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Direitos Humanos e Literatura


ANTONIO CÂNDIDO

O assunto que me foi confiado nesta 4


meio desligado dos problemas reais* "Dirpitríc h P^^ilemente
ra". As maneiras de aSb S^mui^rma. ^
a falar sobre o tema específico sem fazer algumas
a respeito dos próprios direitos humanos ^^^nexoes previas
neste
sadas chegamos a um máximo de racionalidade ?érn?ra
mo sobre a natureza. Isso permite imaginar a ooss^bnln
solver grande número de problemas materi^c hÍ k
be inclusive o da alimentação Nn pntant« • quem sa-
portamemo é taS 'ida
mesmos meios que deveriam reaiizar os desSoría""^"-^
de. Assim, com a energia atômica Dodemnc £? racionahda-
rar força criadora e deaLir a vTa^SaTL° r'™ '"""P" 8^"
gresso industrial aumentamos o coífonl at^lcan? ° P™"
sonhados, mas excluímos.dele as grandes ^
a miséria; em certos países como o rÍpc.T condenamos
nqueza, mais aumenta a pàsima distribui^- u cresce a
podemos dizer que os mS^me os
podem provocar a degradação da m^oria ° progresso
108 DIREITOS HUMANOS E LITERATURA
Ora, na Grewa antiga, por exemplo, teria sido impossível ANTONIO CÂNDIDO jQp
pensar numa distribuição eqüitativa dos bens materiais, porque a Nuremberg foram um sinal de tempos novos, mostrando que já
ríflio permiüa superar as formas brutais nao e admissível a um general vitorioso mandar fazer inscrições
ção do homem, nem cn^ abundância para todos. Masdeem
explora
nosso dizendo que construiu uma pirâmide com as cabeças dos inimigos
mpo e possível pensar nisso, e no entanto pensamos relativamen mortos, ou que mandou cobrir as muralhas de Nínive com as
te pouco Essa insensibilidade nega uma das linhas mais promissó- suas peles escorchadas. Fazem-se coisas parecidas e até piores
da h.stona do homem ocidental, aquela que se nuTríU das mas elas nao constituem motivo de celebração. Para emitir uma
idéias amadurecidas no correr dos séculos XVIII e XIX gerando nota positiva no fundo do horror, acho que isso é um sinal favorá
vel, pois se o.mal é praticado, mas não proclamado, quer dizer
mn.e° EkTabri
rente manifestação
Elas abnram perspectivas que pareciam mlis coe-
levar à solução dos que o homem não o acha mais tão natural.
problemas dramáticos da vida em sociedade. E S fatrdurante No mesmo sentido eu interpretaria certas mudanças no com- •
a ?<=«ditou-se que. removidos uns tais S,stSs portamento cotidiano e na. fraseologia das. classes dominantes
H progresso® senam
Sistemas despóticos de governo Hoje nao se afirma com a mesma tranqüilidade do meu temoo
canalizadas no rumo imaginadoaspelos
con- de menino que haver pobres é a vontade de Deus, que eles não
sSf; fr o saber e a técnica lev^s^ nec«! tem as mesmas necessidades dos abastados, que os empregados
obstáculos foram'^^ vf mesmo onde estes domésticos não precisam descansar, que só morre de fome quem
os homens removidos a barbárie continuou impávida entre for vadio — e coisas assim. Existe em relação ao pobre uma
npva atitude, que vai do sentimento de culpa até o medo.
^ nossa época é profundamente bárbara, Nas caricaturas dos jornais e das revistas, o esfarrapado e
pSiso nf,P n ligada ao máximo de civilização. o negro não são mais tema predileto das piadas, porque a socieda
. ^ movimento pelos direitos humanos se entronca aí de sentiu que eles podem ser um fator de rompimento do estado
pois somos a pnmeira era da história em que teoricamemré posl de coisas, e o temor é um dos caminhos para a compreensão
a iniiict' solução para as grandes desarmonias que geram Sintoma complementar eu vejo na mudança do discurso dos
ca nSn ^ homens de boa vontade, à bus- pohücos e empresários quando aludem à sua posição ideológica
Que nos a^üfpc h"" utopistas racionais ou aos problemas sociais. Todos eles, a começar pelo Presidente
ca em da República, fazem afirmações que até pouco seriam considera
®m co^P^ máximo
correlação a cLda momento da viável de igualdade e justi-
história. das subversivas e hoje são parte do palavreado bem-pensante. Por
outra ^?rifícação desalentadora deve ser compensada por exemplo, que não é mais possível tolerar as grandes diferenças
teS hoje existem os meios ma- econômicas, sendo necessário promover uma distribuição eqüitati
va. E claro que ninguém se empenha para que de fato isto aconte
?quê muko dTm. aproximarmos desse estágio melhor, ça, mas tais atitudes e pronunciamentos parecem mostrar que ago
ra a imagern da injustiça social constrange, e que a insensibilida
st t^m^ de em face da misena deve ser pelo menos disfarçada, porque no
de comprometer a imagem dos dirigentes. Esta hipocrisia genera
-alidade.Ti:^hlX lizada, tnbuto que a iniqüidade paga à justiça, é um modo de
^ problemas e no entanto nao se empenhar nela. Mas de qual-
op^in^o ° sof""^ento Já não deixa tão indiferente a média da
c«Hdeclaram conse^adores, como
se políticos
antes,e quando
empresários de hoie"cias
a expressão não
s.Títois'" ™ 1- M ;.»■ ses conservadoras" era um galardão. Todos são invariavelmente
de centro , e até de "centro-esquerda", inclusive os francampn
te reacionários. E nem poderiam dizer outra coisa, num tempo
ser oculto e nao proclamado. Sob este aspecto, os tribunal! de em que a televisão mostra a cada instante em imagens cuToTn
tuito e mero sensacionaUsmo. mas cujo efeito pode ser poderoso para
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•direitos HUMANOS E LITERATURA
nordestinas raquíticas, po- ANTONIO CÂNDIDO
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dos mórando n7mT desemprega-
nao podem ser negados a ninguémincompressíveis
^siveis, isto
isto fe, os
r^c que
mo ser encarado co-
da de que a desigualdade é incimnrf
sideravclmcntc no estádio atual rir>
generaliza-
^ pode ser atenuada con-
niento^TcLa.Troupa°oÍ^r!L'"'°^^^^
méticos, os enfeites, as roupas extras^?TfnT' °'^°®"
zação. Nesse sentido tL^ez^^ é muitas vezes difícil de fixar me-e! " ® fronteira entre ambos
sentimento do próximo mesmo cp ? de um progresso no são considerados indispensáveis. O m°meir^?kro^d^^^ "1°^
de agir em consonância' E aí entrai DrobIe°^'^d° saca é menos importante do que o úUimo e sâber^osT°^
se em coisas como esta se elaborou em Econon^ Poi v
raqueissoacon,eça,ouseja:raTpror::ZlX^ na da "utilidade marginal", segundo a qual o valor di uma^
depende em grande parte da necessidade relativa que tem^^
u O fato e que cada época e cada cultura fixam os cri?ério.: ÍT^
press.bihdade, que estão ligados à divisão da scí edade em
ses, pois inclusive a educação pode ser instrumento nt™
posto: recnnhécAr "i^ne 'anmiy direitos humanos tem um pressu. as pessoas de que o que é indVnsáU~um7c^ada"^^^
nao o e para outra. Na classe média brasileira os da miniio w
cia do prohT;;;;r^~r.aP~gS;S^jr^^ asta me parece a essên- de atnda lembram o tempo em que se dizia que os emDrr.oa/t
necessário um grande esforço de pHhp^^" individual, pois é ttnham necessidade de sobremesa nem de folga aos tfomTncT^"
reconhecermos sinceramente este DoSd° ® ®"^°-^d"cação a fim de porque, nao estando acostumados a isso, não sentiam falta pT'
.mais.funda é achar que os no«n íi^Uyer^e, a tendêncja totó, e preciso ter critérios seguros para abordar o problema doã
do.próxin^ i bens tncompressiveis, seja do ponto de vista individual aTfa ,?
N oapy-^lvo ox " ponto de vista social. Do ponto de vista individual é i"rnnori
consciência de cada um a respeito, sendo indispensável fare^sêmi'
dúvida, a certos bens tent direito, sem desde a itifancia que os pobres e desvalidos têm diieito aos l.ê
sau^— coisas que ninguénTb^Trfo matenais (e que portanto não se trata dé exercer caridade) ass^m
privilégio de minoriarcorsrot atsif como as minonas têm direito à igualdade de tratamento to
q^oje^meJiiaAte_pobre teria diceito a ler^o«rf^- •
os quartetos de Beethoven*> mo^one?.""" ^ «P=^'f.cas garantindo este
talvez isto não lhes passe pela cabeça setor,
porque quando arrolam os seus dirÜmQ - somente deraçS^dJSprobt^^^^^^^
brana que sao bens incompressíveis não apenas os aue ac^íPo
semelhante. Ora, p esSrço Tara incTú^0"^° ',f a sobrevivência física em níveis decentes mas os J?. "8"''^"'
cp de.jjens que reivindicàmos"é^nàTír'^^P^^-o-"~ mesmo elen-
Whuniánps.::. '' integridade espiritual. São incomptessíveis certat^ente ^
çao, a moradia, o vestuário, a insLção, a sa^rfl besH
sociólogo francêl o°dominía^rp^^^^^ Vidual o amparo da Justiça pública, a resistência à ònr '
dor do movimento Economia e Hnma • Lebret, funda e também o duáto à cranca à opinião aÕSe n ° •
da conviver e que ^ou Zito noTariT^ ^ àjrte e à literanjra. "" que não,
Mas a fruição da arte e da literatura p<;tnria
categoria? Como noutros casos, a resposta sé niíS
dermos responder a uma questão piév^a isto P""
consideradas bens incompressíveis semmHl P^^^tão ser
da sociedade se cotrespo-^derem-rnrsídaTe:SafdiTr
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DIREITOS HUMANOS E LITERATURA
sob pena de"dMor^íiíizaç1lo^Msso^ou^ daixar de ser satisfeilas antonio cândido
113.
mutiladora. A nossa quesião básica, põnan ° Tsâblt
ra e uma necessidade decif» c' ^ saber se a Iiteratu- formas conscientes de inculcament!ril7®"°'°i°''""'^'®"'® ^
ções de concluir a respeito. ° estaremos ern condi- familiar, grupai ou escolar Cada socieda!f'°"® ® «ducação
çoes ficcionais. poéticas e dramár^ 1 manifesta-
pulsos. as suas crençS!Is s^^'enfiní '°°'''° i",-
III
íorlSo"^Po"d\mlo7eTnltmâlf'e1lu'
um instrumento """ o «õaçlo dele"s°™®'-
'
das as criações de toqufpoético Tcdonar^'%^'"^'^ possível, to-- currículos, sendo proposta a cada um c^ educação, entrando nos
tual e afetivo. Os valores que fslc7Sr intelec-
considera prejudiciais, estão presentes nas ou os que
da ficção, da poesia e da ação dramática """"'festações
cia; grlnlícTv^LTçts""- nega. propõe e denuncia, apoia e cSS folie" 7confirma e
manifestação universal de^todoT o^sío claramente como dade de vivermos
pensavel dialeticamente
tanto a iiteratura os probíer^^
sancionada oualm l mplr° ^ P°"'''"'-
® '"c"'®"
Não há povo e não há hom^m ^°dos os tempos ta; a que os poderes sugerem e a que nasce dos P™®"'"
sem a pLibilidade d' enSí- e^nn^ff i^toli negação do estado de coisas predoiSinant7 "«^"nentos de
fabulação. Assim como todos ^^P^ciie de A respeito destes dois lados da literatura r^n, - i
e capaz de passar as ^ inte e ouatro hor noites, ninguém que ela nao é uma experiência inofensiva mas uma lembrar
mentos de entrega ao universo ffhni!^ n u ^^^uns mo pode causar problemas psíquicos e morai^ rom ^^^ntura que.
te o sono a presença indispensável de^p ^onho assegura duran-
mente da nossa vontade. E durante» t própria vida. da quai é'^imVm e ZsfigurSt °°"^ ^
ou poética, que é a mola da litpraf ^'gdia a criação ficcional que ela tem papel formador da personalidade
as convenções; seria antes segundo a forca indkrT "^? segundo
modalidades, está presente em rad ^ seus níveis e rosa da própria realidade. Por isso nas mãnc w ^ pode-
dito ^ como anedSr cLso de ser fator de perturbação e mesmo de risco Da^T P°"
policiâl, canção popular mndà ri <íuadrinho, noticiário
se manifesta^des^o devaneb carnavalesco. Ela da sociedade em face dele, suscitando por vezes confr" -
até a atenção fixada na novela dT tHPv c°" ^'^^nomico no Ônibus lentas quando ele veicula noções ou ofLce supes?í.
de um romance. televisão ou na leitura corrida convencional gostaria de proscrever. No âmbito Ha ®
° ^l^ega a gerar conflitos,
de as normas estabelecidas. porque o seu
o seu efeito transcen-
mergulhar no universo"da^fk:ção^e^da ^ horas sem Numa palestra feita há mais de mnr,,»
da no sentido amplo a que r^rrefe
' '''teratura concebi- Sociedade Brasileira para o Progresso da
necessidade universa,, que precisa ser saTkf í;°"'®^P°"cler a uma da literatura na formação do hom^r^ chame ° P^P^l
constitui um direito. satisfeita e cuja satisfação tras coisas para os aspectos paradoxais de^c ^ ^n^re ou-
em que os educadores ao mesmo temnn medida
mos dtif/Tue^TZura'1f °'í.° ° Pode- efeito dos textos literários. De fato fdiria
a ideia convencional de uma literatura aue^í/
^ temem o
"conflito entre
Portanto. as'sim como„ré posaM h°
O sonho durante o sono talvez não
civiliza^çôes.
^luil^rio psíquico sem do os padrões oficiais) e a sua Doderol f ^ edifica (segun-
literatura. Deste modo dfé^ a miciação na vida, com uma variada e '"discriminada de
e. sendo assim, confirina o homem^rsu^hum desejada pelos educadores. Ela não corro"^^ sempre
to; mas. trazendo livremente em si
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DIREITOS HUMANOS E LITERATURA
IV ANTONIO CÂNDIDO

A função da literatura está ligada à comDlexidaHf. Hq


tureza. que explica inclusive o papel coSSí„ í»fh Este pr7é1birÍ7m"a7afe7hÍ"'''
bros1 sete aaab7cX"
tnadmga"'
°°-""°'^
podemos dSiíguTpeto^^^^ O conceito, tornado mais forte pelo eSm H
A","madr-U-g-A". A constnfrlio5 ^ "aj-U-D-
eTatu^: &:tero são lapidar e ordená-la segundo meios^tér"-^"^ descobrir a expres-
São do mundo dos indivíduos e dos grapos (3)\rfímVfn a percepção. A mensagem é inseparável impressionam
e a condição que assegura o seu ifeito. mas o código
deconhec.mento,inclusivecomoinco,^ora'çli^?^s?eLo4Sm^^
ao terceiro a?pecto"'isToé''Dn^ Itteratura atua sobre nós devido
Mas as palavras organizadas sãn rmo.o ^
um código: elas comunicam sempre alguma ^ Presença de
nhecimento Jie resil ã "e.co- porque obedece a certa ordem. Quando r^ebeZ^;
tipo de instrução Mas ns^ - se ela fosse um . produção literária, oral ou escrita ele A h ° ^"^P^cto de
rias é dêvSo à amtllo simu,f'""'H° • cável da mensagem com a
texto me impressiona, quero dizer que ele imr. °
^nex^i-
sua possibüidade de impressionar foi determinfdr^^T^ ^
recebida de quem o produziu. Em palavras usuais ordenação
atua por causa da forma, e a foima traz em si vLtlm
capacidade de humanizar devido à coerência
jeto, de obgeto^^coSdo-TfgândTÔ^ode 7' °''- e que sugere. O eaos originário, isto é, o nSS77"'""°'=
construção, enquanto construção humanizador desta do qual o produtor escolheu uma foima, se toma o!d7 ^
dor no^pm^èerum m:d:^de7oV4:srtx'^°^° o meu.caos tntenor também se ordena e a mensagem77'^^°*
Toda obra litetária pressupõe esta superação do caos rtl
palavra organizada. Se fosse oossível ah^fra-
nas palavras como tijolÓrd: Sma const^^'17""° ° por unaatranjo
Pensamosespecial
agora daspalavrasefazendouma,^^77'7®
num poema simples c7^7f 5
tijolos representam um modo de organizar a matéria gaque começa com o verso "Eu, Marflia não fS n 7
to organização eles exercem papel ordenadí^ íS ro . Ele a escreveu no calabouço da Ilha das ròb "vaquel-
te. Quer percebamos claramentelu nío o caíá,íde c
zada da obra literária toma ce um fot ' carater de coisa organi-
situação de quem está muito triste, separado ?a f-®
ça a pensar nela e imagina a vida oue teril:7 =°o>o-
ocomdo a catástrofe que o jogou na prisão Dètcorf^
vençao pastoral do tempo, transfigurai nn ,7 ""=°n-
gura a ntjiva na pastora Marfiia, tiaduzindí o f 7°"°
mos da vida campestre. A cer4^'aCa"diz:''° °
tira as palavras do nada e aT^'^0°«do Sí7o"e7Í Propunha-me dormir no teu regaço
• As quentes horas da comprida sesta-
o„o nível humanizador, ao contrário do q7e gemiLntTse
pensa. A orgamzaçao da palavra comunica-se ao nosso eSo e Toucar-te de papoulas na floresta.
o leva, pnmetro, a se organizar; em seguida, a orglniz^o ml!
o. Isto ocorre desde as foimas mais simples, como a quadrinha A extrema simplicidade desses versos rem«»féa
amri
reduzem àx'sugestão,
^ norma,bichos, queousintetizam
conselho a experiência
simples espetáculo mentalè ooiTdfrrraXirr:
ver as respecHvas iniLs na^a7: tT/ãr"'-'
116 DIREITOS HUMANOS E LITERATURA
ANTONIO CÂNDIDO 1,7
de cada um de nós esses sentimentos e evocações são geralmen ocorre humanização e enriquecimento, da personalidade e do gru
te vagos, informulados, e não têm consistência que* os 'tome po, por meio de conhecimento oriundo da expressão submetida a
exemplares. Exprimindo-os no enquadramento de um estilo-literá uma ordem redentora da confusão.
rio, usando rigorosamente os versos de dez sílabas, explorando Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto
certas sonoridades, combinando as palavras com perícia, o poeta nela) o processo que confirma no homem aqueles traços que repu
transforma o informal ou o inexpresso em estrutura organizada, tamos essenciais, corno o exercício da reflexão, a aquisição do
que se põe acima do tempo e serve para cada um representar men saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das
talmente as situações amorosas deste tipo. A aliernância regula emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida o sen
da de sílabas tônicas e sílabas átonas, o poder sugestivo da rima, so da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres
a cadência do ritmo — criaram uma ordem definida que serve o cultivo do. humor. A literatura desenvolve em nós a quota de
de padrão para todos e, deste modo a todos humaniza, isto é, per humanidade na medida em que nos toma mais compreensivos e
mite que os sentimentos passem do estado de mera emoção para abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.
o da forma construída, que assegura a generalidade e a perma Isso posto, devemos lembrar que além do conhecimento por
nência. Note-se, por exemplo, o efeito do jogo de certos sons ex assim dizer latente, que provém da organização das emoções e
pressos pelas letras T e P no último verso, dando transcendência da visão do mundo, há na literatura níveis de conhecimento inten
a um gesto banal de namorado:
cional, isto é, planejados pelo autor e conscientemente assimila
dos pelo receptor. Estes níveis são os que chamam imediatamen
Toucar-Te PaPoulas na floresTa. te a atenção e é neles que o autor injeta as suas intenções de pro
Tês no começo e no fim, cercando os Pês do meio forman paganda, ideologia, crença, revolta, adesão etc. Um poema aboli
do com eles uma sonoridade mágica que contribui para elevar a cionista de Castro Alves atua pela eficiência da sua organização
experiência amorfa ao nível da expressão organizada, figurando formal, pela qualidade do sentimento que exprime, mas também
o afeto por meio de imagens que marcam com eficiência a transfi pela natureza da sua posição política e humanitária. Nestes casos
guração do meio natural. A forma permitiu que o conteúdo ganhas a literatura satisfaz, em outro nível, a necessidade de conhecer
se maior significado e ambos juntos aumentaram a nossa capacida os sentimentos e a sociedade, ajudando-nos a tomar posição em
de de ver e sentir.
face deles. É aí que se situa a "literatura social", na qual pensa
mos quase exclusivamente quando se trata de uma realidade tão
Digamos que o conteúdo atuante graças à forma constitui política e humanitária quanto a dos direitos humanos, que partem
com ela um par indissolúvel que redunda em certa modalidade de uma análise do universo social e procuram retificar as suas ini-
de conhecimento. Este pode-ser uma aquisição consciente de no qüidades.
ções, emoções, sugestões, inculcamentos, mas na maior parte se Falemos portanto alguma coisa a respeito das produções lite
processa nas camadas do subconsciente e do inconsciente, incorpo- rárias nas quais o autor deseja expressamente assumir posição
rando-se em profundidade como enriquecimento difícil de avaliar. em face dos problemas. Disso resulta uma literatura empenhada
As produções literárias, de todos os tipos e todos os níveis, satis que parte de posições éticas, políticas, religiosas ou simplesmen
fazem necessidades basicas do ser humano, sobretudo através des te humanísticas. São casos em que o autor tem convicção e dese
sa incorporação, que enriquece a nossa percepção e a nossa visão ja exprimi-las; ou parte de certa visão da realidade e a manifesta
do mundo. O que ilustrei por meio do provérbio e dos versos de com tonalidade crítica. Daí pode surgir um perigo: afirmar que a
Gonzaga ocorre em todo o campo da literatura e explica por que literatura só alcança a verdadeira função quando é deste tipo. Pa
ela é uma necessidade universal imperiosa, e por que fruí-la é ra a Igreja Católica, durante muito tempo, a "boa literatura" era
um direito das pessoas de qualquer sociedade, desde o índio que a qiie mostrava a verdade da sua doutrina, premiando a virtude
canta as suas proezas de caça ou evoca dançando a lua cheia, até castigando o pecado. Para o regime soviético, a literatura autênti
o mais requintado enidito que procura captar com sábias redes ca era a que descrevia as lutas do povo, cantava a construção do
os sentidos flutuantes de um poema hermético. Em todos esses casos socialismo ou celebrava a classe operária. São posições falhas e
118
DIREITOS HUMANOS E LITERATURA
ANTONIO CÂNDIDO jj^
no estetico, que é o decisivo fof« o„u ameias ao pia- ra vez a miséria se tomou um espetáculo inevitável e todos tiveram
religiosa ormlis''gerataémrs'r ^ a" intensas conSrlZZs
rr?™:
que ela era o quinhão injSt2^ente1m^sto'^o^
tores da nqueza, os operários, aos quais foi preciso um século de
lutas para verem reconhecidos os direitos mais elementares N^ é
preciso recapitular o que todos sabem, mas apenas lembrar oue na
tura qüfvisa a ScrLveVTLr,''!,™''''"" modalidade
ce das iniqüidades sociais a^m^ "'®"
de lilera-
PosiÇão em fa- quele tempo a condição de vida sofreu uma deterioraçã^te^^el'
pelos direitos humanos. ' alimentam o combate que logo alamiou as consciências mais sensíveis e os obseivaXres
lúcidos, gerando não apenas livros como o de Engels sóbria rn^
diçao da classe trabalhadora na Inglaterra, mas uma série de roman'
ralmemiimbíLmos íesS^Sso!" A ° ces que descrevem a nova situação do pobre. roman-
Assim, o pobre entra de fato e de vez na literatura como te
ma importante, tratado com dignidade, não mais como delS'
canay ^lok Poeta, que fez obra autêntica porque foi quente, personagem comico ou pitoresco. Enquanto de um lado õ
v^ht^í-íSos rpcís
tos e dotado de temoLampnio "^"'7 mesmos sentimen-
oper^o começava a se organizar para a grande luta secular na de
fesa dos seus direitos ao mínimo necessário, de outro lado os esrri
tores começav™ a perceber a realidade desses direitos iniciaZ
^ia narrativa da sua vida. suas quedas, seus triunfos, sZZTdt
de desconhecida peias classes bem aquinhoadas. Este fenômeno é
em grande parte ligado ao Romantismo, que, se teve aspecZfZ
camente tradicionalistas e conservadores, teve também outros mes
siamcos e humamtanos de grande generosidade, bastando lembrar
que o socialismo, que se configurou naquele momento é «snK
na literatura age como força humanizadora é a prtpn"TileratuZ tos aspectos um movimento de influência roSca '
ou seja, a capacidade de criar formas pertinente^. '"eremra, Ali pelos anos de 1820-1830 nós vemos o aparecimenin H.
um romance socai, por vezes de corte humanitário e
"ro°„xS°£~l"^5^ tos toques messiânicos, focalizando o pobre como lema nle^°
portante. Foi o-caso de Eugéne Sue" escritor de SMundZZ""
mas extremamente significativo de um ordem
aeus livros ele penetrL no ZvereoTa
e sociarZcomeç'o"5?seSTlX humanitário Vivência do crime e da vi«ude, tnisturando osTunqTZs^e osZ"
g.«.ito,u,s»iSidíiSsSçS^r~
sabe promoveu a concentração urbana em escala nunca Tsta
balhadores honestos, descrevendo a Dersistênria h. ^

cnando novas e mus teiríveis formas de misérir-- incTusfll à


vendo a cada instante
vpndfl^^" os produtosaoque
diretamente ladóhãodopoderia obter.com
bem-estar, Pelaopr^mei-
pobre COS e a idéia de que a pobreza a ifmnrânoio zT í ^
crime, ao qual o homém é porassim dizer condenTo pT!Tnd°
120
DIREITOS HUMANOS E LITERATURA
çoes sociais. De maneira poderosa, apesar de declamatória e ANTONIO CÂNDIDO
prolixa, ele retrata as contradições da sociedade do tempo e foca- da promiscuidade, da espoliação econômica, o que fez dele um
121

brutalizada "^1
pela ?famiiia, o orfanato,
graves.aPor exemplo,
fábrica, o da criançao
o explorador mspiredor de atitudes e idéias políticas. Sendo ele próprio ^0^
que sena um traço freqüente no romance do século XIX. N'Os mente apolitico interessado apenas em analisar objetivamente os
miseráveis há a história da pobre mãe solteira Fantine, que confia ünha a ver com suas
rinhTr intenções.
sociedade, estaMas é interessante
conseqüência da suaque a força
obra nada
eé íalva
salva nelo
pelo r' malandros,
cnminoso regenerado, de cuja tirania brutal ela
Jean Valjcan
lo um dos maiores militantes na história da inteligência empenha-
ohr.
obra 7? h' pelo"^'^"^f^stou
a piedade em vários
menor desvalido outros lugares
e brutalizado da sua
inclusive de ele assumiu posição contra a condenação
b^in^êr "ue ri, história do fiiho de 0^0?. famnln panfleto J accuse,
f^oso ^Ifred Dreyfus,
entrou emcujo
faseprocesso, graças
de revisão, ao seu
terminada
espedlhzadós
especializados em deformar
^ entregue
criançasapara
umavendê-las
quadrilhacomo
de bandidos
obietos pela absolvição final. Mas antes desse desfecho (què não chegou
a ver porque já morrera), Zola foi julgado e condenado à prisão
fâWosT™""! ""Ifaçais de maneira a °ter um riausá o3
labros e musculos no
permanente por ofensa ao Exército, o que o obrigou a se refugiar na Inglater
ra. Al está um exemplo de autor identificado com a visão social
rnfa "1?,"'^'" estivesse sempre rindo. É Gwymplaine da sua obra, que acaba por reunir produção literária e militância
de^soroXSSr"'" ° da sociedal política.
Tanto no caso da literatura messiânica e idealista dos român
r.fst°j,tdrnr:tísz':t:z
meninos pelos ladrões organizados, que os transformam no que
ticos, quanto no caso da literatura realista, na qual a crítica assu
me o cunho de verdadeira investigação orientada da sociedade
hoje chamamos de trombadinhas. Leitor de Eugéne Sue e de Dic estamos em face de exemplos de literatura empenhada numa tare-
ta ligada aos direitos humanos. No Brasil isto foi claro nalguns
itcia cniTV'?'""" ° proWenia da Wo: momentos do Naturalismo, mas ganhou- força real sobretudo no
decênio de 1930, quando o homem do povo com todos os seus
(nao
rn5f^ estou incluindo Dostoievski,
^.^®ratura messiânicaque é outro setor)Tos
e humanitária daqueleS
temoo problemas passou a primeiro plano e os escritores deram grande
hoje declamatóna e por vezes cômica. Mas é curioso que o seu intensidade ao tratamento literário do pobre.
Isso foi devido sobretudo ao fato de o romance de tonalida
msiste r<o meio do que já envelheceu de vez. mos de social ter passado da denúncia retórica, ou da mera descrição
trando que a preocupação com o que hoje chamamos direitos hu a uma espécie de crítica corrosiva, que podia ser explícita, como
manos pode dar à literatura uma força insuspeitada. E Soca^^ em Jorge Amado, ou implícita, como em Graciliano Ramos mas
mente, que a literatura pode incutir em cada um de nós o senti- que em todos eles foi muito eficiente naquele período, contribuin
mento de urgência de tais problemas. Por isso. creio que Lmra- do para incentivar os sentimentos radicais que se generalizaram
e o ffato de ser.tratado
temánoneledocom
romance,
a devidanodignidade,
tempo do éRomantismo
um momen no Pats. Foi «ma verdadeira onda de deslscaramemo S
to relevante no capitulo dos direitos humanos através da literatura. que aparece nao apenas nos que ainda lemos hoje. como os doi;
A partir do período romântico a narrativa desenvolveu cada citados e mais Jose Uns do Rego, Rachel de Queiroz ou Érico
vez mais o lado social, como aconteceu no Naturalismo, que tim ^r^ssimo, m^em autores menos lembrados,como AbguaíBastos
brou em tomar comoi personagens centrais o operário, o campo- Guilhermino César, Emil Farhat, Amando Fontes oínâo fl^a;
de tantos outros praticamente esquecidos mas o/ie orf -
ap Na França, Emile
m geral. o desvalido, a prostituta,
Zola conseguiu fazer ouma
discriminado
verdadei
ra epopéia do novo oprimido e explorado, em vários livros da sé- n^cf^™^ escritores
nunciar a misena, a exploração empenhados
econômica, em exporTd^o
a marginalSlcão-
ne dos Rougon-Macquart, retratando as conseqüências da miséria que os toma. como outros, figurantes de umaZ^v^^ios
LaurPalhZ etc °
122 DIREITOS HUMANOS E LITERATURA
VI ANTONIO CÂNDIDO J23
Acabei de focalizar a relação da literatura com os direitos Soviética (que neste capítulo é mo
humanos de dois ângulos diferentes. Primeiro, verifiquei que a delar) fez um grande esforço para isto, e lá as tiragens editoriais
literatura co^esponde a uma necessidade universal que deve ser alcançam números para nós inverossímeis, inclusive de textos ines
satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato perados, como os de Sh^espeare, que em nenhum outro país é tão
lido, segundo vi registrado em algum lugar. Como seria a situaria
de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos orga idealmente organizada com base na sonhada ig,Ll-
niza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a frui dade completa, que nunca conhecemos e talvez nunca venhamnc
ção da literatura e mutilar a nossa humanidade. Em segundo lu a conhecer? No entusiasmo da construção socialista, Trotski previa
gar, a literatura pode ser um instrumento consciente de desmasca- que nela a media dos homens seria do nível de Aristóteles Goethe
tS" as situações de restrição dos direi- e Mare... Utopia a parte, é certo que quanto mais igualitária for a
scrciedade, e quanto mais lazer proporcionar, maior deverá ser a
IsDirimÍ
espintual. Tamf
Tanto °
num ' T""®
nível a.miséria,
quanto a servidão,
no outro a mutilação
ela tem muito a ver difusão humanizadora das obras literárias, e, portanto, a possibUida-
com a luta pelos direitos humanos. de de contribuírem para o amadurecimento de cada um
Nas sociedades de extrema desigualdade, o esforço dos gover
cão dMte^^hem^híf° socied^e pode restringir ou ampliar a frui- nos escl^cidos e dos homens de boa vontade tenta remediar na
romn
omo a K. f e que ela mantém
brasileira ^ grave dureza
com a maior numa sociedade
a estrati- medida do possível a falta de oportunidades culturais. Nesse rumo
ficaçao das possibilidades, tratando como se fossem compressí- a obra mais impressionante que conheço no Brasil foi de Mário
® espirituais que são incompressíveis. de Andrade no breve período em que chefiou o Departamento de
aZ
Cultura da cidade de São Paulo, de 1935 a 1938. P^Tnmeim
q e nm
um homem ^do povo está praticamente
segundo asprivado
classes da
na possibilida-
medida em vez entre nós viu-se uma organização da cultura com vistas ao dú-
^ de conhecer e aproveitar a leitura de'Machado de Assis ou bhco mais amplo possível. Além da remodelação em larga escala
de Andrade. Para ele, ficam a literatura de niassa, o folclo- da Biblioteca Municipal, foram criados: parques infantis nas zonas
A - espontânea,
popul^es; bibliotecas ambulantes, em furgões que estacionavam
modalidades sao importantesaecanção
nobres,popular, o provérbio.
mas é grave Estas
considerá-las nos diversos bairros; a discoteca pública; os concertos de amola
como suficientes para a grande maioria que, devido à pobreza e difusão, baseados na novidade de conjuntos organizados aqui co
à Ignorância, e impedida de chegar às obras eruditas. ^ ® mo quarteto de cordas, trio instrumental, orquestra sinfônica' co
„ rais. A partir de então a cultura musical média alcançou públicos
va .a difusãoaltura é preciso
possível fazer de
das formas duasliteratura
considerações:
erudita uma relati
em função maiores e subiu de nível, como demonstram as fichas de consulta
da estrutura e da organização da sociedade; outra, relativa à da Discot^a Pública Municipal e os programas de eventos oelos
municaçao entre as esferas da produção literária. quais se observa diminuição do gosto até então quase exclusivo oe
Para que a litera^tura chamada erudita deixe de ser privilégio Ia opera e o solo de piano, com incremento concomitante do gos
to pela musica de camara e a sinfônica. E tudo isso concebido co-
fa feita de maneia a garant^ uma distribuição
^ ^ organização da sociedade
cqüitativa fe-
dos bens.
Ein pnncipio, só numa sociedade igualitária os produtos literários Stofd'e amadomf ^^s-
poderão circular sem barreiras, e neste domínio a situação é parti Ao mesmo tempo, Mário de Andrade incrementou a oesaui
cularmente dramatica em países como o Brasil, onde a maioria sa folclonca e etnográfica, valorizando as culturas popuU^es no"
da população e analfabeta, ou quase, e vive em condições que pressuposto de que todos os níveis são dignos e oue » oóo ■' ■
nao permitem a margem de lazer indispensável à leitura. Por is deles é função da dinâmica das sociedades. Ele entendia a^nS^
so, numa sociedade estratificada deste tipo, a fruição da literatu pio que as cnações populares eram fontes das eruditos e auTde'
modo geral a arte vinha do povo. Mais tarde, inclusive devido !
ra se estratifica de maneira abrupta e alienante.
_ Pelo que sabemos, quando há um esforço real de igualitari-
uma troca de idéias com Roger Bastide, sentiu, qu^nâ veS há
uma copente em dois sentidos, e que a esfera erudita e a nrtmii
zaçao, há aumento sensível do hábito de leitura, e portanto difúsão trocam influências de maneira incessante, fazendo da criação liter^
na e artística um fenômeno de Vasta intercomunicaçào.
124 DIREITOS HUMANOS E LITERATURA
ANTONIO CÂNDIDO 125
Isto fáz lembr^ que, envolvendo o problema da desigualda- dos à atividade de cada um. Mas para surpresa geral, o que
e social e econômica, está o problema da intercomunicação dos quiseram na grande maiona foi aprender bem a sua língua (mui
níveis culturais. Nar. sociedades que procuram estabelecer regi- tos estavam ainda ligados aos dialetos regionais) e conhecer a lite
mes Igualitários, o p-.pssuposto é que todos devem ter a possibili ratura italiana. Em segundo lugar, queriam aprender violino.
dade de passar dos níveis populares para os níveis eruditos como
. conseqüência normal da transformação de estrutura, prevendo-se Este belo exemplo leva a falar no poder universal dos gran
a elevação sensível da capacidade de cada um graças à aquisição des clássicos, que ultrapassam a barreira da estratificação social
cada vez maior de conhecimentos e experiências. Nas sociedades e de certo modo podem redimir as distâncias impostas pela desi
que mantém a desigualdade como norma, e é o caso da nossa gualdade econômica, pois têm a capacidade de interessar a todos
podem ocorrer movimentos e medidas, de caráter público ou pri e portanto devem ser levados ao maior número. Para ficar na Itá
vado, para diminuir o abismo entre os níveis e fazer chegar ao lia, é o caso assombroso da Divina comédia, conhecida em todos
povo os produtos eruditos. Mas, repito, tanto num caso quanto os níveis sociais e por todos eles consumida como alimento huma-
no oufro esta implícita como questão maior a correlação dos ní- nizador. Mais ainda: dezenas de milhares de pessoas sabem de
veis. E ai a experiência mostra que o principal obstáculo pode ser cor os 34 cantos do "Inferno"; um número menor sabe de cor
a talta de oportunidade, não a incapacidade. não apenas o "Inferno", mas também o "Purgatório"; e muitos
A partir de 1934 e do famoso Congresso de Escritores de mil sabem além deles o "Paraíso", num total de 100 cantos e
Karkov, generalizou-se a questão da "literatura proletária" que mais de 13:000 versos... Lembro de ter conhecido na minha infân
vinha sendo debatida desde a vitória da Revolução Russa, haven cia, em Poços de Caldas, o velho sapateiro italiano Crispim que
do uma especie de convocação universal em prol da produção so sabia o "Inferno" completo e recitava qualquer canto que se pe
cialmente empenhada. Uma das alegações era a necessidade de disse, sem par^ de bater as suas solas.
dar ao povo um tipo de literatura que o interessasse realmente Os italianos são hoje alfabetizados e a Itália é um país satu
^rque versava os seus problemas específicos de um ângulo pro- rado da melhor cultura. Mas noutros países, mesmo os analfabe
^essista. Nessa ocasião, um escritor francês bastante empenha tos podem participar bem da literatura erudita quando lhes é da
do, mas nao sectano, Jean Guéhenno, publicou na revista Euro- da a oportunidade. Se for permitida outra lembrança pessoal, con
relatando uma experiência simples: ele deu pa- tarei que quando eu tinha doze anos, na mesma cidade de Poços
de Caldas, um jardineiro português e sua esposa brasileira, ambos
PmnJnLrf"
empenhados namodcsta,
posiçãodeideológica
pouca instrução,
ao lado romances populistas,
do trabalhador e do analfabetos, me pediram para lhes ler o Amor de perdição, de
pobre. Mas nao houve o menor interesse da parte das pessoas a Camilo Castelo Branco, que já tinham ouvido de uma professora
que se dingiu^. Então, deu-lhes livros de Balzac, Stendhal, Flau- na fazenda onde trabalhavam antes e que os havia fascinado. Eu
bert, que os fascinaram. Guéhenno queria mostrar com isto que atendi e verifiquei como assimilavam bem,com emoção inteligente.
a boa literatura tem alcance universal, e que ela seria acolhida de O Fausto, o Dom Quixote, Os Lusíadas, Machado de Assis
vidamente pelo povo se chegasse até ele. E por aí se vê o efeito podem ser fruídos em todos os níveis e seriam fatores inestimá
mutilador da segregação cultural segundo as classes. veis de afinamento pessoal, se a nossa sociedade iníqua não segre-
Lembro ainda de ter ouvido nos anos de 1940 que o escritor gasse as camadas, impedindo a difusão dos produtos culturais eru
e pensador português Agostinho da Silva promoveu cursos notur- ditos e confinando o povo a apenas uma parte da cultura a cha
nos para operários, nos quais comentava textos de filósofos, co mada popular. A este respeito o Brasil se distingue pela alta taxa
mo Platao, que despertaram o maior interesse e foram devidamen de iniqüidade, pois como é sabido temos de um lado os mais al
te assimilados. tos níveis de instrução e de cultura erudita, e de outro a massa
Maria Vitória Benevides narra a este respeito um caso exem numencamente predominante de espoliados, sem acesso aos bens
plar. Tempos atras foi aprovada em Milão uma lei que assegura desta,e aliás aos próprios bens materiais necessários à sobrevivência
aos operanos certo- número de horas destinadas a aperfeiçoamen- Nesse contexto, é revoltante o preconceito segundo o qual
o cultural em matérias escolhidas por eles próprios. A expectati as mmonas que podem participar das formas requintadas de cultu
va era que aproveitariam a oportunidade para melhorar o seu ní ra sao sempre capazes de apreciá-las — o que não é verdade As
vel profissional por meio de novos conhecimentos técnicos liga- classes dominantes sao freqüentemente desprovidas de percepção
e interesse real pela arte e a literatura ao seu dispor, e muitos dos
126
DIREITOS HUMANOS E LITERATURA

Sobre os Autores

™°co™ d^Iíír" = deveriamV^faò


vn

™ea^°d?5fcoiaisem''aue^od^^^^^
• níveis abrange
da cultura A dist^ncãr» í. P°^s^rn ter acesso aosadiferentes
luta por
dita nãn rlí^w CO • entre cultura popular e cultura eru-

hu™"or?a"™rçrot'ai:^"fr^^^^
dea e enr\^oI™r„%trru:^
Antonio Cândido de Mello e Souza foi Assistente de Sociolopia
na USP, de 1942 a 1958, quando passou a ensinar Literatura Bra
sileira na Faculdade de Assis-SP. A partir de 1961 foi Professor
de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, da qual se
aposentou em 1978. Publicou diversos livros, entre os quais- For
maçáo da Literatura Brasileira (1959), Os parceiros do Rio Bonito
la^noke 09^7^^(1964), Vários Escritos(1970), A Educação pe-
O paulistano Carlos Alberto Idoeta é membro fundador da Anistia
Internacional no Brasil e primeiro presidente de sua Seção Brasi
leira. Tem artigos e entrevistas publicados, especialmente sobre
dmeitos humanos. Formado em Administração de Empresas nela
FGV, estudou também Economia, Filosofia e Línguas
Herbert de Souza buscou sempre suas utopias, participando dos
moviinentos estudantis que o levaram, após 1964, à oíganiLcâo
paitidma, a luta revolumonária, à clandestinidade, Nos anos TO
no exilm, esteve em Cuba, Chile, México, Canadá.
Voltando, organizou o IBASE e campanhas contra a Dívida Exter-
hfíírf Sem 1986, a bomba relogio
tudo, F' dasuas próprias
AIDS, a dorpalavras: "Nisto
maior pelos ir-
desconheddos) que ainda padecem na clandesti
nidade o peso da doença. E, neste país do capital transnacional,

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