Poder da Improvisação na Vida e na Arte, escrito por Stephen Nachmanovitch:

“Apesar de nossas capacidades analíticas e


dedutivas poderem, hoje em dia, serem treinadas e melhoradas
com métodos precisos e eficientes, em relação à arte e ao processo
criativo, os caminhos desse aprendizado ainda não estão
completamente definidos. Toda a tentativa de organizar um
conhecimento adquirido na prática dos processos criativos leva a
uma necessária auto-observação. Necessário seria, porém, o
equilíbrio e a serenidade para não escorregarmos atribuindo às
forças divinas aquilo que ainda não conhecemos completamente.
No dia-a-dia do ensino da arte, tentando fazer com que as pessoas
se tornem criativas, tenho lidado frequentemente com a questão de
achar a coisa certa para dizer na ora certa, de modo que o aluno
consiga dar o salto criativo. Quando o aluno atinge o ponto certo, a
reação é quase sempre a mesma. Alguma coisa reverbera dentro
da pessoa e muda toda a sua concepção do problema a ser
resolvido. Várias soluções vão aparecendo e ela, com um olhar
distante e leve sorriso nos lábios, sente essa mudança se
propagando em ondas suaves para além de seus próprios limites.”

Dentro da co-repetição, não há verdadeiro processo de criação. Isso porque o


pianista apenas deverá cobrir os lapsos deixados pelo solista ou preencher os
espaços mal traduzidos dentro das reduções orquestrais. Por esse motivo, tema tão
35

especial como o é a arte da improvisação será abordada em tese de doutorado na


próxima etapa do desenvolvimento acadêmico do autor.
Apenas para arrematar, umas últimas palavras sobre o significado relevante
que tem a improvisação dentro da arte do acompanhamento. De acordo com
NACHMANOVITCH (1990) “A improvisação é a forma mais natural e mais difundida
de fazer música. Até o século passado era parte essencial da tradição musical do
ocidente. Na música barroca, a arte de tocar um instrumento a partir de um baixo
cifrado (um arcabouço harmônico que o executante preenchia de acordo com a
inspiração do momento), lembra o jazz moderno, em que os músicos criam a partir
de temas ou mudanças de acorde.”
Como forma de enriquecer e ilustrar ainda mais o papel fundamental que
exerce o pianista acompanhador, parece de grande valia mencionar alguns aspectos
e experiências da vida de um dos maiores nomes – e mesmo tido como uma “lenda”
- da co-repetição mundial – o pianista André Benoist.
Assim como a grande maioria dos pianistas que iniciam a carreira com o
intuito de tornarem-se grandes solistas e concertistas, Benoist não foi uma exceção.
Mas, conforme suas próprias palavras, sua “antipatia” e extremo “nervosismo” pelo
trabalho o levaram ao mundo da co-repetição.
Percebe-se, portanto, a dificuldade que teve ele para enfrentar a pressão dos
palcos e da platéia, os prazos curtíssimos para o aprendizado das obras solo e dos
concertos com orquestra. No entanto, percebeu que poderia obter êxito justamente
sob a égide de grandes solistas, ao descobrir em si dois raros talentos: humildade e
uma apuradíssima percepção humana e musical.
Esse grande artista, durante vários anos, cogitou e sedimentou a idéia de
escrever sobre o “outro lado, fora do alcance do estrelato e dos spots”, que constitui
a carreira do co-repetidor, para a grande maioria dos músicos.
André Benoist foi, de fato, um nome que se confunde com a própria
expressão pianista “acompanhador” – no sentido dado pelo autor, muito mais amplo
do que o significado primordial da expressão. Ele era mesmo carinhosamente
conhecido e referido por seus famosos colaboradores como: “O Acompanhador”.
Entretanto, em sua época, Benoist não havia ainda vislumbrado a amplitude
do significado prático do próprio trabalho que exercia com tamanha maestria. Ele
não poderia deixar de ser citado num trabalho que versa justamente sobre sua maior
especialidade, e que pretende valorizar e difundir a profissão.
36

Nascido em Paris, em 1880, estudou com alguns dos maiores mestres de sua
época e que perduram até os tempos atuais, símbolos da atemporaneidade da
música, como Camile Saint-Saens, Cezar Franck, Jules Massenet, para citar alguns
dos mais célebres.
Sua carreira realmente teve início quando acompanhou o grande violinista
francês, Jacques Thibaud, no seu primeiro recital no Carnegie Hall, e em sua
subseqüente tournée entre 1903 e 1904.
Sua tournée com Luisa Tetrazzini, das mais renomadas sopranos coloratura
de sua época, e Mary Garden, a famosa sopra escocesa, conhecida pela grande
capacidade de realizar nuances e timbres vocais nunca antes experimentados, em
1910-11, concluíram o que seria a primeira fase de sua carreira. Isso porque, em
1912, Benoist deu início a uma fase de grande colaboração com o violinista
americano Albert Spalding.
Com raras exceções, devotou sua vida ao violinista. Houve aqui uma rara
amizade pessoal e musical entre os dois, praticamente sem paralelos na história de
relacionamentos entre solista e acompanhador. Juntos, deram início a uma enorme
tournée pelos Estados Unidos, Europa, Rússia e Egito, obtendo grande sucesso.
Isto traz à tona uma característica vital ao acompanhador, e que se constrói
com o decorrer do tempo, qual seja, a afinidade entre ele e seu parceiro
colaborador, seja um instrumentista, um cantor ou mesmo um grupo de câmara – a
empatia e mútua percepção que se forma entre eles.
Até mesmo hoje em dia, diante de tantos avanços tecnológicos, não seria
possível uma parceria, dentro ou mesmo fora da música, sem as qualidade descritas
acima.
Spaldin, entretanto, decidiu apoiar as forças armadas norte americanas com o
início da primeira grande guerra, em 1917, o que interrompeu a carreira dos dois. Foi
exatamente nesse momento em que Benoist conheceu o mestre violinista russo
Jascha Heifetz; juntos, obtiveram tremendo sucesso.
Revistas ficaram extasiadas.
Em 1905 e 1906, Benoist foi convidado a acompanhar o legendário violinista
Fritz Kreisler e o virtuoso pianista e compositor Josef Hofmann, bem como o
violoncelista Pablo Casals. Com isso, projetou-se como o maior nome da co-
repetição no mundo musical a partir de então.
37

Bem como, para citar um outro maravilhoso, (para dizer o mínimo), exemplo
de afinidade entre pianista, violinista e violoncelista, pode-se citar o trio composto
por Rubinstein, Heifetz e Piatgorisky, que não apenas executava com extrema
perfeição as obras às quais se dedicavam, mas, sobretudo, conseguiam
estabelecer verdadeira comunicação com o público, arrebatado por suas
performances. Afinal, o que é a música senão uma forma tão intensa de
comunicação, capapz de alcançar emoções e reflexões em esferas que vão tão
além das palavras, complementando as relações entre os seres humanos?
Com sua morte, em 1953, sua família publicou, no “The New York Times”, as
seguintes palavras - capazes de resumir a função vital que o pianista co-repetidor
desempenha “por trás dos holofotes”, e que serve de lição de vida e perfeita
conclusão dos objetivos desse capítulo:

A vida e carreira de André Benoist ilustrou fortemente o quão


importante pode ser o mundo daqueles cuja vida e função é ajudar
os outros, sem preocupar-se ou importar se com os holofotes sobre
si. O Sr. Benoist foi um dos mais bem dotados pianistas de seu
tempo, mas ficou conhecido e amado não como um intérprete solista,
mas por sua capacidade de suporte ao solistas. Para todos os
grandes músicos ao redor do mundo, como Cesar Franck, Camille
Saint-Saens, Jules Massenet, Alfred Cortot, Charles Gounod, Ignaz
Paderewski, para citar apenas alguns, seu nome significa: O
ACOMPANHADOR. Ao longo da caminhada da vida, similarmente,
há muitas outras pessoas que, voluntariamente, escolhem estar em
“segundo plano”, gratificados por sua contribuição para o sucesso de
outros. Isso requer rara humildade e uma profunda simpatia. Alguns,
como André Benoist, o fazem com suprema maestria.
38

CAPITULO 3
LEITURA À PRIMEIRA VISTA

Como visto, o campo da co-repetição é muito vasto, sendo, portanto,


necessário fixar-se num dos aspectos mais importantes e imprescindíveis ao
exercício do ofício em questão, portanto, a leitura à primeira vista, ou, como
encontrado na bibliografia estrangeira: sight reading.
Por que focar-se nesse ramo da especialização pianística?
Este é um tema fascinante, pois implica em uma série de fatores e aptidões
as quais poucos pianistas, mesmo famosos concertistas, dispõem. Acredita-se que a
base deficiente de formação dos pianistas solistas no sentido do aprendizado das
técnicas de leitura musical seja a grande responsável pela grande dificuldade que
enfrentam, cada vez mais, os alunos de piano.
Fala-se aqui, portanto, da habilidade de apreensão do todo, a partir de uma
primeira “visada”, de uma compreensão de que a leitura de determinada peça deve
ser realizada não somente através da análise dos detalhes, das minúcias; o pianista
deve, principalmente, ser capaz de captar instantaneamente a idéia central, o cerne
da questão, os objetivos do compositor, e transmiti-los ao musicista ou grupo com
quem desenvolve determinado trabalho.
Seria, talvez, pretensioso por parte do autor, tentar abordar, em sua
dissertação, todas as características inerentes ao desempenho da função de
pianista co-repetidor. Por essa razão, e para procurar maior consistência e foco
neste trabalho, escolheu-se esse que é uma dos mais importantes pilares de
sustentação no desenvolvimento do pianista ao exercer tal função.
Com essas primeiras linhas, tem início o estudo que aqui se propõe, da
importância e relevância da leitura à primeira vista para o pianista acompanhador e
como esta se destaca e mesmo define-se como fator principal na arte de co-repetir.
Alguns grandes pesquisadores do assunto começam a voltar-se com ânimo
inquiridor para coisas que até então nenhum interesse os despertavam, levados por
imperativos de ordem cultural e profissional – que incessantemente reclamam maior
extensividade e maior profundidade de conhecimentos (Ricci, et al, 1916).
Neste caso estão os fatos relativos a leitura à primeira vista que, não
obstante, oferecem largo campo para estudos, datam de bem pouco os primeiros
passos aí efetuados e, mesmo assim, com fins especulativos.
39

Contudo, não podendo o estudioso contar com a existência de estradas feitas


e consolidadas pelo trânsito comum e constante – como acontece com outras
matérias já estabelecidas oficialmente, como metodologia da pesquisa ou acústica,
harmonia e contraponto e fuga, que, aliás, constituem matérias importantíssimas e
fundamentais na consolidação e capacitação do pianista bacharel – necessitará ele
próprio, o pianista, abrir seus caminhos, por onde deverá conduzir-se em busca de
novos esclarecimentos, à semelhança do que fizeram os primeiros desbravadores
deste mesmo campo.
Adquirirá então maior ciência pela experiência vivida, em contato direto com
as coisas e fatos peculiares a esse campo; tudo aí examinado detidamente – Isto é,
de forma extremamente cautelosa e tranqüila, para que se possa absorver e
apreender as características deste ofício com solidez, para poder não apenas expor,
como também registrar essas características à posteridade - sempre atento às
razões de causa e efeito, de tudo indagando, enfim, ainda mesmo quando em
presença de fatos simples e elementares, presumivelmente conhecidos (Ricci, et al,
1916).
Partindo do princípio de que, da conduta do leitor no ato de ler e de modo
mais geral, durante todo o período de aprendizagem da leitura, depende o progresso
que possa realizar o leitor - e, por conhecermos ser a conduta ou o comportamento
propriamente dito não mais do que uma resposta ou reação do indivíduo ante uma
determinada situação, e, como diz Henry Piéron (1957), em sua Psicologia do
comportamento: “para os fenômenos do comportamento estudados pela psicologia,
a noção do reflexo condicional é capital; e o fenômeno da transferência associativa
fundamental de todas as tendências adquiridas, de todos os progressos da conduta”,
- façamos, portanto, sob esse aspecto, uma ligeira análise do ato de ler (Ricci, et al,
1916).
Sob o ponto de vista da chamada “psicologia dinâmica”, isto é, dessa
psicologia de “causa e efeito”, toda e qualquer ação do indivíduo pode ser encarada
como reação a um certo estímulo. Ora, a leitura musical é precisamente um exemplo
típico dessas reações, e reveste todas as características de uma reação
condicionada, fenômeno este amplamente estudado pelo fisiologista russo Pavlov, e
por seus discípulos sob o nome de reflexo condicional (ou condicionado) (Ricci, et al,
1916).
40

A aplicação deste princípio à técnica pianística se deve, segundo presume-se,


ao professor Antônio Sá Pereira, autor do livro Psicotécnica do Ensino Elementar da
Música, onde o autor, após uma exposição detalhada dos dois tipos de reações
condicionadas – as simples e as discriminativas – classifica a leitura no número das
segundas (discriminativas), sob a denominação de “Reação com escolha” (RICCI, et
al, 1916).
Vale ressaltar, portanto, que as reações condicionadas discriminativas, às
quais refere-se o autor, são as que correspondem às do pianista co-repetidor, uma
vez que, por mais instantânea que deva ser sua reação à primeira olhada na
partitura, ao primeiro relance e contato com esta, ela continua sendo uma reação
com possibilidade de escolha. Isto significa dizer que a reação do pianista, apesar
de instantânea e reflexa, contém em si um universo de tomada de decisões e
escolhas que passam despercebidas pelos ouvintes e pelos próprios músicos
solistas, pois trata-se de uma série de fatores como intuição, presença de espírito,
bagagem musical e cultural, conhecimento dos mais variados estilos musicais, para
caracterizar qual a sonoridade se adéqua a cada uma das passagens, para decidir
o melhor a fazer (que nem sempre é o que está escrito ou “reduzido” na partitura do
pianista acompanhador).
De modo geral e como simplificação de todo o processo que determina um
ato reflexo, emprega-se o esquema sumário “E – R”, onde “E” é o estímulo e “R”, a
reação (RICCI, et al, 1916).
A análise da “reação com escolha” em suas grandes linhas encontra-se feita
na referida obra do professor PEREIRA (1937):

Na reação com escolha, há pois que distinguir três


fases: A “fase centrípeta”, na qual o excitante físico atua
sobre o órgão sensível desencadeando uma corrente nervosa
aferente, sensitiva; A “fase associativa”, na qual a sensação é
interpretada (percepção) e associada à idéia da reação motriz
convencionada; A “fase centrífuga”, na qual dos centros
cerebrais desce a corrente nervosa motora, eferente, e que
pela inervação dos músculos produzirá o movimento
desejado.
41

Ainda segundo o professor Sá Pereira, a segunda fase do processo da


“reação condicionada”, isto é, a fase de associação ou simplesmente da percepção
propriamente dita, apresenta três principais aspectos que revestem a atividade da
leitura, a saber:
1) Cabedal Mnemônico – que se refere à aquisição da experiência;
2) Faculdade de Síntese – relativa à utilização da experiência adquirida;
3) Coeficiente individual – concernente à capacidade individual de
aquisição e reprodução.
Há também alguns princípios normativos, de caráter puramente convencional
e pouco favoráveis ao desenvolvimento das faculdades interessadas no ato da
leitura. Em suas linhas gerais, pode o assunto tratado ser consubstanciado no
seguinte esquema, como demonstrado na figura 5, abaixo (PEREIRA,1937):

CABEDAL MNEMONICO FACULDADE DE


Tomado por vezes SÍNTESE
impropriamente como: repositório Visão sintética
de dados memorizados; Impropriamente
Experiência interpretada por alguns como
aneriormente adquirida; sendo a resultante do duplo
Fonte de processo de decomposição e
Automatismos; recomposição do todo;
Gerador de novas Consumação da
aquisições; transferência associativa por
Ponto de partida dos extensão analógica.
processos associativos.

COEFICIENTE INDIVIDUAL
Potencialidade e desenvolvimento das
aptidões;
Regulador da Eficiência e do
Progresso;
Expressão da Conduta, já que, se o
coeficiente é alto significa que a conduta é
correta.
42

Figura 5.
43

As características inerentes a cada um dos aspectos representados pelo


quadro acima, constitui tema dos sub-capítulos seguintes, por constituírem base
fundamental de captação de recursos teóricos a auxiliarem na prática da co-
repetição.

3.1. CABEDAL MNEMÔNICO

Para se entender melhor o sentido de mnemônico, interessante se faz


compreender o significado de memória mnemônica, já que se trata de termos
correlatos.
Uma mnemónica (português europeu) ou mnemônica (português brasileiro),
é um auxiliar de memória. São, tipicamente, verbais, e utilizados para memorizar
listas ou fórmulas, e baseiam-se em formas simples de memorizar maiores
construções, baseados no princípio de que a mente humana tem mais facilidade de
memorizar dados quando estes são associados à informação pessoal, espacial ou
de caráter relativamente importante, do que dados organizados de forma não
sugestiva (para o indivíduo) ou sem significado aparente. Porém, estas sequências
têm que fazer algum sentido, ou serão igualmente difíceis de memorizar.
Note-se que, além disso, a linguagem de notação musical é toda baseada
através de símbolos que são designados como mnemônicos, que constituem e
especificam uma determinada sintaxe. Porém, a aplicação da definição anterior
verifica-se, já que os sinais musicais são relativamente amplos, mas incompletos
para designar idéias e instruções de execução rítmica e sonora exatamente fiéis.
A palavra menemônica partilha a etmologia de mnemosine, o nome da
deusa que personificava a memória na mitologia grega.
Pode-se observar na figura 5.1, a seguir, um exemplo do que é uma
mnemônia ou, como visto, um auxiliar de memória:

Figura 5.1
44

Certamente ninguém ignora, reinar ainda hoje, na aprendizagem da leitura


musical, o mais franco amadorismo (sem alusão ao ensino oficial). De modo geral,
não intervêm os professores de piano nessa particularidade da técnica; dispensam
antes de tudo toda a atenção às atividades virtuosísticas (PEREIRA, 1937).
Ressentindo-se, porém, o estudante, da falta desses conhecimentos, quer
impelido pelas exigências da profissão, quer movido espontaneamente pelo desejo
de dar maior consistência a sua cultura, e até mesmo ter condições de entrar no
mercado de trabalho, resolve ele, então, por livre arbítrio, adquirir os elementos
conoscitivos de que carece.
Recorre, pois, o estudante, à bibliografia didática e, sem sucesso, procura
infindavelmente obras especializadas sobre o assunto.
Todavia, não poucos conceitos enfeixam as obras relativas ao ensino do
piano, ora apontando as qualidades indispensáveis ao leitor: golpe de vista, ouvido,
habilidade técnica, ora advertindo da necessidade de observar o praticante uma
ordem progressiva nos exercícios dessa espécie, ou, aconselhando acurado estudo
das matérias teóricas, ou, como LAVIGNAC (1903), que prodigaliza boa cópia de
recomendações sumamente judiciosas e úteis, ora referindo a importância e a
dificuldade dessa prática, como por exemplo, quando diz:

Plus que les autres instrumentistes, lês pianistes


doivent apporter tous leurs soins à l’etúde du dechiffrage, en raison
du grand nombre des notes qu’ils ont à livre, soit simultanément, soit
três rapidement.2

Ora referindo à iniciação e à conduta do leitor:

Dés lá troisième année, au plus tard, il faut y


consacrer quelques instants chaque jour; dechiffrer toujours
lentement des choses assez faciles pour qu’on puísse lês lire sans
faire dês fautes, sans hesiter ou trebucher, et même em y mettant ls
nuances indiquées; c’est à cette condition que cette étude est
profitable. Avant de dechiffrer une pièce quelconque, courte ou
developpée, il faut la percourir longuement, en examinant plus
specialement lês passages qui paraissent dificiles; mais une fois
parti, il ne faut jamais s’arrêter sous aucun pretexte; Il vaudrait mieux
inventer quelques notes, voire même plusieurs mesures, que
s’arrêter et se reprendre. ... il faut savoir deviner d’après Le dessin ce

2
(tradução do autor): Mais que os outros instrumentistas, os pianistas devem voltar toda sua atenção para o
estudo da leitura musical, em razão do grande número de notas que têm de ler rápida e simultaneamente.
45

qu’on a pás Le temps de lire, et toujours Lire d’avance, au


moins d’une mesure dans les mouve-Ments lents et de plusieurs
dans les pieces d’allure vive. Savoir bien lire, chose precieuse entre
toutes est un fait simultané d’intelligence, d’habilité et de presen-ce
d’esprit.3

Essas ponderadas palavras valem, inegavelmente, por todo um programa de


aprendizagem: iniciação, desenvolvimento, comportamento, características técnicas
e processos intelectuais, tudo aí está previsto.
Apresentadas, porém, essas condições como ocorre com os demais autores,
de modo sumário, e, figurando quase sempre como elemento subsidiário ao método
geral de ensino do piano, desacompanhados dos indispensáveis pormenores de
ordem técnica, especialmente no que diz respeito à escolha dos gêneros
convenientes ao exercício, são elas, não raro, mal interpretadas em significação e
exercícios (PEREIRA, 1937).
E assim, de um lado a incompreensão de conselhos, não obstante serem
expressos em sua maior parte por mestres eminentes do piano, e de outro, o fato de
não poder o profissional prescindir dessa técnica, colocam-no geralmente numa
situação de impasse, da qual, normalmente consegue livrar-se na maior parte dos
casos, deixando-se levar pelos preconceitos relativos aos processos de estudo,
tendentes estes, certamente, às práticas empíricas, quando não, de todo, rotineiras
(RICCI, et al,1916).
Nessas circunstâncias, não é difícil encontrar quem lhe transmita receitas
mágicas, como: “o maior leitor é o que possui o maior cabedal de fórmulas”.
Não há tais fórmulas! Na verdade, diante de tão imensa variedade dos
gêneros e dos estilos musicais, bem como, em face da diversidade das escolas e
seus sistemas de ensino, sempre acentuadas por um fluxo constante de inovações e
criações individuais as mais imprevistas, não pode ter qualquer significado tão rígida
afirmação.

3
(tradução do autor): Pelo terceiro ano, o mais tardar, deve-se dedicar a cada dia algum tempo à leitura
musical de passagens fáceis, de modo a não hesitar, “tropeçar” ou cometer faltas, para conseguir colocar as
nuances e matizes indicadas na partitura perfeitamente; apenas nessas condições esse estudo é benéfico.
Antes de procurar decifrar qualquer parte, seja ela curta ou bem desenvolvida, deve-se percorrer o texto
musical e examinar quais as passagens mais difíceis; mas, uma vez iniciada a leitura, não se deve interrompê-la
sob qualquer pretexto. Seria melhor inventar notas do que parar e recomeçar... deve-se ler com antecedência
as passagens para chegar-se ao ponto de poder adivinhar o que se está por vir. Saber ler bem é uma das
qualidades mais preciosas que pode ter um músico, e é uma “receita” que contem inteligência, habilidade e
presença de espírito.
46

Para identificar-se de onde vem tal preconceito, é preciso adentrar, um


mínimo que seja, no estudo da pedagogia e psicologia do aprendizado.
Veja-se, para tanto, o que diz AGUAYO (1936), em sua obra intitulada
Pedagogia Científica:

É muito comum a confusão entre a


aprendizagem que sempre interessa à conduta e à aquisição dos
conhecimentos, e a de informações sem outro fim ou objetivos que a
própria aquisição. É também costume confundir com a
aprendizagem, os exercícios ou práticas, que são simples meios ou
instrumentos da aprendizagem. Era costume da escola tradicional,
diz a respeito William H.Burton, considerar que o conteúdo dos livros
é o produto da aprendizagem que deve ser dominado. Estudavam-
se, de memória, lições ou porções reduzidas desse conteúdo, para
repeti-los depois diante do mestre. Como conseqüência inevitável
desse falso conceito de aprendizagem – conclui Aguayo – temos a
crença muito difundida entre os professores de que o trabalho do
aluno consiste em acumular fatos na memória, em repetir o que leu,
na capacidade de fazer exercícios conforme um modelo.

Essa crítica, que, aliás, se dirige de modo particular aos tradicionais métodos
de formação intelectual, pode estender-se, sem restrições, por sobre o ensino
artístico, pois que, em princípio, dirige-se ela, não àquela ou esta classe de estudos,
ou a um determinado ramo do ensino, mas sim, ao espírito pedagógico que, tendo
dominado toda uma época, dele se ressente ainda, a aprendizagem de hoje
(PEREIRA, 1937).
Esse acúmulo de fatos na memória, apenas repetindo o que se leu, sem que
se faça uma relação ou associação mnemônica utilizando-se um auxiliar de
memória, torna o aprendizado e memorização da partitura um trabalho árduo de
passiva repetição das notas e ritmos, que normalmente não permanece por muito
tempo gravado na memória.
Instintivamente, alguns musicistas possuem essa capacidade de associação,
e a fazem de forma inconsciente; isto talvez os leve a discordar do fato de que o
estudo fundamentado num cabedal mnemônico seja dispensável.
Essa forma de aprendizado, no entanto, não se detém apenas ao estudo da
música, mas à apreensão dos conhecimentos e informações como um todo.
Se o ensino em geral patrocinava as práticas empíricas e, fora das escolas,
sobrelevava as convenções, como não ser afetado pelos costumes dominantes de
um setor da aprendizagem da música em que o leitor se orientava por opiniões e
47

conselhos de origens as mais suspeitas e para o qual – como ainda hoje acontece
em parte – só raramente se dignavam os mestres voltar a atenção?
O que acontece com o praticante, ávido em obter, por parte de seu mestre –
que, a bem da verdade, tanto ou mais do que ele, anseia por conhecimentos à
respeito do assunto e, assim como ele, teve de aprender intuitivamente tal arte -
novas informações e técnicas que o auxiliem no ato de ler, acolhe a primeira opinião
que lhe é oferecida, além de certas normas de conduta sancionadas pelo uso
corriqueiro, e procura conformar a esses moldes restritos a sua atividade, nessa
particularidade técnica.
Posto que, como reza o preconceito, o importante é assimilar elementos
formais, volta-se ele, fatalmente, para aquele repertório caracterizado pela
uniformidade de contextura, isto é, pelo sistemático emprego de fórmulas rítmicas,
harmônicas e até mesmo instrumentais. Nesta categoria estão os estilos puramente
convencionais, destituídos de toda originalidade, e construídos segundo quadros
preestabelecidos para a harmonização e conformes com a estrita concepção de uma
rítmica simétrica e acanhada (PEREIRA, 1937)
Onde estão as origens do preconceito?
Pode-se encontrá-las:
1) Na noção restrita do ritmo que resultou do estabelecimento da barra de
compasso (século XVII) quando então, sob pretexto de se reconstruir a antiga
métrica, nada mais se fez senão submeter a rítmica à regularidade e simetria do
compasso, cujo desmedido entusiasmo pela inovação “concorreu para que, pouco a
pouco, e por fim, em absoluto se dissipasse toda e qualquer noção do ritmo puro e
de suas regras” (TACCHINARDI, 1926).
Observa-se, aqui, um grande empobrecimento do ritmo, o que se respalda
nas palavras do professor D’INDY (1897 – 98):

C’est, même une dês facheuses


innovations que nos ait leguées Le XVII siècle, si fertile en fausses
theories. Ainsi, Le rythme, soumis aux exigences restrictes de La
même, s’est appauvri rapidement, jusqu’à La plus desolante
platitude.4

4
(Tradução do autor): A bem da verdade, o século XVII nos legou uma série de inovações negativas, período
fértil em falsas teorias. Assim, o ritmo, sujeito às exigências rigorosas do mesmo, esgotou-se rapidamente, até
o mais desolado nivelamento.
48

Apenas como curiosidade, o professor Vincent D’indy foi um compositor


francês criador, em 1894, da Schola Cantorum laica de Paris, transformando-a
posteriormente numa escola de composição. As palavras citadas acima foram
extraídas de seu Cours de Composition Musicale, redigido entre 1897 – 1898.
2) Na concepção excessivamente dogmática da harmonia, traço
característico dos processos usuais da velha escola prática italiana de
acompanhamento, segundo a qual, uma vez fixadas as características tonais e os
movimentos do baixo, qualquer problema de harmonização encontrava solução
imediata dentro de um determinado quadro previamente traçado.
A este processo denominava-se “Regola Dell’otava”, cujo quadro principal
aqui se transcreve como exemplo típico dessa uniformidade a que se tem referido e
por constituir ele precisamente o modelo sobre o qual tem sido confeccionada a
parte do repertório pianístico que menos propicia o desenvolvimento total das
faculdades atuantes na leitura:

Figura 6.

De tudo isto se pode inferir que, o mesmo espírito formalista que gerava
concepções de tal modo restritivas, foi que deu origem ao preconceito que ora se
examina.
Efetivamente, se toda a rítmica ficava comprimida entre as barras de
compasso e até mesmo anulada pelos acentos periódicos e regulares determinados
pelos tempos, e se toda a arte de harmonizar se resumia num pequeno quadro
49

modelo, porque não se haveria de reger a técnica da leitura por normas idênticas às
que regiam a própria construção das obras?
De fato, ao formalismo da técnica da construção só poderia responder o
convencionalismo da técnica da leitura.
Se a construção das obras obedecia a moldes fixos, por sua vez a leitura
muito se beneficiaria com o conhecimento prévio desses moldes.
E assim, a crescente familiaridade com desenhos rítmicos habituais e com a
uniformidade de harmonização, assim como também o gradativo domínio sobre um
determinado número de fórmulas pianísticas de uso frequente e de inclusão
obrigatória em todos os métodos de mecanismo, proporcionavam, com certeza, ao
final de algum tempo, ao leitor, um certo domínio nesse terreno. E assim, a
crescente desenvoltura que experimentava aquele ao decifrar à primeira vista peças
classificáveis nesse mesmo gênero, confirmava sobremaneira o prestígio da idéia
convencional (RICCI, et al, 1916).
Daí a difusão desse preconceito que, transpondo tempos e escolas, logrou
chegar até nossos dias, contando ainda com alguns adeptos
O nível de progresso que geralmente atinge o leitor por este processo, pode
ser representado graficamente pelas chamadas curvas de aprendizagem, extraídas
do excelente: Ritmica Musical con 220 ilustraciones, do professor TACCHINARDI
(1954):

Normalmente, apresenta-se a curva com o seguinte formato:

Figura 7.

Nesta curva, representada pela figura 7, pode-se perceber o que seria um


processo de aprendizagem normal, onde o estudante, após começar seus estudos
50

com método e organização corretos, apresenta um salto ascendente ininterrupto, até


atingir relativa estabilidade, mas com possibilidades de crescimento.
Por outro lado, a curva a seguir, representada pela figura 8, demonstra-se
desfigurada diante de um processo arcaico e automatizado de aprendizagem:

Figura 8.

No gráfico correspondente à figura 8, pode-se perceber o período de


estacionamento em que se mantém o praticante, uma vez que o caráter unilateral de
sua aprendizagem não lhe permite transpor o estrito circulo confinado pelos estilos e
gêneros convencionais.
E, a não ser que o leitor passe a adotar uma outra forma de conduta, mais
afim com os objetivos de sua atividade e da própria profissão, esperará em vão
adquirir aquele grau de eficiência que se revela pelo completo domínio dos mais
variados estilos.
Os processos racionais de ensino devem opor-se aos preconceitos. A
aprendizagem da leitura, como toda e qualquer aprendizagem, deve, hoje, colocar-
se no campo oposto àquele em que se nutre a crença de que a eficiência se mede
pela capacidade de reproduzir fórmulas e modelos preestabelecidos. E, mesmo que
o leitor tenha estado sob a influência desses preconceitos, o estabelecimento de
novos laços associativos e novas reações, pode obter facilmente um aproveitamento
mais racional das suas reservas mnemônicas (RICCI, et al, 1916).
A psicologia nos ensina a ver todos os graus na variabilidade do
comportamento e em sua capacidade de adaptação a novas circunstâncias. Deve-
se, pois, substituir aquela atitude passiva, aqueles atos automáticos, por uma atitude
ativa caracterizada por atos inteligentes.
O que se deve procurar consiste numa maior atividade das faculdades
superiores do cérebro e percepção, uma vez que a leitura não depende apenas da
51

memorização de objetos e protocolos, mas sim, da capacidade de reconhecê-los


prontamente (a chamada percepção pronta). Todas essas faculdades devem entrar
em comunhão no ato de ler, afim de que o praticante adquira alto grau de
profundidade e agilidade pela apreensão rápida do significado dos símbolos.
Há duas formas de apreciar as atividades de aprendizagem:
Primeiramente, a reação do aprendizado se produz imediatamente e em grau
aproximado do automático. Isso não exige do leitor um esforço mental, ao contrário,
percebe-se uma redução e acomodação neste esforço, e a resposta consiste numa
reação habitual. Não se percebe, nesse caso, novas aquisições de conhecimento ou
criação, ou seja, é uma prova de eficiência muito relativa.
Não pode haver progresso apenas pela constância na realização dessas
reações automatizadas.
No segundo caso, o reconhecimento dos objetos se dá pelos traços comuns e
análogos que este apresenta com relação a experiências perceptivas anteriores; e é
esse reconhecimento que, precisamente, caracteriza a percepção e a criatividade,
além de puxar do praticante as informações necessárias ao reconhecimento dos
variados estilos musicais e de época. Ou seja, é indispensável o estímulo dado por
obras de uso não habitual, mas ecléticas em sua construção e harmonia.
Às vezes, nesse segundo caso, o tempo de reação se dá de forma um tanto
dilatada, mas esse fator é compensado pelo arcabouço mnemônico de cada um, que
é um resultado do próprio trabalho mental, o que corresponde a um aumento de
experiências causado pelo aumento de cabedal.
Evidentemente, esta última forma é que exibe atividade produtiva, como
exercício, e, por isso, deve estar na base de toda a aprendizagem.
Sem sombra de dúvida, o índice de progresso é medido pelo aumento de
cabedal, de conhecimentos. Portanto, quando esse aumento acontece dentro do
espírito da moderna pedagogia, ou seja, quando é um resultado de constante
aquisição de elementos novos e um material rico e vivo, bem diversificado, o
praticante é capaz de ampliar seus horizontes, saindo de um amontoado de blocos e
fórmulas uniformes, rígidos e inertes, e atingindo uma leitura livre de preconceitos e
restritiva.
Na prática, esta nova forma de apreensão de conhecimentos deve ser tomada
como ponto de partida para a enraização de uma nova didática de aprendizado.
52

A apreensão sistemática de elementos novos é condição essencial para que o


praticante se mantenha permanentemente numa atitude altamente receptiva, isto é,
em condição verdadeiramente aperceptiva (RICCI, et al, 1916).
Aperceptiva, diz-se, muito intencionalmente, e não perceptiva, tomando aí o
termo no sentido relativo à apercepção, segundo Herbart (filósofo e psicólogo
alemão, fundador da pedagogia como disciplina acadêmica), que a diferencia da
simples percepção; distinguindo ainda “idéias apercebentes”, que correspondem em
seu conjunto à experiência anteriormente adquirida e já inteiramente incorporada ao
patrimônio individual, e “idéias apercebidas”, aquelas que, pelos pontos de contato
ou traços comuns com as primeiras são por elas assimiladas (LARROIO, 1974).
Em fim, concluindo a ideia de “cabedal mnemônico”, esta assimilação dos
elementos fixados anteriormente é que se chama de “apercepção”. Aqui se tem um
fenômeno psíquico em que há a fixação definitiva da nova aquisição e assimilação
dos novos elementos na leitura, o que é completamente diferente da mera e simples
percepção sem maiores conseqüências, que não o automatismo.
Ainda segundo LARROIO (1974), essa “apercepção” é a responsável pelo
mecanismo da aprendizagem como sendo a grande mola propulsora de todo o
progresso.
Portanto, como meio de exercício, a apresentação ininterrupta de elementos
ainda não apreendidos e experimentados, impõe-se de forma natural e espontânea
durante o aprendizado da leitura dos mais diversos estilos. Isso é de fato importante
na distribuição lógica dos elementos de acordo com a natureza do material a ser
estudado, bem como conforme as condições individuais de quem os deve assimilar.
O programa de aprendizagem deveria ser encarado, portanto, sob dois
aspectos, quais sejam:
1) A adaptação do material segundo as necessidades impostas pelas
características individuais, ou seja, a adaptação do trabalho ao indivíduo (PEREIRA,
1937).
2) A preparação do indivíduo para o cabal desempenho do ato, ou seja, a
adaptação do indivíduo ao trabalho (PEREIRA, 1937)
Em seguida, no item 2.2, estudar-se-á a chamada “faculdade de síntese”, que
diz respeito à utilização da experiência adquirida, e, logo após, no item 2.3, o
“coeficiente individual” que, como mencionado, refere-se à capacidade que tem o
indivíduo na aquisição e reprodução, não só dos conhecimentos, mas,
53

principalmente, à capacidade de apreensão instantânea durante o ato da leitura à


primeira vista.

3.2. FACULDADE DE SÍNTESE

Talvez um dos aspectos mais importantes no que diz respeito à leitura refere-
se ao preceito segundo o qual o bom leitor deve ter sempre a atenção voltada para a
mão esquerda, e agir como se tivesse de realizar a harmonização do texto.
Se, por um lado, há um sentido interessante nestas palavras, uma vez que,
para se proceder realizando a harmonização do texto, o praticante ou estudante de
leitura necessita bons conhecimentos de harmonia e contra-ponto, por outro ângulo,
esse preceito, que conta ainda hoje com vários adeptos, vem caindo no ostracismo,
por impedir justamente um desenvolvimento muito mais amplo com relação a tantas
novas formas e estilos musicais contemporâneos, que vão muito além dos
parâmetros preestabelecidos no passado.
Segundo o professor do Instituto de Música de Lozana - Suíça, ESCMANN-
DUMUR (1888), autor da obra: Guia do Jovem Pianista, bem como dos estudos
técnicos Ritmo e Agilidade, Editora Alemã, sob o titulo: Schule der Klaviertechnik, a
leitura voltada para a mão esquerda está correta, como se pode perceber quando
assim se expressa (texto italiano, segundo RICCI (1916), em seu opúsculo Il
Pianista):

Per ben decifrare, bisogna possedere a fondo la teoria


de la musica, non leggere alcuna cosa senza averla
prima percorsa cogli occhi daum capo all’altro, e non
cominciar a suonare se no dopo aver osservato Il tono
nel quale Il pezzo é scritto. Importa, infine, di
concentrare l’attenzione principale sulla mano sinistra,
etc.5

Não é difícil definir o objetivo dessa conduta de Dumur.


Não se trata aqui de antever nas palavras do mestre suíço uma hipótese
inclinada a afirmar a existência de uma maior dificuldade na mão esquerda do que

5
(tradução do autor) A fim de decifrar claramente a partitura, devemos conhecer em profundidade a teoria da
música; não se deve tentar ler qualquer coisa sem antes ter dado uma olhada do início ao final do trecho, e não
começar a tocar sem primeiro haver observado o tom no qual a peça é escrita. O que importa, em fim, é
concentrar a atenção sobre a mão esquerda.
54

na direita, ou mesmo de existir apenas um modo correto de se proceder durante a


leitura. Mas sim, e como vários profissionais da área têm constatado ao longo de
seus trabalhos como co-repetidores, de demonstrar o fato de que fica o restante da
leitura extremamente lógico e de fácil percepção. Será mesmo?
Talvez o fundamento dessa idéia de que, a partir do acompanhamento, onde
normalmente nas reduções para piano, ou mesmo nas peças escritas para o próprio
instrumento, a linha do acompanhamento se dá na mão esquerda e, dentro da idéia
de que o pianista detém os conhecimentos necessários à prática do
acompanhamento, como análise, harmonia e contra-ponto, seja possível que Dumur
queira sugerir uma advertência ao leitor com respeito à necessidade de assimilar
fórmulas de acompanhamento.
Vale ressaltar, entretanto e em primeiro lugar, que é absolutamente
improvável haver maior dificuldade na mão esquerda do que na direita, em função
da perfeita adaptação de cada um das mãos ao seu objetivo, escrito pelo
compositor.
Em segundo lugar, tudo o que vem sendo descrito defende a premissa de que
a leitura moldada nos padrões antiquados é auto limitada, não contendo em si
ferramentas necessárias ao bom desenvolvimeto do próprio ato.
Finalmente, conquanto não apareça na idéia inicial de Dumur, (que afirma ser
preciso conhecer a fundo a teoria da música) – o que parece soar corretamente -,
apesar de não serem elencadas as espécies de matérias teóricas necessárias à
leitura, e, logo após, ainda segundo suas palavras, “concentrar as atenções
principalmente sobre a mão esquerda”, torna-se evidente não poder existir nenhum
conhecimento profundo da teoria musical onde não haja a ciência da harmonia.
É evidente que a preocupação sobre o movimento harmônico está
intimamente relacionada a uma atenção voltada constantemente para a mão
esquerda. Isto significa, nas entrelinhas, que o próprio leitor deve agir como se, ele
próprio tivesse que desenvolver a harmonização.
Essa acepção remete ao sistema de escolha, durante o qual parte-se do
simples para o todo, ou seja, da análise dos componentes desse todo para, em
seguida, recompô-lo. Ora, não deve ser preciso, durante o ato quase instantâneo
que corresponda à leitura à primeira vista, decompor para recompor, já que ela
própria, a leitura, resulta da mencionada “percepção pronta”.
55

Não há aí a coexistência de duas situações antagônicas, já que essa


chamada “percepção pronta” é justamente a capacidade que tem o individua de
reconhecer objetos ou símbolos prontamente, através de um labor mental não
automático? Só pode ter lugar a inovação, e até mesmo criação, a partir do
momento em que haja conhecimento prévio dos elementos componentes de um
todo para, assim, poder adaptá-lo e enriquecê-lo de acordo com as necessidades
durante a leitura.
E qual será a causa desse fato?
Quando se trata de leitura musical, tem-se confundido análise com síntese,
tomando a visão sintética ou visão de conjunto como resultante do processo de
síntese não analítica (RICCI, Vitório, et AL).
A percepção é a reação global a uma situação de conjunto, que poderá ser
objeto de análise ulterior, mas que não consiste em síntese intelectual de elementos
analíticos, impregnada de lógica, como todas as teorias clássicas da percepção
faziam crer. O agir humano se efetiva numa tríplice dimensão decorrente de serem
três as referências da visada e das relações que o homem busca estabelecer com
elas. Um primeiro ângulo é a existência prática, na qual o sujeito se dirige à natureza
física, seu primeiro ambiente natural, e estabelece uma relação de troca e
apropriações fundamental para sua sobrevivência. Por fazer parte da natureza,
impõe-se um permanente intercâmbio com esta para repor elementos físicos de seu
organismo (SEVERINO, 2001).
A reação perceptiva, quando se desenvolve sob forma associativa, pode
comportar análise seguida de nova síntese, mas resulta então de adestramento
especial.
Quando se é submetido repetidamente a trabalhos de introspecção, a
percepção se modifica se amplia, se retarda, se desenvolve, tornando-se um ato de
pensamento discursivo suscetível de justificar as teorias clássicas, tanto mais quanto
resulta de um verdadeiro adestramento regido pelas próprias teorias.
A percepção tende a ser modificada pelos trabalhos repetidos de
introspecção, aumentando sua profundidade e amplitude. E a observação e prática
constante dos vários modelos harmônicos que vão se modificando ao longo dos
anos, resulta na formação de toda uma série de percepções, onde cada uma delas
representa o duplo papel de reação e estímulo (SLOBODA, 1985).
56

Logicamente, a observação é algo completamente diferente da percepção.


Ainda de acordo com o professor AGUAYO (1936), em sua obra Pedagogia
Científica:
A separação das impressões e idéiasem dois grupos, umas
selecionadas e unidas entre si, e outras mais ou menos desligadas,
trás consigo um duplo processo de análise e síntese. O primeiro é
produzido pela repetição das impressões sensoriais nas diversas
fases da observação, e o segundo (a síntese), é resultado da
elaboração dos aspéctos ou detalhes observados. A análise e a
síntese se desenvolvem de modo contínuo e simultâneo, enquanto o
indivíduo observa novos detalhes ou particularidades no objeto
examinado. O resultado final da observação, ou seja, a síntese total,
costuma exprimir-se sob forma de juízo”.

A leitura é, sem dúvida, reação global a uma situação de conjunto. Se


caracteriza, portanto, pelo reconhecimento imediato do objeto. Resulta da
“percepção pronta”, e não da síntese intelectual de elementos analíticos, que é
mediata.
Por mais que o leitor possua perfeito domínio da harmonia, e possa formular
juízos e exercer uma crítica durante a execução, o ato de ler se faz
automaticamente, utilizando velhos caminhos mnemônicos, e não aquelas
faculdades de raciocínio e reflexão sobre detalhes da leitura, simplesmente pelo fato
de que não há tempo suficiente para tanto.
Compreende-se, portanto, nessas condições, que o leitor pode dirigir sua
atenção de modo exclusivo sobre a mão esquerda, caso isto constitua necessidade
de ordem secundária.
Segundo RICCI (1916) e seus colaboradores, “...a visão do leitor fica situada
num plano superior àquele em que se congregam os elementos primários,
interpretando-os a todos como pertencentes sempre a um conjunto ainda maior.
Entrando no seu campo visual – o símbolo gráfico – escala, arpejo, ou
qualquer outra configuração, apreende-lhe subitamente e de modo simultâneo o seu
duplo significado motriz e estético. A nota é absorvida pelo intervalo; este pelo
acorde; o acorde integra-se à tonalidade e esta, dilui-se na expressão estética. A
métrica como a rítmica são estruturas individualizadas no tempo. O processo motriz,
decorre ele de maneira inteiramente automática. E é essa visão sintética que lhe
permitirá caminhar velozmente por sobre uma infinidade de elementos os mais
diversos sem se deter a examiná-los ou considerá-los em seus detalhes”.
57

Esse é o ponto crucial do significado da boa e satisfatória leitura à primeira


vista. Mesmo detentor de imenso cabedal de conhecimentos musicais todos
extremamente indispensáveis à boa leitura, o co-repetidor não pode ater-se aos
detalhes mencionados, mas sim, compreender o todo da forma mais completa
possível, mas sem interferir na execução ou mesmo no trabalho que esteja
desenvolvendo o solista.
Entretanto, algumas lacunas são deixadas de lado, mesmo que não passem
despercebidas ao leitor. Basta observar, para isso, a mudança brusca de atitude
quando se depara com um erro de escrita, ou mesmo, quando o texto musical não
se apresenta com clareza – o que não é incomum. Normalmente, um bom pianista
acompanhador é capaz de compensar tais erros instantaneamente, sendo notável
observar a atenção com que ele fita o objeto, tentando recompô-lo em todas as suas
partes.
Esse é o exato momento em que ele pratica o duplo processo de análise e
síntese. Mas, a bem da verdade, se esses obstáculos começarem a surgir com
muita freqüência, a continuação da leitura ficará comprometida, pois trata-se de
operação complexa e precisará ser revisada, nesse caso, a partitura.
Há também situações em que o leitor se depara com símbolos e sinais
desconhecidos, raramente encontrados no objeto. Nesse caso, as mais variadas
reações se produzem, desde inibição ou retardamento do processo, ou mesmo
recriação dependendo do arcabouço e capacidade assimilativa do pianista.
Retomando o tema da atitude caracterizada pela convergência sistemática da
atenção sobre a mão esquerda, é importante frisar que esse hábito trás consigo o
inconveniente de tornar a leitura, de certa forma, “verticalizada”.
Esse aspecto habitua o leitor a apoiar-se por demasiado no acorde, o que trás
como resultado, com o tempo, uma incapacidade de adaptação aos vários estilos
polifônicos.
Desse modo, sempre que a análise da partitura apresente alguma dificuldade,
sua leitura torna-se bem cedo entediante em sua mobilidade harmônica.
A esse respeito, como se pode apreciar na figura 9 a seguir, o leitor pode não
conseguir se decidir a atacar os acordes independentemente da análise antecipada
da harmonia:
58

Figura 9.

Numa primeira olhada pode parecer ao leitor que o trecho da figura 9


apresenta a seguinte configuração:

Figura 10.

Mas, pelo contrário, se ele atacar decididamente o primeiro trecho,


representado pela figura 9, dar-se-á prontamente o processo de individualização,
que obrigaria o leitor a uma operação de decomposição e reconstituição do trecho,
ou seja, uma atividade de análise e síntese, muito lenta para obtenção de resultado
eficiente. Portanto, através dessa individualização, com o auxílio sempre da audição,
não somente da harmonia, como também de fragmentos melódicos e rítmicos já
experimentados pelo leitor, fará com que este perceba, instantaneamente, o trecho
representado pela figura 11, a seguir:
59

Figura 11.

Pode-se acrescentar a trama polifônica que será prontamente


percebida:

Figura 12.

O esquema rítmico, que pode ser observado pela figura 13:


60

Figura 13.

E, por fim, o esquema harmônico, como demonstrado na figura 14:

Figura 14.

3.3. COEFICIENTE INDIVIDUAL

Aqui, como uma das principais características da “fase associativa”,


relacionada à análise da “Reação com Escolha”, proposta pelo professor Antônio Sá
Pereira (1937), em sua obra Psicologia do ensino Elementar da Música, estudar-se-
á o mencionado “Coeficiente Individual”, que diz respeito à capacidade de aquisição
e reprodução do conhecimento.
O exercício da leitura, quando praticado de modo empírico, tem a tendência,
como vem sendo demonstrado, a colocar essa atividade em um plano muito próximo
61

do automatismo, em função da repetição constante de estímulos e características de


certa forma naturais, mas inflexíveis, qual seja, a análise pelo verticalismo.
O problema desse tipo de leitura inflexível é a imposição do aprendizado por
simples dogmatismo, que configura uma inadaptabilidade a novas situações, o que
representa fator que impede o progresso e causa o estacionamento.
Para a aprendizagem, esses são fatores contrários aos interesses e objetivos
ao ato de ler.
De fato existem dois grandes fatores comportamentais que se caracterizam
pela orientação ampla e bem dirigida no que diz respeito à mobilidade, amplitude e
adaptabilidade do praticante, e que resultam necessariamente na eficiência. O
primeiro caso consiste numa auto-orientação ampla e coesa da atividade, expressa
pela ação coordenadora e atuação interior; em segundo lugar, estabelece-se entre o
mundo interior e o exterior, o que é representado por um estado mental típico e
característico da pré-percepção: é a atitude alerta e receptiva (PEREIRA, 1937).
Pode-se inferir das sábias palavras do professor Sá Pereira o significado do
que seriam as condições essenciais que decorrem como conseqüência desse
comportamento e atitude:
1) O equilíbrio das aptidões, com relação ao referido comportamento, e
2) A perfeita distribuição da atenção, com relação à atitude (PEREIRA,
1937).
Todo o processo de atenção, que contém todas as aptidões necessárias ao
perfeito exercício do ato de ler, (e não somente a leitura verticalizada, onde a mão
esquerda mantém a base do desenrolar harmônico), poderia ser completamente
desarticulado na eventual desproporção entre essas aptidões.
Mesmo a carência ou desenvolvimento em menor grau de uma só delas,
forçaria o leitor a focar-se em um só sentido, a canalizar sua atenção de forma
deficiente, o que, por um lado, impediria a unificação e perfeita harmonia durante a
leitura, mas, por outro ângulo, demonstraria grande habilidade em utilizar sua
bagagem cultural de modo a sanar as dificuldades momentâneas.
Evidentemente, a prática constante da leitura à primeira vista concede, por
assim dizer, ao pianista, qualidades e as mencionadas aptidões indispensáveis ao
bom resultado e desenvolvimento da leitura. Entretanto, melhor seria, para evitar a
inibição motriz na execução e uma inexpressiva individualidade não bem definida e
integral que caracteriza um comportamento unificado e eficiente, o estudo detalhado
62

das características técnicas inter-relacionadas à leitura e à percepção apurada para


perceber essas técnicas.
Vale ressaltar ainda que a individualidade do leitor, (que nada mais é que o
conjunto de todo seu arcabouço técnico, cultural e artístico), não se exterioriza, ou
seja, não chega a assumir uma forma definida se houver descordenação dos
elementos atuantes no ato de ler. Ademais, o desequilíbrio causado pela ausência
de fusão das aptidões inerentes ao praticante da co-repetição, causa uma dispersão
de suas energias e desmoronamento do processo.
Veja-se, portanto, quais são essas referidas aptidões.
Em sua obra, PEREIRA (1937), nos dá uma discriminação na mais perfeita
ordem lógica dessas aptidões, e as distribui em duas secções:

APTIDÕES ADQUIRIDAS:
1. Conhecimento dos sinais empregados na música e rapidez e segurança na
leitura;
2. Conhecimento do teclado e facilidade em acertar teclas afastadas, sem
auxílio de vista;
3. Técnica, no sentido de perfeita coordenação de movimentos;
4. Controle auditivo.

APTIDÕES INATAS:
1. Rapidez de movimento;
2. Precisão de movimentos;
3. Rapidez de reação;
4. Facilidade de dissociação e de automatização dos movimentos;
5. Mão adaptada ao piano.
6. Ouvido (percepção da altura absoluta, ou, ao menos, da altura relativa do
som);
7. Senso rítmico;
8. Atenção distributiva
9. Audição mental (imagens auditivas nítidas);
10.E, por fim, Memória.
63

Todas essas aptidões têm a mesma importância no conjunto, como ficou bem
evidenciado e esclarecido anteriormente, quando se referiu à carência ou deficiência
de uma só dentre elas, representaria interferência no ato de ler.
Algumas dessas aptidões devem ser destacadas, pela freqüência com que
ocorrem na maior parte dos casos, mesmo entre leitores possuidores de boa
técnica.
São elas:
1) Conhecimentos teóricos – logicamente, o pianista que detiver em seu
arcabouço cultural a maior abrangência possível com relação aos vários estilos
musicais e formas de composição, encadeamento harmônico, capacidade de
contextualizar a obra no tempo e período em que foi concebida, além de fluência
técnica e domínio do instrumento, levará extrema vantagem dentro da maioria das
peças musicais. Isto significa deter conhecimentos desde os primórdios da notação
musical, que se deu por volta do século IX, até os mais modernos e contemporâneos
símbolos de notação musical.
Apenas por curiosidade, foi a necessidade de manter as melodias criadas
sobre as letras nos cultos religiosos do referido século IX, para que as músicas não
fossem literalmente esquecidas, que deu origem aos primeiros símbolos que
sugerem uma notação musical, como pode ser observado nas figuras a seguir:

Figura 15.
64

Aqui, na figura 15, percebe-se a importância fundamental da letra em relação


à escrita musical, que funciona apenas como pequeninos lembretes;
Como a notação musical sempre procurou acompanhar as mudanças que
ocorreram no processo de criação musical e isso continua a acontecer, no século
20, foram criadas representações gráficas dos sons diferentes das que existiam até
então. Isso ocorreu por conta dos novos efeitos sonoros e das novas formas de
explorar os instrumentos musicais que surgiram na época. De um modo geral, as
representações gráficas inventadas no século passado costumam dar maior
liberdade ao intérprete da música e o convidam a improvisar, como demonstrado a
seguir (PALISCA, 2007):

Figura 16.
Na primeira pauta, correspondente à figura 16, as alturas e durações dos
sons de uma melodia foram escritas da forma tradicional; na segunda, de uma forma
diferente, criada pelo compositor. Suíte mirim para piano, de Ernst Widmer (1927-
1990).
O pianista co-repetidor precisa ser detentor do conhecimento de todos esses
símbolos, desde a mais antiga até o que há de mais moderno no que diz respeito à
notação musical, isso o ajudará a introjetar em seu processo de leitura a
necessidade de adaptação ao novo, ao inesperado, e lidar com isso sem inibição.
2) Senso de localização – não apenas uma leitura do ponto exato onde
se encontra a execução, mas, principalmente, da posição que este ponto ocupa
diante do todo, bem como em relação ao que virá em seguida. Dessa forma,
possíveis problemas de dedilhado, harmonia, colocação das mãos sobre o teclado,
dinâmica, compasso e modulações poderão ser sanados antes mesmo de
acontecerem;
65

3) Rapidez de reação – que nada mais é que a capacidade de lidar com


situações inesperadas, como um erro cometido pelo solista com quem toca o co-
repetidor, que obriga-o a esperar, retornar ou mesmo avançar na partitura, sem que
se deixe perceber, dentro do possível, o público para quem se toca.
4) Atenção distributiva - vale ressaltar seu significado implícito, qual
seja, a capacidade de focalizar a partitura e seus símbolos não em mínimos
detalhes, mas no todo, na idéia principal que contém. Isso permitirá ao pianista
executar de primeira vista ao menos um esboço competente também das passagens
mais complexas.
Torna-se indispensável mencionar as palavras de Vittorio Ricci (1916) e seus
colaboradores, profundamente esclarecedoras da distribuição lógica das dificuldades
enfrentadas pelo praticante.
Diz ele:

Na aprendizagem da leitura, toda a preocupação, toda a


atividade e até mesmo seus últimos objetivos, giram em torno da
apresentação de algo que não se conhece, e que se deverá
identificar subitamente.
Na verdade, um objeto totalmente desconhecido em todos os
seus elementos, de modo algum poderia ser reconhecido
repentinamente.
O “novo absoluto” não pode ser assimilado, pela falta de
elementos de ligação com os elementos já conhecidos e
incorporados ao patrimônio individual. O “novo” nestas condições
escapa à toda espécie de percepção.

No caso da leitura à primeira vista, quando se diz “algo desconhecido” ou


mesmo o “novo absoluto”, como mencionou RICCI, não significa que o conjunto de
elementos diversos em seus caracteres essenciais seja desconhecido pelo leitor. O
que pode surpreendê-lo é tão somente a forma ou configuração com que se
apresenta na partitura.
É possível identificar, portanto, três fases distintas no processo didático
relacionadas ao que seria o “elemento novo”:
1) Análise e subdivisão das dificuldades a serem propostas;
2) O modo como apresentá-las; e
3) As condições individuais de quem as deve assimilar.
66

No caso da análise e subdivisão das dificuldades, poder-se-ia fazer uma


analogia com a matemática simples, afirmando que, uma dificuldade na leitura
corresponde à proposição de um problema; problema este que poderá ser de ordem
rítmica ou de natureza técnica.
A solução das dificuldades de ordem puramente interpretativa, que abrangem
problemas de dinâmica e estilística, não dependem tanto das aptidões relativas à
leitura à primeira vista, mas sim, daquelas que representam a base de toda a
organização individual e, de fato, pode-se dizer, verdadeiramente artísticas: cultura,
“gosto”, talento – ou seja, características que não podem ser mensuradas, com
exceção da cultura (BENJAMIM, 1997).
Com relação aos problemas de ordem técnica, podem-se mencionar as
dificuldades provenientes da fidelidade na reprodução dos efeitos sonoros em
correspondência com as indicações textuais; e ainda, aquelas relativas aos
princípios elementares de fraseado e uso do pedal.
Ainda sobre as dificuldades de ordem técnica, estas devem ser elencadas e
classificáveis de acordo com as possibilidades máximas do praticante.
Dentro da técnica pianística, essas classificações precisam orientar-se de
acordo com a espécie ou gênero musical a que pertencem. Podendo estar
relacionadas com o dedilhado, com a flexão e extensão das mãos e pulsos, ou com
o posicionamento e correta utilização do polegar, mão e ante-braços.
As dificuldades apresentadas podem também estar relacionadas com a
velocidade dos movimentos (passagens rápidas com extensão da mão e passagem
do polegar; cruzamento das mãos), saltos (localização) e incontáveis aspectos que
são um resultado de todos esses movimentos.
Há também aquelas dificuldades provenientes da falta de hábito com certas
tonalidades menos freqüentes.
As dificuldades de natureza rítmica são as que, normalmente, oferecem maior
problema ao praticante.
Há quem confunda a ausência de senso rítmico com dificuldade de “divisão”.
O ritmo é coisa que o indivíduo “sente” independente de qualquer esforço ou
análise, e esta capacidade de sentir é relativa ao grau de musicalidade do indivíduo
(TACCHINARDI, 1926).
Evidentemente a dificuldade está na apreensão do sentido rítmico expresso
pelos símbolos gráficos e no estabelecimento da justa relação entre os valores. E,
67

nesse caso, ainda que o indivíduo possua o senso rítmico, não será capaz de
traduzir ao vivo as figuras musicais, sem que tenha sido prévia e suficientemente
“musicalizado”. E assim, pode-se distinguir musicalidade – dom natural, que, como
qualidade inata, pertence ao domínio do subconsciente – e musicalização – que é o
cultivo daquela qualidade pelo conhecimento da música, que, como atributo
adquirido, pertence ao domínio da mente consciente. Onde não há senso rítmico, a
educação musical torna-se problemática, senão impossível (SÁ PEREIR, 1937).
A respeito das condições individuais, é de caráter prioritariamente racional a
prática pedagógica do exame prévio das aptidões do leitor. Essa prática tem como
objetivo a economia de energias e de tempo, e solidez no progresso da
aprendizagem.
O conhecimento das deficiências em suas aptidões dá ao leitor a
oportunidade de inteirar-se das causas de seus impedimentos e, assim, procurar os
meios para habilitar-se.
É importante frisar a necessidade da realização de testes de leitura,
começando com partituras que apresentem texto relativamente equilibrado em suas
características técnicas e também aquém das capacidades do indivíduo para, aos
poucos, proceder com o aumento das dificuldades na leitura. Só assim terá êxito o
exercício, pois apontará instantaneamente, quando aparecerem, as deficiências do
leitor.
Há testes específicos, mas simples, que visam averiguar as diversas
dificuldades que enfrentará o pianista no ato da leitura. Se, por exemplo, num teste
destinado a analisar a coordenação motora, sem o acréscimo de dificuldades de
outra ordem, ocorrerem interrupções freqüentes, a ponto de impedirem o processo
de leitura, isto significa que as causas do problema podem ser de ordem fisiológica,
orgânica portanto. O que às vezes acontece é que as causas da interrupção na
leitura estão intimamente relacionadas ao processo de musicalização pelo qual
passou o praticante; esta lacuna no aprendizado pode, (somente no que concerne à
leitura), até certo ponto, ser remediada pela leitura metódica de exercícios de solfejo.
No próximo exemplo, representado pela figura 17, o estudante pode não ser
capaz de reproduzir ao piano o ritmo do texto. Entretanto, o problema pode ser
facilmente solucionado quando é solicitado ao aluno solfejar metricamente o trecho
(TACCHINARDI, 1926):
68

Figura 17.

Este interessante método é capaz de demonstrar a deficiência no preparo


teórico e aprendizado do estudante. Só por meio de testes apropriados pode ser
feita com segurança e precisão a avaliação das aptidões do aluno (TACCHINARDI,
1926).
Apenas para esclarecer ainda mais o objeto do exercício acima, a leitura
rítmica de apenas uma clave não envolve as capacitações necessárias que deve ter
o co-repetidor, que precisa ser capaz de enxergar, de primeira vista, ambas as
claves, ou até mesmo uma terceira ou quarta claves, no caso de estar tocando para
cantores ou mesmo na música de câmara, e “ouvir” internamente, por assim dizer, o
resultado do todo; deve até mesmo ser capaz de perceber as letras que cantam,
quando for o caso.
O próximo exemplo, figura 18, funciona muito bem para a avaliação do senso
de localização ao teclado, justamente por ser de uma simplicidade extrema: um salto
qualquer a ser efetuado sem o auxílio da vista (TACCHINARDI, 1926):
69

Figura 18.

Testes como os apresentados a seguir, figura 19, são muito eficazes para a
apreciação da atenção distributiva, (dedilhado, ritmo e coordenação motora):

Figura 19.
Ou:

Figura 20.
70

A par dessas informações, pode-se inferir que o processo de aprendizado na


leitura atravessa várias fases até atingir seu ápice, como durante o preparo de
cantores através da leitura de uma grade orquestral, feito pelo pianista especialista
através de seu arcabouço e bagagem culturais, técnicas e extrema facilidade de
percepção, além das várias qualidades e aptidões citadas e desenvolvidas ao longo
do texto.
Quanto mais rápida é a fase associativa do indivíduo, maior será sua
eficiência na leitura. Isso pode ser denominado “tempo de reação”.
Vários testes podem ser desenvolvidos para avaliação desse tempo de
reação, e são eles os que, de fato, revelam o grau de capacidade e eficiência
individual. Podem ser extraídos do repertório pianístico ou compostos
especificamente para a observação ou prática de determinado aspecto técnico, e
devem apresentar dificuldades de diversas ordens.
71

CAPITULO 4
TRANSPOSIÇÃO AO PIANO

Por transposição musical, se entende o ato de executar ou escrever


determinado trecho, elevando-se ou abaixando-se a um intervalo determinado, a
tessitura do trecho em questão.
Transportar significa ajustar um trecho musical à tessitura do instrumento ou
voz que o irá executar.
A capacidade de transposição ao piano, portanto, deve ser atributo do
pianista, seja ele solista ou acompanhador.
Os maiores mestres do piano recomendam a transposição desde as escalas,
em todos os tons, maiores e menores, conservando o dedilhado da escala de Dó
Maior, assim como aconselham o mesmo com os arpejos.
É importante assinalar também que os mais famosos métodos e exercícios
adotados no mundo inteiro, tais como os de Liszt, Tausing, Pischna, Joseffy,
Beringer, Phillip, etc., exigem a transposição nas diversas tonalidades. A mesma
aplicação é encerrada em trechos escolhidos de acordo com as necessidades do
aluno, em estudos como os de Chopin, Czerny, Cramer, Kessler, Moscheles, etc.,
por mestres do porte de Hans Von Büllow, J. Phillip, Vianna da Mota e Busoni.
Nas tão conhecidas edições de Alfred Cortot, em todas as indicações
referentes ao “método de trabalho”, por exemplo, encontra-se sempre esta
recomendação: “em todos os tons”.
No prefácio de sua edição dos estudos de Cramer, o célebre pianista Hans
Von Büllow, chegou mesmo a declarar: “... um bom pianista deve ser capaz de toca
a “Appassionatta” tão bem em Fá menor como em Fá sustenido menor”.
Vale ressaltar a importância fundamental, o papel decisivo, a utilidade real e
prática que a transposição desempenha para bom desenvolvimento do pianista,
além de colaborar como fator importante ao aprimoramento técnico musical.
Parece oportuno recordar o que conta a famosa estória da visita do pequeno
Liszt, à época aluno de Carl Czerny, à Beethoven SEARLE, (1966):

“... enquanto Czerny não deixava de elogiar


perante Beethoven, o talento de seu discípulo,o surdo e
ensimesmado compositor não parecia
72

demonstrar qualquer interesse pelo menino prodígio.


Somente quando Adam, pai de Franz, se decidiu a
mudar-se, junto com seu filho para Paris,atraído por seu
prestigioso Conservatório, e quando, para despedir-
se de Viena, Franz ofereceu dois concertos, Beethoven
esteve de acordo em recebê-lo. Acompanhado por
Czerny, Franz Liszt visitou o velho músico, que o
recebeu com grande indiferença, negando-se escutá-lo
e apenas permitindo que se aproximasse do piano após
insistentes pedidos. Segundo relato do próprio Liszt,
começou a executar o Prelúdio e Fuga em Dó menor de
Bach. Mas só quando Beethoven o pediu que repetisse
o Prelúdio em outra tonalidade, o que o jovem atendeu
prontamente e sem dificuldades, o grande compositor
se interessou e prometeu assistir ao seu segundo
concerto. E foi nesta oportunidade que se passou a
famosa estória que marcou um importante momento na
carreira do pequeno gênio húngaro. Beethoven, que já
não podia ouvir a execução, via como o rapaz dominava
o piano e isso foi suficiente para ele. Comovido, subiu
ao palco depois de terminado o concerto, e, sob os
entusiasmados aplausos do público, deu um beijo na
testa do pequeno virtuoso, consagrando-o com esse
gesto tão espontâneo e simbólico”.

Ora, se um grande mestre como Beethoven deixou bem clara a importância


que dava à capacidade de transportar ao piano, pareceu indispensável abordar o
assunto cuidadosamente.
Como se sabe, no acompanhamento ao piano, a capacidade de transportar é
indispensável, para não dizer vital.
Deveria ser função do professor de piano ensinar também transposição e as
técnicas de acompanhamento. Para tanto, um dos exercícios de maior eficácia para
o desenvolvimento da transposição lida é a anotação das mudanças de harmonia.
Nas obras clássicas, o aluno cedo compreenderá que a fórmula: tônica –
subdominante – dominante – tônica, descreve a circunferência habitual do curso
regular da harmonia. Deve o aluno marcar com as iniciais “T” (tônica), “S”
73

(subdominante), etc., a “marcha” da harmonia. Através deste trabalho, chegará a


compreender melhor o setor da modulação, verificando que esta nada mais é senão
a transição de um tipo de marcha harmônica, própria de um determinado tom, a um
outro tipo, próprio de outro tom, transição esta que costuma realizar-se pela
intervenção de um acorde comum a ambos os tons, ou mediante a alteração que se
pratica em um acorde do primeiro tom, e o transforma em um acorde de outro tom
(RIEMANN, 1913).
O estudante perceberá também o fato de que a subdominante costuma ser
acompanhada, muitas vezes, de uma sexta adjunta ao acorde, e a dominante, de
uma sétima. São estes aspectos que, devidamente anotados e observados,
concorrerão para um completo êxito na conquista do aprendizado da transposição
lida ao piano (ELBERT, 1961).
Demonstra-se, pois, evidente, a relevância do tema em questão,
correspondendo não apenas a uma pequena parcela dentro do vasto universo que
compreende a arte do acompanhamento, mas uma porta que se abre, quando
dominada, que facilita a execução do trabalho. A transposição é fator importante,
mas, ao mesmo tempo, é também um resultado de anos de prática de co-repetição,
e se desenvolve naturalmente com o tempo.
Mesmo assim, há algumas técnicas e informações relevantes que podem vir
a ser utilizadas pelos transpositores, e que devem, sob o ponto de vista do autor, ser
estudadas.

4.1. ESPÉCIES E TÉCNICAS DE TRANSPOSIÇÃO

Há duas espécies de transposição: a Cromática e a Diatônica.


A Transposição Cromática é efetuada à distância de meio tom, tendo por
base o semitom cromático. Não há, nesse caso, necessidade de substituição das
claves, a elevação ou abaixamento da tonalidade resulta da mudança da armadura,
que, por sua vez, empresta significação diferente aos acidentes acessórios. Assim,
estabelecida a armadura do novo tom, elevam-se cromaticamente todos os
acidentes acessórios se a transposição for superior, ou abaixam-se
cromaticamente se a transposição for inferior (MAUL, 1977).
A Transposição Diatônica é a que se efetua a qualquer intervalo do tom
original. Aí, substituem-se as claves e a armadura, trocando-se também, a
74

significação de alguns ou de todos os acidentes acessórios. A substituição das


claves provoca, naturalmente, o deslocamento da escala. As claves de substituição
servem, nesse caso, para indicar o nome das notas, independentemente da sua
verdadeira localização nos respectivos registros (MAUL, 1977).
Isso traz à tona considerações de importância fundamental à prática da
transposição, como se pode observar na figura 21, abaixo, que representa o
uníssono nas diversas claves:

Figura 21.

A figura 22, abaixo, demonstra a utilização das claves na transposição,


observando a altura dos sons:

Figura 22.

A figura 23, abaixo, demonstra como encontrar a clave na mão direita:

Figura 23.
75

Uma vez encontrada a clave na mão direita, procura-se a da mão esquerda,


segundo o gráfico seguinte, que exibe a formação dos pares de claves (figura 24):

Figura 24.

Aplicação dos pares de claves segundo o intervalo do transporte; deve-se


praticar a leitura nas várias claves para se obter resultado satisfatório no ato da
execução de primeira vista, figura 25, abaixo:

Figura 25.

Na transposição ao piano, o processo que melhor se aplica à necessidade de


rapidez consiste em considerar-se sempre o intervalo dado em relação a Dó maior.
Por exemplo, na transposição de Si Maior, com cinco sustenidos na
armadura, para Sol Maior, com um sustenido, verifica-se que há quatro sustenidos a
menos, o equivalente a quatro bemóis a mais; ou seja: quatro acidentes acessórios
abaixados na ordem dos bemóis. Ora, a operação será mais simples se
considerarmos apenas o intervá-lo, e este, em relação a Dó Maior, isto é, como se
partíssemos de Dó Maior para uma terça Maior inferior, como se pode inferir nas
figuras 27, 28, 29, 30 e 31, abaixo (MAUL, 1977):
76

Figura 27.

De acordo com a figura 27, quatro notas são abaixadas na ordem dos bemóis,
ou seja, na transposição, quatro acidentes acessórios abaixados na ordem dos
bemóis.

Figura 28.

Aqui, na figura 28, são seis acidentes acessórios abaixados na ordem dos
bemóis.
77

Figura 29.

Aqui, na figura 29, são cinco notas elevadas na ordem dos sustenidos, isto é,
cinco acidentes acessórios elevados na ordem dos sustenidos.

Figura 30.

Na figura 30, acima, três acidentes abaixados na ordem dos bemóis.

Figura 31.

Na figura 31, são seis os acidentes elevados na ordem dos sustenidos.


Como acontece com freqüência a apresentação dos seguintes transportes,
seria interessante que o estudante procurasse fixar as respectivas mudanças nos
acidentes acessórios:

Superiores:
78

1. 2ª m – 5 acidentes abaixados na ordem dos bemóis;


2. 2ª M – dois acidentes elevados na ordem dos sustenidos;
3. 3ª m – três acidentes abaixados na ordem dos bemóis;
4. 3ª M – quatro acidentes elevados na ordem dos sustenidos.

Inferiores:
1. 2ª m – cinco acidentes elevados na ordem dos sustenidos;
2. 2ª M – dois acidentes abaixados na ordem dos bemóis;
3. 3ª m – três acidentes elevados na ordem dos sustenidos;
4. 3ª M – quatro acidentes abaixados na ordem dos bemóis.

Há duas circunstâncias que condicionam o ato de transportar:


1. Transportar após a execução no tom original;
2. Transportar à primeira vista.

A memória auditiva pode prestar grande auxílio ao transpositor, porque fixa a


sucessão dos elementos, pela simples sequênca sonora, memória tátil ou motora,
que dá a orientação chamada “cinestésica” – o mesmo que propriocepção, ou seja,
a sensibilidade dos movimentos – e fixa a ordenação dos elementos estruturais,
especialmente os relativos à harmonização (ELBERT, 1961).
A transposição de um trecho já conhecido pode ser feita sem a mudança de
claves, ou seja, dispensa mesmo um conhecimento aprofundado das claves. A
maneira ideal de transportar consiste em dominar-se inteiramente o trecho em
questão, ao ponto de ser capaz de tocá-lo de cor, e, em seguida, executá-lo noutras
tonalidades (RIEMANN, 1913).
No entanto, isso não se refere à transposição à primeira vista. Esta sim tem
de ser considerada de modo cuidadoso e especial, em função da freqüência com
que se impõe ao acompanhador.
Nesse caso, a transposição deve ser feita através, ao menos, do domínio dos
intervalos mais usuais, como os de segunda e terça.
A transposição à primeira vista ao piano ou outro instrumento apresenta
dificuldades consideráveis. O único meio realmente bom para efetuar-se qualquer
espécie de transposição consiste em mudar a significação da pauta. E ainda, a falta
mais grave que se possa cometer, na prática da transposição, consiste em ver-se
79

constantemente a notação primitiva, procurando-se a todo custo mudar-lhe a


significação, donde resulta um movimento paralelo e contínuo de duas tonalidades
heterogêneas (RIEMANN, 1913).
À exceção dos intervalos aumentados e diminutos, todos os demais podem
ser prontamente, sob o ponto de vista teórico, realizáveis com base nos gráficos
relativos à formação e utilização dos pares de claves e troca de acidentes
acessórios (ELBERT, 1961).
A transposição a intervalos aumentados e diminutos apresenta geralmente
sérias dificuldades. Por esta razão, não pode o pianista transpositor deixar de
praticá-los, visto que, com muita freqüência, a transposição a um tom, um tom e
meio e a dois tons de distância, não se faz, na prática, à base de segunda maior
(2ªM), terça menor (3ªm) e terça maior (3ª M), mas sim, pelos enarmônicos desses
intervalos, evitando-se assim, a formação de alterações duplas na armadura de
clave (MAUL, 1977).
Observam-se, pois, os exemplos abaixo, relativos aos intervalos de um tom,
um tom e meio e dois tons, conforme figuras 32 e 33:

Figura 32.
80

Figura 33.

A partir desse momento, será extremamente enriquecedor apresentar uma


série de estudos científicos relacionados ao registro do movimento dos olhos,
realizado pelo Laboratório de Psicolinguística da Universidade de Lisboa, que
constituem fonte riquíssima para os pianistas que já realizam ou acabam de se
lançar no mundo do acompanhamento.
No próximo capítulo, estudar-se-á também, além das conclusões de tais
pesquisas e dos processos cerebrais envolvidos na leitura e aprendizado humano,
várias pesquisas realizadas pelos Drs. SLOBODA, (2005), LEHMAN e
MCPHERSON, (2002), WATERS; TOWNSEND; UNDERWOOD, (1998), WRISTEN,
(2005) e FURNEAUX; LAND, (1999).
81

CAPITULO 5
OS MOVIMENTOS OCULARES NA LEITURA MUSICAL

O movimento ocular na leitura musical é o esquadrinhamento de uma


partitura pelos olhos de um músico. Isto geralmente ocorre à medida que a música é
lida durante uma performance, embora músicos muitas vezes leiam uma partitura
silenciosamente para estudá-la e algumas vezes executem sem partitura.

O fenômeno tem sido estudado por pesquisadores das mais diversas áreas,
incluindo psicologia cognitiva e educação musical. Tais estudos têm tipicamente
refletido a curiosidade acerca do processo central da arte de um músico executor, e
uma esperança de que a investigação do movimento ocular possa ajudar no
desenvolvimento de métodos mais efetivos de treinamento da habilidade de leitura à
primeira vista.

Durante a leitura os nossos olhos não se movem de forma regular do princípio


ao fim da linha, mas antes por pequenos saltos “sacadas” a que se seguem
pequenas pausas “fixações” (JAVAL, 1878). Este constituiu o primeiro estudo do
movimento dos olhos na leitura de que se tem registro, realizado pelo oftalmologista
francês Émile Javal.
A seqüência de saques e fixações dos olhos, bem como as demais tarefas
oculomotoras, constituem dos aspéctos centrais da leitura musical. Os “saques” são
movimentos rápidos feitos pelos olhos de um local a outro da partitura; os “saques”
são separados uns dos outros pelas “fixações”, durante as quais os olhos
permanecem relativamente estacionários na página. Estabeleceu-se que a
percepção da informação visual ocorre quase inteiramente durante as “fixações” que
muito poucas informações são obtidas durante os “saques”. “Fixações”
compreendem cerca de 90% do tempo de leitura musical, tipicamente com duração
média de 250 a 400ms (RAYNER, 1998).

Paralelamente ao ensino da leitura musical através dos movimentos oculares,


é preciso entender quais os fatores que interferem nesse processo. Dessa forma, os
educadores poderão compreender a habilidade e estabelecer estratégias realistas
para seu aprimoramento. Fixação, movimentos sacádicos, fóvea e parafovea são
quatro elementos básicos da visão.
82

Sabe-se que uma pessoa não pode capturar tudo o que acontece ao seu
redor por meio da visão. Existe um campo visual que pode ser comparado ao que
uma câmera filmadora consegue captar. Embora todos os elementos de um
ambiente sejam percebidos e estejam presentes nas imagens capturadas, apenas
uma parcela dele é focada de cada vez. A área focada é chamada de fóvea
enquanto o restante da imagem ao redor dela é conhecida como parafovea
(LEHMANN; MCPHERSON, 2002). A fóvea, durante o processo de leitura, tem
cerca de uma polegada de diâmetro (HODGES, 1992; SLOBODA, 1985), extensão
equivalente ao círculo apresentado na figura 34, abaixo:

Figura 34.

Esta ilustração representa a região correspondente à área focal.


Um dos primeiros fatores estudados em LMPV (leitura musical à primeira
vista) é o movimento dos olhos enquanto se lê (GABRIELSSON, 2003; HODGES,
1992).
Os mecanismos do sistema de movimento do olho operam para dar ao leitor
uma série de flashes de imagens (conhecidas como fixações) como círculos
(SLOBODA, 1985).
O sistema de movimentação ocular nos permite obter uma série de
fragmentos de imagem em forma de círculos. É função do cérebro reconstruir as
informações. Os termos “fixação” e “movimentos sacádicos” (sacadas) são utilizados
para descrever o momento em que o olho pára em uma informação gráfica e o
movimento até a próxima informação, respectivamente. Existe uma variação de
tempo para o período de fixação que é de 100 ms a 500 ms e de aproximadamente
50 ms para a sacada (HODGES, 1992; SLOBODA, 1985).
83

Parece existir relação entre a quantidade de fixações e sacadas com o nível


de leitura dos indivíduos. Por exemplo, leitores mais habilidosos realizam mais
fixações durante a leitura musical.
Os movimentos sacádicos podem variar de acordo com o material que está
sendo lido e de acordo com o instrumento para o qual a partitura foi escrita. Por
exemplo, as músicas para piano são escritas em duas claves (linhas) e cada mão é
responsável por tocar uma delas. A distância entre as linhas e o desenvolvimento
harmônico e melódico da música na vertical não oferecem condições para que os
pianistas vejam as duas linhas em uma mesma sacada. Dessa maneira, o leitor é
obrigado a alternar as fixações dos olhos para as duas partes. Alguns resultados
sugerem que a quantidade de alternância entre as linhas parece depender da
relativa distribuição de notas, com mais fixações dirigidas à linha que tem a maior
quantidade de informação (FURNEAUX; LAND, 1999).
O movimento ocular na leitura da música é um fenômeno extremamente
complexo que envolve um grande número de questões não-resolvidas na psicologia
humana, e que requer intrincadas condições experimentais para a produção de
dados utilizáveis. Apesar de cerca de 30 estudos nesta área ao longo dos últimos 70
anos, pouco se sabe sobre os padrões existentes no movimento dos olhos na leitura
musical.

Portanto, os movimentos não correspondem a um comportamento meramente


fisiológico.

As Sacadas eFixações são indicadores das operações mentais complexas


que têm lugar durante o processamento da informação; além disso, permite ao
indivíduo verificar se existem ou não dificuldades no processamento da informação.

De acordo com as figuras 35 e 36, abaixo, torna-se possível conhecer melhor


as características e detalhes do olho humano e suas peculiaridades. A figura 35
mostra com maior nitidez e riqueza de detalhes o complexo do olho e absorção da
luz. A 36, serve como uma legenda visual para uma melhor compreensão do que
será explicado. Após a apresentação das partes mais importantes do olho, serão
explanadas suas interrelações com a leitura:
84

Figura 35.

Figura 36.
85

LEGENDA:
1. A córnea é a região mais anterior do olho, representada na figura 35 pela
“meia lua” amarelada, mais à direita;
2. A íris é a região esbranquiçada do olho; na figura 35 é apresentada como
a região entre a córnea e o cristalino;
3. A retina é a membrana mais interna do olho; possui células
fotossensíveis, pigmentadas e nervosas, representada na figura 35 na
região correspondente à parte posterior do olho, em azul;
4. A pupila é o pequeno orifício situado na íris; zona do olho por onde entra
a luz (dilata-se ou contrai-se de acordo com a intensidade da luz);
5. Dentro da retina há os cones e os bastonetes, representados na figura 35
pela ampliação à direita da figura; os primeiros são responsáveis pela
nitidez e riqueza de detalhes; os bastonetes, por sua vez, são
especializados na visão com baixa luminosidade;
6. A fóvea, uma zona pequeníssima da retina, é responsável pela visão da
cor, movimentos e detalhes.

SENSAÇÃO VISUAL

A luz, (imagem), entra pela pupila e é projetada de forma invertida na


retina, onde é convertida em impulsos elétricos; os impulsos elétricos, por sua vez,
são transportados pelo nervo ótico para o cérebro, conforme as figuras 37 e 38:

Figura 37.
86

Figura 38.

Torna-se importante entender o significado do espaço abrangido pela


visão, quando se fixa um ponto, para a compreensão do que ocorre quando do ato
da leitura. Este espaço designa-se campo visual, e pode ser dividido em três zonas:
1. Foveal (Fóvea) - que capta a informação mais relevante do estímulo;
portanto, corresponde a ¾ da área de fixação na leitura;
2. Parafoveal (Paravóvea) – capta a informação “em volta” do estimulo,
mas que ainda é visível;
3. Periférica (Perifóvea) – aquela que se vê como uma nuvem, pouco
clara, de onde não se extrai informação relevante para a leitura.

A tabela abaixo, figura 39, denominada “Tabela de Rayner”, demonstra a


duração média de fixação e amplitude das sacadas em diferentes tarefas:

TAREFA DURAÇÃO MÉDIA DE TAMANHO MÉDIO DA


FIXAÇÃO (ms) SACADA (graus)
Leitura da Música 375 1
Leitura Silenciosa 225 2 (cerca de 8 letras)
Leitura em Voz Alta 275 1.5 (cerca de 6 letras)
Percepção de Imagens 330 4
Busca Visual 275 3
Datilografia 400 1 (cerca de 4 letras)

Figura 39.
87

Também de acordo com JUST e CARPENTER (1980), o tempo de fixação


varia de acordo com a dificuldade do processamento. Verificando as variações nas
durações das fixações, estabeleceram-se dois corolários de investigação:

1. Immediacy assumption – assim que uma palavra é encontrada é


interpretada imediatamente (Immediacy = urgente; assumption – do latim assumptio
= recebimento; portanto, traduz-se a expressão inglesa como: “recebimento
imediato” ou “percepção imediata”);

2. Eye-mind assumption – o olho mantém-se fixo na palavra até que


esta seja processada, isto é, mantém-se fixo na palavra ou região das notas até que
a mente o processe.

Concluíram, então, que nem todas as palavras do texto são fixadas, apesar
de serem processadas. Isto indica que se extrai informação de outras palavras para
além da palavra fixada, ou seja, a apreensão do conhecimento das palavras ou
figuras já processadas é perpetuada; o cérebro é capaz de armazenar a informação
para utilizá-la sempre que presente novamente.
Ao se realizar qualquer leitura existe uma distância entre o que se está
reproduzindo e o que se está olhando. Essa diferença de tempo entre a entrada
(estímulo) e a saída (resposta) é chamada “distância perceptiva” (LEHMANN;
MCPHERSON, 2002; WRISTEN, 2005).
Em música instrumental o termo mais utilizado para essa distância é eye-
hand span e em canto eye-voice span. FURNEAUX e LAND, (1999), apresentam
duas possibilidade para medir o eye-hand span. Este atraso da performance, o
“eye-hand span” (EHS), pode ser medido de duas maneiras: como o tempo de
atraso da fixação à performance ou como o número de notas entre a posição do olho
e a performance (FURNEAUX; LAND, 1999).
Estudar o eye-hand span (EHS) tem demonstrado diferenças significativas
entre leitores com mais e menos habilidade. Leitores mais habilidosos demonstram
maior EHS (SLOBODA, 2005, 1985; LEHMANN; MCPHERSON, 2002).
Um maior EHS dará mais tempo ao músico para decidir e organizar a sua
performance. Alguns resultados indicam que leitores mais habilidosos realizam mais
88

“fixações”, ou seja, eles capturam mais flashes de imagens (WATERS;


UNDERWOOD, 1998).
Alguns pesquisadores observaram nas performances de leitores mais
habilidosos a presença de “sacadas regressivas” (FURNEAUX; LAND, 1999), o que
significa voltar a um ponto fixado anteriormente. Esse retorno a trechos já lidos
provavelmente seja para avaliar melhor as partes mais problemáticas.
O tamanho do EHS pode variar por influência de outros fatores. Um deles é o
fenômeno conhecido como chuncking, ou a organização da informação em unidades
significativas (WATERS; UNDERWOOD, 1998).
Em música, o chuncking pode ser uma seqüência de notas, uma escala ou
arpejo. O leitor tentará estruturar o material musical em algo coerente, ele organizará
o conteúdo de acordo com representações mentais já estabelecidas. Ele organiza e
reorganiza essas representações em algo mais coerente a partir de sua percepção e
de suas experiências. Esse fenômeno ajuda no processo de leitura, mas também
pode provocar erros de leitura.
Uma série de estudos foi realizada para observar um fenômeno chamado de
“proofreaders error” (WATERS; TOWNSEND; UNDERWOOD, 1998; SLOBODA,
1985). Um caso muito famoso, relatado por Sloboda, é o de um professor de piano
chamado Goldovsky (SLOBODA, 2005). Ao ouvir uma aluna iniciante tocar uma
edição muito utilizada de um Capriccio de Brahms, acreditou que ela tivesse
cometido um erro de leitura durante o estudo da peça, pois tinha tocado um sol
natural, o que era musicalmente impossível para o contexto musical da peça. A partir
daí percebeu que o erro não era da estudante e sim dele e de tantos outros colegas
e pupilos que já haviam tocado a peça inúmeras vezes. Todos cometiam o mesmo
erro de leitura, inseriam um sustenido no sol natural, satisfazendo o contexto
musical. Ao observar isso, Goldovsky planejou o “experimento Goldovsky”
(SLOBODA, 2005).
O experimento consistiu em convidar leitores habilidosos para encontrar o
erro na peça. Ele permitia que as pessoas lessem quantas vezes achassem
necessário. Foi surpreendente constatar que nenhum músico convidado encontrou o
erro.
Há também fatores linguísticos que influenciam a duração e a frequência das
“fixações”:
89

1 Frequencia: uma palavra menos frequente é sempre fixada e durante


mais tempo do que uma freqüente. Isto explica o porquê da necessidade
imprescindível das pausas durante o aprendizado; é preciso, durante este processo,
dar tempo à mente para fixação do conhecimento.
2 O tempo de fixação de uma palavra a seguir a uma palavra pouco
frequente é também inflacionado – efeito spillover.
3 Extensão: palavras com oito ou mais letras são, geralmente, sempre
fixadas. Ex. indefinidamente.
Na leitura musical, isso corresponderia a uma determinada nota ou acorde
que fugiria ao encadeamento harmônico e melódico que caracteriza a escrita do
compositor. Ao mesmo tempo, as oito letras citadas não correspondem a oito notas,
uma vez que um acorde seja de duas, três ou mais notas é tido como apenas uma
letra. Acrescentando, a leitura musical não é recepcionada pelo cérebro humano
como a leitura textual. Ela, a musical, se compara muito mais aos ideogramas, pois
transmite uma idéia e uma sensação, que, no caso do pianista, é também uma
sensação tátil.
4 Contexto semântico: uma palavra muito contextualizada tem maior
probabilidade de não ser fixada e, ao ser fixada, o é durante menos tempo do que
uma palavra pouco ou não contextualizada.
Fazendo uma analogia com a leitura musical, entretanto, acontece
exatamente o contrário.
A partir do momento em que o leitor entra em contato com o texto musical, o
cérebro, de fato, o vai aos poucos apreendendo, dentro da mesma idéia das
sacadas e fixações. Mas, inversamente ao que acontece com palavras, grava com
muito mais facilidade as figuras que já apareceram. Sendo assim, a sensação do
leitor ao ler estas mesmas figuras musicais, que já foram experienciadas em
momentos anteriores, é automática: suas mãos as procuram de súbito, já que o
sentido do tato é de fundamental importância para o instrumentista, e seu sentido de
localização interior o isenta da necessidade de fixar novamente aquele determinado
trecho ou figura musical já conhecido, sem que seja necessário um novo processo
de aprendizado.
Essa idéia se contrapõe, portanto, ao ato da leitura textual, uma vez que o
cérebro humano é capaz de se deparar com figuras e criar imagens interiores
destas.
90

Ele, por sua vez, lança estímulos e sensações táteis ao pianista, que é capaz
de adiantar-se no texto musical, pois já mantém armazenadas em seu arcabouço
consciente as imagens com as quais se deparou.
Vale citar um outro aspecto de extrema importância durante o ato de ler, que
consiste na distância entre a partitura e o leitor, para obtenção de êxito na execução
e captação da informação. Esta distância “ideal”, por assim dizer, permitirá a visão
do objeto como um todo, ao mesmo tempo em que se está fixando um determinado
acorde ou passagem musical. Com isso, obtém o leitor a imagem periférica
necessária à continuação da própria execução e inter-relação das partes, sem a
necessidade de paradas inoportunas durante o processo.
Uma vez que os fatores linguísticos influenciam a amplitude das sacadas, a
localização e a duração das fixações e o registro do movimento dos olhos pode ser
utilizado para o estudo do processamento da leitura.
Os comportamentos oculares durante a leitura, ou durante qualquer outra
atividade, portanto, refletem as dificuldades no processamento da informação, bem
como as características favoráveis e, por isso mesmo, aprimoráveis durante o ato de
ler música. Isto significa que, com o registro do movimento dos olhos, pode-se inferir
os processos cognitivos que ocorrem, momento a momento, durante a leitura.
91

CONCLUSÃO

O pianista co-repetidor é visto e abordado pelo autor como sendo um artista


completo, capacitado a transitar dentro dos inúmeros nichos existentes dentro da
música, que carrega em seu arcabouço cultural e empírico tantas possibilidades
quantas forem necessárias à realização e adaptação de seus recursos pessoais aos
trabalhos que se lhe apresentem.
É de fundamental importância, portanto, esclarecer as possibilidades,
necessidades e limites do pianista especializado, com o intuito de valorizar e difundir
a perpetuação deste profissional tão especial.
Esta nova abordagem mostra-se essencial à formação do pianista bacharel,
munindo-o das ferramentas necessárias para o exercício da função de pianista
colaborador e tornando-o capaz de atender à grande demanda de trabalho do
mercado musical atual especificamente para este nicho de atuação, além de facilitar
e aprimorar a capacidade de aprendizado do próprio pianista como solista.
Como estudado ao longo do texto, as aptidões que devem ser dominadas
pelo co-repetidor são: as técnicas de leitura à primeira vista, transposição ao piano,
improvisação, noções de regência coral e orquestral, estudo de línguas, canto e
fisiologia vocal (de preferência saber cantar e deter os conhecimentos dos vários
registros vocais), conhecer o máximo possível de óperas, musicais e seu
personagens correspondentes para ser capaz de conduzir ensaios e preparações
cênicas.
Essas seriam as disciplinas que completariam o currículo acadêmico de
formação do pianista bacharel, atualizando-o ao moderno e crescente mercado para
esse tipo de profissional – o que constitui das principais propostas desta dissertação.
Paralelamente, chegou-se à conclusão de que não há ainda consenso quanto
à terminologia capaz de sintetizar as habilidades e aptidões que reúne um pianista
co-repetidor, ou pianista especialista, (como prefere o autor). Por esse motivo,
apesar de alguns autores defenderem a ideia da subdivisão dos ramos de atuação
do pianista co-repetidor, como o camerísta, o pianista preparador ou ensaiador, o
pianista sinfônico e o colaborador, o autor prefere utilizar cada uma destas
expressões como sinônimos entre si, pois todas acabam por sintetizar as funções
normalmente exercidas pelo pianista acompanhador ou coach.
92

O nome co-repetidor, portanto, representaria apenas mais um rótulo que se


refere ao profissional que desempenha todas estas funções.
Cada aptidão inerente à profissão surgiu para suprir uma necessidade
evidente:
1. O acompanhamento das linhas melódicas dos outros instrumentos
presentes em uma obra camerística;
2. A leitura de grade coral juntamente com o conhecimento de harmonia,
suprindo a necessidade do coro em ouvir a base harmônica da obra sendo
executada;
3. A leitura de grade orquestral para o trabalho com ópera e concertos para
instrumentos;
4. A leitura à primeira vista no processo de co-repetição em sala de aula, ou
mesmo dos ensaios de coros e outras formações musicais;
5. A realização de transposições para uma melhor adaptação da obra a
tessitura vocal do cantor ou a afinação do instrumento acompanhado.

Ao mesmo tempo em que, aos poucos, se vai chegando a um consenso por


parte dos grandes mestres e pianistas sobre a abrangência funcional deste
profissional, a dinâmica deste ofício encontra-se cada vez mais em evidência e
configurada.
Ressalte-se que a maioria destas habilidades é aprendida empiricamente,
quando o pianista já formado (ou mesmo aquele sem nível superior) para carreira
solo, inicia seus primeiros passos na co-repetição, colaboração ou música de
câmara.
PORTO (2004) e BENJAMIN (1997) já destacaram que não há formação para
a carreira de pianista de câmara e co-repetidor nas universidades brasileiras, e,
quando há algo relacionado, são disciplinas que apenas passam o conteúdo
superficialmente, oferecendo somente os princípios básicos e nem sempre com
resultados expressivos. Estas disciplinas normalmente são direcionadas a música de
câmara e não em desenvolver as habilidades do músico co-repetidor e colaborador.
Observe-se, então, que o pianista que pretende se dedicar a uma carreira de
co-repetidor deve destinar seus esforços ao aprendizado autodidático.
Autodidata, pois serão descobertas que ele irá fazer sozinho ao longo do
processo de aprendizado durante os ensaios com grupos de câmara, corais,
93

cantores de ópera, maestros ou com o aluno de instrumento ou de canto, além de


outras situações.
É a partir do trabalho realizado com estas formações musicais que ele
encontrará o ideal buscado para um trabalho expressivo e maduro.
Vale lembrar o que afirma a professora BENJAMIM (1997), em sua obra
intitulada “Arte de Acompanhar”, quando diz que pianistas “colaboradores” são
aqueles que não alcançaram destaque como solistas ou cameristas, colocando-os
numa categoria abaixo dos demais pianistas.
Outros autores como MUNDIM (2009) e ALEXANDRIA (2005), os
caracterizam como músicos polivalentes, capazes de executar as mais diversas
obras e estilos musicais, além de enfatizarem as qualidades inerentes ao
desenvolvimento de tal função, (já estudadas ao longo do texto).
Como se pode perceber, as opiniões são as mais diversas, e até mesmo
controversas; mesmo assim, há inúmeros concursos para pianistas “sinfônicos” –
isto é, aqueles co-repetidores que integram, não como solistas, as orquestras, no
naipe correspondente às percussões.
Entretanto, a bem da verdade, os pianistas que concorrem ao cargo ou de
fato já adquiriram certa experiência em seu desempenho, não dispõem de qualquer
respaldo acadêmico para a pesquisa, aprendizado e treinamento da disciplina.
Praticamente todos eles (excetuando-se aqueles que estudaram em algumas
cidades da Europa ou Estados Unidos, onde há cursos específicos para formação
do chamado coach), vale ressaltar, desenvolveram e aperfeiçoaram por seus
próprios meios e conhecimentos a arte da co-repetição; diga-se, até mesmo, criam e
recriam essa arte a cada momento em que a desempenham, levando-a ao extremo
da perfeição, quando, de first sight, diante de uma grade orquestral ou manuscrito,
administram solistas, corpo cênico e técnico, além de reduzir ou resumir as
principais idéias da grade reproduzindo-as ao piano, para que todos aprendam e
pratiquem suas partes. Ele desempenha também, portanto, a função de um maestro
e diretor musical.
Embora vários trabalhos tenham sido realizados e seja relativamente fácil
conhecer um pouco mais sobre leitura musical, no Brasil parece que não se tem
dado a devida atenção a ela. Mesmo com toda a dificuldade apresentada pelos
músicos, aparentemente muitos deles acreditam que a leitura musical à primeira
vista é apenas um processo limitado de decodificação ou interpretação de signos.
94

Por outro lado, vários trabalhos têm sugerido que os processos mentais envolvidos
durante essa tarefa contribuem tanto para tarefas comuns de qualquer músico
quanto para o desenvolvimento cognitivo-musical (SLOBODA, 2005; FURNEAUX;
LAND, 1999; WATERS; UNDERWOOD, 1998; WATERS; TOWNSEND;
UNDERWOOD, 1998; KOPIEZ et al., 2006; WRISTEN, 2005).
Em muitos testes ou concursos é possível encontrar a exigência da realização
de leitura musical à primeira vista para ingresso em escolas ou outras instituições.
Contudo, muitas das escolas que fazem essas exigências, em sua maioria,
negligenciam o ensino dessa habilidade. Acredita-se, por um lado, que ela virá com
o passar do tempo e que poucos serão agraciados pelo “dom” ou, por outro, às
vezes, recomenda-se aos estudantes que leiam o máximo que puderem para que
desenvolvam a perícia pelo simples envolvimento com a atividade.
Essa carência de instrução, entretanto, pode vir a ser estimulante, no sentido
de tentar realizar um levantamento de alguns fatores, resultados e sugestões
apresentadas pela literatura de pesquisa, influentes quando se está lendo e/ou
quando se deseja ensinar-aprender leitura musical à primeira vista.
É de fundamental importância, entretanto, presença de espírito e profundo
conhecimento técnico para criar a base necessária às várias formas de preparações
ou formatos instrumentais e vocais, acurando cada vez mais sua percepção musical
de forma a entender os tempos, adaptando-se à maneira com que os solistas aos
quais se dedica concebem a música, que muitas vezes não corresponde à sua
própria.
A leitura à primeira vista na arte do acompanhamento representa novidade
absoluta, na forma proposta pelo autor; um novo approach sobre a maneira de
estudar seu instrumento e de aprender as obras musicais. Isso se dá pelo simples
fato de que não é possível trabalhar os detalhes de dedilhado, repetição de
passagens mais difíceis, movimentos de pulso e braços, como se está condicionado
pelos arcaicos e conservadores parâmetros de estudo.
A descoberta das possibilidades de aprimoramento técnico que trás ao
pianista a prática da co-repetição trata-se de um verdadeiro “despertar” para o ato
de criação durante o aprendizado e realização musical. Diferentemente dos solos e
concertos para piano, talvez sejam e delimitem aqui o grande diferencial e
envolvimento que esta arte de ampliação dos horizontes tanto contribui para uma
visão totalmente nova do ato de fazer música.
95

Consequentemente proporcionar-se-á o referido desenvolvimento e


valorização deste musicista extremamente requisitado em todos os teatros e salas
de concerto do Brasil e do mundo, por sua versatilidade e habilidade únicas de
reunir tantas qualidades e possibilidades técnicas e artísticas, capazes de o tornar
apto a substituir vários músicos, inclusive o próprio maestro, nos ensaios e
preparações de óperas, concertos de câmera, concertos solo, e preparação de
cantores e instrumentistas solistas e corais.
96

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101

APÊNDICE 1
SUGESTÕES DE LITERATURA PARA A LEITURA MUSICAL

Sugestões de Lehmann e McPherson para o apredizado da leitura (2002)

Os autores inicialmente argumentam que poucos professores ensinam leitura


à primeira vista explicitamente e aqueles que o fazem tem métodos baseados em
sua intuição (e em seus problemas pessoais de leitura) (LEHMANN; MCPHERSON,
2002).
Argumentam ainda que professores normalmente se focam em técnica e
conhecimento teórico (reconhecimento de estruturas e padrões). Para a percepção
de padrões (chuncking), os autores sugerem que os nomes das notas em intervalos
e escalas sejam falados antes de tocados, sem uma preocupação com o ritmo,
apenas tentando identificar padrões melódicos. Recomendam a utilização de cartões
ou computador para apresentação dos excertos. Problemas para executar o ritmo
em leitura musical à primeira vista podem ser superados (LEHMANN;
MCPHERSON, 2002):

1. Pela execução só das divisões rítmicas com pancadas sobre alguma


superfície ou palmas (ou outras formas de movimento rítmico corporal);
2. Pela contagem na partitura, desenhando linhas verticais que indiquem o
alinhamento das notas;
3. Pela prática de leitura com um metrônomo ou um playback MIDI (um
seqüênciador).
4. Tocar em situações de acompanhamento ou conjunto:“A falta de habilidade
de alguns leitores para tocar articulação e/ou dinâmicas pode ter múltiplas causas.
Algumas vezes, especialmente jovens instrumentistas optam por não atentar aos
mínimos detalhes (LEHMANN; MCPHERSON, 2002).” Para desenvolver essa
sensibilidade o performer pode registrar a execução da peça em um momento de
estudo, ao vivo ou em outro momento particular. Porém se o problema for a atenção
sobrecarregada, muitas vezes reduzir o andamento ou somente tocar altura ou ritmo
resolve o problema (LEHMANN; MCPHERSON, 2002).
Um problema muito conhecido de quem se propõe a iniciar os estudos em
leitura é o “gaguejar”, ou o retorno para corrigir omissões ou notas erradas. As
102

soluções oferecidas por pedagogos para esse problema unicamente tratam-se de


forçar o performer a continuar tocando: por exemplo, tocar somente notas em beats
determinados, dessa maneira forçará os olhos a alcançar tempos futuros (beats) e
ler enquanto outra pessoa cobre a notação imediatamente após o trecho ser tocado,
ambas tornam impossível o movimento regressivo dos olhos (LEHMANN;
MCPHERSON, 2002).
Também tocar acompanhado pelo metrônomo ou acompanhando uma
seqüência MIDI. Não desviar o olhar da partitura. Pode-se pensar que o
instrumentista que desviar menos o olhar da partitura tem mais consciência
cinestésica e esteja mais acostumado com o instrumento.
Ouvir a peça ou peças semelhantes para criar expectativas perceptivas que
ajudarão a guiar a performance. Dessa forma o estudante poderá experimentar uma
série de sensações próprias de cada estilo.

Orientações de Sloboda para o ensino de leitura

SLOBODA (2005) em seu livro “Explorando a mente musical”, sugere cinco


diretrizes para auxiliar estudantes a adquirir proficiência em Leitura Musical à
Primeira Vista, (LMPV).
A primeira delas indica que “o leitor deve ter um conhecimento musical de
forma, estilo, e 'linguagem' para ser capaz de fazer predições em pequena escala
sobre o que virá em seguida (SLOBODA, 2005).” A sugestão é de que os estudantes
devem ser encorajados a fazer cópias de partituras em intervalos mais ou menos
regulares de tempo. Essas partituras terão notas ou acordes retirados (omitidos). Os
alunos deverão tentar tocar a música preenchendo com notas que considerarem
apropriadas.
Treinar improvisação, dar continuidade a temas, harmonizações no teclado
e memória para melodias, todas essas atividades devem ajudar a desenvolver essa
habilidade (SLOBODA, 2005).
A seguinte aponta que o leitor deve se familiarizar com a associação direta
entre a nota escrita e um movimento da mão no instrumento. Um bom leitor deve
apreciar a música 'na sua cabeça' sem tocála. Sight-singing ajuda essa habilidade,
depois checar em um instrumento para ver se está correta (SLOBODA, 2005).
103

Essa sugestão aborda dois aspectos: um deles é a distância perceptiva e


outro é o chuncking. O estudante deve treinar para gradualmente adquirir um
eyehand span adequado. Dentre as tarefas propostas por Sloboda estão: tentar ler
compassos inteiros, acompanhar a execução de uma música com a partitura e
acompanhar a execução de uma música conhecida tentando imaginar o som antes
de ser reproduzido.
A terceira enuncia que a “LMPV tocada nota a nota é improvável promover
uma melhora da habilidade, contudo é freqüentemente praticada. A música deve ser
entendida antes de ser tocada, usando o som para checar a previsões (SLOBODA,
2005). Essa sugestão, embora se pareça com a anterior em termos de que propõe
que a leitura em unidades deve substituir a leitura “nota a nota”, trata da
familiaridade com estruturas musicais. O autor propõe que os indivíduos devem
entender o que está sendo lido como um discurso musical. Ele comenta ainda que a
principal ajuda para isso é “um desejo de saber como uma peça soa (SLOBODA,
2005)”.
A atividade proposta para desenvolver essa percepção é a realização de
transcrições de músicas. O autor sugere que se utilize música popular para crianças,
pois elas se sentem bem motivadas a trabalhar e esse tipo de música possui
padrões harmônicos básicos. Particularmente acredita-se que essas transcrições
seriam escrever uma música a partir de uma fonte sonora ou cópias de músicas. Na
seguinte o autor argumenta: “parece razoável se esforçar para desenvolver uma
sensibilidade musical antes de embarcar em um treinamento de leitura (SLOBODA,
2005)”.
Essa orientação é bastante clara e se refere ao que Sloboda descreve em
trabalhos anteriores. Por exemplo, uma criança que nunca teve aulas de música
pode ter poucas expectativas durante a leitura. Devido à pouca experiência musical
fará poucas predições.
A última orientação é mais direcionada aos professores. O professor deveria
apropriadamente criar situações nas quais o aprendiz necessitasse ser capaz de ler
para satisfazer aspirações musicais ou sociais. Membro de um coral ou grupo de
música de câmara deverá prover motivação para desenvolver a leitura (SLOBODA,
2005).
104

APÊNDICE 2
QUESTIONÁRIO ESTRUTURADO PROPOSTO PELO AUTOR

1. O que é a co-repetição para você?

2. Quais, em sua opinião, são as aptidões necessárias ao desempenho desta


função?

3. Você estudou, na Faculdade, Escola de Música ou Conservatório de Música


alguma matéria relacionada à co-repetição, leitura à primeira vista,
transposição ao piano ou acompanhamento ao piano?

4. Um pianista, seja ele um solista ou concertista, é necessariamente um co-


repetidor?

5. Até que ponto o domínio técnico do instrumento e o repertório estudado


durante o processo de formação de um pianista é relevante para o
desempenho do ato de co-repetir?

6. Quantos co-repetidores você conhece?

7. Com relação à questão anterior, destes profissionais, quantos têm formação


acadêmica e qual o grau de formação?

8. O pianista dito co-repetidor – uma vez que, na opinião do autor, esta


expressão não faz “jus” ao trabalho e capacidades necessárias ao
desempenho de tal função – é de importância fundamental e crescente no
cenário musical atual. Em sua opinião, a inclusão no curso de Bacharelado
em piano, de matérias relacionadas à esta disciplina, constitui um fator
relevante ao aprimoramento do pianista?

9. A formação em uma faculdade é indispensável para tornar-se um pianista co-


repetidor?

10.Quantos termos você conhece que sejam sinônimos de co-repetição?

11. Há alguns autores que vêm procurando estabelecer uma nomenclatura que
honre a profissão. Você teria alguma sugestão?

12.Você conhece algum curso preparatório para co-repetidor no Brasil?


105

13. Sabe-se que na Europa e nos Estados Unidos há alguns cursos específicos
para formar o pianista co-repetidor ou coach. Isso acontece em função da
grande necessidade e demanda deste profissional no mercado de trabalho.
Sabe-se também que o piano é o único instrumento capaz de sintetizar uma
orquestra, ou vários instrumentos. Baseado nessas informações, em sua
opinião, quais as áreas passíveis de atuação para um pianista co-repetidor?

14.Qual o grau de reconhecimento deste profissional no país? Este


reconhecimento equilibra-se com a imensa responsabilidade que recai sobre
ele?

15.Sabe-se que há várias áreas de conhecimento inerentes e indispensáveis ao


perfeito desempenho da função em questão. Conhecimentos de regência,
canto e fisiologia vocal, línguas e leitura à primeira vista, além da capacidade
de redução da grade orquestral, são áreas importantes na formação deste
profissional. Você poderia acrescentar algumas matérias?

16.Suponha-se que nas Faculdades de Música do país, fosse obrigatório o


estudo das matéria relativas à disciplina em questão para a formação
acadêmica de um pianista. Você acha que este pianista estaria mais
capacitado ao mercado de trabalho, ou isso viria a interferir e desviá-lo de
seus objetivos?

17.Por muitas vezes, ao deparar-se com uma partitura pela primeira vez, diante
da situação de acompanhar instrumentistas ou cantores solistas, óperas,
musicais ou música de câmara, torna-se necessário, em tempo real, ter a
capacidade de absorver a idéia central da música, que constituirá a base
necessária à interpretação do solista. Ou seja, deve-se procurar resumir a
partitura, e mesmo enriquecê-la, acrescentando notas e acordes e eliminando
os empecilhos para a perfeita leitura. Como deve, nesse caso, agir o pianista
e quais são as técnicas que irão ajudá-lo a obter maior rendimento?

18.O que você acha da idéia da criação de um curso propriamente dito de co-
repetição dentro das Universidades brasileiras, já que o mercado de trabalho
para este profissional é tão vasto? Ou, se não um curso, a inclusão da
106

disciplina “co-repetição” dentro do próprio currículo do bacharelado em piano,


como sugerido pelo autor desta dissertação?

19.Poderia dizer mais algumas palavras sobre o significado e importância do


profissional co-repetidor para a música?
107

APÊNDICE 3

QUESTIONÁRIO RESPONDIDO 1 - PIANISTA CO-REPETIDOR

Respostas do pianista e professor de Análise Musical e Composição da UNESP -


Achille Picchi:

1. O que é a co-repetição para você?

Começo pelo nome, pois para mim – que tenho supremo apreço pela
semiótica, assim como pela lingüística – nomear é fundar o conhecimento do
mundo. Assim, co-repetir, palavra que vem do francês e que, em primeira instância,
quer dizer, ensaiar (ou seja, repetir em conjunto), transformou-se, nos centros de
ópera, especialmente, europeus (onde tive grandes experiências, como estudante e
profissional) numa designação profissional abrangente, que só pode ser atribuída a
um músico com um completo domínio de muitos campos associados à arte vocal,
bem como instrumental. Eu diria que um co-repetidor é, antes de tudo, um regente
que conhece profundamente seu instrumento (o piano – preferencialmente deveria
tocar mais um), assim como a técnica e, naturalmente, o repertório vocal
(preferencialmente, denovo, deveria ter estudado canto), assim como basicamente
as técnicas e principal repertório de instrumentos fundamentais da música de
câmera e solística. Deve dominar a leitura de partitura orquestral e cameristica, bem
como conhecer línguas (quanto mais em profundidade, melhor), ter um especial
senso de leitura literária clássica, saber usar com ciência seu ouvido musical para
apurar línguas que não são conhecidas eventualmente por cantores com quem
esteja trabalhando, bem como um repertório e conhecimento mais que o normal de
história da música, teoria (harmonia, contraponto e, muito importante, transposição)
e análise musical. E ter um recurso fundamental para o desenvolvimento da
profissão: uma perfeita e segura leitura à primeira vista. Em resumo, o co-repetidor é
um preparador perfeito de repertório vocal de câmera, coral ou operístico, bem como
de câmera instrumental e solistico, funcionando como um regente auxiliar e um
professor.
108

2. Quais, em sua opinião, são as aptidões necessárias ao desempenho


desta função?

Creio que me precipitei e respondi duas questões numa só.

3. Você estudou, na Faculdade, Escola de Música ou Conservatório de


Música alguma matéria relacionada à co-repetição, leitura à primeira
vista, transposição ao piano ou acompanhamento ao piano?

Não, em faculdade nenhuma. No entanto, aprendi muito do metier com a


grande Celina Sampaio, cantora e professora de canto que me iniciou na
correpetição; mas de resto, durante mais de 20 anos, acompanhando, trabalhando
junto e, principalmente, aprendendo com a estrela superior que é Niza de Castro
Tank. Sobre leitura a primeira vista, tenho uma observação: acredito, como é
também o meu caso, num talento para tal prática que possam ter as pessoas. Mas,
como tudo na vida, talento não significa nada sem trabalho, dedicação e muitas
horas de estudo. Desenvolvi, a partir de uma inclinação pessoal para a leitura, um
método todo particular meu de leitura – e o aperfeiçoei para mim, tendo bastante
sucesso até hoje. Porém, nunca o compartilhei com ninguém, ou por falta de
oportunidade ou tempo, como músico atarefado que fui e sou, ou porque nunca
acreditei que seria capaz de sistematiza-lo para um eventual ensino.

4. Um pianista, seja ele um solista ou concertista, é necessariamente um


co-repetidor?

Não acredito que seja assim. Há, naturalmente, os pianistas que repassam,
como se diz comumente entre os músicos, o repertório, tanto vocal como
instrumental. Mas daí a ser um co-repetidor, por tudo que já expus acima, vai uma
grande distância!
109

5. Até que ponto o domínio técnico do instrumento e o repertório estudado


durante o processo de formação de um pianista é relevante para o
desempenho do ato de co-repetir?

Acho fundamental o perfeito domínio, em nível transcendente de excelência,


do piano, mesmo que se toque outro instrumento (e talvez se devesse, mesmo).
Assim como acho fundamental o perfeito conhecimento da técnica vocal para co-
repetir, pois o campo de mais intensa atuação desse profissional é com cantores. O
contato íntimo com o repertório do piano dá, em grande medida, os recursos
necessários e suficientes para o pianista saber o que fazer coma reduções
orquestrais, as mais das vezes de difícil execução, quando não anti-pianísticas...

6. Quantos co-repetidores você conhece?

Sinceramente? No Brasil?? Bem, sem citar nomes, co-repetidores segundo


meu ponto-de-vista o que seja o profissional, como já disse, além de mim (sem
autobajulação), mais quatro. É claro que não fico procurando me atualizar quanto a
essa informação, de forma que é bem possível que já existam mais que quatro –
talvez mais. Mas não acredito muito nisso: a formação pianístico-musical no Brasil,
que já era complicada e, em muitos casos, deficiente, anda bastante pior...

7. Com relação à questão anterior, destes profissionais, quantos têm


formação acadêmica e qual o grau de formação?

Que eu saiba, todos.

8. O pianista dito co-repetidor – uma vez que, na opinião do autor, esta


expressão não faz “jus” ao trabalho e capacidades inerentes e
necessárias ao desempenho de tal função – é de importância
fundamental e crescente no cenário musical atual. Em sua opinião, a
inclusão no curso de Bacharelado em piano, de matérias relacionadas à
110

esta disciplina, constitui um fator relevante ao aprimoramento do


pianista? De que maneira?

A inclusão de um curso de Bacharelado de co-repetição é bastante


importante, a meu ver. No entanto, essa tarefa já deveria estar embutida na
formação musical geral e particular (piano) do futuro profissional, inclusive para que
ele, dentro da faculdade, pudesse ter a possibilidade de escolher enquanto cursa o
Bacharelado em Instrumento. Quero dizer que o contato com um co-repetidor num
curso seria mais importante, como Disciplina, digamos, que todo um curso, como
acontece nos EUA e mesmo em alguns países europeus.

9. A formação em uma Faculdade ou Conservatório seria indispensável


para que o pianista viesse a se tornar um co-repetidor? Ou apenas o
desempenho prático da função seria suficiente?

Indispensável para mim é sempre o conhecimento e o contato íntimo e


visceral com a profissão integral de músico, em todas as suas facetas. Assim,
formação superior E constante prática, dentro e fora da academia seriam eficientes e
muito importantes. Só a vida prática escolhida dentro da profissão é que mostrará,
na minha opinião, se foi suficiente.

10. Quantos termos você conhece que sejam utilizados como sinônimos ou
que, de alguma forma, traduzam idéia de co-repetição?

Como professor de análise e composição na UNESP, lido constantemente


com o problema da terminologia. Por isso, entendo a preocupação de se encontrar,
senão sinônimos, pelo menos termos que designem a idéia de co-repetição,
inclusive, por ter essa origem que já detalhei acima. Mas, francamente, me
acostumei ao termo e acredito que coach, como em inglês, pianista ensaiador,
maestro ensaiador, etc., não definem bem e, mesmo, deixam, para mim, algo
incompleto. Portanto, não encontro nenhum sinônimo, ainda, que possa substituir
co-repetidor.
111

11.Há alguns autores que vêm procurando estabelecer uma nomenclatura


que honre a profissão. Você teria alguma sugestão?

Respondido na questão anterior...

12.Você conhece algum curso preparatório para co-repetidor no Brasil?

Infelizmente, não.

13. Sabe-se que na Europa e nos Estados Unidos há alguns cursos


específicos para formar o pianista co-repetidor ou coach. Isso acontece
em função da grande necessidade e demanda deste profissional no
mercado de trabalho. Sabe-se também que o piano é o único
instrumento capaz de sintetizar uma orquestra, ou vários instrumentos.
Baseado nessas informações, em sua opinião, quais as áreas passíveis
de atuação para um pianista co-repetidor?

É enorme o campo de atuação do co-repetidor: como ensaiador de ópera é,


talvez, o mais visível e mais complexo. Mas há o preparador e pianista coral, o
preparador e solista de câmera instrumental e vocal, o preparador de orquestra
(naipes, em especial), o trabalho associado a um professor de câmera ou vocal, etc.

14.Qual é, em sua opinião, o grau de reconhecimento deste profissional no


país? Este reconhecimento equilibra-se com a imensa responsabilidade
que recai sobre ele?

Não há um grau de reconhecimento, pois não há informação bastante e


suficiente para avaliar a importância visceral deste profissional. Em geral, um
pianista que toca em conjunto ou ensaia em conjunto é chamado de pianista
acompanhador. E, como digo sempre e repito, para mim acompanhador é cachorro
de cego...
112

15.Sabe-se que há várias áreas de conhecimento inerentes e


indispensáveis ao perfeito desempenho da função em questão.
Conhecimentos de regência, canto e fisiologia vocal, línguas e leitura à
primeira vista, além da capacidade de redução da grade orquestral, são
áreas importantes na formação deste profissional. Você poderia
acrescentar algumas matérias?

Leitura, muita leitura...

16.Suponha-se que nas Faculdades de Música do país, fosse obrigatório o


estudo das matérias relativas à disciplina em questão para a formação
acadêmica de um pianista. Você acha que este pianista estaria mais
capacitado ao mercado de trabalho, ou isso viria a interferir e desviá-lo
de seus objetivos?

Respondido na questão anterior...

17.Por muitas vezes, ao deparar-se com uma partitura pela primeira vez,
diante da situação de acompanhar instrumentistas ou cantores solistas,
óperas, musicais ou música de câmara, torna-se necessário, em tempo
real, ter a capacidade de absorver a idéia central da música, que
constituirá a base necessária à interpretação do solista. Ou seja, deve-
se procurar resumir a partitura, e mesmo enriquecê-la, acrescentando
notas e acordes e eliminando os empecilhos para a perfeita leitura e
estabelecimento da comunicação. Como deve, nesse caso, agir o
pianista e quais são as técnicas que irão ajudá-lo a obter maior
rendimento?

Isto demandaria uma resposta muito grande e elaborada. No entanto, posso


em primeira instância resumir no seguinte: a matéria de extrema importância, para
qualquer músico, mas principalmente para o co-repetidor (como para o regente) é
análise musical. Só através do estudo da análise, com ferramentas adequadas e
perfeito conhecimento do repertório essencial o co-repetidor não terá maiores
113

problemas para enfrentar qualquer leitura à vista e entendimento direto do que lê,
como alguém que lê um livro e imediatamente entende as palavras, as frases, o
significado do texto, do subtexto e, especialmente, das implicações do texto, fazendo
um grande geral e imediato da obra.

18.O que você acha da idéia da criação de um curso propriamente dito de


co-repetição dentro das Universidades brasileiras, já que o mercado de
trabalho para este profissional é tão vasto? Ou, se não um curso, a
inclusão da disciplina “co-repetição” dentro do próprio currículo do
bacharelado em piano, como sugerido pelo autor desta dissertação?

Respondido na questão anterior...

19.Poderia dizer algumas palavras sobre o significado e importância do


profissional co-repetidor para a música?

Acredito que já tenha dito o suficiente para ressaltar a importância do co-


repetidor; quanto ao significado, para mim, além de tudo, é questão de paixão, vida
e missão. Não posso crer que se faça um trabalho tão abrangente e realizador sem
a consciência do quanto ele é abrangente e realizador. Assim, é preciso antes de
tudo amar a música, como vida, forma de conhecimento, comunicação humana,
realização profissional e escopo de uma vida toda.
114

APÊNDICE 4

QUESTIONÁRIO RESPONDIDO 2 - PIANISTA CO-REPETIDOR

Respostas do pianista e professor Joaquim Paulo Espírito Santo:

1. O que é a co-repetição para você?

Co-repetição é, no original da palavra, o mesmo que dizer “trabalho escravo”.


É o trabalho de ficar repetindo “n” vezes (ou montar em CD) determinada(s)
partitura(s) para que o cantor repita até memorizar. Como no Brasil isto é um
trabalho muito caro e os cantores de modo geral são sem dinheiro para custear,
torna-se um trabalho quase que improdutivo, se não houver uma “criatividade” do
pianista em usar a gravação como recurso básico.

2. Quais, em sua opinião, são as aptidões necessárias ao desempenho


desta função?

É necessário: 1 - noções de palco – regia, conhecimento dos papéis das


personagens – quase que conhecimento específico de cada uma, para poder
trabalhar com os cantores, não só a parte musical, mas também a movimentação
dos mesmos em palco;

2 – noções orquestrais – para preparar os cantores quanto a forma de


economia em palco – para suportar o fator “peso da orquestra” com relação a
projeção da própria voz, enquanto se movimenta em palco;

3 – leitura a primeira vista – aliás, isto é importantíssimo para qualquer


pianista que se aventure a sair do seu “habitat”, quer seja para ser preparador de
cantores, quer seja para ser camerista ou para as duas coisas;

4 – noções fortes de transposição – principalmente para trabalhar com os


cantores pois no material de canto, muita coisa é passível de transporte de
tonalidade para adaptar a obra em questão para as possibilidades vocais do cantor.
115

3. Você estudou, na Faculdade, Escola de Música ou Conservatório de


Música alguma matéria relacionada à co-repetição, leitura à primeira vista,
transposição ao piano ou acompanhamento ao piano?

Não; apenas na primeira escola de música que estudei, havia uma


professora, por sinal minha primeira professora – Vicentina Mastrorosa – que era
dotada de muita capacidade e me deu simplesmente tudo o que ela sabia, desde os
primeiros exercícios de técnica até noções de acústica e musicologia. O pai dela,
também excelente professor de violino – Francesco Mastrorosa – me deu, além do
estudo do instrumento, noções de orquestração.

4. Um pianista, seja ele um solista ou concertista, é necessariamente


um co-repetidor?

Condições intrínsecas até pode ser. Acontece que na prática não é o que
acontece. Ele esquece que está a serviço do solista; esquece que está no lugar da
orquestra. Aí o resultado, na sua freqüência é que o pianista passa por cima do
cantor, até por esquecer que o instrumento é um instrumento solistico.

5. Até que ponto o domínio técnico do instrumento e o repertório


estudado durante o processo de formação de um pianista é relevante para o
desempenho do ato de co-repetir?

O domínio técnico do instrumento e o repertório (na minha opinião) fazem


parte dos primeiros passos do pianista que queira ser mais do que apenas pianista.
Ser camerista (também na minha opinião) ocupa muito mais importância porque este
camerista sabe respeitar a hora de ser solista e diferenciar a hora que é
acompanhador.
116

6. Quantos co-repetidores você conhece?

Co-repetidores de fato, na atualidade, aqui no Brasil, temos muito poucos. E


todos eles bem posicionados no “ranking” brasileiro: Achille Picchi, Larry Fountain,
Karin Uzum, Marcos Aragoni, Marizilda Hein (no teatro municipal de São Paulo)
Maria Emilia (na Escola Municipal de Música de São Paulo); nos Estados Unidos,
Mozart de Oliveira, brasileiro, atualmente pianista co-repetidor no Metropolitan, entre
outros.

7. Com relação à questão anterior, destes profissionais, quantos têm


formação acadêmica e qual o grau de formação?

Pelo que me conste, Achille Picchi e Mozart de Oliveira.

8. O pianista dito co-repetidor – uma vez que, na opinião do autor, esta


expressão não faz “jus” ao trabalho e capacidades necessárias ao
desempenho de tal função – é de importância fundamental e crescente no
cenário musical atual. Em sua opinião, a inclusão no curso de Bacharelado em
piano, de matérias relacionadas à esta disciplina, constitui um fator relevante
ao aprimoramento do pianista?

Não tem muito a ver, uma vez que os pianistas em final de Bacharelado, na
sua maioria não tem nem noções exatas dos problemas técnicos que ocorrem com
os mesmos, não tem domínio do próprio instrumento e nem noção de
acompanhamento de qualquer instrumento. É necessário que o mesmo tenha uma
boa formação camerista, o que não existe em nenhum curriculum estudantil de
universidade, de forma consciente.

9. A formação em uma faculdade é indispensável para tornar-se um


pianista co-repetidor?
117

A faculdade atual na realidade, não traz nenhuma condição que se possa


colocar como essencial para um pianista co-repetidor, a não ser sua formação
acadêmica, que por sua vez não tem nada a ver com sua experiência prática. No
entanto, não se pode dispensar as possibilidades que um diploma traz. O famoso
“cartucho” vale pontos essenciais, porque não dizer, vitais, na soma de pontos para
concursos, tanto de entrada como de classificação ou quaisquer coisas outras que
necessitem até da avaliação profissional.

10. Quantos termos você conhece que sejam sinônimos de co-


repetição?

Preparador vocal (erroneamente porque o preparador vocal é o mesmo que


professor de canto) e preparador de repertório (termo que uso).

11. Há alguns autores que vêm procurando estabelecer uma


nomenclatura que honre a profissão. Você teria alguma sugestão?

O termo que uso poderia ser uma boa nomenclatura porque o preparador de
repertório, deve entender um pouco de técnica vocal (se possível deve também
cantar) bem como deve saber muito de possibilidades de repertório. O que o
diferencia do professor de técnica é justamente as possibilidades de repertório. Eu
não só recomendo como faço – trabalhar sempre com um professor de técnica
vocal.

12. Você conhece algum curso preparatório para co-repetidor no Brasil?

Nem curso preparatório nem curso específico.


118

13. Sabe-se que na Europa e nos Estados Unidos há alguns cursos


específicos para formar o pianista co-repetidor ou coach. Isso acontece em
função da grande necessidade e demanda deste profissional no mercado de
trabalho. Sabe-se também que o piano é o único instrumento capaz de
sintetizar uma orquestra, ou vários instrumentos. Baseado nessas
informações, em sua opinião, quais as áreas passíveis de atuação para um
pianista co-repetidor?

Se ele for um bom camerista, poderá atuar como pianista acompanhador para
todos os instrumentos pois o piano também é o único que (como repertório) tem um
extenso material para ser desenvolvido com outros instrumentos, quer seja cordas,
sopro ou percussão. Neste caso, canto pode ser incluído como corda. Agora, onde o
pianista atua com propriedade é em teatros de ópera. E neste caso ele é sempre
mal remunerado.

14. Qual o grau de reconhecimento deste profissional no país? Este


reconhecimento equilibra-se com a imensa responsabilidade que recai sobre
ele?

Esta pergunta faz com que possamos falar mais claramente a definição do
final da pergunta anterior. Realmente, nos teatros onde existem pianistas com esta
função, os pagamentos salariais não são satisfatórios, tendo em vista a
responsabilidade que recai nos seus ombros. O mais fácil é encontrar “bodes
expiatórios”, pois sobre eles recairão todas as falhas de preparação dos cantores,
geralmente excluindo a não leitura da maioria dos mesmos.

15. Sabe-se que há várias áreas de conhecimento inerentes e


indispensáveis ao perfeito desempenho da função em questão.
Conhecimentos de regência, canto e fisiologia vocal, línguas e leitura à
primeira vista, além da capacidade de redução da grade orquestral, são áreas
importantes na formação deste profissional. Você poderia acrescentar
algumas matérias?
119

Eu incluiria a transposição. Frequentemente encontramos no repertório


“canoro” obras que precisam ser mudadas de tonalidade para melhor resultado com
estes ou aqueles cantores. Então eu diria que esta matéria viria logo depois de
leitura a primeira vista.

16. Suponha-se que nas Faculdades de Música do país, fosse


obrigatório o estudo das matéria relativas à disciplina em questão para a
formação acadêmica de um pianista. Você acha que este pianista estaria mais
capacitado ao mercado de trabalho, ou isso viria a interferir e desviá-lo de
seus objetivos?

Em termos de Brasil, seria um complicador que resulta em beneficio porque,


em primeiro lugar não há nenhuma faculdade com este currículo específico e depois,
não há condições do pianista trabalhar para conhecer o repertório de canto. É
necessário que o pianista invista pesadamente no seu objetivo, se quiser ser um co-
repetidor conhecido.

17. Por muitas vezes, ao deparar-se com uma partitura pela primeira
vez, diante da situação de acompanhar instrumentistas ou cantores solistas,
óperas, musicais ou música de câmara, torna-se necessário, em tempo real,
ter a capacidade de absorver a idéia central da música, que constituirá a base
necessária à interpretação do solista. Ou seja, deve-se procurar resumir a
partitura, e mesmo enriquecê-la, acrescentando notas e acordes e eliminando
os empecilhos para a perfeita leitura. Como deve, nesse caso, agir o pianista e
quais são as técnicas que irão ajudá-lo a obter maior rendimento?

Pelo fato de um pianista ter em suas mãos um instrumento capaz de imitar


uma orquestra, ele deve procurar tocar todas as notas que possa, dando inclusive
ênfase em um ou outro elemento de contracanto, se isto for relevante como apoio ao
cantor.
120

18. O que você acha da idéia da criação de um curso propriamente dito


de co-repetição dentro das Universidades brasileiras, já que o mercado de
trabalho para este profissional é tão vasto? Ou, se não um curso, a inclusão da
disciplina “co-repetição” dentro do próprio currículo do bacharelado em piano,
como sugerido pelo autor desta dissertação?

Ao meu ver, existe um complicador: a matéria de canto. Se a direção da


escola entender que o cantor precisa do pianista como ferramenta de trabalho, isto
(ironicamente) não funcionará; o cantor não gosta de ser “corrigido” e o pianista não
sabe corrigir. Precisa ter uma sequencia de palestras para uns e outros no sentido
humanitário. Aì sim a possibilidade se torna visível.

19. Poderia dizer algumas palavras sobre o significado e importância do


profissional co-repetidor para a música?

O canto, quando dirigido por um professor competente, será sempre


trabalhado com um bom co-repetidor. O único instrumentista que sempre precisará
de dois professores é o de canto, uma vez que o bom cantor não ouve o que está
cantando pelo motivo de realmente não poder ouvir o que está fazendo. O canto, por
sua vez, é um trabalho de percepção sensorial e a sensação é sempre uma coisa
duvidosa. Leva-se tempo para acreditar-se que determinada sensação em
determinada região é o sentido exato da nota a ser cantada. O pianista será o
termômetro de afinação e o professor de canto, o termômetro técnico.
121

APÊNDICE 5

QUESTIONÁRIO RESPONDIDO 3 - PIANISTA CO-REPETIDOR

Respostas do pianista e professor Flávio Augusto, pianista da Escola de Música da


Universidade Federal do Rio de Janeiro:

1. O que é a co-repetição para você?

Vejo o trabalho da co-repetição como sendo algo realmente muito mais amplo
do que aquela idéia que nos é transmitida em escolas de música – a de que o co-
repetidor é aquele pianista responsável por preparar e ensinar cantores a “aprender
ritmos e notas” (incluindo até mesmo as “letras”, em alguns casos), com ensaios
onde as obras musicais são repetidas, muitas vezes de maneira “mecânica e fria”,
até a sua exaustão. Na verdade, sempre enxerguei o trabalho do pianista co-
repetidor como sendo o responsável pela “preparação completa” de uma obra e/ou
de um espetáculo musical. De nada adianta saber ritmos e notas certas, se cantores
e instrumentistas encontram-se distantes do verdadeiro significado das obras que
executam. Assim, a boa co-repetição é aquela que é feita por um pianista-músico
“completo” – alguém que, além de possuir uma excelente técnica pianística e leitura
à primeira vista, tenha também uma vasta cultura geral, uma enorme bagagem
musical; alguém que entenda profundamente de Canto, Fisiologia da Voz, Dicção; e,
principalmente, alguém que tenha disposição e humildade para “ouvir o outro”.
Alguém que tenha sensibilidade o bastante para transmitir e comungar de tantos
“códigos” que vão muito além de uma simples partitura musical.

2. Quais, em sua opinião, são as aptidões necessárias ao


desempenho desta função?

Como já disse na resposta anterior, penso que seja fundamental que o


pianista co-repetidor seja um músico “completo” – que tenha um excelente preparo
122

técnico e que saiba ler muito bem. Porém, penso eu, nenhuma dessas aptidões
resultará num trabalho de excelência se o pianista não tiver amor e conhecimento
profundo por esse trabalho que engloba muitas outras coisas além do que,
simplesmente, tocar bem o seu instrumento. Ser um pianista maravilhoso não
significa, absolutamente, ser um bom co-repetidor. Porém, no Brasil, infelizmente,
pianista co-repetidor ainda é sinônimo de “pianista de segunda categoria” – afinal,
este é um trabalho realizado, freqüentemente, por pianistas amadores e sem
qualquer preparo.

3. Você estudou, na Faculdade, Escola de Música ou Conservatório


de Música alguma matéria relacionada à co-repetição, leitura à primeira vista,
transposição ao piano ou acompanhamento ao piano?

Pra falar a verdade, não. Quando fiz o meu Bacharelado em Piano, algumas
vezes apareciam alguns professores para falar (muito superficialmente) sobre alguns
dos assuntos que englobam a co-repetição. Mas, na verdade, nenhum deles possuía
um “método”; nenhum deles tinha um “histórico profissional” que tivesse qualquer
relação com tais matérias. “Acompanhamento ao Piano” significava, na maioria das
vezes, acompanhar uma peça de canto bem simples (tecnicamente falando) – e, os
professores não diziam outra coisa senão: “para acompanhar tem que tocar tudo
bem baixinho porque importante mesmo é a linha do canto – não se pode duelar
com os solistas”. Sabemos que tais absurdos continuam sendo dito ainda hoje em
escolas de música de todo o país. E este trabalho tão difícil e tão importante acaba
sendo sinônimo de “trabalho para pianistas amadores” ou para “pianistas que não
conseguiram se despontar como solistas”.

4. Um pianista, seja ele um solista ou concertista, é necessariamente


um co-repetidor? Até que ponto o domínio técnico do instrumento e o
repertório estudado durante o processo de formação de um pianista é
relevante para o desempenho do ato de co-repetir?
123

Não acredito, absolutamente, que um pianista solista ou concertista seja, em


tese, um excelente co-repetidor. Como já disse anteriormente, há que existir uma
“paixão” por esse trabalho específico; há que existir o interesse num repertório muito
mais amplo do que simplesmente aquele escrito para “piano”; e há que existir,
principalmente, a vontade de “compartilhar e comungar” dessa Música com outros
músicos. E, para fazer isso, penso eu, há que ter um talento muito especial, e
também, um estudo bastante sério e direcionado. Acho sim que, durante o processo
de formação de um pianista, todo o repertório trabalhado (se “bem trabalhado”)
poderá ser uma maravilhosa ferramenta para o futuro co-repetidor; afinal, se este
pianista trabalhar obras “de peso” do repertório pianístico e as dominar bem, com
toda certeza, vai adquirir uma boa técnica e uma boa leitura que, futuramente,
facilitarão muito o seu trabalho como co-repetidor. Mas repito: isso não é garantia
alguma. A co-repetição vai muito além do que simplesmente “tocar bem”, não tenho
dúvidas disso. .

5. Quantos co-repetidores você conhece?


Seria impossível citar aqui todos os co-repetidores maravilhosos que já tive o
prazer e o privilégio de conhecer por esse mundo afora. Porém, aqui no Brasil,
conheço o trabalho de pouquíssimos. Quando digo “pouquíssimos”, estou falando
daqueles que fazem da co-repetição uma “profissão digna e séria”; daqueles que
realizam este trabalho por talento e têm, na co-repetição, a “razão de suas
existências”. Não estou aqui me referindo às centenas de pianistas existentes que,
uma vez ou outra, participam de trabalhos como co-repetidores. Estou me referindo
aos “profissionais” do assunto. O primeiro grande co-repetidor que conheci foi o
pianista Larry Fountain que, na época de minha adolescência, trabalhava no Theatro
Municipal do Rio de Janeiro. Tive o prazer de ouvir apresentações memoráveis
preparadas por este grande Músico. Também na minha adolescência, conheci o
pianista Joaquim Paulo do Espírito Santo (que, naquela época trabalhava como
pianista co-repetidor nos mais importantes concursos nacionais do país). Lembro-me
de ter ficado realmente muito espantado quando o conheci num concurso na cidade
paulista de Piracicaba. Ele tocava com todos os instrumentistas e cantores, fazia
reduções de grades orquestrais “no palco”, e dava sempre a impressão de que
poderia tocar “de memória” qualquer obra. Anos depois, trabalhei também como co-
124

repetidor convidado em vários concursos nacionais (inclusive esse mesmo concurso


de Piracicaba) e, nesses concursos, pude trabalhar ao lado de outros pianistas
maravilhosos como Luiz Senise, Maria Teresa Madeira, Kátia Balloussier, Priscila
Bomfim, Thalita Peres, Estela Caldi e Lucia Barrenechea. Conheço também alguns
excelentes pianistas co-repetidores na cidade de São Paulo, mas, como já disse
anteriormente, são muito poucos mesmo; e eu prefiro aqui não citar nomes para não
correr o risco de acabar me esquecendo de alguém.

6. Com relação à questão anterior, destes profissionais, quantos têm


formação acadêmica e qual o grau de formação?

Penso eu, todos eles possuem formação acadêmica. Alguns Bacharéis,


outros Mestres e outros Doutores. Porém, acho importante salientar que talvez
nenhum deles tenha uma formação acadêmica específica em “co-repetição”. Aliás,
isso ainda não existe em nenhuma Universidade ou Escola de Música no Brasil.
Enfim, são co-repetidores de altíssimo nível porque souberam trabalhar nessa
direção – estudaram muito, ouviram muito, leram muito e, no final das contas,
aprenderam a fazer um trabalho como poucos; um trabalho realmente “diferenciado”.

7. O pianista dito co-repetidor – uma vez que, na opinião do autor,


esta expressão não faz “jus” ao trabalho e capacidades inerentes e
necessárias ao desempenho de tal função – é de importância fundamental e
crescente no cenário musical atual. Em sua opinião, a inclusão no curso de
Bacharelado em piano, de matérias relacionadas à esta disciplina, constitui um
fator relevante ao aprimoramento do pianista? De que maneira?

Não tenho a menor dúvida disso. Se houvessem, nos cursos de Bacharelado,


matérias relacionadas à co-repetição, com toda certeza, o nível “musical” dos alunos
seria outro e o mercado de trabalho se abriria consideravelmente para muitos deles.
Infelizmente, o que mais vemos atualmente são alunos que, após se formarem no
curso de piano, optam pelo trabalho de co-repetição simplesmente porque isso é
125

algo que pode se tornar “rentável”; essa é uma “porta” que se abre para eles que,
com um diploma nas mãos, não encontram espaço para fazer outra coisa. Enfim,
acabam, muitas vezes, assumindo um trabalho sem ter qualquer preparo para isso.
E, assim, acabam fazendo desta profissão um sinônimo de “quebra-galho”. Não
sabem ler à primeira vista, não sabem quase nada sobre transposição, conhecem
pouquíssimas obras do repertório vocal e de câmara e, conseqüentemente, acabam
odiando esse trabalho que, na verdade, não lhes dá qualquer prazer. Uma pena
mesmo que isso aconteça!

8. A formação em uma Faculdade ou Conservatório seria


indispensável para que o pianista viesse a se tornar um co-repetidor? Ou
apenas o desempenho prático da função seria suficiente?

Como respondi anteriormente, acredito que nenhum dos grandes co-


repetidores brasileiros tem qualquer formação acadêmica nesse sentido. Todos
chegaram aonde chegaram porque investiram seriamente e, principalmente, porque
são apaixonados por este trabalho e acreditam nisso. Na verdade, sabemos que
nenhum músico se faz realmente dentro de qualquer instituição musical.
Universidades, Conservatórios e Escolas de Música poderão ajudá-lo (e muito), é
claro, na sua formação. Mas, o “suficiente” vai depender sim do desempenho prático
e do investimento de cada um.

9. Quantos termos você conhece que sejam utilizados como


sinônimos ou que, de alguma forma, traduzam idéia de co-repetição?

Conheço duas nominações: pianista de câmara e pianista acompanhador.


Mas, honestamente, prefiro mesmo a nominação de “Pianista Técnico-Preparador”
que, na verdade, nada mais é do que a melhor tradução para o termo “coach” tão
usado atualmente nos Estados Unidos.
126

10. Há alguns autores que vêm procurando estabelecer uma


nomenclatura que honre a profissão. Você teria alguma sujestão?

Nunca gostei muito de “rótulos”. Por isso, prefiro acreditar que sou mesmo um
“Músico” – um pianista a serviço da “Música”.

11. Você conhece algum curso preparatório para co-repetidor no


Brasil?
Não. Confesso que nunca ouvi falar disso. Sei que alguns pianistas, como o
Joaquim Paulo do Espírito Santo, costumam ministrar oficinas e masterclasses
sobre o assunto; da mesma forma que eu, várias vezes, já fui convidado para dar
aulas sobre isso. Mas nunca soube que essa é uma disciplina obrigatória em
qualquer escola de música brasileira. Isso ainda é tratado como simples
“curiosidade” pelas nossas instituições musicais.

12. Sabe-se que na Europa e nos Estados Unidos há alguns cursos


específicos para formar o pianista co-repetidor ou coach. Isso acontece em
função da grande necessidade e demanda deste profissional no mercado de
trabalho. Sabe-se também que o piano é o único instrumento capaz de
sintetizar uma orquestra, ou vários instrumentos. Baseado nessas
informações, em sua opinião, quais as áreas passíveis de atuação para um
pianista co-repetidor?

Minha teoria é a de que um excelente pianista co-repetidor é aquele capaz de


fazer “qualquer trabalho” relacionado à Música. Aliás, como Músico, poderá ser
solista, tocar com orquestras, acompanhar cantores, instrumentistas; enfim, se ele é
alguém que tem um conhecimento musical tão profundo, poderá entender e
“manipular” a Música da forma como quiser. Jamais haverá “obstáculos” para um
Músico dessa natureza. Poderia aqui citar o nome de centenas de grandes “coachs”
(americanos e europeus) que, além do maravilhoso trabalho camerístico,
apresentam-se constantemente com as maiores orquestras do mundo e, volta e
127

meia, lançam gravações de obras para “piano solo”. Isso é muito comum. E isso só
vem provar o quanto todos eles se tornaram “completos”.

13. Qual é, em sua opinião, o grau de reconhecimento deste


profissional no país? Este reconhecimento equilibra-se com a imensa
responsabilidade que recai sobre ele?

Todos esses grandes co-repetidores (sejam eles nacionais ou estrangeiros)


são reconhecidos sim no seu país como sendo profissionais do mais alto nível. Não
é à toa que, a todo o momento, vemos àqueles “mesmos nomes” serem requisitados
para os trabalhos de maior responsabilidade. Reconhecimento é sinônimo de muito
esforço; e o peso que recai sobre todos é “driblado” com a confiança de que aquilo
que está sendo feito é muito honesto e fruto de muita dedicação, estudo e
seriedade.

14. Sabe-se que há várias áreas de conhecimento inerentes e


indispensáveis ao perfeito desempenho da função em questão.
Conhecimentos de regência, canto e fisiologia vocal, línguas e leitura à
primeira vista, além da capacidade de redução da grade orquestral, são áreas
importantes na formação deste profissional. Você poderia acrescentar
algumas matérias?

Também penso que as áreas de conhecimento para um bom trabalho como


co-repetidor sejam exatamente essas. Porém, não descarto um estudo aprofundado
de improvisação, harmonia, percepção, análise musical, história da música,
conhecimentos gerais, filosofia e, principalmente, psicologia. Afinal, não podemos
nos esquecer de que o co-repetidor jamais irá trabalhar “sozinho”. Ou seja, irá
necessitar de uma boa dose de paciência, assim como, saber se relacionar com
“outros”.
128

15. Suponha-se que nas Faculdades de Música do país, fosse


obrigatório o estudo das matéria relativas à disciplina em questão para a
formação acadêmica de um pianista. Você acha que este pianista estaria mais
capacitado ao mercado de trabalho, ou isso viria a interferir e desviá-lo de
seus objetivos?

Quando um aluno estuda numa escola “regular”, tem a obrigatoriedade de


estudar as mais diversas disciplinas – Línguas, Matemática, Física, Química,
Biologia, História, Geografia, etc. É claro que nem todos os alunos irão aproveitar
tudo aquilo que aprenderam em todas essas disciplinas. Cada um, aos poucos, vai
fazendo a sua pré-seleção de acordo com as suas escolhas futuras. Da mesma
forma, acredito que a inclusão de matérias relacionadas à formação de co-
repetidores nas Universidades de Música do país, em nada atrapalharia a formação
de seus alunos. Durante muitos anos de minha vida, ouvi professores de piano me
dizer preocupados: “pare de ficar tocando com esses cantores para não prejudicar
os seus estudos de piano solo”. E, na verdade, o que eu percebia era que, quanto
mais a minha visão sobre Música se expandia, mais fácil se tornava a minha
execução de qualquer obra musical; mesmo que essas obras fossem para “piano
solo”. Ou seja, não existem “interferências ou desvios” dos objetivos quando, na
verdade, estamos falando de uma mesma coisa – “Música”. Pelo contrário, as
Universidades estarão apenas “ampliando” as possibilidades (inclusive de trabalho)
para todos os seus alunos.

16. Por muitas vezes, ao deparar-se com uma partitura pela primeira
vez, diante da situação de acompanhar instrumentistas ou cantores solistas,
óperas, musicais ou música de câmara, torna-se necessário, em tempo real, ter
a capacidade de absorver a idéia central da música, que constituirá a base
necessária à interpretação do solista. Ou seja, deve-se procurar resumir a
partitura, e mesmo enriquecê-la, acrescentando notas e acordes e eliminando
os empecilhos para a perfeita leitura e estabelecimento da comunicação.
129

Como deve, nesse caso, agir o pianista e quais são as técnicas que irão ajudá-
lo a obter maior rendimento?

Acho complicado, em poucas palavras, inventar uma “fórmula” ou uma “regra”


pra isso. Acredito que, da mesma forma que quando lemos um livro, cada um faz “a
sua leitura” daquele mesmo texto. Muitos vão se prender mais “às palavras” em si;
outros, mais “ao sentido do todo”; outros ficarão encantados com determinadas
“passagens”; enfim, não existirão duas leituras e duas interpretações iguais. Porém,
da mesma forma como acontecem com os grandes atores, os grandes pianistas co-
repetidores são aqueles capazes de colocar os olhos pela primeira vez num “texto
musical” e saber exatamente o que deve ser “dito” para que o discurso se faça
entendido naquele primeiro momento. Necessariamente, podem não ler todas
aquelas palavras (notas), podem “engolir” ou mudar algumas acentuações (ritmos),
porém, um grande ator pode convencê-lo e impressioná-lo de uma forma muito mais
eficaz do que aquele outro que simplesmente lê o texto com todas as palavras
corretamente. Mas, para fazer isso, e para se ter o domínio disso, não existem
“fórmulas mágicas”. Tempo, trabalho, conhecimento e cultura são alguns pré-
requisitos básicos para que essa “técnica” se aprimore a cada dia. Para que isso se
torne mais fácil e mais “natural” – principalmente para os “pianistas” – aconselho
também aulas de Improvisação do instrumento. Infelizmente, essa também é uma
disciplina pouco divulgada e pouco falada dentro das Universidades; mas, não tenho
dúvidas, de grande importância para que o músico se conheça melhor e, assim,
possa adquirir maior confiança.

17. O que você acha da idéia da criação de um curso propriamente


dito de co-repetição dentro das Universidades brasileiras, já que o mercado de
trabalho para este profissional é tão vasto? Ou, se não um curso, a inclusão da
disciplina “co-repetição” dentro do próprio currículo do bacharelado em piano,
como sugerido pelo autor desta dissertação?

Sempre sonhei com isso – um curso específico para co-repetidores em


Bacharelados, Mestrados e Doutorados. Aliás, se existisse em nossas
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Universidades pelo menos uma disciplina voltada para a co-repetição, com toda
certeza, teríamos um número bem maior de profissionais realmente qualificados.
Sinto que quase todas as instituições musicais do país já se dão por satisfeitas ao
ministrarem suas aulas de Música de Câmara, Acompanhamento e Transposição.
Mas essas aulas, na maioria das vezes, são ministradas por instrumentistas que
muito pouco, ou quase nada, entendem “a fundo” sobre as especificidades de um
bom trabalho de co-repetição. Por isso, na maioria das vezes, não são disciplinas
que dão suporte “real” aos alunos de piano e que o auxiliam efetivamente para o
mercado de trabalho. Os bons alunos de piano, aqueles que gostam realmente
deste trabalho, acabam fazendo tudo de forma intuitiva e buscando (por conta
própria) alguns “entendidos no assunto” que possam sanar suas dúvidas e
dificuldades.

18. Poderia dizer algumas palavras sobre o significado e importância


do profissional co-repetidor para a música?

Acredito piamente que o trabalho do co-repetidor não deve (e nem pode) ser
uma “ocupação secundária”. Preparar artistas para audições e performances é algo
muito sério e de extrema responsabilidade. Na verdade, um trabalho muito
semelhante à de um “técnico” de qualquer esporte – alguém que sabe exatamente o
que deve ser feito e o melhor caminho a ser trilhado para se chegar ao melhor
resultado num curto espaço de tempo e sem grandes desgastes físicos e
emocionais. O bom co-repetidor deve saber profundamente tudo o que está
intrinsecamente relacionado à Música – regência, leitura à primeira vista, canto,
fisiologia da voz, dicção, improvisação, etc. – “ferramentas” fundamentais para
proporcionar o apoio e a orientação necessária neste tipo de trabalho. O verdadeiro
técnico não é aquele que simplesmente “acompanha” o seu grupo. Seu trabalho
abrange algo muito maior, muito mais específico e, é claro, de grandes
responsabilidades – afinal, quando um “time” não vai bem, normalmente, é o
“técnico” o primeiro a ser responsabilizado; e o primeiro a ser demitido, não é? Da
mesma forma, o co-repetidor acaba se tornando o grande responsável pelos bons e
maus resultados de um espetáculo. E, justamente por isso, não é algo que deve ser
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visto com descaso e superficialidade. É preciso muito preparo técnico e psicológico,


para saber exatamente aonde se quer chegar – e quais são os resultados
almejados. Como já disse, é um trabalho muito sério e que deveria ser encarado de
forma igualmente séria e profissional por todas as nossas instituições musicais.

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