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© Ed.Jtora il.fti:i,Lonai/ Sulina.

201 O DoMIN IQUE WoLTO N


CNRS Êwnons, Paris, 2009
Título (}nb'lf)al: l,tformer n 'ut paJ com11'Jtm1q11er

Capa. Lerícia Lamperr

Projeto gráfi co: Daniel Ferreira da Silva

Revisão do português: Melissa Mel/o

Editor: Luis Gomes

lmpresso na gráfica: Gráfica Calábria

Dados lmernacionais de Catalogação na Publicação ( cíp )


Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza CRB 101960

W8691 \Vol1on, Dommiquc


Info rma r não é com unic ar
Informar não t comunicar/ Domin,que Wol1on: trudução de Jurernir
Machado da Silva ... Porto Alegre Sulina, 2010
96 p.

Tradução de· Informer n'est pas i.:ommuniqucr


ISBN: 978-85-205-0558-8

J. Sociologia. 2. Meios de Comunicação. 3. Teoria da Comunicaç3o.


4. Comunicação - Aspectos Sociais. L Título. 11 Silvo, Jurcmir Machado da

COO: 301
302.2
CDU: 316 Tradução de Juremir Machad o da Silva
316.776

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Meridional Ltda.

Av. Osvaldo Aranha, 440 CJ. 101


Cep: 90035-190 Porto Alegre-RS
Te! (OS I) 3311-4082
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{Março /2010)

IMPRESSO NO BRASiúPRIN TED IN BRAZIL

Ediluru Su.Jint1
SUMÁRJO

lNTRODL·ÇAO
Comunicar é negociar e conviver
11

CAPITL'LO 1
Uma teoria da comunicação
15

CAPITL'LO II

Tecnologias: entre emancipação e ideologia


29

C.\PITL'LO llJ
Realizações e desvios da informação
49

CAPÍTULO IV
A nova fronteira da informação
59

C.-\PÍTL'LO V
Informação e conhecimento: a convivência indispensável
71

(ONCLL'S.\O
Comunicar: tem alguém,
em algum lugar, que goste de mim?
87

lNDIC:AÇÔES BIBL!OGlt\FIC\S
93
INTRODUÇÁO

Comunicar é negociar e conviver

"Informar não é comunicar". Para a maior pane de nós,


isso significa que a informação é séria, não a comunicação.
Sim à informação, não à comunicação, que está sempre sob
suspeita de seduzir e manipular. Esse é o estereótipo. Desejo
mostrar o contrário. A comunicação é mais complexa do que a
informação por uês razões.
Primeiramente, se não existe comunicação sem informa-
ção, a comunicação é sempre mais difícil, pois impõe a questão
da relação, ou seja, a questão do outro. O resultado é incerto
visto que o emissor raramente está em sintonia com o receptor
e vice-versa.
Em segundo lugar, há uma contradição enrre a legiti-
midade da informação e o descrédito da comunicação, pois
nunca os homens passaram tanto tempo, como neste últi-
(
mo meio século, tentando se comunicar. Nunca se investiu
\
tanto dinheiro em tecnologias cada vez mais sofisticadas
na tentativa de atingir esse objetivo. Por que desvalorizar e
criricar essa atividade e dedicar a ela ranto tempo, energia
e dinheiro? Desvalorizar a comunicação, que é desespera-
damente buscada por todos na vida privada, profissional,
política e social, significa se aurodesvalorizar.

li
Por fim, como associar o bem à informação e o mal à mensagens, enquanto o mais complicado tem a ver com os
comunicação na medida em que ao longo dos últimos dois homens e as sociedades.
séculos as duas estiveram ligadas no combate pela eman- . O século XIX caracterizou-se pela revolução da infor-
cipação individual e coletiva? Não há informação sem um mação com a conquista das liberdades essenciais. O século XX
projeto de comr.nicação. Há uma espécie de esquizofrenia foi marcado pela vitória da informação e da tecnologia graças
nessa vontade de diabolizar a comunicação para louvar a ao fenômeno da comunicação ao alcance de todos. O século
informação. Quanto às tecnologias, da televisão à infor- XXJ será da convivência no sentido da geração de condições
mática, elas desempenham, desde muito tempo, um papel para a coabitação possível enrre pontos de vista diferentes,
essencial na emancipação individual e coletiva, sendo oni- num mundo cada vez menor onde os indivíduos sabem tudo e
presentes em nossas vidas. do qual não se pode escapar.
É por isso que sempre busco no meu trabalho evitar a se- Algo bem distante do discurso em favor da informa-
paração entre a "boa" informação e a "má" comunicação. Penso ção e contrário à comunicação. Não é possível estabelecer uma
as duas em conjunto destacando o paradoxo atual: a onipresença hierarquia. Devemos pensá-las em conjunto, a comunicação
das tecnologias num mundo aberro, saturado de informação, não exigindo um tratamento um pouco mais complexo por dizer
basta para diminuir as aporias da comunicação. respeiro às questões da relação, da alteridade e do recepror. É
Neste livro, busco derrubar o estereótipo dominante e a própria vitória da informação nos últimos dois séculos que
mostrar que o verdadeiro desafio está na comunicação, não na impõe a redefinição do estatuto da comunicação. Só se fez me-
informação. É falso pensar que basta informar sempre mais tade do caminho.
para comunicar, pois a onipresença da informação coma a Qual o desafio deste livro? Repensar a comunicação no
comunicação ainda mais difícil. Além disso, a revolução da momento do triunfo da informação e das tecnologias que a
informação produz incerteza na comunicação. O resultado é acompanham.
imprevisível. O problema não é mais somente o da informa- A crise do capitalismo, deflagrada no outono de 2008, vai,
ção, mas antes de tudo o das condições necessárias para que de resro, acelerar uma reflexão crítica sobre a dimensão política
milhões de indivíduos se comuniquem ou, melhor, consigam das relações entre informação, tecnologia e comunicação. Pela
conviver num mundo onde cada um vê tudo e sabe tudo, mas primeira vez na história mundial, as pessoas puderam acompa-
as incontáveis diferenças - linguísticas, filosóficas, políticas, nhar ao vivo a crise e as suas consequências. Ninguém duvida
culturais e religiosas - tornam ainda mais difíceis a comunica- que, depois dessa fase de perplexidade, essa informação abundan-
ção e a tolerância. A informação é a mensagem. A comunica- te suscitará uma crítica substancial em relação aos economistas,
ção é a relação, que é muito mais complexa. jornalistas, políticos, professores universitários e tecnocratas, que
O desafio é menos de compartilhar o que temos em comum não souberam ou não quiseram ver a catástrofe se aproximar. Au-
do que aprender a administrar as diferenças que nos separam, tocríticas serão exigidas. Haverá um acerco de contas.
tanto no plano individual quanto no coletivo. Portanto, na A crise diz respeito também à informação financeira,
co~_unicação, o mais simples tem a ver com as tecnologias e nunca controlada, indissociável da internet, que, mais uma vez,

12 13
traz à wna a questão da regulamentação dessa ferramenta, caso
se queira realmente fazer dela um instrumento de liberdade.
O problema não é só a especulação, mas a velocidade
da circulação das informações, a ausência de conrrole, a falta
de regulamentação, o esquecimento do interesse geral. É o pri- CAPITIJLO I
meiro acontecimento mundial capaz de exigir que os desafios
políticos da informação e da comunicação sejam repensados . Uma teoria da Comunicação
O mesmo aconteceu, de cena maneira, há uns 40 anos, quan-
do as crises da ecologia aceleraram uma tomada de consciência
política, hoje alcançada, relativamente aos desafios políticos
do meio ambiente.
Eis o desafio: perpetuar, num mundo saturado de in - A revolução do século XXI não é a da informação,
formação, de comunicação e de tecnologia, o valor da emanci- mas a da comunicação. Não é a da mensagem, mas a da re-
pação, que sempre as regeu desde o século XVI. É preciso im- lação. Não é a da produção e da distribuição da informação
pedir que a informação e a comunicação, até ontem fatores de por meio de tecnologias sofisticadas, mas a das condições de
aproximação, tornem-se aceleradores de incompreensão e de sua aceitação ou de sua recusa pelos milhões de receptores,
ódio justamente por serem visíveis todas as diferenças e toda todos sempre diferentes e raramente em simonia com os emis-
alteridade. A direção e o sentido das minhas pesquisas nos úl- sores. Os receptores, destinatários da informação, compli-
timos 30 anos têm sido estes: retomar os valores de emanci- cam a comunicação. A informação esbarra no rosto do outro.
pação da informação e da comunicação num contexto onde Sonhava-se com a aldeia global. Estamos na torre de Babel.
ambas se tornaram onipresentes e terrivelmente polissêmicas.
I Uma teoria da comunicação

A c\iversidade dos receptores torna caducas as teorias


dominantes: O aumento da circulação de informações, sempre
mais rapidamente e da maneira mais igualitária, não aumenta
a comunicação e a compreensão. Os receptores, ou seja, os
indivíduos e os povos, resistem às informações que os incomo-
dam e querem mostrar os seus modos de ver o mundo. A inco-
municação torna-se o horizonte da comunicação obrigando a
negociações constantes para que se possa conviver.
Há um paradoxo? Sim. É a virória da informação
que revela essa dificuldade crescente da comunicação . Du-

14 15
rance séculos, essas duas palavras foram quase equivalentes . circulando que cada vez há mais incomunicação, um resultado
Eram , em todo caso, companheiras na luta pela liberdade inimaginável há apenas 30 anos.
de expressão:pel a emancipação política e pelos direitos do
homem. Hoje, é antes de tudo a informação que se impóe, A informação
enfatizando a ideia de uma comunicação "a utomática". O
fur~1ro está na problemática da comunicação , ou seja, das O que se deve entender por informação , mensagem, co-
condiçóes de aceitação e de negociação pelos receptores das mun icação e relação' Existem três grandes categorias de infor-
informaçóes oriundas de todos os lados . Esse será o desafio mação: oral, imagem e texto. Esses dados podem estar presen-
essencial. A informação tornou-se abundante; a comunicação, tes em diversos suportes . Tem-se a informação-notícia ligada
uma raridade. Produzir informações e a elas ter acesso não à imprensa; a informação-serviço, em plena expansão mundial
significa mais comunicar. graças especialmente à internet; e a informação-conhecimento,
Ontem, com tecnologias limitadas, as mensagens tro- sempre ligada ao desenvolvimento dos bancos e bases de da-
cadas envolviam públicos mais homogêneos. Hoje, as men- dos. Falta a informação relacional, que permeia todas as de-
sagens são incontáveis, as tecnologias, quase perfeitas, e os mais categorias e remete ao desafio humano da comunicação.
receptores sempre mais numerosos, heterogêneos e reticentes.
Isso não decorre apenas da diversidade de línguas, mas tam- A comunicação
bém das representaçóes , culturas e visões de mundo que se
entrechocam. A aceleração da produção e da transmissão de A comunicação acontece por vários motivos, mas é
um número crescente de informações não é mais suficiente possível distinguir rrês razões principais, frequentemente mis-
para criar um aumento de comunicação. Os mal-entendidos e turadas e hierarquizadas conforme as circunstâncias, que nos
os conflitos estão até mesmo aumentando. É a primeira vez na estimulam a querer entrar em contato com alguém. Primeira-
história que se produz um tal descolamento. mente compartilhar. Cada um tenra se comunicar para com-
É por causa disso que informação e comunicação pas- partilhar, trocar. É uma necessidade humana fundamental e
sam a ser um dos nós da paz e da guerra no século XXl. Como incontornável. Viver é se comunicar e realizar trocas com os
conviver quando não nos escutamos e não nos entendemos, outros do modo mais frequente e autên~ico possível. Depois
quando as diferenças são expostas à luz do dia por tecnologias vem a sedução, que é inerente a todas as relações humanas e
cada vez mais sofisticadas? Ou se consegue organizar a convi- sociais. Enfim, a convicção, ligada a todas as lógicas de argu-
vência entre pontos de vista diferentes, com a dupla exigência mentação utilizadas para explicar e responder a objeções. O
de respeitar, ao mesmo tempo, a diversidade das ideias e um ideal da comunicação está evidentemente ligado ao comparti-
campo comum de comunicação, ou todos se fecharão em gue- lhamento, aos sentimentos, ao amor. É, com certeza, a situa-
tos e comunicarismos e em identidades mais ou menos belico- ção na qual a comunicação percorre o presente, reencontra o
sas. Não é difícil adivinhar o quanto esse risco aumenta com passado e torna possível o futuro. São momentos de graça ... A
a globalização. É, então , por haver cada vez mais informação comunicação, neste livro, concentra-se na voz, no texto e nas

16 I7
imagens, mas não, por fo.lca de espaço, na comunicação física, sua ditadura , mas ele obriga a passar da ideia de transmissão
não-verbal. Cada um sabe bem, no entanto, que um gesto, um à de negociação. Ontem, comunicar era transmitir, pois as
olhar ou um sorriso podem dizer muico mais do que palavras. relações humanas eram frequentemente hierárquicas. Hoje,
Sem falar dos silêncios que muitas vezes afirmam o contrário é quase sempre negociar, pois os indivíduos e os grupos se
das palavras e dos gescos. Aqui, a informação é tratada segun- acham cada vez mais em si cuação de igualdade. o conceito
do a definição clássica que remete à unidade e à mensagem. A de negociação pertence, de resto, à cultura democrática. Ine-
I'
comunicação, em contrapartida, remete à ideia de relação, de xiste negociação em sociedades autaritárias ou tatalicárias.
compartilhamenco, de negociação. Ontem , o horizonte nor- Quando se olha bem a realidade, vê-se que cada um passa
mativo consistia em conseguir entrar em comunicação. Hoje, o seu tempo, atualmente, negociando, na relação conjugal,
consiste antes de tudo em administrar a incomunicação, por na família, na escola, na empresa, na sociedade, na Europa,
meio da negociação, para construir as condições de convivência. no mundo ... Poucas coisas podem ser impostas, muito se
negocia. Quanto mais os indivíduos estão bem-informados,
O receptor mais eles criticam e negociam.
Resumo das cinco etapas do esquema que explica a cea-
É a terceira ruptura. Não apenas informar é insuficiente ria da comunicação defendida aqui tanto no que diz respeita à
para comunicar por haver cada vez mais mensagens e a comunica- comunicação entre humanos quanto à comunicação mediada
ção exigir uma seleção, mas também por ter crescido o papel dos por tecnologias .
receptores. Os receptores negociam, filtram, hierarquizam, recu- Primeiro: a comunicação é inerente à condição huma-
sam ou aceitam as incontáveis mensagens recebidas, como rodos na. Não há vida pessoal e coletiva sem vontade de falar, de co-
nós, diariamente. O receptor, que nunca foi passivo, está cada vez municar, de trocar, tanto na escala individual quanto coletiva.
mais ativo para resistir ao fluxo de informações. Seria mais ade- Viver é se comunicar. Segundo: os seres humanos desejam se
quado falar em receptor-ator para destacar a aspecto dinâmico des- comunicar por três razões: compartilhar, convencer e seduzir.
sa função. Revalorizar o estatuto do receptor passa também pela Com frequência simultaneamente por essas crês razões, mes-
revalorização da própria problemática da comunicação, o que mo se isso nem sempre é enunciado. Terceiro: a comunicação
fizeram aurores contemporâneos, infelizmente raros, como l~r- esbarra na incomunicação. O receptar não está sintonizado
gen Habermas, Umberto Eco, Michel Serres, Edgar Morin, Régis ou discorda . Quarto: abre-se uma fase de negociação na qual
Debray e mais alguns. Nada mais simples do que os incontáveis os protagonistas, de modo mais ou menos livre e igualitário,
discursos mais ou menos hostis à comunicação que desvalorizam tentam chegar a um acordo. Cinco: chama-se de convivência,
o estatuto do receptor, sempre sob suspeita de ser meio estúpido e com suas fragilidades e pontos fortes, o resultado positivo
facilmente manipulável. De qualquer maneira, é sempre o outro dessa negociação. A negociação e a convivência são procedi-
que é influenciável, jamais a gente. mentos para evitar a incomunicação e as suas consequências,
A comunicação resulta de um jogo complexo a três . frequentemente belicosas.
O receptor nem sempre tem razão , longe disso , ou imporia

18 19
* e as culturas não se torne uma fome de conflitos. Essas duas
Essa teoria da comunicação, aparentemente modesta. concepções não compartilham a mesma visão da relação entre
baseia-se na hipótese de que nenhum indivíduo e nenhu- o homem e a tecnologia.
ma sociedade podem escapar à comunicação. Isso tem cinco
consequências: o horizonte da comunicação é quase serr{-pr·e a *
incomunicaçáo; o que visível especialmente na ruptura entre Esse é o modelo teórico que estrutura as minhas pes-
informação e comunicação; a impossibilidade de reduzir a co- quisas empíricas há muitos anos nestes cinco campos: relação
municaçáo à performance técnica; a obrigação de negociar; e a entre ciências e tecnologias; meios de comunicação de massa e
convivência como horizonte . Essa comunicação estrutural ne- internet; espaço público e comunicação política; globalização,
cessita obviamente da igualdade entre os protagonistas ou não diversidade cultural e Europa; relações enrre ciências, teorias
há negociação , o que faz da comunicação contemporânea uma do conhecimento e comunicação.
realidade indissociável da cultura democrática e um processo
muito mais amplo que o da simples expressão. Não há, portan- II Da revolução da informação às incertezas da comunicação
to, comunicação sem um mínimo de tempo, de respeito e de
confiança mútua. A tolerância é uma das condições estruturais Foram necessários três séculos de lutas para se desfrutar
de qualquer processo de comunicação. Enfim, toda teoria da dos benefícios da revolução da informação e da comunicação.
comunicação carrega uma visão implícita da sociedade e das Tudo se complicou com a generalização da informação, adi-
relações sociais, o que aparece na aceitação de um modelo mais versidade dos receptores com senso crítico e a globalização.
ou menos aberto, igualitário ou hierárquico . A concepção de- De qualquer maneira, tinha-se até agora uma visão simples
fendida neste livro é humanista antes de ser técnica, tendo a da informação, reduzida a uma mensagem frequentemente
rroca como horizonte de roda experiência humana e social. É unívoca e a um receptor pouco complexo. Pressupunha-se
também uma concepção política no sentido de que privilegia uma continuidade entre esses dois elementos e alimentava-
a negociação para se chegar a um acordo . se a ideia de que quanto maior fosse a abundância de infor-
mações rápidas, maior seria a comunicação. Era o modelo
* universal da comunicação. Não funciona mais assim. Ape-
Há duas concepções da comunicação que se opõem. A sar ou por causa do progresso impressionante das tecnolo-
primeira, amplamente dominante, insiste na performance das gias da comunicação em um século: telefonia (1880), rádio
tecnologias como progresso da comunicação numa espécie de (1990), televisão (1930), informática (1940) , redes (1980) .
continuidade que favorece o setor industrial, aquele que mais Todos sonham com a compreensão. A dificuldade apa-
cresce no mundo . A segunda concepção, minoritária, na qual rece rapidamente . Até para as crianças. Com a comunicação
este livro se inscreve, parte da dimensão antropológica da co- sempre vem a questão do outro, que é mais complicada tanto
municaçáo e privilegia os processos políticos necessários para em nível de experiência individual quanto coletiva, apesar da
evitar que o horizonte da incomunicação entre os indivíduos onipresença das tecnologias, das suas performances e da liber-

20 21
dade dos indivíduos. Tudo deveria andar mais rápido. Tudo faz uso disso diariamente em todas as profissões e em todos
anda cada vez mais lentamente. Basta ver o tempo que passa- os níveis hierárquicos. Em todas as idades. Quem não quer
mos tentando nos compreender apesar da profusão de tecno- agradar> Mas ninguém quer reconhecer isso. Como se a vida
logias interativas e sofisticadas à disposição. O diabo da alte- não fosse nada além de racionalidade e seriedade, sem emo-
ridade infiltra-se em todas as trocas comunicativas. O "outro" ção. Que programa! A desvalorização constame da "com" é um
sou eu, ele, ela, cada um. Ou, em outras palavras, a incomum·- estranho processo embora todos nós corramos atrás dela sem
caçáo constitui o horizonte da comunicação. A incomunicação, jamais admitir. É mais fácil diabolizar a "com" do que cons-
tão comum entre gerações, é uma espécie de medfora da inco- tatar que ela é frequentemente a porta de entrada da comuni-
municação em geral. Reviravolta total em relação ao esquema cação. Assim, ela é tratada como bode expiatório das batalhas
político e cultural que comandou a dupla revolução da infor- da comunicação que perdemos. Tem mais: a "com" é criticada
mação e da comunicação desde o século XVI. A aldeia global é por suas estratégias de sedução e de manipulação. Mas quem
uma realidade tecnológica, mas não social, cultural e política. não se serviu na vida tanto de uma como da outra? Maravi-
Só foi possível, de resto, descobrir os limites da comuni- lhosa hipocrisia que permite mais uma vez encobrir o fato de
cação depois do rriunfo da informação simbolizado pela inter- que nem sempre é muito fácil manipular e seduzir o outro.
net. É essa descoberta da incomunicação que obriga a repensar Daí o interesse e o fascínio pelos progressos tecnológicos.
a comunicação e faz disso um dos desafios políticos funda- Aí, ao menos, há menos ambiguidade e mais racionalidade.
mentais do começo do século XXI. Como conviver pacifica- Mesmo se na ponta das redes, das tecnologias, não há outras
mente num universo onde todo mundo vê tudo e sabe tudo e onde redes, mas homens e sociedades . Com a tecnologia, tudo se
as diferenças sdo mais visíveis e menos negociáveis? Disso resulta simplifica, com os homens e as sociedades, tudo se complica.
a necessidade de passar da ideia de compartilhamento à de ne- Na realidade, a comunicação envolve rrés dimensões. A mais visí-
gociação e coabiração, tomando ainda mais evidente o vínculo vel e agradável é a tecnológica. A mais complicada, mais lenta
entre comunicação e democracia. O que é realmente a demo- para decifrar e operar, é a dimensão cultural. A mais promete-
cracia senão a negociação e a convivência pacífica de pontos de dora, com a multiplicação dos contatos e das tecnologias, é a
vista frequentemente antagônicos? É por isso que o conceito dimensão econômica.
de comunicação só podia se impor como grande conceito hu- Pode-se, então, dizer que os horizontes da comunicação
manista e democrático depois de rodas as revoluções voltadas são o compartilhamento, a convicção, a sedução, a influência,
para a consagração da liberdade e da igualdade dos indivíduos. a convivência e a incomunicação. Se os sistemas técnicos estão
Esse é um modelo bem distante desse da comunicação em simonia, os homens e as sociedades só raramente o estão. É
reduzida à "com" 1? O que é a "com"? A vontade de agradar, por isso que o progresso técnico é, ao mesmo tempo, o melhor
de seduzir, de convencer. Finalmente é quase a mesma coisa e o pior da comunicação. Ele possibilitou sair da comunicação
que a comunicação, com o mesmo desejo de êxito. Cada um fechada e multiplicar as mensagens e os contatos, mas não au-
mentou a comunicação proporcionalmente à performance das
' Diminutivo usado para designar a comunicação social como as Relaçóes ferramentas . Tornou mais evidentes as marcas da incomunica-
Públicas eu markning (NT).

22
çáo. Terrível reviravolta cujo impacto não se quer admitir. Nos integra o mesmo ideal democrático. Tanto na "com" quanto
últimos 20 anos o mundo inteiro engoliu o mito da internet, na "informação people" ainda se está no mesmo referencial. É
convencido de que 6,5 bilhões de mcernautas levariam a uma necessário, portanto, tomar em conjunto as dimensões fun-
"a}têntica" comunicaçáo. cionais e normativas da informaçáo e da comunicação. São
A comunicaçáo resulta, na sua forma contemporânea, quatro dimensões que contribuem somadas para o laço social.
desta tripla revolução: liberdades humanas, modelos demo- Essa também é a razão pela qual a informação e a co-
cráticos e progressos tecnológicos. Estamos atualmente numa municação, para além das suas ambiguidades, participam da
encruzilhada. Duas ideologias ameaçam a comunicação: o in- grande discussão sobre a "sociedade individualista de massa",
dividualismo, ou seja, a reduçáo da comunicaçáo à expressáo em que cada um busca simultaneamente esses dois valores
e à interatividade, e o comunitarismo, isto é, a marginalizaçáo conuaditórios: a liberdade individual e igualdade entre todos.
da questão da alteridade e a possibilidade do encerramento em O que liga uns aos outros nas sociedades abertas em que to-
espaços virtuais. das as diferenças sáo toleradas ou reivindicadas e afirmadas?
Como conciliar liberdade e igualdade, individualismo e iden-
III Comunicar é conviver tidade coletiva? A comunicação é um problema de convivência e
de Laço social, característica de uma sociedade de movimento, de
A dificuldade vem também do fato de que a informação interatividade, de velocidade, de liberdade e de igualdade. Esta
e a comunicação possuem duas facetas mais ou menos contra- teoria da comunicaçáo apresentada aqui, centrada na convi-
ditórias, mas indissociáveis. Uma dimensão normativa, que, vência, quer contribuir para renovar as condições teóricas e
no caso da informação, remete à ideia de verdade e, no da práticas desse Laço social, tão frágil nas sociedades abertas, ex-
comunicação, à de compartilhamento. E uma dimensão fim- postas aos grandes ventos de uma globalização sem bússola.
áonal, muito mais instrumental. ligada ao fato de que nas so- Ontem, o laço social dizia respeito às relações entre
ciedades atuais, extremamente complexas, não é possível viver estruturas sociais e culturais relativamente estáveis. Hoje, é
sem informação, contatos e interações. Repensar as relações quase o oposto, tudo estando em interação. Os processos de
entre informação e comunicação significa tomar esses dois informaçáo e de comunicaçáo contribuem para estruturar, por
conceitos nas suas duas acepções, sem discriminação. Pois sáo meio das múlciplas interações, um novo espaço público base-
essas dimensões non;nativas que fixam o horizonte: a verdade, ado num vínculo social mais dinâmico e frágil. A valorização
para a informação, o compartilhamento, para a comunicação. do conceito de convivência ajuda a renovar a reflexão sobre a
Em outras palavras, da informação mais pueril à comunicação natureza do laço social nas sociedades contemporâneas, nas
mais comercial, o horizonte é o mesmo: a busca do outro e da quais as interações entre os protagonistas sáo mais numerosas
relação. Essa é a prova de que os indivíduos não esquecem ja- e contraditórias. Privilegiar o entendimenro na comunicação
mais os ideais de intercompreensáo que subsistem por trás das e no funcionamento do espaço público significa, portanto, re-
receitas fáceis e das caricaturas. A ideologia da informação e da fletir cambém sobre a necessidade de administrar, ao mesmo
comunicação, apesar de rodos os seus desvios e deformações, tempo , as diferenças inerentes às nossas sociedades e a ma-

24 25
nurenção de um princípio de unidade, tend o em perspectiva compartilhamento de valores comuns e mais a ideia de convi-
a renovação dos aspectos contemporâneos do laço social. De vência atrelada à necessidade de conciliar lógicas antagônicas.
resto, o que é o laço social senão este milagre: manter ligados, Ontem, comunicar era compartilhar e reunir, ou unir. Hoje, é
numa sociedade. indivíduos, grupos, comunidades e classes mais conviver e administrar descontinuidades. Cada um des-
sociais que tudo separa? ses conceitos, informação e comunicação, absorve uma pane
Em suma, comunicação, convivência e laço social cons- do referencial do outro.
tituem a modernidade e outra visão de espaço-tempo . A co- A revolução da informação e da comunicação, no senti-
municação bem reflete as aspirações contraditórias das nossas do expresso antes , sacode, então, todas as relações entre comu-
sociedades atuais nas quais se adere simultaneamente a valores nicação , cultura e conhecimento, conrribuindo para que sejam
opostos: liberdade e igualdade, abertura e identidade, globali- repensadas as condições do laço social contemporâneo. É por
zação e localismo. O conceito normativo de convivência é bas- isso que uma teoria da comunicação é finalmente inseparável
tante emblemático das características da sociedade contempo- de uma visão ou até mesmo de uma teoria da sociedade. O
rânea. A convivência é o slmboio de uma perspectiva normativa paradoxo, hoje, é que nunca foi canto questão de comunica-
voltada para manter associados valores e dimensões contraditórios. ção e de interatividade, a ponto de se querer fazer disso um
Tem mais. Os vínculos complicados entre informação modelo de sociedade, num momento em que simultaneamen-
e comunicação são também acompanhados por uma duplica- te nunca se ceve cantos muros físicos entre os povos e de in-
ção de sentido. Na tradição política e intelectual, a informa- compreensão entre ricos e pobres, velhos e jovens, imigrantes
ção remete à ideia de algo que aparece e produz, em maior e nativos, empanturrados de tecnologias e sem-tecnologias ...
ou menor grau, uma ruptura. Isso vale para a imprensa, mas
também, em geral, para o restante. A infor~açãà tem a ver
com o aconrecimento,ou com o dado novo que perturba uma
ordem vigente: Essa é a sua força. A comunicação é associa-
da à ideia de vínculo, de compartilhamento, de "comunhão".
Hoje, com os sistemas de informação generalizados, há uma
inversão de sentido, o que é evidente na ip.t~rnet. A infa_rma-
ç-áo passou a ser o que estabelece vínculo, tendo a sociedade
da informação como horizonte. Ou seja, o sentido oposto ao
da informação como ruptura. Quando cudo é signo e intera-
ção, a informaç-áo é o vlnculo. Basta ver como as novas gera-
ções fazem da internet a sua fonte absoluta de informação e
de comunicação, legitimando-a e confiando cegamente nela.
A mesma inversã.o de sentido está acontecendo com a
comunicaç-áo. Vigora menos acualmenre o sentido clássico de

26 27
CA.ríruw II

Tecnologias: entre emancipação e ideologia

Qual o desafio deste livro? Repensar o estatuto da comu-


nicação sob o signo das três rupturas acontecidas em 50 anos: a
• vitória da informação; o triunfo das tecnologias, com a integração
das telecomunicações, da informática e do audiovisual;~ a gl~_b_a-
liz.ação, que acelera os fenômenos citados antes. Qual o problema?
Tirar a informação e a comunicação do império da tecnologia,
que acaba por frear a reflexão sobre a comunicação na medida em
que a performance das ferramentas apaga ou encobre os fracassos
inevitáveis da comunicação humana e social. Pensar a passagem
da informação à comunicação significa "destecnologizar" a comu-
nicação, recolocando a técnica no seu devido lugar.

I Da técnica à ideologia tecnicista

Em que consiste a ideologia tecnicista da comunicação?


Em transferir para as ferramentas o trabalho de resolver pro-
blemas sociais para os quais elas não estão habilitadas. É crer
que quanto mais tecnologia houver - amanhã teremos, por
exemplo, 6,5 bilhões de internautas ·-, mais os indivíduos se
compreenderão. Significa subordinar o progresso da comuni-
cação humana e social ao progresso das tecnologias. É também
atribuir às tecnologias o poder de mudar estruturalmente o

29
modelo de sociedade. Por fi.m, significa confundir o sentido Qual o significado das tecnologias da comunicação'
das palavras falando, por exern pio, de civilização e de socie- Comunicação sem incomunicação. Uma linha de continuidade
dade digira!, sociedade da informação, democracia digital ou entre informação e comunicação, justamente onde a comuni-
sociedade em rede. Palavras que remetem à ideia de uma tec- cação humana costuma fracassar. Triunfo da ideologia da trans-
nologia rodo-poderosa, pois é ela que dá nome à sociedade missão confundindo a rapidez e o desempenho das ferramen-
na qual é aplicada. É confundir duas realidades de natureza tas com a incerteza e a complexidade da comunicação entre os
diferentes, a realidade técnica e a sociedade, fazendo dos dis- homens. Repensar as relações entre informação e comunicação
positivos técnicos o centro de um modelo de sociedade. Ainda implica, ames de tudo, "destecnologizar" a questão da comu-
mais que eles se referem ao essencial da atividade humana: a nicação e lembrar que a tecnologia indiscutivelmente facilita a
comunicação. Ninguém fala em sociedade da energia nuclear. comunicação humana, basta olhar um século para trás, mas isso
A ideologia tecnicista não é uma ideologia entre outras. já não é suficiente. A midiatizaçáo da transmissão e a interação
Cerro, não existe sociedade sem ideologia, ou sem laços que nã; produzem necessariamente um sistema de comunicação. Sim,
unifiquem os grupos sociais por meio da política, da religião as tecnologias progrediram consideravelmente permitindo me-
ou da cultura, evoluindo com o tempo, recombinando-se, mas lhorar as comunicações sociais. Não, elas nunca serão suficien-
sempre indispensáveis à vida social. A crtrica aqui diz respei- tes para resolver as aporias existenciais da comunicação huma-
to à ideologia tecnicista, que consiste em atribuir um poder na ou, então, estamos caminhando para "solidões interativas".
normativo, e excessivo às tecnologias de comunicação, trans- Um sintoma da nossa dependência em relação às tecno-
formadas em principal fator de organização e de sentido na logias da comunicação? É só observar nosso estado psicológico
sociedade. De resto, a confusão vem também do vocabulário: ·, quando ficamos longe do computador ou do telefone celular
tecnologia de comunicação une tecnologia, cujos progressos por mais de duas horas. Parece inconcebível ... Muitos de nós
são de faro grandes, com comunicação, cujos avanços não são ficam doentes. Essa dependência diz mais do que qualquer dis-
da mesma ordem. O progresso das tecnologias, infelizmente, curso. Mas como fazíamos antes, menos de 30 anos atrás? E
não basta para criar o progresso da comunicação entre os ho- que fazem os mais de três bilhões de indivíduos que ainda hoje
mens e as sociedades. Os homens, imersos num universo de não possuem essas tecnologias? Qual o valor desse mundo em
tecnologias, estão conseguindo comunicar-se melhor, no sen- tempo real quando mais de um bilhão de indivíduos passam
tido da compreensão mútua, do que há 50 anos? O sonho de fome? É um paradoxo ainda mais surpreendente na medida
que o avanço tecnológico levará a uma comunicação melhor em que essa dependência marca a nossa aceitação da traçabi-
persiste, sendo constantemente empurrado para frente . O novo lidade enquanto a emancipação consistiu, durante séculos, na
símbolo disso, talvez mais do que o computador, é o "black libertação de rodas as dependências externas (religiosas, po-
berry". Ter todo mundo na ponta dos dedos, poder fazer tudo, líticas ... ). As tecnologias da comunicação contribuíram para
receber tudo, enviar tudo, isso cria uma grande sensação de esse movimento de emancipação. É paradoxal que os indiví-
poder e de segurança. Como a comunicação poderia fracassar duos se submetam, voluntariamente, às tecnologias que, antes,
com uma ferramenta tão poderosa e com tanta interatividade? deram-lhe liberdade, justamente quando estão livres de roda

30 31
autoridade. São muitas as "servidões voluntárias". O vínculo peita de alienar, mas nada se diz q uan ro ao mesmo tempo
histórico entre emancipação e tecnologia de comunicação é passado na frente de um computador . Dá-se quase o opos-
tão forre que, no momenro, a grande maioria dos "usuários'' to. Vê-se nisso um sinal de certa inteligência e abertura de
não vê a nova situação de dependência em que nos enconcra- espírito. Alguns sonham até mesmo que as crianças usem
mos . Há apenas um passo entre os instrumento s de libertação computador desde o jardim da infância. Por que falta mais
e as ferramentas de "traçabilidade". Um passo dado em uma disranciame nto' Por que as crises e ameaças ainda não são
geração , sem reação alguma até agora ... A tecnologia devoro u percebidas?
os seus filhos. Adoramos nela a velocidade e as performances, Os séculos XIX e XX foram decisivos para a li-
a interatividad e e a sensação de liberdade, sem perceber a de- berdade de informação , para a comunicaçã o e para as
pendência resultante ... tecnologias. O fim do século XX produziu a confusão-
Interatividade, palavra mágica que simboliza uma mis- entre progresso tecnológico e progresso da comunicaçã o.
tura de liberdade e de inteligência. A dependência é tanta que Provavelme nte neste começo de século é que se poderá
liberdade passa a ser estar multiconecta do. A nec, no entanto, é separar os milagres tecnológico s das aporias da comuni-
uma rede, uma malha fina, o inverso da liberdade que simboli- cação. Até hoje, as tecnologias de comunicaçã o sempre
za. Até agora, só se vê liberdade na internet, não o controle. É acompanha ram os movimento s de emancipaçã Ó. Hoje, a
quase um novo habeas corpus, uma chance de emancipação, de problemátic a muda, mas ainda não se quer ver isso. Os
circulação. Com a ideologia tecnicisca passamos para o outro mais dependentes só falam da internet como 'ferramenta".
lado do espelho. Tudo se individualiza . Não há problemática Ao mesmo tempo, apostam que essa ferramenta vai "re-
coletiva. "Fazer o que eu quero como eu quero" torna-se sinô- volucionar" e "libertar" as relações humanas e sociais.
nimo de "liberdade digital", liberdade garantida pelo "acesso Há, ao mesmo tempo, uma pseudobana lização e uma
livre" e ampliada pela "interativida de cocal". É uma postura hipervaloriz ação cujo resultado é uma espécie de utopia-
recente mesmo se é possível encontrar pontos em comum com ideologia , que frequentem ente substitui as ideologias
as esperanças extraordinárias em relação à televisão há 50 anos políticas, atualmente em crise, correspond endo ao reino
e ao rádio nos anos 1930. do indivíduo, aos sonhos de outros modelos de relações
A ideologia tecnicista aparece também no esqueci- sociais e também a um meio de domesticaçã o dessa glo-
mento das revoluções tecnológicas anteriores. As compara- balização tão incerta. A força dessa utopia-ideo logia é
ções inexistem e tudo parece começar hoje. Nada de histó- que ela revitaliza os sonhos de solidariedad e numa escala
ria, nada de comparaçõe s . Essa postura não suporta críticas planetária. A tecnologia permite retomar a continuidad e
e exige uma adesão total. Com a ideologia tecnicista, assim no ponto em que a comunicaçã o revela a descontinui da-
como ocorre com outras ideologias, não há escolha. É rudo de e a incomunica ção . No momento, os fatos continuam
ou nada. Qualquer crítica é considerada tecnofobia ou con- ignorados: riscos da "craçabilida de", ameaças às liberda-
servadorism o. Um exemplo? Sempre se crítica o número des, perspectiva de "solidões interativas" . Nada parece
de horas que uma criança passa na frente da televisão, sus- abalar a hegemonia do paradigma tecnicista.

32 33
II Internet, entre utopia e ideologia rernec e seus desafios (especialmente em internet, e depois?, de
1999 2). Quero retomar aqui apenas a questão do ponto de
Ames d e tudo, é preciso discinguir o papel da incemet nas vista das relações entre informação e comunicação. O sucesso
ditaduras e nas democracias. Nas ditaduras, junto com rádio , da internei , especialmente na juventude, é inegável, mesmo
televisão, jornais e relefone celular, a internet é na maioria das se a verdadeira ruptura é o telefone celular, seja qual for a ex-
vezes uma ferramenta indispensável para a liberdade de informa- tensão dos seus serviços, pois ele é, ames de rudo, o símbolo
ção e crítica da oposição. Vale lembrar, porém, que a luta pela da comunicação humana a dois pela voz. O verdadeiro espaço
liberdade não começou com a internet. Nos últimos 150 anos, privado é o do celular através do qual tudo se pode dizer, es-
foram rnuit0s os combates. Yale lembrar também que a ferramen- pecialmente do ponto de vista afetivo. O mais importante na
ta náo basta para criar a função. Se a Anistia Internacional e as vida privada ou pública passa cada vez menos pela internet.
ONGs não tiverem militantes, não será a tecnologia que criará Ontem, receber e-mails era um privilégio, quase um símbolo
a consciência crítica e a ação política. A internet está adaptada à de poder. Hoje, é um fardo. Todo mundo passa o tempo en-
globalização se não tiver de ser a única ferramenta das lutas pela viando e-mails e perde um tempo louco baixando, fazendo a
emancipação. Ainda mais que os poderes autoritários e ditato- triagem e respondendo. A informação acessível tornou-se uma
riais também sabem se servir dela para acentuar a repressão e fazer tirania. Para trabalhar seriamente, é preciso se desligar dessa
campanhas de desinformação e de manipulação. Em resumo , a facilidade tecnológica. O sonho, às vezes, vira p~sadelo, ainda
internet, por mais importante que ela seja como instrumento em mais que, como rodos sabem, as informações mais importan-
favor da liberdade, não apenas não substitui as demais tecnologias tes do poder jamais são difundidas pela internet, mas pelo te-
e procedimentos, mas também não está livre de ambiguidades. lefone ou de viva voz. Em suma, a extraordinária abertura de
É necessário também destacar o papel positivo da internet nas um espaço de informações interativas pela internet não altera
diásporas pelo mundo. Essas migrações encontram na internet fundamentalme nte a relação bastante complicada dos indiví-
wna ferramenta incontestável de comunicação, sobretudo para duos com a cadeia informação-pod er-segredo-boat o. Também
as informações-serviço e informações-notícia. Mas a internet não aí a performance técnica não basta para mudar a relação do
substitui a necessidade de encontros presenciais. Ao contrário, homem com o poder e com a informação. De qualquer modo,
amplia essa necessidade. Quanto mais se pode estabelecer facil-

)
nem tudo se resume à internet. Rádio e televisão ocupam espa-
mente contatOs, mais há vontade de se ver fisicamente. Melhor. ços ainda superiores. Os dados obrigam, de resto, a relativizar
Somos seres sociais, não seres de informação. De qualquer ma- e a comparar: 4,5 bilhóes de aparelhos de rádio, 3,5 bilhões
neira, as considerações seguintes não dizem respeito ao papel da de televisões, 2,5 bilhões de telefones celulares, 1,8 bilhões de
internet nas ditaduras, mas nas democracias pluralistas. computadores.
A internet ilustra a sedução que emana dessa mistura É preciso também lembrar que a convergência técnica
entre utopia e ideologia. Eu já consagrei muitos textos à in - entre informação, telecomunicaçó es e audiovisual não significa

' P ublicad u no Bras il pela editora Sulina (NT) .


34 35
o fim das diferenças de identidade e de estilo. O suporte não é o e pelo econom1c1smo hegemônico na globalização. Trata-se,
conteúdo. Ou, então , o cinema reria desaparecido há 50 anos por em todo caso, de um contrapoder que permite a expressão
causa da televisão. A relação de forças entre esses três gigantes e a tomada da palavra sem regulamentos nem hierarquias.
ainda provocará fusóes industriais, financeiras, tecnológicas, A sua força está em não ser uma utopia política no sen-
mas nem por isso todos os serviços e aplicações vão se mistu- tido clássico, com um pensamento global de edificação de uma
rar. Ao contrário. Quanto mais a tecnologia racionaliza e reúne nova sociedade com suas hierarquias e seus territórios. É uma
voz, imagem, texto e som, mais as diferenças de ordem cultural soma de pequenas combinaçóes, de iniciativas e de liberdades
dizem respeito à natureza da atividade, ou seja, ao que é mais arrancadas à geografia e às fronteiras, aceitando a globaliza-
importante. Esse será o combate do depois de amanhã. Hoje , ção como espaço de referência sem muita resistência, tentando
a batalha técnica fascina com sua multiplicidade das aplica- agir pragmaticamente. É aí que nos encontramos de fato no
ções. Amanhã, a disputa será pela diversificação dos conteúdos. espaço contemporâneo, o mesmo acontecendo com a mídia,
Quais são os elementos de sedução da internet do pon- que, noutro registro, também indispensável, desempenha um
to de vista das relaçóes entre informação e comunicação? As papel de laço social e simultaneamente de janela aberta para
palavras que vêm à mente são poderosas e exatas: liberdade, o mundo (cf O Elogio do grande público e Pensar a comunica-
mobilidade, flexibilidade, velocidade, interatividade, inicia- ção). Contrariamente ao estereótipo tenaz a internet e a tele-
tiva, participação, inovação, juvent~de, confiança, poder de visão são, desse ponto de vista, complementares. A internet
reação, contrapoder, emancipação, globalização. Três palavras permite sair dos "territórios", enquanto a televisão os garante.
resumem o charme da internet: velocidade-liberdade-intera- De qualquer maneira, a_internet é interessante pelos pa-
tividade. É uma ruptura cultural e de geração em relação aos radoxos que levanta. Por um lado, revaloriza a prática da escri-
meios de massa. O reino do indivíduo e a vitória da infor- ta; por outro lado, desvaloriza essa prática, pois tudo é escriro
mação que se vai buscar onde se quer e quando se quer. E e difundido sem seleção nem hierarquia. Funciona, portanto,
a sensação de ser inteligente, competente, conectado, capaz valorizando e desvalorizando o texto. Te1J1-Se uma situação es-
de circular sem precisar pedir autorização. Numa palavra, ter tranha de mistura de gêneros: da informação-serviço às con-
confiança em si. Tudo isso é verdade. Com a internet, se tem fidências, da vontade de se exprimir aos depoimentos. Outro
a impressão de sair das instituições e das suas limitações. Tudo paradoxo: cada um é fascinado pelo volume de informações
parece possível. Abre-se uma nova fronteira. O indivíduo e a acessíveis, mas ninguém questiona o que é feiro socialmente
informação são soberanos e para roda uma geração isso tem disso através da comunicação.
valor de "utopia política". É como se os poderes e as estruturas Parece até um milagre da internet: a única tecnologia
fossem atravessados e novas solidariedades criadas. Tem-se a por mei? da qual a informação produziria sozinha, sem difi-
sensação de utilizar com ousadia o humor e o distanciamen- culdade nem resistência, um vínculo direto entre informação
to, saindo de um espaço oficial controlado, inventando-se um e ação, expressão e autoridade. Um dispositivo que simultane-
novo laço convivia! e uma nova forma de utopia para gera- amente permitiria a expressão, a interatividade, a demanda, a
çóes que foram privadas de uropias pelo fim das ideologias informação-serviço, a crítica e a autoridade, ou seja, informa-

36 37
ção e comunic ação. Se os buscado res possibil itam uma ampla
"redes sociais" diz [Udo. Ê o social, ou seja, o humano , que im-
procura , só o fazem a partir da lógica das palavras-chave gue
porta. Como se encontra r mais facilmente? Há um sonho de
desvalor izam critérios mais complex os ligados aos cruzame n-
igualdad e evidente nessa lógica do "peer ro peer": somos rodos
tos de campos de conheci mento. O acesso imediarn a todas
iguais e queremo s nos encontra r. Da web aos blogs, do rwirter
as biblíorec as digitais não simplifica a relação com o conheci-
às redes , é sempre a busca de ouua forma de comunic ação
mento. Como proteger a liberdad e intelectu al e a criação nesse
encre os homens , mais livre e autêntic a, que predomi na. Esse
universo onde tudo está acessível e no qual a distinção entre
é cambém , cabe salientar, um remédio , contra a solidão. Essa
produçã o e utilização é apagada, sendo que a reprodu tibilida-
solidão não para de crescer e é terrível no meio urbano onde
de técnica instantâ nea impede qualque r medida econômica>
rodas as estrutur as sociais e familiares explodir am gerando,
Como ficam os lugares e os espaços de legitima ção quando
com razão, a necessidade de se construi r novos laços comuni-
rodo mundo pode intervir? A própria regulam entação, que
tários. A internet é um meio de luta contra essa nova realida-
é indispen sável, torna-se difícil de organiza r, o que se viu na
de de um mundo de pessoas livres, mas sós. Traca-se de uma
França com o projeto de lei HADO PP, ilustrati vo da estreita
ferrame nta adequad a para gerações mais generosa s do que se
via entre liberdad e de expressão, público /privado e proteção ao
costuma crer e que, rnb o céu atualme nte baixo das utopias
direito autoral. Como viver num universo , ao mesmo tempo, 1,
políticas, buscam outras relações, com humor e ironia, ten-
saturado de informa ções e de memóri a, que deixa pouco espa-
tando navegar em meio às armadilh as e impasse s da História.
ço para os projetos de ação contemp orâneos ?
Claro que o essencial da internet não tem a ver com
Se a internet é o símbolo das tecnolog ias da informa ção,
essa busca de comunic ação, mas com os problem as gerados
o que lhe dá sentido é a procura de uma outra comunic ação:
por essa lucracividade enorme do reino da informação-serviço.
os internau tas buscam, antes de tudo, outras relações humana s
Ainda assim, não se deve subestim ar essa busca de liberdade,
e novas solidarie dades. Mais do que nunca, o horizont e é o
de igualdad e e de comunic ação que agita os jovens internau -
outro. Há, certo, um oceano de informa ções, mas uma questão
tas e represen ta o fim de tantas solidóes. O individu alismo da
permane ce: como entrar mais fácil, livre e autentic amente em
internec simboliz a também a procura de uma forma de co-
relação com alguém? A internet , sistema soberan o de informa -
lecivo. Oscilam os constan temente entre a utopia e a ilusão
ção, não está livre da eterna questão da comunic ação humana :
tecnológ ica. O tempo, os fracassos e os sucessos farão a tria-
tem alguém em algum lugar que goste de mim? As redes sociais
gem entre serviço, mercado , válvula de escape, emancip ação e
como faceboo k não passam de versões modern as do Caçador
utopia política. Para isso é fundam ental que o mundo "adul-
francês', com todas as buscas do laço afetivo e social. A palavra
to" não sucumb a ao tecnicism o só para ter um ar moderno
.
As ilusões têm a dimensã o das façanhas e das utopias
3
Projeto, depois lei Hadop1, que regulamenta na França, o compar- encarna das pela internet. O maior espaço de liberdade cor-
tilhamento de arquivos na internet e protege o direito autoral (NT).
4
Revista mensal francesa de caça e pesca famosa também por seus clas-
depois da Primeira Guerra Mundial, quando morreu um contingente
sificados amorosos ou anúncios matrimoniais. Essa tradição começou
considerável de homens e as mulheres tiveramdeprocurarmarido (N!).
38
39
responde ao maior espaço para as grandes perversões finan-
pos certamente não se deixarão encurralar nessa sociografia
ceiras, criminosas, mafiosas e pornográficas, resultando na
comportamental, mas o risco existe. Por outro lado, o que
maior fonte de boaros e de manipulações, pois boa parte das
fazemos do tempo ganho com internet? A velocidade da in-
informações não tem conErmação. Por enquanto o faroesre
formação, inseparável de certa vertigem de poder, torna-se
seduz mai~ .do que a ideia de regulamentação política, que
um meio de fugir da alteridade, que exige tempo. O tempo é
acabará por se impor como aconteceu em relação à impren-
o principal inimigo da internet. "Zapeamos", eliminando di-
sa, ao rádio e à televisão. Quando os escândalos se tornarem
ferenças. De qualquer maneira, os conhecimentos, na velo-
fones demais, a internet não poderá continuar fora da lei e
cidade da informação, não avançam, não são trocados, não
deverá sair da ideologia da desregulamentação, esse clone da
se integram. Na verdade, eles são fundamentais para resistir
ideológica tecnicisca. Curiosamente, mesmo com a crise atual
ao "zapping" congnírivo e para dar sentido a esse oceano de
do capitalismo financeiro, ainda não se fala da indispensável
in[~rm~5ões. A velocidade e a horizontalidade podem ser
necessidade de regulamentar a internet. A "traçabilidade" ge-
interessantes. Por que não? Mas até que ponto em relação à
neralizada, encoberta pela sensação de liberdade e de poder consistência da realidade, à lentidão do conhecimento afir-
total, pode abalar os fundamentos das liberdades privadas e mado e à incompreensão do mundo>
públicas conquistadas com dificuldade em três séculos de ba-
É preciso respeitar essa fronteira política formada por
ralhas políticas. Mas nada surte. efeito. A lei é percebida como
tantos séculos de baralhas entre espaço público e espaço pri-
libenicida, quando, na verdade, a ambição da lei, nas demo-
vado. Tornar público tudo o que nos diz respeito e aos outros
cracias, não é de sufocar as liberdades, mas de protegê-las. não é um avanço. Nem rudo é transparente e imediatamente
"Vou conferir na internet''. Essa frase onipresente compreensível.
traduz uma imensa ingenuidade em relação à verdade. Nas
A questão da experiência permanece: é fundamen-
ruas, não passa um minuto sem que a palavra internet seja tal sair das redes tecnológicas para experimentar novamente
pronunciada. Rapidamente se vai da sensação de liberdade a "realidade real", humana, social e afetiva. Cuidado com os
individua! à realidade da dependência e da "traçabilídade" . esquizofrênicos das redes sociais e com as solidóes interativas.
Esta, de resto, é muito mais perniciosa que a do contro- As "amizades virtuais" precisam reencontrar a realidade, pois
le dos arquivos. Hoje e amanhã, graças especialmente aos é nelas que, desligadas as máquinas, está o grande desafio. Te-
chips RFID, será possível saber muito mais sobre os com- mos, portanto, de voltar à realidade, não viver apenas na tela.
portamentos dos indivíduos. Essa "craçabilidade" passará Agrada na internet a abundância de informações. O
dos nomes e dos cadastros, o que já é polêmico (ver a ba- usuário sente-se todo-poderoso. Mas é preciso tomar cuidado
talha em torno de EDVIGE'), para dados relativos à per- com a "má informação" e com a "infobesidade", essa mistura
sonalidade e ao comportamento. Os indivíduos e os gru- indiscriminada do presente e do passado. Entre velocidade e
onipresença da memória, o que resta para o presente e seus
'Programa insutuído em 2008 pelo governo francês de "Exploraçào
projetos? Como evitar o fechamento das comunidades mun-
Documental e Valonzaçào de Informação Geral" (EDCJGE), desti-
'nado a fichar todas as pessoas com mais de 13 anos (NT) . diais incapazes de se abrir e de se tolerar? A desconfiança em

40
41
relação à alreridade e o confinam ento num comunicarismo com a tentação de sair do espaço e do tempo , assim como de
mundial são compatíveis com a generalização dos sistemas de livrar-se do outro, do diferente, em busca da alma gêmea
informaç ão. Comunic ar-se com os semelhan tes em qualquer numa espécie de não-realidade mais ou menos indiferen-
parte do mundo não facilita naturalm ente a convivência com te aos desafios sociopolíticos que a própria internet produz.
o diferente , o estrangeiro, o ímigranre ou simplesm ente o ou- Vejamos o que poderia ser a maneira ruim de sair da
tro que encontra mos na porrn do edifício . História: a inrernet como exemplo do pior da ideologia tec-
A tolerância em relação ao ourro, fundame nto de nicisra, ou seja, a submissão à ferramen ta, a indiferença em
toda comuníca çáo normativa, rem pouca coisa a ver com a relação ao receptor como figura de alteridade , a ilusão do fim
velocidad e das trocas de informaç ão. As relações humanas do tempo, a redução das trocas a contatos virtuais. É um ce-
e sociais sáo muito mais complexas do que o facebook ou nário possível, mas não inexorável, pois não se escreve a his-
a navegação na internet. Como ficam o silêncio e o tempo tória por antecipação. As elites e os políticos precisam admitir
de reflexão com tantos blogs, twitters e todos esses fluxos? suas pesadas responsabilidades nisso tudo: o comporta mento
Tudo pode ser interativo? Cercame nte náo é o miro da "in- maria-vai-com-as-outras para ter o ar moderno. Os cientistas
ternet dos objetos", com a intervenç ão do RFID, que sim- têm uma parte considerável nessa responsab ilidade na medida
plificará o problema . Falar de "comunic ação entre objetos" é em que poderiam ter sido os primeiros a dizer: "O rei está nu".
absurdo ou supõe colocar uma cruz em cima da comunica - Quiseram , no entanto, ser "moderno s". Os políticos, também
ção humana. Já tiranizados pelos incontáve is e-mails diários desejosos de parecer moderno s, seguiram pelo mesmo cami-
os indivíduo s, à beira do precipício da comunica ção, ainda nho, chegando paradoxalmente quase a imaginar que pode-
rerão de se conectar com chips interativo s de objetos inani- riam manter contam mais fácil com os cidadãos por meio de
mados ... Seria um super-hu manismo . O que se vai ainda in- blogs do que através da comunica ção direta: a interatividade
ventar em tenhos de antropom orfismo das tecnologias e rei- como substituto da comunicação humana difícil. Imaginar am
ficação da comunica ção humana? A web 3.0 dos objeros será que os "gadgets" da democracia eletrônica dariam um novo
o cúmulo do refinamento tecnológico? Não, tudo isso é sim- impulso à participação política dos cidadãos , esquecendo que
plesment e a perda ridícula de qualquer sentido das palavras. a política nunca pode andar na mesma velocidade das notÍ-
Precisamos sair do ultrapres ente e inserir as tecnolo- cias. A incernet não poderá ser o novo mot0r da democracia,
gias da comunica ção na história e nas suas utopias. Devemos pois a questão do poder não se resume à informaç ão, mas diz
lembrar que a vida não começa com a incernet e que bilhões respeito a valores e à comunica ção entre seres humanos . En-
de indivíduo s vivem, pensam, criam e imaginam , ainda hoje, fim, último mito já amplame nte explorado com o rádio e com
sem ela. Temos de relativizar a contribui ção de uma tecno- a relevisáo: a inrerner como condição para a democracia, o
logia que nos encerra numa história sem história afogando- saber e a cultura. Aposta-se tudo na internet como fator de
nos num oceano de informações sincrônicas. A internet é o democrat ização da cultura e do saber, esquecendo-se de que
sonho e a ilusão de um espaço tecnológico em que o tem- ambos dependem de experiências humanas e sociais que nada
po para por ir rápido demais. O inrernaur a é um indivíduo têm a ver com o acesso de tod9s a rodos instantan eamente.

42 43
Em suma, por que as elites, especialmente os cientisras, ideologia recnicisra, muita vezes identificada com um "novo
que deveriam ter sido os primeiros a relativizar a "revolução humanismo". Muicos são os que de boa fé sonham com rela-
da internet", tornaram-se tão conformistas e não mantiveram ções humanas e sociais funcionando com a mesma eficiência
sequer um distanciamento humorístico em relação ao que dos modelos cibernéticos, da teoria dos sistemas e das redes.
nos tem sido apresentado como futuro radioso da humani- É preciso restabelecer a separação encre pensamento
dade? As elites poderiam ter simplesmente situado o fenôme- racional e sistemismo, tecnologia e funcionamento das re-
no no tempo, comparado e distinguido as proporções enrre lações humanas e sociedades, evitando as seduções e as ilu-
a parte de abertura, de livre-expressão e de espaço crítico e sões da ideologia cientificista e tecnicista. Esta, ainda ontem,
a "rraçabilidade", o narcisismo, a uniformização e a raciona- baseada na conquista da matéria e da natureza, imaginava
lização inerentes a um sistema tecnológico de informação. poder gerar um novo modelo de sociedade. Hoje, com os
Por que essa omissão e tanto conformismo dos pensadores? sistemas de informação e as metáforas ligadas à biologia e à
teoria dos sistemas, a ideologia cientificista e tecnicista pa-
III Sair da ideologia tecnícista rece adaptada ao funcionamento <la sociedade em rede.
O desafio teórico é sempre o mesmo: estabelecer ou não
A ideologia tecnicista manifesta-se especialmente na uma linha de continuidade entre o pensamento, os sistemas tec-
aplicação dos modelos da cibernética à sociedade na esperança nológicos e a sociedade. Ou entre a informação, a comunicação
de melhorar a sua racionalidade e o seu funcionamento . Isso é e os homens. A ideologia cientificista e tecnicista, atualmente
apenas a ponta do sistemismo, espécie de ideologia da raciona- vinculada à racionalidade da teoria dos sistemas e da complexi-
lidade que se aplica tanto à relação com a natureza quanto ao dade, imagina poder conceber um novo modelo de sociedade,
funcionamento da sociedade e das relações humanas. O siste- mais flexível e interativo que o de ontem centrado na hierarquia
mismo rornou-se de certo modo a ideologia global, reencon- e na estabilidade. O papel do pensamento crítico é sempre o
trando de maneira mais sofisticada o positivismo cientificista mesmo: lembrar a diferença de lógica no tratamento dos pro-
do século XlX. blemas pelas ciências e tecnologias e os homens e as sociedades.
Tudo se confunde. O surgimento da teoria da comple- É por isso que a teoria da comunicação defendida por
xidade no campo da teoria dos sistemas serve tanto para relan- mim, que insiste tanto nas questões da descontinuidade , da
çar inúmeras teorias do conhecimento quanro para relativizar incomunicação, da negociação e da convivência, remete para
ideologias positivistas, entre as quais a ideologia tecnicista. essa tradição do pensamento crítico que deseja manter a dife-
Essa ideologia é aplicável à informação e à comunicação, que rença de natureza entre as ciências, a sociedade e os homens.
estão no centro da experiência humana e do funcionamento O mesmo vale para a questão do conflito de Legitimidades. É
das nossas sociedades. Não se trata, portanto, de uma ideolo- preciso que tudo seja feiro para preservar as diferenças de ló-
gia "periférica", mas de algo que está no centro da moderni- gicas entre as três grandes relações com o mundo: informarão,
dade junto com o modelo da liberdade individual e a busca aráo e conhecimento. Na realidade, o conflito epistemológico
de novas relações sociais. Compreende-se assim o sucesso da é constante entre aqueles que regularmence elaboram teorias

44 45

(\ ('\
da unidade e aqueles que falam em descontinuidade. O para-
doxo é que a história das ciências recentes, interdisciplinares,
do universo, da vida, do meio ambiente, da comunicação,
' mais próxima do comunítarismo. O desafio da globalização não é
administrar a lógica comunirária, mas a heterogeneidade numa
perspectiva de convivência. A sociedade em rede remete ao indi-
fortalecem a segunda perspectiva, aquela que privilegia a des- vidualismo e ao comunitarismo, desviando-se do modelo mais
continuidade, sem que isso tenha qualquer influência sobre complicado da alteridade e da sociedade.
a corrente dominante cenrrada na unidade . O confliro, mui- Na realidade, precisamos de contextualização histórica
to amigo, entre as teorias fascin;das pela unidade e as teorias e geográfica. Temos de revalorizar os inúmeros autores que,
que aceíram a descontinuidade reaparece na questão do lu- depois da guerra de 1914-1918, foram os primeiros a ques-
gar dado pelas ciências sociais a uma teoria da comunicação. tionar o cientincismo e o tecnicismo que haviam facilitado o
As doutrinas que enfatizam a força do poder e a sua trabalho da indústria da morre. Na época, essa crítica do poder
capacidade de manipular os cidadãos não acreditam na auco- da tecnologia foi ouvida, pois a lembrança dos massacres era
nomia do receptor. As doutrinas que, ao contrário, têm uma onipresente. Eles se atreveram a dizer que a tecnologia podia
visão mais aberta e confürual do poder, valorizam as capacida- ser bárbara. Esse debate foi retomado quando da utilização da
des de resistência do receptor. bomba atômica, mas, nos últimos 40 anos, sob o novo fascínio
Voltemos à ideologia tecnicista no campo da comunicação. da tecnologia, especialmente no campo da comunicação, todo
Sair da ideologia tecnicista significa sair do tecnicismo. Lembrar o resto foi ocultado. Ou, melhor, estamos convencidos de ter
que os avanços da comunicação humana não são proporcionais enconrrado as "tecnologias boas". A reflexão crítica histórica e
aos avanços técnicos. Separar comunicação e tecnologia mesmo teórica está bloqueada, anestesiada. É preciso sair do domínio
se nos últimos 200 anos elas estiveram ligadas num mesmo mo- da tecnologia e explicitar os laços entre teorias da comunicação
vimento pela emancipação. O progresso tecnológico não é mais e teorias da sociedade. É por isso que, diga-se de passagem,
sinônimo de progresso da comunicação, assim como informar nunca será demais elogiar as escolas e os professores que, desde
não é comunicar. Essa onipresença das tecnologias engoliu todo sempre, sabem da importância, para além das informações e
o espírito crítico a tal ponto que para muitos a comunicação sem dos conhecimentos, do diálogo tão complexo entre os seres vi-
tecnologia rornou-se impossível. A palavra rede tornou-se mágica. vos. Sabem que as tecnologias, do rádio à televisão, passando,
Mas wna rede reúne, antes de tudo, pessoas com pontos de vista hoje, pelo computador, abrem novas pistas para a pedagogia e o
em comum. Essa é a sua força e a sua sedução. Seja qual for o seu ensino, mas sabem também, por experiência, que esses canais,
alcance, uma rede é, antes de tudo, comunidade, agrupamento por mais interativos e sedutores que sejam, não possuem a efi-
do mesmo. É por isso que tantas pessoas querem integrar uma cácia da imperfeita e perturbadora comunicação humana, sem
rede. Como fica, então, a problemática mais complicada da so- a qual não há transmissão de conhecimentos nem educação.
ciedade? Em sociedade, é preciso reunir não apenas aqueles que Onde está a prova da onipresença da ideologia tecnicista? Na
compartilham valores e interesses comuns, mas também aqueles, ausência de qualquer debate poütico sobre o que ela significa e so-
mais numerosos, que são diferentes. A convivência, como horizon- bre regulamentação. Esquerda e direita estão de acordo na Europa,
te da comunicação, nada tem a ver com a comunicação em rede, essa velha terra, contudo, de crítica ao tecnicismo e ao cientificismo,

46 47
para não se abrir a caixa de Pandora da comurúcaçáo e continuar a
confundir progressos tecnológicos com avanços da com~caçáo. Por
roda parte, a mesma ideologia do progresso aparece identificada com
as tecnologias. Inexiste um olhar histórico e comparativo. Os políti-
cos de todos os horizontes poderiam lembrar-se desta evidência: as CAPÍTULO III
novas tecnologias só podem favorecer o individualismo se o laço so-
cial existente não for ameaçado. AD contrário, é a anomia e a anarquia Realizações e desvios da informação
que podem resultar do crescimento das relações segmentadas e sem
vínculo social. Qualquer crise econômica, política ou religiosa revela
o primado do coletivo sobre o individual. Recolocar em perspectiva o
individualismo é essencial para relembrar a importância do laço social
e da sociedade em relação ao comurút.arismo. Não é por usar por toda A informação é a verdadeira vitória do século XX, com
parte as mesmas ferramentas que os homens pensam todas da mesma suas três dimensões : imprensa, ligada à política; serviço , ligado
maneira ou têm a mesma visão de mundo. à economia; conhecimento, ligado às indústrias do conheci -
Enfim, é preciso lembrar incessantemente que a indústria mento. É preciso também não esquecer a informação rela-
cultural, sobretudo na comunicação, caracteriza-se pela superio- cional, centro da comunicação humana, que permeia rodos
ridade da lógica da oferta e da criação sobre a lógica da procura os meios sociais e organiza nossa vida cotidiana. Em suma, a ·0•
e dos gostos. A oferta é sempre mais complicada que a deman- informações , em todos os sentidos dessa palavra e com tod~
da, pois consiste em correr o risco de produzir informações e pro- as ambiguidades imagináveis, é um dos valores centrais das
gramas para públicos nem sempre identificados, aos quais, sem nossas sociedades abertas cobrindo rodos os campos," d; ~ais
qualquer garantia, tenra-se atingir. Quanto mais generalista é uma nobre e normativo ao mais banal e funcional.
mídia, mas difícil é a missão, pois se trata de mobilizar públicos
muita diversos. A lógica da demanda, especialmente em matéria IA informação, agente de todas as emancipações
cultural, é mais fácil, pois consiste em oferecer aquilo que o pú-
blico quer. Isso é muitas vezes justificado com esta frase demagó- A história do ocidente e da sua emancipação, as-
gica: "Seja livre, consuma só o que lhe interessa". Reagir à oferta sim como a do mundo em geral, é indissociável da_g~erra
implica abrir-se e sair de si. Privilegiar a demanda:· e~ favo- pela liberdade de informação , matriz de todos os comba-
recer o risco do fechamento em guetos. Jornais, rádio e televisão tes emancipatório s . Nunca se dirá o bastante a respeito
dependem majoritariament e da lógica da oferta. A internet re- dessa relação . Ainda hoje a informação fa z parte de rodas
mete à lógica da demanda. Ambas são complementares e muitos as relações de poder ligadas à sua industrializaçã o , mas
indivíduos emanciparam-se nos últimos tempos graças à lógica da nem por isso ela perde a sua dimensão emancipadora .
demanda, mas é preciso destacar que o grande desafio está sempre Fato r de abertura para a globalização , é o primeiro passo
do lado da oferta, ou seja, o desafio de correr o risco da criação. para a compreen são do outro .

48 49
A informação sempre foi a base do espmto crÍtJco. abundância não é sinônimo de verdade. A concorrência acen-
Hoje, porém, alguma coisa está mudando sem que tenha- tua o conformismo.
mos clareza das suas consequências: todo mundo sabe rudo 2 - Consequência: abertura insuficiente, ausência de
e vê tudo quase em tempo real. Como isso afetará o indis- comparações e, com frequência, excesso de clichês e de estereó-
pensável espírito crítico? Como isso funcionará na medida tipos. Ou seja, o contrário daquilo que se espera da informação.
em que o pluralismo mundial, ligado especialmente à di- A velocidade da informação acaba, muitas vezes, por impedir
versidade cultural, está apenas balbuciando? Tudo se torna o aprofundamento pelo conhecimento e pela confrontação.
mais incerto. As tecnologias avançam rapidamente . Mais 3 - Excesso de simplificação. A informação custa caro e
rapidamente, em rodo caso, do que a reorganização dos por isso obriga a ir direto ao ponto, ou seja, sem ter muito cui-
mercados da informação e da comunicação. Mais rápido, dado com a contextualização cultural, que é decisiva na glo-
sobretudo, que a reflexão sobre o papel da informação na balização. A informação é uma caricatura do ocidentalismo?
sociedade do futuro . Seja qual for a natureza da informa- 4 - Ideologia do "furo" de reportagem. O "furo" torna-
ção, o papel do receptor se impõe. Ele não é o fiador da se o único meio de distinção em relação à concorrência em
verdade, mas está cada vez mais onipresente inclusive em derrimenw das ideias e do aprofundamento histórico. A hi-
escala mundial. pervalorização das celebridades, identificação duvidosa com os
poderosos, justifica rodos os desvios. Tudo isso é fortalecido
II Os desvios da informação pela onipresença da internet, que acentua a cultura da urgên-
cia e do voyeurismo.
Os desvios da informação correspondem às dimensões 5 - Há uma corrida desenfreada para vencer a concor-
da sua vitória política, cultural, econômica e técnica num rência. Se rodo mundo vê e sabe tudo, é preciso ir muito rá-
alegre entrevem das dimensões funcionais e normativas. Dos pido, em detrimento da compreensão de acontecimentos cada
investidores financeiros aos internautas, dos jornalistas aos mi- vez mais complexos, ainda mais que alguns possuem, muitas
litantes políticos, dos políticos aos especuladores, rodo mundo vezes, uma dimensão mundial.
defende a liberdade de informação, atribuindo-lhe, claro, sen- 6 - Uma lógica econômica confrontada com a tentação
tidos diferentes . perniciosa de uma informação-notícia gratuita, o que é apresenta-
Se as contradições são mais evidentes no que diz respei- do como condição para se ter uma informação "mais livre". Mas
to à informação-norícia, visto que existem códigos culturais e se ela é gratuita, quem paga e o quê? O "gratuiro" enfatiza o desvio
tradições para decifrá-los, elas também são muitas nos outros para uma informação atrelada à demanda, o que é uma ameaça
campos. Podemos classificá=h.s em dez categorias: para a liberdade de imprensa. A tirania da demanda será o estágio
J - Mais informação não cria mais diversidade, mas, an- supremo da informação? A quem serv_e a informação gratuita? Por
tes, mais racionalização e mais uniformização, pois a concor- que pagar pela informação-serviço e não pelas outras?
rência desenfreada leva paradoxalmente a que rodos abordem 7 --A globalização da informação acentua os defeitos ·an-
a mesma coisa, da mesma maneira e no mesmo momento. A teriores ao projetá-los na escala mundial, com o risco de tornar

50 51
ainda mais evidentes as contradições entre as várias concepções "furo", ao lugar ambíguo da lógica da demanda em relação à
culturais da informação. Onde está o pluralismo? Mais: qual da oferta, ao problema da superabundância de informações
a credibilidade de informações sem imagens, pois hoje "só crê sem as chaves complementares da compreensão, à captação
no que se vê"? da informação-conhecimento voltada para uma lógica estrita-
8 - Boatos e segredos aumentam na proporção das in- mente econômica e de mercantilização, na mesma perspectiva
formações circulando. "Se nos mostram cada vez mais infor- da informação-serviço em expansão.
mações, deve haver muito mais para esconder" . O "off" cresce Há, portanto, uma questão até ontem inconcebível: a
proporcionalmente à abertura e à abundância de informações. incomunicação aumenta proporcionalmente ao volume da in-
Os segredos nunca são mais bem disseminados do que quando formação e à performance crescente dos sistemas de comuni-
se tem um espaço público aberto e permeado por tecnologias cação? A incompreensão ou até mesmo a intolerância e os este-
de transmissão de mensagens. reótipos aumentam na proporção da velocidade de circulação
9 - A mídia costuma andar em círculos. Disso partici - da informação? A "rraçabilidade" crescente é a face negra do
pam os que-a fazem e os seus convidados. O número dos que triunfo da informação? Tudo isso obriga a repensar o enqua-
participam da produção da informação ou da sua explicação é dramento legislativo da informação em todas as suas formas e
bastante restrito. São sempre os mesmos, uma espécie de falsa em todos os seus suportes.
aristocracia. O mundo da informação e da comunicação con- Em resumo, as contradições estão à altura da vitória da
funde a luz que projeta sobre o mundo com a luz do mundo. informação: O mais complexo é, sem dúvida, o faro de que pode
1O- Há uma confusão entre os progressos tecnológicos haver ao mesmo tempo cada vez mais informações, frequente-
e a lentidão necessária ao trabalho de produção da informa 0 mente idênticas, e cada vez mais intolerância e desinformação.
çáo. Como tudo se gasta rapidamente, é preciso produzir cada
vez mais o "novo". Costuma-se ter a tentação de diminuir os III Em construção
custos do "novo" recorrendo a agências para obtenção de in-
formações internacionais, restando como fator de distinção o A reflexão crítica relativa à informação avança muito mais
recurso à espetacularização das celebridades. lentamente do que as mutações tecnológicas e econômicas nos
Essas contradições não estavam previstas na medida em últimos 50 anos e continua muito centrada na informação-notí-
que se pensou de boa fé, durante 50 anos, que quanto mais cia, que está bastante limitada à questão clássica das relações entre
houvesse suportes, mais haveria informações completas, dife- imprensa escrita e mídia de massa, esquecendo a ruptura multi-
rentes. Não era possível adivinhar que o aumento em volume mídia. Essa reflexão ignora · os desafios postos pela explosão da
de informações levaria a mais uniformização, aos boatos, à in- informação-serviço e da informação-conhecimento e permanece
formação esperacularizada das celebridades, ao questionamen- fascinada pela questão técnica, como se o futuro da informação
to do papel dos jornalistas, ao fortalecimento dos segredos, estivesse ligado exclusivamente à internet.
em paralelo com a ideologia da transparência, à dificuldade A primeira revolução, portanto, consiste em pensar o
de escapar dos estereótipos, do peso dos acontecimentos e do campo da informação na sua rotalidade: notícias, serviços,

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conhecim enros, relações, em rodos os suportes, em rodas as verdadeir o aliado durante séculos por ter permiüdo informar
dimensõe s, funcionai s e normativ as, de modo comparat ivo. melhor, criticar e emancipa r, pode rornar-se um perigo, es-
Nada seria pior do que admitir o normativ o para a informa - pecialme nte diante da complexi dade da globalização. O que
ção-noríc ia e o funciona l para os demais campos da informa- está sendo celebrado, a velocidad e da informaç ão, o volume
ção. Na verdade, há um atraso considerável da reflexão teórica ou a verdade> O que acontece com a indispensável necessi-
em relação às múltiplas formas da informaç ão e da comuni- dade de lentidão num mundo aberro, de fronreiras amplia-
cação em nossas sociedade s. Boa pane dessa reflexão aparece das' Velocidade e volume caem na armadilh a da comperiç áo
em meu livro, publicad o em 1978, L'information demain: de la e contribue m para explicar o deslizam ento estrutura l rumo à
presse écrite aux nouveaux médias6 ... degradaç ão da informaç ão.
A revista Hermes, criada por mim, tenta, nos últimos 20 Por ouuo lado, neste momento em que só se fala de
anos, superar esse atraso. É uma revista internaci onal e inter- desenvol vimento sustentad o, de ecologia, de outra economia
disciplina r que desde 1988 funciona como um laboratór io de para o planeta, mais respeirosa do tempo e dos grande equilí-
ideias e um formidáv el espaço de convivên cia teórica no qual brios, constata-se a rirania das "news", dos "furos", das revela-
mais de mil aurores do mundo inteiro já ajudaram a pensar a ções, como se a velocidade fosse sinônimo de verdade e de ob-
comunica ção em todas as suas dimensõe s, científica, política, ;
jetividade . O que significa esse fascínio pelo "tempo real"? O
que significa essa vontade de viver "ao vivo" como ·se cada um
!
social e cultural.
Se a informaç ão é prometei ca, e a comunica ção, pro- /. fosse jornalista na frente de batalha ou um estadista à beira de
pedêutica , ninguém tem realment e interesse em aceitar essa uma guerra? A velocidade reduziria a incompre ensão, a violên-
dicotomi a. As problemá ticas são diferentes, mas as referências cia e a guerra? Por que acreditar de repente no poder absoluto
normativ as são idênticas para ambas. Trata-se a cada vez das da velocidade tecnológica quando na diplomac ia, há séculos,
condiçõe s mais fundame ntais da relação de cada um de nós \ a ~ntidão é indispensável para evitar perigosas derrapagens?
com o mundo. Essas condiçõe s favorecem a emancipa ção, mas Salvar a informaç ão significa lutar conrra a ideologia do "ao
é preciso para isso que haja suficiente reflexão no senrido de
\\ vivo" e valorizar outro papel para os jornalistas. Implica fazer
;
preservar as perspectivas normativ as. a informaç ão reencontr ar o tempo e a lentidão, os intermed iá-
Cinco campos de reflexão se impõem: rios que documen tam e os jornalista s, a triagem e a difusão de
1 - Velocidade e volume não são sinônimos nem de quali- conhecim entos legitimados. A lentidão é o tempo dos homens; a
dade nem de pluralismo velocidade, o tempo das tecnologias. Essa ideologia da informa-
A velocidad e é provavelm ente a maior armadilh a da ção e da sua prima velocidad e fortalece a guerra sem quartel
vitória da informaç ão. Por que ir tão rápido? Quem pode ab- das indústrias como Google, Microsof t, Apple ... Pode existir
sorver tudo isso? Nem mesmo os jornalistas. Qual a relação velocidade e abundânc ia de informaç ões ao mesmo rempo que
entre velocidade, verdade, conhecim ento e ação? A velocidad e, uma rerrível concentra ção dos operador es' Concentr ação? É
a inimiga do pluralism o. Por que não, para além do papel de
complem ento ao conhecim ento, distingui r rrês tipos de infor-
'· O futuro da mjormação: da imprensa esm"ta as tlúva.r midias (NT).
54 55
mações? As mds notz'cias, em geral mais numerosas e repetidas Informar continua a ser uma negociação implícita entre
circularmente e acreladas à arualídade; as boas notícias, qua- os faros, o acontecimento, o contexto e as representações. O
se inexistente na mídia e·rn qualquer suporre e que dão ou- qu e dizer dos receptores? Impossível ignorá-los, impossível sa-
rra visão do homem e do mundo; as pesquisas de opmiáo, que tisfazê-los. A margem de manobra é restrita, pois a informação
permitem aos meios, convencionais ou novos, distinguir-se e não é mais sagrada, é superabundante e mastigada. O receptor
ampliar as visões de mundo. é, ao mesmo tempo, o melhor aliado da liberdade de informa-
2 - O controle do progresso das tecnologias
é indispen- ção e seu maior inimigo. As margens de manobra diminuíram.
sável, sendo imperativo escapar da ideologia que o acom- 4 - A diversidade cultural é o horizonte que leva
panha. Como era possível viver, informar, pensar, apurar, em consideração o receptor. O Ocidente não está mais
por exemplo, sem a internet visto que hoje tudo passa por sozinho. Constantemence criticado e sob suspeita, deve
ela? A tecnologia enriqueceu os conteúdos ou estes se adap- aprender a negociar com outros valores sem abandonar
taram ao que a tecnologia pode oferecer e produzir? A ine- os seus. A diversidade cultural recoloca a questão das
xistência de distanciamento crítico é provavelmente um dos desigualdades diante da informação. Como passar da di-
freios mais poderosos a uma reflexão crítica sobre o estatuto versidade cultural de fato à construção de uma política
da inf;rmação neste tempo de abundância e de velocidade. de convivência cultural? Como passar do respeito dos va-
O poder das tecnologias também é inseparável dos desafios lores universais da liberdade de informação ao reconhe-
econômicos dominados pelos grandes grupos de informação cimento da diversidade cultural? A informação ilustra
e de comunicação anglo-saxões. São muitas as possibilidades perfeitamente esse novo desafio político da "convivência
de disputa entre o Norte e o Sul, mas também entre muicos culcural" do qual falei em L'autre mondialisation (2004)
países do Sul. O vínculo continua muito fone entre a domina- e Demain na francophonie (2006)7 .
ção econômica do Norte e o domínio das indústrias culturais Nada é racional no mercado mundial da informação
da cultura e da comunicação. Mas o surgimento progressivo em que a força das ideologias, dos inreresses econômicos, das
de outras redes de informação, especialmente árabes, repre- relações de forças políticas e culturais não tem muita coisa a
senta uma demanda de pluralismo. De qualquer maneira, ver com os bons sentimentos de urna "boa informação para
refletir sobre um novo modelo econômico para a imprensa rndos" ... Na batalha do NOMIC (Nova Ordem Mundial da
não significa fazer da internet o centro desse novo modelo. Informação e da Comunicação), acontecida na Unesco, em
3 - O receptor (que é também o internauta, o blogueiro, 1980, pela primeira vez a URSS e o Terceiro Mundo da época
o ator, ou seja, aquele que interage) é o novo protagonista. Ele atacaram o Ocidente afirmando que o suposta universalismo
sempre existiu, claro, mas se torna mais crítico na medida em não passava de um rapa-sexo da defesa dos seus interesses. Foi
que consolida a sua emancipação e que aumenta o bombardeio um ato premonitório. Esse conflito vai recomeçar, certamente
de informações. Nem sempre ele tem razão, longe disso, e é jus-
tamente esse o problema, pois informar significar na maior par-
te do tempo ir na contracorrente das opiniões dos receptores. 'Edições em português: A outra globalização. Lisboa: Difel, 2004; O
futuro dafancojonia . Porto Alegre: Sulina, 2009 (NT).
56 57
mais violemo num mundo multipolar e com muito mais in-
formações e visões de mundo contraditórias.
A velocidade da informação pode também se tomar
uma arma fatal na medida em que as disputas da diversida- Ú.PITULO IV
de cultural necessitam do tempo e da lentidão para superar
os estereótipos mútuos e conseguir construir um mínimo de A nova fronteira da incomunicação
convivência cultural.
Qual é o desafio> Preservar a identidade e, ao mesmo
tempo, abrir-se para os outros . Nada fácil para o Ocidente.
Tampouco para os outros. Mas a informação é, em rodo caso,
um das frentes de batalha mais visíveis, perigosas e imediatas A questão da comunicação é o outro. Uma diferença
do imenso canteiro de obras da convivência cultural, que ne- quase ontológica com a informação. Claro que não há men-
cessita de diplomacia, cultura e competência para evitar que a sagem sem destinatário, mas ainda assim a informação existe
onipresença da informação e a velocidade dos contatos e trocas em si. O mesmo não acontece com a comunicação. Ela só tem
sejam aceleradores de guerra e de incompreensão. sentido através da existência do ourro e do reconhecimento
5 - Último d~safio, o conflito entre informaçáo e ''tra- mútuo. O destinatário existe desde sempre, mas a ruptura de-
çabilidade". A "traçabilidade" aumenta proporcionalmente à mocrática consiste em reconhecer a liberdade e a igualdade dos
velocidade com a disseminação dos sistemas de informação. protagonistas, ou seja, a igualdade do recepcor, que pode aceitar,
No momento, todo mundo prefere "fazer de coma" que a li- recusar ou negociar a informação. É aí que tudo se complica.
berdade leva vantagem em relação aos perigos da "traçabilida- Onrem, a comunicação era hierárquica, quase sempre limitada
de". O RFID (Radio Frequency IDentification) e as nanotec- à transmissão, sem possibilidade de discussão de parte do re-
nologias podem não ser apenas os "microguardiãos interativos ceptor/ator. Hoje, quase todo mundo está em pé de igualdade,
da economia da informação". Podem também contribuir para negocia e responde. Três consequências resultam dessa ruptura.
um policiamento generalizado em todos os países, inclusive
nas democracias, pois o medo do terrorismo, aqui, e o medo IA comunicação: o outro e a globalização
da democracia, lá, pode levar a tentativas de "racionalização"
dessas frágeis e sempre perigosas liberdades que gravitam em O reconhecimento do estatuto do receptor perrurba
torno da informação. As mesmas tecnologias que possibilitam tudo, pois legitima a questão da alteridade. Situação radical-
a ampliação do campo da informação, a onipresença das ima- mente nova e ainda pouco disseminada no mundo. Basta via-
gens e rodos os tipos de interatividade podem ser carrascos jar para observar como são raras as situações de igualdade e-
efi.cien tes. de reciprocidade entre os interlocutores na comunicação._6_
legitimidade do recepcor, logo, da alreridade, muda radical-
mente o modelo da comunicação. Esta se torna inevitavelmen-

58 59
te frustrante, imprevisível, mas incontornável, tendo a inco- sas de grande qualidade foram, no encanto, desenvolvidas no
municação como horizonte e a obrigação dos interlocutores último meio século. Não alcançaram, porém, a visibilidade e
de negociar sempre. É nisso que ,a coabitaçáo (a convivência) o impacto correspondentes à relevância da questão abordada.
constitui um dos paradigma do século XXI e é indissociável Não se quer saber da comunicação. O desinteresse é enorme.
destas três realidades: democracia, abertura e interaçáo. É pre- Esse pouco interesse teórico pela comunicação não im-
ciso lembrar que a convivência não se resume a conexão e jus- pediu, conmdo, as elites de servir-se de rodas essas tecnolo-
taposição. Pode-se estar conectado, especialmente à internet, gias sem imaginar uma possível resistência do receptor. Estão
na realidade, justaposto, sem haver convivência. A convivência aí, entre apreensão e aceitação passiva, os clássicos estereóti-
é o resultado de uma vontade e de uma ação. É uma escolha pos da desconfiança em relação a tudo o que diz respeito à
que demanda tempo e vontade. Nunca é estática. Surpreende comunicação e o fascínio ingênuo pelas novas tecnologias.
o arraso da reflexão teórica em relação a um conceito e a uma O papel da informação e da comunicação na mutação
realidade centrais para a teoria democrática e para a socieda- da maior pane das teorias do conhecimento também náo foi
de contemporânea. O grande vazio teórico da comunicação valorizado embora ele seja evidente quando se faz um estu-
contrapõe-se ao que aconteceu com outras grandes rupturas do de epistemologia comparada. A outra causa possível des-
contemporâneas, no meio ambiente, na ecologia, na bioética se pouco in.teresse das elites é o temor, infundado, de perder
e no desenvolvimento sustentável. A comunicação foi duran- influência diante do avanço da comunicação de massa e da
te muito tempo desvalorizada do ponto de vista conceituai, secundarização da alta culmra. As elites só viram, em geral,
assim como tem sido, desde sempre, a questão da imagem. na comunicação, em qualquer país, uma ameaça ao status
Na verdade, a comunicação nunca foi pensada pelas delas. Isso explica o pequeno número de teorias sobre a re-
elites. Se as ciências da vida, do universo, da engenharia e do lação entre comunicação e sociedade. Quanto às teorias po-
meio ambiente acompanharam, numa geração, o surgimento líticas contemporâneas, elas ignoram a comunicação, exceto
de novas questões, foi preciso esperar o começo do século XXI quando se trata de condená-la, destacando, geralmente, o
para se ver o aparecimento das "ciências da comunicação". As lado ingênuo e influenciável do recepcor. Essa ausência de
elites e o meio acadêmico, em rodos os países, sempre resis- debates teóricos sobre o estacuco da informação, a comuni-
tiram a tomar a questão da comunicação como uma questão cação, suas relações com as liberdades individuais, a socie-
teórica essencial. E jamais como uma grande questão científica dade aberta, a globalização e a diversidade cultural expli-
interdisciplinar. O mundo acadêmico internacional, salvo al- ca parcialmente a atual hegemonia da ideologia tecnicisra.
1
gumas brilhantes exceções, ainda não percebeu o interesse da Será preciso fazer uma história dessa fuga do pensa-
revolução teórica da comunicação e também não viu a dimen- mento em relação à comunicação, o que se repete agora com
são das suas implicações indo do mais teórico ao mais social e a internet, objeto de uma espécie de adulação tão caricatu-
cultural, preferindo, nas vezes em que se ocupou do assunto, ral quanto era, há 50 anos, a condenação da comunicação de
focalizar a informação, que é domesticável e racional, do que massa e do surgimento da cultura da comunicação. Os raros
essa comunicação sempre mais complexa e frustrante . Pesgu1- pensadores que se ocuparam dessas questões teóricas tiveram

60 61
de enfrenrar nos anos 1970, no que se refere à televi sáo, as dades mulciculrurais permitem pensar mais facilmente a rela-
mesmas resistências que existiram nos anos 1950 em relação ção com os outros. É o caso da França com seus territórios de
ao rádio . Misturam-se nisso o temor ao grande número, a além-mar, com a imigração e com a francofonia . Reconhecer a
desconfiança em relaçáo à cultura e à democracia de massa pluralidade das identidades, num espaço nacional, e organizar
e o medo da imagem, do face a face e da alteridade, assim a convivência das partes significa recusar a exacerbação do fe-
como a fraqueza da mentalidade crítica em relação à tecno- chamento. É um trunfo. Hoje, a diversidade cultural é um fato
logia, que é tão importante quanto a reflexão sobre a ciên- que se impõe a qualquer sociedade, inclusive à comunidade
cia, e a dificuldade em admitir a inteligência do receptor. internacional através da carta da Unesco. O entendimento é
Uma hipótese é possível. Se o mundo do conhecimen- um projeto político a ser construído para escapar ao fecha-
to e da cultura tivessem levado a sério o desafio cognitivo e mento identitário. E aí que se encontra a diferença entre os
político da comunicação, seria menos visível hoje esse fenô- meios de comunicação normativos e os meios segmentados.
meno de espetacularização que se aproveitou do vazio deixado Os primeiros podem refletir a diversidade da sociedade e, ao
pelo saber. Espetacularização e ideologia tecnicista são os sin- mesmo rempo, assegurar a identidade nacional indispensável
tomas mais visíveis de certa forma de traição dos intelectuais. para resistir à desestabilização da nação. Os últimos estão mais
adaptados à divisão das sociedades em comunidades, inclusive
II Pensar a comunicação é pensar a incomunicação para além das fronteiras nacionais, deixando de lado a questão
do laço social e o problema da identidade nacional.
Os dois andam juntos. Disso resultam algumas conse- É nesse sentido que a organização dos meios de comu-
quências entre as quais o reconhecimento de que o diálogo e nicação nunca é independente de uma visão da sociedade.
a negociação, considerados como "tempo perdido", são ine- A oposição entre meios de massa e internet não se dá entre
rentes às relaçóes humanas e sociais. Fazem parte da comuni- "velhos" e "novos" meios, mas entre duas visões de sociedade.
cação tanto quanto os raros momentos em que os indivíduos De um lado, a heterogeneidade social, tendo de fazer conviver
se compreendem. Comunicar é cada vez menos transmitir, rara- identidade e coletividade; do outro lado, a segmentação (ver
mente compartilhar, sendo cada vez mais negociar e, finalmente, meus trabalhos O elogio do grande público, uma teoria crítica do
conviver. Hipótese central: não se pode negar a abertura ao grande público e Televisão e civilização). De resto, há um para-
outro, não se deve esquecer o receptor, é preciso reconhecer a doxo na internet. Ficamos satisfeitos com a industrialização da
importância da negociação. Em geral, somos obrigados a con- comunicação que a internet permite e, ao mesmo tempo, lou-
ciliar dois movimentos contraditórios: o reconhecimento das vamos o sucesso crescente dos grandes museus como fatores de
identidades e a obrigação de construir a convivência cultural democratização cultural . A industrialização da comunicação
entre diferenças para evitar o comunicarismo. não é contraditória em relação a essa expansão da cultura de
Em nível social , isso leva a admitir que a maioria das massa nos últimos 50 anos, pois precisamos de ambas , assim
nossas sociedades é multicultural, o que é positivo, não uma corno necessitamos da convivência em matéria de cultura e de
ameaça, especialmente para a idenricfade nacional. As socie- co municação entre as lógicas da oferta e da procura. Ou seja,
f
62 63
individualizar os mercados e atingir públicos' mais heterogêneos. O modelo da democracia é, de qualquer maneira, de
É mais difícil, no entanto, reunir o grand~ público do que convivência de diferenças. De resto , isso se vê na evolução da
satisfazer públicos segmentados. concepção do laço social. Ontem, o vínculo social era muiro
O mesmo vale para a valorização da /,aicidade, ou seja, da mais hierárquico e unitário. Hoje, é mais igualitário e necessa-
separação entre polírica e religião, como meio de fazer conviver riamente pluralista. Essa problemática da convivência aparece
um pouco mais pacificamente duas lógicas heterogêneas e fre- também na realidade atual da sociedade individualista de mas-
quentemente antagônicas. A laicidade deve ser um exemplo de sa na qual cada um tenta conciliar os dois valores constitutivos
convivência. Menos a laicidade combativa, como já houve na e antinômicos da modernidade: liberdade e igualdade.
França, do que a laicidade tolerante a ser inventada. A globaliza- A outra questão central das nossas sociedades abertas é a
ção e o retomo das religiões vão relançar um debate indispensável da alteridade. O outro, ao mesmo tempo, atrai e assusta. Esse
para a paz no mundo relativo ao modelo laico de convivência. outro mudou de status, Ontem, ele estava discante, em outro
É preciso desconfiar do conceiro aparentemente moder- lugar, era diference, frequentemente em posição hierárquica.
no de democracia de opinião, baseado em pesquisas que pro- Hoje, está aqui, no centro da modernidade e, mesmo não ha-
duzem uma visão simplificada e racionalizada da sociedade, vendo igualdade, está decidido a conservar suas diferenças. É
apagando as ideologias e a complexidade da história. A domi - preciso se equilibrar sobre duas pernas: aceitar a identidade e or-
nação das pesquisas lima a incontornável complexidade do real ganizar a convivência das diferenças num espaço mais amplo. Ad-
e fortalece a ilusão de uma sociedade homogênea na qual cada miniscrar a a'lteridade implica, de resto, direitos e deveres recí-
um falaria a mesma linguagem e seguiria as mesmas "opini- procos ou, então, o modelo da convivência desaba. Isso obriga
ões". Essa visão de mundo está no sonho de uma "democracia que se valorize um conceito essencial, mas frágil, o da con-
elecrônica", em que os cidadãos diretamente, sem os interme- fiança. A convivência supõe confiança, ou a desconfiança ~ú-
diários muito complicados que são os políticos, debateriam e tua, mãe de rodos os comunitarismos, instala-se. A confiança
tomariam livremente todas as decisões. Na realidade., em po- mútua requer tempo. Em outras palavras, não há convivência
lítica, na informação, no conhecimento, nas ciências, enfim, sem confiança, wlerância e tempo. Esse é o núcleo do mode-
é importante desconfiar do que é aparentemente moderno e lo democrácico a ser construído, que deve, ao mesmo cempo,
fortalece o miro de uma democracia "direta", livre de interme- organizar a convivência das diferentes identidades e preparar a
diários. É claro que existem intermediários duvidosos, mas o convivência no âmbito da comtmidade internacional.
sentido que dou aqui a essa palavra é outro. Refiro-me a profis-
sões que exigem uma competência específica e a capacidade de III A questão da convivência
organizar a convivência entre pontos de vista diferentes. Em
suma, o sonho de democracia "direta", uma sociedade "live", Vinculada ao modelo contemporâneo da comunica-
com o fim dos intermediários e a competência absoluta dos ção, a convivência das diferenças não está apenas no centro
indivíduos, resvala rapidamente de uma ideia de emancipação dos Esrados-naçáo, mas também, talvez ainda mais claramen-
para uma miragem favorável ao populismo. te, na globalização. Isso produz duas lógicas contraditórias.

64 65
Do ponto de )'isra econômico, a perspectiva real é a de um Deli . Será preciso prestar muito mais atenção à diversidade
mercado único. A economia impõe a sua lei, disso resultan- dos pontos de vista, ou seja, às informações sobre o mun-
do uniformizaçã o e ractonalizaçâo, aspectos , ao mesmo tem- do , logo , às culturas do mundo, o que se intensificou com
po, positivos e negativos. Do ponto de vista social e cultural, a queda do comunismo, em 1990, e com o surgimento do
sobretudo depois da assinatura do acordo sobre a diversida- mundo multipolar. Isso implica aprender a se conhecer, a
de culmral na Unesco, em 2006, há uma obrigação de levar respeitar-se e a conviver. Sem dúvida, um desafio imenso.
em consideração essa diversidade . Essa cana reconhece a re- Há uma contradição: os canais e os sistemas tecnoló-
alidade da diversidade culmral e a necessidade de construir gicos são mundiais, mas nem por isso garantem o pluralismo.
um horizonte normativo para a convivência entre culturas. Em outras palavras, nada indica que a aldeia global será uma
Esse é o centrd do modelo da comunicação que defen - aldeia da diversidade. Pode ser que a uniformização predo-
do: respeitar as identidades e organizar a convivência entre as mine por força da concentração das indústrias culturais e da
diferenças. O desafio é sempre o mesmo. Como evitar que comunicação. Afinal de contas, isso já aconteceu na abertura
o reconhecime nto das diferenças não resulte em comunicaris- da globalização econômica, há 30 anos. Até agora, a globali-
mo? Como preservar um vínculo de integração para além da zação fortaleceu os modelos dominantes, não a diversificação
simples convivência? Em outras palavras, rodo o debate sobre dos modelos econômicos. A dupla pressão da crise e da eco~
a organização da diversidade culmral na comunidade inter- logia facilitará calvez o movimento na direção do pluralismo.
nacional passa pelo problema do modelo comunicacio nal de O modelo de convivência das diferenças que defen-
convivência das diferenças. Há sempre, tanto no plano nacio- do, situado no centro da teoria da comunicação , aparece
nal quanto no plano internacional, uma exigência: não pode também em outras problemáticas, numa escala mais am-
haver reconhecime nto das identidades sem fortalecimento do pla, sem impedir, de resto, as desigualdades e os confron-
espaço comum. Sem isso, pode-se resvalar para a segmentação tos baseados em relações de força. O modelo de convivên-
e o comunitarism o. O Estado, no plano nacional, e os orga- cia não é angelical, mas tenta, em todos os níveis, inventar
nismos internaciona is, no plano global, devem exercer seus outra coisa, algo entre o modelo universal hierarquizado e
papéis. Os dois processos devem avançar juntos, o que não é a simples justaposição de interesses e de visões de mundo.
fácil nem evidente. Conviver: seja em termos de comunicação, dos modelos
Isso é ainda mais difícil na medida em que o surgi- de organização política, do planeta, do desenvolvimento sus-
mento de um mundo multipolar, a ascensão das potências do tentável ou das indústrias culturais e da comunicação , significa
BRJC (Brasil, Rússia, Índia e China) entre outras e a mul- sempre, ao mesmo tempo, respeitar a pluralidade dos pontos
tiplicação dos meios de comunicação obrigam, sob pena de de vista sobre o mundo e a necessidade de um princípio co-
haver um conflito culmral e político, a inuoduzir um indis- mum. O modelo da convivência vai muito além das relações
pensável pluralismo nas visões e informações sobre o mun- entre informação e comunicação , dizendo respeito aos desafios
do . Não se vê e não se pensa o mundo da mesma maneira normativos maiores da organização interna das sociedades con-
em Nova York, Sidnei, Pequim, Brasília, Moscou ou Nova temporâneas e da convivência das diferenças dentro das nações.

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.' 67
A francofonia, por exemplo, como a defesa de todas as to, sobre a entrada da Turquia na Europa, constitui o desafio
grandes áreas linguísticas (inglês, espanhol, português, ára- mais evidente da vitalidade e da ambição do projeto europeu.
be, russo), que atravessa os continentes, participa desse de- Outro exemplo disso é a gLobaLizaçáo da informação. Vi-
safio: a preservação da diversidade linguística indispensável mos que a explosão tecnológica não basta para que haja mais ·
ao mundo. Em oposição a esse modelo linguístico pluralis- compreensão entre as pessoas, mesmo se muitos pensavam o
ta, temos a atual dominação de um inglês de segunda cate- concrário disso há 30 anos, por exemplo, com a criação da
goria como fator de "comunicação" mundial. A diversidade CNN, em 1980, que deveria "unificar" as visões de mundo e
linguística é um exemplo perfeito da necessidade e da difi- valorizar o ponto de vista ocidental. Sabemos o resultado ... A
culdade de se organizar a convivência das diferenças. Toda CNN continuava ligada a um modelo unitário no qual o "uni-
língua é; no ponto de parrida, umai dominação, mas com o versalismo" de fachada era mais um ocidentalismo. A multipli-
tempo as línguas tornam-se um fator de identidade cultu- cação das redes de informação, especialmente as árabes, levou
ral e de comunicação, que é indispensável preservar caso se ao surgimento de um verdadeiro pluralismo. Espera-se que o
queira organizar a convivência das diferenças na globaliza- mesmo aconteça na Ásia, na América Latina ... Por toda parte,
ção. Um exemplo: Paris, capital das livrarias estrangeiras, vê passa-se de um modelo unitário a um modelo de convivência.
o número dessas livrarias diminuir rapidamente. Eram 30 em Último exemplo, os direitos do homem. Ontem, era uma
2000. Em 2007, já não eram mais de 20. Todas elas haviam concepção universalista, mas frequentemente construída com
surgido antes da globalização. Assim, pode-se ter, ao mesmo os critérios do Ocidente, onde os direitos do homem foram
tempo, globalização e diminuição da diversidade cultural. De inventados. Hoje, é a busca de um novo equilíbrio. O uni-
resto, em 1900, em Paris, por ocasião da exposição universal, versalismo deverá ser repensado e garantido sob o signo da
havia painéis nas estações de metrô escritos em 35 línguas. diversidade cultural. Nessa mutação estrutural do modelo de
A Europa é o segundo.,. •exemplo, em tamanho natural, relação, tanco entre os indivíduos quanto entre os Estados,
do modelo de convivência das diferenças como horizonte nor- há uma contradição: a afirmação indispensável e progres-
mativo. Em que consiste a profunda inteligência do maior siva das identidades e a necessidade, contudo, de convivên-
laboratório democrático e pacífico do mundo? Na capaci- cia de diferenças no âmbito de um mundo comum incon-
dade de ampliar de seis para 27 países, hoje, haverá mais no tornável. Em torno do Mediterrâneo e do Oriente Próximo
futuro e fazer conviver nações que tudo separa num projeto está em jogo, ao mesmo tempo, a continuação dos desafios
em que a identidade de todos será preservada, sendo neces- do passado e os desafios do futuro num mundo multipo-
sário, passo a passo, construir um enquadramento econômi- lar. O modelo de convivência das diferenças da comunica-
co, mas, sobretudo, político, mais amplo. A Europa, maior ção tem um alcance muito mais global, simbolizando justa-
laboratório mundial da convivência política de diferenças, é mente a importância da comunicação num mundo aberto.
um exemplo do papel crescente desse modelo teórico da co- Talvez só a música, em todas as suas formas, escape des-
abitação em que é preciso conciliar identidade parricular e sa lógica de convivência. Ela é, quem sabe, a única linguagem
valores comuns. Desse ponto de vista, o debate, se for hones- realmente mundial. A única linguagem universal. A juvenru-

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de, faz meio século , por meio da música, talvez seja o agente
de uma das poucas atividades realmente universais. A música
é um exrraordinário veículo de abertura ao ourro e um veror
eficaz de tolerância. Como se os homens, incapazes de se escu-
tar, conseguissem, enfim, "ouvir" e "se ouvir". Nunca se dirá o CAPITULO V
bastante sobre o papel desempenhado pela música em favor da
abertura ao outro e da solidariedade no mundo. Ela permite Informação e conhecimento:
integração e convivência ao mesmo tempo. Os sons e os esrilos a convivência indispensável
seriam mais capazes do que as palavras, as imagens e os textos
de facilitar a aproximação entre os homens?

A revolução da informação esbarra em dois obstáculos.


O primeiro , como vimos, diz respeito à comunicação, ou seja,
à relação com os outros, e à incomunicação. O segundo, o
conhecimento, não é mais simples. A abundância de infor-
mações cria imperativamente a necessidade de conhecimen-
tos para compreendê-las. É o tema deste capírulo. No cen-
uo da questão não estão apenas os cientistas, mas também os
jornalistas. Não há informação-notícia sem jornalistas para
produzi-las e, principalmente, para dar-lhes legitimidade.

I Jornalistas, uma vitória frágil

A vitória da informação ao longo de dois séculos teria


sido impossível sem os jornalistas. A existência dos jornalis-
tas, em todos os países, é garantia da liberdade de informação.
Nada mais ingênuo e perigoso do que pensar que amanhã, gra-
ças aos sistemas de informação, cada um se tornará seu próprio
jornalista, fazendo caducar a existência, os direitos e os deveres
dessa profissão. Os jornalistas são os guardiões e os heróis dessa
vitória frágil da liberdade de informação. Quanto mais houver
informação acessível, mais ou menos graruitamence, não im-

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,-, _/
portando a origem, e quanco mais cada um puder fazer o que traria suas escolhas. Como dizia Raymond Aron, o leitor é
quiser, mais haverá necessidade de Jornalistas para selecionar, frequentemente a primeira limitação à liberdade de expressão.
hierarquizar, verificar, comentar, legitimar, eliminar e criticar Na verdade, com a explosão da informação e com a facilidade
Se o usuário crê, hoje, que a informação aparece so- de acesso a ela, o jornalista se encontra num encruzilhada. Ou
zinha , tal é a facilidade de acesso a ela, é preciso não esque- ele é a testemunha de uma época ultrapassada, em que havia
cer que ela é sempre uma construção validada por um pro- necessidade de intermediário, agora inútil na medida em que
fissional, o jornalista, seja qual for o suporte. Náo é o suporte cada um se tornaria seu próprio jornalista; ou ele é um dos
que dá sentido à informação, nem o receptor, mas o jornalista. principais guardiões da liberdade de informação, mantendo-se
Nessa legitimidade do jornalista reside o papel essencial da distante de rodos os poderes, funcionando como avalista da ho-
profissão de intermediário, que muicos querem reduzir, ou nestidade, ou mesmo da objetividade tão difícil de atingir, fa-
suprimir, em favor de uma suposta "democracia direta" . O zendo a triagem num universo afogado em informações, o que
jornalista nem sempre tem razão, como o polírico ou o in- só aumenta a necessidade de intermediários e de explicação.
telectual, mas com sua assinatura legitima a informação. É claro que o jornalista não tem o monopólio da infor-
Como observei, em A outra globalização e em É preci- mação, mas, em contrapartida, possui o monopólio da legi-
so salvar a comunicação 8 , a democracia não é a supressão dos timação da informação-nor ícia em qualquer suporte. O plu-
serviços e profissões intermediários, mas a validação dos seus ralismo da imprensa e dos jornalistas garante a liberdade de
papéis e a capacidade de criticá-los. Os jornalistas são interme- informação , que ficaria obviamente ameaçada sem esse filtro
diários e contrapoderes. profissional. De resto, o que está esperando a Europa, maior
É fundamental, no entanto, que não caiam na ilusão laboratório democrático do mundo, para fixar regras deonto-
do quarto poder, que ronda a mídia nos últimos tempos com lógicas, políticas, culturais e sociais comuns visando a legiti-
o aumento dos meios de comunicação e com o crescimento mar definitivamente uma profissão indispensável à liberdade?
do papel desempenhado por eles . Ser o quarto poder é a de- De qualquer maneira, é preciso fazer distinções entre
gradação do contrapoder, não uma vitória. O jornalista não é jornalistas. Dá para se falar em três grupos: as estrelas, cuja
o amzgo do cidadão nem o amigo do poder, tampouco do juiz. Se competência profissional corre o risco de ser desviada para gru-
aceitar esse papel de amigo, perderá a confiança do público, pinhos de interesse político-jornalís tico. O mundo da cultura
sem a qual não pode ser livre e que é a única fonte da sua legi- e do conhecimento perdeu nos últimos 30 anos seu prestígio
timidade. Deve combater em duas frentes. Contra os incontá- e seu lugar na hierarquia social e cultural, tendo sido substitu-
veis poderes e contra o lobby dos que pretendem "verificar" a ído pela ''elite" jornalística, que comanda, frequentemente de
informação ou entregá-la pronta; e em relação aos receptores, modo tirânico, o acesso à mídia de que todos necessitam. O
que não desejam, na maior parte do tempo, ouvir o que con- segundo grupo é o mais numeroso; a classe média, profissional,
modesto, sem ilusões e competente. Essa maioria dos jornalis-
tas, sem muito prestígio, enfrenta as críticas dirigidas ao estilo
8
A outra globalização. Lisboa: Difel, 2004; É preciso salvar a comunicação.
e aos poderes absolutos do primeiro grupo. No andar de baixo,
São Paulo, Paulus, 2006 (NT).
72 73
por fim, estão os operários, quase sempre jovens dispostos a multimídias" para fazer apurações, perde conrato com a re-
fazer qualquer coisa para "subir" num meio difícil, prontos, alidade. Esta só está "presente" por intermédio de relas. Há
antes de tudo, .,.a ;ceitar as condições de trabalho deploráveis outro paradoxo: fala-se o tempo todo em "revolução" da infor-
no jornalismo ,da internet, que seriam proibidas em outros se- mação, mas isso para que se trabalhe com menos jornalistas,
tores . A fronteira entre a ideologia recnicisra e as novas prá- como se os avanços da medicina tornassem inúceu; os médicos.
cicas profissionais é tênue. Toda uma geração acredita estar Algumas reflexões se impõem. Em primeiro lugar, é pre-
reinventado a profissão com a internet, às vezes, com razão, ciso bloquear essa "fuga para frente" da "informação livre na
mas esquecendo frequentemente que outras gerações já experi- internet". Cabe recolocar as coisas no lugar. A liberdade de in-
mentaram o mesmo fascínio por outros avanços tecnológicos, formação não começa com a internet. Mesmo se os jornalistaS
achando também que estavam "revolucionando" a profissão. caem muitas vezes de joelhos diante da "revolução da inter-
Em qualquer situação, valorizar o jornalismo signifi- net" confundindo as tecnologias e os conteúdos. Nessa ordem
ca também valorizar os arquivistas e documentaristas, que se de ideias, é importante lutar contra a solução demasiado fácil
tornaram ainda mais indispensáveis nesta época em que es- do jornalista "mulrimídia", que passaria indiferentemente de
tamos nos perdendo num oceano de informações. São pro- um suporte a outro, o que se dá, na verdade, sobretudo por
fissões injustamente desvalorizadas num momento em que razões de racionalização econômica. Deve-se também apren-
paira sobre o mundo essa ideologia do "faça você mesmo". der a lutar melhor contra as pressões políticas, mas sobretu-
Na verdade, precisamos reinventar o direito à infor- do econôroicas, tendo como objetivo vencer o desafio essen-
mação. Não se deve confundir a diferenciação crescente dos cial de reduzir a concentração das indústrias da informação
suportes com a essência da profissão, que é a mesma para rá- e da comunicação, que são incompatÍveis com o pluralismo.
dio, televisão ou internet. Vale lembrar que a legitimidade da Será decisivo redesenhar os territórios para se manter a
profissão baseia-se na confiança do público. Importa compre- distância em relação aos poderes e evitar a "promiscuidade",
ender que o crescimento do peso da opinião pública, o direito causa de tantas suspeitas. Caberá também refletir sopre o papel
de expressão do cidadão e as pesquisas de opinião amplamente crescente dos boatos e da ~esinformação, que crescem propor-
encomendadas ou comentadas pela mídia reduzem a margem cionalmente ao campo da informação. Temos de evitar que a
de manobra dos jornalistas. A mídia recorre cada vez mais ao personalização inevitável da vida pública se torne sinônimo
público para saber o que ele "pensa e quer", ignorando que de "espetacularização", o que significa impedir que as "cele-
esse procedimento se uansforma facilmente em sistema de bridades" tomem conta dos programas e opinem sobre tudo,
pressão. A informação nâo é a opinião do público. De tanto tornando-se referências, atr'apalharrdo o pensamento e ocu-
querer aproximá-los, reduz-se inevitavelmente a margem de pando todos os lugares. Existem outras hierarquias de valor.
manobra já limitada dos jornalistas. O mesmo acontece com A democracia não é sinônimo de "espetacularização", mas de
a "ilusão" de um "novo" jornalismo ligado às novas tecnolo- convivência de valores e de culturas numa sociedade. É impor-
gias, como se as tecnologias e o receptor definissem a profissão. ,\ tante resistir à suposta demanda do público que resulta numa
1

O "jornalista de compucador", que nunca sai das "redações i superexposição das celebridades e de alguns políticos. Temos
1
i

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de manter acessível aos cidadãos as crês escalas de informa~:ão velocidade , brevidade, lógica de competição e obsolescência
constitutivas da nossa relação com o mundo : local , nacional , das coisas e do tempo , engoliu o cultural e o saber científico.
mundial . Sem isso, corre-se o risco de que a desvalorização de Parece até que o mundo, preocupado com sua abertu-
uma dessas três referências resulte num profundo desequilíbrio. ra, está aturdido com a urgência do novo . Quanto mais há
É importante também reduzir a pressão do destinatá- notícias circulando, no entanto, mais precisamos de conheci-
rio - receptores e internauras - , que em nome do "direito à mentos para explicá-las e comexcualizá-las, sob pena de, não
expressão" e de "participação" opinam em todos os progra- o fazendo , criar um mundo incoerente, tiranizado pelos fatos .
mas sobre tudo e constituem uma espécie de contrapoder Claro que o conhecimento nem sempre tem razão contra a
duvidoso em relação aos jornalistas. Que o público possa se novidade, pois a força da informação nova está justamente em
exprimir, comentar e criticar, é indispensável, mas colocá-lo sacudir o jogo dos conhecimentos instituídos. Informação e
em pé de igualdade ou na condição de juiz dos jornalistas é
outra co isa, algo próximo da demagogia. Os jornalistas não 1 conhecimento são indispensáveis. De resto, informação jorna-
fz'stica e conhecimento científico e jornalistas e professores univer-
compensam os defeitos de um trabalho apressado , em cir- sitários exemplificam perfeitamente a teoria da convivência. Eles
cuito fechado , ameaçado pela lógica do "furo", pela espeta- são as figuras principais dessa coabitação, da qual até podemos
cularização e pela lógica dos acontecimentos, recorrendo abrir mão, o que seria prejudicial a ambos. Os professores uni-
quase de modo masoquista ao público, transformado em versitários não podem mais negar a revolução da informação
juiz supremo. Temos de refletir sobre estas questões: 9!:1ª1 é nem se refugiar numa torre de marfim aristocrática. Os jor-
o limite de absorção de informações pelo público? Qual a nalistas não podem mais continuar a correr, como o coelho
relação entre informações sobre o mundo e sobre indivídu- de Lewis Carrol, atrás dos fatos ignorando a profundidade
os? Como reduzir a sensação crescente de ser "um gigante da cultura e dos saberes acadêmicos. Intelectuais e jornalistas
em matéria de informação e um anão em matéria de ação"? estão fadados à cooperação e à convivência. Cada um deve
conservar a sua legitimidade, mas em colaboração para que o
II Nada de informações sem conhecimento receptor, nós , compreenda a complementaridade e a diferença
das lógicas nessas duas relações com o mundo: administrar a
O mundo acadêmico, da pesquisa e do conhecimento, a!teridade, organizar a convivência.
apesar do que possa ser dito, tem sido esmagado nos últimos - A revolução da informação não invalida o conheci-
30 anos pelo mundo da informação, da mídia, do jornalismo mento acadêmico ou científico. Para que serve ter acesso a
e dos acontecimentos. A informação não matou o conheci- todo tipo de informação se não dispomos de conhecimentos
mento, mas o marginalizou, mesmo se o meio acadêmico tem para fazer interpretações? Como compreender, por ~urro lado,
uma parte de responsabilidade nisso . Tudo contribuí para a o impacto das informações sobre os saberes e dos saberes sobre
marginalização do mundo da cultura na democratização da a informação se esses universos estiverem muito distantes um
cultura de massa, na dominação das novas tecnologias e na do outro ? A ideologia da velocidade e do "faça você mesmo"
espetacularização do jornalismo. A lógica das notícias, com sua esbarra na espessura das culturas, da história e das, sociedades.

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' 77
O problema náo é o volume de informações, mas ter os ronhecz- polêmicas e conuovérsias relativas ao papel da ciência e das
mentos necessários para interpretá-las. A terceira caregoria de in- tecnologias no espaço público aumentam. As pressões cres-
formações, a informação-conheci mento, é indispensável para cem dos dois lados. A globalização e seus perigos obrigarão
equilibrar as outras. De resto, os acadêmicos são intermediá- a um "enquadramento" da informação . As ciências e as tec-
rios prioritários para o mundo da informação jornalística. Não nologias estarão cada vez mais no centro das sociedades e
há apenas informação e comunicação, mas também, com a dos debates políticos. Diante dessas pressões os dois meios
mesma importância, conhecimento. Quando se dará o ret:orno terão de aprender a redefinir suas relações com o mundo
da valorização da erudição, da cultura e do aprofundamen- e entrar em colaboração. Mas é importante que cada um
to de saberes transversais para compensar essa ilusão de um conserve o seu espaço de legitimidade justamente para que
"conhecimento factual" sem profundidade sob a tirania dos o receptor entenda a convivência de pontos de vista dife-
acontecimentos? A internet, de maneira geral, em função do rentes.
volume de informações acessíveis, não tem mais de dez anos O triângulo do conhecimento constituído pela episte-
de profundidade. mologia comparada, pelas controvérsias e pelas indústrias do
- Jornalistas e acadêmicos são, na verdade, quase coir- conhecimento está agora muito mais no centro do funciona-
mãos, embora não tenham a mesma relação com a informação, mento do espaço público e dos limites da comunicação do que
o conhecimento e a realidade. Há uma quase simetria entre há meio século. Tradicionalmente o mundo do conhecimento
eles e uma mesma fragilidade. Por ourro lado, apesar de todas intelectual preferia se manter distante do cotidiano. Hoje, os
as diferenças que separam essas duas profissões, elas nos im- I_
cruzamentos são mais frequentes. Para além de rodas as dife-
pedem de andar em círculos e revelam menos conformismo renças, parte do meio da informação, da criação e do conhe-
do que em outros ambientes. A ideologia do "faça você mes- cimento integra o que se costuma chamar de "classe criativa
mo" e do "excesso' ameaça essas duas profissões, mesmo se elas precária". Ou seja, rodos os que tentam compreender o mun-
não têm a mesma relação com o tempo. Elas não são apenas um do e mudá-lo sem pertencer necessariamente às instituições
exemplo de convivência entre dois pontos de vista diferentes e oficiais da sociedade. O conhecimento e a criatividade, assim
complementares sobre o mundo, mas também um exemplo de como a informação, desempenham um papel social e cultural
como um pode servir de intermediário para o outro. cada vez mais importante, contribuindo para certa mobilidade
Há outro ponto em comum entre elas: a informação e abertura, mas sem poder necessariamente se inserir numa
jornalística, que reflete as rupturas do mundo, não existe sociedade excessivamente fechada e estruturada.
sem vínculos com a informação-conhec imento, que fre- - De qualquer modo, informações e conhecimentos
quentemente também estabelece uma ruptura na ordem não bastam. É preciso também levar em consideração os en-
dos saberes. Enfim, rodos devem manter certa distância em q1:!!!:!!!'!_mentos culturais e ideológicos. A globalização das ;-~~as
relação aos poderes econômicos e políticos. As relações en- de informação e dos conhecimentos obriga, caso se que.ira
;r·e esses dois universos profissionais da informação e do evitar a cacofonia, que se preste atenção às outras culturas. É
conhecimento fortalecem-se na medida em que os debates, o desafio da diversidade cultural: conseguir organizar a convi-

78 79
vência cultural. ou rrya, as relações entre identidade e alteridadf' Se o mundo da informaç ão , em pouco tempo, compre-
Basta ver os mal-ente ndidos ligados à globalização da informa- endeu esse desafio, o mesmo ainda não se deu com os cientis-
ção para se compree nder que quanto mais houver mensagens tas, que permanec em ligados a ~ma base nacional e aos valores
em circulação, mais haverá visões de mundo contradiz endo-se. de uma comunid ade internaci onal a ser defendid a. O mundo
O mesmo vale para as ciências e o conhecim ento. Para acadêmico deve também ampliar a tradição, hoje insuficiente,
além do que é simpatica mente chamado de "comuni dade in- da vulgarização. Deve também aprender a administ rar as idas
ternacional da ciência e do conhecim ento", as relações de for- e vindas relativas ao lugar das tecnologias e das ciências nos
ça, a concorrê ncia e as diferences visões de mundo seráa cada debates públicos e nas polêmicas, as relações entre pesquisa
vez mais visíveis, obrigand o a passar de um mundo único das
\ fundamen tal e aplicada, a ambiguid ade da procura por pare-
ciências e do conhecim ento, se de fato ele um dia existiu, a um ceres de especialistas e os limites da função de conselheiro dos
mundo pluralista onde a convivência das diferenças deverá ser príncipes ... Em 50 anos, o mundo intelectual foi marginali-
organizad a. Por exemplo; se as ciências foram até agora menos zado. Ele precisa recuperar sua capacidade de interessar, atrair
atingidas do que a informaç ão pelo difícil debate entre univer- jovens e participa r das decisões.
salismo e ocidental ismo, elas não escaparão disso nem que seja Os jornalistas têm um nível de formação nitidame nte
por causa das relações incensas e dos pontos de vista diferen - superior ao de 30 anos atrás. Precisam entender que o poder
tes sobre o mundo que resultarão do aparecim ento de novas político e econômic o nem sempre representa o essencial de
potências. Isso não diz respeito apenas às ciências humanas , uma sociedade: o conhecim ento, a cultura e a abertura para
mas também às ciências do meio ambiente , da comunica ção, outras civilizações também são importan tes.
do universo, da engenhar ia ... Aproxim ando-se inevitavelmen- "Cada vez mais rápido, cada vez mais falso". Tal-
te da sociedade e da economia , as ciências aproxima m-se dos vez seja essa a maior ameaça aos jornalista s. A ideologia
debates sociais e políticos. Em outras palavras, náo pode haver do "faça você mesmo" aparecen do como produto da vitória
ciência sem comunica ção e sem levar em consideração a di- política e cultural do conceito de informaç ão. Excesso de
versidade culrural. É um ruptura considerável. Outras con- velocidad e, falta de distancia mento . Risco de conform ismo,
cepções váo aparecer. Os ocide~cais não seráo mais os únicos submissã o ao receptor e às modas, segtnenta ção dos supor-
protagonistas das ciências. . res e da oferta, tendênci a ao emocion al em detrimen to do
-As relações entre informaç ão - comunica ção - cultura racional, valorizaç ão da expressão em lugar do distancia -
e ideologia são cada vez mais complicadas, mesmo se as tecno- mento e 1do acompan hamento . Os jornalista s aplicam com
logias para se informar e comunic ar são as mesmas no mundo frequênc ia o esquema da "espetacularizaçá.o" a eles mesmos,
inteiro, tomando aparentem ente mais fácil a circulação das ocupand o espaços, por serem celebrida des , em todas as mí-
mensagens . As mesmas ferramentas náo significam os _mesmos dias . Acabam por estar em rodos os lugares . Os convidad os
conteúdo s . Nem as mesmas relações com o mundo. E preciso também são sempre os mesmos. Em 30 anos, a multipli-
fazer conviver diversos sistemas de referência : informaç ão, co- cação dos meios resultou na diminuiç ão da variedad e de
nhecimen to, modelos ideológicos e culturais. conteúdo s e de participa ntes.

80 81
Por outro lado , os jo rnalistas mostram dificuldade em cultura, conhecimento e comunicação. Temos de evitar a do-
guardar distanciamenro crítico em relação à internet, que se minação aparentemente democrática da procura. Precisamos
tornou símbolo de "liberdade de informação", embora sejam, reduzir a ideologia do "furo" que hipostasia a lógica do acon-
talvez, eles mesmos suas vícimas. tecimento em detrimento da problemática da duração. Deve-
Somente a informação-serviço sai vencedora dessa evo- mos desconfiar de uma visão ampliada da opinião pública for-
lução. A questã~ mais interessante é esta: por que esse tipo de talecida pela ideologia das pesquisas. As pesquisas de opinião
informação, central para o sucesso da internet e dos mercados são úteis em política, mas a overdose deve ser evitada, pois, de
rentáveis do futuro, suplantou em valor os outros dois tipos qualquer maneira, o importante é o voto . Temos de dizer não
de informação, a informaçâo-norícia e a informação-conheci- à onipresença da racionalização da opinião pública por meio
mento' Parece que o mundo da informação e do conhecimen- das pesquisas em espaços sociais, culturais e religiosos despro-
to tomou-se um interminável zapping interativo ... vidos da sanção do voto, o que só fortalece a representação
de uma sociedade simples de interpretar e de compreender.
III O conflito de legitimidades Temos de compensar a ideologia atual que só fala de in-
teratividade com a necessidade de reafirmar as diferenças estru-
Qual é o desafio num mundo saturado de informa- turais entre informação, conhecimento e ação. É o que eu cha-
ções e de conhecimentos cada vez mais acessíveis ou gratui- mo desde a publicação de Pensar a comunicaçáo9 de "conflito de
tos? Distinguir as lógicas e organizar a convivência entre elas. legitimidades". Quanto mais tudo é visível e interativo, mais é
Evitar que tudo se misture. Mostras as diferenças para que o preciso evidenciar as diferenças entre jornalista, expert, tecno-
cidadão não se perca nesse excesso sem contar com pontos de crata, acadêmico, político .. . Num mundo onde tudo "comuni-
referência entre informação, cultura e conhecimento. O de- ca" e circula, é imperativo respeitar as três grandes Lógicas que es-
safio é sempre o mesmo. O mundo é uma aldeia global do truturam as relaçóes com o mundo: informação, conhecimento e
ponto de vista tecnológico. Não dos homens, nem das cul- ação. O conflito de legitimidades é um dos maiores desafios cul-
turas e das visões de mundo. Ai é a torre de Babel. Se tudo turais e políticos do futuro. Essas lógicas não são necessariamen-
se mistura na rede, o mesmo não ocorre na realidade. Quan- te complementares, mesmo se utilizam os mesmos suportes.
to mais o ponto a ponto se intensifica, mais é necessário dis- No primeiro plano das diversidades a preservar estão
tinguir na realidade os conteúdos, pois ninguém pode tudo as Línguas, amplamente subestimadas tanto pelos políticos
misturar e absorver. Precisamos de interrupção, de referências quanto pela mídia ou pelo mundo acadêmico. Tracei disso
culturais e da convivência das diferenças para pemar e agir. em A outra globalização e em O faturo da francofonia. Que-
A ideologia tecnicista só fala de velocidade e continui- ro apenas lembrar aqui que não há diversidade cultural, logo
dade, como nos sistemas de informação. Os homens, as socie- reconhecimento da diversidade das maneiras de pensar, se
dades e a comunicação funcionam mais na descontinuidade não respeitamos a primeira das diversidades, a das línguas.
e na convivência. Cabe lembrar sempre essa diferença para
preservar a dualidade entre oferta e procura de informação, 9
Edição brasileira: Brasília, UnB, 2005 (NT).
82 83
Especialmente as línguas natais. Estamos longe disso quan-- mundo transparente onde cada um seria um ator "multico-
do acreditamos que as 500 palavras empregadas num inglês nectado" . Elas enfatizam o papel dos conhecimentos a serem
defeituoso constituem uma "língua universal". O problema transmitidos. Nem tudo é igualdade na comunicação. Exis-
não é o inglês, necessário, mas as outras línguas, rambém tem competências específicas que justificam a transmissão.
indispensáveis e que devem ser preservadas. Não pensamos, Enfim, se levar em consideração o receptor é um
criamos ou imaginamos da mesma maneira em cada língua. avanço, pois é o reconhecimento da alteridade no esquema
O pluralismo linguístico é a fonte dos demais pluralismos. A da comunicação, é preciso não fazer dele a referência última,
língua é a condição de qualquer emancipação. Atenção às de- pois o receptor pode se tornar um tirano. Entre alteridade
sigualdades que criam inseguranças e guetos. O pluralismo é a e imperialismo, a margem é estreita. Nada pior, sob pretex-
condição necessária para limitar os desgastes da racionalização to de valorizar o receptor, que na realidade é também o lei-
do mundo. Respeitamos, enfim, a diversidade da natureza. Por tor, o ouvinte, o estudante, o cidadão, que transformá-lo em
que não respeitá-la entre os homens? A diversidade ecológica detentor do sentido e da legitimidade. Pode ser tão autori-
seria mais importante do que a diversidade social e cultural? tário valorizar excessivamente o receptor quando ignorá-lo.
O pluralismo linguístico, apesar do seu custo, é a con- A força do conceito de convivência consiste, portanto, na
dição fundamental para a diversidade cultural. Na ordem do sua capacidade de mostrar a sua importância em rodas as relações
pluralismo dos conhecimentos, também é indispensável man- de informação, conhecimento e ação. Isso evita o monopólio
ter a diferença entre o papel dos acadêmicos, pesquisadores, do sentido. Mas é preciso não cair na segmentação da realidade
especialistas e tecnocratas, pois as referências e as legitimidades numa infinidade de lógicas de referência. Esse é o fio da nava-
são as mesmas. Cada um pode passar de um papel ao outro, lha entre a falsa transparência unificadora e a segmentação da
mas sempre de maneira distinta. realidade, situado entre o falso "todo" e a falsa "singularidade".
O segundo elemento de diversidade a destacar é a va-
lorização das profissões e ofícios intermediários (jornalistas,
professores, mas também médicos, advogados ... ) que admi-
nistram as relações entre as lógicas diferentes da informação,
da ação e do conhecimento. No momento em que as nossas
sociedades são permeadas pela continuidade e pela interati-
vidade, dando a impressão de que cada um pode fazer tudo,
é fundamental lembrar a importância dos saberes e das com-
petências e a ilusão de se ter um cidadão onisciente. O aces-
so fácil às informações e aos conhecimentos não invalida, ao
contrário, o papel dos especialistas nos campos da informa-
ção, da cultura e do conhecimento. Essas profissões inter-
mediárias são indispensáveis para relativizar a ilusão de um

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CONCLUSÃO

Comunicar: tem alguém,


em algum lugar, que goste de mim?

A informação e a comunicação são inseparáveis da his-


tória da emancipação do homem. Foi por meio da liberdade de
informação que o conhecimento do mundo e o espírito crítico
desenvolveram-se. Foi graças à comunicação que a igualdade
entre os indivíduos e a legitimidade do diálogo se impuseram.
São as duas faces da grande questão da emancipação. Serão
salvas ou perdidas juncas.
A relação entre elas, no entanto, mudou. Ao longo
dos séculos XIX e XX, o problema central era a construção
dessa liberdade de informação com ajuda de um fantásti-
co avanço tecnológico. O desafio do século XXJ, ao m~nos
neste começo, é de outra natureza: organizar a convivência
pacífica entre pontos de vista contraditórios num mundo
onde cada um vê tudo e quer conservar sua identidade e sua
liberdade de expressão.
A comunicação, na maior parte do tempo, não consis-
te em compartilhar pontos de vista comuns entre indivíduos
livres e iguais, mas em organizar a convivência entre visões de
mundo frequentemente contraditórias. O que é a cornunica.-
ção> É a questão que vem logo depois da informação e que
diz respeito ao lugar do ator-receptor, aquele com quem não

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se está necessariamente de acordo , mas com o qual é preciso presente ou discorda. Se os interlocuto res aceitam administrar
negociar em pé de igualdade. a incomunicação, começa uma fase de negociação entre pon-
A com unlcaç-áo é o aprendizado da convivência num tos de vi sta contraditórios. Se essa negociação, quase perma-
mundo de lnformaçóes onde a questão da alteridade é central. Se nente, termina bem, alcança-se a convivência.
a liberdade de informação nunca é definitiva, a organização A comunicação nunca é uma prática natural , mas o re-
pacífi.ca de pontos de vista conrradirórios o é ainda menos. Em sultado de um processo frágil de negociação. É por isso que
qualquer situação, as duas são questões políticas na medida em informar não basca para comunicar. É por isso também que,
que dizem respeito à paz e à guerra entre os homens. A questão na maioria das vezes , exceto em raros momentos da vida e da
da comunicação resume , portanto, a da emancipação do indi- história, ou seja, a maior parte do tempo, comunicar é con-
víduo . É o direito de pensar, de exprimir-se, de buscar o outro, viver. Isso não é pouco num mundo aberro em que ninguém
de relacionar-se, de recomeçar, de superar tabus e de construir quer se afastar do que pensa ou crê.
cerra verdade, mas também de fracassar, de cair na solidão, na Nada é pior do que classificar a informação como boa
incompreensão. Aí reside o ponto central de qualquer projeto e a comunicação como má, como se cada um, inclusive os
humanista e de roda política, algo bem distante da mera per- jornalistas, não tivesse intenção de comunicar-se, de comparti-
formance tecnológica. Esta, obviamente, é indispensável, mas lhar, de seduzir e de convencer, ou tudo isso ao mesmo tempo,
não é suficiente para resolver esta contradição: compartilhar o quando produz e distribui uma informação.
que temos em comum e aprender a administrar pacificamente o Pensar numa teoria da comunicação significa, antes de
que nos separa. Procedimento inseparável do reconhecimen- rudo, "destecnologizar" a questão da comunicação, trazendo
to da alteridade e da política, pois coloca em cena a questão de volta a história, a polírica e a cultura. É reconhecer a impor-
central de qualquer sociedade, a negociação, tão decisiva atu- tância das sociedades por trás dos sistemas tecnológicos.
almente que é o símbolo da dificuldade, até agora, em inte- Duas imagens para caracterizar essa mudança. Falava-
grar as capacidades das ferramentas num projeto humanista se da aldeia global como símbolo da tecnologia triunfante,
na tentativa de estabelecer o mais rápido possível um vínculo nos anos 1970, com McLuhan. Depois do 11 de setembro
entre as tecnologias inventadas pelos homens para comunicar de 2001 , não é mais a aldeia global que predomina, mas a
e a comunicação real entre eles. violência do mundo aberto e a obrigação de se organizar a
Posso resumir as cinco fases do esquema teórico relativo convivência cultural. O fracasso e a incompreensão aparecem
às minhas pesquisas sobre comunicação e destacar a visão, ao no centro da comunicação e explicam o desespero dos homens
mesmo tempo, humanista e política subentendidas. Não existe em inventar tecnologias cada vez mais poderosas que, no en-
vida individual ou coletiva sem comunicação. Viver é comu- tanto, não impedem a violência nem eliminam os buracos da
nicar. Os indivíduos comun icam-se para compartilhar, seduzir incomunicação.
ou convencer. Quase sempre por esses uês motivos em pro- lncomunicacáo? Ela inexiste num modelo hierárquico,
porções que variam confo rme o tempo e o lugar. Rapidamente pois a comunicação vai de alto a baixo sem possibilidade de
eles esbarram na incomun icação . O outro , o receptor, não está discussão. Ela só existe entre iguais ou o que se tem é a submis-

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são à autoridade. É nisso que admitir a incomunicação remete É por isso que toda teoria da comunicação contém im-
a um cultura democrática. A incomunicação supõe a aceitação plícita ou explicitamente uma teoria da sociedade. A minha
das relações humanas e sociais igualitárias. Por trás da incomu- coloca a incomunicação como horizonte da comunicação e
nicação surge, portanto, a realidade fundamental da alteridade, valoriza a convivência, o que é uma maneira de reconhecer a
que rodos já experimentamos. Por isso o progresso tecnológico igualdade dos interlocutores. Destaca também o conceito de
é ambíguo. Ao acelerar a produção, a transmissão, a interativi- tolerância. A convivência pressupõe o primado da tolerância,
dade e a circulação de mensagens, mascara involuntariamente que resulra da experiência com a alteridade. O projeto da con-
a realidade da incomunicação. Para sair da incomunicação é vivência das diferenças, pois é de um projeto que se trata, pres-
preciso valorizar o papel das profissões intermediárias, de jor- supõe várias condições: a experiência concreta da alceridade; a
nalistas, acadêmicos e outros, pois elas simbolizam a compe- tolerância em relação aos outros; a referência ao universal como
tência, visto que ninguém pode conhecer todos os assuntos . meio de evitar a segmentação. Conviver é respeitar, tolerar-se,
A transmissão de saberes existe. Essas profissões contribuem ir mais longe, interessar-se pelos outros . Se o século XX foi o
também para um mínimo de intercompreensáo ao facilitar a século da informação e da comunicação, o século XXl terá
negociação entre espaços culturais que se ignoram. de ser o século da convivência das diferenças e da tolerância,
De qualquer maneira, com a globalização, a escala da sobretudo quando os efeitos da incomunicação se tornarem
incomunicação aumentou, colocando em primeiro plano a mais evidentes.
diversidade cultural, que é somente a alteridade numa escala A teoria da comunicação defendida aqui é, para além
. maior. Quanto mais houver informações e mensagens, mais a do reconhecimento da incomunicação, uma busca de convi-
dive;sidade cultural se fará ouvir e com ela virá a necessidade vência, um convite à experiência e à tolerância. Não apenas
de organizar a convivência cultural. A diversidade é um Jato, a informar nâo é comunicar, mas comunicar não é transmitir,
convivência, um projeto político. Se os canais são mundiais, assim mas conviver. A comunicaç-ão reconhece a incontornável alteri-
como, às vezes, as mensagens, os receptores nunca o são. Por isso dade entre os seres humanos e reclama mais tolerância? Essa é
não se deve jamais esquecer, nas pesquisas em comunicação, a a visão otimista do reconhecimento da incomunicação como
importância da lógica da oferta. Ligada à criação, ela é sempre dado inexorável. A pedra no caminho do terna do conflito de
menos satisfatória do que a lógica da procura, mas exemplifica civilizações, que é a versão pessimista dessa mesma constata-
justamente a vontade de se considerar a heterogeneidade dos ção relativa à incomunicação tendo a alteridade como pano de
receptores. A mudança, nos últimos 50 anos, consistiu em pas- fundo. Tolerância ou conflito de culturas. Eis o desafio. Outras
sar de um modelo de oferta a um modelo de demanda, mais civilizações na história já enfrentaram ess~ dilema.
próximo da realidade da segmentação da sociedade, rendo em Para ilustrar isso podemos fazer uma comparação. Em
contraponto a ambiguidade do papel das tecnologias. Estas, sob 50 anos, os homens aprenderam com muita dificuldade a res-
pretexto de "progresso" e de satisfazerem as demandas, podem peitar a natureza, depois de mais de um século de exploração
levar ao comunitarismo e fazer esquecer que o essencial na co- desenfreada .. Agora, enfrentam um desafio mais complexo:
municação é o espaço entre oferta e procura. aprender a conviver em paz. É um processo mais difícil do

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que o relarivo à natureza, pois eles se acham face a face, tão
parecidos e táo diferences, entregues a eles mesmos, aos seus
demônios e aos seus ideais.
É por isso que a informaçáo e a comunicação são uma
das grandes questões deste começo de século: a questão da paz lNDICAÇÔES BIBLIOGRÁFICAS
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HERMES nº 17-18 - La communicatio n politique, 1995.
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HERMES nº 23-24 - La cohabitation culturelle en Europe, 1999.
HERMES nº 35 - Les journalistes ont-ils encare du pouvoir?, 2003.
HERMES nº 38 -- Les sciences de l'infarmation et de !a communica-
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40 - Francophonie et mondialisation, 2004.
HERMES nº 42 - Peup!e, populaire, popufisme, 2005.
HERMES nº 45 - Fractures dans la société de ta connaissances, 2006.
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HERMES nº 49 - Traduction et mondialisation, 2007 .
HERMES nº 51 - L'épreuve de !a diversité cu!turel!e, 2008.
HERMES nº 52 - Les guerres de mémoires dans le monde, 2008.
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LES ESSENTIELS D'HERMES - Paris, CNRS Édirions (Funda -
dor e diretor da publicação: Dominique Wolron)
Francophonie et mondialisation, 2008.
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Les identités cof!ectives à l'heure de la mondialisation , 2009.
Sociétés de la connaissance, Jractures et évo!utions, 2009.

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