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EU FUI CONTAMINADO


APESAR DE TER NASCIDO E CRESCIDO NUM LAR EVANGÉLICO, foi


no final de 1991 que, de fato, tive um encontro com Cristo.
Lembro-me de ter sido algo muito forte. Estava tendo pertur-
bações espirituais (experiências de sair do corpo, por exem-
plo), e minha mãe pediu-me que fosse ao pastor de nossa igre-
ja para que ele orasse por mim. Relutei em ir (estava atolado
no mundo, embora frequentasse a igreja todos os domingos),
mas acabei cedendo e fui ter com o nosso pastor. Na sala pas-
toral havia um grupo em oração, muito fervoroso por sinal.
Eles começaram a orar por mim e foi algo tão extraordinário,
que acabei, ali mesmo, declarando que minha vida a partir
daquele dia era de Jesus.
Assim que me levantei do chão, já podia sentir uma
paz muito grande que invadia o meu coração. Uma alegria
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imensa brotou nos meus lábios. Era a vida de Jesus fazendo


diferença em minha vida. Estava muito empolgado. A par-
tir daquele dia, minha vida mudou, e isso foi já há quase
dezessete anos.
Como se vê, minha conversão foi marcada por muita eu-
foria e entusiasmo. De imediato, não sentia mais vontade
de estar nos lugares que o mundo comumente oferece aos
jovens. Até minha linguagem havia mudado, era algo muito
bom. Tornei-me um evangelista nato, qualquer pessoa que
cruzasse meu caminho era de pronto abordada por mim para
evangelização. Os vícios de antigamente foram automatica-
mente abandonados. Todos estavam impressionados com a
minha mudança.
Com o tempo, quis me envolver nas coisas de Cristo.
Aproveitei uma viagem missionária, oferecida por uma irmã
em Cristo, saí do meu estado e fui para Pernambuco, onde
permaneci por cerca de quatorze meses. Foi para mim uma
experiência inédita e marcante que levarei para o resto de
minha vida. Depois, no ano de 1994, retornei para minha ci-
dade de origem, para o seio familiar e ingressei no seminário
teológico. Foi nesse ano também que demos início à forma-
ção da primeira turma de “libertadores” em nossa cidade1.
A experiência missionária, seguida pelo estudo de teologia e
pela abertura do curso de libertação (pelo qual sou até hoje
apaixonado) demonstram que eu, com apenas vinte anos,
estava a todo vapor, num gás total.

1 A contar de 1994, já faz dezesseis anos que o curso funciona, vinculado ao nosso
ministério chamado SECRAI – Serviço Cristão de Aconselhamento Integral. Ao todo,
mais de 1500 pessoas já se formaram.

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Durante o ano que se passou, eu estava “no fogo”, muito


empolgado com as realizações.
Foi no segundo ou terceiro ano do seminário que as
coisas começaram a ter uma drástica mudança, e isso em
termos físicos e emocionais. Comecei a perceber o ânimo
de outrora enfraquecer. Sentia-me cansado e exausto, um
sentimento de prostração a imiscuir-se em minha vida. Pior
ainda: dores de cabeça se faziam mais e mais frequentes.
Sentia-me esgotado, mas não sabia o por quê. O que fazer?
Por mais que orasse, jejuasse, falasse etc., nada mudava. Fiz
também muitas guerras espirituais, mas, longe de melhorar,
meu quadro de fraqueza e estresse só se agravava. Precisava
de ajuda, mas não sabia onde buscá-la. Finalmente, recorri
aos meus pais, pedindo que me orientassem na procura de
um médico. Minha mãe me orientou que marcasse a consul-
ta com um neurologista cristão, conhecido da família. Mar-
quei a consulta e fui ter com esse médico.
Lá, fui submetido a um eletroencefalograma. Como cren-
te, novo convertido e bastante envolvido com as coisas de
Deus, não entendia por que estava passando por tudo aquilo.
Finalmente, fui chamado à sala do médico para que ele me
desse seu parecer. Ele fez uma rápida entrevista, sobre quem
eu era, o que fazia e outras perguntas: “Você se culpa muito,
não é mesmo? Você é perfeccionista? Cobra-se demais? Quan-
do aconselha leva os problemas das pessoas para casa?”. Res-
pondia que sim, acenando com a cabeça. Ele, então, disse-me:
“Se você continuar nesse mesmo ritmo e com essa mesma
mentalidade, com quarenta anos você será um pastor cal-
ça frouxa! Você esgotou os limites de suas energias físicas e

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emocionais”. Ele ainda me disse que eu precisaria de psico-


terapia e de medicação psicotrópica. Mas ele enfatizou uma
coisa: minha mentalidade tinha de mudar imediatamente!
Em minha mente, imaginava que o cansaço se devia aos
meus estudos, leituras intensas, atendimentos etc. Também
pesava o fato de que os meus pais passavam por uma grande
crise nessa época, problemas financeiros e de saúde entre ou-
tros. No entanto, não eram as situações que me estressavam,
mas minha forma de lidar com elas. O modo como dige-
ria minhas atividades e problemas foi aos poucos minando
minhas forças. Culpa, perfeccionismo, legalismo, comecei a
perceber que essas coisas guiavam a maioria dos meus pen-
samentos, decisões e até pregações. Descobri há pouco que
a culpa é um tipo de dor mental. Quando somos incomoda-
dos por um sentimento que nos acusa, a nossa consciência
“dói”, não é verdade? Hoje sei que minha dor de cabeça
nada mais era do que a consequência de uma consciência
que não cessava de doer. Engraçado e estranho, antes da
minha conversão, praticamente nunca tive problemas com a
culpa. Por que ela teria surgido após minha conversão? Não
deveria ser justamente o contrário? Agora, como cristão, não
experimentava do milagre da cruz, onde todos os meus peca-
dos foram levados, e eu fora justificado? Mas o efeito foi o in-
verso: quanto mais e crescia na fé, mais culpado me sentia!
Na minha primeira turma do curso de libertação, estava
lendo um livro de David Seamands2 com um grupo de alu-
nos. Nele, o autor fala das características de um pregador
legalista, e todas se encaixavam completamente em minha
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SEAMANDS, David. Cura das memórias. Mundo Cristão.

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vida. Perturbado, perguntei aos meus alunos: “Os irmãos


acham que sou um tipo de pregador legalista, como diz este
autor?” Todos acenaram positivamente com a cabeça. Hou-
ve até uma irmã que disse: “Quando sei que é você que vai
pregar na igreja à noite, sinto até medo, pois sei que vem
cajadada!” Creio que Deus foi usando essas situações para
me chamar a atenção. De algum modo, o “meu evangelho”
causava medo e uma sensação ruim no coração dessas pesso-
as. O fato é que na minha mensagem havia “morte” (ou, se
preferir, “fermento dos fariseus”).
Revisando a minha história, tenho a impressão de que,
apesar de ser novo na fé, colocaram sobre mim um peso
muito grande com responsabilidades, ministérios, aconse-
lhamentos, além dos problemas de minha família que lutava
para resolver. Era como se eu fosse uma casinha, de um pa-
vimento apenas, com base bem superficial (para apenas uma
laje acima) e, de repente, visse-me com dez andares em cima
da minha cabeça! Ficou pesado demais. Não responsabili-
zo aqueles que tinham autoridade sobre mim, pois entendo
que eu mesmo busquei tudo isso. Vejo como “queimei” eta-
pas na minha vida e busquei coisas com muita velocidade na
minha vida espiritual, como se quisesse compensar o tempo
que fiquei longe do evangelho, embora tenha me convertido
ainda adolescente. Detestava ser chamado de novo na fé,
queria ser visto como alguém maduro e cheio de sabedoria
e conhecimento. Há pouco tempo, li um autor explicando
sobre o “carvalho de justiça”, a partir do texto de Isaías 61.
Segundo sua pesquisa, um carvalho leva em média cem
anos para chegar ao seu pleno crescimento. Diferentemente,

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dizia ele, uma aboboreira leva em média seis meses para o


pleno amadurecimento. Por que Deus usou como exemplo
o carvalho que leva um bom tempo para crescer e não a
aboboreira? O fato é que nós temos pressa, mas Deus não.
Tristemente, percebi que estava me tornando uma grande
“abóbora de justiça”, sem bases, sem raízes, sem tronco e
sem estrutura para suportar as responsabilidades nas quais
estava me envolvendo. As consequências vieram, mas Deus,
em sua misericórdia, começou a se mover.
Um livro fundamental em minha vida foi o O despertar
da graça, de Charles Swindoll3. Nesse livro, o autor fala que
os pastores são os que menos conhecem a respeito da gra-
ça de Deus. Pensei: Mas como isso é possível? Os pastores? Mas
não são eles os portadores da mensagem do evangelho, da graça de
Deus? Mesmo impactado, precisei concordar com a afirma-
ção de Swindoll. Vi nas igrejas em que ministrei (e também
onde congreguei) a carência da mensagem da graça divina, e
mais, como não conseguíamos viver essa verdade em nosso
relacionamento com Deus e com nossos irmãos. Brennan
Manning, no livro O evangelho maltrapilho, também concorda
com Swindoll e afirma que “a igreja evangélica dos nossos
dias aceita a graça na teoria, mas nega-a na prática”.4 Hoje
sei que esse é o espírito de religiosidade que rouba nosso
amor a Deus e pelos nossos irmãos. Já escutei mensagens tão
pesadas que minha vontade após o culto era desistir comple-
tamente da vida cristã, pois um Deus tão santo não podia me
amar e me usar, sendo eu quem era (embora não adulterasse,

3 SWINDOLL, Charles R., O despertar da graça, Bom Pastor.


4 MANNING, Brennan. O evangelho maltrapilho. Textus, p. 16

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não roubasse etc.). Mais e mais percebi que “meu evangelho”


tinha problemas, e que a cada dia me distanciava da vida
abundante prometida por Jesus.
O livro de Swindoll confrontou a minha “carne religio-
sa”. Foi uma leitura maravilhosa e que muito me ajudou
a tomar consciência de quem eu era, ou melhor, de quem
havia me tornado: legalista, orgulhoso, distante das pes-
soas, rígido com os outros, cruel em minhas mensagens,
enfim, em uma única palavra, diria: religioso! Estava con-
taminado. Outra provisão de Deus foi a leitura do livro
de Malcom Smith, Esgotamento espiritual5. Através desse
livro tive um diagnóstico preciso do meu quadro. Smith
também passou pelo esgotamento espiritual e emocional.
Quando fala desse assunto, ele diz: “Queimar-se espiritual-
mente não é coisa que só acontece a pastores. Quando os
ministros do evangelho se queimam, ganham publicidade
indesejável e, às vezes, algumas manchetes no jornal local.
Mas o fato é que estamos contemplando uma epidemia
de crentes que abandonam a igreja; e não se pode dizer
que eram daqueles que só iam aos cultos na Páscoa ou no
Natal, e sim crentes exemplares, obreiros esforçados”6. A
conclusão de Smith sobre o que pode explicar tantos esgo-
tamentos em nosso meio está num comportamento típico
da maioria dos cristãos: legalismo.
A tendência de misturar “graça com lei” é algo que perse-
gue a igreja há longos séculos. Lutero precisou fazer a Refor-
ma, no século 16, quando percebeu que a igreja há tempos

5 SMITH, Malcolm. Esgotamento espiritual, Vida.


6 Ibid, p.10

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distanciara-se da graça divina. Foi esse mesmo mal que aco-


meteu a igreja da Galácia7 e que continua até hoje fazendo
vítimas. É possível que precisemos de uma segunda reforma,
mas não sei como Deus a fará. O que sei é que o legalismo é
uma das principais marcas do espírito da religiosidade. Esse
tema será abordado posteriormente, mas poderia definir
desde já o legalismo como a lei do certo em detrimento da
lei do amor. O legalista exalta suas leis e seu código de con-
duta; para ele, “pessoas” vêm em último plano. O legalista
confia em si mesmo, na sua justiça. O fato é que quando
o nosso evangelho está calcado em nós mesmos, segundo
Smith, tornamo-nos também candidatos ao esgotamento es-
piritual. Perceba que, quando esses ingredientes de algum
modo fazem parte da “nossa mensagem”, nós caminhamos
rumo à nossa ruína espiritual. No meu caso, percebi que
minha teologia precisava mudar. Ela estava me matando!
Enquanto escrevo estas páginas, ainda estou me recupe-
rando. Acredito que melhorei de forma significativa nesses
últimos anos, mas o processo ainda está longe de estar aca-
bado. Não posso deixar de mencionar a extraordinária ajuda
de minha esposa (honestamente, depois da Bíblia, é instru-
mento que Deus mais usa para falar comigo) e também de
alguns amigos pastores e conselheiros. O que compartilho
neste livro são caminhos que o ajudarão a ter uma melhor
compreensão do espírito da religiosidade e de como ele age
quase que sigilosamente, assim como entender os estragos
que ele pode causar nas mais diferentes áreas da nossa vida

7 “De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na lei, da graça decaístes.”
(Gl 5.4)

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(saúde, ministério, casamento etc.), mas também como po-


demos retomar o caminho do evangelho vivo e abundante.
A intenção deste livro é trazer para você as sérias consequên-
cias com as quais arcamos quando nos afastamos da compre-
ensão do que a Bíblia chama de “graça de Deus”.

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