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A experiência na França, em função do menor período dedicado ao trabalho de campo, foi usada para
iluminar aspectos da etnografia realizada no Brasil, sem que houvesse uma comparação no sentido estrito,
para o que considero que seriam necessários investimentos similares nos dois universos de pesquisa.
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A experiência de campo na Lorena Francesa deu-se durante meu estágio de doutorado junto ao CRBC-
EHESS, entre novembro de 2007 e agosto de 2008.
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Trata-se de arquivos que pertenceram a uma companhia carbonífera gaúcha, o Cadem, no passado, hoje
guardados por uma historiadora local, onde é possível se obter informações sobre as condições de vida e
de trabalho dos mineiros entre as décadas de 1920 e 1960 – e também sobre as alianças entre as
companhias e as forças policiais diante de mobilizações e greves dos trabalhadores gaúchos. Outro
arquivo, da CRM, diz respeito às fichas funcionais dos seus empregados, nas quais é possível obter pistas
acerca das promoções e das punições, por exemplo. A pesquisa em documentos contribuiu para esclarecer
aspectos que emergiram das narrativas dos interlocutores. Sobre estes aspectos, ver Cioccari, 2010.
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bastante similar à descrita por Hoggart (1973, p.164) entre bairros operários ingleses, de
que o verdadeiro herói do proletariado é o herói cômico não o herói romântico. No
contexto em que pesquiso, a falta de vergonha13 – seja para o enfrentamento com o
patrão, seja para a brincadeira - coaduna-se com o jogo de cintura, com a habilidade
verbal e corporal esperada de um “mineiro de verdade”.
Na comunidade de Minas do Leão, sugiro ainda a existência de uma “pequena
honra do sagrado”, uma distinção incorporada pelos praticantes de alguma religião, que
se consideram “eleitos”, “escolhidos”, “tocados” por Deus ou outras divindades e que se
manifesta na maior parte das vezes como um reforço de sua fé, de seu desprendimento,
de sua generosidade ou determinação. Vê-se também a referência ao “dom” recebido
que permite o exercício de uma atividade espiritual, assim como as manifestações de
“orgulho pessoal” ou de admiração dizendo respeito a uma determinada trajetória
religiosa. Ainda que a dimensão religiosa possa exaltar alguns valores mais próximos
de uma noção de honra clássica, tal como o desapego das glórias mundanas, deve-se
lembrar que ela opera combinada a outros valores. Para os que vêem os praticantes de
fora, tais preceitos religiosos podem equivaler a outras formas de paixão. Na
combinação do sagrado com a honra familiar, o próprio sagrado liga-se à centralidade
atribuída aos laços de sangue, como no caso do culto aos “mortos familiares”.
Haveria ainda neste contexto traços de uma “pequena honra familiar”,
correspondendo às tradições em torno de um sobrenome ou de várias “assinaturas”, a
uma origem étnica ou cultural, como ser descendente de poloneses, por exemplo, ou
mesmo a determinados valores que se consideram transmitidos pela hereditariedade ou
pela educação familiar. Entre estes valores, pode-se mencionar o da honradez construída
pelos antepassados, no sentido de “se ter um bom nome”, de “ser um bom pagador”, etc.
A “pequena honra familiar” parece, freqüentemente, combinar-se com a “pequena honra
tradicional ou de origem rural”, pois não raro partilham de uma origem comum.
A sexta e última dimensão, à qual estou chamando de “pequena honra
tradicional ou de origem rural” enfatiza a permanência de valores tradicionais, como do
trabalho árduo, da honestidade, da palavra dada, do respeito e da consideração, da
seriedade e da austeridade nos gastos e, por vezes, da pureza sexual para as mulheres.
Outros traços podem reafirmar a importância da hombridade e da virilidade masculina,
no sentido de que um homem não deve “levar desaforo para casa”, significando que
deve responder a uma afronta pelo enfrentamento verbal e/ou corporal. Outras formas
13
Sobre a questão da “vergonha” nas classes populares, ver Duarte (1987b).
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Pitt-Rivers (1983, p.43-44) ressaltava que, na Andaluzia, o estatuto da honorabilidade dos membros da
comunidade era objeto de incansáveis comentários, de forma que “a reputação não é somente um tema de
orgulho, mas também um fato de utilidade pública”: o “bom nome” poderia ser o capital mais precioso.
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Homem cuja mulher comete o adultério.
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particularmente “desonrados”. Pessoas de gerações mais velhas podiam dizer que lhes
faltavam os “brios” e que, por isso, eram capazes de aceitar uma reconciliação com uma
esposa infiel, mas esses jovens, partilhando de valores mais individualistas e
igualitários, consideravam incoerente exigir da parceira uma fidelidade que, de sua
parte, nem sempre podiam assegurar. Parece-me que a honra masculina local está
ancorada em diferentes papéis, associada a distintos liames sociais - profissionais,
religiosos, políticos, esportivos, familiares, etc. -, mas mobiliza fortemente a imagem de
virilidade, de bom desempenho sexual e de habilidade nas conquistas amorosas seja por
referência ao presente ou ao passado, fama a qual homens de diferentes faixas etárias se
empenham em formar e manter com comentários auto-elogiosos.
A honra feminina reveste-se igualmente de múltiplos aspectos, valorizando-se
ainda a forma tradicional que consiste na imagem de boa esposa e mãe de família, mas
havendo também a consideração, o respeito ou o prestígio nas trajetórias de mulheres no
meio profissional, religioso, esportivo ou político, em que pesem os resquícios de um
machismo que vê com maus olhos o destaque de mulheres em mundos antes
considerados masculinos. Neste contexto, as mulheres se orgulham de sua firmeza
moral, de sua competência, habilidade ou senso prático e são vistas como menos
sujeitas às paixões dos jogos, que costumam esvair as energias pessoais e as finanças
domésticas. Em muitos casos, são elas que administram o orçamento familiar. As mães
têm um papel determinante na decisão de um prolongamento da vida escolar para os
filhos, do mesmo modo como as jovens registram, em boa parte, uma escolaridade mais
longa que os rapazes. Percebi que há mulheres que valorizam a própria “esperteza”,
uma espécie de versão feminina da “malandragem”,16 seja na administração do seu dia-
a-dia, seja na relação conjugal, para vigiar o marido, por exemplo.17
A pureza sexual feminina já não parece mobilizar adesões, ou seja, não confere
honra em sua positividade, mas o comportamento moral continua a ser o principal alvo
de ataques à reputação de mulheres, mesmo quando estão em jogo “diferenças” de outra
ordem – tais como uma rivalidade política, preconceitos de gênero e conflitos
hierárquicos. Assim, sobre uma mulher da região que seguiu carreira na política, ouvi
de um de seus adversários que ela teria vários amantes e que, assim, não tinha a
competência e a seriedade requeridas para a função. Noutro caso, um ex-mineiro que
tinha tido desavenças com uma profissional ligada à companhia no passado e se sentiu
16
Sobre a “mulher interesseira” e a “mulher malandra”, ver Fonseca (2000).
17
Esta questão é retomada no capítulo 4.
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humilhado por ela numa certa circunstância, quando lhe perguntei se ela alertava os
trabalhadores sobre os riscos do alcoolismo, me disse: “Aquela ali?! Ela bebe até cair...
Bebia mais do que os mineiros!”, como a sugerir que uma mulher como aquela não
poderia dar “lições de moral”. Outra mulher que trabalhou numa das companhias
carboníferas foi referida com desprezo em relatos de ex-mineiros tanto por suas atitudes
consideradas “provocativas” como por um suposto abuso de sua superioridade
hierárquica. Os comentários desabonadores faziam referência às sumárias minissaias
que usava ao receber operários em sua sala, diante dos quais, segundo os relatos,
cruzava e descruzava as pernas como que para “testá-los”: se algum deles perdesse a
compostura, ela teria um pretexto para pedir a sua demissão. Mas uma mulher que se
destacasse numa atividade considerada masculina também podia ser apontada com
admiração, como no episódio de uma corrida de cavalos a que fui assistir e ouvi o
comentário elogioso de um informante sobre uma senhora que passava, ela mesma
criadora de cavalos para carreiras: “Aquela ali é mais carreirista do que eles tudo!” 18
Entre os paradoxos da honra indicados por Pitt-Rivers (1983, 1992) está o fato
de que um sentimento de dignidade nem sempre é acompanhado de um reconhecimento
social na forma de prestígio ou de popularidade positiva, com os comentários sobre a
reputação ficando à mercê de afinidades pessoais, políticas, profissionais, etc. Por
exemplo, um ex-mineiro com uma trajetória de destaque nas lutas sindicais dos anos
1960 era mencionado com certo desprezo nos comentários de um ex-encarregado que
tinha uma posição política antagônica à sua. Era apontado como “um agitador” e
alguém que “quando foi candidato a vereador, fez só meia dúzia de votos”. A mulher de
outro ex-mineiro, que foi vizinha deste mesmo líder sindical num antigo bairro operário,
via-o como alguém “violento e perigoso”19. É preciso notar então que a construção das
reputações – e da própria honra - está sujeita aos meandros das diferenças ideológicas e
aos conflitos advindos de relações pessoais ou de vizinhança.
Quando comentei com um de meus vizinhos que pretendia fazer uma entrevista
com um ex-mineiro que era seu conhecido, ele me advertiu: “Aquele ali? Está sempre
bêbado, tu não vai conseguir entrevistá-lo!”. Nas primeiras vezes em que ouvi essa
menção (estendida depois a outros informantes), pareceu-me verossímil pela tendência
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Quando ouvi o comentário, já entendia o uso habitual do termo naquele contexto, tendo superado o
espanto que o termo “carreirista” provocou em mim da primeira vez, quando o tomei em outro sentido,
como se referindo a quem, para fazer carreira, lança mão de qualquer meio, como indica o Dicionário
Aurélio para “carreirismo”.
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Características, aliás, que o próprio ex-líder sindical atribui a si mesmo, mas vendo-as como marcas de
uma atuação combativa e corajosa para enfrentar a opressão patronal.
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ao alcoolismo entre parte dos trabalhadores da mina, mas fiquei consternada, pois se
tratava de antigo informante com quem eu estabelecera laços. Minha experiência direta,
no entanto, foi bem diferente da sugerida por meu primeiro interlocutor. Não tive
oportunidades de ver o ex-mineiro embriagado; em todas as ocasiões em que o
encontrei estava perfeitamente sóbrio, tendo me fornecido uma entrevista rica, como
nos primeiros contatos. A única vez em que o vi um tanto “alto” foi durante o carnaval
de rua local, quando estavam legitimados os excessos.
Percebi que essa desqualificação do outro, praticada com um tom que se disfarça
indiferente, pode ser movida por diversas razões, das quais não se exclui uma
competição pela própria atenção do antropólogo. No caso mencionado acima, havia um
antigo conflito pessoal que opunha os dois ex-mineiros; em outro caso (cuja acusação
de alcoolismo se mostrou também infundada aos meus olhos), havia diferenças político-
partidárias em jogo. Durante a etnografia, há que se atravessar essas camadas de
opiniões difamantes que pretendem deixar marcas sobre a reputação e observá-las nos
efeitos que desejam impor a quem chega “de fora”. Percebe-se que elas traduzem
determinadas visões de mundo e conflitos latentes ou manifestos.
A respeito de alguém que passa por um tratamento médico para depressão ou
problemas similares, o aviso à pesquisadora era: “Olha, não sei se tu vai conseguir falar
com ele, ficou esquisito, não sai mais de casa”. Sobre outro, que se recupera de um
“derrame”, não raro ouvia: “Mas agora ele não vai conseguir te dar entrevista”. Na
verdade, o problema de saúde tinha afetado apenas – e bem parcialmente – certa
agilidade motora do ex-mineiro, em nada prejudicando a memória, o raciocínio e a
expressão verbal. De viúvas que se casaram novamente, não raro havia o comentário de
que “se casou em seguida”, sugerindo que nem tinha esperado o marido esfriar no
túmulo, ou que “vive muito bem”, “ficou com a vida feita”, por conta de pensão ou
indenização. Tal vigilância social, carregada de malícia quanto ao comportamento
alheio e que nutre generosamente a fofoca, é uma das razões manifestas por alguns
informantes para querer deixar a cidade ou por já tê-lo feito. Uma viúva que perdeu o
marido num acidente na mina e que reconstruiu sua vida com um novo companheiro
traduzia assim seu mal-estar: “Sabe aquela cidade que repara em cada passo que tu dá?”
Ao mesmo tempo em que se está altamente vulnerável aos comentários dos
vizinhos, obter a sua estima e seu respeito pode representar o supra-sumo da honra,
considerando-se que esta seja uma relação de igualdade, como na comunidade
camponesa pesquisada por Pitt-Rivers (1983, p. 21). Uma reação de crítica pode surgir,
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portanto, contra aquele que “quer ser importante”, que “quer ser grande”, que “está
bancando o rico”, ou mesmo que “ficou estranho” com o dinheiro recebido de
indenização, por exemplo. A atmosfera das relações de vizinhança em alguns aspectos
se assemelha à descrita por Hoggart (1973) entre bairros operários ingleses, sobre os
quais ele mencionava a reação de exclusão dos que se afastam dos valores partilhados
pelo grupo, dos que deixam de fazer parte de um “nós” para tornarem-se “eles”. É
sugestiva, por outro lado, a análise conduzida por Foster (1965) na comunidade
camponesa de Tzintzuntzan, México, sobre a noção do “bem limitado”.20 De forma
similar, em Minas do Leão, alguém que exiba poder, dinheiro, popularidade ou
notoriedade pode contrariar os valores locais se os vizinhos e parentes considerarem que
“mudou”, que “não nos trata como antes”, que “não é mais como um de nós”, havendo
uma ambivalência entre a apreciação social do sucesso e do prestígio e a reação
contrária que pode suscitar. Talvez por isso que trajetórias com grande popularidade
recebam também críticas incisivas de outros. A reputação do sujeito, sua imagem e sua
pretensão à honra estão permanentemente vulneráveis aos ataques.
A análise de certos grupos de trajetórias, tanto no contexto profissional como no
relativo aos jogos, aos esportes e ao sagrado nos revela a incorporação de diferentes
formas de “pequena honra”, ancoradas tanto no “orgulho” que suscita tal pertencimento,
como na afirmação de um “dom”, de uma “herança” familiar ou mesmo na força
acionada para a ruptura desta transmissão familiar, constituindo-se o “mérito” a partir
das escolhas do sujeito.21 Nestes diferentes domínios, se entrevê nos relatos certas
noções dando conta de uma combinação entre a hereditariedade e a educação familiar,
mas no universo religioso, por excelência, tal mosaico parece ser ainda mais nítido,
como atesta o depoimento de um informante que menciona ter “puxado” da avó
benzedeira suas capacidades para prever o futuro e para curar, sugerindo uma espécie de
“transmissão do dom”, situação na qual esses poderes excepcionais se revelariam em
mais de uma geração. Vivos e mortos constroem as suas reputações por meio do
reconhecimento social conferido por devotos, fiéis ou seguidores.
Chama a atenção, em parte dos relatos, que as recorrências ao “dom” e à
“herança” aparecem como transmissões instauradas nas profundidades do ser à maneira
de algo inato, que não se escolhe, e se mobilizam reciprocidades essas podem estar do
lado das trocas simbólicas as quais não se pode ou não se deseja retribuir (no sentido de
20
Ver Foster, 1965, p.64-74.
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Duarte (2006) examinou as diferenças entre religiosidade “por atribuição”, de uma confissão herdada
dos ascendentes, e “por aquisição”, refletindo escolha ou adesão pessoal.
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REFERÊNCIAS
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1971.
BEAUD, S.; PIALOUX, M. Retour à la condition ouvrière. Paris: Fayard, 1999.
DUARTE, L.F.D. Ethos privado e modernidade: o desafio das religiões entre indivíduo,
família e congregação. In: In: DUARTE, L.F.D., HEILBORN, M. L. et al. (orgs.).
Família e Religião. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006
FOSTER, G. The dyadic contract: a model for the social structure of a Mexican peasant
village. In: POTTER, J. M. et al. (orgs.) Peasant Society: a reader. Boston: Litle
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HUGO, V. [1866]. Os trabalhadores do mar. Trad. Machado de Assis. São Paulo: Abril
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HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva.
MOORE JR, B. Militância e apatia no Ruhr antes de 1914. In: Injustiça: as bases da
obediência e da revolta. São Paulo: Brasiliense, 1987.