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POST[I.
I
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Língua franca(1968)
Homenagem a Louise Labé - 11
Inspirado por um vaso - 13
Sibilitz (1981)
Deposição do chefe de uma personalidade - 31
Tiê.sangue - 33
Foi queimar livros velhos
e achou na mala um beija-flor - 35
Justificação de deus - 37
Assim (1986)
Contemplação dos seios das beterrabas - 39
A poesia e a matança dos mosquitos - 41
Bonito e contrastado * 43
Argumentos invisíveis (1g g S)
Arnbições de assombrações _ 45
Introdução à arte das montanhas _ 47
Dia de diiúrvio - 49
O apanhador no campo _ 51
Maluco cantando nas montanhas _ 53
Ao sonhador, o inveterado _ -5-5
tilha (2015)
A lagoa dos olhares - 67
Colar de algas- 69
Entrevista - 7I
Sobreoautor-101
Homenagem a Louise Labé
13
para depois, acaso, abandoná-la Avida em comumr 4
numa angra de sólidos ciprestes,
De um ao olrtÍo conduzir-se
para, enquanto se vai indo,
poder ficar e fundir-se.
De um ao outro extravasar-se
para, enquanto estar-no-mundo,
poder ser: comunicar-se.
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De um ao outro transferir-se Pastoreando um bruxo urbanizado
para, enquanto completando-se,
poder se dar e pedir-se.
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1.7
Meia-noite no Bingen
1.9
que se ajoelha e pede Pedralume
licença para rir.
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Com gatos e Goethe
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Anjo tigrado
Vi dentes dantescos
no meu ombro aluado, já que então eu me via
numa dança de caras,
e de cada lado meu tinha sobrado um retratc)
todos meus todos lindos todos sufocantemente
sozinhos:
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Mas um dia cismei, juntei tudo e joguei fora Mulheres de milho
fui pro mato
de onde só sairei como um tigre.
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LetraPaÍa um teatÍo completo
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Deposição do chefe de uma personalidade
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a toalha cai Tiê-sangue
da mesa
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numa brincadeira atônita
Foi queimar liwos velhos
de dizer que existem o Infinito . o Ág.,u. e achou na mala um beija-flor
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Qreimei a maia cheia de livros e inventei a palavra Justificação de deus
praticolombinasana. Naturaimente com isso
não se resolveu muita coisa.
Silêncio. Não se resolveu muita coisa
naturalmente. o que eu chamo de deus é bem mais vasto
e às vezes muito menos comPlexo
que o que eu chamo de deus. Um dia
foi uma casa de marimbondos na chuva
que eu chamei assim no hospital
onde sentia o sofrimento dos outros
e a paciência casual dos insetos
que lutavam paÍa construir contra aâg:ua.
Também chamei de deus a uma Porta
e a uma árvore na qual entrei certa vez
para me Íecarregar de energia
depois de uma estrondosa derrota'
Deus é o meu grau máximo de compreensão relativa
no ponto de desespero total
em que uma flor se movimenta ou um cão
danado se aproxima solidário de mim.
E é ainda apalavradeus que atribuo
aos instintos mais belos, sob a chuva,
notando que no chão de passagem
já brotou e feneceu várias vezes o que eu chamo de alma
eétalvezacalma
na química dos meus desejos
de oferecer uma coisa.
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Contemplação dos seios das beterrabas
39
A poesia ea matança dos mosquitos
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Bonito e contrastado
43
Ambiçoes de assombrações
tt
.)
45
Introdução à arte das montanhas
47
ill
Dia de dilúüo
49
O apanhador Ílo campo
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Maluco cantando nas montanhas
(Baseado em Po Chú-i ou BaiJuyi, China,772-846)
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Ao sonhador, o inveterado
55
Urvento
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invadir os gabinetes e atirar nos tapetes os papéis arqui- Mulher de pé no frm do mundo
vados, os apontamentos anêmicos, secos, desgastados.
Ah, esses oboés do vento, ah suas velas desfraldadas ao
vento, como se aquela noite tão bonita, comigo dentro,
e você tão perto, fosse uma arca-de-noé ao relento, sob Somente uns tufos secos de capim empedrado crescem
os cavalos e os rebentos do vento, suas invisíveis gaieras, na silenciosa baixada que se perde de vista. Somente
suas imprevisíveis patadasl uma árvore, grande e esgalhada mas com pouquíssimas
folhas, abre-se em farrapos de sombra. Unico ser nas
cercanias, a mulher é magra, ossuda, seu rosto está la-
nhado de vento. Não se vê o cabelo, coberto por um
*
pano desidratado. Mas seus olhos, a boca, a pele tudo
é de uma aridez sufocante. Ela está de pé. A seu lado
está uma pedra. O sol explode. Deve ser um gavião que
devez em quando gritava.
Ela estava de pé no 6m do mundo. Como se andasse para
aquela balxada largando para trâs suas noções de si mes-
ma. Não tem retratos na memória. Desapossada e despo-
jada, não se debate em âuto-acusações e remorsos. Vive.
Sua sombra somente é que the faz companhia. Sua
sombra, que se derrama em traços grossos na areia, é
que adoça como um gesto a claridade esquelética- A
mulher esvaziada emudece, se dessangra, se cristaliza, se
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Amor na moita
t
61 J
O observador observado
achei
Qrando eu me largo, Porque
no animal que observo atentamente
um objeto mais interessante de estudo
do que eu e minhas mazelas ou
imoderadas alegrias;
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O império das formigas
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Alagoa dos olhares
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na serena permuta de um instante Colar de algas
em que a emoção de viver nos aglutina,
a presença da espécie rareíaz-se,nosso amor pacifica
qualquer onda de susto ou qualquer guerra.
No interior do pensamento há um rio
Depois, contudo, cada qual volta ao seu casulo, que se afunila ramificando-se em veias
solucionando-se, ou não, na solidão. para inrgar os corPos transitórios.
É bo-
se ver, distrai se entreolhar
As ilhas, musculosas com seus morros
eé ótimo se conhecer, assim por alto. que deitam na areia fina das praias
Ninguém porém entrega a senha do mistério com abraços tão carinhosos,
que é humano ser um só na multidão. são o colar de algas e espuma que esse rio
usa, serpente mágica, ao saltar nas pedras. /
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ta talvez seja composta com ingredientes deste tipo. Eu um caminho achando que aquele é o caminho da nossa
não pensei nas consequências. Eu estava vivendo um autenticidade, da nossa vocação, daquilo que vai fazet
caso de amor lindíssimo que perdura até hoje e achei bem à nossa saúde e à nossa integridade, a vida acaba
que até para viver esse amor eu precisava de sossego. dando um jeito de ajudar. Se você está com boa vontade,
E a vida demonstrou que isso era verdade. Mai eu me a vida retribui com boa vontade. Então as condições
instalei no sítio, através de um amigo recebi um convite objetivas se criaram. Eu fazia as minhas traduções de
pÍa escÍever uma coluna sobre plantas no Jornal do Bra- livros e eu fazia as minhas duas colunas de jornal. Isso
sil.F, me pagaram regularmente um salário por mês. Eu perdurou durante longos anos.
não eÍa contratado, não era empregado do jornal, era
colaborador, mas recebia um 6xo por mês. Era tudo que Os elementos da natureza estão sempre Presentes na
eu precisava. E pouco tempo depois, um ou dois anos sua poesia, mas você não gosta de ser chamado de um
depois, a coluna fez tanto slrcesso na época, porque era poeta da natureza,no sentido comum do termo. A na-
uma novidade, estava começando a existir no Brasil a tLtrez;ainflui de forma radical na sua poesia, mas de ou-
preocupação com a ecologia - estou falando do começo tro jeito...
dos anos de 1970 - as pessoasestavam começando a ter
consciência da importância de lidar com a natur eza, que Eu acho o seguinte: existe uma tradição na poe-
o Jornal da Tarde, de São Paulo, começou a replicá-la, sia ocidental de poesia da natureza, uma poesia descri-
com o nome de "Verde". Então eu passei a ter dois ga- tiva dos aspectos belos da n^tureza. Eu acho que não é
nhos mensais fixos, que me permitiram levar a vida que exatamente o caminho que a minha poesia, que o meu
eu queria. Ao mesmo tempo eu estava estudando a vida trabalho tomou, porque mesmo quando os meus poe-
das plantas, eu vinha muito paÍa a biblioteca do Jardim mas são descritivos há sempre um substrato de pensa-
Botânico do Rio para a parte teórica , e lâ na serra, com mento, um substrato filosófico. Eu estou considerando
lavradores da região, eu comecei a aprender, a conhecer a condição humana também, e a condição de todas as
as plantas, a saber lidar com elas, a fazer uma horta, demais espécies vivas. Têm um poema que para mim é
plantar as minhas fruteiras. De forma que a vida me muito simbóiico sobre isso, que é o "Mulheres de mi-
demonstrou que quando a gente se decide a seguir por tho". Eu escrevi ele há mais de 40 anos, e até hoie sei
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ele de cor. E vou contar porque eu sei esse poema de O milharal estâva todo com espigas, uma coisa linda.
cor: ele foi escrito dentro da minha primeira roça de Era mais bonito do que um poema. É mais bonito do
milho. Imaginem vocês o moço todo sofisticado na sua que palavras. Criei então esta consciência de que a mi-
primeira roça de milho. Eu morava no Arpoador, ti- nha poesia não é de rratarez;à. Eu podia estar no mar,
nha morado em Nova York, Paris, Berlim, como falei em alto maÍ, ou estar no Ártico. Eu estava numa situa-
antes, viajado por toda Europa, e me considerava um ção muito diferente. E isso criou para mim essa noção
moço sofisticado. E a partir da vivência no campo eu de que é poesia da experiência. Todos os Poemas que
descobri que esse moço soÍisticado era uma invenção, eu escrevi desde então são baseados numa experiência
não tinha nada a ver com a minha verdadeira auten- que eu vivi. Em alguma coisa que eu fr2, orr escalando
ticidade. Eu não era aquela pessoa. Eu estava virando uma montanha ou fazendo a minha horta. O poema
uma pessoa bem-sucedida, tinha um ótimo emprego, "Contemplação dos seios das beterrabas" diz respeito à
ganhava muito bem, gastava melhor ainda, mas não era horta que eu mesmo fazia.E este poema "Mulheres de
aquilo que eu queria da vida. Eu entrei na escola da milho", do qual eu falo, é sobre essa tarde quando entrei
simplicidade. A minha vida foi se simplificando cada no milharal pronto, espigado, e o poema bateu inteiro,
vez mais. lmaginem vocês este moço pretensamente desceu como se viesse de fora.
sofisticado da cidade pegando na enxada, foi uma das
coisas primeiras que ett frzlá, para plantar uma roça de Os dois poemas que você citou, "Mulheres de milho" e
milho. Aprendi com os lavradores que se abre uma cova "Contemplação dos seis das beterrabas", trazem \mL
para colocar três grãos de milho em cada uma delas, e é outra característica que Perpassa a sua Poesia, que é um
preciso devez em quando capinar o terreno. Os pés de trato sensual com o entorno, com a fiatlJÍeza...
milho são muito frágeis, são caniços muito altos e, para
que eles não tombem, de vez em quando a gente tem É curioso, porque outro dia uma repórter foi me
que ajuntar terra com a enxacla na base de cada pé. E eu entrevistar, fomos 1á no sítio, ela visitou tudo, conheceu
fiz isso ao longo de três meses. E depois, uma tarde, eu as minhas árvores, e observou isso também. Ela disse
entrei pelo meu milharal e disse "meu Deus, que coisa que notava um fundo de sensualidade na minha poesia.
mágica! Como é capaz uma pessoa de produzir isso?". Eu disse que, bem, não sei se eu solt ainda, às portas da
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velhice, uma pessoa sensual. Mas isso é de fato uma ca- Eu acho curioso este poema, Porque eu não tinha cons-
racterística da pessoa que eu fui, sobretudo na juventu- ciência disso quando o escrevi - escrevi num jato, aliás,
de. Acho que a sensualidade era uma das características como todos os meus Poemas a partir dos 30 anos. Eu
básicas da minha personalidade. E o envolvimento com nunca modiÍiquei um poema depois, todos os meus
as plantas, com as montanhas, com os rios, é sensual, poemas publicados são poemas do jato, a coisa vem e os
porque é sensorial. O que eu sinto ao estar na nature- deixo como surgiram, alguns têm vírgulas, outros não,
za há, um pouco mais de 40 anos é que eu estou ple- alguns têm maiúsculas, outros não têm, uns têm Pontos,
namente real\zado, mental e corporalmente. Eu estou outros não têm - e, ao escÍever e reler depois o Poema
participando de um todo. Cada vezma\s esta sensação é sobre o caqui, eu não tinha consciência de uma sublei-
forte e verdadeira dentro de mim. Nao ha uma divisão, tura que podia existir nele. Mas uma moça, namorada
eu estou no mundo. O mundo real, o mundo tal como de um amigo meu, que gostou muito do poema, me
ele se nos oferece à primeira vista. Têm um poema que disse: "Eu acho que este poema não descreve só a subida
também é uma poesia da experiência, porque fala de no pé de caqui para pegar a fruta mais doce. E1e descre-
um pé de caqui que eu plantei quando tinha dois pal- ve também uma relação sexual". Eu acredito que todo
mos, uma muda. Eu esperei não sei se mais de 10 ou 15 mundo que for ler esse poema com calma percebe que o
anos para ele crescer, cuidando dele, protegendo-o das homem está em cima e a mulher está embaixo. O caqui
formigas e outros insetos. E pacientemente esperei ele mais doce pode ser uma oferenda, a oferenda que o ho-
cÍescer e florescer e frutificar. E aí então eu subi no pon- mem faz a mulher. E quando ela me falou isso eu passei
to mais alto para pegar um caqui e oferecer à mulher, a ver isso, e até hoie eu leio este Poema e sinto esse
que é a minha mulher, que estava no pé da árvore. É um subtexto, essa descrição embutida. Qre diz muito sobre
poema que tem um título que é uma referência ao livro a sensualidade que realmente existe na minha poesia.
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creveu um ensaio importante plrao livro "Alma Beat", poesia mais otimista, menos crítica da sociedade, mais
e a sua poesia já
foi muito comparada aos Beats. Mas otimista dos valores reais que eu encontro na natuÍeza.
você não se sente inteiramente confortável com essa Meu interesse pelas árvores, pelas plantas, pelos ani-
aproximação, não é? mais silvestres, sobrepuja a minha falta de integração
na sociedade tal como e1a está organ\zada- E eu acho
Muita gente já fez essa aproximação. Eu fui pra que esse recolhimento pelo qual optei foi uma maneira
Nova York em L962, e morei naturalmente no Green- de continuar vivo e contente com a vida. Porque não
wich Village, que era o centro da fermentação da ge- adianta eu ficar na cidade se eu discordo praticamente
ração Beat. E acredito que há talvez uma certa corres- de tudo. Se eu for pensar friamente, toda a otganizaçáo
pondência entÍe a vida que eu vivo e a vida que muitos social me parece uma coisa meio maluca. Atualmente
poetas dessa época viveram. Nos Estados Unidos, por no Brasil a gente vê o quê? É um circo de horrores. Não
exemplo, numerosos poetas posteriores à geração Beat sabemos aliás para que lado vai o Brasil, que rumo o país
vivem no campo. E os Estados Unidos permitem criar vai tomar.Tudo me parece muito esquisito, muito estra-
situações p^ra" a pessoa poder se dedicar à agricultura. nho. Então eu acho que para me proteger eu me recolho
Não só o Gary Snyder, que flcou mais famoso, existem no campo. E ao me recolher no campo eu descobri que
a vida é muito maior do que a vida humana. Não nego
vários outros poetas vivendo na natureza, menos co-
nhecidos, mas que são poetas a vida inteira, publicam o drama humano, mas existe o drama de todas as outras
seus livros, e foram para o campo e moram recolhidos' espécies, das formigas, dos tamanduás que comem as
Mas o paralelo que pode ser feito é mais entre o tipo formigas, das onças que comem os tamanduás. Então
de vida pelo qual optei, porque por exemplo os poetas existe uma infinidade de espécies que no meu entender
Beats ficaram até o fim poetas da dissidência, críticos são tão inteligentes quanto nós, cada uma tem um tipo
da sociedade. São poetas o tempo todo combativos, eles de inteligência. Eu não acredito nessa história de que
não se enquadram na sociedade americana e eles estão existem seres racionais, que somos nós, e que os animais
o tempo todo fazendo oposição àquele tipo de vida. Eu, são irracionais. Um cachorro é irracional? Um gato é ir-
no meu recolhimento, esse aspecto para mim se tornou racional? Eu assisti há dias 1á no sítio a uma coisa mui-
secundário. Eu acho que a minha poesia se tornou uma to curiosa. Têm muito mico 1á, aqueles macaquinhos
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pequenos, né? Têm pouco mais de um palmo. E tem A coisa funciona, cada abelha colaborando com a outra.
muito jacu. Não sei se conhecem, o jacu é um galináceo Eu acho que existem tipos de inteligência animal que
entre um galo grande e um peru. Um galináceo grande, talvez até ultrapassem a nossa. l
é uma organizaçáo sociai tão perfeita. Inclusive não há genheiros de profissão. Uniram o amor pela natureza à
abelhas corruptas como entre as sociedades humanas. tecnologia da qual eles vivem e de que eles gostam tam-
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Esse poema vem de uma experiência
muito concreta
bém. Subir montanhas... Uma das vezes que eu subi' você contasse so-
também, não é? Seria interessante se
havia 1á outro grupo e alguém perguntou a um cidadão experiência se trans-
bre isso, para ilustrar como é que a
que estava em cima de uma pedra, em destaque, vesti-
muta em Poema...
do de uma maneira muito curiosa, adornada, "por qtte
você gosta de subir montanha? Por que é qrre você vem ser in-
Este poema eu acho que também permite
aqui?" E ele respondeu, "porque eu fico mais perto de chegar à velhice'
terpretado, pod. ,.' a descida da vida'
Deus". Eu achei tão bonita a resposta dele' E'le estava con-
Mu, está descrevendo uma situação
,tu verdade ele
no alto. Nao é o meu caso. Eu escrevi um Poema, que da Maria Comprida'
creta que eu vivi, ao escalar o pico
diz respeito a isso, a essa experiência que eu mantenho Eu esta-
q.r. e r...r, cone de granito de 1'900 metros'
até hoje de subir morro. A gente pensa que é gratuito' 1á é muito árido'
va num gruPo, meus filhos juntos, e
mas não é não. É vm pÍazeÍ extraordinário' Dormir
no
sobe sem parar' era
só tem vegetação na base' A gente
alto das montanhas, onde cessa todo rumor' A partir morrer de sede na
um dia muito quente e eu comecei a
de 1.500 metros você não ouve nem mais passarinhos cantil com água'
subida. A gente leva cada um o seu
piando. Os pássaros não voam tão alto, não chegam até na subi-
E distraidamente eu bebi toda a minha água
lár.Jír náo há quase vida animal, a vegetação é rasteira' senti sede' E
da. Na descida naturalmente eu também
não há mais árvores grandes que façam rumor ao sabor alheia' porque
só não morri de sede graças à caridade
do vento. Só o capim que se alastra pelos picos mais dava uma gola-
cada um dos membros do grupo me
elevados. Então é um silêncio total, absoluto' E você a descer ainda' Eles
da. Então eu não tinha aprendido
deitar numa noite estrelada e sentir o universo como se
jíL mais experientes do que eu e mais previden-
eram
você estivesse penetrando no universo é uma experiên- a
t.r, ."du qual conservou uma parte da sua áp5ua PaÍa
cia fora do comum, que apazigua qualquer mente, ainda coisa: não basta
me descida. E com isso eu aprendi algurna
que doentia. Não é o meu caso' Pelo menos se eu a vidr é tão cheia
subir, é preciso aprender a descer' E
comparar, poÍque acho que há mentes bem mais doen- I gen-
de aitos e baixos, é tão sinr-rosar quc é prcciso
tes que a minha. O poema de que queria faiar se intitula tlc rccordtt um
te saber também estar Por baixo' lsso
naturalmente "Introdução a arte das montanhas"' ctt solt muito
tema que me é muito caro: colllo p()ctil
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curioso das inscrições que as pessoas costumam, sobre- to, eu tenho que me sentir contente com aquilo que
tudo os mais jovens, usar nas camisetas. Costumo ler e me é dado. Aquilo que a vida me deu, não considero
tentar compreender que mensagem aquela pessoa que que seja um ganho do meu esforço, é um presente que
usa uma inscrição na camiseta quer passar. E há poucos a vida dít a cada um de nós- Esta consciência eu acho
dias em Petrópolis, andando pela rua no centro da cida- que muitas vezes se perde e eu a tenho cada vez mais
de, passou uma moça por mim que tinha uma inscrição vívida, uma grâtidão infinita por tudo aquilo que eu
de uma simplicidade total. Dizia apenas "viver bem". tenho recebido. A começar por uma quantidade enor-
Aquilo bateu fundo para mim. É itto qr. eu tenho que- me hoje de amigos, todos mais jovens que eu e todos
rido ao longo da vida. Eu não vou falar de felicidade, maravilhosos.
porque felicidade é uma palavra muito comprometida,
muito pervertida pela propaganda, que diz que a felici- Leonardo, no seu sítio tem uma grande figueira, que
dade é você compraÍ um carro novo, é você comprar um você já chamou de "árvore galinácea" num poema, que
apartamento maravilhoso, é você comPrar um iate, um é bastante imponente, abraçando uma pedra' Ela me
helicóptero. É .o-pru., comprat comPrar, para ser {eliz. parece muito importante para você. Por que?
acordo com as minhas necessidades. E é claro, como as árvores que nós encoltramos quando compramos o sí-
pessoas são totalmente diferentes umas das outras, que tio. Qrando eu conheci a minha mulher, Regina, ela
viver bem para cada um significa alguma coisa diferen- era uma moça muito elegante da cidade, vivendo em
te. Pode ser que para alguma pessoa seja o acúmulo, a um apartamento muito confortável. Não era burgue-
sociedade na sua forma mais comum hoje, que é voltada sa, nunca foi. Mas, enfrm, uma moça de alto luxo' E
para a aquisição. E essa pessoa só consegue viver bem quando et frz a proposta de ir viver no sítio, ela me
dessa maneira. Não é o meu caso. Então eu troquei esta acompanhou, vivíamos um caso de amor' Ela deve ter
palavra feiicidade peia palavra contentamento. Eu acho achado que era uma proposta meio louca, mas talvez o
que o importante é que cada um de nós viva contente. amor também fosse louco. E 1í fomos juntos' tr a pri-
J,1
Respondendo à inscrição que a moça conduzia no pei- meiravezque chegamos ao local, nírs tíllhamos um jipe Í
,'4
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na ocasião, o jipe foi quebrando pelo caminho, era para que aquela árvore tenha mais de 400, 500 anos, Porque
chegar no começo da tarde, chegamos umas nove da ela é muito grande. E ela se amarrou numa pedra, um
noite. Era uma lua cheia. Tem uma pedreira no fundo pedregulho. Ela nasceu ao lado do pedregulho e a cada
do sítio e a lua estava despontando por cima da pedrei- ano que passa as raízes estão fazendo algo como uma
ra. Bateu um negócio. Eu disse "é aqui". Eu estava há paliçada, envolvendo dia a dia mais a pedra. Ou seja,
um ano procurando terreno. E eu disse "é aqui. Esta ela é táo inteligente que ela pôs uma âncora de granito
lua eu compÍo, eu quero ficar aqui, achei o meu lugar na base pra não ser açoitada e derrubada pelos venda-
na terra". E parece que era verdade. Mas aí voltamos vais. Qrando venta, ela está na beira do rio, ela sofreria
dias depois com dia claro para poder andar um pouco, sempre esse perigo de ser derrubada pelo vento se ela
era um matagal danado, o capinzal crescendo porque os não estivesse tão firmemente ancorada no pedregulho.
bois já estâvam se afastando de iá, e a Regina passeava E lindo o fenômeno. E era iá, perto dessa figueira, que
na beira do rio quando esbarrou num galho e foi mor- eu fazia a minha horta. Já não faço mais porque a fa-
dida por micuim. O micuim é o menor dos carrapatos, mília hoje se resume apenas a nós dois, e uma horta
ele é muito pequenininho, é uma coisa minúscula. E ela é muito trabalhosa para duas pessoas. E um luxo que
saiu de 1á, às vezes a gente não percebe na hora, com as não se justifica. Mas quando tínhamos a família maior,
coxas todas tomadas de micuins e ficou horrorizada. Ela os frlhos em casa, meus pais vivos, os pais dela vivos, a
me disse "não vou morar 1á de jeito nenhum". Aí eu tive gente plantava pa;ra as duas famílias. E eu até fr,2 um
que fazer todo o trabalho posterior de convencimento poema, que também é poesia da experiência, que surgitt
e depois ela se curou do micuim e acabou concordando de um dia em que eu estava cuidando da minha horta
e fomos muito feTizes, somos muito felizes atéhojelâ. que era próxima a essa figueira, e ela vai apareccr no
E havia apenas duas grandes árvores em pé. Um pé de poema mencionada como uma árvore galinácea, corn<r
jacaré, que é a árvore mais típica da regráo,já bem anti- se ela tivesse posto um ovo de pedra. O poema se chama
ga. Esta deu milhares de sementes ao longo dos mais de "Contemplação dos seios das beterrabas". tr aí há algo
40 anos que nós estamos 1á, e então hoje existem deze- também talvez de sensualidade, né? Porque as beterra-
nas de pés de jacaré que são filhos desta grande árvore. bas são seios...
E a outra é a figueira que é monumental. Eu imagino
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A sua poesia é muito marcada também pelo humor, um vê com boa vontade. Mas claro que não me levo a sério,
humor muito peculiar. Qre está no seu trato no mun- porque eu sei que a minha própria consciência pode me
do, não é? trair muitas vezes,aminha própria consciência pode me
enganar. É preciso ouvir a voz daespécie. É preciso ou-
Eu acho que você disse uma coisa muito certa. vir uma consciência superior à minha para que eu me
Muito moço, r,rm grande amigo meu me disse: "E,u gos- toque de eventuais imperfeições. E não se levar a sé*
to de você porque você não se leva a sério". Eu realmen- rio redunda nisso: a minha poesia tem frequentemente,
te não me levo a sério. Eu acho que talvez seja um dos se não o tempo todo, um lado irônico muito acentua-
maiores problemas dos seres humanos, sobretudo esses do. Eu brinco muito com as palavras. Muitas vezes eu
muito engravatados, os políticos, você sabe c-, que eu es- afrrmo uma coisa que na linha seguinte é desafirmada.
tou falando: as pessoas paÍece que se confundem com a É ra.r-rpt. no reino do pode ser, do talvez, nunca são
sua imagem e acham que são sempÍe pessoas extraordi- afirmações peremptórias' porque eu nunca creio que se
nárias, belas, belas, belas. E,u sinceramente não me sin- possa fazer afirmações assim, a vida é mudança. A cada
to assim. Eu me sinto cheio de defeitos e imperfeições atitude que a gente toma corresponde uma mudança, e
como qualquer pessoa. E o trabalho de poesia para mim a gente tem que ser muito flexívei.
não é só escreveÍ. Poesia é um trabalho interior. Eu que-
ro me transformaÍ em gente, eu quero ser uma boa pes- Para além de poeta, você é um tradutor reconhecido,
soa, eu quero ser uma pessoa correta, eu quero ser uma um dos mais conceituados em atividade. Você Parece
pessoa que tenha pÍazer em se encontrar na solidão e seguir, na tradução, uma linha mais fiel aos originais,
não tenha queixa, só seu próprio respeito. Isso é um ao contrário de escolas como a da "transcriação", dos
trabalho que leva a vida inteira. A poesia para mim é poetas concÍetos...
um instrumento pra chegar a isso. Não é um enfeite na
minha vida, é o meu trabalho pessoal, como eu disse no A tradução a princípio foi um meio de
apenas
início, para me transformar em pessoa. Isso é uma coisa ganhar minha vida. Durante muitos anos eu traduzi
muito séria, é um trabalho que eu acho que cada um de enciclopédias. tadução de enciclopédia é trma coisa
V,
nós está executando o tempo todo, quando a gente se em que você não pode mudar nada, tem que ter uma
b;
I
90 97
t".
fidelidade absoluta. Você passa âpenas as informações os 11 anos de idade, no meu colégio nós estudávamos
de uma língua pàÍa- a outra. Mas a enciclopédia tinha seis línguas estrangeiras, â começar pelo latim, que abre
grandes vantagens pra mim. Primeiro que pagava muito ãs portas para as línguas neolatinas, quando voltei pro
melhor do que a tradução de livros. E segundo que era Brasil eu vi que eu tinha condição de me tornar um
um trabalho constante. IJma enciclopédia levava às ve- tradutor. E era o trabaiho que eu queria quando resolvi
zes dois ou três anos em produção, e portanto eu tinha deixar de ser editor para poder viver fora do Rio. Um
trabalho garantido por aquele período todo. E foi uma tradutor pode viver em qualquer lugar, ele faz traba-
ótima escola, porque ao contrário dos irmãos Campos, tho em casa. E aí passei a traduz\r muitos livros. Mas
não há crítica nenhuma nisso, eu acho que há vários a maioria, a quase totalidade dos livros que eu tradu-
caminhos na tradução, mas a minha escola, o que está z\ me foram encomendados pelos editores. Não eram
muito baseado nessa experiência como tradutor de en- sugestões minhas. Por sorte minha, eu era considerado
ciclopédias, é a da fidelidade. Eu procurei sempre, ou um bom tradutor, e sempre me encomendaram bons
quase sempre, seguir tanto quanto possível o original. autores para traduzir. Faulkneq Swift, Virginia Wolf.
Sempre me sentir inferior ao original. Não quis nunca Enfim, autores que mereceram o meu esforço. Com os
me sobrepor a ele. Há uma escola de tradução em que quais eu aprendi muito. Porque a cada autor desses que
os tradutores tentam se sobrepor ao texto original. A eu traduzi, eu não me limitei a botar um livro que eÍa
minha posição foi sempre muito mais modesta, como traduzido ao lado e recriá-lo em português. Eu estudei
se eu fosse um instrumentista que tem que seguir uma cada um desses autores. Eu li quase tudo que eu pude
partitura. Eu sou apenas o executante da obra, mas eu deles e muito sobre eles. Por exemplo, Swift. Os textos
tenho uma partitura, que é o original na língua da qual mais antigos do Swift que eu traàtzi datam do século
eu traduzo, e tenho que tentar fazer o mais próximo 17. Eu não podia tradtzir impunemente. Até pra qllem
do que o autor quis, o compositor quis. Não vou fazer é da língua inglesa é di{icil tradtzir Swift. Eu tive que
brilhos extra-originais. Mas, como dizia, para mim foi estudar o assunto para poder fazer as traduções. Eu tra-
só um meio de vida. Er"r nunca me preparei profissional- duzi quase cem livros, mas há um pequeno grupo de
mente paÍa ser tradutor. Mas depois de ter vivido seis livros a que sou muito apegado, que foram iniciativas
anos no exterio5 depois de ter estudado línguas desde minhas. São livros como os Sonetos da portuguesa, de
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Elizabeth Barrett Browning, e o de Contos orientais. muito grande. Outro livro por que tenho muito apreço
Ao todo são sete ou oito livros, quase todos de tradução é o de contos orientais. São contos muito antigos da Ín-
de poesia. São livros de autores e temas que me fasci- dia, da China, doJapão e da Coreia. Não se assustem, eu
naram, e eu levei os livros já prontos paÍa as editoras. não conheço essas línguas. Eu conheço todo esse mate-
Algumas vezes frz tudo, até a quarta capa, a orelha, por- rial em versões para quatro línguas ocidentais nas quais
que eu tenho prática disso, por ter sido editor. Eu tenho eu leio: inglês, francês, espanhol e alemão. Os materiais
um carinho muito especial por esses livros, porque os são muito antigos. Os mais antigos datam dos primei-
considero parte da minha obra. Por exemplo, no caso ros anos da era Cristã, e muito frequentemente ou qua-
dos Sonetos, eu quase não escrevi em versos rimados se sempÍe ortalvez sempre não há só uma recensão, não
e metrificados na minha própria obra, e no entanto eu é só uma versão do conto original. São contos que vêm
aprendi metrificação quando jovem, era paÍte do meu da tradição oral. São contos populares, em última análi-
currículo de português. E o conhecimento que eu ti- se. Só uns três ou quatro têm autores identificados. Aí é
nha de metriÍicação eu pude ut\lizar na tradução desses material que já chega pelos séculos 17 e 1,8 da nossa era'
poetas antigos, Goethe, Shelley e Browning. O livro da Mas a grande maioria são textos muito antigos e que
Elrzabeth Browning tem 44 sonetos. Eu nunca escrevi às vezes eu conheci em diferentes traduções. À, u.r.r,
um soneto, mas eu consegui traduzir em forma de sone- eu tinha o mesmo material traduzido paÍa o francês,
to. Então são os meus sonetos em português, os únicos inglês, espanhol ou alemão. Então não havia um origi-
que consegur{azer.Mas foi um trabalho muito curioso, nal único. E neste caso foi a grande libertação do tra-
porque é uma mulher se dirigindo a um homem. É r.-u dutor fiel. Eu frz adaptações. Eu juntava às vezes duas
história extraordinária de amor entre dois poetas, Ro- ou três traduções e fazia a minha versão em portugr-rês
bert Browning e trlizabeth Barrett Browning. Nesses contemporâneo. Sendo um material tão antigo e sem
sonetos e1a está escrevendo para o amado. É evidente autoria identificada eu acho que foi um procedimento
que eu tive que me colocar na posição da mulher. Eu válido. Eu adoro as histórias. Eu li mais de 2 mil contos
tive que me consideraÍ flavoz feminina, para conseguir orientais pra fazer um livro que tem, não sei, menos de
fazer com alguma eficiência a tradução dos 44 sonetos. 100 textos. São contos muito curtinhos. Esses materiais
É .r- trabaiho pelo qual eu tenho uma consideração são tão trabalháveis hoje que um dos contos de que eu
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gosto muito, que se chama "Cabeças cortadas" e é da e com uma boa extensão, bem larga, é capaz de con-
antiga Índia, o Thomas Mann adaptou também para o ter uma grande superficie de água. E este homem fez
alemão. E aí pode-se ver a diferença entre um poeta e isso sem uma finalidade clara, uma grande represa exa-
um romancista. A minha versão em português ocupa tamente na estradinha que conduz ao meLL sítio. E ali
duas páginas ou duas páginas e meia. A versão de Tho- não criava peixe nem nada. Eu não sei o que ele queria
mas Mann se estende por L26 páginas. É a diferença ftzer com a represa. Ficou apenas uma água represada
entre um romancista e um poeta... do rio qlle passa abaixo do meu sítio. E a ÍepÍesa, numa
noite de temporal muito violento, se rompeu. A vila
Como você tem visto a questão ecológica hoje? Você de Secretário se estende às margens do rio, fica a cerca
sempre esteve muito vinculado a esse florescimento do de um quilômetro do iocai onde foi feita a barragem,
pensamento ecológico no Brasil. Como você vê, por numa situação idêntica à de Mariana. Só que eu vivi
exemplo, o cÍime ambiental que aconteceu em Maria- isso 1á em microcosmo. E uma bela noite de tempestade
na, no Rio Doce, ano passado, causado por empresas a repÍesa de barro se rompeu a as casas da cidadezinha
de mineração como a Samarco e aVale do Rio Doce? foram todas inundadas. Felizmente ninguém morreu.
Mas bicicletas, fogões, objetos das pessoas foram arras-
Olha, eu, como todo brasileiro de bom senso, tados pelas águas. Animais domésticos, cachorros, por-
acho que foi um absurdo completo. Aliás, pelas infor- cos. Enfim, foi uma trtsteza na cidadezinha. E nunca
mações que obtive pela leitura dos jornais, a empresa mais essa represa foi restaurada, graças a Deus. Agora,
já sabia que havia uma fissura na barragem, Que havia o que eu penso é o seguinte: o Brasil inteiro está sendo
a ameaça de rompimento da barragem, e não tomou escavado. A mineração no Brasil é uma coisa chocante.
providência nenhuma. Eu vivi esse problema em escala Não sei se vocês já tiveram oportunidade de ver campos
muitíssimo menor em Secretário, onde eu tenho meu de mineração, áreas de mineração. São uma coisa do-
sítio, porque um proprietário de terras da região, um lorosa. Porque a noção que eu tenho de lidar há tantos
homem rico, por mero deleite resolveu fazer uma repre- anos com a terra é que a terra é um organismo vivo.
sa. LIma represa de terra. Muitas represas são só de ter- Ela mesma, o planeta, para mim, e a sua superficie. E
ra, né? Não têm muralhas de pedra, aterra compactada isso a gente sente de uma forma muito forte quando a
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gente tem que lidar para plantar. São coisas que a gente dente, até acabar. Nunca troquei de carro todo ano, para
tem que fazer. Se você quer sobreviver, você tem que mim aquilo é um objeto de uso. Eu uso ao máximo,
plantar a sua comida. Mas, quando você dá uma enxa- enquanto eie estiver andando eu vou usando o mesmo
dada na terra, você tem a nítida sensação de que você carro. Agora há um hábito, eu acho que é um hábito
cortou, como se cortasse um corpo vivo. Você cortou, de consumismo, que você tem que estar sempre com
você provocou ali um ferimento na terra. Essa sensaçào um carro novo, cada dia um carro melhor. O meu é um
para mim é muito forte e muito verdadeira. É preciso carro popular, dos mais baratos que existem. Eu me dou
viver, mas eu acho que qualquer pessoa que viva essas por muito contente por poder ter um carrinho popular,
experiências que eu tenho vivido vai chegar a essa mes- não preciso mais do que isso. Então eu acho que talvez
ma conclusão. Então, quando eu passo ao longo de uma isso entre em questão. As pessoas precisam trocar de
estrada, por exemplo, eu vejo que os morros, nào preciso geladeira todo ano, trocar de televisão, porque vem mais
chegar nem ao drama da mineração, a €Jente vê que os um modelo mais avançado de televisão. E aí então eu
morros foram fatiados. Os morros são arredondados, acho que a mineração vai ter que continuar. Porque es-
os morros têm forma de seios e de bundas. E eles são tão exportando minério para a China, tão fazendo não
fatiados, para que as estradas possam passar, naquelas sei mais o quê. Mas eu acho um crime o que aconteceu
escadinhas. A engenharia faz isso com muita perfeição, em Mariana. IJm crime não só contra os habitantes da
mas é uma deformação. É .o*o se você cortasse seios cidadezinha que estava 1á, os que foram soterrados pelo
ou bundas de um organismo humano, fizesse-os geo- iamaçal, como também contra um rio, o rio Doce, con-
métricos. Então é o problema eterno, que eu acho que a tra todos os animais que viviam na região e as plantas
tecnologia enfrenta ao lidar com a natureza. Eu não sei que vivem na região.
como resolver isso. Eu não entendo nada de economia.
Não sei como. Eu acho que uma das soluções seria a
humanidade consumir menos. Usar mais. Os carros, por
exemplo, são feitos para durar três ou quatro anos.Todo
mundo troca de carÍo a todo ano. Meu carro tem quase
10 anos de uso. Eu sempre usei o carro como escova de
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Sobre o autor
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Editores Responsáveis
Sergio Cohn
M:rrcclo lleis de Mcllo
Gcrm:rno Weiss '
Organização
Sergio Cohn e Marcelo Reis de Mello
Projeto Gráfico
Germano Weiss e Barateza Duran
Diagramação do miolo
Sergio Cohn
Foto de Capa
Michclle I-udvichak
Produção Gráfica
Oficina do Prel<r
Cianotipia
Michelle LtLdvicl-rak e Bianca Guedes Alcoforado
Revisão
Juliana Tiavassos
Agradecimentos especiais
Regina I-ustosa, Panlo We rneck e Alberto Pucheu
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RIO DE JANEIRO
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