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Camus, o viajante
á
EDIT ORA RECORD
Rlo DE JANEIRo. sÁo pAULo
2023
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O dom-juanismo
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bastasse, as coisas seriam simples. Quanto mais se ama, I
mais se consolida o absurdo. Don Juan não vai de mulher em mulher
por falta de amor. É ridículo representá-lo como um iluminado em
I
busca do amor total. Mas é justamente porque as ama com idêntico I
arroubo, e sempre com todo o seu ser, que precisa repetir essa doação I
e esse aprofundamento. Por isso, cada uma delas espera lhe oferecer
o que ninguém nunca lhe deu. Em todas as vezes elas se enganam
profundamente e ú conseguem fazêJo sentir necessidade dessa repe-
I
tição. "Por fim", exclama uma delas, "te dei o amor." Não surpreende I
que Don )uan ria dela: "Por fim? Não"
- diz ele
-, 'outra vez.' I
Por que seria preciso amar raramente para amar muito?
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Don |uan está triste? Não é verossímil. Quase não vou apelar para 1
til a crônica. Esse riso, a insolência vitoriosa, os pulos e o gosto pelo I
teatro são coisas claras e alegres. Todo ser saudável tende a se
I
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I
multiplicar. Don |uan também. Mas, além do mais, os tristes têm Esta vida o completa, não há nada pior que perdê-la. Esse louco l
I
duas razóes para estar tristes, eles ignoram ou eles têm esperança. é um grande sábio. Mas os homens que vivem de esperança se ,
I
Don fuan sabe e não tem esperança. Faz lembrar esses artistas sentempoucoàvontadenesseuniversoondeabondadecedeseu
I
lugar à generosidade, a ternura ao silêncio viril, a comunhão
que conhecem seus limites, nunca os ultrapassam e, no intervalo
precário onde seu espírito se instala, possuem a maravilhosa faci- coragem solitária. E todos dizem: "Era um fraco, um idealista
à
ou l'; I
lidade dos mestres. E está justamente aí o gênio: a inteligência que umSanto.,,Éprecisorebaixaragrandezaqueinsulta. I
conhece suas fronteiras. Até a fronteira da morte física, Don |uan
ignora a tristeza. A partir do momento em que sabe, seu riso ex- O discurso de Don |uan provoca bastante indignação (ou a risa-
da cúmplice que degrada aquilo que admira), assim como aque-
I
plode e consegue que tudo lhe seja perdoado. Foi triste no tempo
em que esperou. Hoje, na boca dessa mulher, torna a encontrar o la frase que serve para todas as mulheres. Mas, para quem busca
t
sabor amargo e reconfortante da ciência única. Amargo? Quase: a quantidade de prazeres, só interessa a eficácia. Para que com- I
essa necessária imperfeição quç torna perceptível a felicidade! plicar as fórmulas que funcionaram bem? Ninguém, a mulher I
É um grande engano pretender ver em Don Juan um homem ou homem, as ouve, só ouvem â voz que as pronuncia. São a re-
que se nutre do Eclesiastes. Porque, para ele, a única vaidade g*ru:^ convenção 9 a cortesiS,.Elas são ditas, e depois o mais im-
é a esperança de outra vida. Ele o prova, porque aposta contra portante ainda falta fazer. Don f uan já se prepara para isso. Por
o próprio céu. O lamento do desejo perdido no deleite, esse .gye
teria ury problema moral? Não é condenado por desejo de I
lugar-comum da impotência, não lhe pertence. Isto funciona ser santo, como o Maflara de Milosz. O inferno para ele é coisa t
para Fausto, que acreditou suficientemente em Deus Para se provocada. S_ó há gma re-sposta
"Sou um homem honrado", diz
parl a cófera divina: a honra. hu-
o Comendador,
I
vender ao diabo. O "Trapaceiro" de Tirso de Molina responde ele Para
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*]
são afastados de toda a vida pessoal Por um grande amor talvez
diferença: é consciente, e Portanto é abqurdo' Um sedutor que
seenriqueçam, mas certamente empobrecem os escolhidos pelo
adquiriu lucidez não mudará por isso. Seduzir é sua condição.
seu amor. Uma mâe, uma mulher apaixonada têm necessaria-
Somente nos romances as Pessoas mudam de condição ou se
mente o coração seco, Porque afastado do mundo' Um único
tornam melhores. Mas pode-s e dizer que ao mesmo tempo nada
sentimento, um único ser, um único rosto, mas tudo acaba de-
mudou e tudo setransformou. O que Don |uan põe em prática
vorado. É outro amor o que faz Don |uan estremecer, e este é
é uma ética da quantidade, ao contrário do santo, que tende à
libertador. Traz consigo todos os rostos do mundo e seu tremor
qualidade. A característica do homem absurdo é não- lcreditar
provém de saber-se perecível..Don |uan escolheu nâo ser nada'
no sentido profundo das coisas. Ele percorre, ârmâzenâ e quei-
Para ele, a questáo é ver claro. Só chamamos de amor o que ,!
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é congciente dela na medida em que não pensar? Nele se resumem todos os poderes da Razão eterna, da
nenhuma surpresâ. Ele
ordem, da moral universal, toda a grandeza externa de um Deus
oculta de si mesmo o seu horror' Em Atenas havia um
templo
acessível à cólera. Essa pedra gigantesca e sem alma simboliza
.onrugrudo à velhice, aonde levavam as crianças' No caso
de
figura' EIe apenas os poderes que Don |uan sempre negou' Mas a missão
Don Juan, quanto mais se ri dele, mais se destaca sua
Nin- do Comendador para aí. O raio e o trovão podem voltar ao
recusa, assim, a imagem que os românticos Ihe atribuíram'
desse Don |uan atormentado e lastimável' Têm
céu fictício de onde foram chamados. A verdadeira tragédia se
guém quer rir
será que o próprio céu o redimirá? Mas não desenrola à margem deles. Não, Don )uan não morreu sob uma
compaixào dele,
No universo que Don |uan vislumbra' o ridículo mão de pedra. Prefiro acreditar na bravata lendária, na risada
se tratâ disso.
É a regra insensata do homem sadio provocando um deus que não existe.
tambémestá incluído. Ser punido lhe parece normal'
ter aceito Mas acredito, principalmente, que na noite em que Don |uan
do jogo. E sua generosidade consiste, justamente' em
razão e que estava esperando na casa de Ana, o Comendador não âPareceu
inteiramente a regra do jogo. Mas ele sabe que tem
uma punição' eo Ímpio deve ter sentido, depois de meia-noite, a terrível amar-
não pode tratar-se de castigo' Um destino não é
eterno exijam gura daqueles que tiveram razão. Aceito ainda melhor o relato
Este é o seu crime, e se entende que os homens do
chegou a uma ciência sem ilusÓes que nega de sua vida que o mostra, ao final, encerrado num convento.
um castigo. Don )uan
possuir, conquistar e esgotar' eis Não é que se possa considerar verossímil o lado edificante da
tudo o que eles professam. Amar e
das Escrituras, história. Que refúgio pedir a Deus? Mas isto representa antes a
sua maneira de conhecer. (Tem sentido esta escolha
em que ig- culminação lógica de uma vida totalmente impregnada de ab-
gue chamam de "conhecer" o ato do amor') Na medida
que o verdadeiro surdo, o desenlace feroz de uma existência dedicada a alegrias
nora, é pior inimigo deles' Um cronista informa
sem futuro. O gozo termina aqui em ascese. É preciso entender
"Trapaceiro" morreu assassinado por franciscanos que quiseram
que ambos podem ser as duas faces do mesmo desenlace. Que
"dar fim aos excessos e impiedades de Don )uan' cujo nascimento
que o céu o imagem mais assustadora desejar: a de um homem a quem seu
garantia a sua impunidacle". E depois proclamaram
corpo trai e que, por não ter morrido a temPo, consuma a co-
tinha fulminado. Ninguém Provou esse estranho fim'
Ninguém
questionar se média esperando o fim, cara a cara com o deus que não adora,
tampouco demonstrou o contrário' Mas mesmo sem
grifar aqui o termo servindo-o como serviu a vida, ajoelhado diante do vazio com
issoe verossímil, posso dizer que é lógico' Quero
jogar com palavras: o que garântia a sua inocência os braços estendidos Para um céu sem eloquência e, como ele
'nascimento" e as
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os fantasmas dos amores passados, mas, talvez por uma seteira
ardente, para alguma planície silenciosa da Espanha, terra mag-
nífica e sem alma onde se reconhece. Sim, é preciso fazer um
alto diante dessa imagem melancólica e radiante. O 6m último,
esperado mas nunca desejado, o frm último é desprezível.
3
A comédia
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