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José Alcides Pinto voltou a resi no Ceard, depois de uma longa temporada no Rio. Na Guae rabara, estudou Jomnatismo e Comunicacao (Fa celdade National de Filosofia) e-#iblioteconomia (Biblioteca Nacional), especilizando-se em Pes- Gulsas Bibligraticas em Tecnologia pelo Inst to Brasileiro de Bibilosratia e Documentacio, Colaborou nos Suplementos literarios ‘do Diario Carioca, © Jornal, Diario de Noticias, Corrlo da Manhé, Revista Leitura ete, Fol no Rio de Janeiro us Alcides Pinto fer sia carreira Wterinla. Hoje © autor de "O Dragio” é um nome conheckdo e bem situado nas letras brasileiras, partieipando e vérias antologias e opm pocmas traduzldos para o francés, o espanhol 0 Haliano, Aleides Pinto é Redatot do MEC, lotado na Delegaca Ree tional de Fortaleza e Professor da Factdade de Ciencias Sociais ¢ Filosola da- Universidade Fee eral do Ceara. José ALEIDES, PINTO Ncham 68692 PPG Autor: Pinto Joxé Ais, 1923- hula: Equindeo ‘exo iii ow JOSE ALCIDES PINTO, depois de Incursionar pela poesia, o romance © © conto, apresenta;nos agora uma nova facéla de seu talento criador, ‘num dos gineros mais dificeis da mo” ema literatura — 0 teatro de van- uarda, 1m. verdade, a audaciosa ¢ sur- preendente experiéncia desse autor — essaltese, em tempo, um dos mals ‘estranhos erladares de mits e stabo- Jos de nossa literatura contemporanea = velo enriquecer 0 ciclo fantastico fe terrorstieo de suas alucinagées, num. [processo mistrioso ¢ inaualto de in fuagem consciente ¢ objtiva. Tost Aleides Pinto eriow uma dt rnAmica visual sem se afastar do absurd, to caro ao sen proceseo de ‘trabelho, imprimindo uma ordem ev! Gente desse mesmo absurdo, que 0 Droprio Diabo se nos afigura um tipo ‘humano supercivilizade, a ponto do nos dar a dimensio exata dos anseios 4a humanidade, N&o 86 ist: © Diabo do Aleides Pinto 6 portador de grande riqueza espinitual, capaz de amar as ceriangas ¢ 08 poetas e, com um teve toque de sua asa flamante, um gesto, fou uma palavra profética, incendiar uma eidade Esta obra (na qual € fit identi- ear seu autorctiador de deménios por exceléncia) representa uma comé- dia ou uma sitira, que uma ves fevada cena tomarse-d das mais entusi- ficas, pls € uma pega que oferece re- cursos de excclentes qualidades ob ite p= EQUINOCIO id JOSE ALCIDES PINTO EQUINOCIO TEATRO (a Sespente Emslumsa- ‘quctzaleoalt a) era dau tribal dea Tolteas, Os As reorio 46H& a 212910629 ' se )oqfzcot OBRAS DO AUTOR PoRSLA: ‘Nogées da Poesia & Arte — Rio, Pongett, 1682 Pesjueno Cadierno ce Palavzas — Rio, Pongett, 1068 Cantos de Licier — Rio, Pongets, i054 ‘As Pontes — Rio, Pongett, 1959, ‘hha dos Patsupachas Rio, Liv, Sto José, 1960 Gielo Onleo — Rio, MBC, Serv. de Docummentacio, 1964 Goncreto — Satratira = Visual — Gratis, Ris, algo do -Autor, 1965 Os Citadores de Sin — Rio, Rditire Leftura, 1965, Cantos de Liicifer (Obras Completas) — Rio, GRD, 1 968 ‘As Aguas Novas (Inéaito) ROMANCE: Entra 9 Sexo: lousura A morte — Rio Grica Record ‘Baltéra, 1968 TRILOGIA DA MALDICAO: © Draaio — Rio, 1* ed. GRD, 1964; 29 ed. © Cruzer, Qs Verdes Abutres dx Colina (inédito) Almofala ou Os Ermos de Satanks. (inédito) NOVELA: ‘As Narrativas_(inédito) © Crindor de Deminios — Rio GRD, 1967 ‘TRILOGIA: © TEMPO DOS MORTOS Biagio da Morte — Rlo, José Alvaro, ator, 1962 ‘Peto oat do Aleneat> (Romance e Novela). 10, Univerldade Federal do Ceara Roto Famino. (nla) 8 Segredo (no pet) conto: oy de ona — Ro aire Late 1968 A Vatipia Gout) Premio Categoria Bipot fesuen Minlipl de Petes, 1510 Ccatrica LiTeRARIAS Politica da Arte (inéditoy ~ ‘PERSONAGENS ‘ARMANDA OLGA JOAQUIN, LOLA DIABO ‘MASSILON ‘MARIA DAS DORES CRIANCINEAS PECA EM 3 ATOS Casa de Joaquim, situada num cotovélo de rua, no subirbio de uma cidade, A intervalos, ouve- se o harulho de trens trafegando, ARMANDA (entrando em cena, em companhia de Olga) — Eu, caducando? Os anos passam. Amanha posso estar yelha, mas hoje estow com ‘a mente sa, ainda nao tenho idade para sofrer de arteriosclerose, meu anjo. OLGA — Deixar a Faculdade, logo no tltimo ano... Agora, por qué? vejam bem; por capri- cho, ARMANDA — Por nojo. QLGA — pior ainda. © mojo & um grande peea- ARMANDA — Eu nfo poderia advogar. Nao acusaria um inocente, De que, me serviria 0 diploma? Para enfeitar a parede? Dar-me o di eito de usar 0 anel de bacharl? sso ¢ vaieu- 0. OLGA — Ridiculot Hs 0 que sabe dizer. Toda familia tem um vulto importante, ARMANDA — Vocé e sua genealogia, Néo ser- virei de ponte para ninguém. Tenho idade an para viver a minha vida. Sou uma mulher ‘cmaneigada, OLGA — Vocé é arrogante, Agressiva, Essa é a verdade, “Tenho idade para viver 2 minha vida. Sou uma mulher emancipada”, e nem repara na leviandade dessa confissao. Como quem dix “Tenho inclinagdo para ser uma libertina, nem. eequer me falta idadel”. ARMANDA — A boca diz do que 0 coraco esti chelo, ‘OLGA — E insulta-me! Esquece que sou a irmi mais velha. ARMANDA — Por isso acaba de dizer que “nem sequer me falta idade”. OLGA — E ainda zomba, Nao teme os casti- {gos do Senhor. ARMANDA — © Senhor nfo me vé com os ‘thos de advogada nem de libertina, O Senhor me vé como os indios. OLGA — Ah, era s6 0 que faltava! Novamente a mania dos indios. (Falando para a platéia) Ma- nial $6 pode ser mania! $6 pode ser! JOAQUTM (chegando da cidade, entra em cena abanande-se com 0 chapéu) — Que se passa nesta casa, que de longe se ouve o alarido? OLGA (apontando Amanda) — Bla esta Iund- tica, Voltou a histéria dos indios, Diz que nao vai estudar mais, SS JOAQUIM — Tanto melhor, contanto nao tire } sosségo dos vizinhos, Isto agui nao é uma casa de loucos! Ela tem os espiritos da mie, LOLA (apareeendo na sala) — Vooé também no deixa de cuspir o nome dela da bea. Aque- 1a. ARMANDA ‘para Joaquim) — Nao deixe que ela destrate a meméria de minha mde, Eu a mata- ria, OLGA — Armandal ARMANDA — Eu a mataria, sim, Ninguém ‘me impedica, LOLA — Era uma eachorra, igualzinha a. Joaquim golpeia em cheio a biea de Lola, que foge para o interior da casa, aos gritos. JOAQUIM (para Armanda) — Hé um mapa no aii, Eseolha a selva que quiser. Desapareca. OLGA — Veja que estado de coisas voce eriou. ARMANDA — Nao me dou por paga. Se ela vol- ‘ax, Ihe apertarei a garganta: assim, assim. (Fecha as maos, com firia), ‘OLGA — Afinal, ela agora é a espisa, Tem direi- to & felicidade. ARMANDA — Néo com o marido de minha mie, O amor nao pode acontecer duas _vezes sob 0 mesmo teto. O sol ndo nasee duas yezes no mesmo dia, mas uma sé, para que no outro se aS faca num céu diferente, (Desaparece mo interior da casa. Tem-se a impressio que val surrar a ‘madrasta, mas volta com um saco de Jona. Co- ‘meca a arrumar seus pertences dentro dele. Pas- sa a correia em témo da béea, Levanta & altura ‘dos ombros. Agasalha na cabeea, como medindy foreas, Deixa eair de uma vez aos pés) — Umsas duas arrdbast Nao 6, afinal, carga estafante Com 0 tempo, a gente se acostuma, OLGA (como se estivesse saindo de um pesadelo) = Vor’ esqueceu a pasta de dentes e o rouge; a eseéva de cabelos ¢ 0 relogio de pulso. Esqueceu também o p6; o leque de plumas. Esqueceu de fa- zer um rol de suas roupas intimas. ARMANDA — Nio precisarei de nada mais, Dormirei ao relento, como os bichos, Nao terei dé sme enfeitar. OLGA — Nao posso deixi-ta partir assim, come uma mendiga. Uma retirante, Temos o mesino sangue, E meu dever.. ARMANDA — Voeé quer dizer: “6 meu dever impedir”, mas sabe que nao pode. OLGA ‘chorando, com grande sentimento) — Jamais nos veremos, néo é verdade? ARMANDA — &’ provavel, Mas pode haver espe- ranca. OLGA (gritando, com grande desespéro) — Nao hd, Nunca haveré esperang ARMANDA — Dé no mesmo, A gente um dia... sis cedo ou mais tarde... a OLGA — Diga-me onde perdeu o coracdo, que vou procurar ARMANDA — Nao foi to longe. Perdi aqui nesta ‘casa, Mas vocé nao o encontrars, OLGA (com desilém) — Agora sei por qué. Em verdade, n3o 0 encontrarei, Ele sempre foi de- masiado pequeno, do tamanho de um grao de areia, ARMANDA — Af esté por que devo partir. Nés nunea combinamos, E agora com a “outra”, ‘vocé beljando-Ihe as sandilias, chamando-a de “minha mie OLGA — A primeira 4 no existe, Somos érfas. Precisamos do apolo de alguém. Somos mécas solteiras, Se fossemos casadas.. ARMANDA — Mécas solteiras! Voeé insinua que ‘ela nos deve arranjar marido? OLGA — Por que nfo? Marido, e nfo amante, Vooé esqueceu a religiio? ARMANDA — A religlio nfo é isso que voc peu- ‘88, 0 que ela professa, atirando blasfémias contra uma santa, com citune do vivo. OLGA — Bla estava transtomnada, Ela o ama, E a0 vidvo, vore devia chamar de meu pai ARMANDA — Hi o segundo sentido das pala- ‘ras, que @ gente nunca expressa. OLGA — Vocé fala como se se dirigisse & uma reunido de sibios. Sa ARMANDA — Basta. Vou-me embora. OLGA (despeitada, quase histériea) — Vooé seré ‘devorada pelos indios! |ARMANDA — Pois que seja! Nao me acostumo aaneNrivilizagdo, AS ctiaturas se me asseine Gorn ares de um planéta habitedo por monstros. OLGA — A fidelidade irracional! Que despropo- Gist Voee acabard mesmo na companhla de ‘um indio. Um macho fedorento. 'ARMANDA — Nada hé demais em me apaixona® por um indio, Hi exemplos na Historia. OLGA — Veet fala em se apaisonar. O indio € COUGH ra, Nao sabe o que 6 palxdo. Amor. Vote Juma joo uma eserava, Recebers castigos. Co- vier fratas bravas. Peixes crus. Tera de plantas mers tes, Usara uma tanga assim (Fax um sinal ‘Fiadgutar na frente da saia, sem repsrar no idl Guy Usara argolas Tisticas nas orelinas, como (08 eiganos, ARMANDA — Como 0s ciganos... Por que 140? Sempre gostel deles . OLGA — Nao féssemn to palradores... Téo velha- 08 ARMANDA — Tudo é uma questo de principios. OLGA — Voes se casaria com um cigano? |ARMANDA — Com 0 capitdo da tropa, se ele me aceltasse. Sad OLGA (com as miios na cabeca) — Ts: é uma Youeural ARMANDA — Sublime! OLGA (perversamente irdnica) — Acontece que ee cRiganos nao hd o casamento, minha cara, ARMANDA — Bu sei, eles pensam ao contrécio Ge nds: ndo acreditam no matriménio, Despe- ses som o cartério, o padre, a omamentagao do Sitar as fléres, o tapéte, o drgio, o carro dos not fos, 0 banquete e 0 baile! Quanta tolice! Quan- Yo dinheizo gasto inutilmente! Daria, para com- ‘prar uma tropa de burros! Enquanto Armanda balbucia palavras a0 vento, nlevada em seu sonko absurdo, Olga desapare- caie'volta incontinente com a fotografia de um ‘grupo de eiganos. OLGA (mostrando a fotografia) — Que deca: Gencial Veja, Parecem poreos. E uma coise in- Salita, como um enxame de méscas, Bstou sen- {indo'o bodum de vinho pode. (Faz mencio de vvomitar). ‘Armanda, com absoluta ealma, pega na fotogra- examina com curiosidade. Aos powcos, 0S ne fos formados em sua testa vVao-se desman- Thando, De stbito, sta um rizinho nervoso, © sanceates.WMordisea a unha ep indicadpn da mmso direita, Fax uma careta engragada para Fotografia. Senta-se no chio, As pernas tranga- tas Coloca as duas maos na cabeca, como wns aaa menina, e desata a rir, Depois de rir até a exau” tao, aponta para Olga, na fotografia, a maca- quinha de boina vermélha e de biquini, escan- chada no ombro de uma velha cigana, tentando rmeter-Ihe um earogo ma orelha. OLGA — Ciganos! Indios! Vooé esta é precisan- do dos euidados do dr. Bruno. ARMANDA — © Fsiquiatra que tratou de mie? ‘Mas mae estava absolutamente certa! ‘OLGA — 0 qué? Voct se atreve? eta om cee a tn acne LOLA (rae enews hema) — Anu ve SUGAGIY sh qu uno bam, lon, ce Me at can (Sau fee Sie ee) Cc, tm pshen tt re sven) Ve on Pogue Gage ranitament as Inte a com tends gar Armaan heel OuGa — Cut! No psa de copes a Groat pose irre ese tn Bo 'Gala aceon ro Owes rans de rere ska nn, slp ln como se9 Di Degas stent LOLA (reapareeendo com grande espants) — E 2 bruxs, Hin me persegue por causa de Joaquim ARMANDA — 0 Disbo faz justiga com as pré- rias maos, Voo® & injuriou, Agora vai pagar. =a= OLGA (assombrada) — A pocira esté invadindo 8 casa, ARMANDA — Bravo! Isto me alegra. Quero vé-las rodopiar na poeira, A cenfusio dominou 9 ambiente, Poeira, Lati- dos. Guinehos, A pior desoxdem, LOLA (aterrorizada) — Olga, minha filha, acu: dame, (uve-se o barulho de paredes ruindo), ARMANDA — Othem, af esté. Diabo chega a tempo, Vocé, megera, (fala para a madrasta), ig acreditava que minha mie o visse. Voce cha- mou-a de visionéria e de mentirosa. Agora vai agar. Aparece 0 Diabo, exercitando-se a poucos passos das trés mulheres, dando saltos mortais, DIABO — Eu sou aquele que acode & desordem 20 édio, Aqui estou. Alguém vai partir. Preciso ‘ocupar seu lugar. ARMANDA (absolutamente tranguila) — Sou eu {quem vai partir, A casa é sua, Insiale-se, minha mide o viu. Era verdade, Nem lhe falta’ mesmo © boduim de gamba que ela descrevia, DIABO — Claro, menina, Pode partir. Defender- evel das feras, na floresta. Bodum de gamba? (Funga) Nunca fui tio humilhado, Sua mie ARMANDA — Alto 16. Nao xingue minha mic, ‘se quer sair inteiro daqui. a DIABO — Néo a estou xingando, menina, Sei respeitar a meméria dos mortos, Mas que ela ‘trocou de mim, isso trogou, ARMANDA — Ela apenas 0 achou engracado. Compreende? DIABO — Engragado? A menina que dizer ebmica? ARMANDA — Até certo ponto. (Aproximando) Para que diabo Ihe serve este rabinho? (Acaricia © rabo com ternura). ‘MARIA DAS DORES (entrando na sala, sem dar rela presenca do Diabo) — A comida est na me- sa, (Funga) Que catinga de gamba! (0 Diabo rosna). Maria das Dores Vendo o Diabo — Ob, 0 Diabo! (Desmai B= ‘Mesma casa, A familia esté & mesa. Joaquim ocu- ra uma das cabseciras. © Diabo € invisivel para le, Lola ocupa a cutra cabeceira, Olga ¢ Arman- da em cada lado. O diabo esté a um canto, de ‘cécoras, observando .Alguém bate & porta. F? ‘Massilon. Poeta boémio. Popular. Massilon (do Indo de fora): “Sou eu, Massilon. Nio quero rou- Dar-the © almdco. $6 quero recitar um poema ara Armanda’. (Aranda levanta:se e abre a porta, Cechieha ao euvido de Massilon: “Porte- se bem, Temos visita em casa”. MASSILON (faseinado) — Oh! O Diabo! (Fun- a) Por isso estou sentindo uma catinga de gam- Da, (Espirra trés vézes), JOAQUIM — Vocé esta resfriado? MASSILON — 8’ da catinga dele. (Aponta 0 can~ to da sala, © Diabo rosna). JOAQUIM (falando para Armanda) — Ele est, fembriagado? ARMANDA (subitamente) — Esté. ‘MASSILON — Eu, embriagado? Quem nfo v8 ‘que aquilo é 0 Diabo? (Aponta na mesma dire- sie). LOLA (tremendo) — Hle fala a verdade, =o JOAQUIM — Estis como a outra? LOLA — Como a outra, exatamente, Eu tam- ‘bm 0 vejo, JOAQUIM — E tu, Armanda? ARMANDA (cinicamente gezando a cena) — iabo, que diabo de conversa é esta? Ela est 6 Precisando dos culdados do dr. Bruno, isto sim. MASSILON — Armanda! ARMANDA (falando para 0 Diabo) — Voeé gos- ta do café? DIABO — Ora, se gosto, menina!_ So coisas {que nao se perguntam. Tomamos eafé diariamen- te no infemo. Armanda entrega-Ihe a xieara de bebe de olhos feehados. Comenta: sim 96 no inferno!” JOAQUIM (intrigado) — Com os diabos! Com ‘quem Armanda est4 falando? ‘MASSILON — Com 9 Diabo. JOAQUIN — Massilon, jamais volte a minha ca- ‘sa embriagado, MASSILON — Isso é uma injirla, Faz uma se- mana que no bebo nada, ARMANDA (para Massilon) —— Psiu! Para o Diabo, eocando-Ihe a earapinha: Caro Diabo, vo- 6 jf esta pintando? Quantos anos? =a DIABO — Vocé est zombando de mim, menina? Quantos anos? (Gargalha) Apenas vinte mil sé- culos! E sou o cacula da familia: Minha genea- Jogia ultrapassa toda idade imaginada, ARMANDA — Como deve ser bom o inferno! Que lima agradivel! capaz de prolongar tanto a vidal DIABO (estimulado) — Que clima, menina que climal Infelizmente, néo sera para vocé. Voc’, ‘menina tem o corapéo puro. Huma pena. Voeé jamais viverdé em nossa eternidade. Lola, sim; talvez. Olga. LOLA E OLGA (apaveradas, falando a um s6 tempo) — Nao! Nao! Tapam o rosto com as mios). ARMANDA (enciumada) — Bu quero o inferno! DIABO — Armanda, querida Armanda, gosto particularmente de yocé, mas odeio sua virtude. Voeé ignora, & claro, que nossa eternidade & ‘uma eternidade diferente, ARMANDA — Nao importal Gosto das coisas diferentes! Voeé tem de levar-me consigo. Eu sou ‘a tiniea, nesta casa, que o compreende. LOLA — Leve-a, e nos damos por pagas. DIABO — Vibora, teu dia chegaré, ARMANDA — Deixe-me fazer seu retrato. Que- to guardar a lembranca de seus tracos. DIABO (vaidoso) — Vamos 1a! (Posa, penteia o abo). SiS ‘MASSILON (espiando o Diabo de perto) — Nao 6 tao felo como o pintam, DIABO (sorrindo) — Obrigado, carp poeta. Allis, ainda nao apareceu um 36 poeta lé pelo infer~ no, Por que seré que voots so como as criangas? MASSILON — Leve-me consigo. DIABO — Nio posso. Nao hi esperanca. Vooés, ‘Poetas, so iguaizinhos a esta, (Aponta Atmanda). ARMANDA — Seremos ruins como Lola e Olga pare ganharmos o inferno. Para vivermos vinte rail séculos! Nao & Massilon? DIABO (rindo a todo prazer) — Querer nao é po- der, menina, Vamos, faca o retrato. Faz muite calor aqui. Que clims ‘Armanda mexe no sae0, ainda a um canto da sala Encontra um lapis, um eaderno, apanha um tam- Dorete, dobra o joelhe, apbia 9 eaderno e come- gaa estudar a posieao para pinté-lo. 0 Diabo esti Inguieto, Buforico, Solta assobiosestridentes. At manda assume um at importante e proclama: "Vou eomecar. Caro Diabo, por favor: o rabo de fora! Ao que © Diao atende, puxando © rabo de centre as pemas. “Agora, eoncentre-s, tal como se encontrasse em seu trono, Vou iniciar”. O Diabo enche o trax. Assume a importincia de ‘um eauditho, 0 lhar sobranceiro, Depois de Alguns momentos, de profundo siléneio, Arman- da anuneia: “Basta, aqui estd o retrato <3, DIABO (apanhando o eaderno, franze o sobrolho) Com os diabos! Assim também, ndo, Eu nao sou {io felo assim! Nunca fui to humilhado, Juro! ARMANDA — Jura por quem? DIABO— Juro pelo inferno. Nunca fui to humi- Thado, ARMANDA — O diabo é que ndo possuo o talen- to de um Miguel Angelo ou de um Rafael. DIABO — Entdo que nio se meta a pintar. ARMANDA — Nao seja_indelicado. Estamos vvivendo num século supercivilizado, Os america- nos, outro dia, estiveram na lua, Na lua, compre ende? DIABO — Na lua? Que significa isso? ARMANDA — Mas nio é possivel que voc’. ndo conhega a 1ua.. DIABO — Eu ndo conheco a lua, ARMANDA — Como, se voce é um sujeito im- portante? (Arrastando-o a determinado local) Pols olhe. La esta ela. Linda, Brilhante. (Aponta com 0 dedo 0 firmamento onde a lua brilhia). DIABO — Nao vejo nada, Absolutamente nada. E’ to pequena assim? ARMANDA —Dp tamanho de um prato. Re- onda, (Fax um gesto), DIABO (espiando) — Nao vejo nada. Nada ‘mesmo. Voeé deve estar mentindo. = == PERGAMUM BCH-UFC. eee LOLA (entrando em cena) — Bla vive de menti- 125, comg 2 mie. DIABO — Exatamente como a mie. ARMANDA — Voot vai me desculpar. ‘mfe nao mentis LOLA — Aquela. ARMANDA — Continue ¢ eu Ihe parto a cara DIABO — Bu sou aquele que gera a desordem. (alando para Lola) Voce tem de revidar ‘Nao pode calar assim. Tem de haver moral nes- ta casa, seja a que preco for. LOLA (estimulada) — Aquela idiota! ARMANDA — Idiota, hein? (Apanha-the pel eabelos. Atira-a a um eanto da sala. A cabeca sangrando, O Diabo da pinotes de alegria. Ow Seo sussurrar de vores como 0 de uma procis- io se aproximando. Uma ladainha rezada a al- ta vor por muita gente ja enche a casa como um ‘eantochao, O Diabo vai-se esgueirando, por en- tre os méveis, mergulhando na sombria penum- bra da sala, que aos poucos se adensa até a com- peta eseuridao onde desapareee ,como se 0 ean- ‘ocho o esmagasse. A ladainha € 0 Hino das Almas): das almas que penam centre o fogo vivo. == Segundo batismo Ihes dai, meu Senhor, Tbatismo de fogo purificador, Comp em Babilénia s trés inocentes, 6 de vos se lembram nas chamas ardentes. 0 * Fogo que formastes [= com tais predieados, 4. te eae NG Nao entreis com elas, Senhor, em_juiz0, para que nfo tenham total prejuizo. ARMANDA (em cena) — Onde esta ele? (Silén- cio completo) Foi-se para as profundas! Se é que era mesmo 9 Diabo, Nao seria um impos- {or? (Otha signifcaivamente para todos os la ). JOAQUIM (chegando) — Estés conversando com 0s espiritos, Armanda! ARMANDA — Chamava pelo Diabo. LOLA (aparecendo) — Credo em cruz, Nao a- guento mais esta casa, E’ um hospicio. JOAQUIM (como se no tivesse ouvido as quei- xxas da mulher) — Onde esté Olga? = OLGA (saindo debaixo da mesa) — Aqui estou. JOAQUIM — Aqui onde? Te tornaste invisivel ‘como um monge tibetano, OLGA — Aqui debaixo, (Arrasta-se da sala). ARMANDA — Parece que ela esta virando mi- nnhoca, JOAQUIN — Expliea-te, OLGA — Ela chamou pelo Diabo, JOAQUIM — E ele atendeu? OLGA — Desta ver, no. JOAQUIM (como se sofresse de amnésia) — ‘Quando ele esteve aqui? OLGA — Ainda hé poueo, JOAQUIM — Ainda hé pouco ? LOLA — Tu nio 0 viste? Conversou demorada- mente com ela (aponta Armanda com despr 2). JOAQUIM (euférico) — Minha querida Arman- ‘dal Se 6 certo que conversas com o Diabo, por ue ndo pies em ordem oz negéeios de teu velho al? Por que ndo Ihe pedes que me dé sorte, muita sorte? O Diabo 6 a alma dos negécios! (Dirige-se & mulher) Eu te matarel se esliveres oe LOLA — Joaguim, tu também acreditas no De- ménio? Tu ndo dizia que ela era lundtica? JOAQUIM — Lundtica, também és, Néo dis- seste que o viste? LOLA — Vico sem querer. ARMANDA — Por que nio fechaste os olhos? LOLA — Eu Ihe ouviria a vor. ARMANDA — Por que no tapaste os ouvidos? JOAQUIM — Sim, por que no tapaste os ouvi- os? LOLA — Oh, estio todos contra mim. OLGA — Bu estou a teu lado, ARMANDA — Estés do lado pior. Porque, agora, fieaste também contra nosso pal. JOAQUIM — Armanda, minha filha, tu falas com grande sabedoria. ARMANDA — Fico do Indo da raz. (Ouvem os lamentos de Lola: “Eles me desprezam, estio todos contra mim”), JOAQUIM — Estamos com a faca e o quetjo nas mos. Um Diabo nao se encontra assim a trés. ‘por quatro, Néo se encontra de forma alguma. Onde adquiriste poderes, Armanda? ARMANDA — Nisto. (Arranea do saco o livro de Sio Cipriano. Lé um trecho sobre a evocag a o Diabo, Durante a Ieitura o Diabo aparece, en- tre enorme alarido © jégo de luzes vermethas. Posta-se de eécoras, silencioso, a um canto da s Ja) Mas, nao creio que aquele fésse 0 Diabo Mai ral. Parecia mais umn furriel, um diabinho qual- quer. JOAQUIM — Este nfo é o mesmo? ARMANDA — Néo. O primelro tina os comos assin,, (Levanta os dedos, exetos, acima da testa) Este ¢ liso como um boi mécho . ‘DIABO — Um boi mécho? Essa é boa! (Solta uma gargalhada azéda e desaparece), JOAQUIM (ouvindo a gargalhada do Diabo) — ‘Olha o que fizeste! Espantaste o Diabo com a ‘ua ironia, ARMANDA — to de fauno. Um idiota que passara a vida béba- do. Um duende da floressa. Os deménios séo im- puilsivos. Aquele era um gaiato, Estava & escuta entrou na linha. JOAQUIM — E agora? ARMANDA — Agora, paciéneia, Amanha tenta- al de novo, LOLA — Amanha eu nfo estarei aqui, OLGA — Eu também irei contigo. JOAQUIM — Quero ordem nesta casa, Ainda ‘sou Joaquim, oe LOLA — Tu queres tornar-te sécio do Diabo. JOAQUIM — Vais cumprir as minhas ordens. Engraxarés as botas do Diabo. Bscovarés suas calgas, seu coléte, Dar-lhe-ds café em tua xicara. LOLA — Nao! Bu me separo de ti. ARMANDA — Nao 0 fards, Estés présa a0 ma- ‘triménio, Cometerds um pecado mortal e 0 Dis- bo te levaré em vida. OLGA — Armande! LOLA — Deus do céu! ARMANDA (com 0 livro aberto) — Captei_ um forte movimento, (Ouve-se um tropel como o de uma multidao caminhando apressada), JOAQUIM —B’ uma legifio de dembnios, Arman- ‘da, E’ uma legio deles. ARMANDA (absolutamente trangiila) — espiritos de faunos, de indios, que procuram pot ‘so na noite. JOAQUIM — Armanda, minha filha, concen- tra-te. Vé se consegues agora, ARMANDA — Agora 6 impossivel. J& passa da ‘mela-noite. A estas horas os diabos ja esto em. ‘outros mundos, ou repousando no infemo. Con- ‘tudo (abrindo 6 livro) vou ver 0 que posso fazer. (nvoea © Diabo, com palavras terriveis) “Mos- tra-te, Maloral; 6 meu espfrito quem te chama, Apareee, Bode Préto, Céxo do Inferno, Aparece, 0 Belzebu ,tenho negécio importante a tratar con- tigo.” DIABO (entrando em cena, aos pulos, como es- tenteado) — Armanda, onde ests? ARMANDA — Aqui, aqui, néo me vés? DIABO — Para que diabo me chamas a estas. horas? Bu tinha uma reunigo do Alto Conselho, e tu ficas a interferir na minha faixa de acdo. ARMANDA — Joaquim, meu pai, te pede auxilio, ‘Quer que melhores o negécio dele, JOAQUIM (ouvindo a conversa dos dois, mas nio vendo 0 Diabo) — Sim, quero que melhores meu negécio. Esta dando tudo para trés, nevamente, como no comépo de minha vida. DIABO — Que me dis em troca? JOAQUIM — Pede. DIABO — Quero Lola, JOAQUIM — Lola? (Apontando a mulher) Para que diabo ela te serviré? B sonsa como uma co- bra, A perma esquerda é mais curta do que Gireita. E 6 sonimbula e devota. DIABO — Devota? (Cospe nos eascos) Sonémbu- Ja? Otimo, A turma val se divertir LOLA — Nao! Nao! Joaquim, perdeste 0 juizo? ARMANDA — Ela servird, quando menos, de bu- cha para canhio, anes JOAQUIM — Leve-a. LOLA (eobrindo 0 rosto com as maios, apavorada) = Nao! Nao! Joaquim, eu te peco perdao; eu te ‘go. ARMANDA — Agora é tarde, Muito tarde, Com 9 Dabo, nfo se brinca. Pai ja deu sua palavra, ‘JORQUIM — Minha palavra! Palavra de rei, ‘OLGA — Mas pai nio é rel, Joga no inferno tua mulher pelo dinheiro, pela fortuna do Diao. ARMANDA — Deves levé-la enquanto o dia nfo ‘amanhece. DIABO — Como és prudente, menina; como és ‘sensata, (Desenrola da cintura uma corda. Laca Lola que perde a fala, arrasta-a, desaparecen- 0). (Bim do 1.° Ato) ages ‘Manha do dia seguinte, ouve-se 0 barulho dos ‘trens trafegando, Joaquim aparece de pijama, a ‘toalha de banho atravessada no ombro, Na mao direita traz a saboneteira e a escdva de dentes. Abre a béca ¢ se espreguica. Coca a eabeca e se cca inconvenientemente. Abre a janela e fecha. Espirra, Abre novamente e torna a espirrar. Poe ‘a cabeca de fora, esquadrinha os arredores, cur- ‘a-se, apanha o litro de leite e mete debaixo do hbrago, Curva-se, apanha 0 pacote de pio e desa- pparece para o interior da asa, ARMANDA (entrando em cena, pela dircita, es- covando os eabelos, eruza com Olga, que aparece pela esquerda, com um postal na mao) — De quem 6? OLGA — Bo retrato dela, Encontrel-o no livro de oracées. ARMANDA — Isso di azar. OLGA —Que devo fazer com ele? ARMANDA — Jogar no lixo. ‘OLGA — Ou devo mostrar a0 pai? JOAQUIM (entrando em cena, macambiizio) — ‘Que tens ai na mio, Olga? OLGA — E’o retrato dela. =6— JOAQUIM — Por que néo 0 destruiste? ARMANDA (tomando a palavra) — El ‘ruir, sim, des JOAQUIM (apanhando bruscamente 0 retrato e rasgando-o com édio) — desta fiquel livre, nio me easo mais. ARMANDA (destazendo o saco, ainda a um ean- to da sala) — Agora vou ficar. (Falando para Joaquim) Ajudaremos no teu negdcio, iremos 20 ‘cinema aos domingos. JOAQUIM — Agora vamos viver, ‘OLGA — Tive um sonho a noite passada. Um so- nho muito bonito. Estévamos almocando, a mie sentada & mesa, feliz JOAQUIM — Por que nao the disseste que Lola fora-se com 0 Diabo? OLGA — Nao me lembrava, como se ela jamal: existisse, ARMANDA — Aquela nfo passava de um posa- delo, JOAQUIM — Esgotou-me o estoque de carvio. OLGA — Pelo que vejo, ela dava azar. ARMANDA — Se dava! Pfor que urubu. JOAQUIN — Devemos esquecé-la. Cuidemos de vida nova, sr ARMANDA — Sim, vida nova, (Abre as janelas. 0 sol britha nos méveis riisticos). OLGA — Faz bom tempo; a manha esta bonita. JOAQUIM — Fax tanto tempo que nfo vejo uma manhi assim, MARIA DAS DORES (entrando em eena) — Pa~ trao, quem dé ordens agora, nesta casa? JOAQUIM (surpréso) — Ordens? Aqui no ha rei nem rainha, Tu antes recebia ordens, Dasdo- MARIA DAS DORES — De dona Lela. ARMANDA (tomando a palavra) — Ela impu- nha castigos a Dasdores. OLGA — Aquela bruxa (Abragando-se com a pres ‘a velha) — coitada de mae Dorinha... (Maria das Dores exprime um gesto de quem vai chorar) JOAQUIM (vingative) — Se eu soubesse disso. finda bem que 0 Diabo a levou. ‘MARIA DAS DORES — Vou rezar para a alma ela. ARMANDA — de pedra, MARIA DAS DORES — Deus do céu! Bu perdéo ‘tudo 0 que ela me fez. JOAQUIM — Somente dela foi a culpa, ‘tempo perdido, 6 virou carvio =e OLGA — Ela me jogava contra pai e Armanda. JOAQUIM — Pobre Olga! ARMANDA — Pobrezinha! ‘MARIA DAS DORES — O mal por si se destrél. JOAQUIM — Nao fésse 0 Diabo, ela teria des- truido meu lar. DIABO (apareoendo de chéfre) — Por que a es- colheste? JOAQUIM — Nio fui eu, foi o destino. DIABO — Nao ereio no destino. JOAQUIM — Hii coisas que nao se explicam, DIABO — Isso é do mistério da vida ARMANDA — Era igual a uma cobra. JOAQUIM — Maria das Dores, venha-me ajudar ‘a escolher os toros de carvao. (Desaparece para o terior da easa, seguido de Maria das Dores e do Diabo). ARMANDA — Como o Diabo é generoso! Tivésse- ‘mos uma mina intelra e no dariamos vencimen- tos, OLGA —E falam tao mal do Diabo. ARMANDA — Como falam de Jesus Cristo. OLGA — Dols grandes vultos ARMANDA — Tu te tornaste vidente, Olga? =a OLGA — A gente muda muito, ARMANDA — A gente muda num instante. OLGA — Isso é verdade, Massilon tem razio, A vida um vazio misterioso, ARMANDA — 0 amor &s vézes conta, OLGA — As vézes o amor. Mas... (Sai e volta em seguida com um caderno eseolar, Declama enle- vada:) ‘Amor nunca vi Que muito durasse que nao magoasse, ARMANDA — De quem sio esses versos? OLGA — De Camées, ‘MASSILON (entrando em cena) — Oh, mas ésse tempo {4 passou. ARMANDA — Por onde entraste, Massilon? MASSILON — Como um migico, atravessando as paredis, OLGA — Af esté um trogo que no entendo, A porta estava fechada, ARMANDA — Com quem aprendeste artes? ‘MASSILON — Com 0 Diabo. ARMANDA (visivelmente zangada) — Creti- not ‘MMASSILON (curvando-se humildemente aos pés hs de Amanda) — Pardon, Mademoiselle, mas eu ‘estou mentindo, Desta vez, quebrando 0 protoca- Jo, entrei pelos fundos. OLGA — Que falta de vergonha! E se estivésse- ‘mos em roupas intimas? ‘MASSILON — Jamais pensei nisso, OLGA — Aposto como pensaste em nos pregar um susto, ‘MASSILON — Isso mesmo! Olga, te tomnaste vidente? OLGA (trocando) — Aprendi artes com 0 Diabo, ARMANDA — Eu também aprendi ‘MASSILON (curioso e ao mesmo tempo surpréso) =O que aprendeste, Armanda? ARMANDA (cinicamente) — A mentir. ‘MASSILON (vingativo) — Vejam o Diao. (Apon- ‘ta com o dedo um canto da sala, Armanda e Olga espiam na direeio). ARMANDA — Nio vejo nada. Nada mesmo. MASSILON (saredstico) — Impossivell Com quem aprendeste a mentir? ARMANDA (humihada) — Além de mentiroso, obo, OLGA (mageadissima, colocando-se ao lado da rma) — Além de babo, boboca, p= MASSILON (azendo um beicinho de poueo easo) zz Youme embor, nesta casa én s pode bin ARMANDA — Brincadelra tem hora, MASSILON — Que hora 6 hora de brincat? ARMANDA — Depende de... MESSILON — Entao ha uma hora especial? ‘OLGA —Hé o momento psicotigic, ‘MASSILON — fs hipersensivel como os joethos de um anjo, ARMANDA (tomando o partido da irm) — Tu te tomaste indesejvel como um coveiro, MASSILON — © amor préprio das mulheres & ‘oo o médo, eresce s6 no falar, JOAQUIM (entrando em cena, tirando a blusa ¢ sacudindo o p6 negro) — no depdsito faz um ca- lor dos diabos. ‘MASSILON — Corte o boato que te tomnaste s5- cio do Diabo, JOAQUIM — Nao € boato, é verdade. Vou ficar 0 hhomem mais rico destas paragens, Vou comprar ‘uma mina de carvéo, fundar uma cidade. ‘MASSILON (ristissimo) — 0 diabo & que ele no ‘quer negécio com os poetas ARMANDA (também tristonha) — Nem comigo, nem com Olga, agora que Lola se fol. Bi JOAQUIM (explicative) — Eu possuia Lola, com ‘A qual negociel. Vooés nada podem oferect-o. MASSILON — Eu nfo creio na alma, ponho a “minha alma” em j6go. ARMANDA — Alma de poeta no tem valor, € ¢0- mo a das criancas. OLGA — Por que nfo temos almas de Judas? MASSILON — Sim, por que nao temos alma de Judas? ARMANDA (falando para Joaquim) — Alguém bateu & porta. JOAQUIM (importante) — Fregueses. ARMANDA (atendendo & porta) — Certamente, como disseste. JOAQUIM (gritando da sala, fazendo um gesto argo com a mao) — Arrodeiem (Vultos indistin- tos contornam a casa, em direcao 4 cozinh, ‘onde sempre se presume ficar num anexo desta, © depésito de carvio. O progresso do negécio & evidente. A toda hora batem-Ihe & porta. Até mesmo durante a noite. Joaquim, Armanda e Olga nio dio vencimento Joaquim juntow tan- to dinheiro que vai viajar e comprar uma mina de carvio). JOAQUIM (entrando em cena, em mangas de ea- ‘isa, assobiando satisfeito, a barba escanhoada, rocura dar o nd na gravata de séda que se exca- pole ¢ se desfaz, cada ver que ele tenta apertar 0 ==5ie9 Tago. Lego perde a paciéneia e grita por Arman- da, que prontamente atende), — Vé se d um jetta niisso! Ve se acerta 0 n6, nem que seja um né cego. ARMANDA (humorada) — Pai virou matuto. Jamais saiu de casa. JOS QUIM (reencontrando a ealma) — Ha quan- tos anos nfo uso gravata, hein? Desde que tua ‘mae morreu, Armanda, ARMANDA — Hé doze anos, portanto. JOAQUIM — Sim, hi doze anos. Como 0 tempo passa. Para mim, ela morreu ontem. (Apés esse Giilogo a atencio da platéia é desviada para uma ena no fundo do paleo, ende se ouvem solugos & Jamentos de vultos indistintos se movimentanda na penumbra como fantasma, dando a entender {que esto num velévio, Abafando todos os queixu- tes, ouve-se agora uma Vor rouea, repetindo in- ccessantemente: “Jesus, perdio, miseriedrdia’” Aos ‘poueas os yultos vio desapareeendo, e Josquim € Armanda, que entio se conservavam em silén. io, continuam a falar). JOAQUIM (gritando para o interior da casa) —- Dasdares, traz 0 meu chapéu de massa! MARIA DAS DORES (aparecendo, escovando 0 ‘ehapéu) — Patrao, quer também a bengalinha? JOAQUIM — Sim, a minha bengala. OLGA (aparecendo em siléncio, andando no ponta dos pés, como se estivesse a escuta) — Aqui esti. Jeaquim segura a bengala que € tao pequena ‘quanto uma varinha de migico). ARMANDA (que conseguiu enfim, dar o né na gravata, apanha o chapéu de massa das mics de Maria das Dores, puxa a aba para bai- Xo, faz um vineo no alto e coloca-o na eabeca de Joaquim, um pouco inclinado, Joaquim veste 0 ypaleté) — Pronto, Pode ganhar o mundo, Até ‘parece um cavalheito de século XIX, ‘MARIA DAS DORES (espiando Joaquim, enleva- da) — Ela o achava bonito assim! (Refere-se & primeira mulher de Joaquim, e comega a cho- rar). OLGA (acariciando-The a eabeca) — Mie Dori- hal Mae Dorinha! JOAQUIM (pesaroso) — Armanda, traga a mi- bbha mala, (Armanda desapareee e aparece cont a ‘mala, Joaquim abraca e belja Armanda, Abraca ¢ belja Olga, Abraca Maria das Dores,e, em segui- a, fecha a porta da rua atras desi. As trés mulie- res estio na sala, num profundo silencio. De chore ,as cortinas das janelas comecam a in- flar-se. E, ouve-se nitidamente o clique dos eas- cos do Diabo). ARMANDA — Bele. ‘MARIA DAS DORES (apavorada) —Ele quent? ARMANDA— 0 Diabo. ‘MARIA DAS DORES — Meu Deus! ARMANDA (com 0 dedo nos labios) — Psiu! No fale no nome de Deus, sendo ele foge. —u MARIA DAS DORES — Que queres tu com 0 Diabo, Armanda? ARMANDA — 0 Diaho 6 um bom camarada. ‘MARIA DAS DORES — Um bom camarada? OLGA — Sim, ela fala a verdade. O Diabo é um bom sujeito, ‘MARIA DAS DORES — Como falam tio mal dele? OLGA (imitando Armanda) — Como falam de Je- sus Cristo. MARIA DAS DORES (conveneida) — E’ verdade, falam até de Jesus. ARMANDA (com a mio em eoncha no ouvido ¢o- ‘mo tentando eseutar 0 clique dos cascos do Diabo) ‘onde diabo foi ele? ‘DIABO (invisivel, apenas se ouvindo a vor) — Nao fui muito longe. Aqui estou, (As trés mu- heres se assustam). ARMANDA — Aqui onde? DIABO — Aqui no espago. ARMANDA — Por que néo desces? DIABO — Alguém pronunclou um nome que nfo gosto. MARIA DAS DORES — Fol sem querer. Peco- The perdio. DIABO — Que disbo de perdio? Basta pedir Ceseulpas, dizer que nao repetes mais. ase MARIA DAS DORES — Pois bem; Nao repeti- rel DIABO (agora visivel as trés) — Onde esti Joaquim? Sel: foi comprar uma mina de car- ‘yao. Vai fundar uma cidade. ARMANDA — Como soubeste? DIABO — Ora, menina; eu adivinho os pensa- mentos. ARMANDA — Deve ser dificil fundar uma ci- dade DIABO — Muito dificil, muito dificil, menina. ARMANDA (insinuante) — Primeiro tem que... Gaterrompe significativamente). DIABO — Primeiro tem que conflar no Diabo. ‘Sem 0 Diabo nada se faz. ARMANDA — Meu pai confia em vocé. DIABO — Sei disso, menina. Joaquim & bom sxjeite, ‘MASSILON (batendo palmas & porta) — Sou eu, Massilon, abram, Quero apenas um copo- gua, ‘MARIA DAS DORES (abrindo a porta) — Mas- de seu préprio cargo), ‘MASSILON — Datei um jeito de cobrar os im- rostos sem onerar a bolea do povo. ARMANDA — 0 povo jf niio pode viver. B° hora de fazer alguma coisa ‘MASSILON — Eu restituirei a confianga popular. ARMANDA — 0 estudo cord gratuito? MASSILON — Gratuito, sim. B os filhos dos ope- varios te:do dirsito & merenda escolar ARMANDA — E a livros, cadernos, lépis, borra~ has, réguas, esquadros e todo material necessé- MASSILON — Perfeitamente, Ja pode fazer ume relagao, OLGA — Bu vigiarei a higiene das eriangas: a roupa, os cabelos, as unhas, os dentes, MASSILON — Sim, é preciso instalar postos de satide nas escolas, ARMANDA — Provides de gabinetes dentérios tudo mais, MASSILON — A cidade teré muitos postos © hhospitais populares. ARMANDA — Foderemos oferecer ao povo um ‘pouco de felicidade, Sa CLGA — Aguilo que jamais tivemas poderensos agora ofertar, MARIA DAS DORES — Alcancei as duas peque- nitinhas trabalhando ccm os fusos (Nesse ins- tante, a0 fundo do paleo, vé-re num ambiente difuso duas meninas trabalhando aos fusos, qu acsobiam no cimento do ehiio quando suas mio- Zinhas os embalam), MASSILON (como se declamando) — tes do pasado, MARTA DAS DORES — B dona Maria do Carmo, isclada em sua alcova, easturands na maquina de mo as encomendas dos vizinhos. (Ouve-se, nesse_momento, o estalejar repetide ¢ séco de ‘méquina yelha de eostura trabalhando no inte. rior da casa). as tris: ARMANDA — Com o dinheiro dessas costuras ela nos pagava o eolégio, Mais tarde eu entraria na Faculdade, ‘MARIA DAS DORES — Ela queria que fésses ‘uma professéra, ‘MASSILON — Pois esse nfo é 0 caso? OLGA — Pois ésse nao é 0 caso? (Saem os trés e braces dados, rindo, eirandando pelo paleo, ‘como erianeas, Maria das Dores fiea em determi nage ponto da sala, espiando e sacudindo a eabe- ea, Cortina), ARMANDA (entrando em cena, com uma pasta de papéis na mao, chupando a ponta do lapis, =a = » vai sentar-se & mesa, no meio da sala. Vé-se que la esta preocupada em resolver algum proble- ma importante. Comesa a escrever negligente- mente) —Nao entendo de estatistical Como pos- ‘0 fazer ésses cAlculos? OLGA (aparecendo pelas suas costas) — Estas falando sezinha? ARMANDA — A estatistica do material escolar, nao set caleular; ajuda-me. OLGA — Isso vai tio longe! Jé nio set fazer uma operacdo'de multiplicar (Ouve-se o clique dos ceaseos do Diaho). #RMANDA — ‘OLGA — E' ale, sim, ARMANDA — Diabo, onde vocé esta? MASSILON (aparecendo, vindo dos fundos da casa) — Agu estou. ARMANDA (sentindo-se Iograda) — Ainda nao deixaste de.. ‘MASSILON (engraado) — Mais respeito, agora fea sou autoridade. OLGA (solicita) — Sr. Prefeito, tenha a bondade de sentar-se, (Massilon faz um gesto de cor com a cabeea e, ao sentar-se, Olga puxa a eadeira cle dit com os quartos no chi). MASSILON (levantando-se e fingindo.se ofen- ido) — Brincadeira tem hora. = ele, ARMANDA (vingativa) — Que hora é hora de brincar? ‘MMASSILON (escondendo 0 riso) — Sou urna au- toridade sem moral OLGA — Uma autcridade de araque (Quve-se nitidamente, agora, o clique dos easeas do Disha), ARMANDA (antecipando-se) — Agora é ele, sim, OLGA — E ele, que diivical MASSTLON (estalando os dedos ocu’tos no bolso das ealcas) — A davida 6 que j4 nao se pode do~ brar as juntas dos dedos, ARMANDA — Cretinot OLGA — Farsante! MARIA DAS DORES — Que modos sio esses ‘meninas! ‘MASSILON — Blas nao sabem perder. (Ouve-se, ‘mais uma vez, o clique. Olga e Armanda espiam. ‘as mios de Massilon. Massilon, por sua vez, es. pia as mios das duas. As mios de Maria das Do- Tes esto cruzadas sobre © peito. O clique con. inua a passear na sala), ‘MARIA DAS DORES (como querendo revelar a Presenca do Disb) — Caro Diabo,.. (0 elique ara). ARMANDA (misteriosa) — Entio nio era cle. OLGA — Claro que nao era ele, —e2— ‘MASSILON — Quem podia ser seniio ele? MARIA DAS DORES (superstclosa) — Mais parece um aviso, Que ters acontecido ao patra? MASSILON — Acabemos com isso! Hi fenfme nos que do se explicam. (Novamente eomoga 9 tigue, Minin tas Dons‘ Olga eatio vite, mente nervosas. Armanda ‘Masslon apenas cheios de euriosidade). MASSILON (decidido, apertando a mio de Ar- manda) — Caro Diabo, onde ests? DIABO (aparecendo, soltando um assobio agu- do) — Ora, aqui estou, aeabo de chegar. ARMANDA (surprésa) — Acaba de chegar? DIABO — Que diivida! MASSILON — HA poueo no estiveste aqui? DIABO — Acabo de chegar, como disse. ARMANDA — Impossivell Ainda hé pouco ou- vimos 0 clique dos teus eascos, DIABO (sacudindo a cabeca) — Eram meus fluidieos. Meus pensamentos estavam voltados ppara esta casa, OLGA — Quase nos mata de médo, Por que nio nos disseste antes que possuins fluidicos? DIABO — Agora sabes; e imi por toda parte do corpo. Sa ail MARIA DAS DORES (inocente) — Voeé atrai raios? DIABO — Ralos? Raios que os partam! Hles saem agul des meus sovacos! MASSILON (ingénuo) — E eu pensel que eles pertissem da atmosfera. ARMANDA (eéptiea) — E’ isso o que ensinam 6s livros de ciéncia, DIABO — A ciéneia é toda errada, Quem jé fa- bricou um raio para sustentar isso? OLGA — E verdade, quem ja fabricou um? DIABO — Maria das Dores, no tem um cafezi- mho? Estou com a garganta fervendo. ARMANDA — Encontraste pai? DIABO — Joaquim vem ai, Por que diabo ele anda tio devagar? OLGA — Af onde? DIABO — Na mina de carvéo, Nas corditheiras ao vale. MASSILON — A quantos quilémetros daqui? DIABO — A uns novecentos quilémetros. ‘MASSILON — $6 chegaré daqui a uma semana, DIABO — Por que diabo seré que ele ania tio devagar? MARIA DAS DORES (chegando com 0 café) — Seu cafezinho: caprichadol (Entrega a xieara ‘a0 Diabo).. DIABO (provando o café) — ‘Maria das Dores? ‘MARIA DAS DORES — E’ do mesmo café. do mesmo café, DIABO — Diabo o café possui um “espitito”, 36 ode ser isso, Que trogo azédo! ‘MARIA DAS DORES — Minha mae também di- ia que o café possuia um “espirito”, As vézes & gente faz do mesmo pé e no é a mesmna coisa. DIABO — Nao & a mesma coisa, (Devolve a xi cara cheia de café), MARIA DAS DORES — Se voet quiser ex fa50 outro, DIABO — Pelos diabos! Néo acertards 0 pont. MARIA DAS DORES — Nao faz mal, posso ten- far DIABO — Seré instil MARIA DAS DORES (estendendo-Ihe a lata de biscoitos) — Entéo prove um biscoitinho, é de- licioso, DIABO (apanhando a lata) — Biseoitinho! Que iabo vem a ser isso? (Passa a examinar as fi- ‘gurinhas por fora da lata). eo ‘MASSILON — Abre a lata, E? fGcil. Basta aper- tar assim (Faz um gesto vago. O Diabo procura abrir a lata, mas nio consegue. A lata escapole das mifos lisas como sebo). ARMANDA —_ Assim, querido amigo; assim. (Paz um gesto decisive com ambas as mios). DIABO (imitando os gestos de Armanda, mas no eonseguindo) — Que diabo mais complica- do é s6 biseoitinho? (Maria das Dores espia bo- ‘quiaberta a cena). ‘OLGA (impaciente) — Assim, assim. (Bate com fas mios fechadas no chio, O Diabo agarra a la- ta com as duas mios ¢ marreta no chao com toda a férea. A tampa salta e os biscoitos se es- palham, Sie biscoitos com forma de animaizi- hnhos: peixes, passaros ete, Diabo, Olga, Maria das Dores, Armanda e Massilon eatam 0s bis ‘eoites, arrumando dentro da lata). DIABO (examinando um biscoito, comeca a rir) — Como este trogo é engragado. (E’ a for- ‘ma de um porguinho) Onde diabo consegue ar- Tanjar isso? (Aponta o zabinho). Deve ser al- gum antecedente de minha Arvore geneologica. ARMANDA — Hé muitos de rabinhos, veja: (Mostra-lhe © macaco, o eoelho, a cabra, o bur- yo ete). ‘DIABO (decepcionado) — Que familial OLGA — Nilo os leve a sério, Sao s6 de brinca- deira, w+ DIABO — De brineadeira? Com 0 Diabo no se ‘brinea. OLGA — Brincadeira para as criancos. ‘DIABO — Pois que os fabriquem sem 0 rabo. MARIA DAS DORES (ainda com a xicara na mao) — Prove um, so fofinhos. DIABO — Isso no vai engasgar-me? (Aira um. biscoito ma bea, Revolve-o de uma bochecha 3 outra, Revira os clhos, come _experimentando ima ensagdo esquisita. Em seguida, sentindo © paladar, dé estalidos com a lingua). MASSILON — outro; coma outio. DIABO (jogando outro na biea e fechando os ‘olhos) — Isso ¢ bom pra chucht, ARMANDA — Entfo, manda brasa. ( Disbo mergulha a iio na lata e enche 0s bolses da roupa). MASSILON (que_veste camisa esporte, mete ‘mio no bilso atras das calcas ¢ tira uma folha de papel dobrada) — Aqui est um plano de minha futura administragao. (O Diabo apanha a folha de papel e desdobra-a perto dos ollos tomo se fesse miope. E” uma folha cheia de gri- fieos eomplicadissimos). ‘DIABO (devolvendo a félha 2 Massilon) — Ois- mol E’ um plano real. Pordis tudo isso em exe uso. re ARMANDA (mostrando-Ihe a pasta de papéis) — Eu fiz isso e isso (Vira as folhas) Mas estou encontrando dificuldade na soma dos nimeros. DIABO (tomando a pasta nas mies) — Mas nada hé de errado aqui, (Devolve a pasta a Ar- manda) Esté tudo certo! ARMANDA (surpreendida) — Mas como pode, antes de chegares... (Exaltada) Como tens po- déres! ‘DIABO — Sé falta agora o mapa da cidade, que Joaquim deve trazer, JOAQUIM (entrando em cena pela Jateral, com ‘a maleta de viagem ma mao) — Salve o Diabo! Salve 0 nosso futuro prefeito! (Aponta Mass Jon) Salve a diretora das escolas e sua assis- tente! E salve Maria das Dores, a Mae Preta da. Cidade! (0 Diabo di pinotes de um lado a ou- ‘ro. Joaquim entrega a maleta, a hengala ¢ 0 chapéu a Maria das Dores, que desaparece para © interior da casa, Arranea do bélso interno do aleté o mapa da cidade). ‘MASSILON — De que vieste, que chegaste to épldo? JOAQUIM (gozando a pergunta) — De avido, ‘Um industrial nao pode andar de trem. DIABO (trogando) — Quase chegaste antes de mim. (Examinando 0 mapa da cidade, sponta ‘eom 0 dedo) Pragas, ruas, mereados,” monu- mentos piblicos, tudo cerla. Agora, | mios & w= obra, Nada te faltaré. Tens a mina de carvio has cercanias da. cidade. E' uma boa fonte de renda, Eu estarel a0 teu lado, se surginem dilt culdades. MASSILON — Joaquim, como compensarés tanta bondade? JOAQUIM — E' verdade, Inspira-te, DIABO (insinuante) — Ora, ora, nfo fiz nada ‘MASSILON (arrebatado) — Tive uma idéia fe. li, JOAQUIM (nervoso) — Pols niio te faz de roga- o, Conta-nas logo, MAESILON — Hoje 6 21 de margo. Estamos ne passagem do Equinécio. Daras este nome a tua cidade, em homenagem ao Diabo, JOAQUIM (faseinado) — Equinécio! B’ uma justa homenagem. E como soa bem! DIABO (satisfeitissime) — Sinto-me lisonjea- do, Nao mereco tanto, JOAQUIM (entusiasmado) — Mereces muito mais, Muito mais. Cada logradouro piiblico te- ré uma placa com teu nome, em letras bem le ives. DIABO — Muita gente vai morrer de inveja. JOAQUIM (possesso) — Pois que morral Que vi para o inferno! ARMANDA (entusiasmada com os gritos de Joaquim) — Por que nfo comemoramos agora mesmo a data? — ‘MASSILON — Sim, por que nao comemoramos? OLGA — Por que estamos perdendo tempo? MARIA DAS DORES — Hi vinho quente P: ispensa. ARMANDA (falando para Olga) — Vamos pre- parar os salgadinhos (Sacm as trés para o inte- rior da easa, Joaquim chega as cadeiras para pperto da mesa, ao centro da sala. enquanto isso ‘Maria das Dores aparece com duas garrafas de ‘vinho. Pée na mesa, volta e reapareee com a bandelja e os eopos). JOAQUIM (enchendo os copos até transbordar. Entrega um ao Diabo, outro a Massilon, e com (© sety na mio ergue um brinde) — Pelo ripido progresso da cidade! (Os copos se tocam). ‘MASSILON — Por um goyerno de justica social apoio econdmico as classes menos privilegiades. JOAQUIM — Justo! DIABO — Pelos infernos! Jamais ouvi procla- ‘miacao to bonita! ARMANDA E OLGA (aparecendo com pratos de ealgadinhos) — Aqui o tira-gésto. (Fala Arman- a, enquanto Olga enche os copos de vinho. Os ‘rindes se sticedem, J4 esto todos embriagados, ‘eabeceando sobre a mesa, menos Maria das Do- es que se ocupa em retirar 0s copos € as garra- fas varias), (Fim do 2° Ato) 70 3° ATO A cidade esti em funcionamento, E uma cidade Pequena, ainda quase um povoado, pintada num grande painel ao fundo do paleo. De agora em diante so terd visio noturna, isto 6, os persona- gens s6 aparecerio durante a noite. No painel, hha espacos varios, em branco, reservados 20s monumentos piblicos que seraopreenehidos com 0 passar dos dias. Para tanto, deve haver ‘eutro painel sobressalente, idéntico ao primeizo, para ser afixado sobre este, com os claros agora ‘ceupados, dando idéia do progresso ereseente da cidade, Abrem-se as cortinas. A cidade brilha a0 fundo, iluminada, Sao céres vivas, alegres, Num onto mais visivel do painel, esta inscrito a pa- lavra: EQUINOCIO, JOAQUIME (ceguntomente Ystido, de pale sara, uma pata de coco na val, fans fim compridocharao. emo ar tangle fe 1 Flap memo) an lina ate Nao nave outta ques igs, (Oave' 0 ge dos caseos do Diabo). ae DIABO (entrando em cena, pela lateral) — Boa noite, Joaquim. Que visio diabélical (Aponta a cidade). JOAQUIM — Este panorama arrancard turistas 4 fim do mundo. DIABO — Virio até dos infernos. =a JOAQUIM — B a cidade mal comega a se deli near, a ganhar contorno... DIABO — Mas j6 6 como uma faisea de fogs amu; um vuledo JOAQUIM — Como uma estréla de cinema ‘ava Gardner, por exemplo. DIABO — Pode ser ainda mais bela JOAQUIM — Pode ser, quando aqueles morro: estiverem iluminados, cheios de edifsios (apo tao painel). As quadras de yolei prontas, as f bricas trabaihando, a hidrelétrica instalada, “MASSILON (entrando em eena, como se estives: ‘se & escuta) — Quando o cemitério vertical esti- ‘ver assentado sobre as eolinas, DIAEO — Massilon, tens uma forte propensao para o macabro. Dis especial atenco aos cemi- ‘érios. Bem que os mortos podiam ser incinera- dos. MASSILON — Nio sou um romantieo, Um eré- Gulo. Mas é que 0 povo néo aceitaré isso. Esti nundado de pledeso sentimento, JA comeca @ falar, No. pode haver uma cidade sem igreja, sem templo. (0 Diabo di um eolee em Massilon, espécie de eanelada, ¢ espirra). ‘MASSILON (sentado no ehiio, com a perma para ‘0 alto) — Ai, ai, ai. Nao me cabe a culpa, (Fax massagem na perma. O Diabo continua espir- rando), re SJOAQUTME — Vocé sofre de alergia? DIABO (inquieto) — Nao, de alergia, néio Mas, ao ue ele disse, qual é 0 Diabo que ndo sofre? JOAQUIM (autoritério) — Massilon, pega des- caulpas a0 Diabo . MASSILON (humilde) — Pego-tne descuipes jmbora. eu... JOAQUIM — Encerremos o assunto. Vamos tra- balhar. Ha coisas mais importantes a fazer que ‘um cemitério. Com o tempo, o progtesso, 0 povo ppor si mesmo conelulré da’ inutilidade ‘dos ce: mitérios, ‘MASSILON — Em verdade, onde hé cemitérios, rrespiramos a todo momento o microbio dos mor” tos. JOAQUIM — Por isso 0 ar dos campos & mais saudlével que o das cidades. DIABO — Por isso o ar do inferno é mais puro. ‘Nao hi o contigio dos corpos, ‘MASSILON — Felizmente, na minha pasta, tu- do corre bem. A gua da cidade € potavel. Nao falta energia. As pracas so bem iluminadas, Os comerciantes respeitam o Regulamento, Nao hha usurpacao dos direitos do povo. JOAQUIM — Precisamos fazer muito mais. On- tem recebi em meus escritérios numerosa com! tiva: agricultores, criadores, e pobres erlatu- ras sem emprego certo, profissio distinta: caca- =i dores, peseadores, loueeiros, homens e mulheres ‘que passam necessidade com suas familias. Te- ‘mos também de olhar para estes. Vou insialar ‘uma Cooperativa Agricola. Abrir Carteira de Crédito para empréstimos populares. Os agricul- tores necessitam fazer barragens em suas terras. E’ preciso aumentar 0 plantio da batata, do ar- 102, do feijf0, da mafidioea, do jerimum, da ba- nana. E justo amparar os'produtores. Se a ci- dade cresce, 6 natural que a agricultura e a pe- cudria erescam também. Tudo tem de andar em ritmo igual. A tendéncia é a industrializagio de ‘tudo aquilo que reverta em beneficio do povo, ARMANDA (entrando em cena, como se estives- ‘A eseuta) — Se 0 povo quer trabalhar, tem, Se © povo quer escola, tem. Se o filho do operario quer aprender um ofielo, também pode. Aqui es- 14 0 organograma de uma escola industrial, Fa- Jaemos funcionar brevemente, (Entrega 0 or- anograma ao Diabo, que examina a félha de ‘Papel com grande euriosidade). DIABO — Nao sel a que diabo vo dar esses gar- Yanchos (aponta os grifices). Mas percebo que tudo vai as mil maravilhas (Devolve o organogra- ma a Armanda), ARMANDA (assumindo um ar importante) ~~ ‘Amanha comeram as aulas, Se vor’ quiser, pode assistir. DIABO — Que diabo, menina, com essa idade? ‘Mas bem que eu podia experimenter. ARMANDA (atenta) — Sim, Nao yejo mal al- gum. 76 DIABO — Em verdade, nio hé. Nunca se sabe © suficiente, como vulgarmente se diz, ARMANDA — Como sabiamente se diz ‘DIABO (compreensivo) — Ou isso. ARMANDA — Vocé 6 completamente analfabe- to? DIABO — Completamente, menina; completa- ‘mente. No inferno ha muito o que fazer, nao nos Sobra tempo para se dar ao luxo de. ARMANDA — Nao 6 luxo, EB’ necessério saber ler e escrever. Contar. DIABO (compreensivo) — Pode ser. @RMANDA — Entio wet comeearé, pela carta de ABC. ae DIABO — Comecarei do comeco ou do fim, que di no mesmo, ARMANDA — Nao aceito sluno anarquista ‘Uina escola primaria nao 6 uma faeuldade, onde 8 gente estuda para nada saber, DIABO — Nada 6 a voz da Filosofia, ARMANDA — A Filosofia 6 a voz da diivida. DIABO — Que trdgo confuso! ARMANDA — Af esti o valor da carta de ABC, da Tabuada, DIABO — Da Tabuada? Que vem a ser isso? ea ARMANDA — A Tabuada ensina a somar os nimeros; diminuir, multiplicar e dividir. De pois vam regras mais eomplicadas com a Arit- iética, e nos colégios e nas escolas superiores 3 ‘Matematica e a Fisica poem o individuo malueo. JOAQUIM (entrando em cena, pela lateral, co- ‘mo se estivesse & eseuta) — Maluco? Sim, ha- via-me esquecido. (Falando para o Diabo) Uma cidade nao esta completa se nao tem uma cadeia fe um hospicio, DIABO — Nada disso, Joaquim. Equinécio & uma eidadle modélo. Como tens idéias to avan- adas com essa mania de cadela e hospicio na ‘cabega? JOAQUIM — 0 povo as vézes & rebelde; as do- fengas andam espalhadas pelo mundo. DIABO — Ni hé povo rebelde se Ihe dis 0 ne- ‘essirio, se niio Ihe negas a justica. As doeneas ‘mentais sio oriundas da supressio desses prin- cipios. JOAQUIM — ‘Tanto methor, pols a verbs que thes estava destinada serviré para emprégo mais ‘itil, A mecanizacdo da mina de earvao, por cexerplo. a DIABO — Teriis de exportar 0 produto. Atr ‘éaquelas colinas (aponta o painel) tudo é car- vio, Carvao de pedra puro. JOAQUIM (abrindo a pasta de mio ¢ tirando dela a planta primitiva da cidade, mostra 20 Se Diabo) — Aqui (apomta com 0 dedo) que eorres- ponde aquele ponto (indica o local do painel) You instalar um reator atomleo, No futuro va~ ‘mos precisar de energia nuclear. Nessa depressio (afunda o dedo no mapa), que equivale aquela (aponta no painel o fundo do vale), vou erguer ‘uma térre de petréleo, As sondagens indicaram lum grande depésito 1a. Necessitamos de reservas. de combustivels. Os transportes tém de ser aces: siveis ao povo, Talver até um dia possamos mes ‘mo instalar um centro de pesquisas espacials, {como os Tuss0s e os americanos, chegaremos até A lua, DIABO — Que pretendes fazer na tua, Joaquim? JOAQUIM (sonhador) — Dizem que lé hi muito fouro, Talvez tenha mulher também, DIABO — Nio sejas ambicioso. Tua fortuna pode ‘desaparecer de uma hora para outra, para que diabo queres uma mulher da lua? Nao hé tantas ‘em Equindcio? JOAQUIM — As vézes ainda penso em me casar, fe as mulheres déste planéta sto hipéeritas e trates, DIABO — Que diabo de casamento! Estis te tomando, novamente, tendencioso ao ridiculo? Corteja a filha de um camponés, fecunda-a em ‘tuas Virlhas, ampara seus pais e vive toda a tua vvida com ela, JOAQUIM — B cla me compreendera? DIABO — Claro que sim, # tuas filhas a terdo ‘como mae e nfo como madrasta, =5S JOAQUIM (entusiasmado) — Com os diabos! Pois nfo é que vou possuir mais outra mulhe ‘Mesmo ambiente, agora transformado numa sala de aula. Dez ou mais criancinhas sentadas em carteiras comuns. Armanda se encontra de cos- tas para a platéla, eserevendo no quadro-negro uma conta de somar. E" uma operagio simples, como 202 = 4, ARMANDA (ouvindo 0 elique dos easeos do Dia- 2 assume um ar importante, a yor afetada) CRIANCINHAS (em eéro) — 4. ARMANDA (espreitando 0 fundo da classe, fala maquinalnente) — Sente-se, (As eriancinhas ‘yoltam-se, assombradas. Entalam os dedinhos na Dea). DIABO (invisivel e inaudivel para_as_erianei- has) — Estou bem aqui, menina, Me sinto me- Thor acocorado. ARMANDA (autoritéria, falando maquinalmen- te) — Nao me chame de menina. Eu sou a pro- fesséra, e voc’ meu aluno, como todos aqui. DIABO (gaiato) — Como todos aqui? ARMANDA — Sim, vo’ é meu aluno como to- dos aqui. (Volla-se para a classe, agora deserta. As erlancas escapuliram apis ouvi-ia falar suzl- ha). ARMANDA (entregando-Ihe a earta de ABC, fa- a= Jando pelo hibito) — Vanios, menino; que est vendo de mais ai? DIABO (abstrato) — Nao estou vendo nada. ERMANDA (invitada, puxa-ihe a orelha como se © fizesse a uma erianeinha) — {sco sa0 mods de falar & professéra? DIABO — Diabos me levem se nao entrei pela porta errada, ARMANDA (como se nao tivesse ouvido a queixa) = Va soletrando comigo: A, B, C. DIABO — 4, B, ¢. ARMANDA — Agora replta sozinho. DIABO (como se soubesse de cor) — ABC. ARMANDA (entusiasmada, di-the um coque de bbrineadeira na cabeca, Diabo ri faceiro) — Disbinho inteligentel ARMANDA — Agora vamos as silabas. (0 Diabo é todo atencao) Ba, Be, Bi, DIABO — Ba, Be, Bi ARMANDA (entusiasmadissima) — Diabinho sem-vergonha! DIABO (dando gritinhos de alegria) — Nao é ‘Ho fie! assim. ARMANDA — S6 mais esta linha (aponta a pigi- na) Ca, Co, Cu. (0 Diabo comeca a ric, com a ‘milo na boca). eet ARMANDA (visivelmente zangada) — Nio soja ‘malieioso. Que ha de mais misso? DIABO (engolindo 0 riso) — Desculpe, professi- ra; 6 que me lembrei de uma anedota, ARMANDA (atirando a Carta de ABC na mesa) = Como podies saber tanta coisa se és analfabeto? Entdo é mesmo adivinho? DIABO (vaidosissimo) — A gente faz 0 que pods (Mexe nas carteiras, descobre uma revista de quadrinhos e pée-se a folhear e a tir a todo pra- mer). ARMANDA (euriosa) — Ué! Se nio sabes ler, 5° nfo entendes nada, por qué ris? DIABO — Vejo nas figuras, menina, Aqui Man- rake, o Flash Gordon, 0 Capitao Mavel, 0 ins- ‘petor Maigret, o dr. Mabuse. (Molha o indicador da mio direita na béca e vira a pagina seguinte) Aqui o Sherlock Holmes, Durango Kid, o Drdcu- Ia, o Franksteir, Onde estdo 0 Zorro, 0 Tarzan ¢ Buffalo Bill? (Folheia a revista, nervoso). ARMANDA — Entio gostas dos herdis? DIABO — Dos herbis, menina; gosto da acdo. JOAQUIM (entrando em e2na, apanhando a éil- tima palavra do Diabo) Acio! Essa 6 a palavra que adotel como lema ao progresso da cidade. Vé-se que ela estd em tda parte por onde ando, Aqui, com o ensino (aponta a classe.) ali, com a findistria (otha abstrato um ponto qualquer do Painel) acold, com a agricultura e a pecuéria Se (faz um gesto la:go com a mio, como indieands ‘as distancias) Meu sonho agora é fazer o estadi. DIABO — Bravo! Gosto dos esportes. Trards Pe- 1é para inauguré-to, JOAQUIN — Sim, seré inaugurado por Pelé, DIAEO — Se os diabos sabem disso, 0 inferno ‘vem abaixo. JOAQUIDE (estimulado) — B academias de jx jitsu, DIABO — Bravo! Gosto da aco; da luta. JOAQUIM — Casas banciirias também, DIABO — Com empréstimos a juros baixos, MASSILON (entrando, sorrateiro) — Também museus, escolas de helas-artes, galerias para ex- Posigdes. Além dos pintores nacionais, poderemos arranjar mostras de Kandinsky, Mondrian, Klee, Calder, Picasso, Chirico, JOAQUIM (erudite) — Essa é uma época de ‘ransformaedo como ao tempo da Renascenca, da Revoluedo Francesa, da Segunda Grande Guerra. Essa é a época da Comunicacao. [As lures vio-se arrefecendo, até se tomar escuro, ‘ suficiente para desaparceerem todos. Apenas ‘dade ficara brilhando com sua visio noturna, um instante, Depois, fecham-se as cortinas. 0 19 incl & coberto ou substituide pelo 2°. Agora jé se véem os monumentos piblicos, nos pontos ‘antes em claro, indieados por Joaquim © sugeti eins dos por Massilon: os Correios e Telegrafos, Mu- seus, Eseolas de Belas-Artes, Academias de Jiu. Jitsu, Casas Bancérias, Térves de Petréleo, Qua. Gras de Vélel ¢ o Hstidio ete. JOAQUIM (entrando em cena, em eompanhia de ‘Massilon) — Veja (aponta a cidade) to fun ional como se projetada por Lieio Costa. MASSILON — Os jardins, como inspirados por Burle Marx, JOAQUIM (indeciso) — Mas 0 poro.. ‘MASSILON — O povo continua irritado, queten- do muito mais. Nao se conforma com o trabalho bbem remunerado, escolas gratuitas para os filcs, assisténcia médico-hospitalar, empréstimos a ju: 10s baixos, Exige igrejas cemitcios. Quer Us Piirovo e um convento de religiosos. JOAQUIM — Isso pode trazer a rufna desta cida- de, O Diabo nfo me parece atento a ésse tipu de reivindicagio, MASSILON — A populagio é quase toda oriunda de camponeses, Essa gente ainda conseiva os Costumes de seus antepassados. JOAQUIM — Precisamos contomar a situacio, Estudaremos um meio de, ‘MASSILON — A coisa se agravou ainda mais ‘com os boletins que os fanéticos fizeram circular ontem na cidade, JOAQUIM (surpréso) — Botetins? parent i ‘MASSILON — Um abaixo-assinado, com mais de ‘mil nomes, JOAQUIM — Entdo 6 um motim. MASSILON — 0 povo exige, como disse. Nio ‘quer saber de acdrdo, Aqui estd um dos volantes. JCAQUIM (apanha o volante ¢ lendo em vou al ta) — “Queremos uma igreja e um cemité [Faroco e um convento de religiosos, ou decretare- ‘mes greve dentro de 24 horas”. MASSILON (desanimado) — Como vés. JOAQUIM (perplexo, com as miios na eabeca) — (Quais sito os lideres do movimento? MASSILON — Todos ésses. (Aponta as assinatu- ras). JOAQUIM — Com essa gente nio é possivel um faeérdo. A menos que. MASSILON (decidido) — Nao conte comigo. Nao empregarei a fdrga contra o povo. Ainda sou poeta. JOAQUIM — Bu s6 0 faria em seu préprio bene- ficio, MASSILON — A violéncia gera a desordem. Nao condua a nada, JOAQUIM — Que devemos fazer entio? MASSILON — Esperemos que o Diabo apareca. Larguemos o problema em suas maos. Se ele nao =5= encontrar uma safda, néo seremos nés ‘mos de encontrar, ue hare: JOAQUIM (revoltado) — Mas isso nfo é um pro- bblema, 6 um abacaxi MASSILON — E ele teri que descascé-Io, sem iividal (Ouve-se 0 elique dos easeos do Diabo, ‘mais forte que nunca). DIABO (entrando em cena, desesperado) — Es tou-me sentindo coberto de fluidicos negatives ‘Temos problemas graves na cidade? JOAQUIM — Como soubeste? DIABO — Estou apenas perguntando, “MASSILON — O povo esti exasperado. Fiz cit ‘cular boletins na cidade, com mais de mil assina- tturas, exigindo uma igte.. (O Diabo espirra) Unt ‘cemité...(O Diabo torna a espisrar). Massilon desiste da informagio. DIABO (profético) — 0 fogo destruird esta cida- ade (A estas palavras, a cidade se incendeia. O ‘vemese atrds dos bastidores, grites, barulhos, a pplor desordem). ARMANDA, OLGA E MARTA DAS DORES, en- trando em cena, gritam a um s6 tempo, apavora- ‘das — Véem 0 incéndio? As chamas estéo destru- indo a cidade. JOAQUIM (desesperado, falando para 0 Diabo) —Contenha o fogo! 86 MASSILON, ARMANDA, OLGA E MARIA DAS DORES, aos herros — Contenha o fogo! Conte sha o fogo! DIABO (eéptieo) — Para qué? O povo nio sabe © que quer, Novamente vai exigir “isso” ¢ wadullo JOAQUIM — Mas a eldade é nova, 0 povo ainda info esté esclarecido, DIABO (senteneioso) — Quando 0 povo estiver eselarecido, fundaris nova cidade. (Sibita escu- idao. Cessam 0s berros).

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