Você está na página 1de 52

I

rh
POST[I.
I

ê
-t

Língua franca(1968)
Homenagem a Louise Labé - 11
Inspirado por um vaso - 13

Avida em comum (1969)


A vida em comum, 4 - 15

Esqueci de avisar que estou vivo (1973)


Pastoreando um bruxo vbanizado - 1Z
Meia-noite no Bingen * 19
Pedralume - 21
Com gatos e Goethe - 23

Anjo tigrado (1975)


Anjo tigrado - 25
Mulheres de milho - 27
Letraparuum teâtro completo - 29

Sibilitz (1981)
Deposição do chefe de uma personalidade - 31
Tiê.sangue - 33
Foi queimar livros velhos
e achou na mala um beija-flor - 35

Justificação de deus - 37

Assim (1986)
Contemplação dos seios das beterrabas - 39
A poesia e a matança dos mosquitos - 41
Bonito e contrastado * 43
Argumentos invisíveis (1g g S)
Arnbições de assombrações _ 45
Introdução à arte das montanhas _ 47
Dia de diiúrvio - 49
O apanhador no campo _ 51
Maluco cantando nas montanhas _ 53
Ao sonhador, o inveterado _ -5-5

Qratorze quadros redondos (1ggl)


Urvento - 57
Mulher de pé no fim do mundo _ 59

Chinês com sono (2005)


Amor na moita - 61
O observador observado - 63
O império das ibrmigas - 65

tilha (2015)
A lagoa dos olhares - 67
Colar de algas- 69

Entrevista - 7I

Sobreoautor-101
Homenagem a Louise Labé

Após o banho mas


ainda tonto de prazeres
após o banho
mas cheirando a comida e sexo
é até engraçado que eu me lembre de ti
não sei aonde vou
vou apenas me expor à curiosidade pública
e pedir a alguém que escarneça de mim
- porque sofro de amor:
há sábios
moças
multidões à espreita
o coração range
a raíva me cega, tropeço nos livros
antes talvez tomasse um drinque
mas não há tempo
não há misericórdia
um tigre ronda o quarto
j'ay chaut estreme en endurant.froidure
perdi todos os rumos e
nessa altura da vida, às três da tarde,
já náo sou um misto de orgíaco e scholar
--
11
procuro uma emoção bem simples Inspirado por um vaso
um rosto
no qual me reconheça.

Assim como os oleiros que se entÍegam em pasmo à


estafante percepção de uma forma girada nos próprios
dedos, assim como os pintores que se dão por completo
à fantasia que evola do verniz dessa forma e criam, no
seu bojo, uma tensão contraditória de músculos,

assim como os humildes que a conservam em uso,


carÍegam essa forma nos ombros,
afeiçoam-se a ela -
- e não são nada,

senão um par de olhos contemplando as figuras


cujo mágico poder faz do labor um prêmio,

assim como os devotos que a honram


e a demonstÍam em pânico, fiéis servos da morte,
ao cínico iuízo dos deuses,
assim como os guerreiros que o seu brilho confunde,
os reis que a acariciam e se toÍnam escravos do lu-xo
ou os marujos que a embarcam no generoso destino
de suas frotas

h batidas pelos mares incógnitos

13
para depois, acaso, abandoná-la Avida em comumr 4
numa angra de sólidos ciprestes,

assim como os que lidam com essa forma,


v^zam a linha de contorno, buscam De um ao outro ir, partir,
no campo ilimitado, mas não raro ilusório, para, enquanto a vida passa,
de suas tantas aparências esdrúxulas poder chorar e sorrir.
uma indicação de sentido para os gestos humanos
que a elaboram e transmitem àvida, De um ao outÍo encaminhar-se
para, enquanto transitórios,
assim como os que indagam seu gênio, poder à morte passar-se.
e a ele se curvam, confrangidos
à dura aceitação da realidade, De um ao outro consumir-se
assim, minha existência, eu te persigo para, enquanto for possível,
nabeleza da tarde e me debruço poder, tendo, despossuir-se.
em doce curvatura sobre o Arno.
De um ao outro viajar-se
para, enquanto der vontade,
poder se ver e calar-se.

De um ao olrtÍo conduzir-se
para, enquanto se vai indo,
poder ficar e fundir-se.

De um ao outro extravasar-se
para, enquanto estar-no-mundo,
poder ser: comunicar-se.

74 15
De um ao outro transferir-se Pastoreando um bruxo urbanizado
para, enquanto completando-se,
poder se dar e pedir-se.

De um ao outro orientar-se Interpele o mato a brotação a seiva


para, enquanto é tempo ainda, que borda obras custosas de artesão
poder amar - e salvar-se. sob os elos amenos do jardim indague
com que paciente amor íoram tecidos
os fios luminosos da manhã
cuja cortina ondeada se biparte nos morros .a§ure
toda forma suspeita wbanizada
ou transmitida
por imperfeitas formas literárias
de assimilar o mundo espie
essa nudez de coisas que se entÍef1am
à embriaguez da própria criação o lento
crescimento raízes
matizes o intento
imprevisível do capim a ilusão preguiçosa
de nuyens que desandam
e de repente chovem sobre a roça
um frio leque de água clara ouça
essa mensagem muda que o minuto
sopra: viva invoque vislumbre invente
mas não pergunte nada.

76
1.7
Meia-noite no Bingen

Vitraux e vestais decoram meu 1ar


aberto para os pastos da insônia, à frente
do meu rosto há o calibre cego
de uma estrela porém nenhuma *
- os fios do tempo me embaraçam, mas me torno
um navegante do possível
e, por bem ou por mal, entro na esfera
brumosa de uma incauta geometria
que o meu próprio desvario constrói e derruba
com abstrações fora de hora: é meia-
noite no mundo escuro em que vivemos
encurraiados entÍe amoÍ e manhã,
cosmo e arrebol, diamante
e bosta, é meia-noite
no Bingen (aber es ist noch nicbt Zeit),
em Avignon ou Lérida alguém diz o mesmo,
ou pensa o mesmo, um gesto
sempre tem outro que o desenha ou apaga
no grande quadro-negro da vontade geral
que ninguém obedece nem manda; entÍo
no beco sem saída da vida
como um ator de costas para o público

1.9
que se ajoelha e pede Pedralume
licença para rir.

Confortável mobília o corpo


e seus ângulos bambos acutângulos
sacudindo-me dentro seu chocalho
alho seu sorriso e seu dengo
que me tÍansporta o corpo
todo sem porta ou pandemônio,
simplesmente colhido mastigado meu corpo imenso
que é do tamanho deste punho fechado.

20 21
Com gatos e Goethe

Repara para. Despeja


aromas retratos diplomas
impurezas.
Almoça a alma
e cospe - sem nojo sem mágoa.

23
Anjo tigrado

poeta fino de temperamento participante


muito impressionável
um dia dei de cara com o mundo
o mundo de quando eu era
um muleque al,uador: caí no poço, de novo,
e vi cenas-avenidas com camas improvisadas num canto

aos trinta e poucos anos dei para cafu em poços


com a mesma naturalidade com que eu chupava
pitangas.

Vi dentes dantescos
no meu ombro aluado, já que então eu me via
numa dança de caras,
e de cada lado meu tinha sobrado um retratc)
todos meus todos lindos todos sufocantemente
sozinhos:

num retrato eu catava


bocas; noutro um trem me despetalava; havia uma pose
- essa menos futil -
que me surpreendia no ato de ser orgânico em público.

25
Mas um dia cismei, juntei tudo e joguei fora Mulheres de milho
fui pro mato
de onde só sairei como um tigre.

Milhares de muiheres de milho


brotam do meu olho calado como espigas
fortes. No ar elas se endireitam

como folhudas criaturas carnosas


que ao vento se transmudam, de Íêmeas,
em formosos penachos machos.

Acho graça na crvzà; penso nisso


que é ser mulher a passo
de, sob a vertigem solar, virar confusa

hibridação. Abro-me. Brinco


de me dar. Rapto-me e oPto-me
como se eu mesmo fosse me comer inteiro

enquanto as coisas simplesmente nascem

26 27
LetraPaÍa um teatÍo completo

Sei seiscentas lânguidas, porém desconheço


o gesso o âmbar as coisas límPidas
que nem lâmpadas no lugar da cabeça que nem essâ
preguiça que me iça como se eu fosse uma ursx
ou uma garça que se esPicha no sol.

Sei, de cor, o seio da casa a sala-estuário o rodeio dos


cômodos
o ouro em pó no ovário literário
o vírus que come, com fome, os papéis e a mesa'

Mas não sei,


ensa10,
a seiva que me silva num silêncio sem queixa
ou - quem sabe - essa acha de lenha.

29
Deposição do chefe de uma personalidade

vítimas de um sinistro mental


reúnem-se para discutir em público
os restos e as raízes do chefe de uma personalidade
a diluição das parcelas
das camadas
é demorada
os vínculosdo chefe resistem
ele tem um nome tem amigos
documentos mapas convicções memória
fotos que o surpreendem
na dança de imagens do seu rosto
o chefe não quer admitir de saída
que ele está num beco
chuvoso
e o que ele acha que é cimento nos ossos
é âgaa correndo
por dentro da explosão dos dias
o chefe batalha
abre sua tesoura mágica
pÍacofia;. o umbigo
das representações
mas não tem jeito

31
a toalha cai Tiê-sangue
da mesa

existe um passarinho vermelho tiê-sangue no mato


perto da situação casual de eu lembrar de você e eie
aparecer subitamente ou passar como um raio levado
na abertura azul de duas folhas que um ventinho
destrança.

existe um passarinho tiê-sangue que é a essência


da codificação desh,rmbrante desses momentos
que passo
à busca búsqueda incompreensões me largado
na liquidez completa de não contâr com uma
explicação para hoje.

um passarinho tiê-sangue avançando


no balanceamento das rodas crepusculares do acaso
que por acaso é o nome das circunstâncias que eu dou
à roda das madrugadas tiê-sangue subindo
e balançando aqui no alto do morro como
um passarinho.

existe uma infinita uma fita imensurável, a quinta


pérola do alfabeto dentário de Cadmo plantando
palavras

32 33
numa brincadeira atônita
Foi queimar liwos velhos
de dizer que existem o Infinito . o Ág.,u. e achou na mala um beija-flor

um tiê-sangue bem bonito suspirado parando


como a atingir na ponta-do-galho o Momento
Extremo. Silêncio.
Achei entÍe os fantasmas um beija-flor morto de frio.
Estou com muito frio também ao fiaÍÍaÍ o caso.
Mas minha morte. Silêncio. Não estava.
Qreimei então o mofo das situações.
Por mais um pouco eu jogaria na tarde
o álcool do incesto.
Todas as labaredas belisconas
e admirei sobretudo a resistência dos papéis atiçados.
Nesse fogo que eu frz estavam muitas perguntas.
Silêncio.
Nenhuma provisória respostâ que satisfizesse mesmo.
Os fantasmas poderiam dizer que essa é a minha índole.
As tias conversando por perto,
mas não estayam, silêncio,
e a múmia vocabular dos pressentimentos La pÍata
que sinceramente eu só vim a intuir depois.
Agora os cataventos do poeta alemão
os muros brancos do poeta alemão
a eternidade do poeta francês
tudo isso queimou.

34
35
Qreimei a maia cheia de livros e inventei a palavra Justificação de deus
praticolombinasana. Naturaimente com isso
não se resolveu muita coisa.
Silêncio. Não se resolveu muita coisa
naturalmente. o que eu chamo de deus é bem mais vasto
e às vezes muito menos comPlexo
que o que eu chamo de deus. Um dia
foi uma casa de marimbondos na chuva
que eu chamei assim no hospital
onde sentia o sofrimento dos outros
e a paciência casual dos insetos
que lutavam paÍa construir contra aâg:ua.
Também chamei de deus a uma Porta
e a uma árvore na qual entrei certa vez
para me Íecarregar de energia
depois de uma estrondosa derrota'
Deus é o meu grau máximo de compreensão relativa
no ponto de desespero total
em que uma flor se movimenta ou um cão
danado se aproxima solidário de mim.
E é ainda apalavradeus que atribuo
aos instintos mais belos, sob a chuva,
notando que no chão de passagem
já brotou e feneceu várias vezes o que eu chamo de alma
eétalvezacalma
na química dos meus desejos
de oferecer uma coisa.
37
36
Contemplação dos seios das beterrabas

manhã de chuva banheira


na horta sabiás
cantando
em volta
de uma enorme figueira
cujas raízes abraçam
uma pedra enorme
que Parece
um oYo
de musgo cristalizado
depositado pela própria
árvore galinácea
fenomenal
parada entre os canteiros
de alface
e depois uma tira
de terra vermelha
na qual despontam afundados
os seios quase roxos
das beterrabas

39
A poesia ea matança dos mosquitos

Cada poema original que escrevo à máquina contém


pelo menos
2 or 3 cadáveres de mosquitos esfregados no rolo.
Isso porque escrevo muito de madrugada com
altz acesa.
Antes de amanhecer eu apago para espiar a mutação
de cores.
Meu editor um dia vai receber a coleção completa.
Parece que Pablo Neruda colecionava por sua vez
caramujos.
lJma senhora que me visitou outro dia achou que tenho
alma de artista.
Como as pessoas são boas observadoras agora.
Os meus cachorros latem muito de noite quando
estou escrevendo.
Eu acho isso muito chato porque fico tenso.
À, ,"r., eu penso que vai sair do mato
um macacão enoÍme.

47
Bonito e contrastado

levei anos paru dizer que levei anos


para dizer uma coisa que eu não sei como é

que deve finalmente ser dita


à maneira de ofensa ou de oração
Parei
pensei um pouco mais e resolvi desistir
porque ainda é cedo
porque senão perde a graça
antes do fim
hoje é uma segunda-feira em novembro
o dia está bonito
muito bonito
e contrastado

43
Ambiçoes de assombrações

Incertos os galhos tortos, você


vê, armam-se como esqueletos
ffit de silenciosa e fria carnadura
como se, no escuro, de cada galho
surgissem numerosas Pessoas
vendo você observá-las na sua
desabitada languidez vegetal
de pessoas nuas resinosas
querendo corporificar sem Poder
gestos aflitos, ritos solitários
músicas de impercePtível tremor
e, naturalmente) a semente da morte
inoculada por cada criatura
no seu próprio olho desmesurado'

tt
.)

45
Introdução à arte das montanhas

Um animal passeia nas montanhas.


Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conrluz'
Puxado sempre para cima o animal é um ímã,
t
I

numa escala de formiga, que as montanhas atraem.


Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume'
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agoÍa tem de aprender a descer.

47
ill

Dia de dilúüo

Qrando chove assim tão seguidamente na serra


e começa a pingar âgua na casa e a goteira
cresce e a pia entope e alagao chão,
quando não cessa esse barulho insistente
de água penetrando em tudo e rolando,
sinto uma desproteção total violenta
e eu mesmo sendo dissolvido também
nessa casa alagada, não me acho
enquanto solidez: vou flutuando
como onda inconstante na correnteza.

49
O apanhador Ílo campo

Fruta e mulher no mesmo Pé de caqui


no qual espantando os passarinhos eu trepo
para apanhar como um gaÍoto a fruta
e apreciar, comendo-a 1á no alto, a mulher
que ficou embaixo me esperando subir

e agoÍavejo se mexendo entre as folhas,


t
com seus olhos de mel, seus ombros secos,

t enquanto me contorciono todo subindo


entre línguas de sol, roçar de galhos,
para alcançar e aÍremessar para ela,
no ponto mais extremo, o caqui mais doce.

51
Maluco cantando nas montanhas
(Baseado em Po Chú-i ou BaiJuyi, China,772-846)

Todo mundo nesse mundo tem a sua fraqteza.


A minha é escrever poesia.
Libertei-me de mil laços mundanos,
mas essa enfermidade nunca passou.
Se vejo uma paisagem bonita,
se encontro algum amigo querido,
recito versos eínyoz alta, contente
como se um deus cruzasse em meu caminho.
Desde o dia em que me baniram para Hsün-yang,
metade do meu tempo vivi aqui nas montanhas.
Àr r"r.r, quando acabo um poema,
subo pela estrada sozinho até a Ponta do Leste.
Nos penhascos, que estão brancos, me inclino:
prrxo com as mãos um galho verde de cássia.
Vales e montanhas se espantam com meu louco cantar
=
passarinhos e macacos acorrem para me espiar,
eu que, temendo me tornar para o mundo
motivo de chacota,
tinha escoihido esse lugar, aonde os homens não vêm.

53
Ao sonhador, o inveterado

Essas figuras que o desejo desenha me renovam'


São tão várias que nem sei de onde vêm ou a que fi'm
se

destinam. Qranto pesam, de que valem, o grau de per-


manência em seus contornos são temas que certamente
irão me devorar mais um dia. Ficarei, vendo as manchas
que elas criam na janeia do ônibus, pensando na
evi-

dência dos anos e na resistência dos sonhos' Qrantas


horas os olhos derramaram assim, sem alvo certo' Os
no
planos largos e sonolentos ou não logo esquecidos
tur-t.o. Essas figuras, eu sei, irão continuar a meu lado
inatingíveis rolando para dar, elas que nem possuem
forma, consistência à existência' Movimentos no ar do
qual me torno parte sem perceber transições' Lições
de

nada que me deixam vaz\o, no entanto imenso, partici-


na
pando desse quebra-cabeça montado sem finalidade
moldura infinita que não se encaixa'

55
Urvento

Pois o vento ventava como aquilo que o vento faz qtan-


do venta. Aquela oÍquestra de barulhos. Como uma
1uva, no sortilégio dos seus dedos, soprada nos mais di-
versos sentidos. Com força, decisão e constância. Como
se houvesse uma ventania mandada por um conselho
dos deuses na montanha mais alta. Para espalhar até
bem longe as sementes que as árvores fazendo plac soi-
tavam. Imensos gomos de bambu-gigante rangiam ao
roçarem uns nos outros com tÍemenda energia. Para
sacudir os bambus, ecoar nas pedras. EIes, os deuses,
soprando juntos com as bochechas vermelhas, como se
fossem anjos do deserto, ases do fogo. Em plena seca
(mas um dia ainda chove!) as sementes voavam nas suas
asas sedosas se acamando na terra. As flores secas tra-
balhando e florindo. O vento as distribuindo e rugindo.
As garras de leoa do vento e seus metais gloriosos' Ven-
to para confundir os limites, revogaÍ os cabelos, aplacar'
Para entrar nos corredores, afastar a ttisteza e carregar
as doenças. O vento no bambuzal varre o mundo. Seus t
gestos no capinzal unânime que se sacode e se dobra
í.
í,
como uma onda. Sua massa momentânea numa tra- f
vessia conjunta. Suas lufadas na noite enluarada para

57 a
invadir os gabinetes e atirar nos tapetes os papéis arqui- Mulher de pé no frm do mundo
vados, os apontamentos anêmicos, secos, desgastados.
Ah, esses oboés do vento, ah suas velas desfraldadas ao
vento, como se aquela noite tão bonita, comigo dentro,
e você tão perto, fosse uma arca-de-noé ao relento, sob Somente uns tufos secos de capim empedrado crescem
os cavalos e os rebentos do vento, suas invisíveis gaieras, na silenciosa baixada que se perde de vista. Somente
suas imprevisíveis patadasl uma árvore, grande e esgalhada mas com pouquíssimas
folhas, abre-se em farrapos de sombra. Unico ser nas
cercanias, a mulher é magra, ossuda, seu rosto está la-
nhado de vento. Não se vê o cabelo, coberto por um
*
pano desidratado. Mas seus olhos, a boca, a pele tudo
é de uma aridez sufocante. Ela está de pé. A seu lado
está uma pedra. O sol explode. Deve ser um gavião que
devez em quando gritava.
Ela estava de pé no 6m do mundo. Como se andasse para
aquela balxada largando para trâs suas noções de si mes-
ma. Não tem retratos na memória. Desapossada e despo-
jada, não se debate em âuto-acusações e remorsos. Vive.
Sua sombra somente é que the faz companhia. Sua
sombra, que se derrama em traços grossos na areia, é
que adoça como um gesto a claridade esquelética- A
mulher esvaziada emudece, se dessangra, se cristaliza, se

minerallza.Já é quase de pedra como a pedra a seu lado.


Mas os traços de sua sombra caminham e, tornando-
I.
se mais longos e finos, esticam-se para os farrapos de Í
sombra da ossatura da árvore, com os quais se enlaçam.

58 59
Amor na moita

Enfiado na moita ele espiava a menina


pelada tomando banho no açude'
IJma gracinha. Rodeada de PaPiros
cujos penachos se dobravam na beira
e com seios redondos como os sekos
que a água, massageando, endurece,
ela era um indicativo de calor saciado,
ora afundando, ora voltando à tona.

Mas na moleza morena dos seus Pelos


havia um complicador que era a fome
de braços para massageá-la também, de
língua de homem que a lambesse e colasse
na sua pele tentadora, como,
sem que no plano consciente ela soubesse,
apesar do desejo que a inundava'
ele estava fazendo atrás da moita,

pensando nela, e nela, e nela, e nela Í'


J.
i'/
ã
*E

t
61 J
O observador observado

achei
Qrando eu me largo, Porque
no animal que observo atentamente
um objeto mais interessante de estudo
do que eu e minhas mazelas ou
imoderadas alegrias;

e largando de iado, no Processo,


todo e qualquer vestígio de quem sou'
lembranças, comPromissos ou datas
ou dores que ainda ficam doendo;

quando, hirto, Parado, concentÍado'


com o animal me confundo'
iuru rao assustá-lo,
já sem saber a qual dos dois
pertence a consciência de mim -

-qualquer coisa maior se estabelece


nesta ausência de distinção entre nós:
a glôria, abeleza, o alívio,
.*rao impessoal da matéria, a eternidade'

63
O império das formigas

O império das formigas' A vaca


olha de longe o efêmero Passante'
Os passarinhos atravessam
a estrada estreita, quieta e sinuosa
que segue o rio Pelo vale'
O silêncio aglutina as criaturas
e os menores ruídos.
Vê-se a proliferação das esPécies
nos menores meandros'
Mundos inimagináveis se criam'
Mundos desaParecem
nas bocadas da vaca no capim generoso

f
a*

?
ã
65
Í
Alagoa dos olhares

No fundo, ninguém conhece


ninguém. A não ser Por alto.
Mas na hora dos encontros,
quando os litígios se afogam
na lagoa dos olhares,
quando entre dois surge a iguaidade
de um ponto de vista ao Ponto
sem ônus de animosidade,

nos momentos assim, que até nos ônibus


lotados podem acontecer de repente,
se aos solavancos ali olhos se cruzam
no mais perfeito entendimento possívei,

nos momentos amenos em que as pessoas


(uma no mar da outra mergulhadas
por atração ou forte simPatia)
deixam de perceber que se ignoram,
isso é tudo o que Podem no tocante
ao que existe para conhecer do outro lado'

Qrando nos vemos, de nós embevecidos


*l

67
na serena permuta de um instante Colar de algas
em que a emoção de viver nos aglutina,
a presença da espécie rareíaz-se,nosso amor pacifica
qualquer onda de susto ou qualquer guerra.
No interior do pensamento há um rio
Depois, contudo, cada qual volta ao seu casulo, que se afunila ramificando-se em veias
solucionando-se, ou não, na solidão. para inrgar os corPos transitórios.
É bo-
se ver, distrai se entreolhar
As ilhas, musculosas com seus morros
eé ótimo se conhecer, assim por alto. que deitam na areia fina das praias
Ninguém porém entrega a senha do mistério com abraços tão carinhosos,
que é humano ser um só na multidão. são o colar de algas e espuma que esse rio
usa, serpente mágica, ao saltar nas pedras. /

O pensamento se alimenta dos sonhos


que, em arabescos vegetais, crescem nas margens.
Ricos depósitos de sedimentos
são deixados pelo sangue do rio e pela água das veias
nos remansos.
Espeiho da nattreza, o pensamento
flui e, enquanto eu penso, ele se foi.

li)spelho, não; parte integrante


cla mesma imagem do horizonte.

68 69
I

Entrevista realizada na Flip-Paraty,


em 2 dejuiho de2016,
por Sergio Cohn

Leonardo, a sua saída da cidade grande para um sítio


na serra foi muito importante Para sua poesia, ten-
^
do alterado ela substancialmente. Como tem sido esse
trato com esse pequeno pedaço de mundo, como você
já denominou, nos últimos 40 e poucos anos?

tru fui criado no interior do ltio de Janeiro, em


Leonardo Fróes em seu sítio em Secretário. Itaperuna, e saí de iá com nove anos de idade, quando
.Foto de Sergio Cohn. E
7L
meus pais se mudaram paru capital. Eu acho que um da cidade, eu não acho que trabalho manual seja ruim'
^
moço aos nove anos já tem as suas características bási- Peio contrário, como o meu trabalho como escÍitor é
cas definidas. E embora eu tenha me tornadodesde a todo mental, trabalhar com as próprias mãos me dá um
adolescência uma pessoa mais cosmopolita, mais viaja- equilíbrio maior. Mas acho que todas as respostas que
da - eu saí do Brasil com 20 anos, morei em Nova York, eu tenho a dar na verdade eu procurei dar com os meus
Paris e Berlim - acho que eu tinha uma nostalgia de poemas. E a propósito desta mudança, por exemplo, um
voltar para a terÍ\ de voltar pra uma situação de vida poema que eu escrevi naquela época, quando saí do Rio
mais calma. Situação essa que eu encontrei novamente para Petrópolis, e que se intitula "Pastoreando um bru-
em Petrópolis. Eu tinha 30 anos quando me casei com a xo urbanizado", me parece dizer mais sobre essas mu-
Regina, que até hoje me acompanha. E quando me casei danças que eu vivi na época do que eu posso faiar aqui,
nós fomos para esse sítio que tenho até hoje. O sítio era de memória...
um pasto, portanto as árvores não cresciam, poÍque nos
pastos eles roçam as mudas de árvores para que o capim Com esse trato todo que você cultivou, esse cuidado de
possa crescer. Se tiver sombra de árvore o capim moÍÍe. tentar lidar com esse pequeno pedaço de mundo, você
E o meu trabalho foi esse, tem sido esse, não é, de lidar já foi chamado de algumas vezes de naturalista. E che-
com o terÍeno. Eu resolvi reflorestar aquele pedaço. É gou a escrever uma coluna semanal, chamada "Natu-
um terreno que tem quase 50 mii metros quadrados. Íeza", Íro Jornal do Brasil, sobre esse tema. Conta um
Para mim foi uma coisa meio heroica, porque eu não pouquinho sobre isso.
tinha nenhuma capacitação para aquilo. Eu era um su-
jeito urbano que nunca tinha pegado na enxada. Não Isso foi uma experiência fantástica' poÍque quan-
tinha a menor prâtica, não sabia trabalhar de pedreiro. do eu fui para o sítio eu não tinha a menor ideia de
Hoje eu sei. Não sabia plantar, hoje eu sei. Não sabia como ia sobreviver. Qrer dizer, tinha uma vaga ideia de
pintar paredes, hoje eu sei. Não sabia mexer em car- sobreviver como tradutor) mas não tinha nada de muito
ro velho, {azer peqoenos conseÍtos, hoje eu sei. Enfim, definido. Eu agi da mesma forma que agi aos 20 anos,
tudo isso para mim, com o passar do tempo, virou um quando saí do Rio para Nova York. Eu sempre fui mui-
exercício poético. Ao contrário da maioria das pessoas to impulsivo, muito emocional. A estrutura de um poe-

72 73
ta talvez seja composta com ingredientes deste tipo. Eu um caminho achando que aquele é o caminho da nossa
não pensei nas consequências. Eu estava vivendo um autenticidade, da nossa vocação, daquilo que vai fazet
caso de amor lindíssimo que perdura até hoje e achei bem à nossa saúde e à nossa integridade, a vida acaba
que até para viver esse amor eu precisava de sossego. dando um jeito de ajudar. Se você está com boa vontade,
E a vida demonstrou que isso era verdade. Mai eu me a vida retribui com boa vontade. Então as condições
instalei no sítio, através de um amigo recebi um convite objetivas se criaram. Eu fazia as minhas traduções de
pÍa escÍever uma coluna sobre plantas no Jornal do Bra- livros e eu fazia as minhas duas colunas de jornal. Isso
sil.F, me pagaram regularmente um salário por mês. Eu perdurou durante longos anos.
não eÍa contratado, não era empregado do jornal, era
colaborador, mas recebia um 6xo por mês. Era tudo que Os elementos da natureza estão sempre Presentes na
eu precisava. E pouco tempo depois, um ou dois anos sua poesia, mas você não gosta de ser chamado de um
depois, a coluna fez tanto slrcesso na época, porque era poeta da natureza,no sentido comum do termo. A na-
uma novidade, estava começando a existir no Brasil a tLtrez;ainflui de forma radical na sua poesia, mas de ou-
preocupação com a ecologia - estou falando do começo tro jeito...
dos anos de 1970 - as pessoasestavam começando a ter
consciência da importância de lidar com a natur eza, que Eu acho o seguinte: existe uma tradição na poe-
o Jornal da Tarde, de São Paulo, começou a replicá-la, sia ocidental de poesia da natureza, uma poesia descri-
com o nome de "Verde". Então eu passei a ter dois ga- tiva dos aspectos belos da n^tureza. Eu acho que não é
nhos mensais fixos, que me permitiram levar a vida que exatamente o caminho que a minha poesia, que o meu
eu queria. Ao mesmo tempo eu estava estudando a vida trabalho tomou, porque mesmo quando os meus poe-
das plantas, eu vinha muito paÍa a biblioteca do Jardim mas são descritivos há sempre um substrato de pensa-
Botânico do Rio para a parte teórica , e lâ na serra, com mento, um substrato filosófico. Eu estou considerando
lavradores da região, eu comecei a aprender, a conhecer a condição humana também, e a condição de todas as
as plantas, a saber lidar com elas, a fazer uma horta, demais espécies vivas. Têm um poema que para mim é
plantar as minhas fruteiras. De forma que a vida me muito simbóiico sobre isso, que é o "Mulheres de mi-
demonstrou que quando a gente se decide a seguir por tho". Eu escrevi ele há mais de 40 anos, e até hoie sei

74 75
ele de cor. E vou contar porque eu sei esse poema de O milharal estâva todo com espigas, uma coisa linda.
cor: ele foi escrito dentro da minha primeira roça de Era mais bonito do que um poema. É mais bonito do
milho. Imaginem vocês o moço todo sofisticado na sua que palavras. Criei então esta consciência de que a mi-
primeira roça de milho. Eu morava no Arpoador, ti- nha poesia não é de rratarez;à. Eu podia estar no mar,
nha morado em Nova York, Paris, Berlim, como falei em alto maÍ, ou estar no Ártico. Eu estava numa situa-
antes, viajado por toda Europa, e me considerava um ção muito diferente. E isso criou para mim essa noção
moço sofisticado. E a partir da vivência no campo eu de que é poesia da experiência. Todos os Poemas que
descobri que esse moço soÍisticado era uma invenção, eu escrevi desde então são baseados numa experiência
não tinha nada a ver com a minha verdadeira auten- que eu vivi. Em alguma coisa que eu fr2, orr escalando
ticidade. Eu não era aquela pessoa. Eu estava virando uma montanha ou fazendo a minha horta. O poema
uma pessoa bem-sucedida, tinha um ótimo emprego, "Contemplação dos seios das beterrabas" diz respeito à
ganhava muito bem, gastava melhor ainda, mas não era horta que eu mesmo fazia.E este poema "Mulheres de
aquilo que eu queria da vida. Eu entrei na escola da milho", do qual eu falo, é sobre essa tarde quando entrei
simplicidade. A minha vida foi se simplificando cada no milharal pronto, espigado, e o poema bateu inteiro,
vez mais. lmaginem vocês este moço pretensamente desceu como se viesse de fora.
sofisticado da cidade pegando na enxada, foi uma das
coisas primeiras que ett frzlá, para plantar uma roça de Os dois poemas que você citou, "Mulheres de milho" e
milho. Aprendi com os lavradores que se abre uma cova "Contemplação dos seis das beterrabas", trazem \mL
para colocar três grãos de milho em cada uma delas, e é outra característica que Perpassa a sua Poesia, que é um
preciso devez em quando capinar o terreno. Os pés de trato sensual com o entorno, com a fiatlJÍeza...
milho são muito frágeis, são caniços muito altos e, para
que eles não tombem, de vez em quando a gente tem É curioso, porque outro dia uma repórter foi me
que ajuntar terra com a enxacla na base de cada pé. E eu entrevistar, fomos 1á no sítio, ela visitou tudo, conheceu
fiz isso ao longo de três meses. E depois, uma tarde, eu as minhas árvores, e observou isso também. Ela disse
entrei pelo meu milharal e disse "meu Deus, que coisa que notava um fundo de sensualidade na minha poesia.
mágica! Como é capaz uma pessoa de produzir isso?". Eu disse que, bem, não sei se eu solt ainda, às portas da

77
76
velhice, uma pessoa sensual. Mas isso é de fato uma ca- Eu acho curioso este poema, Porque eu não tinha cons-
racterística da pessoa que eu fui, sobretudo na juventu- ciência disso quando o escrevi - escrevi num jato, aliás,
de. Acho que a sensualidade era uma das características como todos os meus Poemas a partir dos 30 anos. Eu
básicas da minha personalidade. E o envolvimento com nunca modiÍiquei um poema depois, todos os meus
as plantas, com as montanhas, com os rios, é sensual, poemas publicados são poemas do jato, a coisa vem e os
porque é sensorial. O que eu sinto ao estar na nature- deixo como surgiram, alguns têm vírgulas, outros não,
za há, um pouco mais de 40 anos é que eu estou ple- alguns têm maiúsculas, outros não têm, uns têm Pontos,
namente real\zado, mental e corporalmente. Eu estou outros não têm - e, ao escÍever e reler depois o Poema
participando de um todo. Cada vezma\s esta sensação é sobre o caqui, eu não tinha consciência de uma sublei-
forte e verdadeira dentro de mim. Nao ha uma divisão, tura que podia existir nele. Mas uma moça, namorada
eu estou no mundo. O mundo real, o mundo tal como de um amigo meu, que gostou muito do poema, me
ele se nos oferece à primeira vista. Têm um poema que disse: "Eu acho que este poema não descreve só a subida
também é uma poesia da experiência, porque fala de no pé de caqui para pegar a fruta mais doce. E1e descre-
um pé de caqui que eu plantei quando tinha dois pal- ve também uma relação sexual". Eu acredito que todo
mos, uma muda. Eu esperei não sei se mais de 10 ou 15 mundo que for ler esse poema com calma percebe que o

anos para ele crescer, cuidando dele, protegendo-o das homem está em cima e a mulher está embaixo. O caqui
formigas e outros insetos. E pacientemente esperei ele mais doce pode ser uma oferenda, a oferenda que o ho-
cÍescer e florescer e frutificar. E aí então eu subi no pon- mem faz a mulher. E quando ela me falou isso eu passei
to mais alto para pegar um caqui e oferecer à mulher, a ver isso, e até hoie eu leio este Poema e sinto esse
que é a minha mulher, que estava no pé da árvore. É um subtexto, essa descrição embutida. Qre diz muito sobre
poema que tem um título que é uma referência ao livro a sensualidade que realmente existe na minha poesia.

do Sallinger, que foi uma Bíb1ia da minha juventude,


como de todos os jovens da minha geração: "O apanha- Uma coisa interessante: quando você fala da experiên-
dor no campo de centeio". Eu cortei o centeio porque cia automática da sua poesia, ela remete ao princípio
no meu sítio não tem centeio. Aqui no Brasil só no sul. zentáo importante aos Beats, de "primeira ideia, me-
O poema se chama apenas "O apanhador no campo". thor ideia". Você traduziu o Lawrencc Fcilinghetti, cs-

79
78
creveu um ensaio importante plrao livro "Alma Beat", poesia mais otimista, menos crítica da sociedade, mais
e a sua poesia já
foi muito comparada aos Beats. Mas otimista dos valores reais que eu encontro na natuÍeza.
você não se sente inteiramente confortável com essa Meu interesse pelas árvores, pelas plantas, pelos ani-
aproximação, não é? mais silvestres, sobrepuja a minha falta de integração
na sociedade tal como e1a está organ\zada- E eu acho
Muita gente já fez essa aproximação. Eu fui pra que esse recolhimento pelo qual optei foi uma maneira
Nova York em L962, e morei naturalmente no Green- de continuar vivo e contente com a vida. Porque não
wich Village, que era o centro da fermentação da ge- adianta eu ficar na cidade se eu discordo praticamente
ração Beat. E acredito que há talvez uma certa corres- de tudo. Se eu for pensar friamente, toda a otganizaçáo
pondência entÍe a vida que eu vivo e a vida que muitos social me parece uma coisa meio maluca. Atualmente
poetas dessa época viveram. Nos Estados Unidos, por no Brasil a gente vê o quê? É um circo de horrores. Não
exemplo, numerosos poetas posteriores à geração Beat sabemos aliás para que lado vai o Brasil, que rumo o país
vivem no campo. E os Estados Unidos permitem criar vai tomar.Tudo me parece muito esquisito, muito estra-
situações p^ra" a pessoa poder se dedicar à agricultura. nho. Então eu acho que para me proteger eu me recolho

Não só o Gary Snyder, que flcou mais famoso, existem no campo. E ao me recolher no campo eu descobri que
a vida é muito maior do que a vida humana. Não nego
vários outros poetas vivendo na natureza, menos co-
nhecidos, mas que são poetas a vida inteira, publicam o drama humano, mas existe o drama de todas as outras

seus livros, e foram para o campo e moram recolhidos' espécies, das formigas, dos tamanduás que comem as

Mas o paralelo que pode ser feito é mais entre o tipo formigas, das onças que comem os tamanduás. Então
de vida pelo qual optei, porque por exemplo os poetas existe uma infinidade de espécies que no meu entender

Beats ficaram até o fim poetas da dissidência, críticos são tão inteligentes quanto nós, cada uma tem um tipo

da sociedade. São poetas o tempo todo combativos, eles de inteligência. Eu não acredito nessa história de que
não se enquadram na sociedade americana e eles estão existem seres racionais, que somos nós, e que os animais
o tempo todo fazendo oposição àquele tipo de vida. Eu, são irracionais. Um cachorro é irracional? Um gato é ir-

no meu recolhimento, esse aspecto para mim se tornou racional? Eu assisti há dias 1á no sítio a uma coisa mui-
secundário. Eu acho que a minha poesia se tornou uma to curiosa. Têm muito mico 1á, aqueles macaquinhos

81
80
pequenos, né? Têm pouco mais de um palmo. E tem A coisa funciona, cada abelha colaborando com a outra.
muito jacu. Não sei se conhecem, o jacu é um galináceo Eu acho que existem tipos de inteligência animal que
entre um galo grande e um peru. Um galináceo grande, talvez até ultrapassem a nossa. l

preto. Voa, mas cisca também como galinhas na terra.


Tem um pedregulho próximo à casa onde colocamos E como é a sua relaçáo com o montanhismo?
bananas para os micos, e assim fizemos neste dia. En-
quanto os micos se aproximavam das bananas, um jacu Estar na ÍtatrLÍezà, e estar na natureza em Petró-
grande, várias vezes maior que os micos, se aproximou polis, é estar nas montanhas. Petrópolis é cercada de
pra avançar nas bananas destinadas aos macaquinhos. E montanhas. E eu já fiz algumas vez,es a travessia pela
o que fizeram os macaquinhos? Um só deles não pode- cumeada da serra, a pé, entre Petrópolis e Teresópolis.
ria combater o jacu. Então juntaram-se cinco ou seis e E é uma das coisas mais bonitas que já tive o privilégio
avançaram, cada qual saindo de um ponto, simultanea- de fazer na vida. A última vez fo\ quando eu comple-
mente, contÍa o jacu, e expulsaram a ave. Ora, os micos tei 70 anos e pedi aos meus dois filhos, que são guias:
vão à guerra. Eles se organizaram como batalhões hu- "Qrero de presente de aniversário que vocês me guiem
manos e conseguiram expulsar o jacu. O jacu foi embo- na travessia de Petrópolis à Têresópolis". E assim foi
ra, saiu gritando com medo dos micos. Então, quando feito. Foi o pÍesente que eles me deram, e foi uma coisa
a gente presencia fatos como esse, se eu fosse contar maravilhosa porque eles hoje já estão por volta dos 40
todos os fatos que me revelam que cada bicho tem o seu anos. Mas eles começaram a subir montanhas comigo
tipo de inteligência que o adapta, senão ele não sobre- quando tinham de 11 para 72 anos.É claro que os filhos
vivia. Não foram só os humanos que tiveram este pri- costumam ir bem mais longe que os pais. Hoje eles de-
viiégio. A mágica da nattreza é essa. Se a gente pensa vem já ter escalado todos os principais cumes da Amé-
na vida social das abelhas, por exemplo... Há um livro rica, dos Estados Unidos até a Patagônia. Não foram
famoso do Maurice Maeterlinck sobre isso. A vida das ainda, graças a Deus, ao Everest. Mas são especialistas e
abelhas, a vida sexual das abelhas, é tudo de um primoç são guias de montanha diplomados, embora sejam en-

é uma organizaçáo sociai tão perfeita. Inclusive não há genheiros de profissão. Uniram o amor pela natureza à
abelhas corruptas como entre as sociedades humanas. tecnologia da qual eles vivem e de que eles gostam tam-

83
82
Esse poema vem de uma experiência
muito concreta
bém. Subir montanhas... Uma das vezes que eu subi' você contasse so-
também, não é? Seria interessante se
havia 1á outro grupo e alguém perguntou a um cidadão experiência se trans-
bre isso, para ilustrar como é que a
que estava em cima de uma pedra, em destaque, vesti-
muta em Poema...
do de uma maneira muito curiosa, adornada, "por qtte
você gosta de subir montanha? Por que é qrre você vem ser in-
Este poema eu acho que também permite
aqui?" E ele respondeu, "porque eu fico mais perto de chegar à velhice'
terpretado, pod. ,.' a descida da vida'
Deus". Eu achei tão bonita a resposta dele' E'le estava con-
Mu, está descrevendo uma situação
,tu verdade ele
no alto. Nao é o meu caso. Eu escrevi um Poema, que da Maria Comprida'
creta que eu vivi, ao escalar o pico
diz respeito a isso, a essa experiência que eu mantenho Eu esta-
q.r. e r...r, cone de granito de 1'900 metros'
até hoje de subir morro. A gente pensa que é gratuito' 1á é muito árido'
va num gruPo, meus filhos juntos, e
mas não é não. É vm pÍazeÍ extraordinário' Dormir
no
sobe sem parar' era
só tem vegetação na base' A gente
alto das montanhas, onde cessa todo rumor' A partir morrer de sede na
um dia muito quente e eu comecei a
de 1.500 metros você não ouve nem mais passarinhos cantil com água'
subida. A gente leva cada um o seu
piando. Os pássaros não voam tão alto, não chegam até na subi-
E distraidamente eu bebi toda a minha água
lár.Jír náo há quase vida animal, a vegetação é rasteira' senti sede' E
da. Na descida naturalmente eu também
não há mais árvores grandes que façam rumor ao sabor alheia' porque
só não morri de sede graças à caridade
do vento. Só o capim que se alastra pelos picos mais dava uma gola-
cada um dos membros do grupo me
elevados. Então é um silêncio total, absoluto' E você a descer ainda' Eles
da. Então eu não tinha aprendido
deitar numa noite estrelada e sentir o universo como se
jíL mais experientes do que eu e mais previden-
eram
você estivesse penetrando no universo é uma experiên- a
t.r, ."du qual conservou uma parte da sua áp5ua PaÍa
cia fora do comum, que apazigua qualquer mente, ainda coisa: não basta
me descida. E com isso eu aprendi algurna
que doentia. Não é o meu caso' Pelo menos se eu a vidr é tão cheia
subir, é preciso aprender a descer' E
comparar, poÍque acho que há mentes bem mais doen- I gen-
de aitos e baixos, é tão sinr-rosar quc é prcciso
tes que a minha. O poema de que queria faiar se intitula tlc rccordtt um
te saber também estar Por baixo' lsso
naturalmente "Introdução a arte das montanhas"' ctt solt muito
tema que me é muito caro: colllo p()ctil

85

84
curioso das inscrições que as pessoas costumam, sobre- to, eu tenho que me sentir contente com aquilo que
tudo os mais jovens, usar nas camisetas. Costumo ler e me é dado. Aquilo que a vida me deu, não considero
tentar compreender que mensagem aquela pessoa que que seja um ganho do meu esforço, é um presente que
usa uma inscrição na camiseta quer passar. E há poucos a vida dít a cada um de nós- Esta consciência eu acho

dias em Petrópolis, andando pela rua no centro da cida- que muitas vezes se perde e eu a tenho cada vez mais
de, passou uma moça por mim que tinha uma inscrição vívida, uma grâtidão infinita por tudo aquilo que eu
de uma simplicidade total. Dizia apenas "viver bem". tenho recebido. A começar por uma quantidade enor-
Aquilo bateu fundo para mim. É itto qr. eu tenho que- me hoje de amigos, todos mais jovens que eu e todos
rido ao longo da vida. Eu não vou falar de felicidade, maravilhosos.
porque felicidade é uma palavra muito comprometida,
muito pervertida pela propaganda, que diz que a felici- Leonardo, no seu sítio tem uma grande figueira, que
dade é você compraÍ um carro novo, é você comprar um você já chamou de "árvore galinácea" num poema, que

apartamento maravilhoso, é você comPrar um iate, um é bastante imponente, abraçando uma pedra' Ela me

helicóptero. É .o-pru., comprat comPrar, para ser {eliz. parece muito importante para você. Por que?

E para mim não. Para mim é uma sensação interior' É


eu me sentir bem, sentir que eu estou vivendo bem de É ,r-, figueira monumental, uma das poucas

acordo com as minhas necessidades. E é claro, como as árvores que nós encoltramos quando compramos o sí-
pessoas são totalmente diferentes umas das outras, que tio. Qrando eu conheci a minha mulher, Regina, ela
viver bem para cada um significa alguma coisa diferen- era uma moça muito elegante da cidade, vivendo em
te. Pode ser que para alguma pessoa seja o acúmulo, a um apartamento muito confortável. Não era burgue-
sociedade na sua forma mais comum hoje, que é voltada sa, nunca foi. Mas, enfrm, uma moça de alto luxo' E

para a aquisição. E essa pessoa só consegue viver bem quando et frz a proposta de ir viver no sítio, ela me
dessa maneira. Não é o meu caso. Então eu troquei esta acompanhou, vivíamos um caso de amor' Ela deve ter
palavra feiicidade peia palavra contentamento. Eu acho achado que era uma proposta meio louca, mas talvez o
que o importante é que cada um de nós viva contente. amor também fosse louco. E 1í fomos juntos' tr a pri-
J,1
Respondendo à inscrição que a moça conduzia no pei- meiravezque chegamos ao local, nírs tíllhamos um jipe Í
,'4

87
86
na ocasião, o jipe foi quebrando pelo caminho, era para que aquela árvore tenha mais de 400, 500 anos, Porque
chegar no começo da tarde, chegamos umas nove da ela é muito grande. E ela se amarrou numa pedra, um
noite. Era uma lua cheia. Tem uma pedreira no fundo pedregulho. Ela nasceu ao lado do pedregulho e a cada
do sítio e a lua estava despontando por cima da pedrei- ano que passa as raízes estão fazendo algo como uma
ra. Bateu um negócio. Eu disse "é aqui". Eu estava há paliçada, envolvendo dia a dia mais a pedra. Ou seja,
um ano procurando terreno. E eu disse "é aqui. Esta ela é táo inteligente que ela pôs uma âncora de granito
lua eu compÍo, eu quero ficar aqui, achei o meu lugar na base pra não ser açoitada e derrubada pelos venda-
na terra". E parece que era verdade. Mas aí voltamos vais. Qrando venta, ela está na beira do rio, ela sofreria
dias depois com dia claro para poder andar um pouco, sempre esse perigo de ser derrubada pelo vento se ela
era um matagal danado, o capinzal crescendo porque os não estivesse tão firmemente ancorada no pedregulho.
bois já estâvam se afastando de iá, e a Regina passeava E lindo o fenômeno. E era iá, perto dessa figueira, que
na beira do rio quando esbarrou num galho e foi mor- eu fazia a minha horta. Já não faço mais porque a fa-
dida por micuim. O micuim é o menor dos carrapatos, mília hoje se resume apenas a nós dois, e uma horta
ele é muito pequenininho, é uma coisa minúscula. E ela é muito trabalhosa para duas pessoas. E um luxo que
saiu de 1á, às vezes a gente não percebe na hora, com as não se justifica. Mas quando tínhamos a família maior,
coxas todas tomadas de micuins e ficou horrorizada. Ela os frlhos em casa, meus pais vivos, os pais dela vivos, a
me disse "não vou morar 1á de jeito nenhum". Aí eu tive gente plantava pa;ra as duas famílias. E eu até fr,2 um
que fazer todo o trabalho posterior de convencimento poema, que também é poesia da experiência, que surgitt
e depois ela se curou do micuim e acabou concordando de um dia em que eu estava cuidando da minha horta
e fomos muito feTizes, somos muito felizes atéhojelâ. que era próxima a essa figueira, e ela vai apareccr no
E havia apenas duas grandes árvores em pé. Um pé de poema mencionada como uma árvore galinácea, corn<r
jacaré, que é a árvore mais típica da regráo,já bem anti- se ela tivesse posto um ovo de pedra. O poema se chama
ga. Esta deu milhares de sementes ao longo dos mais de "Contemplação dos seios das beterrabas". tr aí há algo
40 anos que nós estamos 1á, e então hoje existem deze- também talvez de sensualidade, né? Porque as beterra-
nas de pés de jacaré que são filhos desta grande árvore. bas são seios...
E a outra é a figueira que é monumental. Eu imagino

88 89
A sua poesia é muito marcada também pelo humor, um vê com boa vontade. Mas claro que não me levo a sério,
humor muito peculiar. Qre está no seu trato no mun- porque eu sei que a minha própria consciência pode me
do, não é? trair muitas vezes,aminha própria consciência pode me
enganar. É preciso ouvir a voz daespécie. É preciso ou-
Eu acho que você disse uma coisa muito certa. vir uma consciência superior à minha para que eu me
Muito moço, r,rm grande amigo meu me disse: "E,u gos- toque de eventuais imperfeições. E não se levar a sé*
to de você porque você não se leva a sério". Eu realmen- rio redunda nisso: a minha poesia tem frequentemente,
te não me levo a sério. Eu acho que talvez seja um dos se não o tempo todo, um lado irônico muito acentua-
maiores problemas dos seres humanos, sobretudo esses do. Eu brinco muito com as palavras. Muitas vezes eu
muito engravatados, os políticos, você sabe c-, que eu es- afrrmo uma coisa que na linha seguinte é desafirmada.
tou falando: as pessoas paÍece que se confundem com a É ra.r-rpt. no reino do pode ser, do talvez, nunca são
sua imagem e acham que são sempÍe pessoas extraordi- afirmações peremptórias' porque eu nunca creio que se
nárias, belas, belas, belas. E,u sinceramente não me sin- possa fazer afirmações assim, a vida é mudança. A cada
to assim. Eu me sinto cheio de defeitos e imperfeições atitude que a gente toma corresponde uma mudança, e
como qualquer pessoa. E o trabalho de poesia para mim a gente tem que ser muito flexívei.
não é só escreveÍ. Poesia é um trabalho interior. Eu que-
ro me transformaÍ em gente, eu quero ser uma boa pes- Para além de poeta, você é um tradutor reconhecido,
soa, eu quero ser uma pessoa correta, eu quero ser uma um dos mais conceituados em atividade. Você Parece
pessoa que tenha pÍazer em se encontrar na solidão e seguir, na tradução, uma linha mais fiel aos originais,
não tenha queixa, só seu próprio respeito. Isso é um ao contrário de escolas como a da "transcriação", dos
trabalho que leva a vida inteira. A poesia para mim é poetas concÍetos...
um instrumento pra chegar a isso. Não é um enfeite na
minha vida, é o meu trabalho pessoal, como eu disse no A tradução a princípio foi um meio de
apenas
início, para me transformar em pessoa. Isso é uma coisa ganhar minha vida. Durante muitos anos eu traduzi
muito séria, é um trabalho que eu acho que cada um de enciclopédias. tadução de enciclopédia é trma coisa
V,
nós está executando o tempo todo, quando a gente se em que você não pode mudar nada, tem que ter uma
b;
I
90 97
t".
fidelidade absoluta. Você passa âpenas as informações os 11 anos de idade, no meu colégio nós estudávamos
de uma língua pàÍa- a outra. Mas a enciclopédia tinha seis línguas estrangeiras, â começar pelo latim, que abre
grandes vantagens pra mim. Primeiro que pagava muito ãs portas para as línguas neolatinas, quando voltei pro
melhor do que a tradução de livros. E segundo que era Brasil eu vi que eu tinha condição de me tornar um
um trabalho constante. IJma enciclopédia levava às ve- tradutor. E era o trabaiho que eu queria quando resolvi
zes dois ou três anos em produção, e portanto eu tinha deixar de ser editor para poder viver fora do Rio. Um
trabalho garantido por aquele período todo. E foi uma tradutor pode viver em qualquer lugar, ele faz traba-
ótima escola, porque ao contrário dos irmãos Campos, tho em casa. E aí passei a traduz\r muitos livros. Mas
não há crítica nenhuma nisso, eu acho que há vários a maioria, a quase totalidade dos livros que eu tradu-
caminhos na tradução, mas a minha escola, o que está z\ me foram encomendados pelos editores. Não eram
muito baseado nessa experiência como tradutor de en- sugestões minhas. Por sorte minha, eu era considerado
ciclopédias, é a da fidelidade. Eu procurei sempre, ou um bom tradutor, e sempre me encomendaram bons
quase sempre, seguir tanto quanto possível o original. autores para traduzir. Faulkneq Swift, Virginia Wolf.
Sempre me sentir inferior ao original. Não quis nunca Enfim, autores que mereceram o meu esforço. Com os
me sobrepor a ele. Há uma escola de tradução em que quais eu aprendi muito. Porque a cada autor desses que
os tradutores tentam se sobrepor ao texto original. A eu traduzi, eu não me limitei a botar um livro que eÍa
minha posição foi sempre muito mais modesta, como traduzido ao lado e recriá-lo em português. Eu estudei
se eu fosse um instrumentista que tem que seguir uma cada um desses autores. Eu li quase tudo que eu pude
partitura. Eu sou apenas o executante da obra, mas eu deles e muito sobre eles. Por exemplo, Swift. Os textos
tenho uma partitura, que é o original na língua da qual mais antigos do Swift que eu traàtzi datam do século
eu traduzo, e tenho que tentar fazer o mais próximo 17. Eu não podia tradtzir impunemente. Até pra qllem
do que o autor quis, o compositor quis. Não vou fazer é da língua inglesa é di{icil tradtzir Swift. Eu tive que
brilhos extra-originais. Mas, como dizia, para mim foi estudar o assunto para poder fazer as traduções. Eu tra-
só um meio de vida. Er"r nunca me preparei profissional- duzi quase cem livros, mas há um pequeno grupo de
mente paÍa ser tradutor. Mas depois de ter vivido seis livros a que sou muito apegado, que foram iniciativas
anos no exterio5 depois de ter estudado línguas desde minhas. São livros como os Sonetos da portuguesa, de

92 93
Elizabeth Barrett Browning, e o de Contos orientais. muito grande. Outro livro por que tenho muito apreço
Ao todo são sete ou oito livros, quase todos de tradução é o de contos orientais. São contos muito antigos da Ín-
de poesia. São livros de autores e temas que me fasci- dia, da China, doJapão e da Coreia. Não se assustem, eu
naram, e eu levei os livros já prontos paÍa as editoras. não conheço essas línguas. Eu conheço todo esse mate-
Algumas vezes frz tudo, até a quarta capa, a orelha, por- rial em versões para quatro línguas ocidentais nas quais
que eu tenho prática disso, por ter sido editor. Eu tenho eu leio: inglês, francês, espanhol e alemão. Os materiais
um carinho muito especial por esses livros, porque os são muito antigos. Os mais antigos datam dos primei-
considero parte da minha obra. Por exemplo, no caso ros anos da era Cristã, e muito frequentemente ou qua-
dos Sonetos, eu quase não escrevi em versos rimados se sempÍe ortalvez sempre não há só uma recensão, não

e metrificados na minha própria obra, e no entanto eu é só uma versão do conto original. São contos que vêm
aprendi metrificação quando jovem, era paÍte do meu da tradição oral. São contos populares, em última análi-
currículo de português. E o conhecimento que eu ti- se. Só uns três ou quatro têm autores identificados. Aí é

nha de metriÍicação eu pude ut\lizar na tradução desses material que já chega pelos séculos 17 e 1,8 da nossa era'
poetas antigos, Goethe, Shelley e Browning. O livro da Mas a grande maioria são textos muito antigos e que
Elrzabeth Browning tem 44 sonetos. Eu nunca escrevi às vezes eu conheci em diferentes traduções. À, u.r.r,

um soneto, mas eu consegui traduzir em forma de sone- eu tinha o mesmo material traduzido paÍa o francês,
to. Então são os meus sonetos em português, os únicos inglês, espanhol ou alemão. Então não havia um origi-
que consegur{azer.Mas foi um trabalho muito curioso, nal único. E neste caso foi a grande libertação do tra-
porque é uma mulher se dirigindo a um homem. É r.-u dutor fiel. Eu frz adaptações. Eu juntava às vezes duas
história extraordinária de amor entre dois poetas, Ro- ou três traduções e fazia a minha versão em portugr-rês
bert Browning e trlizabeth Barrett Browning. Nesses contemporâneo. Sendo um material tão antigo e sem
sonetos e1a está escrevendo para o amado. É evidente autoria identificada eu acho que foi um procedimento
que eu tive que me colocar na posição da mulher. Eu válido. Eu adoro as histórias. Eu li mais de 2 mil contos
tive que me consideraÍ flavoz feminina, para conseguir orientais pra fazer um livro que tem, não sei, menos de
fazer com alguma eficiência a tradução dos 44 sonetos. 100 textos. São contos muito curtinhos. Esses materiais
É .r- trabaiho pelo qual eu tenho uma consideração são tão trabalháveis hoje que um dos contos de que eu

94 95
r

gosto muito, que se chama "Cabeças cortadas" e é da e com uma boa extensão, bem larga, é capaz de con-
antiga Índia, o Thomas Mann adaptou também para o ter uma grande superficie de água. E este homem fez
alemão. E aí pode-se ver a diferença entre um poeta e isso sem uma finalidade clara, uma grande represa exa-
um romancista. A minha versão em português ocupa tamente na estradinha que conduz ao meLL sítio. E ali
duas páginas ou duas páginas e meia. A versão de Tho- não criava peixe nem nada. Eu não sei o que ele queria
mas Mann se estende por L26 páginas. É a diferença ftzer com a represa. Ficou apenas uma água represada
entre um romancista e um poeta... do rio qlle passa abaixo do meu sítio. E a ÍepÍesa, numa
noite de temporal muito violento, se rompeu. A vila
Como você tem visto a questão ecológica hoje? Você de Secretário se estende às margens do rio, fica a cerca
sempre esteve muito vinculado a esse florescimento do de um quilômetro do iocai onde foi feita a barragem,
pensamento ecológico no Brasil. Como você vê, por numa situação idêntica à de Mariana. Só que eu vivi
exemplo, o cÍime ambiental que aconteceu em Maria- isso 1á em microcosmo. E uma bela noite de tempestade
na, no Rio Doce, ano passado, causado por empresas a repÍesa de barro se rompeu a as casas da cidadezinha
de mineração como a Samarco e aVale do Rio Doce? foram todas inundadas. Felizmente ninguém morreu.
Mas bicicletas, fogões, objetos das pessoas foram arras-
Olha, eu, como todo brasileiro de bom senso, tados pelas águas. Animais domésticos, cachorros, por-
acho que foi um absurdo completo. Aliás, pelas infor- cos. Enfim, foi uma trtsteza na cidadezinha. E nunca
mações que obtive pela leitura dos jornais, a empresa mais essa represa foi restaurada, graças a Deus. Agora,
já sabia que havia uma fissura na barragem, Que havia o que eu penso é o seguinte: o Brasil inteiro está sendo
a ameaça de rompimento da barragem, e não tomou escavado. A mineração no Brasil é uma coisa chocante.
providência nenhuma. Eu vivi esse problema em escala Não sei se vocês já tiveram oportunidade de ver campos
muitíssimo menor em Secretário, onde eu tenho meu de mineração, áreas de mineração. São uma coisa do-
sítio, porque um proprietário de terras da região, um lorosa. Porque a noção que eu tenho de lidar há tantos
homem rico, por mero deleite resolveu fazer uma repre- anos com a terra é que a terra é um organismo vivo.
sa. LIma represa de terra. Muitas represas são só de ter- Ela mesma, o planeta, para mim, e a sua superficie. E
ra, né? Não têm muralhas de pedra, aterra compactada isso a gente sente de uma forma muito forte quando a

96 97
gente tem que lidar para plantar. São coisas que a gente dente, até acabar. Nunca troquei de carro todo ano, para
tem que fazer. Se você quer sobreviver, você tem que mim aquilo é um objeto de uso. Eu uso ao máximo,
plantar a sua comida. Mas, quando você dá uma enxa- enquanto eie estiver andando eu vou usando o mesmo
dada na terra, você tem a nítida sensação de que você carro. Agora há um hábito, eu acho que é um hábito
cortou, como se cortasse um corpo vivo. Você cortou, de consumismo, que você tem que estar sempre com
você provocou ali um ferimento na terra. Essa sensaçào um carro novo, cada dia um carro melhor. O meu é um
para mim é muito forte e muito verdadeira. É preciso carro popular, dos mais baratos que existem. Eu me dou
viver, mas eu acho que qualquer pessoa que viva essas por muito contente por poder ter um carrinho popular,
experiências que eu tenho vivido vai chegar a essa mes- não preciso mais do que isso. Então eu acho que talvez
ma conclusão. Então, quando eu passo ao longo de uma isso entre em questão. As pessoas precisam trocar de
estrada, por exemplo, eu vejo que os morros, nào preciso geladeira todo ano, trocar de televisão, porque vem mais
chegar nem ao drama da mineração, a €Jente vê que os um modelo mais avançado de televisão. E aí então eu
morros foram fatiados. Os morros são arredondados, acho que a mineração vai ter que continuar. Porque es-
os morros têm forma de seios e de bundas. E eles são tão exportando minério para a China, tão fazendo não
fatiados, para que as estradas possam passar, naquelas sei mais o quê. Mas eu acho um crime o que aconteceu
escadinhas. A engenharia faz isso com muita perfeição, em Mariana. IJm crime não só contra os habitantes da
mas é uma deformação. É .o*o se você cortasse seios cidadezinha que estava 1á, os que foram soterrados pelo
ou bundas de um organismo humano, fizesse-os geo- iamaçal, como também contra um rio, o rio Doce, con-
métricos. Então é o problema eterno, que eu acho que a tra todos os animais que viviam na região e as plantas
tecnologia enfrenta ao lidar com a natureza. Eu não sei que vivem na região.
como resolver isso. Eu não entendo nada de economia.
Não sei como. Eu acho que uma das soluções seria a
humanidade consumir menos. Usar mais. Os carros, por
exemplo, são feitos para durar três ou quatro anos.Todo
mundo troca de carÍo a todo ano. Meu carro tem quase
10 anos de uso. Eu sempre usei o carro como escova de

98 99
uM

Sobre o autor

Leonardo Fróes nasceu em Itaperuna, no esta-


do do Rio de Janeiro, em 1947. Mudou paÍa a capital
ainda criança, e para um sítio em Secretário, Petrópolis,
no começo da década de 1950. taduziu mais de uma
centena de livros, de autores como Shelley, Goethe, D.
H. Lawrence, Malcolm Lôwry e Virginia Woolf. Como
poeta, publicou Língua franca (Edições de Ensaio,
1968), ,4 vida em comul?t (Edições de Ensaio, 7969),
Esqueci de avisar que estau tioo (Artenova, 1973),1Lnjo
tigrado (Gráfica Santa Mônica,1975), Sibilitz (Alham-
bra, 1981 - segunda edição Chao de Feira,2015) ,t{ssim
(Xanadu, 1.986), Árguncentos invisírLeis (Rocco, 1,995),
Wrtigeru (obra completa acrescida do inédito 14 quadros
redondos, Rocco, 1.998), Chinês coln sanl (Rocco, 2005)
e Trilha (antologia poética, Azougue, 2015). Mora em
Petrópolis, com sua mulher Regina Lustosa.

101
Editores Responsáveis
Sergio Cohn
M:rrcclo lleis de Mcllo
Gcrm:rno Weiss '

Organização
Sergio Cohn e Marcelo Reis de Mello

Projeto Gráfico
Germano Weiss e Barateza Duran

Diagramação do miolo
Sergio Cohn

Foto de Capa
Michclle I-udvichak

Produção Gráfica
Oficina do Prel<r

Cianotipia
Michelle LtLdvicl-rak e Bianca Guedes Alcoforado

Revisão
Juliana Tiavassos

Agradecimentos especiais
Regina I-ustosa, Panlo We rneck e Alberto Pucheu

.1"
Ít #ü
3 1 JAr{ nTt
iU
"\
069/goo
RIO DE JANEIRO
tssN 22379347
r ]

*
I

Você também pode gostar