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O diabo da dúvida: histórias de pactos

com o demônio no norte e no noroeste


de Minas Gerais
Devil’s doubt: stories of demoniac`s pacts in the north and
northwest of Minas Gerais
RMA Luzimar Paulo Pereira
Dossier
Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais, Instituto de Ciências Humanas,
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: mazinhop@gmail.com

Resumo
As narrativas sobre pactos demoníacos são importantes tópicos da vida social dos violeiros do norte e noroeste de
Minas Gerais. Por um lado, elas apresentam, passo a passo, as regras de consecução dos pactos, apontando os
lugares, os momentos e os objetos mais adequados à sua execução. Verdadeiras “receitas”, os relatos guardam
todos os saberes relativos aos contatos com o diabo. Por outro lado, as narrativas também destacam o caráter
supostamente factual dos eventos. Para todos os efeitos, as histórias tratariam de casos ocorridos com alguém,
num lugar e numa época específica. Os relatos são eventos responsáveis por engendrar um campo de disputas
específico onde os violeiros e seus aliados se enfrentam em torno de reputações. Quero argumentar que nesses
embates em torno da “fama” de um tocador, a noção de “dúvida” é central. Não se trata de contestar a existência
ou não do diabo. Nos relatos, o que está em questão é a veracidade do que se conta, medida não apenas pelo seu
conteúdo substantivo mas também – e sobretudo - pela pessoa que fala ou de quem se fala.

Palavras-Chaves: sociedades camponesas; narrativas; reputação; pactos com o diabo

Abstract
The narratives about demonic pacts are an important topic in the social life of ten-string guitar players (violeiros)
in North and Northwest of Minas Gerais. On the one hand, they present, step by step, the rules of how to achieve
the pacts, pointing the places, the moments and the objects best suited for their execution. Like true “recipes”, the
reports keep all the knowledge concerning contacts with the devil. On the other hand, the narratives also highlight
the supposedly factual nature of the events. For all intents and purposes, the stories are about cases that happened
to someone, in a particular place and time. These reports are events which are responsible for engendering a
particular battleground where ten-string guitar players (violeiros) and their allies face each other when dealing with
reputations. I want to argue that the notion of “doubt” is central in these conflicts around the “fame” of a player.
In the reports, the veracity of that account is central, measured not only by its substantive content but also - and
above all - the person speaking or the person of spoken to.

Keywords: peasant societites; narratives; reputation; demoniac`s pact

Explico ao senhor: o diabo vige dentro importantes nas conversas dos devotos católicos das
do homem, os crespos do homem – ou regiões norte e noroeste do estado de Minas Gerais,
é o homem arruinado, ou o homem dos Brasil. Em geral, as narrativas podem apresentar,
avessos. Solto, por si, cidadão, é que não passo a passo, as regras de consecução dos acordos
tem diabo nenhum. Nenhum – é o que eu demoníacos. Como pequenos manuais de conduta
digo. O senhor aprova? (João Guimarães para futuros interessados, seriam respostas quase
Rosa. Grande Sertão: Veredas) obrigatórias a uma pergunta específica: “mas, então,
como se faz um pacto?”. Verdadeiras “receitas” – para
As histórias sobre violeiros 1 pactários são temas usar o termo nativo –, os relatos revelam um grande
estoque de saberes relativos aos contatos com o diabo,
1
“Violeiro” é o músico que toca a “viola” (ten strings guitar, em colocando em jogo alguns dos conceitos centrais da
inglês), instrumento cordofônico composto por cinco pares de cordas.
vida religiosa dos devotos católicos da região. Por
A “viola” desempenha papel central em festas religiosas tais como as
folias e danças de São Gonçalo (Pereira 2011). outro lado, as narrativas também podem destacar o

Recibido 27-11-2017. Recibido con correcciones 24-05-2018. Aceptado 08-06-2018

Revista del Museo de Antropología, Vol 11 Suplemento Especial 1: 25-34, 2018 / ISSN 1852-060X (impreso) / ISSN 1852-4826 (electrónico)
http://revistas.unc.edu.ar/index.php/antropologia/index
IDACOR-CONICET / Facultad de Filosofía y Humanidades – Universidad Nacional de Córdoba - Argentina
L. P. Pereira | Revista del Museo de Antropología, Vol 11 Suplemento Especial 1: 25-34

caráter supostamente factual dos acordos demoníacos. Escreve o autor:


São, portanto, histórias que tratam de acontecimentos
que efetivamente ocorreram com alguém, em época “Ter-se-iam, contudo, surpreendido
e lugar específicos. Eventualmente, as “receitas” e os bastante os céticos, invocando uma fraude
“causos” podem se confundir numa mesma história. tão verossímil, e da qual eles mesmos
Primeiro, quando o narrador apresenta as desventuras analisavam os móveis com bastante
de um suposto pactário e acaba por ter que explicar sutileza psicológica e senso político, para
como pôde ter sido realizado o acordo demoníaco. por em causa a boa fé e a eficácia de seu
Ou, então, quando, ao fornecer uma “receita”, nosso feiticeiro. Sem dúvida, ele não havia voado
interlocutor usa o exemplo de algum tocador conhecido nas asas do trovão até o Rio Ananás, e
para descrever sua eficácia. tudo não passava de encenação. Mas
essas coisas teriam podido se produzir,
Num artigo anterior (Pereira 2012), eu argumentava que tinham-se efetivamente produzido em
as narrativas de pacto colocam em jogo não apenas outras circunstâncias, elas permaneciam
simples informações relevantes sobre a vida de um ao domínio da experiência. Que um
dado personagem da vida social. As histórias estão feiticeiro mantenha relações íntimas
baseadas em ações pretensamente observadas que com as forças sobrenaturais, isto é uma
funcionam como ferramentas para conferir ou destruir certeza; que, em tal caso particular, ele
reputações coletivas ou individuais. Sem apresentarem haja pretextado seu poder para simular
descontinuidades entre representações e ações, os uma atitude profana, isto é, domínio
relatos são eventos da linguagem responsáveis por da conjetura e ocasião de aplicar a
atualizar o conhecimento demonológico das populações crítica histórica. O ponto importante
locais ao mesmo tempo em que propõem molduras é que as duas eventualidades não são
(frames) sociais e cosmológicas, por meio das quais mutuamente exclusivas, mais do que o é,
os tocadores são enquadrados e classificados pelos para nós, a interpretação da guerra como
membros de uma determinada comunidade (Goffman o último sobressalto da independência
1975; ver também Comerford 2003). nacional, ou como o resultado das
maquinações dos negociantes de canhões.
Agentes importantes de concorridos rituais do As duas explicações são logicamente
catolicismo popular, os violeiros, de fato, são objeto incompatíveis, mas nós admitimos que
constante do olhar perscrutador de ampla audiência. A uma ou outra possa ser verdadeira,
atuação dos tocadores, o tratamento a eles dispensado segundo o caso; como são igualmente
ou a forma por meio das quais eles tratarão as demais plausíveis, passamos facilmente de uma à
pessoas, dependerá em grande parte do conhecimento outra, segundo a ocasião e o momento,
que os outros têm a seu respeito, das suas condutas e, para muitos, elas podem coexistir
prévias, verdadeiras ou supostas, do seu status no obscuramente na consciência” (1996:
seio das comunidades ou da comunidade de pertença 198)
comum. Previamente estabelecidas, as reputações
também são construídas durante as interações. Como Os narradores e ouvintes das histórias de pactos
em outros domínios da vida coletiva de pequenas do norte e noroeste de Minas Gerais concebem as
comunidades rurais, elas se perdem ou se ganham, possibilidades da existência de tocadores pactários
precisam ser cuidadosamente preservadas ou buscadas e também do diabo. Ao mesmo tempo, sabem dos
a custo de muitas disputas (Marques 2002). riscos das histórias serem mentirosas, isto é, inventadas
para atingir negativamente a “fama” de um tocador.
Nesse texto, procuro destacar um aspecto que me A elaboração da “experiência” considerada possível
parece relevante para pensar os relatos sobre pactos não anula a potencialidade de uma “crítica histórica”,
demoníacos em suas conexões com as disputas por na medida em que um “causo” tido como verídico
reputação. Nas lutas em torno de honras e graças pode, na verdade, ser “invencionice” narrada apenas
(Pereira 2011), o tema da “dúvida” é central. As histórias para prejudicar outra pessoa. O embate entre versões
de pacto estão sempre envoltas por atmosferas de e contraversões dos relatos se organiza em torno da
suspeição. Não se trata, entretanto, de contestar a observação e interpretação de indícios ou sinais que
existência ou não do diabo. Nos relatos, o que está em atestem ou contestem o que se diz de um determinado
questão é a veracidade do que se conta, medida não tocador. A dúvida emerge, então, como inerente
apenas pelo seu conteúdo substantivo mas também – e aos modos de relações que destacam as dimensões
sobretudo - pela pessoa que fala ou de quem se fala. perceptíveis e imperceptíveis, narráveis e não-narráveis,
Num artigo considerado clássico, Lévi-Strauss (1998) da atividade de se tocar viola de dez cordas no norte e
destaca o papel da dúvida na feitiçaria nambiquara. no noroeste mineiros.

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Descrença numa espécie de relíquia embaraçosa de um suposto


cristianismo primitivo e supersticioso, uma metáfora,
Nos meus primeiros dias de campo no norte e noroeste um símbolo tradicional ou uma simples abstração
mineiros, eu me deparei com algo intrigante. Quando (Kolakowski 1987). Quando um violeiro me dizia
impelidos a falar sobre o capeta, meus interlocutores se “descreditar” no capeta, ele não estava querendo
mostravam bastante arredios. Numa ocasião, perguntei afirmar a inexistência da entidade. Tratava-se, na
sobre o diabo e dos supostos pactos que se pode fazer verdade, do uso cotidiano de um conceito muito
com ele a um dos tocadores de viola mais conhecidos específico de crença. A noção se aproximava, então, das
do município de Arinos, MG. Sentado na varanda de ideias de “crédito” e “confiança”; não se restringindo o
sua casa, ele prontamente me respondeu: “Eu não vocábulo, portanto, a levantar uma questão ontológica
acredito nele não. Tô mais é com minha mãezinha a respeito da existência, de fato ou não, da entidade
nossa senhora”, dizia, voltando os olhos para o céu. religiosa. “Crer” ou “acreditar” é conferir crédito, é
“Com esse aí [o diabo]”, ele continuava, “não quero confiar no compromisso com o jogo mútuo dos dons e
nem conversa”. Afastando com as mãos um diabo contradons (Mauss 2003). No norte e noroeste mineiros,
aparentemente imaginário ali presente, finalizava: “Saí afirmar a “descrença” no diabo era outra forma de dizer
pra lá, Coisa Ruim!”. que não se quer “assunto” com ele, que devoto não
pretende se engajar em contratos de reciprocidade com
A fala sintetiza algumas das minhas primeiras a entidade. Ao passo que o seu contrário - alardear a
impressões sobre o tema dos pactos demoníacos. “crença” em deus ou nos santos católicos - era o mesmo
Entendi rapidamente que mencionar o nome de alguma que reafirmar uma lealdade e, conseqüentemente,
entidade sagrada é, antes de tudo, um modo de evocar desenhar uma espécie um círculo de giz, um limite de
sua presença. A “fala”, nesse sentido, tem um poder proteção, capaz de manter o anjo negro longe do fiel.
efetivo de presentificar ou chamar à presença aquele
de quem se fala. Os católicos das regiões norte e Ilusão
noroeste de Minas, quando pronunciam o nome de
algum dos seus santos devocionais, associam a ele O receio faz todo o sentido. O demônio, caso nos
expressões manuais de respeito: olhar para o céu, tirar descuidemos, pode se tornar uma criatura bastante
o chapéu ou fazer o nome do pai. Trata-se, de fato, de presente em nossas vidas. Por isso, os homens também
um verdadeiro ritual, que conjuga expressões orais e precisam estar preparados para enfrentá-lo, com perícia
atividades manuais. Para todos os efeitos, indicam que e sagacidade. Além de mal e poderoso, o diabo costuma
os santos podem estar por ali. Parecia-me, então, fácil ser muito esperto e sedutor. Exímio tocador de viola,
entender a relutância dos meus interlocutores no caso o “tinhoso” pode aparecer disfarçado, empunhando
dos assuntos demoníacos: se pronunciar o nome de uma seu instrumento sobre pequenas embarcações, com o
personagem sagrada é um ato capaz de presentificá-la intuito de encantar as mulheres que lavam suas roupas
(ou de, pelo menos, clamar por sua presença), o receio às margens dos rios. Manoel de Oliveira, da cidade de
de se falar do diabo teria uma explicação razoável2. Urucuia, gosta de relatar um destes episódios fabulosos.
Nenhum dos meus interlocutores pretendia atrair a Numa tarde, na varanda de sua casa, ele me contava
entidade para perto de si. esta história:

O que me parecia mais difícil de compreender era outra (...) fala que o capeta pegou uma canoa
coisa: se meus interlocutores diziam não “acreditar” e desceu tocando uma viola. Tinha uma
no capeta, por que reforçavam, na fala e nos gestos, mulher na ponte, lavando a roupa e
sua proximidade com os santos? Por que destacar a aí ouviu aquele som. E vai descendo,
devoção a seres divinos quando não se está disposto a ouvindo aquela música, vai, vai, quando
“crer” na existência do diabo? Demorei para entender ela avistou aquela canoa com o violeiro.
que eu e alguns dos meus informantes não dizíamos Evem, evem, e ela achando aquela música
a mesma coisa quando falávamos em “acreditar” em bonita. Quando chegou assim, perto dela,
alguém ou alguma coisa. A expressão “não acreditar tinha um remanso e a canoa era um caco
no diabo”, no norte e noroeste de Minas Gerais, não de cuia. E ele dentro tocando a viola. E aí,
evoca necessariamente um processo de secularização “Esse moço foi Deus que mandou” [disse
do pensamento religioso; nem é um simples reflexo dos ela]. “Não senhora, foi eu mesmo que
(pouquíssimos e envergonhados) debates promovidos vim” [respondeu o diabo]. “Esse moço veio
pela igreja católica oficial nos últimos dois séculos, lá do seu”[ela repetiu]. “Não senhora, eu
responsáveis em grande medida por transformar - vim lá de casa” [ele respondeu outra vez].
pelo menos para seus principais ideólogos – o diabo Aí, o menino [filho da mulher] falou: “Oi,
o pé dele!”. ”Quieta, menino” [ela ralhou].
2
Significativamente, as pessoas preferem tratar o diabo por nomes
genéricos ou apelidos, tais como o “cujo”, o “dianho”, a “coisa”, o Aí, ele [o menino] não contente [disse]:
“diá”, o “escuro”, o “pé-de-bode” etc. “olha mãe, ele tem um chifre!”. “Aquieta,

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menino! Cada qual como Deus o fez!”. E do que lhe é intrínseco deve escapar à percepção das
aí ele [o demônio] falou: “É memo, dama, pessoas, embora exija certas disposições específicas
cada qual como fez o fez!” (Manoel de para seu entendimento. Primeiro, os sinais verbais. A
Oliveira, Urucuia/MG). narrativa nunca nos apresenta a música “bonita” que
o demônio toca3. O que ouvimos na história, de fato, é
A história é até certo ponto exemplar. Em primeiro a fala do capeta que, ao contrário da sua bela música,
lugar, a narrativa tem início com a introdução de um é extremamente seca e dura: “não senhora, eu vim lá
verbo que distancia o narrador do relato apresentado. de casa mesmo!” (Seu Manoel, quando narra, encena
“Fala”, que aqui quer dizer “o povo fala”, indica que a entonação rude da fala do demônio). Além disso,
Manoel não se compromete ontologicamente com a o que diz o diabo também parece relevante como
história, deixando a avaliação de sua veracidade para indício que revela sua identidade: sua fala nega a deus,
o ouvinte de um relato produzido por uma coletividade sem nunca pronunciar seu nome (de deus). Se dizer o
de pessoas dispersa estrategicamente no tempo e no nome é evocar a presença, compreende-se também
espaço. Não há menções a lugares ou épocas em que o receio do anjo negro. A graça do relato, por assim
habitava o “povo” que criou a narrativa. O efeito deste dizer, está contida no fim, quando o capeta diz: “não,
distanciamento é ambíguo: se for “invenção”, foi o dama, cada qual como fez o fez!”, produzindo frase
“povo”, enquanto o outro de Manoel, que “inventou”. em que o sentido quase se perde apenas para que não
Logo, o narrador não estaria repassando “mentira” seja pronunciado o nome de deus. O avesso aos sinais
como se fosse verdade. Mas, por outro lado, se o divinos é o indício da identidade do demônio.
“povo diz” pode ser que seja real. No norte e noroeste
de Minas Gerais, como atesta o ditado, a voz do povo Há também os sinais corporais. Os atributos distintivos
também pode ser a voz de deus; o que, noutros termos, do capeta aparecem para ambos, mulher e criança. No
revela a poder criativo de sua palavra. entanto, a mãe parece preferir não dar importância
ao chifre e ao pé (rachado), enquanto o menino tenta
A retórica que propõe o distanciamento está insistentemente alertá-la sobre o que estes sinais
intimamente relacionada ao fato do “causo” tratar devem significar. No artigo de 2012, eu havia dito que
do extraordinário. Não apenas porque evoca uma o separava a mulher e a criança era a capacidade do
personagem supostamente sobrenatural; afinal, para os filho de enxergar os sinais demoníacos, contraposta
habitantes do norte e do noroeste de Minas, o diabo a incapacidade da mãe. A força maligna do tentador
pode ser tão cotidiano quanto os santos católicos. residiria na sua habilidade de iludir e atrair as pessoas
Na verdade, o extraordinário emerge do relato como com pseudo-milagres; os quais só poderiam ser
capacidade que alguns agentes têm de realizarem feitos desvelados por sujeitos pios (como a criança) e
que os homens não podem ou não conseguem realizar. piedosos (como os santos) (Pereira, 2012). Talvez, essa
O mundo tem seus mistérios, mas não há registro, em interpretação necessite ser mais matizada. A mulher
Urucuia, terra de seu Manoel, de ser humano algum percebe os chifres e o pé-rachado do capeta (“Aquieta,
capaz de navegar em rios sobre um caco de cuia. Muito menino. Cada qual como deus o fez!”). O que ela não
menos “tocando viola”. No âmbito do extraordinário faz – ou se recusa a fazer - é confirmar esses traços
também há o “toque bonito” do capeta. Um toque corporais como indícios de que está na presença do
que, evidentemente, não poderia ter origem entre diabo. A mãe percebe, mas não confirma o que os
os homens, mas apenas em “deus”. O extraordinário sinais nos dão a dizer. A narrativa evoca o tema do
desloca a existência cotidiana porque pode ser traduzido “encantamento”, mas sem apelar para a capacidade
pela ideia de “milagre”: acontecimento inusitado e dos seres demoníacos de escamotear sua essência a
estupendo que teve origem a partir da intervenção partir dos disfarces em sua aparência. O que parece
de forças divinas. No caso narrado, a questão que se estar em jogo é, na verdade, algo próximo à ideia de
torna relevante é o fato da mulher trocar a santidade de desejo. A mulher, noutros termos, não se importa com
deus pela enganação do diabo. O demônio, o “Pai da o que está vendo porque está literalmente atraída pelo
Mentira”, o operador maior de “falsos milagres”, revela- diabo. Não seria nessa atitude o lugar semiótico de onde
se, aqui, um grande ilusionista, um prestidigitador emerge o sentido nativo da “ilusão”, que também é o
notável. O erro primordial da mulher foi atribuir à beleza outro nome do “amor” e do “sonho”?4
extraordinária do toque diabólico aos poderes de deus.
Erro que, inclusive, pode ser fatal. Em outras histórias Receitas
que ouvi, diz-se que um dos efeitos do toque demoníaco
é incitar as mulheres a saltarem nos rios – atraídas por 3
É bom deixar claro que seu Manoel gostava de contar essa história
eles - para depois morrerem afogadas. antes de tocar uma música instrumental que ele mesmo compôs – o
que, junto com a fala, acabava dando a ideia de que aquela era a
música que o capeta poderia estar tocando.
No relato apresentado por seu Manoel, o diabo emite 4
Ana Carneiro e María Rossi me chamaram a atenção para o fato de
sinais da sua presença. Em certo sentido, mesmo o que a mulher soubesse que estava conversando com o capeta. Nesse
maior dos embusteiros pode ser desmascarado. Nada sentido, a ideia de “ilusão” ganha sentidos mais próximos à ideia de
“paixão”.

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A rigor, os devotos da região norte e noroeste de mestre. A viola tem que ta encordoada,
Minas Gerais não utilizam os substantivos “pactário” e zerinha, desafinada (...). Ele não pode
“pacto” para se referirem, respectivamente, a alguém ter tocado nessa viola. Ele só pode ter
comprometido com o demônio e ao acordo secreto comprado da loja, escolhido essa viola na
firmado entre os dois. Mais comumente, eles preferem loja, e trouxe, e ele vai tomar parte. Ele
usar as locuções “aquele que tem parte com”, ao deixou desafinada e [depois que acabar
invés do primeiro, e “tomar parte com”, no lugar do o pacto], ele pega ela afinadinha (José
segundo. As diferenças parecem significativas. A noção Gonçalves Rocha, Chapada Gaúcha/MG).
de “parte” evoca simultaneamente um contrato em que
não existiria uma separação jurídica ou religiosa muito Trata-se, aqui, de um relato que explica como se
clara entre o contratado e o contratante, nem mesmo faz um pacto. Noutros termos, ele prescreve ao seu
entre o que é dado e o que é recebido. Quando o devoto interlocutor – no caso, eu – uma “receita”, um como
fala em “tomar parte” ele está querendo indicar, em fazer. Notemos, desde já, o cuidado que José toma logo
primeiro lugar, a transmissão mágica de um certo poder na terceira frase do seu relato: “diz que ele põe a mão
ou qualidade do diabo ao pactário (esta qualidade é ela no ocro da igreja lá...”. O “diz que”, aqui, implica um
mesma denominada “parte”). Da mesma forma, aquilo afastamento da “receita”, na medida em que autoriza o
que o interessado entrega ao demônio – pode ser a alma relato apelando para uma entidade anônima e coletiva
ou outro tipo de “favor” – também se confunde com (“o povo diz que...”). Compreensível. Saber e dizer a
seu proprietário. O pactário – aquele que “tem parte” alguém como se faz um pacto é correr o risco de ser
– torna-se uma espécie de propriedade (temporária ou acusado de pactário também. Mais uma vez, o apelo a
permanente) do seu parceiro de trocas, que passa a um narrador coletivo implica o descomprometimento
deter os direitos sobre aquilo que, antes, indicava sua público do contador com a história que ele contava.
ligação com deus (sua alma). Dessa maneira, ambos os
lados se tornam “partes” um do outro, ao ocuparem A “receita” estabelece lugares e momentos propícios
uma “parte” específica no campo das disputas cósmicas à sua realização: na meia-noite da Sexta-Feira da
(em oposição à “parte de deus”, por exemplo). Paixão, diante de uma igreja. A data, permeada de
ambiguidades (o dia em que Jesus sofreu no calvário
A noção também designa, num sentido mais específico, é também a data das aparições de todos os tipos de
uma espécie de acordo ilícito, obscuro, a partir do qual encantados), é significativamente marcada por diversos
os contratantes se unem para uma “combinação”, tabus sexuais e alimentares, como a evitação de comer
“tramóia” ou “conchavo”; o que explica, pelo menos carne de gado ou de beber qualquer tipo de bebida
parcialmente, o caráter secreto da operação. O conceito alcoólica. O momento em que “este mundo” e o “outro
de “parte” se aproxima, aqui, das ideias de “estar à mundo” se tornam perigosamente próximos é também
parte” ou “apartado”, para indicar, por um lado, o o momento em que se pode tratar com o diabo.
afastamento do tocador das zonas mais próximas As presenças da igreja e do demônio, dentro dela,
daquilo que é considerado central e mais importante na operam as inversões. A morada permanente de deus
vida dos devotos da região, e, por outro, o seu caráter se transforma na habitação provisória do capeta. Os
de conspiração e segredo. As narrativas sobre pactos sinais da divindade são momentaneamente apropriados
e pactários, de um modo ou de outro, dramatizam pela ação de forças malignas. Tudo, no mais sigiloso
o caráter secreto e ao mesmo tempo mágico das dos pactos que um homem faz, sozinho, com o diabo.
operações. Numa ocasião, quis saber de um tocador
da Chapada Gaúcha, no noroeste de Minas Gerais, se Na “receita” fornecida por José Gonçalves, assim como
existia essa história de tocador de viola que tem assunto em outras, a viola desempenha papel fundamental.
com o diabo. Ele, então, me explicou: Segundo o relato, o pactário deverá levar o instrumento
novo ou, pelo menos, recém-encordoado, mas sempre
O violeiro [pactário] é que qué tomá parte desafinado, para seu encontro com o capeta. A viola,
e ele não tem outro jeito de aprendê tocá. noutros termos, precisa estar “virgem” do contato
Aí ele vai tomá parte. Aí ele vai pruma humano antes de ser empunhada pelo diabo. Ela precisa
igreja, na sexta-feira da paixão, à meia- estar “pura”. Nesse sentido, um dos efeitos do pacto
noite. Agora ele vai, diz que ele põe a mão inaugura um “novo” instrumento através de uma nova
no ocro da igreja lá5. Aí vem uma mão forte afinação (há versões que dizem que o diabo afina a
e aperta a mão dele, dessa pessoa que ta viola diante do pactário, enquanto outras dizem que
lá dentro da igreja e que qué aprender a o pactário já vai pegá-la afinada). Em segundo lugar,
tocar. Se ele grita, não aprende. E se ele as “receitas” trabalham com o tema das mãos. No
não gritar, aprende. Agora depois que ele relato apresentado pelo seu Zé Gonçalves, as mãos
sai de lá, se ele não gritou, ele já sai um são apertadas de modo a causar dor no futuro violeiro.
Numa outra versão, mais do que apertar, o diabo rasga a
5
O termo “ocro” designa um buraco ou passagem de ar aberto nas pele do pactário para quebrar seus ossos. Efetivamente,
paredes de uma igreja.

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temos aqui também a ideia de reconstrução. Uma mão de Urucuia.


que se torna outra, assim como a viola que se tornou
outra. Na versão alternativa da receita, parece até que Olha, eu fui criado por uma mulher que
uma mão (a do capeta) toma o lugar da outra (a do tocava viola. Eu via ela tocar e achava
pactário), por dentro. Assim é que pode dizer que a muito bonito… Mas eu era muito pequeno
“parte” vive “na mão” do tocador “por parte”. e ficava só observando. Aí fui crescendo
e ela saia e deixava a viola afinada e eu
A receita de pacto parece implicar a criação de um duplo, dei pra pegar a viola escondido. Daí, evai,
constituído pela viola e o violeiro. Ambos se tomam com um tempo eu já saboia fazer uma
amalgamados pela “parte do diabo”. As dimensões do coisinhas. Aí um dia ela pegou eu com a
ouvir (saber afinar) e da mecânica das mãos (manipular viola. Daí ela pegou e desafinou a viola.
o instrumento) definem as habilidades mais importantes Falei: “e agora?”. Aí, outro dia ela tornou
do tocador, na medida em que são os meios pelos quais a esquecer a viola afinada, eu peguei.
instrumento e pessoa tornam-se ajuntados, “uma coisa Nisso, eu gravei a afinação. Aí, ela saia e
só”. Não é por acaso que é nesse intervalo que se insere eu lá esmerilhava, aprendendo as coisas
o poder maligno do capeta. Faltaria no relato de Seu que ela fazia. Cada vez que ela tocava eu
Zé um outro elemento que reforça o par: os toques (ou pegava uma coisinha. Aí, quando é um
músicas) de viola. O pactário não é apenas aquele que dia, ela deixou a viola desafinada. Aí eu
sabe afinar seu instrumento e demonstra habilidades peguei e afinei a viola. Quando ela chegou
com suas mãos. Ele também é capaz de executar eu tava tocando a viola. Ela falou: “quem
músicas extraordinariamente belas. Outras “receitas” que afinou essa viola procê?!”. Eu falei:
dão destaque a essa dimensão, quando afirmam que “foi eu”. Aí, ela não mexeu mais comigo,
uma das responsabilidades do diabo é “ensinar” seus não, largou, deixou...
toques bonitos ao pactário. A ideia de “parte” ganha,
então, novo significado. Ao se espalhar pelos corpos Contado em primeira pessoa, como algo pertencente
e espíritos dos violeiros, em seus ouvidos (para afinar), ao plano da experiência, o relato da influência destaca
em suas mãos (para manipular) e nas suas “ideias” (para o esforço empreendido pelo proponente a tocador,
inventar toques), e ao se alojar na materialidade dos ainda criança. Para diversos deles, de fato, aprender a
instrumentos (em suas cordas) para dar-lhes vida (as tocar um instrumento é uma “peleja”, uma luta, que o
violas que respiram podem também tocar sozinhas), aprendiz tem contra o próprio instrumento, contra as
a força do pacto propõe uma totalidade que engloba limitações do seu corpo (“mãos”) e espírito (“ideias”),
a relação entre homens e coisas ao poder do diabo. além das próprias pessoas que se recusam a dividir sua
viola com um menino. A peleja termina, efetivamente,
Influência quando o jovem aprendiz tem acesso total à viola.
Quando é capaz de afiná-la e tocá-la diante de uma
O conjunto de receitas de pacto pode ser contrastado audiência. A questão, então, parece se constituir em
com outro conjunto de relatos que denomino de torno das disposições que o conceito de influência quer
narrativas da “influência”. As histórias “de influência” abarcar: o impulso para se tocar viola e sua efetivação,
explicam, para os próprios violeiros e para eventuais quando aquele que quer consegue de fato aprender.
pesquisadores, como e porque eles começaram a “Porque é assim, né, tem aqueles que tem vontade de
tocar viola. No artigo de 2012, eu argumentava que aprender pegar uma viola e sair tocando, mas não pode.
o conceito de “influência” era aparentado da ideia Ele tem vontade, mas não tem influência”.
de “dom”: a habilidade, dada por deus ou herdada
através da família, que permitia ao beneficiário ser Há, claro, um sentido de “dom” presente nos relatos da
exímio instrumentista (Pereira 2011; 2012). Nesse “influência”. O violeiro que aprende está executando
sentido, a noção expressaria a ideia geral de que é a uma predisposição dada. No entanto, os relatos da
própria divindade quem define a identidade musical influência também dramatizam as consequências
de qualquer tocador (mesmo quando a influência é dos esforços positivos dos próprios tocadores no
entendida como “familiar”, no limite, ela é um presente sentido de aprender a tocar um instrumento. E são
divino dado a uma família). Em certo sentido, o conceito ainda mais: as histórias implicam o reconhecimento
– ao modo holista de Louis Dumont – seria responsável dessa “influência” por parte dos outros próximos que
por expandir o violeiro a outros planos de existência, conseguem enxergá-la através de sinais indiscutíveis:
estabelecendo conexões entre ele, seus familiares, seus saber afinar, fazer posições, reproduzir toques etc.
antepassados e as divindades do céu (Dumont 1997). Assim, o par estabelecido entre viola e violeiro se realiza,
de um determinado ponto de vista, por meio do esforço
No entanto, há uma outra dimensão da “influência” do aprendiz que efetiva condição oferecida por deus
que precisa ser melhor trabalhada. Aquela que implica na forma do “dom”. Por outro lado, ele depende do
a ideia da ação. Apresento aqui o relato de seu Manoel, reconhecimento dos outros. A lógica da “influência”

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O diabo da dúvida ... | Revista del Museo de Antropología, Vol 11 Suplemento Especial 1: 25-34

operaria da mesma maneira dos sistemas de reputação: situações. Dizia:


algo que se equilibra entre as visões das pessoas sobre
si mesmo e as opiniões determinantes do coletivo a Eu com idade de uns oito anos aprendi.
partir de seus atos (Bailey 1971)6. Tinha um irmão, mais velho, que era
tocador. Ele ia pra roça, deixava a viola e
Nesse sentido, o par viola e violeiro constituído nos eu panhava a viola é tocava, aí, ele não
termos da influência contrasta com o par estabelecido queria que pegasse na viola. Mas ele
por meio de um pacto demoníaco. Nas narrativas da deixava afinada e eu falava pra minha
influência, a conexão constitui-se por meio do trabalho mãe: “não conta pra ele não que ele vai
efetuado pelo futuro tocador cuja felicidade deve ser bater em mim”. Quando passou os dias,
reconhecida pelos outros. No final do processo, a eu tocando, a velha achou bão, e eu
existência do “dom” é confirmada pela coletividade. Nos tocando, e ela chego e contô pra ele. Ele
relatos de pacto, ao contrário, os sentidos da conexão foi olhando e eu toquei. Daí em diante ele
são outros. O trabalho árduo do aprendizado longo deixava lá pra eu tocá (Faustino, Chapada
tem como contraponto a dor de quem aprende de uma Gaúcha/MG).
hora para outra (não deve ser por outra razão que os
relatos sempre destacam que o pactário deve saber Faustino também não gostava muito de falar do
conter sua dor). Além disso, não há reconhecimento diabo. O assunto, na verdade, parecia desagradá-lo
público do violeiro, apenas a operação secreta realizada profundamente: quando propus uma conversa rápida
em conluio entre homem e diabo. Ao invés da “peleja”, e genérica sobre o tema, disse não ter nada a ver com
o “sacrifício”. Ao invés de dominar o instrumento, se aquilo e ainda chamou sua esposa para que, na minha
é dominado por ele (a “parte” vive dentro da viola). frente, confirmasse suas declarações:
Ao invés da honra e da graça, a desonra e a desgraça.
Ao invés do reconhecimento público, o segredo. Não... essa véia mesmo aí, ela doente, minha
Como resultado, os sinais que identificam o tocador mulher, pode dizer: tenho parte nenhuma...
- o ouvido para afinar, a técnica manual para tocar, o Nem sei se conheço receita, não. Não sei. Tem
um homem aí que diz que fez, eu nunca vi não.
conhecimento de uma variedade de toques – disparam
Não sei como é que faz.. Eu tenho um medo,
sentidos opostos, para serem evidências da presença
menino. Peço pra deus livrar a gente (Faustino,
do diabo por detrás das operações. O que se dá a ver, Chapada Gaúcha/MG).
efetivamente, é a mesma coisa: o par viola e violeiro.
O que os une, no entanto, podem ser outras coisas O velho Faustino não sabia, mas minha visita à sua
bem diferentes. residência foi realizada por conta dos rumores locais
de que ele teria feito, anos atrás, o famigerado pacto
Fama com o diabo. Durante o período em que permaneci em
Chapada Gaúcha, ouvi algumas versões sobre o assunto.
Faustino de Jesus (nome fictício) tinha 70 anos quando Às vezes, os relatos surgiam com alguma naturalidade
fui visitá-lo em sua casa, numa tarde de janeiro de 2005. - logo depois de uma pergunta sobre o tema dos
Agricultor aposentado, morava com a esposa e uma pactos - e proferidos com um indisfarçável ar de
de suas filhas numa residência simples, localizada num jocosidade. Noutras ocasiões, eles eram acompanhados
bairro periférico do município de Chapada Gaúcha/MG. por expressões de admiração, fazendo emergir aos
Simpático como quase todos os tocadores que conheci poucos a imagem de um exímio instrumentista, capaz
na região, o violeiro foi extremamente gentil durante os de pontear sua viola como ninguém e proprietário de
dois dias que estive ao seu lado. Como muitos tocadores um vasto repertório musical. Não faltavam às descrições
da sua região, Faustino disse ter descoberto sua também os toques do extraordinário, responsáveis por
inclinação nas artes da viola ainda menino, pegando, disseminar certo temor entre aqueles que acreditavam
às escondidas, o instrumento de seu irmão para tocar: na sua condição de pactário: Faustino, diziam, seria
“isso é da gente, uma inclinação que a gente tem”. O capaz de fazer sua viola tocar sozinha e podia quebrar
violeiro disse também ter aprendido tudo o que sabe as cordas do instrumento de outro tocador através de
sozinho, observando e tentando imitar os tocadores rituais de magia.
mais consagrados da sua infância. O processo não
As narrativas dos detratores não correspondiam em
foi fácil. Até ser reconhecido como tendo jeito para o
nada ao discurso elaborado pelo próprio Faustino.
instrumento, o então aprendiz tinha que se ver com As lembranças dos seus esforços de aprendizagem,
as resistências do irmão, que não aceitava que uma iniciados ainda na infância, se perdiam entre versões
criança mexesse na sua viola de estimação. Durante contrárias que destacavam as qualidades nefastas das
muito tempo, sua mãe lhe serviu como aliada nestas suas habilidades instrumentais. Uma vez, outro cantador
de Chapada Gaúcha, me dizia.
6
“A reputação de um homem”, escreve Bailey, “é menos uma
qualidade que ele possui do que as opiniões as quais outras pessoas Tinha um homem que tinha parte. A
têm sobre ele” (1971: 4).

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L. P. Pereira | Revista del Museo de Antropología, Vol 11 Suplemento Especial 1: 25-34

mulher dele morreu agora esse ano. pra dentro e vou deixar a viola tocando
Ela contava a história todinha, que ele sozinha proceis vê”. (...) Era noite isso.
tinha parte, mas ninguém sabe como Aí todo mundo entrava pra dentro, ele
que ele aprendeu. Ele morava num sítio também entrava, deixava a viola sozinha
pequeno, folião de primeiro. Ele tocava aqui e a viola ficava comendo cá fora.
a noite todinha e não voltava atrás [i.e., Verdade! A viola tocando sozinha! Tocava
não repetia o toque]. (...) Muita gente sozinha aquele mesmo toque que ele
conheceu ele tocá. Era mais especial do tocava com a mão aqui, a viola. Tinha
mundo. E ele dava pra quem ele queria a alguém tocando, né? Ninguém via no
parte. Pra você pegá a parte com ele, ele escuro e o Belão tava lá dentro também.
tirava a corda da viola e botava na viola (...) Deve ser encanto, né? Porque tinha um
sua. Dali um mês cê tava tocando igual
compromisso com aquele anjo... (Jonas,
os caipira [i.e., os violeiros das duplas
Chapada Gaúcha-MG).
caipiras]. Ele dava aquela força lá. Cê
misturava lá uma corda da viola dele e
A insistência em atestar a veracidade das informações,
botava na viola sua e ficava as dez corda
recorrendo-se ao “povo” ou ao nome de pessoas
completa. Aí aprendia rapidinho, como
consideradas idôneas, parece ser uma estratégica
aprendia muitos aqui. O Faustinho velho,
narrativa que revela a natureza não consensual dos
lá da Chapada, aprendeu; ele não fala não.
relatos. Produtos de um campo de vozes discordantes,
O Faustino é um tio meu, mas o Faustino
as histórias são disseminadas numa arena de disputas
tocava demais... (Cirilo [nome fictício],
onde as reputações das pessoas e coletividades nunca
Chapada Gaúcha/MG).
são efetivamente rígidas ou imutáveis, estando sempre
sujeitas aos movimentos diabólicos das opiniões e
Ao contrário das narrativas da influência, as histórias a sociabilidades. No entanto, há que se considerar
respeito dos personagens supostamente pactários do algumas diferenças. O uso da ideia de “povo” implica
norte e noroeste de Minas nunca me foram contadas certo afastamento do narrador, que deixa a critério do
pelos próprios tocadores. Aparentemente, não existe ouvinte o julgamento da veracidade do que é contado.
violeiro que se assuma como “tendo parte” com o Em certa medida, o apelo evoca a tentativa de não se
diabo. Em geral, os relatos costumavam ser creditados correr o risco de ser objeto de um tipo de avaliação
ao povo (“É o povo que fala...”), muitas vezes moral que pode aproximar seu relato da “maledicência”
pontuados pela expressão “diz que” (“Diz que fulano (literalmente, dizer mal dos outros). A referência a
tem parte”)7. Além disso, com bastante frequência, nomes próprios que atestariam a veracidade do que
as narrativas me eram repassadas por interlocutores se conta, portanto, é outra coisa. Ela aponta para a
que, em sua maioria, diziam ter ouvido as histórias implicação do narrador na história. Na medida em que
sobre pactos e pactários da boca de pessoas laços familiares são acionados, o contador informa
próximas. Ligados afetivamente àqueles com os quais que não há ambiguidade no que se conta. A história é
eu conversava, os narradores “originais” dos relatos efetivamente real. O nome de seus familiares atestam
pareciam conferir a autenticidade das versões, ao a veracidade do relato.
serem apresentados como sujeitos de “confiança”: um
avô, um pai, um irmão, um compadre ou um amigo, Não se trata aqui de lidar com versões de um mesmo
a quem eles se referiam como incapazes de “mentir”. “causo” transformado durante suas circulações por
entre as pessoas. Há, efetivamente, duas narrativas
Meu pai viu o Belão tocá, não era mentira. diferentes em jogo: a do pacto e a da influência. Mais
do que versões, ambas as modalidades de relatos
O Belão tocava aqueles toque mais lindo
permanecem como enquadramentos distintos que dão
daquele tempo, uma admiração, (...), diz
sentidos diferentes a sinais muitas vezes os mesmos. Os
que era bonito demais. Daí meu pai enchia
indícios do pacto não são inequívocos. A viola que toca
o saco e ele [o Belão] falava: “agora cês sozinha, sinal da presença do diabo, pode, por outro
entra lá pra dentro. E eu vou também lá lado, ter sido bolinada por algum bicho que passou
sobre ela. É a “maldade das pessoas”, a “inveja”, que
7
Há semelhanças entre o “diz que” e o lo que diran espanhol, que diz o contrário. A inversão de sentido não ocorre sem
também evoca um ator que julga sem piedade as pessoas e seus
modificações das qualidades do próprio narrador das
comportamentos. Diz Gilmore: “The audience here which determines
his fate is ever watchful unforgiving, exacting. It is everyone and it is histórias. A “maldade” que se acusa ser atributo do
no one. Although the instigator may be known, no single tormentor tocador afamado desloca-se para a fala do disseminador
can ever be identified, as no single admirer can; and indeed, people das notícias. Nesse sentido, a narrativa pode soar como
always say that it is el pueblo (the people) or the town which gossips fofoca para atingir a reputação de quem se glosa. O
or pillories or ostracizes or admires. The audience is a single, collective
relato perde valor de verdade para se tornar apenas
organism: the entire community acting as one. (...) Thus observed by
everyone and by no one in particular, every man and woman conceives a “fama” do violeiro. Numa ocasião, seu Manoel, de
of him and hearself as being in a harsh spotlight, an actor in some Urucuia, me falava do seu compadre, acusado de ser
unimaginable stressful drama, stretched out naked and helpeless for pactário do diabo.
judgment before a tyranical judge, a nebulous, intangible, but ever-
present taskmaster” (Gilmore 1987: 33).

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O diabo da dúvida ... | Revista del Museo de Antropología, Vol 11 Suplemento Especial 1: 25-34

O compadre Aléscio (...), o povo fala que Agradecimentos


ele tocava por parte. Não tocava não!
Dizem que ele botava a viola na mesa, e Essse texto foi apresentado no I Seminário de Etnografia
ela tocava sozinha. Mas é conversa. É só da Linguagem, realizado na Universidade Federal
fama. Botaro essa fama nele, mas ele não Fluminense, entre os dias 20 a 22 de outubro de 2015.
fazia isso não. (...) [Ele] sabia tocá lundu, O evento foi uma oportunidade de retomar texto já
essas coisa. Então, tinha essa fama de publicado em 201 (Pereira 2012) e rever abordagens
violeiro [da parte]... Eu perguntei pros e interpretações. Agradeço à Lucía Tennina e à
irmão dele se ele fazia isso: “Não, ele Simone Silva pelo sucesso do encontro. Além delas,
nunca fez isso não. É fama.” (Manoel de quero agredecer também os comentários sugestivos
Oliveira, Urucuia/MG). de Luciana Hartmann e dos demais colegas que
participaram do Seminário, que muito contribuíram
Os embates por reputação ocorrem em torno da para minhas atuais reflexões. Obviamente, nenhum
noção de “fama”, que corresponde, grosso modo, à deles tem qualquer responsabilidade pelos eventuais
imagem pública do violeiro produzida pelas pessoas equívocos desse artigo.
que o cercam. Num sentido amplo, o conceito opera no
sentido de singularizar o tocador: o violeiro “afamado”
é aquele que é conhecido por muita gente – por ser Bibliografia
bom ou ruim. E quanto melhor ele for, mais “afamado”
ele é. Resultado de avaliações coletivas, a fama evoca Bailey, F.G.. (1971). Gifts and poison, Oxford, Basil
a pessoa moral (separada da sua existência física) que Blackwell.
circula junto com as histórias de seus feitos e façanhas
através da oralidade das outras pessoas (sobre a noção Campbell, J. K. (1988). “A honra e o diabo”, in Peristiany,
de “fama”, ver Munn 1992). Ao mesmo tempo, a
J. G. (Ed.), Honra e Vergonha: valores das sociedades
ideia também aponta para a suspeição temporária da
mediterrâneas, pp. 111-126, Fundação Calouste
veracidade de uma narrativa. Longe de ser incontestável,
Gulbenkian, Lisboa,
a reputação do violeiro passa a ser considerada “justa”
ou “injusta”, “verdadeira” ou “mentirosa”. No reino da
oralidade, a fama é disputada quando indícios físicos Comerford, J. (2003). Como uma família: sociabilidade,
são testados e contestados oralmente pelos narradores territórios de parentesco e sindicalismo rural, Relume
das histórias (“a viola não toca sozinho nada. É bicho Dumará / Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ, Rio
que passa por cima e o povo inventa”). de Janeiro.

Num primeiro momento, a noção de fama aponta Dumont, L. (1997). Homo Hierarchicus, Edusp, São
para os perigos da excessiva diferenciação, quando Paulo.
um se torna “mais do que os outros” nas pequenas
comunidades rurais do norte e noroeste mineiros8. No Gilmore, D. (1987). Aggression and Community:
entanto, há um outro ponto a ser destacado. Os debates Paradox of Andalusian Culture, Yale University Press,
a respeito da biografia de um tocador parecem revelar New Haven and London.
a maneira pelas quais são constituídas e avaliadas as
próprias práticas dos violeiros na região: se são os Goffman, E. (1975). Frame Analisys: an Essay on the
outros aqueles que (reconhecem) a influência, serão eles Organization of Experience, Harvard University Press,
também quem poderão retirá-la. Cabe, neste sentido, Cambridge.
garantir, através da luta, a autenticidade das opiniões
gerais. O regime da dúvida é central nas histórias “de Kolakowski, L. (1987). “O Diabo”, Enciclopédia
parte”. Nesse sentido, o pacto não pode ser entendido EINAUDI, n. 12, pp. 243-265, Imprensa Nacional-Casa
apenas como rito que dramatizaria a venda individual da da Moeda, Lisboa.
alma de um violeiro para o capeta. Muito ao contrário,
ele pode ser outra coisa, para representar a consciência
Marques, A. C. (2002). Intrigas e Questões: vingança
coletiva da usurpação social do espírito de um tocador.
de família e tramas sociais no sertão de Pernambuco,
Relume Dumará, Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, 12 de Julho de 2016
Mauss, M. (2003). Ensaios de Sociologia, Editora Cosac
& Naify, São Paulo.
8
À primeira vista, as narrativas pareciam operar no sentido de reforçar
a igualdade como um valor axiomático da vida comunitária. O pecado
Munn, N. (1992). The fame of Gawa: a symbolic study of
do suposto tocador da parte, por assim dizer, era ser considerado value transformation in a Massim (Papua New Guinea)
“melhor” instrumentista do que os demais violeiros de um lugar: “o Society. Durham, London: Duke University Press.
povo falava”, dizia um devoto, “porque ele era bão pra tocá. Os outros
não fazia o que ele tocava, né?” (Augusto, Chapada Gaúcha/MG). O
valor da igualdade em pequenas sociedades camponesas é registrado
Pereira, L. P. (2011). Os Giros do Sagrado: um estudo
por diversos autores. Ver, por exemplo, Pitt-Rivers (1992).

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L. P. Pereira | Revista del Museo de Antropología, Vol 11 Suplemento Especial 1: 25-34

etnográfico sobre folias em Urucuia, MG, Editora Peristiany, J. G. (Ed.), Honra e Vergonha: valores das
7Letras, Rio de Janeiro. sociedades mediterrâneas, pp. 12-59, Fundação
Calouste Gulbenkian, Lisboa.
Pereira, L. P. (2012). “As vicissitudes da fama”. Revista
de Antropologia, v. 55, n. 2, pp. 1047-1083. Pitt-Rivers, J. (1992). “El lugar de la gracia en la
antropologia”, in Pitt-Rivers, J. & Peristiany, J.G. (Ed.),
Pitt-Rivers, J. (1988). “Honra e posição social”, Honor y gracia, pp. 280-322, Alianza editorial, Madrid

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