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OBRAS DO AUTOR PUBLICADAS PELA EDITORA RECORD

Romance
O estrangeiro
A morte feliz
A peste
A queda

Contos
Oexílioeoreino

Teatro ALBERT CAMUS


Estado de sítio
O MITO DE SÍ5IFO
Ensaio
Oavessoeodireito
Bodas em Tipasa
O homem revoltado
A inteligência e o cadafalso rnnouçÃo oe
O mito de Sísifo ARI ROITXAI{ E PAUTIXÁ IYAICH
ReJlexoes sobre a guilhotina
26' edição

Memórias
Diário de viagem

Coletânea
Camus, o viajante

á
EDIT ORA RECORD
Rlo DE JANEIRo. sÁo pAULo
2023
2
O dom-juanismo

S"
"*",
bastasse, as coisas seriam simples. Quanto mais se ama, I
mais se consolida o absurdo. Don Juan não vai de mulher em mulher
por falta de amor. É ridículo representá-lo como um iluminado em
I
busca do amor total. Mas é justamente porque as ama com idêntico I
arroubo, e sempre com todo o seu ser, que precisa repetir essa doação I
e esse aprofundamento. Por isso, cada uma delas espera lhe oferecer
o que ninguém nunca lhe deu. Em todas as vezes elas se enganam
profundamente e ú conseguem fazêJo sentir necessidade dessa repe-
I
tição. "Por fim", exclama uma delas, "te dei o amor." Não surpreende I
que Don )uan ria dela: "Por fim? Não"
- diz ele
-, 'outra vez.' I
Por que seria preciso amar raramente para amar muito?
,l
Don |uan está triste? Não é verossímil. Quase não vou apelar para 1
til a crônica. Esse riso, a insolência vitoriosa, os pulos e o gosto pelo I
teatro são coisas claras e alegres. Todo ser saudável tende a se
I
85 t

t I
I
multiplicar. Don |uan também. Mas, além do mais, os tristes têm Esta vida o completa, não há nada pior que perdê-la. Esse louco l
I
duas razóes para estar tristes, eles ignoram ou eles têm esperança. é um grande sábio. Mas os homens que vivem de esperança se ,
I
Don fuan sabe e não tem esperança. Faz lembrar esses artistas sentempoucoàvontadenesseuniversoondeabondadecedeseu
I
lugar à generosidade, a ternura ao silêncio viril, a comunhão
que conhecem seus limites, nunca os ultrapassam e, no intervalo
precário onde seu espírito se instala, possuem a maravilhosa faci- coragem solitária. E todos dizem: "Era um fraco, um idealista
à
ou l'; I
lidade dos mestres. E está justamente aí o gênio: a inteligência que umSanto.,,Éprecisorebaixaragrandezaqueinsulta. I
conhece suas fronteiras. Até a fronteira da morte física, Don |uan
ignora a tristeza. A partir do momento em que sabe, seu riso ex- O discurso de Don |uan provoca bastante indignação (ou a risa-
da cúmplice que degrada aquilo que admira), assim como aque-
I
plode e consegue que tudo lhe seja perdoado. Foi triste no tempo
em que esperou. Hoje, na boca dessa mulher, torna a encontrar o la frase que serve para todas as mulheres. Mas, para quem busca
t
sabor amargo e reconfortante da ciência única. Amargo? Quase: a quantidade de prazeres, só interessa a eficácia. Para que com- I
essa necessária imperfeição quç torna perceptível a felicidade! plicar as fórmulas que funcionaram bem? Ninguém, a mulher I
É um grande engano pretender ver em Don Juan um homem ou homem, as ouve, só ouvem â voz que as pronuncia. São a re-
que se nutre do Eclesiastes. Porque, para ele, a única vaidade g*ru:^ convenção 9 a cortesiS,.Elas são ditas, e depois o mais im-
é a esperança de outra vida. Ele o prova, porque aposta contra portante ainda falta fazer. Don f uan já se prepara para isso. Por
o próprio céu. O lamento do desejo perdido no deleite, esse .gye
teria ury problema moral? Não é condenado por desejo de I
lugar-comum da impotência, não lhe pertence. Isto funciona ser santo, como o Maflara de Milosz. O inferno para ele é coisa t
para Fausto, que acreditou suficientemente em Deus Para se provocada. S_ó há gma re-sposta
"Sou um homem honrado", diz
parl a cófera divina: a honra. hu-
o Comendador,
I
vender ao diabo. O "Trapaceiro" de Tirso de Molina responde ele Para

sempre às ameaças do inferno: "Que prazo grande você me


ry.-4g"q
*e
cumpro minha promessa porque sou um cavalheiro." Mas
I
dá!" O que vem depois da morte é fútil, e que longa serie de seria um erro igualmente grande considerá-lo um irnoralista. I
dias para quem sabe que está vivo! Fausto exigia os bens deste Nesie sentido, ele! "com"o todg mundo": tem a moral de sua sim- I
mundo: o infeliz só precisava estender a mão.-I-á elavqq$-g-sua patia ou sua antipatia. Para entender bem Don |uan, é preciso
alma o fato de não saber desfrutar dela. Don fuan, pelo contrá- referir-nos sempre âo que gle s.itboJizl vulg3rmgnl_e-:"9 qedglor
iià, Uu..u a saciedade. Se abandona uma bela mulher náo é de comum e o mulherengo. Ele é um sedutor comum.* Com uma
maneira alguma porque não a deseje mais. Uma bela mulher
sempre é desejável. Mas acontece que, nela, deseja outra, o que * No sentido pleno e com seus defeitos. Urna atitude saudável inclui também
nãoéamesmacoisa. defeitos.

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*]
são afastados de toda a vida pessoal Por um grande amor talvez
diferença: é consciente, e Portanto é abqurdo' Um sedutor que
seenriqueçam, mas certamente empobrecem os escolhidos pelo
adquiriu lucidez não mudará por isso. Seduzir é sua condição.
seu amor. Uma mâe, uma mulher apaixonada têm necessaria-
Somente nos romances as Pessoas mudam de condição ou se
mente o coração seco, Porque afastado do mundo' Um único
tornam melhores. Mas pode-s e dizer que ao mesmo tempo nada
sentimento, um único ser, um único rosto, mas tudo acaba de-
mudou e tudo setransformou. O que Don |uan põe em prática
vorado. É outro amor o que faz Don |uan estremecer, e este é
é uma ética da quantidade, ao contrário do santo, que tende à
libertador. Traz consigo todos os rostos do mundo e seu tremor
qualidade. A característica do homem absurdo é não- lcreditar
provém de saber-se perecível..Don |uan escolheu nâo ser nada'
no sentido profundo das coisas. Ele percorre, ârmâzenâ e quei-
Para ele, a questáo é ver claro. Só chamamos de amor o que ,!

ma os rostos calorosos ou maravilhados. o tempo caminha com


noSuneacertoSseresporinfluênciadeumpontodevistacoletivo
ele. O homem absurdo é aquele que não §e separa do tempo' Don
gerado nos livros e nas lendas. Mas do amor só conheço a mistura
número e'
|uan não pensa em'colecionar" mulheres. Esgota seu
de desejo, ternura e entendimento que me liga a determinado ser.
clm elas, suas possibilidades de vida. colecionar é ser capaz de
1l

Tal composto não é o mesmo em relação a outro' Não tenho o


viver do passado. Mas ele rejeita a noslalgia, essa outra maneira
direito de revestir todas essas experiências com o mesmo nome'
da esperança. Não sabe contemplar os retratos'
Isto dispensa de realizá-las com os mesmos gestos' Tambem aqui
o homem absurdo multiplica o que não pode unificar' Assim, '
Será por isso egoísta?À sua maneira, sem dúvida' Mas' também
descobre uma nova maneira de ser que o libera tanto quanto li-
aqui, precisamos nos entender bem. Há gente que é feita para
bera o próximo. Não há amor generoso senáo aquele que se sabe
viver e gente que é feita Para amar. Don Juan, ao menos, diria
ao mesmo tempo passageiro e singular. São todas essas mortes e
isto de bom grado. Mas para escolher precisaria de um atalho.
esses renascimentos que constituem para Don |uan o eixo de sua
porque o amor de que ele fala é aqui adornado com as ilusÓes do
vida. É a maneira que ele tem de dar e de fazer viver" Será que se
cterno. Todos os especialistas em paixão nos ensinam isso,Ião
pode falar de egoísmo?
há amor eterno a náo ser o contrariado. Não existe paixão sem
luta. Um amor assim só termina com a última contradição' que
Penso agorâ em todos os que desejam um castigo para Don )uan
é a morte. Você tem que ser Werther, ou nada' AÍ também há
seja como for. Não aPenas na outra vida, mas também nesta'
várias maneiras de suicidar-se, uma das quais é a doação total
penso em todas as histórias, lendas e brincadeiras sobre Don ,

e o esquecimento da própria Pessoa. Don |uan, como qualquer


Juan envelhecido. Mas Don ]uan está preparado
para isso' Para
um, sabe que isso pode ser emocionante. Mas ele é dos Poucos a
que um homem consciente, a velhice e o que esta pressagia náo são
saber que náo é o mais importante. Sabe muito bem: aqueles

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é congciente dela na medida em que não pensar? Nele se resumem todos os poderes da Razão eterna, da
nenhuma surpresâ. Ele
ordem, da moral universal, toda a grandeza externa de um Deus
oculta de si mesmo o seu horror' Em Atenas havia um
templo
acessível à cólera. Essa pedra gigantesca e sem alma simboliza
.onrugrudo à velhice, aonde levavam as crianças' No caso
de

figura' EIe apenas os poderes que Don |uan sempre negou' Mas a missão
Don Juan, quanto mais se ri dele, mais se destaca sua
Nin- do Comendador para aí. O raio e o trovão podem voltar ao
recusa, assim, a imagem que os românticos Ihe atribuíram'
desse Don |uan atormentado e lastimável' Têm
céu fictício de onde foram chamados. A verdadeira tragédia se
guém quer rir
será que o próprio céu o redimirá? Mas não desenrola à margem deles. Não, Don )uan não morreu sob uma
compaixào dele,
No universo que Don |uan vislumbra' o ridículo mão de pedra. Prefiro acreditar na bravata lendária, na risada
se tratâ disso.
É a regra insensata do homem sadio provocando um deus que não existe.
tambémestá incluído. Ser punido lhe parece normal'
ter aceito Mas acredito, principalmente, que na noite em que Don |uan
do jogo. E sua generosidade consiste, justamente' em
razão e que estava esperando na casa de Ana, o Comendador não âPareceu
inteiramente a regra do jogo. Mas ele sabe que tem
uma punição' eo Ímpio deve ter sentido, depois de meia-noite, a terrível amar-
não pode tratar-se de castigo' Um destino não é
eterno exijam gura daqueles que tiveram razão. Aceito ainda melhor o relato
Este é o seu crime, e se entende que os homens do
chegou a uma ciência sem ilusÓes que nega de sua vida que o mostra, ao final, encerrado num convento.
um castigo. Don )uan
possuir, conquistar e esgotar' eis Não é que se possa considerar verossímil o lado edificante da
tudo o que eles professam. Amar e

das Escrituras, história. Que refúgio pedir a Deus? Mas isto representa antes a
sua maneira de conhecer. (Tem sentido esta escolha
em que ig- culminação lógica de uma vida totalmente impregnada de ab-
gue chamam de "conhecer" o ato do amor') Na medida
que o verdadeiro surdo, o desenlace feroz de uma existência dedicada a alegrias
nora, é pior inimigo deles' Um cronista informa
sem futuro. O gozo termina aqui em ascese. É preciso entender
"Trapaceiro" morreu assassinado por franciscanos que quiseram
que ambos podem ser as duas faces do mesmo desenlace. Que
"dar fim aos excessos e impiedades de Don )uan' cujo nascimento
que o céu o imagem mais assustadora desejar: a de um homem a quem seu
garantia a sua impunidacle". E depois proclamaram
corpo trai e que, por não ter morrido a temPo, consuma a co-
tinha fulminado. Ninguém Provou esse estranho fim'
Ninguém
questionar se média esperando o fim, cara a cara com o deus que não adora,
tampouco demonstrou o contrário' Mas mesmo sem
grifar aqui o termo servindo-o como serviu a vida, ajoelhado diante do vazio com
issoe verossímil, posso dizer que é lógico' Quero

jogar com palavras: o que garântia a sua inocência os braços estendidos Para um céu sem eloquência e, como ele
'nascimento" e as

agora lendária' sabe, também sem profundidade.


era viver. Só na morte ele adquiriu uma culpa'
fria Vejo Don |uan numa cela daqueles monastérios espanhóis
Que outracoisa significa o Comendador de pedra' essa
gue ousaram perdidos numa colina. Se ele olha para alguma coisa, não é para
estátua animada para castigar o sangue e a coragem

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os fantasmas dos amores passados, mas, talvez por uma seteira
ardente, para alguma planície silenciosa da Espanha, terra mag-
nífica e sem alma onde se reconhece. Sim, é preciso fazer um
alto diante dessa imagem melancólica e radiante. O 6m último,
esperado mas nunca desejado, o frm último é desprezível.

3
A comédia

"O .rp"táculo" diz Hamlet "é aarmadilha com que vou


- -
capturâr a consciência do rei." Capturar éa expressão adequada.
Pois a consciência anda rápido ou recua. É preciso pegá-la no voo'
no momento inapreciável em que lança uq olhar fugidio sobre si
mesma. O homem cotidiano não gosta de demorar. Pelo contrá-
rio, tudo o apressa. Ao mesmo tempo, porérn, nada lhe interessa
além de si mesmo, principalmente aquilo que poderia ser. Daí seu
gosto pelo teatro, pelo espetáculo, onde Ihe são propostos tantos
destinos que lhe oferecem a poesia sem lhe impor sua amargura.
Nisto, ao menos, reconhecemos o homem inconsciente, e ele
continua apressado atrás de uma esperança qualquer. O homem
absurdo começa onde este termina, no ponto em que, deixando
de apressar o jogo, o espírito quer entrar nele. Penetrar em todas
essas vidas, experimentá-las em sua diversidade é propriamente
representá-las. Não digo que os atores em geral obedeçam a tal

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